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Luiz Tavares Pereira Filho
EDITORIAL
Começo este Editorial com uma observação proferida pelo novo Diretor Presidente da CNseg, Dyogo Henrique de Oliveira, conhecido nacionalmente pelos elevados cargos que ocupou na área econômica do Governo Federal: “é impressionante encontrar, aqui e agora, no setor de seguros, problemas que se arrastam há muitos anos e com os quais já lidava no antigo Ministério da Fazenda”.
É a pura verdade. São exemplos marcantes desses casos vetustos os problemas relacionados ao Seguro Habitacional do SFH e ao Seguro DPVAT, ambos com uma longa cauda de situações a resolver e que envolvem um conjunto expressivo de Seguradoras. De fato, as empresas do setor batalharam e ainda batalham incessantemente, com a ajuda da CNseg, em diversos fóruns, para enterrar esses esqueletos com o menor custo possível para elas e para a sociedade como um todo.
Mas o que esses temas têm em comum, a justificar a permanência de problemas irresolvidos? A mim parece que o principal motivo para a dificuldade de sair-se desses atoleiros institucionais e jurídicos reside no fato de esses seguros, ao contrário das apólices típicas de outros ramos, terem sido objeto de profundo envolvimento do Estado, em suas diferentes esferas de atuação. Essa intervenção maciça deu-se através da intensa regulação – naquilo que se designou como dirigismo contratual-, e por acionamento do Poder Judiciário por meio de miríades de ações engendradas por escritórios de advocacia que se “especializaram” na matéria (entendam as aspas como quiserem).
Iniciando estes breves comentários pelo Seguro Habitacional do SFH (SH/SFH), posso dizer que é matéria hoje centrada em questões alusivas a decisões do Poder Judiciário e às suas consequências (financeiramente graves) para as Seguradoras. Quero lembrar que esta Revista já publicou (RJS, vol.13), in totum e com comentários, o extenso e escorreito voto do Ministro Gilmar Mendes do Supremo sobre a competência da Justiça Federal para julgar os feitos que tratem do SH/SFH.
O referido voto foi aprovado por maioria no plenário do STF, constituindo, por ter reconhecida a sua repercussão geral, um facho de luz a aclarar as questões em jogo. A decisão ainda não transitou em julgado, mas se espera que venha a ser confirmada pelo Tribunal no julgamento dos embargos de declaração interpostos pelos tais escritórios de advocacia interessados. O assunto, ainda não concluído, continua provocando fortes dores de cabeça às Seguradoras, que são alvo das referidas ações judiciais.
Quanto ao Seguro DPVAT, trata-se de imbróglio mais complexo, ainda a gerar frequentes peripécias. Desenvolvo um pouco mais o assunto, neste Editorial, pelo fato de contarmos nesta edição com um incisivo artigo do Dr. Luiz Gustavo Bichara a respeito de aspecto central das controvérsias jurídicas que envolvem o Seguro: a natureza privada ou pública dos prêmios arrecadados no Seguro DPVAT.
Antes, porém, de cuidar do tema específico, relembro alguns breves antecedentes. Recentemente, ainda em 2020, houve um relevante desfecho atinente à gestão do DPVAT, qual seja a dissolução do Consórcio que operava, com relativo sucesso, esse seguro. Digo com relativo sucesso porque, de 2008 a até 2019, o Consórcio de Seguradoras que administrava o DPVAT pagou anualmente centenas de milhares de indenizações em todo o território nacional, no prazo regulamentar, mantendo grau de solvência adequado, mercê das provisões técnicas acumuladas (sei disso porque fui Presidente do Conselho de Administração da Seguradora Líder, que operava o seguro DPVAT, de 2008 até 2016).
Também se obteve, naquele período, importantes decisões do Superior Tribunal de Justiça por meio de súmulas e decisões que reconheceram: como de três anos (contra 20 anos que então vigiam) o prazo de prescrição das ações de cobrança do seguro DPVAT; a validade da tabela de pagamento de indenizações de modo proporcional ao grau do dano físico causado pelo acidente de trânsito; que os juros de mora na indenização do seguro DPVAT fluem a partir da citação (importante por reconhecer a natureza contratual do seguro).
Porém, o DPVAT mostrou-se vulnerável a fraudes, facilitadas pela regra – justificável no caso – de que as indenizações devem ser pagas às vítimas ou seus beneficiários independentemente da apuração da culpa do responsável pelo acidente de trânsito. Reconheça-se que erros de gestão foram cometidos, mas sem o vulto e a intencionalidade atribuídos por alguns, sendo quase todos decorrentes da complexidade do empreendimento e da sua governança necessariamente compartilhada. O que não parece justo nem juridicamente aceitável é que medidas de gestão adotadas à luz do direito empresarial privado sejam, a posteriori, examinadas sob o prisma do regime jurídico do direito público.
O ponto aqui é que algumas autoridades consideram agora que os recursos arrecadados pelo Seguro DPVAT são públicos! Ora, isso jamais havia sido antes sustentado, inclusive pelo TCU e Poder Judiciário, constituindo, se vingar, interpretação nova em substituição à que vigorava. E a que sempre vigorou é aquela adotada no acórdão da Segunda Seção do STJ referente ao Recurso Especial 1.483.620-SC, de relatoria do eminente Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, submetido ao rito dos recursos repetitivos: o Seguro DPVAT, embora obrigatório, é administrado pelas seguradoras em regime de direito privado, não se sujeitando, portanto, à legalidade estrita, típica do regime jurídico de direito público.
Esse é o entendimento que, unissonamente, prevaleceu. Se outro vier a ser adotado, ressalte-se que é ponto pacífico, nos países onde impera o Estado de Direito, que a interpretação nova não pode retroagir, em atendimento ao princípio basilar da segurança jurídica, cristalizado nas leis vigentes no país (vide. art. 24 da Lei de Introdução ao Código Civil).
Mas nem só de questões do passado vive a Revista Jurídica de Seguros. Problemas novíssimos estão aqui expostos e comentados, a exemplo dos pareceres dos Juristas Gustavo Binenbojm e Tercio Ferraz integrantes desta edição. Por serem tão relevantes para a compreensão do momento atual de implementação do Open Insurance no setor de seguros, tais pareceres, aqui reproduzidos na íntegra, merecem leitura cuidadosa, inclusive das autoridades encarregadas de regular a matéria.
Sem a pretensão de resumir a extensa gama de razões jurídicas utilizadas nos dois pareceres, verifica-se que os dois excelentes trabalhos acabam por se complementar. Enquanto o pronunciamento do Dr. Tercio Ferraz externa uma visão mais panorâmica sobre aspectos sensíveis relacionados ao compartilhamento de informações no âmbito do Open Insurance, o do Dr. Binenbojm centra fogo na criação das “Sociedades Iniciadoras de Serviços de Seguros – SISS”, figura nova e esdrúxula criada por ato infralegal.
Apenas para dar uma pálida ideia do conteúdo de cada um dos pareceres, segue o que poderia ser uma sequência dos títulos de cada tema desenvolvido, a começar pelo texto da lavra do Dr. Tercio Ferraz: questões relacionadas ao compartilhamento cogente de dados entre instituições privadas; violação do requisito da neutralidade estatal; o DL 73/66 enumera taxativamente as entidades do sistema; riscos do open insurance reconhecidos na Europa.
Já em seu parecer, o Dr. Binenbojm aborda com profundidade e proficiência os seguintes temas: impossibilidade de criação das SISS por ato infralegal: necessidade de motivação e ausência da AIR; vedação legal à criação de reserva de mercado; ausência de coordenação regulatória com a ANPD.
Como se observa, há muito a discutir na implementação do Open Insurance no Brasil, inclusive por se tratar de experiência pioneira, ainda não implantada nos principais mercados de seguros do mundo. A RJS sente-se gratificada por trazer para as suas páginas os debates em curso acerca desse e de outros temas de grande atualidade.
E por falar em outros temas, esta edição traz, como de costume, bemlançados artigos de conteúdo jurídico e comentários certeiros sobre a jurisprudência recente de interesse para o setor. Para não cansar os leitores com o rol de todos os temas apresentados, convido-os a degustar a totalidade desta e das demais edições da RJS (disponíveis no site da CNseg). Ao fazêlo, rogo não esquecerem da leitura dos trabalhos sobre assuntos antigos do setor ainda pendentes, visando a que não prevaleça, no particular, a frase tristemente célebre do ex-Ministro Pedro Malan: “no Brasil, até o passado é incerto...”
Até breve!
Luiz Tavares Consultor Jurídico
Índice
Editorial
Luiz Tavares Pereira Filho
5
Doutrina
Seguro DPVAT e seu prêmio – Considerações sobre a sua natureza privada e caráter social, superando a velha divisão entre direito público e direito privado
Luiz Gustavo A. S. Bichara, Francisco Carlos Rosas Giardina e Fabio Ramos de Souza
12
A lógica da cláusula de depreciação no seguro de dano em caso de perda total, à luz do princípio indenitário
Ricardo Bechara Santos
25
Discriminação nos seguros: parâmetros jurídicos para delimitação da justa segmentação de riscos
Leonardo David Quintanilha de Oliveira
Opinião
Breves notas às infrações administrativas aos mecanismos de supervisão no mercado de seguros
Luiz Alfredo Paulin
36
78
Metaverso: algumas reflexões sobre esse (ainda) pouco conhecido mundo novo e suas possíveis relações e impactos nos seguros
Henrique Motta e Gloria Faria
95
A mediação extrajudicial como instrumento de transformação de conflitos na Saúde Suplementar
Kátia O’Donnell
101
Equilíbrio contratual nas relações securitárias
Rodrigo da Guia Silva
117
Índice
Parecer
Impossibilidade de criação das Siss por ato infralegal Gustavo Binenbojm
138
Riscos na implementação do Open Insurance no Brasil Tercio Sampaio Ferraz Junior 172
Jurisprudência Comentada
Comentário em contraponto à decisão do STJ no REsp nº 1.787.318 de que atropelamento por ônibus é acidente de consumo, mesmo não havendo vítimas entre os passageiros
Ricardo Bechara Santos
196
doutrina
