Vacatussa qu4tro

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Sobre esta revista que você tem nas mãos.

Ilustração: David Edmundson

arcelino Freire e Raimundo Carrero estavam sentados lá na frente. Marcelino pega o microfone e diz, Vocês viram que o pessoal do Vacatussa tá procurando patrocínio pra revista número quatro, será que ninguém vai contribuir? O auditório fica em silêncio até Carrero sacar uma nota estalando de nova e botar sobre a mesa, dez pratas. A platéia começa a se mexer. Marcelino pega a carteira e encara as notas lá dentro, pensativo, depois puxa cinqüenta mangos. Vão dizer que é porque eu tô rico, em São Paulo, e que eu quis botar banca em Carrero, mas a verdade é que eu tô sem trocado, tava torcendo pra encontrar uma nota de cinco aqui... E foi assim que a noite terminou, com um convite da Prefeitura do Recife para discutirmos a impressão do projeto - e nós correndo de um lado para o outro, devolvendo mais de quatrocentos reais angariados em poucos segundos. Um fechamento gratificante para esta edição, que recebeu textos e ilustrações de todo o país, além do reconhecimento de nomes consagrados da literatura brasileira. Além da revista, o site www.vacatussa.com recebe mais acessos a cada dia, divulgando uma nova literatura que surge, ainda tímida, nas mais diferentes cidades. E o cenário, embora difícil, começa a mostrar sinais de que estamos no rumo certo. Por isso, é com enorme prazer que entregamos a Revista Vacatussa Qu4tro em suas mãos. Viabilizar este espaço de divulgação significa muito para nós. Mas nada disso teria sentido se não fosse pela parte que vem a seguir: boa leitura.

EXPEDIENTE.

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O Vacatussa é: Mário Lins Joana Rozowykwiat Thiago Corrêa Ana Lira Aline Arroxelas Julieta Jacob

Site: www.vacatussa.com E-mail: contato@vacatussa.com Tiragem: 1.000 exemplares

Projeto gráfico: mooz Ilustração da capa: Daniel Edmundson

2007 © Todos os direitos reservados

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA Recife, setembro de 2007

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Balada da esposa insidiosa. Texto: Rodrigo Pinto // Ilustração: Luis Fernando

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e madrugada, num parto De gritos desesperados, Vento e confusão demais, Um homem arregala os olhos. Aparentemente nisso Não há nada de incorreto. Acontece que até ontem Esse homem era um inseto. Esquecido do passado, Ele pôs uma gravata, Beijou a mulher no rosto E seguiu para o trabalho. No caminho foi saudado Pelo padre de batina, Pelo banqueiro ocioso E pelo vereador. Ao chegar ao escritório, Foi tomar um cafezinho, Conversou com seus colegas, Falou mal dos não presentes. Empurrou o expediente Com a barriga até as seis. Depois deu seu boa-noite E pulou dentro do trem. Já em casa, no banheiro, De perto olhou-se no espelho, Contemplando com dureza O nariz adunco, a boca. E lembrou por um segundo Que um dia tivera antenas. Enquanto isso, a esposa Pingou veneno na sopa.

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O louco.

Texto: Cláudia Villela de Andrade // Ilustração: Eduardo Rocha

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eu um nó na corda, pôs no pescoço. Os ossos roídos sobre a mesa e o corpo sem vida de uma cadela, já fediam. A madrugada e a janela suavam de sereno e letargia. No beco, do outro lado da rua, um homem fumava crack, que fumava o homem e o exalava contra a vida. No sujo meio-fio, a poça d’água espelhava o louco pendurado no lustre que piscava agonia. A vida morreu sem mais chegar o dia. E o outro dia. E o outro dia. E o outro dia. Até que tudo se dissolveu na decomposição e no esquecimento, não deixando rastros de homem, de crack, de louco, ou de existência. Mas a ossada da cadela... sorria.

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Descarte.

Texto: Carlos Edu Bernardes // Ilustração: Alberto Lins

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u já me acostumei com os alarmes das padarias e das lojas, que disparam intempestivamente nas madrugadas das minhas ruas. Berram sem atenção ou socorro, pois ninguém se preocupa por eles estarem apenas denunciando a solidão que hoje têm o pão e os papéis coloridos dos pequenos presentes. Eu já nem ligo com os caminhões de lixo, que mastigam num festim infernal aquilo tudo que você jogou fora. Talvez essa dor noturna nasça ali, da ruminação interminável do meu amor, que escorreu pelo ralo do seu coração e foi alimentar esses bichos barulhentos, incubados na insônia do bairro. Quer saber? Eu já nem maldigo mais as noites deseducadas e causticantes aqui da minha janela violada no cerrado. É verdade, a cada fim de dia fica mais embaraçoso pedir à lua mais intensidade. Eu, sem você, tenho mais é sumir dessa insustentável cidade.

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Capiberibe, Capibaribe. Texto: Conrado Falbo // Ilustração: Sebba

“...Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada” Manuel Bandeira

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anto sal no mar e o rio chora lágrima nenhuma. ele corre certo. certeiro como se sangrasse a cidade em sua rotina violenta de dor e descaso. é o peixe da maré no saco de plástico. um real. é o mendigo encarnado no sol do semáforo. um real. a fé dos passantes que não entram pela porta sempre velha da igreja aberta. o dia retine seu clarão de vidro nos ferros dos ônibus atrasados. justo no ponto onde a ponte encontra o chão, o olho do rio espreita o mundo. abre suas pálpebras remelentas de mangue e lixo sem conseguir enxergar muito mais que as próprias margens. ângulo cego de qualquer sentido. a lama que cobre os caranguejos não reflete o azul do céu. mas o azul persiste.

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Fonte.

Texto: José Menin // Ilustração: Mopa

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ada. primeiro o silêncio da noite. depois das horas de afeto, se levantou como um grande e estúpido animal faminto. o corpo latejava o fogo. os poros. os poros. sabia que não veria aquele corpo outra vez. os poros. cheirava o doce daquela carne, tateava sobre os ossos salientes. não lembraria do rosto depois de virar a esquina. escreveu na palma da mão uma letra: P. estava marcada na pele solta, como fazem as crianças da cidade que encontram o espinho da laranjeira e passam a tarde desfiando os caminhos da mão. a pele levantada, branca, opaca. dobrou a esquina. esquecera o corpo, como havia imaginado. tirou um cigarro do bolso da camisa. tirou um isqueiro do bolso. tirou a cabeça do mundo. tirou a visão. encontrou repouso uns 30 passos depois, num bar ainda aberto. eram 08h e as gentes passavam apressadas para o trabalho. sentou. fumou o cigarro. e depois outro e ainda mais um. um gato se aproximou das pernas dele, sentado na calçada do bar, com a cerveja na mão. xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, , ,. o sol subiu bem rápido, parecia pendurado nos ombros. o estômago estava revirando. Fome, fome. o gato agora estava irritante. xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, , , . correu, sem pedir a conta. cruzou com uma dupla de policiais gordos e bigodudos e pensou que nunca tinha visto um policial que não fosse gordo e bigodudo. estava em casa. os pés, as pernas tinham-no arrastado para o banheiro. a água caía e o corpo lembrava de estar com a cabeça entre as pernas da menina durante toda a noite. toda noite. bebendo na fonte, eletricamente. lembrou do gato enroscado na perna. viu que era o bichano, que seria o bicho, e lamberia a cidade toda, como uma criança diante do mundoaberto. lambeu a água, caindo no rosto, dormiu. não acordou quando um corpo nu se aproximou e deixou a fonte em sua boca. o chuveiro cantava uma canção muito bonita e a água era doce, muito doce. de alguma maneira, sabia que a vida tinha começado ali, bem ali, na fonte.

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Inventário de sangue. Texto: Bernarrdo Brayner // Ilustração: Harrison Araújo

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pai não tira de mim os olhos, na confusão, na briga, no burburinho, na multidão, a chuva em volta de nós se fazendo passos de exército, o rosto sempre atento do pai, olhos para mim, vi que tentava me falar, mas o barulho, o barulho, o barulho, palavras só chegavam esquartejadas, retalhadas. Foi naquele dia. Meu pai vomitou sangue da cabeça de outro homem. Coisa de vingança, diria depois o pai. Ele tinha que me pagar, o homem. Você não entende isso. O sangue era quase preto. Você tem que saber se defender, que este mundo é de todos e não só destes cachorros. E a mancha preta vinha pra cima de mim como uma ameba. Eu observava ali o meu pai, como ele fazia sombras com as mãos. E a ameba era também uma árvore negra, uma Árvore com seus ramos fortes, sortidos, procurando o sol.

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Arquipélago.

Texto: Tito Malacarne // Ilustração: Steffania Paola

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sso aqui parece uma sibéria, mas com a cara de montevidéu, apesar de não saber precisar como é a cara de uma cidade] depois de passar 32 horas viajando, não iria desembarcar à toa num deserto ártico, sozinho, com a presença satélite do sr. hernández] em nossas longas conversas se mencionou a substituição dos tradicionais empanadinhos pelos pastéis e a evidente melhora da nutrição nacional, devido à intensa imigração de chineses, da costa oposta, nos últimos cinco anos, provocada pela revolta que ficou conhecida como ‘A mordida dos cachorros malhados’: os mestiços, conseqüência da fusão entre a parcela pobre chinesa e os nativos, ascendidos socialmente, desejosos de maior poder econômico e burocrático, estendendo suas influências, se revoltaram contra o monopólio das condições precárias do preparo dos pastéis, acatando como solução única o extermínio da elite chinesa vivente no território e o estímulo procriativo entre os chineses pobres e a população local, sendo permitido, posteriormente, o envenenamento acidental daqueles por estes últimos: vontade implícita de constituir uma raça pura] me dirigia à procura duma pastelaria ali mesmo na estação quando fomos abordados por uma moça de riscos simpáticos: nos deu bem-vindos, mas ao inquirir sobre que direção tomar, fui ignorado, como se ela não notasse os meus contatos: mirava fixa e rígida um ponto qualquer, numa possível espera do desembarque de outros passageiros] sr. hernández, um dia o sr. me explicará a vida? durante o trajeto da viagem o assento que ocupei se manteve vazio, menos quando uma criança caiu ali acidentalmente, e agora sobre os pés há uma subtração] irai, maiti, baki, pasti ll ka ki, vi ka ki, ki pri li ni hai nidi] sem que soubesse, estive mudo e cego por um período indeterminado: à minha frente, se é que existe uma frente nesse momento, apenas os signos do zodíaco: mas eram outros, que não os tradicionais, os maias e muito menos os chineses: signos desconhecidos que conversavam comigo, vozes ecóides que colam no corpo, prenúncio de um cataclisma, as mãos tateiam, o coração faz tum tum tum, a boca umedece e falha ao dizer: sr., convertendo para pesos macedônios, quanto custa o pernoite?]

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A construção do abismo. Texto: Thiago Corrêa // Ilustração: Lucídio Leão

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ansado com o presente, disse não ao futuro que lhe aparecia no horizonte. Protestou, cruzou os braços, fez cara de brabo, deixou a barba crescer. Interrompeu a construção da ponte que lhe levaria a algum lugar. Sentou na beirada da obra incompleta, com as pernas suspensas no ar do abismo do nada, e esperou a lua nascer. Acreditava que junto com ela, do mar prateado, surgisse outro destino. Não veio. Na claridade do luar, viu-se como alguém sem futuro. Procurou um no horóscopo, recorreu aos orixás e classificados. Nada. Orgulhoso demais para reaver seu destino, foi condenado a ser uma dessas almas sem esperança, que perderam o bonde da vida e se transformaram em escravos do presente. Estava no corredor da morte, afundado no sofá do tempo, esperando virar passado. Já entediado, em frente à televisão, decidiu ser um decadente de verdade. Desceu ao boteco da esquina, achando que talvez assim pudesse justificar o peso da sua decisão. Quando lhe questionassem porque desistira da carreira promissora, o bafo de cachaça seria a resposta mais convincente. Depois da quinta tequila, perguntou a um velho sentado ao balcão o que esperava do futuro. O sorriso frouxo combinado com o olhar enxaguado da resposta, fizeram ele pedir desculpas. O cheiro azedo da velhice denunciava a falta de tempo para um futuro. O velho disse estar tudo bem e, querendo amenizar o desconforto do bêbado, puxou papo, contando-lhe histórias da juventude. Foi diante das rugas do novo amigo que percebeu seu erro. Olhava para o lado errado. Puxou na memória alguma coisa relevante para falar ao velho, lembrou da época da faculdade, do colégio, da infância. Falou de cachaças, viagens, mulheres, filmes e livros. Dos últimos três anos, porém, tudo o que encontrou foram duas linhas no currículo. O resto já deveria estar no lixo, aquecendo mendigos ou servindo para limpar janela. De repente, viu-se na ponte construída com entulhos de segundos e palavras, parado rente ao abismo, encarando seu futuro do pretérito. Deu um passo

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O Último Vôo das GaiVotas. Texto: Mário Lins // Ilustração: Frederico Melo

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ra como um enorme degradê azul, o tom mais claro se esticando no horizonte e escurecendo em direção ao alto, formando uma redoma aVeludada que cobria todos os detalhes daquele instante. O sol já descia rumo às colinas do leste enquanto alguns pássaros deslizaVam pelo céu, grandes formas aladas contrastando com o infinito. Iguais aos seus desenhos de infância, quando riscaVa nos papéis com lápis de cera: um semi-círculo amarelo no canto da página, um enorme rabisco azul celeste e as gaiVotas, grandes letras pretas em V flutuando por toda a folha.

os sentidos retornando, a sensação do presente crescendo em cada poro. O gosto metálico do sangue na boca. Bastou lembrar e o corte nos lábios pulsou em brasa, ardendo com a brisa do fim de tarde. Sentiu o calor Voltando, arranhando a pele ardida, sugando a umidade dos olhos. Mas, em poucas horas, o céu se acenderia num enorme letreiro, leVando o calor embora. Então as gaiVotas dariam lugar às constelações e ele passaria a noite nomeando cada uma delas, depois contaria os planetas e todos os satélites de Saturno, começando por Atlas e terminando em Prometeu.

Lentamente, ergueu o pescoço e procurou com a cabeça até encontrar um ponto mais confortáVel nos sulcos da pedra onde se deitara. Seu corpo estaVa leVe, parecia ser todo olhos e azul, o resto carregado pelo Vento para longe, para fora do deserto, de Volta à poeira, retornando a átomos e moléculas esparsas, rodando o mundo e dando origem às coisas mais diVersas. As gaiVotas balançaVam lá em cima, as mesmas da infância, e ele quase podia Ver a textura do lápis de cera em seus contornos. Mas o sol era apenas um ponto branco de onde a Vista teimaVa em fugir, em nada parecia com seus desenhos de tantos anos atrás. Lembrou-se de um trecho da peça de Ésquilo, recitada em algum lugar no passado.

A noite e o frio que não Vinham nunca, apenas aquele azul e a luz ressecando seus cortes, rachando a pele e coagulando os filetes de sangue que nem mais escorriam pelas veias entalhadas na pedra. Queria romper as correntes do tempo que o aprisionaVam ali, queria Voltar, ir para bem antes, sem nenhuma lembrança daquilo que o aguardaVa sob o sol escaldante, queria esquecer das gaiVotas que pairaVam cada Vez mais próximas, no ar e nas lembranças.

Por acaso imaginaste, num delírio, que eu iria odiar a Vida e retirar-me para o ermo por alguns dos meus sonhos se haVerem frustrado? Tantos anos, tantas coisas, todos aqueles planos ainda por fazer. Sua perna latejou docemente,

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Tentou Virar o corpo para se esconder do sol, mas os ossos quebrados reclamaram. A agonia retornaVa lentamente com o calor, cozinhando seus nerVos em fogo baixo. E então o tempo parou, num instante de lucidez cristalina. Viu o enorme degradê azul do céu formando a redoma que englobaVa aquele instante. Lembrou dos pássaros da infância e então percebeu: não existiam gaiVotas no deserto. Voando em círculos, os urubus se aproximaVam.

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O pecado.

Texto: Aline Arroxelas // Ilustração: Alfredo Rodrigo

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o dia em que decidi pecar, lembrei que até Deus tem os seus segredos. Mas não foi um pecado como eu, boa menina, imaginara. Não foi nada feio, nada sombrio ou oprimido. Foi lindo, melhor que todas as minhas boas ações jamais praticadas. Aliás, foi por conta do pecado que eu voltei a rezar. Meu pecado se transformou em uma bandeira, pesada e exaustiva, mas que já avisa, de antemão, que não estou para brincadeiras. No começo eu chorava muito, e sempre. E então ele me abraçava devagar, e me cobria de beijinhos, tão leves e doces que eu nem os sentia. Primeiro por sobre a pálpebra do olho direito, depois em cima de minhas primeiras ruguinhas, no canto da boca, atrás da orelha, na ponta do queixo. Enquanto pulverizava esses beijos-soprinhos, ele me acomodava em seus braços, e dizia (mais baixo do que o ouvido poderia ouvir) que ia ficar tudo bem, jurava que tudo se resolveria logo, que meu choro em breve seria até engraçado. E eu acreditei, porque ele tinha um jeito de pegar na minha mão e me fazer acreditar até no coelhinho da páscoa, e terminávamos rindo por qualquer coisinha à toa, como um biquinho abusado ou uma piada fora de hora. Eu me derretia tão lentamente por entre os seus dedos que não poderia haver força nenhuma no mundo capaz de me pôr inteira outra vez. Ainda que houvesse, eu não a aceitaria. O pecado era meu, a culpa seria minha, tudo isso pra que o presente fosse meu também. Derreter-se era o presente que havia, e a ele eu tinha direito como se por determinação divina. Pelas madrugadas ele sempre encontrava uma maneira de encostar no meu cabelo, ainda que

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estivesse longe, e eu passei meses acordando no meio da noite ouvindo a sua voz no quarto vazio. Que arrepio! Deve ser isso o que chamam de assombração. É que ele tinha voz sem ter corpo, e me amava como se nunca tivesse saído de mim. Tinha um jeito de me amar colocando o dedo na minha orelha, como se quisesse ocupar os buracos da minha cabeça por inteiro, e só ele, no mundo todo, poderia fazer isso. Qualquer outro que tentasse seria sumariamente ridicularizado; ele não, ele tinha o dedo certo pra mim. Foi com ele que aprendi que não tirar o cheiro do corpo é uma espécie de ostentação. Lembro que nesse dia - no dia em que ele e eu repartimos esse segredo - saboreava as palavras como se fossem um troféu de confirmação, um foda-se dirigido ao universo, em todos os seus confins: “quer saber? vou dormir sem tomar banho”. E estava dizendo: “carrego teu cheiro em mim como prova do que és”. Eu, claro, sabia o que eu era, porque era ele quem o cantava. Eu reconhecia o cheiro que ficava em minha pele por horas a fio, e logo depois de tomar banho eu já queria cheirar a ele outra vez. O que era aquilo mesmo que eu pensava até um dia desses? Que era um pecado? Que assim não podia ser eu? Não, em nem me lembro, foi em outra vida, foi tudo antes dele, e antes dele não era eu, mas apenas a semente do que eu viria ser depois do pecado, e ainda a semente do que serei depois da redenção. Porque a redenção é o que está à frente, é aquilo que nós dois contemplamos agora, olhando através dessa janela de futuro. Não importa o que eu tenha pensado antes, e preciso me convencer de que tampouco importa o que eu penso agora. Eu serei só o futuro. A promessa.

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Bem leve.

Texto: Joana Rozowykwiat // Ilustração: Julieet

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úlia tinha uma maneira incomum de mover-se. Não que rebolasse demais, ou puxasse de uma pena, pelo contrário - flutuava. Não assim de forma poética, uma metáfora boba. O fato é que ela não tocava o chão de verdade, seus pés não suportariam as asperezas dos caminhos. Era como uma fada, vaporosa e suave. Quando criança, recusou-se a engatinhar. Chorava ao ser posta no chão, uma tristeza profunda e resignada. Já começava a perceber que não nascera para ficar presa à terra. Só aos poucos, contudo, descobriu que poderia deixar-se levar, por ventos e vontades. Transtornados, os pais assistiram pela primeira vez à pequena menina subir e subir. Parecia içada pelo céu azul estampado no papel de parede que enfeitava o teto do quarto. A mãe, beata que era, rejeitou a criatura flutuante. Não sabia conviver com o inexplicável. Pouco afeito às responsabilidades e, portanto, sempre distante das realidades cotidianas, o pai aceitou aquele encanto, como uma bênção, que de fato era. Assim, amarrava uma fita rosa-chá ao tornozelo da pequena e a ancorava às treliças do berço. Não queria correr o risco de perder seu tesouro. E Júlia era como um balão. Aos poucos, aprendeu a controlar seu flanar. Adquiriu um jeito delicado de ser menina, se sabia especial. Incorporada à lista das pessoas que existem para todo o universo, povoou enciclopédias e dicionários. Levitar era agora ação cientificamente comprovada. Doce, queria compartilhar o dom com os amigos, a família. Sua dor era não poder segurar firme as mãos de sua mãe e levá-la para um passeio, um sobrevôo, em qualquer domingo de sol ameno. Às vezes atordoada com sua condição de pluma, deixava o

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sorriso guardado no bolso e parecia que era outono. O ar, em movimento, assoviava baixinho e Júlia, com sua fita rosa-chá, atava-se a uma raiz qualquer. Fechava os olhos e se deixava levar - pelo vento. Fez-se linda mulher. Dessas exóticas, muito brancas e com um rosto saído do sonho, quase lembrança. Preenchia o mundo de dúvidas e uma beleza ingênua, lúdica. Representava um pouco de magia, ali, em meio aos carros, edifícios, cabos, luzes azuladas. Mas Júlia foi percebendo que não queria ser assim tão atípica. Gostaria de correr na areia quente, com os pés afundando gostoso, assim como todo mundo. Queria sentir cócegas, pisando pedrinhas roliças. Gastar as solas do tênis, ser dona de uma meia furada. E até ser surpreendida por uma farpa sorrateira, só para fazer charme e pular de uma perna só. Na verdade, sonhava era em não ser notada, em não ser a-menina-que-flutuava, dito assim, como se fosse uma entidade, ou a senhora de alguma coisa. Então um dia, do topo de sua cama macia, tomou uma decisão: andaria com seus próprios pés. Tocou o chão com receio, sentiu um calafrio. Deu um passo cambaleante e sofria. Era como se puxada por uma gravidade invertida, mas insistiu. Caminhou alguns quarteirões, descalça, queria perceber as texturas das ruas, calçadas, carpetes. Júlia, contudo, era só incômodo. Aquilo não daria certo. Triste, respirou fundo e, mais uma vez, deixou-se levar, desta vez, pela sua própria vontade. Seus pés, claro, não suportavam os caminhos e ela inteira não seria capaz de compreendê-los, nem mesmo dali, do alto. Soltou sua fitinha num gesto manso e observou-a rodopiar até encontrar o solo. E voou, para longe, para o nunca-mais-voltar.

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O nome do pai. Texto: Julieta Jacob // Ilustração: Gustavo Gusmão

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ra tanto dengo, era tanta paixão, era tanto capricho... Emília mal pensava em querer algo, que Wagner prontamente partia pra realizar o desejo da amada. “Acho que quero um sorvete de morang...”, e lá estava ele com o sorvete na mão. Incansável. Fazia de tudo e por nada mesmo. Um simples sorriso, daqueles que sequer deixam os dentes à mostra, pra ele, já era recompensa mais do que suficiente. Era impossível ficar indiferente aos dois. E ninguém ficava mesmo. Naquela pequena cidade, do taxista ao padeiro, dos vizinhos ao prefeito, todos sabiam daquele amor. Alguns até o julgavam um pouco exagerado, mas ninguém deixava de notá-lo. Porque aquele amor nasceu pra ser mais do que perfeito. Mas não era. No lugar da perfeição, angústia. E tudo por causa de um nome. Wagner. Era o mesmo nome do pai de Emília. “Lamento, mas eu não posso. Pior, não consigo mesmo”, justificava Emília cada vez que recusava um beijo. Chegava a apenas um milímetro de distância da boca de Wagner, mas desistia antes de sentir o seu gosto, como se estivesse diante de um fruto proibido. “Não adianta. Me sinto uma pecadora”, completava. Emília tinha uma espécie de bloqueio. Achava que não podia se casar com um homem que tivesse o mesmo nome de seu pai. “Mas meu amor, o nome do seu pai se escreve com “V”, e o meu, com “W”. Por favor, leve isso em consideração”, implorava o apaixonado. “Dá no mesmo. Infelizmente, Wagner é igual a Vagner. Ao pé do ouvido, é a mesma pessoa”, replicava ela. O jeito foi chamar o padre. Não para casá-los, mas para convencê-la. “Emília, preste atenção: não há nada de errado em você se casar com um rapaz de nome Wagner, muito pelo contrário. O moço é de bom caráter e lhe quer muito bem. Acredite, vai fazê-la muito feliz”. Inútil. De felicidade ela entendia, e aquela não lhe parecia a mais adequada. Diante da impotência de tudo e todos, Dona Lúcia decidiu entrar em ação. Nem acreditava que iria ter que revelar o segredo que guardara tão bem durante

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22 anos. Chegou a ter certeza de que morreria sem precisar, de novo, ressuscitar aquelas lembranças tão amargas, mas não havia outra saída. Era o futuro da filha que estava em jogo. E, além disso, tratava-se de um grande amor. Chamou Emília no quarto, fechou a porta, respirou fundo e não pensou em nada antes de dizer de uma só vez: “Você não é filha de Vagner”. Tomou um pouco mais de fôlego e recomeçou: “Tive um caso com um homem casado, que não mora mais aqui na cidade. Engravidei e ele não quis assumir. Cafajeste. Aos oito meses de gestação, conheci Vagner, e nos casamos. Ele não tinha filhos e se apaixonou por você ainda na maternidade. Mas concordou em não lhe contar nada sobre a verdadeira história”. Só podia ser um sonho. Emília não acreditava no que acabara de ouvir. Nem a cura da Aids, nem o fim das desigualdades sociais no mundo. Nenhuma notícia teria sido melhor do que aquela. Com poucas palavras, Dona Lúcia havia transformado Vagner num nome qualquer. Agora sim, Emília sorriu com os dentes à mostra, com os olhos em lágrimas, com a alma em ebulição. Não disse uma palavra à mãe. A partir daquele momento, o tempo parecia curto. O amor, antes impossível, tornou-se urgente. Apressou-se para fazer as malas. Não levou muita coisa, mas não esqueceu a lingerie escondida no fundo da gaveta. Com ela perderia a virgindade, do jeito que sempre sonhou: com o homem que amava. No dia seguinte fugiu com o dono do seu coração. O que sentiam dentro do peito era tão grande, que foi preciso procurar mais espaço em outro lugar. No mesmo dia, à noite, Dona Lúcia chegou do trabalho no horário de sempre e esperou o marido para jantar, como de costume. Às sete em ponto, ele não chegou, como deveria. A sopa esfriou. Gelado ficou também o coração de Dona Lúcia, que perdeu as esperanças e nunca mais voltou a ver o marido. Vagner nem estava assim tão longe. Mas, dentro de Emília, ele se sentia distante e totalmente seguro. Sabia que jamais seriam descobertos.

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