Memória da Cidade: história e patrimônio urbano no Brasil.

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Rodrigo da Silva (Coord.) Carlos Eduardo França de Oliveira Joacir Navarro Borges

1ª. Edição

Edição Conceito Humanidades

São Paulo - 2011


Caixa Econômica Federal Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro da Fazenda Guido Mantega Presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Fontes Hereda Ficha Técnica Coordenação Geral Rodrigo da Silva Professores Prof. Ms. Carlos Eduardo França de Oliveira Prof. Dr. Joacir Navarro Borges Prof. Ms. Rodrigo da Silva Textos Prof. Ms. Carlos Eduardo França de Oliveira Prof. Dr. Joacir Navarro Borges Prof. Ms. Rodrigo da Silva Design e Editoração Camila Wingerter Ilustrações Paulo Galvão Produção e Edição Conceito Humanidades Assessoria Jurídica Perrotti e Barrueco Advogados Associados

SUMÁRIO 1.HISTÓRIA E MEMÓRIA

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2.AS FORMAS DA CIDADE

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3.EXPERIÊNCIA URBANA NO MUNDO PORTUGUÊS

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4.MORFOLOGIA DAS CIDADES E VILAS BRASILEIRAS

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5.O NASCIMENTO DA IDEIA DE “PATRIMÔNIO”

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6.OS GRUPOS SOCIAIS E O PATRIMÔNIO CULTURAL: DINÂMICAS E CONFLITOS

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7.O PATRIMÔNIO URBANO NO BRASIL: DESAFIOS, PRÁTICAS E EXPERIÊNCIAS

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OS AUTORES

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CAPÍTULO 1

HISTÓRIA E MEMÓRIA

História: estudo do passado? uito embora atribuam ao passado importância fundamental na constituição do universo sociocultural do qual fazemos forma envolvidos com a história não se sentem à vontade com a seguinte ocorre, uma vez que, via de regra, a história ocupa-se daquilo que remonta

com o contemporâneo?


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HISTÓRIA E MEMÓRIA

um estudo sobre o passado. Mas que passado? – cabe aqui a pergunta. Trata-

do presente, e não de um conjunto de dados cristalizados e preexistentes ao crivo do historiador. É justamente nessa integração entre passado e presente,

ao longo do tempo. A história possibilita, deste modo, compreendermos não

a dos trabalhadores que para ali foram em busca de uma vida melhor, a dos imigrantes, dentre outras. Essa noção de história mais dilatada, não-linear e agregadora tem conquistado espaço entre setores do poder público, da iniciativa privada e da sociedade civil organizada, especialmente quando ela vem associada ao que se convencionou chamar de patrimônio cultural gratuita. Se por um lado ela atesta a derrocada das grandes ideologias diante da pluralidade cultural dos povos e assume que crescimento econômico sem traz a tona reivindicações de grupos de pessoas engajadas em manejar sua história em favor próprio, o que pode ser notado pela proliferação de centros de memória, museus e casas de cultura. Com isso o conhecimento histórico se com a sociedade, a qual congrega diferentes demandas por história.

dos psicólogos ou geofísicos, tampouco uma unidade de medida. Acima de interesse. Alguns estudiosos acreditam que um certo culto ao passado que Um pesquisador que busca examinar o processo de formação dos centros urbanos brasileiros desde o início da colonização portuguesa certamente se

interesse na exploração de uma determinada memória que proporcionasse uma

historiador preocupado em discutir as eleições municipais após o período de diferença substancial entre história e memória? realidades coexistentes podem ser experimentadas pelos homens. Quando caminhamos pelo centro de alguma cidade somos enredados por fragmentos

Memória: fenômeno individual ou coletivo? Quando entendida como a capacidade do indivíduo conservar e


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historiadores e sociólogos vem mostrando que a memória individual, quer

impossível apartarmos as pessoas da sociedade na qual estão inseridas.

espiritual inteligíveis para os grupos sociais. Nesse sentido, a memória emerge como um comportamento narrativo que tem em seu cerne uma função social de

relações entre os homens são moldadas pelas formas de pensar, agir, sentir

ocorridas no passado as quais não estão no presente em sua forma original. Um dos maiores equívocos que cometemos quando pensamos em

sobre o mesmo. Assim, a memória de um dado sujeito se articula com as mais variadas esferas do seu horizonte sociocultural, tais como a religião, os círculos

que antecede o presente. Este, por sua vez, teria apenas função de resgatar

por valores, ideias e condutas de uma sociedade. Sabemos, todavia, que não estamos cercados tão somente por memórias particulares. Ao longo do tempo as sociedades geram, cada uma a sua maneira, um sistema de lembranças localizado espacial e temporalmente, o qual denominamos de memória coletiva. Esta garante relativa solidez e coesão a um grupo social e ganha importância em momentos de maior mobilização,

detentor. A constituição da memória se opera no presente, sendo este quem de seu funcionamento social, o presente incentiva e prescreve a rememoração.

É importante ressaltarmos que a memória não atua apenas na organização das identidades, na procura de um lugar na sociedade e na poder, em cujo entorno se dão disputas que envolvem desde a conservação

cultivada, tais como relatos orais, gestos, textos, pinturas, esculturas, músicas

delas podem conviver juntas, relacionando-se ou não entre si.


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A memória, em si, não responde a essas e outras indagações. Pelo

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Mesmo com os avanços em direção à consolidação do trabalho do

memória e história não são a mesma coisa.

História e memória: aproximações e afastamentos

acontecimentos e de personagens invocados pela memória coletiva. Mas com

constantemente imbricado nas diversas esferas da memória individual e coletiva. A história da humanidade não deixa de ser um contínuo movimento de criação, reposição e alteração de representações alusivas à memória

vislumbrar um conhecimento objetivo que conceba a memória como objeto de estudo da disciplina histórica, acaba incidindo no próprio movimento de

e tridimensionais. No interior da elaboração de um discurso histórico sempre subsiste, quer queira quer não, a produção de uma determinada memória sobre o passado.

não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas,

sagrado, a história liberta, e a torna sempre prosaica”.

de reorganizar o passado, por à mostra suas facetas ocultas e lançar luz sobre historicamente sobre


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complexos culturais a eles integrados).

produzidas pelos historiadores e um campo de estudo sobre o fazer história ao longo do tempo.

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Brilho Eterno de uma mente sem lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind). EUA, 2004. Direção: Michel Gondry. Narradores de Javé. Nós aqui estamos por vós esperamos. Brasil, 1998. Direção: Marcelo Masagão. Uma cidade sem passado (Das Schreckliche Mädchen). Alemanha, 1990. Direção: Michael Verhoeven. Na internet http://bndigital.bn.br/redememoria/index.htm. Site da Rede de Memória Virtual Brasileira, organizado pela Biblioteca Nacional.

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CAPÍTULO 2

AS FORMAS DA CIDADE

essencialmente diversa, apesar das padronizações que o mundo contemporâneo proporciona. Duas ordens de diversidades – pelo menos – podemos propor de início: a diversidade das cidades entre si e as percepções da cidade dentro de si. diversas são as humanidades que se manifestam numa cidade do interior da Índia, outra, capital de país africano, uma terceira – megalópole – como

essencialmente no modo de vida, na cultura.


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Essa diversidade, vale lembrar, não se apresenta apenas num único tempo, sincronicamente, mas, ainda mais profundamente, no decorrer do tempo, no qual culturas diversas e desenvolvidas com diferentes níveis de autonomia e isolamento em relação umas às outras criaram suas próprias

de estabelecer compreensões mais amplas, comparações, interpretações. Por

rapidamente Atenas (uma Cidade-Estado), com Machu Picchu, a Amsterdã

e explicações seja feita, buscando diminuir os equívocos e generalizações.

colonial com Alexandria no Egito dos Ptolomeus. A segunda ordem de diversidades que propusemos discutir diz respeito ao que poderíamos, inicialmente, chamar de percepções dos espaços. Quantas vezes nos pegamos, estando fora dos centros das cidades, respondendo a pergunta de aonde vamos da seguinte forma: “Vou à cidade”.

suas diversidades) nasce ligada aos feitos individuais dos homens – sobretudo dos monarcas – e das cidades, como se elas próprias fossem um indivíduo, protagonista. Basta uma breve observação sobre os textos dos escritores gregos e latinos – e mais recentemente dos modernos – para vermos as cidades como agentes e personagens das histórias: Atenas, Esparta, Tebas para Heródoto e Tucídides, Roma para Cícero, Florença para Maquiavel, para

Paulo, o pastor protestante estadosunidense Daniel Parish Kidder escreveu

Obviamente que a preocupação destes pensadores era muito mais

Auguste de Saint-Hilaire que em seus relatos recorrentemente dizia estar entrando ou saindo da cidade. A cidade, no subconsciente dessas pessoas

chaves de compreensão, de explicação. Mas, certamente, o olhar para as Sem nos determos nessa questão – paralela aqui – a cidade (como

de onde emanam os poderes – temporais ou não. Essas duas dimensões, a da diversidade daquilo que chamamos de cidade e das percepções do que entendemos como cidade, são o tema deste capítulo. A cidade como fato e a cidade como categoria de estudo

reais ao longo da história, nos mais diversos lugares do mundo, culturas e

História, tal como a entendemos: a centralização, a regulamentação, a aglomeração de pessoas, a circulação das informações e potencialização das mesmas, a aceleração das trocas. Funções que o pensador Lewis Mumford entendeu como as fundamentais das cidades e que estão na base da construção do pensamento histórico. Poderíamos acrescentar ainda outras: a consolidação e a continuação dos saberes.


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e estruturas que efetivamente são de cidades. Como podemos imaginar o surgimento das cidades não foi um evento pontual, com dia e hora marcados anos, os primeiros traços que nos distinguem – sempre discutíveis – de outros de “invenção”, de ferramenta, as cidades são relativamente recentes, embora a cada nova temporada de escavações arqueológicas no Oriente próximo as datas recuem e as estimativas de “idade” das cidades aumentem.

de uma cidade, o que envolvia, muitas das vezes, uma cerimônia, um ritual). A passagem do nomadismo pleno para a cidade (a forma mais acabada de sedentarismo) não só foi gradual como incerta, com idas e vindas ao longo Um sítio arqueológico na Síria, Abu Hureyra, às margens do rio 11.500 a.C. o vilarejo encontrava-se em pleno desenvolvimento, com uma

Embora, de fato, nenhum outro registro de cidade mais antiga do

são inacessíveis por motivos diversos – doenças, guerras, instabilidades

natural dos objetos, a sobreposição de sítios arqueológicos por ocupações contemporâneas, impossibilitando o acesso e destruindo os registros materiais. Como somente sabemos do passado aquilo que restou como fragmentos e

e na coleta de vegetais que se encaminhava para as primeiras formas de agricultura. Por mais de mil anos os habitantes do vilarejo se mantiveram ali, continuamente. Entretanto, por volta de 10.800 a.C., teve início o que os arqueólogos, geólogos e climatologistas chamam de Jovem Dryas, um

Jovem Dryas representou uma longa seca, a qual determinou a diminuição

reprodução pelos grupos humanos, decaíram profundamente, obrigando os habitantes do vilarejo a retomarem a vida nômade, abandonada quase que tenham desaparecido de modo tão profundo que, mesmo que fragmentos que grupos humanos retomassem modos de vida menos transitórios, Childe: rotatividade em regiões mapeadas pela memória e pela tradição, mas


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É claro que o assentamento numa região implica no desenvolvimento de construção (garantindo maior durabilidade) quanto de higiene dos espaços (despejo de detritos, arejamento, aquecimento, escoamento de fumaça das tenham heróis civilizadores que, via de regra, trazem e compartilham com os da leitura e compreensão dos ciclos vitais (diversas vezes associados a leitura dos ciclos cósmicos). Em alguns casos esses heróis civilizadores marcam, comovente. As escavações arqueológicas nas camadas superiores do sítio, as entre um e outro, o estabelecimento da relação, oposição, complementaridade entre cultura e natureza. No Oriente próximo um dos mitos fundadores Epopéia de Gilgamesh, rei de Uruk, o qual notabiliza-se, entre tantas outras façanhas, por erguer as majestosas muralhas da cidade, as quais marcam a separação da humanidade do meio natural. Embora o texto

do plantio do milho, da mandioca, do amendoim e aos quais muitas cidades

prima original das cidades, posto que a talha da pedra depende do domínio da tecnologia do ferro, muito posterior no tempo), do pastoreio, foram as cidades viveram em situação contínua de fragilidade. Jericó e Çatalhoyuk

disponível e a principal fonte da cidade completamente empesteada e inutilizada pelo despejo de detritos humanos e animais. A cidade, começada a se formar por volta do ano de 9000 antes de nossa era, contemporânea de Jericó, plenamente formada entre 8000 e 8500 a.C., na qual se dominou a tecnologia do plantio do trigo, onde se criaram rebanhos imensos de carneiros, morreu por volta do ano de 7500 antes de nossa era no que hoje poderíamos chamar de um desastre ecológico irreversível para eles. As cidades antigas: entre o sagrado e o profano do culto. Diga-se, de passagem, que culto modernização do radical latino colo, que em conjugação se transforma em cultus (o ato de ocupar, lavrar a terra, produzir continuamente). Cidade, por civitas da palavra. Não por acaso civilização e cultura são palavras que se entrelaçam e podem – de acordo com o universo cultural e a escola de pensamento onde


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Sagrado e profano, estabelecimento das cidades e organização da vida juntos, regulamentações – inclusive – do culto coletivo. Assim as cidades antigas nascem sob o signo de uma forte imbricação do religioso, do sagrado, A cidade antiga. A cidade passa, na antiguidade, pelo estabelecimento de um território natural. Obviamente que essa ordenação e essa percepção da criação do

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Contudo, diferentemente de uma visão cristalizada o sagrado nessas cidades não bloqueia o profano, ou, melhor dizendo: o sagrado e o profano não se distinguem radicalmente. As atividades no interior das cidades se desenvolvem sem que sejam entendidas como indignas, mesmo as festividades (vale lembrar que as festividades do mundo antigo carregam em si componentes religiosos e ou relegadas às suas margens, apenas atividades cercadas de tabus ou de preceitos dos mortos” em contraposição à “cidade dos vivos”), os matadouros (tanto pelo tabu do assassinato de outro ser vivo quanto pela imundície que gera), os curtumes

do mundo grego eram estabelecidas sempre sob a proteção de uma divindade que estabelecimento de uma devoção/proteção a relação entre divindade e cidade criava uma relação mítica original, um ponto de partida que esclarecesse

os mineiros carregam estigmas de ordem religiosa ou mística). Essas cidades carregam sempre uma interpretação sagrada do espaço, a do poder que emana do alto, assim como os Fóruns romanos representam a

eram guardadas por arcos dedicados ao deus Janus (de onde vem “janeiro”), um deus de duas faces, uma que olha para o futuro e outra para o passado, uma sagrado, o contraponto do mundo natural em sua desordem. recorrente. Guardadas as devidas proporções e as intensas diversidades que

na Índia, no Camboja encontraríamos paralelos.

novas se estabeleciam a partir de um plano axial, a instalação de dois eixos centrais cruzados como em um plano cartesiano. Nos encontros desses eixos se localizavam os Fóruns e principais templos e estruturas da cidade, nos quadrantes

partir de outros modelos culturais passavam por um processo de “romanização”, o qual poderíamos entender como uma reforma urbana. Novamente a ação primordial, novamente, era a tentativa de reordenação da cidade a partir dos dois eixos e do estabelecimento de estruturas padrão do mundo romano. Essa ação


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Lisboa e Coimbra, atualmente em Portugal. A presença islâmica deixou traços inconfundíveis nessas cidades como as medinas (literalmente “cidade” em unidades políticas diversas (cidades de reinos diferentes, mas que possuem se misturavam atividades comerciais e funções de moradia. No restante da Europa cristã apesar do esfacelamento do poder

Crise das cidades?

cidades continuam tendo um papel fundamental, como centros aglutinadores, espaços onde – inclusive – são guardados os legados da antiguidade (nas bibliotecas de mosteiros e conventos). Mas, certamente, com o aumento da insegurança – dessa vez não mais o mundo natural, mas o inimigo, o

As portas das cidades – novamente amuralhadas – são guardadas por cruzes

uma miríade de formas, algumas das quais não somente sobreviveram como vicejaram na medievalidade. reconstruir a cidade ideal, microcosmo divino e sagrado, isolado das mazelas do mundo, e os monges cotidianamente em sua luta com o mal e as trevas.

cidades, as vilas, mesmo os livros são inspirados num modelo sagrado. Como escreveu o historiador Jacques Le Goff a cidade medieval se parece muito mais com a cidade antiga, do que com a cidade moderna. E, assim como nas cidades antigas, o sagrado e o profano andam lado a lado e se entrecruzam: nas festas profanas, nas feiras e mesmo nas construções religiosas.


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Em cada dia um deles deve contar dez histórias para entreter os companheiros, explícita e a tentativa de expulsar qualquer manifestação claramente profana ou pagã das cidades (ainda que o cristianismo tenha se alimentado fartamente como protagonistas. As cidades encasteladas, amuralhadas, vão sendo cercadas de bairros novos, compostos de comerciantes, o burgo consolida-se como a forma urbana certamente, foi um período que operou dentro de certos modelos mentais, e Nesse período se fortalece a contraposição entre campo e cidade e cada vez mais na medida em que as cidades retomam seu ímpeto de

trabalhadores livres – desimpedidos dos tratos de servidão vigentes nos campos e no trabalho rural -, serem agora nomeados de burgueses. As muralhas, que vão sendo erguidas ao redor de cada novo bairro, vão se sucedendo como cascas de uma cebola, ou, em uma visão religiosa, como nos círculos que

se fundamentam na servidão e nas obrigações de classe (os trabalhadores,

O tempo das cidades: a modernidade palavras de Le Goff, “a festa da troca”: trocas culturais, de mercadorias, de informações. Os campos são – nessa ótica, claro – os espaços do incerto, das

A passagem para a modernidade, dentro do amplo movimento que

atitude de um São Francisco de Assis em renegar as cidades e buscar na

a essa lista cidades dos Países Baixos como Amsterdã, de Portugal como Lisboa, do norte da Europa, como Hamburgo, francesas como Marselha.

afugentam as populações das cidades (os principais vetores, ratos e pulgas,

Não cabe estabelecer relações de ordem ou de hierarquia entre as transformações de ordem social (declínio da servidão e das relações feudais), religiosa (as Reforma Protestante e Católica), o renascimento

a partir desse tema gerador: durante uma epidemia de peste dez jovens


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as cidades eram os do catolicismo, as novas cidades serão erguidas ao sabor do

e a ótica aplicadas de modo experimental), as transformações políticas (a

das rotas navais estabelecidas com lugares cada vez mais distantes do globo:

moderno, sem contar o desabrochar de teóricos da política e da economia e importante, contudo sua relação com a sociedade e com o Estado moderno (poderoso como nunca) se altera e com ela a manifestação das relações nos como jamais havia sido visto. Guardadas as restrições que se possa fazer ao

– embora o Barroco, surgido algum tempo depois, novamente ressalte os

Renascimento, o nascer de novo de uma sociedade tal como só havia existido – na Europa – no tempo dos antigos gregos e romanos. Como os espaços são a materialização de desejos, vontades, ideais,

Algumas inovações começam a ser sentidas nas cidades. Os bairros novos começam a ter regulamentações mais rígidas e alguma regularidade mais

protagonistas privilegiadas desse tempo histórico e que suas descrições, feitas das trocas. Por isso as estruturas que mais se transformarão nesse período são aquelas associadas a essas funções, como portos, mercados, casas mercantis, apregoando seus produtos, religiosos pregando, carroças trazendo mercadorias a serem embarcadas ou as levando para galpões, marinheiros, emprestadores de dinheiro, guardas e soldados, cobradores de impostos, barbeiros e físicos (tal uma Babel de línguas e roupas. Num ou noutro estúdio pintores, durante o dia retratando ricos comerciantes, à noite desenhando corpos humanos momentaneamente “extraviados” de suas sepulturas.

o Oriente demore um tempo a se consolidar) inaugura uma revolução mental em mas para os letrados, autoridades, religiosos, uma gama gigantesca de questões se nova humanidade havia sido encontrada e havia que se colocar isso dentro de um


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população era estimada em 250 mil pessoas, maior do que Londres e Madri). Essas cidades, fundamentadas nos princípios religiosos locais, tal como haviam sido as cidades antigas ou as Luxor no Egito, eram ordenadas, ladrilhadas,

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ser algo a ser domado, um manancial de recursos a serem empregados ao sabor e necessidade dos homens, que deve ser disciplinada pela força do Pode nos parecer arrogante, hoje, diante de transformações

(hoje Bolívia) e Cuzco (hoje Perú). Apesar da destruição empreendida pelos As cidades projetadas a partir de então passarão a contemplar eram alvos de racionalizações e modelagens. Duas características, podemos adotam o sistema axial, dos dois eixos, atribuído ao passado romano, mas não

plena, de controle de todas as condicionantes, e o emprego da racionalidade,

para que as pessoas adoeçam menos. O fornecimento de serviços deve ser economia que se instala nas colônias. segurança, iluminação pública). Os espaços devem ser desenhados, projetas seja controlado ferrenhamente pelos exclusivos determinados pelo cânone do

As luzes: o saber se faz cidade No período das Luzes as cidades recebem o derradeiro elemento que Certamente as cidades continuam sendo elementos mutantes que se transformam continuamente e são inapreensíveis em sua totalidade, como nos lembram Guy Chaussinand-Nogaret e Hugues Neveux em sua História da França Urbana do sagrado ou como espaço do poder do Estado. A natureza, antes temida,

populações podem fazer (manifestações, festas, reuniões, determinados trabalhos). Transportes, comunicações, arborizações e jardinagens, nada deve escapar a ordenação urbana. Os jardins de Versalhes não são a manifestação paisagística do enquadramento da natureza, de seu serviço aos nossos desejos?

regatos, passa a ser um artigo de consumo, contabilizada. A iluminação, cobra-se. Segurança. Limpeza. Paisagismo. Tudo torna-se mercadoria na cidade que nasce das Luzes.


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que emerge após as Revoluções Burguesas como manifestação de uma entidade intangível, “o povo” - e que se ampara sempre na argumentação

Na mesma Espanha contemporânea cidades que guardam fortemente traços do período medieval – como Toledo – convivem com a Barcelona moderna e tecnológica; em Portugal, dentro da mesma Lisboa, os bairros da Alfama e

As reformas urbanas empreendidas a partir de então – Paris após a Comuna, Rio de Janeiro, o plano das Grandes Avenidas em São Paulo,

Terremoto de 1750 a partir dos ideais iluministas; outras cidades, como algumas brasileiras surgidas em período colonial, buscam se reorganizar e recriar visualmente um passado idealizado, construindo um simulacro da

falhas, nada de imprevistos, o Estado regulando, o bem viver determinado pela autoridade escolhida pelos povos.

ajuda a compreender as formas de sedentarização dos homens, mas jamais esgotariam suas diversidades culturais, temporais e espaciais.

o controle por todos os lados. Certa feita, em visita ao Brasil, o escrito senderos”, os caminhos de terra batida nos imensos gramados da cidade, no seu ver a única manifestação humana ali. Guardadas as devidas proporções, os avanços tecnológicos, as ideais, pensamentos, e permanecem uma colagem de tempos, de estilos, Milton Santos

Resta dizer que todos estes modelos de cidades, todos esses movimentos e processos, sobrevivem integralmente, em fragmentos ou que as afetam e envolvem de formas diversas e com intensidades distintas.

COULANGES, Fustel de, A cidade antiga, Estudos sobre o Culto, o Direito, as Instituições da Grécia e de Roma, São Paulo: Hemus, 2000. DUBY, Georges (org.), Histoire de la France urbaine, Paris: du Seuil, 1981. LE GOFF, Jacques, Por amor às cidades, São Paulo: Unesp, 1998. LEPETIT, Bernard, Por uma nova história urbana, São Paulo: Edusp, 2002. LYNCH, Kevin, A imagem da cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1997. MITHEN, Steven, Depois do Gelo: uma história humana global, 20.000 – 5.000 a.C., Rio de Janeiro: Imago, 2005. _____________, A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, São Paulo: Editora da Unesp, 1998. MUMFORD, Lewis, A cidade na história: suas origens, transformações e perspectiva, São Paulo: Martins Editora, 2001. ROCHE, Daniel, História das coisas banais: nascimento do consumo séc. XVII-XIX, Rio de Janeiro: Rocco, 2000.


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CAPÍTULO 3

EXPERIÊNCIA URBANA NO MUNDO PORTUGUÊS

espalharam pelo mundo dentro de um movimento impressionante históricas. A partir de um pequeno território, encaixado entre os reinos espanhóis e o oceano, com uma população de dimensão limitada e sempre ameaçada em sua expansão devido à enorme presença de ordens religiosas, Portugal estendeu seus braços para as mais diversas regiões da Terra. Antes


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ao poente ocupou a costa sul-americana, no que desdobrou-se no imenso território brasileiro. Novamente a oriente o reino se lançou a Macau e Timor.

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vencido por eventuais invasores. As casas, em sua maioria, eram construídas de pedras, sem qualquer regulamentação das formas e sem grandes adequações dos blocos assentados. Do lado de dentro o fogo constantemente aceso e pouca iluminação e ventilação.

XX e as colônias africanas se tornaram independentes em meados do mesmo

uma “herança” ou “tradição” portuguesa nessas regiões? Vale lembrar, de início, que a própria tradição urbanística portuguesa se formou a partir do encontro de diversas culturas, se mesclando ao longo

regularizada. O modelo de cidade romana se fundamentava no cruzamento de dois eixos centrais – o modelo axial – que determinavam o restante da ordenação do espaço. Nas quatro direções, como em um plano cartesiano,

romana trazia uma primeira tentativa de uniformização das instituições e das autoridades. O oppidum era o centro da ocupação, o coração do assentamento, e autonomia dos assentamentos, das ocupações humanas. Diversos grupos ocupavam a região que hoje pertence a Portugal e muitos deles sequer sabemos por qual nome eram conhecidos. Entretanto, de modo geral, esses grupos humanos privilegiaram um modo de ocupação que buscou o como o Tejo (chamado de Tagus pelos romanos), o Mondego, o Douro, o Nabão. Do alto desses morros os assentamentos podiam vigiar os territórios

de dentro raramente alguma ordenação urbana era imposta, prevalecendo a

diversos – podendo servir às atividades agrícolas ou às “vilas”. É claro que, diferentemente das colônias romanas criadas nas diversas regiões ocupadas – onde se podia estabelecer a lógica axial de presença romana teve limitações. Em diversos pontos os romanos tentaram estabelecer os eixos centrais, impondo uma reformulação das cidades, mas, na impossibilidade de uma reconstrução total, as transformações foram sempre parciais. Muitas vezes os eixos não podiam ser absolutamente retos, em ângulos de 90 graus, noutras ocasiões os ângulos tinham que conviver com arruamentos irregulares à sua volta e assim por diante.


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Por outro lado, a uniformização das instituições, das nomenclaturas, das autoridades, deixou uma marca profunda na cultura local e se tornou

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indicativo da extensão e profundidade de seu legado cultural (ainda que ele

se estabeleceu na península, levando às cidades a abandonarem alguns dos para a ampliação das muralhas. Novamente, depois da relativa paz imposta pela contexto e que deriva do “castrum” (castrum, castilla, castelo). Esse quadro das

início a um terceiro movimento da história da composição da tradição urbanística portuguesa.

cidade sagrada de Meca. Mas, apesar dessas transformações, no que diz respeito às cidades e aos seus traçados e localizações os elementos mais perceptíveis foram traçado labiríntico e pela mescla de moradias com atividades mercantis Almedinas (ou Medinas), passaram a ser o centro da vida da localidade e não a praça central ou os largos das igrejas. Apesar da forte presença da religião na vida dos islâmicos e do papel das mesquitas – tanto como centro de culto quanto como local

conhecido como Magreb) durante a primeira expansão islâmica. Em verdade dos oriundos de Damasco (hoje Síria) era mais sensível entre os chefes militares e líderes clânicos do que entre a população geral.

local da festa da troca, sentido que anima as cidades. Mas, de modo diverso do e tradições cristãs ancestrais com a mourisca), nas cidades do restante da

A presença islâmica Ainda que no Condado Portucalense a reconquista tenha sido

as tradições dos invasores. Em termos de duração da presença islâmica na

Com isso as cidades portuguesas herdaram complexos ao redor das muralhas dos antigos castelos – ou mesmo continuaram a erigir – bairros labirínticos animados pelas trocas, pela moradia, pelo trânsito intenso. Em Lisboa, ainda hoje, os bairros da Mouraria e da Alfama explicitam essa modo e assim em outras tantas cidades.


44 EXPERIÊNCIA URBANA NO MUNDO PORTUGUÊS

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portas abertas para se passar de um circulo à outro, cada vez mais central. de ocupação). No Brasil serão quase todas: São Sebastião do Rio de Janeiro, seguem modelos de expansão anelar, crescendo como as camadas de uma cebola. (modelo de modo amplo e não como “gabarito”) não excluíram outras

As novas cidades após a reconquista Se imaginarmos as cidades não só como uma concentração de Raízes do Brasil, em função da mudança das atividades humanas e do uso dos espaços. inaugurou um momento na história portuguesa no qual sua cultura se moldou

foram tão decisivos quanto os mares e oceanos. Basta lembrarmos que no

Amazônia se deu pelo curso dos grandes rios (Amazonas, Negro, Tapajós, brasileiro (São Francisco, Capiberibe).

encarnados respectivamente pelos espanhóis e portugueses: o primeiro deles “o ladrilhador”, recorrente no mundo hispânico, marcado pela imposição do desejo humano as diversidades e adversidades naturais, com a defesa das cidades axiais, desenvolvidas em uma plano cartesiano tal como entre os romanos. O segundo, “o semeador”, teria sido recorrente entre os portugueses, dado às adaptações e ao crescimento sem ordem aparente, como quem lança um punhado de sementes ao ar.

medida, equivocada. Nem os espanhóis se aferraram decisivamente às cidades planejadas, nem os portugueses deixaram as suas crescerem como mato, entre os dois extremos uma vasta gama de possibilidades existiu, havendo cidades planejadas entre os portugueses e outras, sem qualquer planejamento, entre os espanhóis. Mas a questão central nem mesmo chega a ser essa. O milhares de desejos, imposições, recusas, limitações e que, profundamente, são instrumentos para estar e moldar o mundo, portanto trazendo em si a questão

aceleração dos processos, de um aumento de escalas.


46 EXPERIÊNCIA URBANA NO MUNDO PORTUGUÊS

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estudiosos da colonização – não podemos dizer que a cultura portuguesa

pelo apoio assistencial aos colonos). Embora a Igreja Católica fosse independente as relações dela com os

foram uma ótima opção, o que levou o modelo a se expandir por onde quer

muitos outros, se imbricavam, entrelaçavam, desde o processo de nomeação

opção não se mostrava a mais adequada, facilmente lançavam mão de outras possibilidades, como no caso de São Paulo de Piratininga a qual retomou os princípios das cidades ancestrais de Portugal (como em Coimbra, Porto, Sintra, Tomar e mesmo Lisboa).

Mesmo pertencendo à mesma instituição as ordens religiosas,

As instituições municipais portuguesas Charles Boxer, em O Império Marítimo Português, escreveu que a expansão da colonização portuguesa se fez sobre a difusão de duas instituições: as Santas Casas de Misericórdia e as Câmaras Municipais. Para ele, essas foram as únicas duas instituições portuguesas presentes em praticamente todas as

viam em alguma medida como concorrentes (às vezes mais do que isso), o urbanas (distanciadas minimamente umas das outras). Da mesma forma, após a Reconquista e, ainda mais, após a expulsão ou conversão obrigatória Reino de Portugal e os espaços cristãos passam a ser privilegiados nas cidades. religiosos, ela interpenetra a Universidade (em Coimbra), a administração

padronização de ocupações tão distantes e tão distintas quanto São Sebastião do Rio de Janeiro, Maputo (Moçambique) e Goa.

A ilustração e as cidades uniformidade a duas instituições. Como vimos, se no plano espacial, físico,

cidades (município, vila, etc.), muito disso se deve aos romanos. devem ser sustentadas pela produção do conhecimento em contraposição à


48 EXPERIÊNCIA URBANA NO MUNDO PORTUGUÊS

posta na mesa dos administradores o que desdobra-se numa ampla gama de A destruição da cidade de Lisboa, em 1755, pelo terremoto (o qual inspirou Voltaire na composição de Cândido

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Nas colônias passam a surgir “Memórias”, textos que buscam

cidades – como em São Paulo, no Rio de Janeiro.

divina (que teria ceifado uma cidade tão religiosa), a respeito de como o Bem e o Mal podem se manifestar no mundo e atingir indistintamente aos bons e aos maus, a respeito do Destino, dos desígnios da Sorte, etc. De outro lado a destruição da cidade ofereceu a oportunidade singular de reformulação de seu culturas, povos, usos, mas pela Razão, pelo traçado pensado, com princípios de ordem, beleza, salubridade, segurança, organização. Lisboa passa a ser um gigantesco laboratório do Iluminismo aplicado ao Urbanismo.

conviver com as cidades “novas”, criando o que o geógrafo Milton Santos chamou de “cicatrizes”, marcas físicas no tecido urbano oriundas de tempos passados, de antigos eventos ou fenômenos. que ainda hoje regem as cidades: o princípio da razão, do desejo do estado em

das atividades). Não que as regras sejam uma novidade, elas existem desde o início nos demais pilares que fundamentam ela (a experimentação, a formulação, a

ALARCÃO, Jorge de, O Domínio Romano em Portugal ALENCASTRO, Luis Felipe de, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BOXER, Charles, O Império marítimo português, 1415-1825, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Cidades medievais portuguesas: uma introdução ao seu estudo, Lisboa: Livros Horizonte, 1989. CASTELO-BRANCO, Fernando, Lisboa seiscentista, Lisboa: Livros Horizonte, 1990. LE GOFF, Jacques, Por amor às cidades, São Paulo: Unesp, 1996. Caminhos e fronteiras, São Paulo: Companhia das Letras, 1995. __________________________, Raízes do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 1º. Ed. 1936.


50 EXPERIÊNCIA URBANA NO MUNDO PORTUGUÊS

Através da rótula: sociedade e arquitetura no Brasil, séculos XVII a XX, São Paulo: Humanitas, 2001. ________________________, A cidade colonial na América Portuguesa: morfologia urbana, atores sociais, presença do Estado (Salvador, séculos XVI a XVIII), Franca: Unesp/ Olho d’Água, 2005. MAXWELL, Keneth, Marquês de Pombal: o paradoxo do iluminismo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. MENESES, Ulpiano T. B. de, “Morfologia das cidades brasileiras: introdução ao Revista USP: Dossiê Brasil dos Viajantes, São Paulo, N. 30, junho/agosto 1996, pp. 144-155. NOVAIS, Fernando Antonio (coord.) e MELLO E SOUZA, Laura de (org.), História da Vida Privada no Brasil, volume 1, São paulo: Companhia das Letras, 2001. SANTOS, Milton, Ensaios sobre a urbanização latino-americana, São Paulo: Hucitec, 1982.

História essencial de Portugal. Portugal, 2002. Línguas – vidas em português. Brasil/Portugal, 2001. Direção: Ulysses Nadruz e Victor Lopes. Portugal, um retrato social. Portugal, 2006. Direção: Joana Pontes e Antonio Barreto. Na internet http://www.ipmuseus.pt http://www.museudacidade.pt http://www.iphan.gov.br http://www.unhabitat.org


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CAPÍTULO 4

MORFOLOGIA DAS CIDADES E VILAS BRASILEIRAS

mbricada na expansão do capitalismo mercantil europeu dos

Seu propósito mercantil, estruturado na extração e produção de bens


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54 MORFOLOGIA DAS CIDADES E VILAS BRASILEIRAS

colonizadoras modernas: se em princípio a colônia pode ser concebida como

Urbanismo nas vilas e cidades coloniais brasileiras

inevitavelmente trouxeram em seu bojo as raízes para formação de uma

Ruas estreitas e tortas, ladeiras, becos e vielas. É difícil imaginarmos uma cidade brasileira cujos traços do período colonial ainda persistem nos

Se no aspecto administrativo as instituições coloniais foram elaboradas em Lisboa, no âmbito econômico o interesse do colonizador não foi menos importante na determinação do ritmo e das balizas para a exploração do Novo

conclusão aparentemente óbvia: o processo de urbanização implementado

variada, oscilando entre o rigor e o desinteresse quase total de acordo com a região em pauta, criando com isso formas de relacionamento distintas entre a

urbanístico e, portanto, as cidades erguidas durante o período colonial foram Longe do que comumente se pensa, os portugueses tinham em mente

com um uma difícil realidade: a presença de colonos numa colônia não garantiria, urbanística – a geometrização rigorosa do espaço –, e por conta disso temos O urbanismo de matriz lusa aplicado no Brasil teve como base,

Esse emaranhado de questões exigiu a criação de mecanismos que assegurassem o controle da exploração colonial pela Coroa. Esta, ao estabelecer uma política cujas bases estiveram direcionadas para a acumulação de capital

íntima relação entre a estrutura territorial e a urbana. A maioria das cidades

coloniais e, simultaneamente, impulsionar uma exploração mais criteriosa da

terreno – a presença de morros, colinas, descampados, rios, córregos, etc.

Os núcleos urbanos tiveram um papel central na sedimentação da coloniais brasileiras foi menos um fenômeno espontâneo e “aventureiro” política racional de dominação territorial e mercantil conduzida pela Coroa

linhas naturais do território e que se convertiam, na maior parte das vezes, nas principais ruas do povoado, estruturando assim o território urbano. Daí a ideia errônea de uma conformação urbana aleatória e desprovida de em Minas Gerais, e Olinda, em Pernambuco.


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56 MORFOLOGIA DAS CIDADES E VILAS BRASILEIRAS

“Como as cidades medievais, acomodando-se em terrenos acidentados e à imagem das portuguesas, as povoações brasileiras mais antigas são marcadas pela irregularidade. (...) É constante a presença de ruas tortas, das esquinas de ângulos diferente, da variação de largura nos logradouros esses traçados irregulares. (...) os corações históricos das maiores e mais transformadas aglomerações atuais são exemplos desta característica, nossa velha conhecida”. Murillo Marx, Cidade Brasileira, 1980, p.24-25.

consolidado apenas a partir de meados do XVIII, durante o período pombalino, Em linhas gerais, esse novo modelo estava ancorado no desenvolvimento do urbanismo traçados urbanos, e teve como marco em Portugal a reconstrução dos planos da Baixa e do Rossio, em Lisboa, após o terremoto de 1755. Contribuíram lusos – marcados pelo contato com os teóricos renascentista italianos – como Nesta nova concepção de estrutura urbana, os edifícios e as ruas que

símbolo o rei e Lisboa como o pólo organizador das amarras envolvendo

manufaturas em Portugal e reforçar o monopólio comercial com as colônias. não passariam ao largo dessas inovações.

Vilas litorâneas e interioranas: primórdios e desdobramentos da colonização portuguesa As regiões litorâneas constituíram os principais pontos de partida para a colonização portuguesa em terras americanas. Sem tirarmos de foco a

fundou as primeiras vilas e cidades. Paragem obrigatória das embarcações que percorriam o eixo escravos e toda sorte de mercadorias, o litoral desempenhou, em primeiro lugar, um papel funcional na exploração colonizadora. Concomitantemente, parte da costa – notadamente a nordestina – cumpriu função estrutural na

citadino, ao passo que a praça – quadrada ou retangular – torna-se um recurso regular, a praça ganha relevo e converte-se num elemento fundamental de qualquer novo traçado urbano.

nas terras luso-americanas. Em virtude disso as cidades ali situadas se

outras estruturas de defesa territorial.


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58 MORFOLOGIA DAS CIDADES E VILAS BRASILEIRAS

À medida que a colonização se expandiu para o interior do imenso território luso-americano, litoral e sertão deixaram de ser realidades inteiramente distintas e desconexas entre si. Assentadas cada vez mais em

Ao longo da faixa de terra que acompanhava a curvatura da baía abria-se, vai de regra, a rua principal da cidade, e nela eram erguidas as primeiras casas. Nos aglomerados próximos aos rios, a primeira rua

e litorâneas compuseram quadros históricos complexos, que se delinearam

de observar nas plantas das cidades do vale do Paraíba paulista, como Jacareí e Lorena. Em ambos os casos seus pontos extremos geralmente recebiam capelas, que atuavam como elementos de amarração territorial. Cada uma delas proporcionava um espaço aberto – um adro ou um largo, que no futuro virariam praças. Os espaços associados a estas capelas podiam trazer características distintas – uma mais comercial e outra mais associada à moradia – em cada lado deste eixo fundamental. Com o alargamento da estrutura urbana inicial, começa-se a ocupação dos pontos privilegiados do território – como topos de colinas –, quase sempre destinados a edifícios religiosos, administrativos ou militares.

Caio Prado Jr. chamou de “cidades conjugadas”, como Santos e São Paulo. Enquanto à cidade litorânea cabia desempenhar a função de porto, a São Paulo estava atribuído o papel de núcleo distribuidor e cabeça de ponte para a colonização das demais regiões do planalto paulista. Por vezes distante das igrejas, conventos, câmaras municipais e de

que por seu turno criaram núcleos populacionais rarefeitos, pouco coesos feita por ruas perpendiculares ou diagonais à via principal, dependendo da inclinação do terreno.

O núcleo inicial das cidades coloniais litorâneas ou interioranas localizava-se, geralmente, em terrenos de encosta, ou pelo menos num local mais elevado que oferecesse condições de defesa e que propiciasse o desenvolvimento de uma aglomeração urbana em seu entorno. No caso das litorâneas, era fundamental a ocupação de um caminho ao longo do mar, perto da costa, articulando dois pólos localizados em posições extremas da baía,

“Uma vez ocupada completamente a primeira via estruturante do aglomerado urbano – a rua Direita – assiste-se ao desenvolvimento de outras ruas paralelas a esta primeira via longitudinal, e de outras vias travessas, perpendiculares a elas. No caso das cidades costeiras, dada a proximidade do mar, estas sucessivas longitudinais desenvolvem-se para o interior. No caso das cidades ribeirinhas assiste-se geralmente à construção de pelo menos mais uma via longitudinal a uma cota mais baixa, mais próxima do fundo do vale, e as restantes longitudinais a uma cota superior

na pendente para o rio, a meia encosta, Manuel C. Teixeira, Os Modelos Urbanos Portugueses da Cidade Brasileira, 2000.

A escolha do terreno esteve muitas vezes condicionada pelo limite do nível urbano.


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60 MORFOLOGIA DAS CIDADES E VILAS BRASILEIRAS

Deste quadro resulta que ao longo do tempo algumas cidades coloniais portuguesas, tal como Salvador, se desdobrassem em dois eixos interligados: a cidade alta, onde se situava o poder político, militar e religioso, bem como as habitações mais nobres; e a cidade baixa, destinada aos afazeres cotidianos de poder estavam, portando, descritas na própria estrutura física do território.

se abria, majoritariamente, no cruzamento de ruas e bifurcações. Esse sistema dos mais antigos das Gerais. Cidades urbanisticamente mais complexas nasceram nas Gerais, como Vila Rica, Diamantina e Mariana, o que nos leva para um ponto fundamental sobre os primórdios da urbanização no Brasil: embora seja possível apontar

construção do

que ambos dialogaram ao longo do tempo, gerando um tipo de síntese. Assim como ocorreu em Portugal, pode-se dizer que um dos traços mais marcantes

teve como principio ordenador a abertura de uma praça de geometria regular

mais erudita –, em que se articulou modelos racionais e a estrutura física das

urbana existente. Em pouco tempo tornou-se um dos principais pontos da

praças de S. João e S. Sebastião dois pólos irradiadores da estrutura urbana,

receberam uma reformulação urbana durante o período pombalino. contrapartida, as cidades das Minas Gerais, as quais apontam para a De modo geral, os arraiais mineradores surgiram a partir de acampamentos extração aurífera por aluvião. Os núcleos iniciais eram formados por casas simples, irregularmente dispostas às margens de alguns poucos caminhos. O destaque quase sempre recaía sobre a igreja matriz, situada em um largo que

BOXER, Charles R. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MARX, Murilo. Cidade Brasileira. São Paulo: Edições Melhoramentos/ Edusp, 1980. REIS, Nestor Goulart. Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil (1500/1720). São Paulo: Editora Pioneira, 1968. __________________. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: Edusp, 2001. RAMINELLI, Ronald. Simbolismos do Espaço Urbano Colonial. In: Vainfas, Ronaldo (org). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2008.


62 MORFOLOGIA DAS CIDADES E VILAS BRASILEIRAS

História da vida privada no Brasil Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.41-81. TEIXEIRA, Manuel C. Os Modelos Urbanos Portugueses da Cidade Brasileira. Comunicação apresentada no Colóquio A Construção do Brasil Urbano, Convento da

O povo brasileiro. Brasil, 2000. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Raízes do Brasil. Brasil, 2003. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Na internet WWW.cidadeshistóricas.art.br WWW.vitruvius.com.br


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CAPÍTULO 5

O NASCIMENTO DA IDEIA DE “PATRIMÔNIO”

upõe-se que a autoria do manuscrito “De septem orbis miraculis” – por nós conhecido como As sete maravilhas do mundo –, escrito do ano de 225 a.C, seja de Filo de Bizâncio, engenheiro e escritor do ano de 225 a.C, seja de Filo de Bizâncio, engenheiro e escritor grego que relacionou aquelas que seriam as principais obras construídas pelo homem de Zeus em Olímpia, o Templo de Artemisa em Éfeso, o Farol de Alexandria, evidentes entre elas, as maravilhas tinham um denominador comum: o fato de todas serem obras humanas – de arte, arquitetura ou engenharia – excepcionais, grandiosas e dotadas de manifesta materialidade.


66 O NASCIMENTO DA IDEIA DE “PATRIMÔNIO”

O reconhecimento da engenhosidade humana no mundo antigo não implicava, todavia, na ideia que hoje partilhamos de patrimônio. Durante grosso modo, o conjunto de bens que um cidadão romano possuía e que eram passíveis de serem comercializados (como móveis, escravos, dinheiro, objetos pessoais, alimentos e animais), excluindo-se qualquer elemento de qualquer outra produção intelectual despida de uma materialidade inerente a ela. Curiosamente, o Direito romano encarava como res extra patrimonium – “as coisas fora do patrimônio” – aquilo que dizia respeito ao bem público,

É durante a Roma clássica que se forja a concepção de “monumento”, cuja etimologia da palavra latina monumentum refere-se a qualquer coisa que evoque o passado, eternize um pensamento, uma ação ou uma representação que anteceda o presente. O monumento poderia ser uma obra, geralmente de arquitetura ou escultura, que tivesse como essência o sentido de perpetuação do passado, seja ela consciente ou inconsciente.

desdobramentos da Revolução Francesa. Esta, articulada ao adensamento da Revolução Industrial, desencadeou num novo projeto de organização

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imaginada”, para utilizar a expressão do cientista político Benedict Anderson. Ou seja, para que o Estado moderno exista não basta que este seja uma unidade política autônoma, mas que engendre uma ação integradora sobre seu próprio território e população, bem como um arcabouço cultural e simbólico

forjar um substrato ideológico que os legitimasse e que estivesse em estreita sintonia com a memória a ser propaga sobre a nação. Tal movimento passava pela criação de um patrimônio nacional tão somente o conjunto de bens do Estado. Ele seria, antes, a interface simbólica e material da nação com seus cidadãos.

“A constituição de patrimônios históricos e artísticos nacionais é uma prática característica dos Estados modernos, que, através de determinados agentes, recrutados entre os intelectuais, e com base em instrumentos jurídicos lhes é atribuído, enquanto manifestações culturais e enquanto símbolos da nação, esses bens passam a ser merecedores de proteção, visando sua transmissão para as gerações futuras. Nesse sentido, as políticas de preservação se propõem a atuar, basicamente, no nível simbólico, tendo com objetivo reforçar uma identidade coletiva, a educação e a formação de cidadãos”. Maria Cecília Londres Fonseca, O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, 2005, p.21.

soberania, balizada cada vez mais no princípio de representação política e da cidadania ativa, foi apropriada de forma matizada pelos governos europeus, transformados em estados constitucionais.


68 O NASCIMENTO DA IDEIA DE “PATRIMÔNIO”

Em conformidade com a associação entre patrimônio e nação, as Convenções de Haia de 1899 e 1907 marcaram o inicio da implementação,

nacionais em tempos de guerra. debates sobre o patrimônio, especialmente com a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, órgão dirigido pelos países capitalistas ricos para estimular a cooperação econômica, política e social entre o Ocidente. Como braço da ONU foi criada a UNESCO – Organização das era contribuir para a paz internacional e bem estar da humanidade a partir de um modelo de cooperação entre as nações nos campos da educação,

culturais das nações participantes. Novos documentos internacionais foram produzidos – como a Convenção de Haia (1954) e a Carta de Veneza (1964)

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Atualmente a UNESCO compreende o patrimônio da humanidade a partir das seguintes categorias: patrimônio cultural mundial, patrimônio cultural subaquático, patrimônio natural mundial e patrimônio cultural intangível ou imaterial. Patrimônio cultural mundial: composto por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham um excepcional etnológico ou antropológico. Patrimônio cultural subaquático pelo menos 100 anos. Patrimônio natural mundial

Patrimônio cultural intangível ou imaterial: entende-se por patrimônio cultural junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Fonte: www.unesco.org

do conceito de patrimônio. As ideologias nacionalistas, abaladas com o desfecho central da Declaração Universal dos Direitos do Homem, levada ao público pela ONU em 1948. Aos poucos, à noção de patrimônio nacional se sobrepôs a de patrimônio cultural, mais ampla e pluralista. Esse era o conjunto de bens culturais

O patrimônio no Brasil: do SPHAN ao IPHAN

arqueológicos e paisagísticos, acervos de museus, coleções de documentos,

brasileiros, inspirados nas iniciativas tomadas na Europa, sobretudo na França

conjunto de artefatos, objetos e complexos culturais a eles integrados).

de cultura projetos que visassem à proteção de obras de arte e outras

A elaboração de uma política de preservação do patrimônio histórico


70 O NASCIMENTO DA IDEIA DE “PATRIMÔNIO”

manifestações culturais nacionais. Marco fundamental desse movimento foi a elevação da cidade de Ouro Preto ao estatuto de monumento nacional, em 1933, por Decreto Federal, medida que impulsionou o desenvolvimento dos serviços de proteção ao patrimônio. Em 1937, com a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – o SPHAN –, o país institucionalizou a proteção ao patrimônio. A fundação do órgão, cabe notar, foi feita no início do Estado Novo (19371945), período em que o governo brasileiro, sob a tutela de Getúlio Vargas, esteve fortemente marcado pelos ideais de nacionalismo, integração territorial e modernização do país. O Estado convidou nomes de proa da intelectualidade

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O cerne da discussão patrimonial do SPHAN estava na valorização elementos excepcionais arquitetônico das cidades mineiras, carro-chefe da política patrimonial do SPHAN em seus primeiros anos de funcionamento, respondia esse duplo do futuro país – o “ciclo do ouro” –, e de outro ressaltava a singularidade de realizações artísticas como barroco mineiro. Foi justamente nesse contexto

Educação e Saúde Pública foi nomeado Gustavo Capanema, que por sua cultura da prefeitura de são Paulo, para elaborar um projeto de lei associado à proteção das artes, que culminou na fundação do SPHAN. Um dos eixos norteadores do Estado Nacional para a cultura era lançar mão de iniciativas que valorizassem manifestações “genuinamente

níveis federal, estadual ou municipal, e tem como objetivo preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo a destruição e/ou descaracterização de tais bens. No Brasil, o tombamento foi instituído em 1937. Fonte: www.iphan.gov.br

modernista dos anos vinte que valorizara o primitivo, o regional e o popular

República. Num contexto em que a noção de patrimônio estava quase que verdadeira arquitetura nacional seria, portanto, aquela que se remetesse ao ecletismo

dos elementos construtivos do país.

a noção de patrimônio foi ampliada e institucionalizada com a criação do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, em sobre o patrimônio deixou de ser encarada como um mero exercício intelectual, exclusivo da preservação da memória nacional, para ser articulada com as novas formulações do que seria a cultura brasileira (agentes, temas, embates, etc.), com a internacionalização da economia e com o turismo cultural.


72 O NASCIMENTO DA IDEIA DE “PATRIMÔNIO”

Áreas inteiras, sobretudo os centros urbanos, passaram a ser reivindicadas como patrimônio, intenção presente no Compromisso de Brasília (1970) e Compromisso de Salvador (1971), documentos que apontavam para a necessidade de associar o patrimônio ao desenvolvimento econômico. A

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portanto, à ideia das cidades como espaços detentores de uma memória coletiva a ser salvaguardada. Os tempos mudaram, todavia. O patrimônio das (e nas) cidades deixou de seguir a política da “pedra e cal” – termo designado

vez mais clara a importância da criação de órgãos estaduais e municipais de preservação do patrimônio regional e local e local. A fundação do Conselho de Defesa do Patrimônio do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), em

urbano em conjunto e em sua múltiplas manifestações, abarcando ruas,

Tais inovações, apesar de importantes, não alteraram um ponto crucial da noção corrente sobre o patrimônio, qual seja, o seu vínculo com o material

valores, que por seu turno são conferidos por grupos sociais distintos e ao longo do tempo. Trazendo esse raciocínio para abrigado necessita ser reavaliado e articulado com aqueles que habitam os

poder público se voltou mais detidamente sobre a concepção de bem cultural. Incorporado ao IPHAN, o CNR lançou luz sobre o problema de ampliar a como tal. Nos anos oitenta, em meio à pressão política para a redemocratização do país, o tema da cultura popular (manifestações artísticas, religiosas, saberes tradicionais, etc.) ganhou força nos debates sobre patrimônio, simbolizando, em certa medida, a conquista da cidadania pelo povo brasileiro. Aos poucos, a junção entre memória coletiva e desenvolvimento social substituiria a seleção de bens excepcionais nas políticas de legitimação e proteção patrimonial.

presente que ocorre a fusão de todos eles. A partir daí o patrimônio abrigado nas cidades só faz sentido quando ele converge diferentes memórias,

O patrimônio cultural nas cidades: um problema atual As cidades sempre estiveram no centro dos debates sobre o patrimônio. A maior parte dos bens elevados à categoria de patrimônio em urbanos, ocorrendo processo semelhante no Brasil, pouco tempo depois.

ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN: coletânea de textos sobre patrimônio cultural/ Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rio de Janeiro: MinC/ Pró-Memória, 1987.


74 O NASCIMENTO DA IDEIA DE “PATRIMÔNIO”

CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006. CURY, Isabelle (org.). Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro: Iphan, 2004. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janero: UFRJ/ Minc-IPHAN, 2005. envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Victor Hugo; SOUZA, Marise Campos de; BASTOS, Rossano Lopes; GALLO, Haroldo (org.). Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2006, p.33-76. RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN, 2007. SILVA, Fernando Fernandes da. As cidades brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade. São Paulo: Peirópolis/ Edusp, 2003.

A invenção do Sertão. Brasil, 2009. Direção: Joel Pimentel e Armando Praça. O milagre do pão. Brasil, 2008. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Mapas Urbanos. Brasil, 1998. Direção: Daniel Augusto. Na internet www.iphan.gov.br www.polis.org.br www.unesco.org.br


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CAPÍTULO 6

OS GRUPOS SOCIAIS E O PATRIMÔNIO CULTURAL: DINÂMICAS E CONFLITOS

m março de 2001 um dos patrimônios da humanidade reconhecidos pela Unesco, os Budas Gigantes de Bamyan, foram implodidos pelo governo do Afeganistão, na ocasião formado pelos Talebãs.

II da nossa era, no contexto da mítica “Rota da Seda”, foi procedida por uma Matsuura, buscou de todas as formas possíveis demover o governo afegão


78 OS GRUPOS SOCIAIS E O PATRIMÔNIO CULTURAL: DINÂMICAS E CONFLITOS

líderes muçulmanos convocados a se manifestar publicamente contra o ato tomado como “vandalismo”. Nada funcionou. O representante talebã nos Estados Unidos, Sayed Rahmatullah Hashimi, declarou posteriormente que

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de que ali fora Tróia (ou Ilíon). De qualquer modo o “Tesouro de Príamo” permaneceu na Alemanha como um dos mais impressionantes registros materiais do mundo grego arcaico.

do governo afegão com a ONU e a grande maioria dos governos ocidentais. Em paralelo a Unesco, e um grupo de juristas e diplomatas, busca quais encontravam-se 259 peças da coleção de Schliemann. Em 1994, quando o Museu Pushkin abriu uma grande exposição da coleção, Alemanha, Turquia e coleções particulares – parte delas pertencente aos líderes do partido nazista

feito em todas as regiões que ocuparam (principalmente na França e na

da Alemanha por ser um acervo escavado (saqueado?) por um alemão e por haver sido retirada do país como indenização de guerra, por parte da Turquia pelo fato de Hissarlik estar em seu território e pelas peças haverem

mas, principalmente, ao Museu Pushkin, localizado no Kremlin em Moscou. desse saque foi restituído à Alemanha, ou mesmo aos países dos quais o governo nazista havia saqueado. Contudo nem toda restituição foi consensual patrimônio. insolúvel para o direito internacional.

O patrimônio no fogo cruzado entusiasta da Ilíada, empreendeu seus esforços e fortuna para localizar o sítio da ancestral Tróia, descrita no texto ancestral grego. Em 1873 iniciou

Dizer que o motivo que move os quatro países na disputa pelo

em turco) onde encontrou um gigantesco tesouro arqueológico o qual

equívoco. Tal tesouro, embora possua uma avaliação de valor econômico

escavações – as quais levaram em grande medida a destruição do sítio e de suas camadas arqueológicas originais – foi levado para a Alemanha. Levou o

comprado ou vendido, sua perda material não pode ser compensada com


80 OS GRUPOS SOCIAIS E O PATRIMÔNIO CULTURAL: DINÂMICAS E CONFLITOS

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Portanto, o que move esses países? “vandalismo” ou manifestação de extremismo religioso apresenta fatores, mas não esgota o problema.

islâmica. Duas perguntas se põem: por que esperar dez anos para retaliar e por que avisar antecipadamente e não simplesmente realizar a ação? Obviamente que ambos os casos explicitam as dimensões macropolíticas que envolvem o patrimônio cultural, mas – guardadas as devidas proporções – o mesmo se reproduz nas esferas locais, regionais, nacionais.

(turístico) da coleção. Quase qualquer museu do mundo gostaria de ter tal

Embora as legislações – tanto as nacionais quanto as cartas e

política envolvida: entre a Alemanha e a Rússia (herdeira desse espólio

patrimônio pode transcender sua importância local, associada a um determinado grupo, momento histórico, e se alçar a categoria de “bem da humanidade”. A

Universal dos Direitos do Homem. A “Humanidade” transcenderia as sistematicamente retirado de seus locais de origem e levados para museus europeus, os quais disputavam entre si pela magnitude e importância de seus acervos (o Pergamon, o Louvre, o British, o Deutsch). Hoje os países de

social. Esse reconhecimento mútuo entre os homens como pertencentes a uma mesma comunidade possibilitaria que uns vissem nos outros a importância alheia e a complementaridade que cada manifestação proporciona às demais,

mais do que uma questão história (se os artefatos pertencem à cultura grega ou ao estado turco) trata-se de uma dimensão política, dado que por longo entre os povos e governos. O governo afegão dos talebãs, por sua vez, diante de um isolamento

redes de TV internacionais) sua posição política. Foi um modo de dizer ao ocidente – muito mais do que aos hindus indianos que teriam, dez anos antes, destruído uma mesquita – que eram tão indiferentes às suas instituições e valores quanto estes a eles. A destruição do patrimônio, transmitida, avisada, noticiada, tinha como objetivo criar um fato, uma execução em tempo real,

princípio caro à antropologia contemporânea – e suas manifestações dignas igualmente de reconhecimento e proteção. distante das realidades vividas pelos mais diversos povos e contextos. Culturas são sistemas absolutamente complexos e dinâmicos que, assim como a história, se alicerça e entrelaça com as memórias – individuais e coletivas – dos povos. e possibilita inúmeros arranjos – passa pela associação entre cultura, história, de um grupo humano, diríamos “pescadores tradicionais de uma cidade


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do litoral catarinense”, passa pela associação de formas de fazer do grupo, com as atividades exercidas por cada um de seus elementos, com o aparato simbólico estabelecido para essas atividades, pessoas, lugares, com história do grupo e, sempre, ancoradas na capacidade de rememorar esse sistema direitos da infância no leste europeu. Quando transferimos essa dinâmica Aquilo que chamamos de patrimônio são manifestações – tangíveis e intangíveis – que emanam desses sistemas e que, num determinado momento tocar o problema em dimensões não previstas. ou recuperações quase sempre envolve um processo externo, trata-se de uma operação formal, do Estado, para dentro das sociedades ou comunidades. Como parte de suas vidas não faria sentido ou haveria necessidade em se alçar

em um rio importante na região centro-oeste do Brasil. O processo de

elemento na rede de relações da comunidade. Portanto, uma das possíveis

cachoeira havia a terra indígena (TI) de um importante grupo indígena, o

das vezes a interesses externos às comunidades ou, alternativamente, como tentativa de salvamento ou recuperação de algum elemento que perdeu função no circuito vivo de uma sociedade. Uma terceira possibilidade – mais recente

curso do rio poderia comprometer o estoque de pescado, fonte primordial da alimentação dessa etnia. Após longos meses de discussão e negociação pouco ou quase nada havia sido obtido pela etnia, a qual decidiu invadir o canteiro

novas tecnologias da informação (sobretudo, mas não somente, a digital).

nacionalidade, regionalidade, cultural, corporativa (referente às instituições postas em cena (o meio ambiente, os direitos civis, os direitos dos animais, causas políticas ou assistenciais).

justiça entrou na briga (apesar da omissão do governo local). Entretanto nada parecia indicar uma solução duradoura e o empreendedor não se mostrava inclinado a ceder o que quer que fosse. As lideranças indígenas, então, retomaram seus contatos com duas organizações não governamentais internacionais, as quais moveram ações de propaganda negativa ao empreendimento nos jornais europeus e do Japão na imprensa local acionistas dos dois bancos começaram a se desfazer


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Longe de ser uma questão menor, as políticas de patrimônio se teve de se mostrar mais aberto à negociação com os indígenas locais. grupos de poder, legislações, se imbricam em uma relação na qual os “valores culturais” são um dos fatores, mas não o único. O que se pesa no caso de um

Bem como a constituição das coleções de objetos nos museus, a

os “valores excepcionais” daquela manifestação.

O patrimônio cultural: reconhecimento e rejeição

memórias e das identidades coletivas. Guardar um objeto e não outro, preservar um documento ou não, resguardar um traçado urbano e autorizar a alteração de outro, nomear algo como patrimônio são operações que materializam os desejos envolvidos na constituição de uma memória

patrimônio atendeu historicamente às diretrizes e mentalidades dos grupos que controlavam, e controlam, o poder do Estado (a única instância com o direito atribuindo a esses objetos premissas especiais diante do universo de relações) históricas, de grupo ou individualizadas. ser excludente e, potencialmente, segregadora (e vale ressaltar que toda ou meramente biológico, embora não prescinda os aspectos neurológicos.

políticas e econômicas, fato que se comprova na observação das coleções de desse período o questionamento sobre a hegemonia do universo material e mental das elites nos museus, e mesmo na história, passou por um processo de crítica e revisão o qual levou a constituição de coleções diferenciadas, voltadas aos mundos do trabalho, aos grupos explorados, as minorias, ao universo cotidiano, etc. Entretanto, no campo das políticas do patrimônio, essa crítica, e ainda mais a revisão dos procedimentos, demorou mais a chegar tomadas intentando democratizar e ampliar a noção de patrimônio e seus

do alcance dos poderes constituídos (como nos processos educacionais, em sociedades modernas ou tradicionais), pela constituição do universo material

visuais e na determinação de marcos tangíveis e intangíveis que passam a ser especialmente valorados por um determinado grupo (festas, datas sagradas, E a composição de cada grupo de elementos que compõem a narrativa


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É claro que existem possibilidades que se descortinam diante desse

em primeiro lugar porque as memórias, bem como as culturas, se articulam em manchas que podem ser maior ou menor em amplitude, envolvendo mais ou menos indivíduos dependendo dos aspectos envolvidos. Ou seja, existem memórias, identidades e traços culturais que são muito amplos,

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Mesmo nos casos de furto de bens ou no desaparecimento de manifestações culturais tradicionais por dissolução dos universos culturais que lhes davam suporte encontraremos esses fatores atuando. O ato do roubo somente consuma um estado de indiferença com a memória e a identidade do outro.

muito distintas. E, em segundo lugar, ainda que se estabeleçam elementos a conviver com as possibilidades múltiplas de memória, com a diversidade

que todos se reconheçam em todos os marcos culturais, mas todos devem respeitar o direito a memória do outro.

plural fora a constituição do conjunto de patrimônios numa determinada região mais risco essa sociedade e esse conjunto patrimonial correm.

sejam pouco tolerantes entre si e que aquele conjunto de elementos que

Uma breve incursão pelos problemas de conservação que envolvem o patrimônio – desaparecimento de manifestações, proibições, destruições, depredações, roubos, etc. – demonstrariam quase sempre uma miscelânea dos elementos que elencamos: intolerância, exclusão, desigualdade, pouca pluralidade e democracia no reconhecimento e gestão dos bens patrimoniais.

BO, João Batista L., Brasília, DF: Unesco, 2003. CASTELLS, Manuel, O poder da identidade, São Paulo: Paz e Terra, 2000. CERTEAU, Michel de, A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. 2 ed., volume 1, Petrópolis: Vozes, 1994-A. __________________, A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. 2 ed., volume 2, Petrópolis: Vozes, 1994-B. __________________, A Cultura no Plural, Trad.: Enid Abreu Dobranszky, Campinas: Papirus, 1995. CHOAY, Françoise, A alegoria do patrimônio, São Paulo: Estação Liberdade / Ed. Unesp, 2001. EVANGELISTA, Ely G. dos S., A Unesco e o mundo da cultura, Brasília, DF: Unesco / Editora UFG, 2003. GEERTZ, Cliford, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. _______________, O saber local: novos ensaios de antropologia interpretativa, Trad: Vera Mello Joscelyne, 3 ed., Petrópolis: Vozes, 2000.

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CAPÍTULO 7

O PATRIMÔNIO URBANO NO BRASIL: DESAFIOS, PRÁTICAS E EXPERIÊNCIAS

conjunto de aparatos legais, jurídicos, que descrevem, protege e determina os princípios de gestão do patrimônio cultural brasileiro tem sua origem na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e

pasta, Gustavo Capanema).


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podemos dizer sem dúvida, se aperfeiçoou. Entretanto, apesar de tais mudanças Capanema durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945). que seria considerado e contemplado como patrimônio nacional (não se empregava regularmente o termo “cultural”, mas “histórico e artístico”, substituído alternativamente por “nacional”), devem muito a atuação de

proveniente do governo de Getúlio Vargas. Leite”, Vargas se depara com um Estado Nacional marcado pelas imensas autonomias estaduais, pela primazia dos governos e das elites locais, pela diversidade de políticas e posturas entre as regiões e estados brasileiros. Embora tenha procedido a uma ação de acomodação dessas elites com grupos que trazia em seu apoio (algumas elites distanciadas do poder federal, grupos de agregação dos estados, cortando autonomias, criando redes nacionais de De fato, apesar da unidade das regiões do Brasil garantida no

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Assim, as ações do governo Vargas tenderam, em boa medida, a buscarem eleger e difundir manifestações tidas como “legitimamente brasileiras”, como representantes de nossa pretensa “identidade nacional”. matrizes, encontrar um período onde tivesse nascido nossa “brasilidade”. Não profícuo aos grandes modelos explicativos da formação do Brasil e dos brasileiros: Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre em 1933, Raízes do Brasil Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia de Caio Prado Jr. de 1942.

fortaleceram e deram vazão às políticas governamentais e um determinado corte da cultura brasileira. O samba não era ainda a “música brasileira”,

denominadores comuns de uma diversidade de povos, regiões, culturas. O que ocorreu a partir dos anos de 1930 foi a construção intensiva, a operada sobre um corte numa miríade imensa de manifestações. É claro que, com a determinação do que era “tipicamente brasileiro”, as demais manifestações passaram por um processo reverso, sendo entendidas como excepcionalidade, “regionalismos”.

populações, e grupos políticos, eram marcados por fortes regionalismos, os quais, muitas das vezes, pesavam mais do que o sentimento de pertencimento a uma “comunidade nacional”.


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As belas artes foram privilegiadas (a pintura, a escultura, a música do SPHAN, embora não se associem aos chamados “ciclos econômicos”, são mestiçagem cultural foi buscada nessas manifestações, tal como nas obras de arte de Aleijadinho: mestiço de negros e portugueses, escultor, manifestação da arte sacra no período colonial, expressão maior do barroco mineiro. aparecem indicações da necessidade de se atentar às manifestações mais “modestas”, mais cotidianas, populares, tais como capelas rurais, cruzeiros a beira de estradas, manifestações ligadas às religiões afro-brasileiras, formas de fazer, contos, sabedoria popular, ditados, canções infantis, jogos

o Brasil, e mesmo a Unesco, passou a reconhecer formalmente o chamado “patrimônio imaterial” (ou intangível) e tomar atitudes em prol de seu reconhecimento, registro, proteção e difusão. Contudo, apesar do vanguardismo de alguns dos criadores do um determinado corte do patrimônio cultural, buscando um passado de ouro e o nosso mito das origens.

Salvador, Recife e Olinda, São Luiz do Maranhão, Rio de Janeiro, Cidade de

em grande medida no mesmo período: o Brasil teria sido marcado pelos chamados “ciclos econômicos”. O ciclo da cana de açúcar (no nordeste), o Paulo). Basta retornar à lista da principais cidade ditas “históricas” para ver que elas, via de regra, se associam a estes momentos da economia colonial.

É importante destacar que, ainda que tenham atendido a um corte

a preservação de inúmeros bens fundamentais à cultura brasileira, garantiu-se nosso direito ao passado, à memória (ainda que recortada) e não se trata de mostrar o movimento que a partir de então se estabeleceu. Apesar das idas e vindas do órgão – incluindo seu desaparecimento durante o governo de 1990 – o, agora chamado, IPHAN, Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional apenas em sua recriação passou a efetivamente patrimônio cultural brasileiro, o que, diga-se de passagem, faz de nossas posturas os países membros da Unesco.

Ao lo

das morfologias, dos conceitos, das relações interculturais, etc., pode-se dizer sentiam afastados, ou não contemplados, pelo organismo. Em outros casos a Unesco foi a porta de entrada para a reaparição de Mundial, das grandes questões mundiais – que envolviam ações militares, intervenções,


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e a política cultural internacional. Entretanto, no caso da ação no campo do itens fundamentais às culturas do Japão (como templos religiosos milenares, mas que são reconstruídos continuamente, portanto não se enquadravam nos

aos bens materiais (edifícios, obras de arte, objetos), se não eram perfeitas estavam, ao menos, bem consolidadas. Algumas questões se põem na contemporaneidade a esse respeito:

Da mesma forma grupos de países de menos poder econômico ou político encontraram na Unesco um campo para se fazerem representar e cobrar reconhecimentos perante a comunidade internacional. A ampliação do conceito de patrimônio para o campo da imaterialidade foi fruto dessa movimentação. Saberes tradicionais, modos de vida,

feição “tradicional”? comunidade internacional esse valor continua atrelado a um reconhecimento tempos – as distinções entre patrimônio cultural e natural se tornaram mais

Exemplos que se transformam em problemas O visitante que se permitir vagar descompromissadamente por parte A cidade de quase um milhão de habitantes (a maior de Portugal, mas

fazer, os modos de vida que sejam capazes de indicar maneiras de convívio harmônico entre o homem e o meio natural. Com isso, pela primeira vez, as próprias comunidades começaram a se mobilizar ao redor do reconhecimento de seus bens culturais como pela necessidade interna de recobrir algo com o rótulo de “patrimônio” do representação política (e, às vezes, de alternativa econômica). Enquanto membro efetivo da Unesco, o Brasil não só participou desse debate, como o fomentou e se adiantou na aplicação das convenções internacionais.

construídas após o terremoto de 1755, o qual devastou a cidade (a Ajuda, Eduardo VII). de se encontrar vestígios e sítios arqueológicos, mas, ao menos, a arqueologia


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Santa Justa). Obviamente que o apelo turístico desses bens determina a escolha, sem desconsiderar, obviamente, a relevância de tais patrimônios. sem soluções criativas, levou a um impasse urbano na cidade que cobra a política de tombamento levou a criação de conjuntos imensos de bens portugueses com sua memória (ou de setores do poder com certa memória). Mas as legislações que regem a preservação do patrimônio são – e

de como políticas bem intencionadas – a princípio – podem se tornar um problema e de como as sociedades contemporâneas, com transformações

especializada, pesquisa, materiais diferenciados), e possuem limitações trocar uma folha de porta). perdeu quase um terço dessa população, a qual se deslocou para cidades próximas, mais baratas, bem atendidas por transporte público de qualidade fator econômico foi decisivo para tal movimentação, mas não foi o único. preocupações. Valorizar e empreender ações que resguardem a diversidade cultural brasileira, tida como seu maior patrimônio. Incentivar o uso da cultura (e todo o aparato que a envolve) como forma de geração de emprego, renda e desenvolvimento social. No primeiro caso trata-se de conseguir que municípios, estados e a federação falem a mesma língua e consigam não apenas operar uma padronização formal, mas que consigam potencializar seus esforços. O Brasil

ruínas contrastam com alguns bens incrivelmente bem preservados (Mosteiro

instituição, não por simples adoção, mas por formulação compartilhada. No segundo caso reconhece-se a diversidade não só das culturas brasileiras, mas, sobretudo, de suas formas de manifestação. De modo geral, embora existam


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intangíveis, sobre as quais ainda paira uma grande dúvida a respeito da mudado numa velocidade sem qualquer precedente histórico e levando, muitas das vezes, ao esgarçamento dos tecidos sociais que sustentavam essas sociedades. Ainda nesse campo grande preocupação reside na

lentamente se degradando aos olhos cada vez mais indiferentes da comunidade). Reintegrar esses bens – não como espaços “culturais” no sentido vulgar do

as ações do campo do patrimônio somem esforços para a ampliação da a difusão de uma cultura de paz, etc. para atender aos turistas (que fora das temporadas compõem uma parcela graças à movimentação delas com atividades que marcam o ano todo, como

culturais tem sido conciliada com a sustentabilidade local e o envolvimento das

as situações com o mesmo esmero, mas a aproximação entre poder público,

solução a todo e qualquer problema de geração de renda e de recuperação das economias locais (sobretudo aquelas que sofreram com a mecanização das

suas modalidades massivas (cidades superlotadas, manifestações culturais que perdem seu lastro simbólico, depredações e problemas diversos de ordem e segurança, invasão da intimidade das comunidades, capacidade de infraestrutura excedida e colapsada, desgaste de bens e espaços, etc.). Contudo, nem só de turismo vive a política de gestão do patrimônio.

sociedade. Quando reconhecemos algo como um bem, como um patrimônio,

Na Serra da Capivara, no Parque Nacional, o maior conjunto de pinturas rupestres do planeta, o ponto de tensão maior concentra-se na necessidade de promover socialmente a população e, ao mesmo tempo, (caçadas a animais silvestres e queimadas). Apesar das oscilações e dos


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embates pontuais a população local tem ganhado com o desenvolvimento do

para empresas da região, após concluírem seus cursos restaurando bens

camisetas, bolsas, etc.) as quais são exportadas ou vendidas em lojas nas grandes cidades do centro-sul do país (explorando, inclusive, as possibilidades

sido inscritos nos programas.

Algumas lojas começam a explorar no Brasil os selos de identidade

de encontrar soluções criativas para a recuperação, preservação, fomento do patrimônio cultural, conciliando com isso o desenvolvimento social e a busca da mitigação dos embates criados pela exclusão e recusa do outro.

e atravessadores, etc.), ou de “Responsabilidade Social” (no qual se apresentam os benefícios indiretos fornecidos pela compra de um produto do aproveitamento das habilidades locais, das chamadas “vocações culturais” social, gerar emprego e renda sem retirar as comunidades de seus locais, nem alterar radicalmente seus modos de vida. Claro que essas ações devem ser controladas, pois a difusão de certa atividade (extração de certa raiz, folha,

o contínuo interesse do consumidor e mitiga o impacto que a exploração

“Patrimônio: atualizando o debate”, Revista do Iphan, São Paulo: Iphan, 2007. SOUZA, Marise Campos de, Comparativos, São Paulo: Iphan, 2010. TIRAPELLI, Percival, Patrimônio da humanidade no Brasil, São Paulo: Metalivros, 2007.

À margem do concreto. Brasil, 2006. Direção: Evaldo Mocarzel. Ninhos antigos. Brasil, 2011. Direção: Osman Godoy. Pixo. Brasil, 2009. Direção: João Wainer e Roberto T. Oliveira. Villa Boa de Goyás. Brasil, s/d. Direção: Moacir de Oliveira.

de determinados artesanatos indígenas diante do risco de desaparecimento de

Na internet

restauro para jovens de baixa renda (que precisam se inserir no mercado de

www.senai.br www.monumenta.gov.br www.fumdham.org.br (Fundação Museu do Homem Americano, Parque Nacional da Serra da Capivara) www.cidadeshistoricas.art.br www.fairtrade.net whc.unesco.org

em parceria com diversas prefeituras tem empreendido cursos de marcenaria,


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OS AUTORES Rodrigo Silva Bacharel, mestre e doutorando pela Universidade de São Paulo, especializado em patrimônio cultural e história urbana, pesquisador associado ao Museu Paulista da USP, o Museu do Ipiranga. Realizou desde 2003 dezenas de projetos de pesquisa, tratamento, proteção e difusão do patrimônio cultural brasileiro, se destacando seus trabalhos no Xingú (MT), no caminho das antigas Monções (MS e SP), no sertão pernambucano, de inventário cultural nas bacias dos rios Negro, Tapajós e Amazonas (AM, PA), de proteção ao patrimônio cultural no porto de Santos (SP), de inventário cultural e proteção Paulo, de anexação de diversos parques estaduais a reserva da Biosfera da ONU, entre tantos outros. Possuí diversos trabalhos de produção cultural ligados ao patrimônio brasileiro.

Carlos Eduardo França de Oliveira Bacharel, mestre e doutorando pela Universidade de São Paulo, especializado em patrimônio e práticas culturais urbanas, pesquisador associado ao Museu Paulista da USP, o Museu do Ipiranga. Desde 2005 realizou diversos trabalhos de pesquisa, tratamento, proteção e difusão do patrimônio cultural brasileiro, se destacando os trabalhos no porto de Santos (SP), de previsão de impacto no Vale do Paraíba paulista e carioca em função do projeto de construção do obras do Metrô e do Rodo Anel em São Paulo, além de trabalhos em Minas Gerais, em Petrópolis (RJ).



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