Atas do XII Encontro de Professores de Direito Público

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ATAS DO XII ENCONTRO DE PROFESSORES DE DIREITO PÚBLICO O Poder Judicial: Revisitar o passado e pensar o futuro

Escola de Direito da Universidade do Minho



ATAS DO XII ENCONTRO DE PROFESSORES DE DIREITO PÚBLICO O Poder Judicial: Revisitar o passado e pensar o futuro

Escola de Direito da Universidade do Minho 25 e 26 de janeiro de 2019



FICHA TÉCNICA

TÍTULO DA PUBLICAÇÃO

Atas do XII Encontro de Professores de Direito Público - O Poder Judicial: Revisitar o passado e Pensar o Futuro

COMISSÃO

Ana Gouveia Martins Anabela Leão Benedita Mac Crorie Patrícia Fragoso Martins

DATA DE PUBLICAÇÃO

Agosto de 2020

EDIÇÃO

Escola de Direito da Universidade do Minho

PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA

Pedro Rito

FOTO DE CAPA

Timon Studler on Unsplash

ISBN

978-989-54587-6-9

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SUMÁRIO

NOTA DE APRESENTAÇÃO

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PROGRAMA

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O conceito pós-moderno de constituição Gonçalo Almeida Ribeiro

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Sobre a jurisdição administrativa e fiscal: sua evolução e situação atual Mário Aroso de Almeida

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Sobre a natureza jurídica dos atos praticados em execução fiscal Joaquim Freitas Rocha

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O “diálogo judicial” na União Europeia. A “química” do delicado equilíbrio entre autonomia e constitucionalismo multinível! Graça Enes

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O dever de conformação das decisões nacionais com a justiça da União Europeia – formas institucionais internas Dulce Lopes

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NOTA DE APRESENTAÇÃO

Nos dias 25 e 26 de janeiro de 2019, a Escola de Direito da Universidade do Minho acolheu o XII Encontro de Professores de Direito Público. Tal como decidido pelos participantes no XI Encontro, em 2018, o Encontro de 2019 teve por tema O Poder Judicial: Revisitar o passado e pensar o futuro. O Encontro abriu, no dia 25 de janeiro da parte da manhã, com uma intervenção inicial a cargo da Senhora Procuradora, Dra. Joana Marques Vidal, na qual se problematizou o tema escolhido, seguida de debate com a assistência. O Programa contou também com mais três painéis (dois na sexta-feira, dia 25 de janeiro, e um no sábado, dia 26 de janeiro), funcionando o painel de sábado como mesa redonda. Os painéis de sexta-feira tiveram por temas “Justiça Constitucional: Repensar e reformar” e “Justiça Administrativa e Tributária: Problemas e desafios”, tendo sido também seguidos de debate. A discussão, na mesa redonda de sábado, foi em torno do tema “ Justiça Internacional e Europeia: Diálogos entre Jurisdições” Teve ainda lugar uma sessão de encerramento, proferida pelo Doutor Nuno Piçarra, Juiz no Tribunal de Justiça da União Europeia, sobre os “Novos Desafios do Tribunal de Justiça da União Europeia”. À semelhança do sucedido em outros anos, o Encontro contou com a participação de docentes de diversas universidades portuguesas (públicas e privadas) que lecionam e/ou investigam em áreas de Direito Público, tendo sido mais uma oportunidade de reflexão e de reunião entre colegas. Várias das comunicações resultantes deste XII Encontro são agora reunidas e objeto de publicação conjunta, ficando ao dispor da comunidade jurídica. O Encontro e a publicação destas Atas contaram com o apoio da Escola de Direito da Universidade do Minho, que aqui publicamente se agradece.

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XII ENCONTRO DE PROFESSORES DE DIREITO PÚBLICO Escola de Direito da Universidade do Minho 25 e 26 de janeiro de 2019

“O Poder Judicial: Revisitar o passado e pensar o futuro”

SEXTA-FEIRA, 25 DE JANEIRO DE 2019

10h00

Welcome coffee

10h30

Boas-vindas: Clara Calheiros, Presidente da Escola de Direito/Rui Vieira de Castro, Reitor da Universidade do Minho

11h00 Intervenção inicial: Joana Marques Vidal, Procuradora do Ministério Público

Moderador: Pedro Bacelar de Vasconcelos – EDUM

Debate 13h00 Almoço 14h30

Painel I: Justiça Constitucional: Repensar e reformar?

Rui Moura Ramos – FDUC: “Um sistema complexo, original e algo disfuncional de justiça constitucional”

Pedro Machete – FD-UCP (Lisboa): “Diálogo entre jurisdições e eficácia da justiça constitucional”

Gonçalo Almeida Ribeiro – FD-UCP (Lisboa): “A Dificuldade Contramaioritária da Justiça Constitucional”

Ricardo Branco – FDUL: “A decisão de inconstitucionalidade como verdadeira decisão jurisdicional?...perplexidades e interrogações da qualificação”

Moderador: Wladimir Brito – EDUM

Debate 16h30

Pausa para café ix


17h00 Painel II: Justiça Administrativa e Tributária: Problemas e desafios

Mário Aroso de Almeida – FD-UCP (Porto): “Autonomia e condições de operatividade da jurisdição administrativa e fiscal”

Joaquim Freitas da Rocha – EDUM: "Sobre a desjudicialização da cobrança coerciva de dívidas tributárias e equiparadas"

Bernardo Azevedo – FDUC: “Contencioso pré-contratual”

Moderador: António Cândido de Oliveira - EDUM

Debate 20h30

Jantar

SÁBADO, 26 DE JANEIRO DE 2019 10h00

Mesa Redonda: Justiça Internacional e Europeia: Diálogos entre Jurisdições

Maria Luísa Duarte – FDUL: “O modelo europeu de diálogo entre juízes – o regresso ao triângulo judicial europeu e o Protocolo nº 16”

Sofia Pais – FDUCP (Escola do Porto): “Breves reflexões em torno do caso Comissão/França e do diálogo entre os juízes"

Graça Enes – FDUP: “Diálogo judicial europeu. O delicado equilíbrio entre autonomia e constitucionalismo multinível”

Vasco Becker-Weinberg – FDUNL: “Criação da Área Marinha Protegida no Mar de Weddell (Antártida): um contributo para clarificação de jurisdição e competência da UE?”

Dulce Lopes – FDUC: “O dever de conformação das decisões nacionais com a justiça internacional e europeia”

Moderador: Wladimir Brito – EDUM

Debate 12h00

Encerramento: Nuno Piçarra, Juiz no TJUE: "Novos desafios do Tribunal de Justiça da União Europeia"

Moderadora: Patrícia Fragoso Martins

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O CONCEITO PÓS-MODERNO DE CONSTITUIÇÃO Gonçalo de Almeida Ribeiro1

Sumário: 1. Introdução. 2. A Constituição do Estado. 3. O Povo Constituinte. 4. A Constituição Material. 5. As Gerações de Direitos. 6. O Princípio Democrático. 7. O Dirigismo Constitucional. 8. A Erosão da Estatalidade. 9. O Pluralismo Razoável. 10. Uma Constituição Mínima. 11. A Justiça Constitucional. 12. Conclusão.

1. Introdução Imagine-se uma constituição que estabelece os limites gerais de velocidade na estrada, o regime da resolução de instituições de crédito e sociedades financeiras, o elenco dos produtos sujeitos a taxas reduzidas de IVA, os prazos para a usucapião de coisas móveis, os pressupostos da responsabilidade civil por danos causados por animais, a moldura penal do crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, as regras de cálculo das pensões de velhice e de invalidez, disposições relativas à actividade de feirante e vendedor ambulante, a tabela de vencimentos dos trabalhadores do sector público e os montantes de subvenção estatal da investigação no domínio da biotecnologia. A inclusão destas matérias no texto constitucional seria bizarra e perversa. Bizarra, em primeiro lugar, porque contrária à natureza de lei fundamental 1 * Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional. O texto que se segue serviu de base à minha intervenção no XII Encontro de Professores de Direito Público e corresponde a uma versão ligeiramente modificada das seguintes publicações: “O que é Hoje Matéria Constitucional?”, A Prova do Tempo. 40 Anos de Constituição, Lisboa: Assembleia da República, 2016, pp. 53-78; “Constituição”, in Dicionário de Filosofia Moral e Política, 2.a ed., 2018: www.ifilnova.pt/pages/dictionary-of-moral-and-political-philosophy.

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O Conceito Pós-Moderno de Constituição Gonçalo de Almeida Ribeiro

própria das constituições, natureza essa que se não esgota no plano formal ― o da constituição como parâmetro de validade das restantes leis e demais actos da autoridade pública ―, mas que tem também um alcance material ― a constituição como lei que tem por objecto os aspectos fundamentais da vida em comunidade. Na verdade, é a dignidade da matéria que justifica a solenidade da forma; precisamente por isso, pareceria uma bizarria a lei constitucional ocupar-se de assuntos mais ou menos prosaicos. A inclusão daquelas matérias seria ainda perversa. As constituições, pelo menos na tradição continental, são leis rígidas, cuja modificação requer um procedimento agravado relativamente ao curso legislativo comum. Essa rigidez pressupõe a estabilidade da matéria constitucional, no duplo sentido de as soluções constitucionais resistirem ao decurso do tempo e de serem objecto de amplo consenso político. Quanto mais volátil e controversa for a matéria, maiores são as razões para que a sua regulação seja subtraída ao domínio constitucional e confiada ao processo legislativo ordinário, que, pela sua natureza flexível, tem a vocação de dar resposta aos sinais flutuantes da realidade e sentir o vento da opinião pública. Ao estenderem-se para além do âmbito em que as soluções que consagram gozam de relativa perenidade, as constituições hipotecam a sua força normativa e legitimidade democrática. Aquela na medida em que se arrogam a missão quixotesca de submeter ao seu governo uma realidade evasiva, somente disciplinável através de processos de decisão céleres e dúcteis. Esta por acolherem nas trincheiras da sua primazia jurídica opções políticas controversas e polarizadoras, cujo mérito deveria ser julgado pelos cidadãos através dos mecanismos ordinários de deliberação democrática.

2. A Constituição do Estado A constituição – diz a doutrina nos seus manuais − é a ordem fundamental do Estado. É certo que juristas e leigos usam o termo «constituição» num sentido mais amplo, como quando se referem aos estatutos de uma organização como o seu «documento constitucional» ou dizem de um indivíduo saudável que possui uma excelente «constituição física». Mas é bom de notar que nesses casos o termo é usado por analogia com o seu sentido normal ou paradigmático, que diz respeito à ordem fundamental da vida estadual. O Estado corresponde a uma certa forma ― historicamente situada e amplamente consolidada ― de convivência política, que se caracteriza, na noção clássica de Georg Jellinek, pela reunião de três elementos: um povo, um território e uma autoridade. Em primeiro lugar, os membros de uma comunidade política estadual constituem um povo; o elemento humano do Estado não é um composto de vários «corpos» ou «estamentos», hierarquizados entre si e anterio2


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res à formação da comunidade política, mas uma união de indivíduos, investidos na condição anónima e igual de «cidadão». Em segundo lugar, o Estado é uma comunidade humana de âmbito territorial, cuja unidade política se estabelece sobretudo em virtude da proximidade física ― da partilha de um espaço finito e circunscrito ― e não da proximidade espiritual ou de interesses que subjaz a uma igreja, um partido ou uma empresa. Em terceiro lugar, o Estado é dotado de uma autoridade, de um poder instituído para governar ou ordenar as relações entre os cidadãos, e cujas decisões implicam a pretensão de os vincularem; esse poder é exercido através de alguns dos seus membros, designados por essa razão «governantes». A autoridade que lhes assiste, porém, não é uma prerrogativa das pessoas que a exercem, mas do cargo que ocupam ou da função que desempenham. O fundamento da autoridade política nos Estados, o modo como neles se organiza a actividade governativa e se articulam as relações entre governantes e governados, é precisamente aquilo que, numa primeira aproximação ao conceito, se designa por «constituição». A constituição é obra do poder constituinte, primeiro e maior dos poderes políticos, aquele de que derivam todos os poderes constituídos que consubstanciam a autoridade do Estado. O titular desse poder é o povo, o conjunto dos cidadãos que se organizam politicamente através da constituição. Daí decorre que a legitimidade política e a correspondente força jurídica da constituição se reconduzem, em última análise, não ao seu conteúdo, mas à vontade popular que está na sua génese. Haverá tantas constituições, no plano material, quanto as vontades dos povos que gozam da prerrogativa soberana de determinarem o seu destino político. Sem prejuízo de um alargado e inevitável domínio de sobreposição ― nenhuma constituição pode, no fim de contas, deixar de organizar o poder político ―, os textos constitucionais têm um conteúdo, um vocabulário e uma extensão diversos porque reflectem as vontades contingentes de distintos soberanos populares quanto à forma e ao modo de vida colectivo. Esta é a concepção dominante nos manuais.

3. O Povo Constituinte Sucede que, ao contrário do pressuposto por esse modelo voluntarista, a categoria «povo» no discurso constituinte não é um agente ― uma pessoa naturalmente capaz de pensar, querer e agir ―, mas a personificação de determinados valores. Desde logo, é evidente que o povo é incapaz de exercer o poder soberano de que goza, pelo que terá sempre de contar com os bons ofícios de quem o represente no momento constituinte. Mesmo nos casos em que este assume a forma de um procedimento democrático, como seja a eleição por sufrágio universal de uma assembleia com plenos poderes constituintes – uma raridade na história dos processos constitucionais −, seria absurdo dizer que a constituição

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O Conceito Pós-Moderno de Constituição Gonçalo de Almeida Ribeiro

é obra directa do povo, uma entidade abrangente, inconfundível com a maioria conjuntural, e intergeracional, inconfundível com a geração presente. Mas isso não basta. É de rejeitar inteiramente a representação naturalística do poder constituinte, segundo o modelo da «incapacidade de exercício». Os naturalmente incapazes, como os menores ou os interditos, são pessoas físicas, por muito que lhes faltem as condições indispensáveis à autonomia individual. As pessoas colectivas são ficções, realidades criadas pelo direito por razões de conveniência. O «povo», pelo contrário, não é uma realidade tangível, mas também não pode ser uma criação da própria ordem jurídica imputada á sua vontade. Antes é um parâmetro de justificação ou ideia regulativa da acção política concreta daqueles que reclamam atuar em seu nome. Não admira, por isso, que a vontade popular tenha sido, ao longo da história, articulada de modos radicalmente distintos e inconciliáveis, e mobilizada como discurso legitimador dos mais variados programas ideológicos. Uma concepção carismática, desenvolvida sobretudo por Carl Schmitt, segundo a qual a vontade popular se revela nas epifanias do líder aclamado pelas massas. Uma concepção romântica, difundida pelo nacionalismo cultural de Herder e Savigny, que associa o povo à cultura nacional cujos curadores são a elite académica. Uma concepção revolucionária, articulada pela tradição marxista-leninista, para a qual o povo se identifica com a classe social portadora em cada momento histórico da missão emancipatória do género humana e atuante através da sua vanguarda. Uma concepção populista, com raízes sorelianas e mussolinianas, em cujos termos o povo emerge nos protestos de rua, nos movimentos sociais, na resistência ao poder oficial e noutras erupções inorgânicas. E, finalmente, uma concepção democrática-liberal, cujos expoentes maiores foram Rousseau e Kant, segundo a qual «nós, o povo» é um conjunto de indivíduos livres e iguais simultaneamente autores e sujeitos de um sistema comum de leis. Tão variados são estes usos do «povo» no discurso constituinte que é justo dizer-se do termo o que Proudhon referiu a propósito do género humano: quem o invoca é um aldrabão.

4. A Constituição Material Mas se o «povo constituinte» é um produto da imaginação política, temos de concluir que a cada discurso constituinte subjaz uma determinada concepção, axiologicamente comprometida, de vontade popular. Na família alargada dos constitucionalismos democrático-liberais, o povo concebe-se como soma das vontades de indivíduos livres e iguais, concebidos à imagem e semelhança dos protagonistas de construções filosóficas afins, como seja o contrato social, a vontade geral, a posição original, o consenso de sobreposição ou a situação ideal de diálogo. A legitimidade de uma constituição inscrita nessa matriz democrático-liberal afere-se mediante a comparação entre uma obra constitucional com

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autor e data – a lei constitucional −, e a vontade hipotética de um povo imaginado – a constituição material. O conteúdo da constituição deixa de ser largamente arbitrário, o livre produto da decisão do seu criador omnipotente, para se converter no critério de reconhecimento da sua imputação ao povo, o que é dizer, reflexivamente, aos valores que este personifica. Em suma: não é a vontade que justifica a matéria, mas a matéria que revela a vontade; não é a forma que confere dignidade à substância, mas a substância que reclama a solenidade da forma. É esse o alcance do célebre artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: «A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem constituição.» O sentido desta disposição é o de que o povo do liberalismo democrático não pode deixar de querer o poder público separado e vinculado aos direitos fundamentais. O primeiro porque só assim, dividindo a autoridade numa pluralidade de poderes e instituindo mecanismos de vigilância recíproca, pode prevenir a usurpação da soberania que exclusivamente lhe cabe. O segundo porque uma autoridade instituída por cidadãos anónimos e iguais carece de legitimidade para lhes dirigir a vida, segundo o seu critério de felicidade ou de bem, como se de um déspota ilustrado se tratasse, cabendo-lhe ao invés assegurar as condições para que cada cidadão possa perseguir o ideal de felicidade ou praticar a concepção de bem que entende merecer a sua adesão. «A finalidade de toda associação política – lê-se no artigo 2.º da declaração de 1789 − é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.» Estas palavras condensam o projecto de vida coletiva que denominamos de constitucionalismo moderno, que se traduz numa concepção material de constituição. Está claro que, sem prejuízo da sua vocação universal, a constituição material da democracia liberal não dispensa os pressupostos históricos ou mundanos da sua vigência, nem determina até ao mais ínfimo detalhe o conteúdo da lei fundamental. O arquétipo constitucionalista ― direitos fundamentais e separação poderes ― admite uma variedade de concretizações, cujas virtudes relativas dependem essencialmente das características de cada cultura pública e das circunstâncias históricas em que se exerce o poder constituinte. Matérias como a definição do sistema de governo, do sistema eleitoral, do sistema partidário, do regime de garantia da constituição, da hierarquia das fontes, da arquitectura dos órgãos de soberania, do nível de abstração dos enunciados de direitos fundamentais ou dos remédios previstos para a sua defesa, situam-se, em larga medida, nesse plano de abertura do universal ou ideal às condições particulares da sua realização histórica.

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5. As Gerações de Direitos É claro que os direitos «naturais e imprescritíveis» presentes no espírito dos revolucionários de 1789 eram sobretudo as liberdades fundamentais ― a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de associação, a liberdade de iniciativa económica, entre outras ― e os direitos de pendor defensivo ― como o direito à vida, o direito à integridade física, o direito ao bom nome, o direito de propriedade. Na síntese oitocentista, eram os direitos de «liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão». A redução dos direitos fundamentais a este elenco, mais tarde designado pela expressão «direitos de primeira geração», correspondia, como assinalou mordazmente Karl Marx no seu ensaio Die Judenfrage, à universalização da posição social do homem burguês oitocentista ― patriarca, comerciante, abastado e instruído. A partir de finais do séc. XIX, o desenvolvimento do capitalismo industrial gerou a «questão social» e a afirmação de novos protagonistas nas sociedades ocidentais ― o operariado, a fábrica, a cidade, a mulher, o monopólio e o partido ― insusceptíveis de enquadramento na teoria social e na antropologia política do liberalismo clássico. O aggiornamento do constitucionalismo moderno fez-se através de um compromisso social-democrata, alargando-se os direitos fundamentais ao domínio dos direitos económicos, sociais e culturais ― mais tarde designados «direitos de segunda geração» ― e da transformação do Estado liberal num Estado social que chama a si a satisfação de necessidades abrangentes em matéria de saúde, educação, habitação, cultura e segurança social, promovendo, em maior ou menor medida, a redistribuição de rendimento e de riqueza. Aos direitos de liberdade e aos direitos sociais ― as primeiras duas gerações ― sucedem-se, a partir do último quartel do séc. XX, os direitos de terceira e de quarta geração, os primeiros relativos a interesses difusos em matéria ambiental e à tutela de minorias étnicas, nacionais ou culturais, os segundos associados à necessidade de salvaguarda do indivíduo contra novos perigos decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico em domínios como a segurança, a informática e a genética. Acresce a preocupação crescente com a protecção das gerações futuras, vulneráveis a efeitos duradoiros e tendencialmente irreversíveis de decisões presentes em âmbitos como o financeiro, o energético, o militar, o educativo e o demográfico. Este alargamento do discurso dos direitos reflecte-se, nos textos constitucionais e nos instrumentos internacionais de tutela dos direitos humanos, na consagração de novos direitos ao ambiente, à herança cultural, à reserva de intimidade da vida privada e à identidade genética, entre outros. A sequência de gerações de direitos fundamentais, e em particular a consagração dos direitos sociais, é muitas vezes apresentada como um desvio em

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relação à matriz liberal originária do constitucionalismo, umas vezes com a finalidade de a relativizar e noutras com o propósito de secundarizar os direitos de nova geração relativamente aos direitos de liberdade clássicos, distinguidos como direitos de «primeira grandeza» e, por essa razão, merecedores de tutela jurídica reforçada. Essa tese dualista parte de uma leitura superficial da história intelectual do liberalismo. O liberalismo oitocentista que inspirou o constitucionalismo moderno correspondeu apenas a um protótipo, uma primeira tentativa, inevitavelmente condicionada pela sua situação histórica, de articular uma teoria política baseada no postulado da pessoa humana como indivíduo livre e igual. As gerações posteriores de direitos corresponderam a acertos e enriquecimentos desse património originário, ao desenvolvimento imanente da ideia liberal de justiça. Sem prejuízo da tendencial diversidade entre direitos de liberdade e direitos sociais no plano estrutural (v.g., determinabilidade de conteúdo, aplicabilidade directa, pendor negativo ou positivo, alcance da reserva de possibilidade), há uma incindível unidade axiológica entre os direitos fundamentais de várias gerações, recondutível à matriz liberal do constitucionalismo moderno. Se os direitos clássicos são os direitos da liberdade individual, os direitos sociais são os direitos que libertam o indivíduo da necessidade.

6. O Princípio Democrático O liberalismo oitocentista europeu não era democrático, nem atribuía relevância primacial aos direitos de participação política. Não o era, desde logo, por uma questão de princípio, na medida em que relegava para um plano secundário o problema clássico da forma de governo. Sendo a «finalidade de toda a associação política a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem», recusava-se ao poder político ordinário a liberdade de decisão dos destinos da comunidade, cabendo-lhe o papel secundário e instrumental de exteriorizar e concretizar, através das leis, o ideário liberal. Foi isto que levou Marx a dizer que os direitos do cidadão no Estado liberal – como o direito de voto e a liberdade de expressão política − são degradados à condição de simples meios para a realização dos direitos do homem abstrato e egoísta. O primado da lei no constitucionalismo de oitocentos devia-se à crença arreigada na correspondência entre a legalidade ― a sujeição do poder público às normas gerais e abstratas emanadas da instituição representativa ― e as exigências da justiça numa comunidade de indivíduos livres e iguais. Nos termos do art. 6.º da Declaração de 1789, «a lei é a expressão da vontade geral», e nessa exacta medida a melhor garantia dos direitos e liberdades fundamentais. Daí que, em todo o século XIX europeu, se não admitisse a sindicância da lei pelo poder judicial.

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O primeiro constitucionalismo, todavia, não era democrático nem mesmo nesse sentido derivado de garantia dos direitos. Entendia que a conjugação do governo representativo, do sufrágio livre e universal, do acesso igual a cargos públicos, da decisão segundo a regra da maioria e do princípio da responsabilidade política dos governantes ― os elementos típicos da democracia representativa ― constituía uma ameaça para a «liberdade dos modernos», justamente o bem que a comunidade política se destinava a conservar. À tirania das massas ― ignaras e destituídas ― e dos seus representantes ― oportunistas e populistas ― a teoria política liberal opunha as virtudes de um governo representativo do «povo activo», o que é dizer, do pequeno conjunto de cidadãos masculinos, ricos e instruídos, e por esse facto subtraídos aos vínculos domésticos, laborais e espirituais que obstavam à devoção desinteressada e esclarecida do indivíduo aos assuntos públicos. Acresce que o conteúdo das leis que governavam a vida do homem burguês – o direito privado vertido nos grandes códigos civis – provinha dos tratados dos juristas que se reclamavam curadores do espírito do povo e habilitados a traduzi-lo num sistema com os instrumentos da ciência do direito. O Gesetzesrecht (o direito legislado) era, na verdade, em larga medida, um Professorenrecht (um direito de professores). O Código Civil Alemão de 1900, a maior glória da cultura jurídica do século XIX, deve muito mais aos juristas da Escola Histórica e da Pandectística do que ao Reichtag ou ao Bundesrat aos quais a Constituição Imperial de 1871 confiava o poder legislativo; a propósito dele referiu um comentador da época que se tratava das «Pandectas de Windscheid na forma de parágrafos». A incorporação do princípio democrático no constitucionalismo foi o fruto sofrido da luta prolongada e atribulada dos trabalhadores e das mulheres pela emancipação política, iniciada sobretudo a partir dos finais do séc. XIX, período em que o amadurecimento da «questão social» provocou a erosão definitiva do nexo fiduciário e representativo entre as instituições políticas do liberalismo clássico e amplos sectores da sociedade marcados pela vulnerabilidade económica e pela exclusão social. A ampliação do sufrágio ― numa fase inicial apenas no universo dos eleitores masculinos, e mais tarde alargado às mulheres ― acompanhou o processo de revisão da teoria social e da antropologia política do constitucionalismo oitocentista, através do qual o homem burguês do imaginário liberal clássico foi substituído, no centro do universo político, pela sociedade plural do liberalismo social, caracterizada pelas suas múltiplas estruturas intermédias (associações, fundações, igrejas, empresas, sindicatos, cooperativas etc.) e pela institucionalização dos partidos políticos como mediadores da relação entre governados e governantes.

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7. O Dirigismo Constitucional O alargamento do catálogo de direitos fundamentais, e sobretudo a consagração constitucional de numerosos direitos sociais correlativos a deveres estaduais de prestação de bens, alterou de forma significativa a relação entre a Constituição e o Estado. Com efeito, alguns textos constitucionais, em particular aqueles que se inscrevem na chamada «terceira vaga de democratização», não se limitam a consagrar direitos sociais (à saúde, à educação, à habitação, à segurança social, entre outros), mas vinculam o Estado à organização de uma extensa rede de serviços públicos e ao desenvolvimento de um amplo programa de políticas públicas, como seja a criação de um serviço nacional de saúde geral, universal e gratuito, uma rede nacional de escolas públicas gratuitas, um sistema de segurança social unificado de protecção em caso de velhice, invalidez, viuvez e desemprego, ou o controlo das rendas no mercado de arrendamento e a provisão de habitação social. A estas acrescem as tarefas associadas aos direitos fundamentais de terceira e de quarta geração, nomeadamente em domínios como a protecção ambiental, a preservação da multiculturalidade, a protecção de dados, a utilização da informática e a política de apoio à investigação científica. A constituição não se esgota, pois, nas funções tradicionais de organização e limitação do poder público, constituindo este na qualidade de instrumento de execução das opções programáticas nela definidas. Por outras palavras, a constituição assume um papel dirigente em relação ao Estado, e em particular ao legislador ordinário. A afirmação de um constitucionalismo dirigente no contexto de um compromisso ideológico social-democrata, orientado para a construção e estabilização de programas sociais, contribuiu para esboroar as fronteiras entre as funções legislativa e administrativa. Por um lado, ao estender-se ao plano programático, nomeadamente através da definição mais ou menos precisa de opções de política pública, a Constituição reduz a liberdade de conformação política do poder legislativo, despromovendo-o em certa medida à função derivada ou motorizada de executar um programa político cujos traços mais nobres são fixados no plano constitucional. Por outro lado, a magnitude das tarefas que a Constituição confia ao legislador torna inevitável a cooptação por este da Administração Pública, habilitada a aprovar numerosos regulamentos que se não distinguem facilmente das leis no plano material.

8. A Erosão da Estatalidade Os imperativos constitucionais de protecção social, ambiental, da privacidade, da segurança colectiva e outros desideratos do constitucionalismo dirigente baseiam-se na presunção de que o Estado tem a capacidade de assegurar os

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pressupostos necessários à prestação desses bens e de controlar as ameaças que sobre eles impendem. Vale a pena ilustrar esta afirmação com alguns exemplos. As prestações sociais têm um peso muito elevado na despesa pública, o que coloca a política orçamental sob grande pressão do lado da receita, nomeadamente em matéria tributária e de endividamento. A segurança social, designadamente no que diz respeito às pensões de velhice, baseia-se na premissa de que o rácio entre trabalhadores e reformados se mantém em níveis toleráveis para aqueles. A tutela ambiental depende em larga medida da capacidade de reversão das alterações climáticas e de redução da pegada ecológica através do controlo da emissão de gases poluentes e da regulação do consumo de recursos não-renováveis. A coesão social e a segurança colectiva implicam a capacidade de gerir riscos como os fluxos migratórios em grande escala, as armas de destruição em massa ou os ataques terroristas. A presunção é cada vez mais insustentável. Assistimos hoje à desterritorialização dos pressupostos económicos, demográficos, ecológicos, securitários e humanos do bem-estar social, com a consequência inevitável da perda de capacidade de acção de uma organização de base territorial como é o Estado. As economias nacionais estão dependentes dos humores do comércio internacional e dos mercados financeiros. Os rendimentos e os capitais sobre os quais recaem impostos circulam com liberdade entre jurisdições, em busca de regimes fiscais favoráveis. A pirâmide demográfica das sociedades ocidentais tende a inverter-se, por força do efeito combinado do enorme aumento da esperança média de vida e da redução dramática das taxas de natalidade. As emissões globais de carbono e a utilização desregulada de activos ambientais estratégicos põem em causa a sustentabilidade ambiental à escala mundial. Por fim, as migrações, o terrorismo e as armas de destruição em massa constituem ameaças globais. A tudo isto é indispensável acrescentar, no caso dos Estados-membros da União Europeia, a integração na moeda única, que retira ao poder público a possibilidade de lançar mão da política monetária para acorrer a crises de endividamento, corrigir desequilíbrios na balança de pagamentos e influenciar a competitividade da economia nacional através da manipulação da taxa de câmbio. A erosão da estatalidade na era da globalização é acompanhada pela necessidade crescente de estruturas de governação supranacionais. Os fenómenos de integração regional e de cooperação internacional, tradicionalmente associados ao desejo de garantir a paz e a amizade entre os Estados, assumem-se cada vez mais como reacção dos poderes públicos estatais à emergência de uma sociedade global, cujos protagonistas ― como as organizações não-governamentais, empresas transnacionais, redes terroristas, agências de notação financeira, titulares de activos desmaterializados ― actuam para além da sua esfera de controlo.

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Mais do que abdicarem da soberania, os Estados procuram compensar a perda efectiva e irreversível de capacidade política através da participação em esferas de decisão transnacionais. Sucede que estas são deficientes em matéria de abertura democrática, de proximidade aos cidadãos e de transparência deliberativa, o que contribui para uma situação política esquizofrénica, em que poderes públicos internos, fortes no plano da legitimidade mas cada vez mais frágeis no da capacidade, coexistem com, e por vezes confrontam, autoridades supranacionais frágeis no plano da legitimidade mas cada vez mais fortes no da capacidade.

9. O Pluralismo Razoável O dirigismo constitucional baseia-se ainda na presunção de que há uma ampla convergência de pontos de vista em torno do programa de políticas públicas adequado aos deveres de protecção social e de outra natureza que impendem sobre o Estado. Presume-se que no seio da opinião pública e entre os partidos que concorrem pelo poder, as divergências dizem sobretudo respeito a aspectos instrumentais e marginais, que não prejudicam os numerosos, extensos, alargados e estáveis consensos de regime em que se traduz o compromisso social-democrata. A presunção é igualmente grande no domínio dos direitos de liberdade, em que as constituições, sobretudo as aprovadas a partir do último quartel do séc. XX, estabelecem numerosas regras detalhadas sobre as mais variadas matérias, como as garantias de processo criminal, a regulação dos meios de comunicação social, a política de asilo e extradição, a utilização da informática, a protecção da família e a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, para dar apenas alguns exemplos retirados do texto constitucional português. As sociedades democráticas contemporâneas, porém, caracterizam-se por um pluralismo alargado e obstinado de opiniões, não apenas no âmbito religioso, metafísico e ético, mas também em matéria de liberdades fundamentais, justiça social, política económica, organização administrativa e muitas outras questões incontornáveis da vida pública. As estantes das livrarias, os seminários académicos, as colunas de imprensa e as redes sociais estão saturados de argumentos rivais construídos com base em princípios comuns. As divergências estendem-se desde o plano elevado das teorias filosóficas da justiça até aos níveis mais prosaicos da doutrina económica e das políticas públicas nas áreas da saúde, da educação, da segurança social, da cultura e da protecção ambiental. Este pluralismo de opiniões, situado em todos os quadrantes da sociedade civil, incluindo o discurso académico, não pode ser atribuído apenas ou mesmo principalmente, como as elites tendem a fazer, à degeneração de um espaço público colonizado pela propaganda ou permeável ao tribalismo; corresponde, o mais das vezes, ao dissenso razoável entre cidadãos livres e responsáveis, no uso da sua capacidade deliberativa.

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O Conceito Pós-Moderno de Constituição Gonçalo de Almeida Ribeiro

No âmbito constitucional, o pluralismo razoável de interpretações do ideário liberal reflecte-se no consenso em torno de princípios estruturantes ― v.g., igualdade de tratamento, proibição do excesso, tutela da confiança, determinabilidade das leis, separação de poderes ― e dos direitos fundamentais ― dos clássicos direitos de liberdade aos direitos sociais e de terceira e quarta geração ―, acompanhado de uma grande controvérsia sobre as implicações concretas daqueles princípios e sobre o peso relativo e a concretização destes direitos. Por outras palavras, um pequeno conjunto de valores constitucionais partilhados serve de base a uma extensa série de programas políticos concorrentes, cada um dos quais informado de modo mais ou menos explícito por concepções morais, económicas, antropológicas, históricas e outras amplamente controvertidas. A título de exemplo, pense-se nas polémicas em torno dos limites à liberdade de expressão para tutela de minorias, da adopção por casais de pessoas do mesmo sexo, da incriminação do aborto e da maternidade de substituição, do papel da iniciativa privada na provisão de bens sociais como a saúde ou a educação, da distribuição justa dos sacrifícios ditados por uma crise de endividamento público, da sustentabilidade da segurança social ou da criação de quotas de género e raciais no acesso à educação superior, ao mercado de trabalho e a cargos públicos.

10. Uma Constituição Mínima A erosão da estatalidade e o pluralismo razoável sãos os dois factos fundamentais da nossa condição política, comprometendo irremediavelmente o constitucionalismo dirigente. Por um lado, o Estado já não pode servir de instrumento exclusivo de realização de um programa de políticas públicas cujos pressupostos ultrapassam a sua esfera de controlo; a constituição estatal perde a sua vocação abrangente, convertendo-se na lei fundamental de uma parcela da constelação política pós-nacional, necessariamente aberta às pretensões de autoridade de poderes de nível regional e global. Por outro lado, perante a controvérsia interminável que incide sobre a concretização e ponderação de princípios constitucionais e direitos fundamentais, a incorporação no texto constitucional de regras detalhadas e opções programáticas nessas matérias já não encontra respaldo na ficção de uma vontade popular homogénea; a constituição estatal perde a sua vocação dirigente, sob pena de usurpar aos cidadãos o poder de arbitrarem as suas discordâncias através dos procedimentos comuns de deliberação democrática. Nas comunidades políticas pós-estatais e pluralistas que são as nossas, a constituição tenderá por isso a ser, para salvaguarda da sua força normativa e legitimidade democrática, uma carta de princípios aberta às determinações do processo político ordinário e à articulação com centros de decisão supra-estatais.

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A principal missão do poder constituinte, resignado à precariedade da sua força e legitimidade, é a de instituir as condições orgânicas e procedimentais de autodeterminação colectiva. Só uma constituição aberta ao universo político multipolar e ao processo democrático pode honrar os seus compromissos perante os cidadãos e respeitar a diversidade dos seus vínculos mundividenciais. Em suma, só uma constituição mínima pode traduzir, na língua própria da pós-modernidade, o projecto de vida comum do constitucionalismo. Esta ideia de uma constituição mínima não se cofunde de modo algum com a defesa de um Estado mínimo, nem constitui um ardil retórico ao serviço de um programa político «neoliberal». A abertura democrática e internacional da constituição não implica prioridade alguma dos direitos de liberdade sobre os direitos de outras gerações, e muito menos a prevalência das liberdades económicas sobre as políticas sociais, ou a sacralização do mercado e a consagração de uma política de liberalização, desregulação e privatização da economia. Trata-se apenas de reconhecer que cabe aos cidadãos escolher entre os vários programas de vida colectiva que concorrem pelo seu apoio, e que o terão de fazer através da participação democrática em vários níveis de governação que afectam as suas vidas. Se é certo que as autoridades supranacionais não detêm, o mais das vezes, o currículo democrático e a transparência deliberativa exigíveis, não é menos verdade que a correcção desse défice de legitimidade não pode, dada a desterritorialização irreversível dos fenómenos sociais na era da globalização, passar pela devolução de poder ao Estado. Pelo contrário, resta percorrer o caminho estreito da imaginação política, da arquitectura institucional, da reforma dos procedimentos e do amadurecimento da cultura pública supranacionais. Não admira, por essa razão, que um tema central da teoria constitucional contemporâneo seja o do constitucionalismo para além das fronteiras estatais, do europeu ao global.

11. A Justiça Constitucional A ideia de uma constituição mínima tem também implicações decisivas para a teoria da justiça constitucional. A abertura democrática e internacional de uma carta de princípios pode ser facilmente adulterada por uma jurisdição constitucional activista, impressionada com a margem de controlo judicial da actividade legislativa proporcionada por parâmetros constitucionais com força irradiante e conteúdo lasso, como sejam os princípios da igualdade e da protecção da confiança ou uma boa parte das normas que consagram direitos fundamentais. Com efeito, a abertura dos princípios a concretizações diversas e a sua aplicação sob reserva de ponderação com princípios de sentido contrário, tanto pode tender a ampliar a liberdade de conformação política do legislador

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ordinário quanto a facilitar um governo de juízes, refugiado na porosidade das fronteiras entre o jurídico e o político. O constitucionalismo democrático não é neutro quanto à escolha entre essas opções. A sua matriz implica a preferência pelo juízo de órgãos com legitimidade representativa forte e responsáveis politicamente perante os cidadãos. O normal em democracia é que o juízo de uma maioria de representantes eleitos prevaleça sobre a de uma maioria de juízes sem legitimidade democrática directa e eximidos do dever de prestar contas da sua actividade perante os eleitores. A prevalência da jurisdição constitucional sobre o processo político ordinário, quando estão em causa as operações controvertidas de concretização e ponderação de princípios abstratos e indeterminados, justifica-se apenas nos casos em que a independência e irresponsabilidade eleitoral dos juízes os colocam numa posição de vantagem relativa segundo o ideal de autogoverno colectivo a que a o constitucionalismo democrático aspira. É esse o caso quando as decisões do legislador, sujeitas a um controlo de evidência, se revelam arbitrárias, ou quando reflectem a desconsideração ou o desrespeito da maioria pela dignidade, os interesses ou as opções de vida pacíficas de minorias. Os princípios constitucionais devem, pois, ser interpretados como normas de acção política dirigidas em primeira instância ao legislador, e apenas a título secundário como normas de controlo judicial, cuja aplicação está sujeita ao preenchimento das condições de legitimidade que se exigem a este à luz do princípio democrático. Esta contenção judicial não deve, porém, ser confundida com a defesa de uma jurisprudência constitucional minimalista no plano da fundamentação, segundo o paradigma das decisões «incompletamente teorizadas» ou a máxima one case at a time. Pelo contrário, o contexto multipolar e pluralista em que se inscreve a constituição na pós-modernidade exige dos juízes constitucionais um esforço intelectual acrescido, na procura dificílima de princípios claros e gerais de articulação entre jurisdições de diferentes níveis e entre estas e os procedimentos de decisão política que gozam de legitimidade democrática directa.

12. Conclusão Às constituições da nossa era, caracterizada pelos factos da globalização e do pluralismo, cabe instituir os órgãos e procedimentos necessários para o exercício da autoridade democrática e firmar os princípios de uma comunidade de indivíduos livres e iguais. Não lhe cabe ser um regulamento fechado da vida colectiva. A era do constitucionalismo dirigente chegou definitivamente ao seu termo. Só um constitucionalismo recatado, principial, aberto e dúctil, salvaguardado por jurisdições constitucionais prudentes e criteriosas, pode preservar a normatividade e legitimidade da constituição na nossa condição pós-moderna. 14


SOBRE A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL: SUA EVOLUÇÃO E SITUAÇÃO ATUAL Mário Aroso de Almeida1

1. Surge recorrentemente entre nós, no debate público, a questão da autonomia da jurisdição administrativa e fiscal. Foi o que, mais uma vez, voltou, nos últimos tempos, a suceder. E, desta vez, com um argumento novo (e surpreendente) em relação àqueles que costumavam ser esgrimidos no passado: o de que estes tribunais não funcionam de modo adequado, acumulando volumes de processos pendentes sem paralelo nos tribunais judiciais. Pela nossa parte, não nos parece que a autonomia da jurisdição administrativa e fiscal esteja verdadeiramente em causa, o que, além do mais, exigiria, desde logo, um acordo de revisão constitucional, nesse sentido, entre os principais partidos políticos, que, de todo em todo, não se perspectiva. A verdade, porém, é que a existência de uma jurisdição administrativa e fiscal forte e prestigiada é fundamental num Estado de Direito democrático, pelo que não se afigura saudável o desgaste a que, entre nós, a sua imagem é recorrentemente submetida na opinião pública. Mais do que discutir a questão, em si mesma, da autonomia da jurisdição administrativa e fiscal, parece-nos, no entanto, mais interessante refletir sobre as razões pelas quais, ao contrário do que sucede em tantos outros países, tem sido e continua, ainda hoje, a ser, entre nós, instilada na opinião pública a dúvida sobre o sentido e a utilidade da autonomia da jurisdição administrativa e fiscal. Mais do que isso: refletir sobre as razões pelas quais, 30 anos após a sua consagração na Constituição — aniversário que se comemora este ano, sem que ninguém 1

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Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto)

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Sobre a jurisdição administrativa e fiscal: sua evolução e situação atual Mário Aroso de Almeida

pareça dar por ele... —, a jurisdição administrativa e fiscal não se conseguiu consolidar, na nossa comunidade jurídica, como um dado adquirido e parece ser, por isso, chamada a justificar a sua existência. Vejamos, pois, quanto à questão da autonomia e, depois, sobretudo quanto à questão das razões pelas quais, a nosso ver, ela continua a ser questionada entre nós. 2. Começando pela questão da autonomia, pode hoje dizer-se que a existência de tribunais especializados na apreciação de litígios de natureza administrativa e fiscal é uma constante em praticamente todos os países ocidentais e que, até nos países do mundo anglo-saxónico, que não tinham essa tradição, a evolução se orientou no sentido do progressivo e sempre crescente reconhecimento da necessidade de instâncias próprias para a fiscalização do exercício do poder pelas autoridades públicas. É, com efeito, geralmente reconhecido nas sociedades modernas que a vastidão e complexidade do universo das relações jurídicas disciplinadas pelo Direito Administrativo e pelo Direito Fiscal justifica e exige que os litígios que delas emergem sejam dirimidos por juízes especializados. Justifica-o e exige-o a cada vez mais complexa e intensa litigiosidade que se gera em torno do exercício dos poderes públicos, em consequência da forte intervenção que projeta na vida social, designadamente nos planos autorizativo e de fiscalização, dirigido à prevenção de riscos, e da regulação da actividade desenvolvida pelos agentes económicos. Ao que acresce o cada vez mais forte reconhecimento de que, num Estado de Direito democrático, os sujeitos privados são titulares de direitos e interesses dignos de tutela jurídica perante as autoridades públicas, de onde resulta uma enorme pressão da sociedade sobre a Justiça, a quem é exigida uma tutela cada vez mais eficaz contra as actuações ilegítimas dessas autoridades. Mas, do mesmo passo, existe a consciência de que a intervenção do poder judicial, neste domínio, não deve ultrapassar certos limites, na medida em que essa intervenção tem por objeto fazer prevalecer o Direito sobre as eventuais condutas ilegítimas das autoridades administrativas. Como se compreende, esta é uma incumbência que, pela delicadeza que envolve, se reveste, em qualquer ordenamento jurídico, da maior importância, mas também da maior complexidade, pelo que bem justifica o mais elevado grau de especialização dos magistrados chamados a desempenhá-la. E, no caso português, em que a tradição forjou e a Constituição acabou por consagrar uma jurisdição própria nesse domínio, não se vê que razões possam justificar a sua extinção. Em sentido contrário, é invocado nos meios da magistratura judicial o exemplo do Direito espanhol, em que existe um único Tribunal Supremo. Mas a 16


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verdade é que também em Espanha existem, em todos os graus de jurisdição, juízos especializados em matéria administrativa e fiscal. O que apenas sucede é que essa especialização é assegurada de modo diferente daquele que é utilizado entre nós: através da existência de julgados especializados nas instâncias inferiores e, no topo da hierarquia, de uma secção especializada dentro do Tribunal Supremo. Por conseguinte, o que demonstra o exemplo da Espanha não é que a especialização em matéria administrativa e fiscal não é necessária e não deve ser assegurada, mas apenas que essa especialização não exige a necessária instituição de uma dualidade de jurisdições, podendo ser, teoricamente, assegurada pela criação de tribunais especializados no seio dos próprios tribunais judiciais de primeira instância, assim como de secções especializadas nos tribunais judiciais de segunda instância e no Supremo Tribunal de Justiça. Mas importa sublinhar que, mesmo nesse modelo, a necessidade de se assegurar a efetiva especialização dos juízes administrativos e fiscais exige que a carreira dos juízes administrativos e fiscais seja separada da dos demais juízes, de modo a que a respetiva evolução na carreira e consequente promoção aos tribunais superiores se processe como se de uma jurisdição separada se tratasse. Pois, a não ser assegurado este requisito fundamental, a eliminação da dualidade de jurisdições conduziria inevitavelmente à diluição dos juízes administrativos e fiscais, que são em reduzido número, no universo dos juízes dos tribunais judiciais, cuja carreira não contempla, e mal, qualquer espécie de especialização. O que faria com que, senão mesmo por efeito da livre circulação de juízes entre tribunais especializados e não especializados, pelo menos por ocasião da sua transição dos tribunais de primeira instância para os de segunda instância, ou destes para o Supremo, juízes sem qualquer formação específica e que nunca antes julgaram matéria administrativa ou fiscal passassem a fazê-lo – e, para mais, quando em instâncias superiores, com responsabilidades acrescidas. Sem prévia institucionalização da especialização de carreiras dos juízes, nunca poderia, pois, haver eliminação da dualidade das jurisdições sem grave prejuízo para o valor que a autonomia da jurisdição administrativa e fiscal visa assegurar. 3. Avançando para a reflexão sobre as razões pelas quais, de tempos a tempos, renasce, entre nós, a discussão sobre a autonomia da jurisdição administrativa e fiscal, essas razões prendem-se, a nosso ver, com a circunstância de que a comunidade jurídica portuguesa não valoriza esta jurisdição porque ela não corresponde a uma realidade que se tenha verdadeiramente enraizado na cultura jurídica nacional. Como, na verdade, assinalou Sérvulo Correia, a história do contencioso administrativo português anterior ao Estado Novo caracterizou-se por uma cí-

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clica hesitação entre o modelo dualista francês, de autonomia orgânica do contencioso administrativo, e um modelo monista, que atribui o julgamento dos litígios administrativos aos tribunais comuns2, sucedendo-se, ao longo de décadas, reformas legislativas que instituíram, extinguiram, restauraram, voltaram a extinguir e voltaram a restaurar o contencioso administrativo. Ora, como nota Maria da Glória Dias Garcia, “os múltiplos modelos de organização da justiça administrativa que se sucederam no tempo em Portugal impediram a criação, em torno dela, de uma auréola de autoridade”3. Ao contrário do que sucedeu noutros países europeus, não se criaram, assim, entre nós, as condições, durante o período anterior ao Estado Novo, para a consolidação de um contencioso administrativo prestigiado. Pode, pois, dizer-se que foi só durante o período do Estado Novo que o contencioso administrativo se consolidou em Portugal. Mas consolidou-se como um instrumento do regime político autoritário da época, tão determinantemente conotado com esse regime que não lhe poderia sobreviver. Com efeito, o contencioso administrativo do Estado Novo era constituído por órgãos administrativos que não eram verdadeiros tribunais, pelo que correspondia a um corpo estranho em relação ao Poder Judicial: tribunais a sério, os únicos tribunais que existiam e, portanto, davam corpo ao Poder Judicial, eram os tribunais judiciais. Foi, portanto, esse contencioso administrativo que se consolidou durante o Estado Novo. Como explicou Marcello Caetano, de forma, como sempre, lapidar, “estes tribunais conservaram o seu carácter de órgãos da Administração, de tal forma que a apreciação da legalidade dos atos administrativos permanece uma fiscalização interna que o Poder administrativo admite sem quebra da sua autoridade. Com efeito, se os atos administrativos fossem susceptíveis de discussão nos tribunais judiciais, o Poder Judiciário interviria sobre a Administração, condicionaria os seus passos, imporia a sua interpretação da lei, reduzindo-a a uma subordinação incompatível com o seu poder” 4. E, por outro lado, os órgãos do contencioso administrativo, não só não eram verdadeiros tribunais, como não tinham poderes de plena jurisdição, mas poderes muito limitados de apreciação e de pronúncia, que, no essencial, se cingiam ao poder de anular ou declarar a nulidade dos atos ilegais da Administração e que, mesmo nesse plano, não se estendiam ao poder de fazerem executar as suas decisões. Por conseguinte, a efetividade da tutela que o contencioso administrativo proporcionava era muito limitada. Retomando as palavras de Maria 2 Cfr. Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, vol. I, Lisboa, 2005, p. 442. 3 Cfr. Maria da Glória Dias Garcia, Justiça Administrativa, in Dicionário Jurídico da Administração Pública — Suplemento, vol. II, p. 135. 4 Cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª ed., Coimbra, 1973, pp. 36-37.

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da Glória Dias Garcia, “o facto de, por aplicação do regime jurídico da execução das decisões de procedência dos recursos, a última palavra pertencer ao Governo retirou aos tribunais a capacidade de adquirir autoridade para se impor à ação da Administração”. Ao que acrescia que “os tribunais administrativos se enredavam em inúmeros formalismos que conduziam, na prática, à inutilidade de múltiplas decisões” 5, sendo elevadíssimos os índices de absolvição da instância. O contencioso administrativo do Estado Novo era o modelo apropriado ao carácter autoritário do regime. Mas em 1973 existiam apenas cinco juízes na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo e esses juízes eram suficientes para dar resposta, em cada ano, aos 250 novos processos que nela davam entrada, sem que houvesse acumulação de pendências. Ou seja: o contencioso administrativo quase não existia e, excluindo o universo dos funcionários públicos, que eram aqueles que em maior número a ele recorriam, a sua existência era olimpicamente ignorada pelo comum dos cidadãos. Com o termo do Estado Novo, foi, entretanto, rapidamente assumido o entendimento de que os litígios de natureza administrativa não deviam ser subtraídos ao Poder Judicial, para serem submetidos à apreciação de órgãos administrativos que não fossem verdadeiros tribunais, e, por conseguinte, que esses litígios deviam passar a ser dirimidos por verdadeiros tribunais, integrados no Poder Judicial. A questão que, a partir daí, se colocou foi, por conseguinte, a de saber se, para a concretização desse desiderato, os antigos órgãos do contencioso administrativo deviam ser extintos, sendo as suas competências transferidas para os tribunais judiciais, ou se, pelo contrário, eles deviam continuar a existir, transformados em verdadeiros tribunais. Ora, num primeiro momento, o caminho seguido foi o da manutenção dos órgãos do contencioso administrativo, transformados em verdadeiros tribunais. Mas é significativo que a jurisdição administrativa não tenha sido consagrada na Constituição de 1976, que, na sua redação primitiva, se limitou a admitir a possibilidade da existência de tribunais administrativos, deixando ao legislador ordinário a faculdade de decidir sobre se eles deveriam existir ou não. Nesse momento crucial, não foi, portanto, assumida pela Constituição a opção de que os tribunais administrativos dariam corpo a um novo ramo do Poder Judicial, uma nova jurisdição, separada daquela que integrava os tribunais judiciais. Pelo contrário: o que resultou da Constituição foi apenas que os três tribunais administrativos então existentes, com o reduzido número de juízes em comissão de serviço de que dispunham, continuariam a existir, como uma realidade avulsa, até que o legislador ordinário decidisse se os extinguia ou não. E 5 Cfr. Maria da Glória Garcia, op. loc. cits..

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esta situação de ambiguidade manteve-se ao longo de anos, durante o período crucial da construção do Portugal democrático. Como é, para nós, evidente, residiu aqui a semente das dificuldades que, ao longo dos últimos 40 anos, se opuseram à consagração e consolidação, no regime democrático português, da jurisdição administrativa e fiscal. O que fez com que fosse contra ventos e marés que, muito lentamente e com enormes dificuldades, a jurisdição viesse a ganhar corpo — sempre contra aqueles que pugnavam contra a sua existência. Parece-nos, hoje, na verdade, evidente que todos os passos que, ao longo das últimas décadas, foram dados no sentido da construção, no Estado de Direito democrático português, de uma jurisdição administrativa e fiscal autónoma em relação aos tribunais judiciais contaram com a firme oposição dos órgãos de poder da magistratura judicial. Mas não é, para nós, menos claro que, se essa oposição se conseguiu revelar tão eficaz na forma como, ao longo de todos estes anos, conseguiu obstaculizar, primeiro à consagração e, depois, à consolidação da jurisdição administrativa e fiscal, isso deveu-se à falta de sensibilidade da comunidade jurídica nacional como um todo para a importância de tal jurisdição: responsabilidade do poder político, naturalmente, que, salvo decisivas, mas raras e pontuais exceções (em 1984, 1989 e 2002), foi sempre instrumento dos interesses contrários à jurisdição administrativa e fiscal; mas também, obviamente, da comunidade jurídica nacional como um todo, que, sem prejuízo dos alertas que foram sendo lançados pelos especialistas, a tudo assistiu, ao longo de mais de 40 anos, sem qualquer sinal de indignação e protesto; e da própria jurisdição, que, sobretudo a partir de certa altura, não fez, a nosso ver, o que podia e devia para mobilizar a opinião pública para a sua causa. 4. A nosso ver, é possível identificar duas fases no longo e árduo caminho que, nesta matéria, foi trilhado ao longo destes mais de 40 anos — duas fases que qualificaríamos como a fase da batalha da consagração da jurisdição e a fase da batalha da consolidação da jurisdição. Na verdade, foi contra ventos e marés que só em 1984 veio a ser aprovado o primeiro Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e que só na revisão de 1989 a autonomia da jurisdição administrativa e fiscal veio a encontrar consagração constitucional. Foi a longa batalha da consagração da jurisdição, contra aqueles que pugnavam pela extinção dos tribunais administrativos e pela diluição das suas competências no universo das competências dos tribunais judiciais. A consagração na Constituição, em 1989, da autonomia da jurisdição administrativa e fiscal traduziu o reconhecimento, ao mais alto nível do ordenamento jurídico nacional, de que a existência de uma justiça administrativa e

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fiscal forte e prestigiada era fundamental num Estado de Direito democrático. Havia, no entanto, a seguir, que dotar a jurisdição da organização, das regras de funcionamento e dos recursos qualificados e na quantidade mínima indispensável para lhe dar corpo. Ora, o mínimo que se pode dizer a este propósito é que, mesmo depois de vencida, com a revisão constitucional de 1989, a batalha da consagração da jurisdição administrativa e fiscal, o regime democrático não esteve, ao longo dos 30 anos seguintes, à altura das responsabilidades que se lhe impunham no plano da consolidação da jurisdição, da maior importância para a plena realização do Estado de Direito, remetendo-a para um estatuto de óbvia menoridade. À batalha da consagração da jurisdição, seguiu-se, pois, a batalha da consolidação da jurisdição, que se prolonga até hoje e na qual, a nosso ver, também se podem identificar duas fases: a fase da miséria, que se prolongou até 2004, e a fase da penúria, que se seguiu a partir daí. Em primeiro lugar, a fase da miséria. E, porque a memória é fraca e 40 anos é mais do que o horizonte temporal de vida de muitos dos que, neste momento, leem este texto, parece-nos oportuno recordar os factos. Começaremos, assim, por recordar que, no momento em que, dez anos após o 25 de abril de 1974, foi aprovado o ETAF de 1984, os processos administrativos novos que davam entrada por ano no Supremo Tribunal Administrativo eram jà em número cerca de oito vezes superior ao daqueles que aí davam entrada em 1973. Mas, durante esses dez anos, os tribunais administrativos permaneceram os mesmos que tinham sido herdados do Estado Novo: o Supremo Tribunal Administrativo e as auditorias administrativas de Lisboa e Porto. E as únicas novidades que, nesse plano, trouxe o ETAF de 1984 resumiram-se à mudança do nome das auditorias administrativas, que passaram a chamar-se Tribunais Administrativos de Círculo, e à criação de mais um tribunal dessa categoria, com sede em Coimbra. Foi assim que, apesar do impressionante crescimento da procura da justiça administrativa que se ia fazendo sentir ano após ano, a situação se manteve até que, em 1997, foi instituído o Tribunal Central Administrativo, que, por nascer dotado de meios manifestamente insuficientes, mais do que uma solução, veio a ser um novo problema. E foi nestas condições lamentáveis que a organização dos tribunais administrativos permaneceu até 2004, sem que, durante quase trinta anos, o legislador democrático se tivesse mostrado, pois, interessado em dar resposta à evidente necessidade de uma reforma dos tribunais administrativos. Por outro lado, sucedeu que, ao longo dos vinte anos durante os quais vigorou o ETAF de 1984, nunca foi dada aplicação ao regime que nele se encontrava consagrado de recrutamento próprio de juízes para os tribunais administrativos e fiscais, pelo que, também nesse plano, o legislador nacional nada fez para dar corpo à jurisdição que a Constituição consagrou em 1989. Ao contrário do que previa o ETAF desde 1984, a jurisdição administrativa e fiscal não dis21


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punha, pois, de um corpo próprio de magistrados, continuando, nesse plano, os seus tribunais a funcionar tal como sucedia antes: com um número reduzido de tribunais, cada vez mais incapazes de dar resposta às necessidades e dotados de um reduzido número de juízes em comissão de serviço, provenientes das magistraturas judicial e do Ministério Público. Entretanto, sobreveio o milagre da reforma de 2002, que veio, finalmente, dotar a jurisdição de uma rede de tribunais de primeira instância e de um corpo próprio de juízes. Tratou-se, porém, de uma reforma cuidadosamente pensada, mas que, em virtude de contingências políticas que são conhecidas, não pôde ser concretizada nos termos em que tinha sido concebida: com efeito, os diplomas da reforma, o novo ETAF e o CPTA, foram publicados num contexto de abrupta interrupção de legislatura, a que se seguiu a realização de eleições legislativas; durante o ano de 2002, foi, por diversas vezes, equacionada pelo poder político a hipótese de não dar execução à reforma, adiando, sine die, a sua entrada em vigor; e se, quase por milagre, a reforma acabou por se tornar uma realidade, em 1 de janeiro de 2004, a verdade é que ela foi concretizada no terreno em condições claramente insuficientes e, por outro lado, que à sua entrada em vigor não se seguiu a aprovação de nenhum dos diplomas complementares que se encontravam previstos no novo ETAF, designadamente no que dizia respeito ao estatuto dos juízes da jurisdição e ao respetivo regime de recrutamento. À fase da miséria seguiu-se, pois, a fase da penúria, em que a jurisdição tem vivido até hoje. Com efeito, cumpre recordar que os tribunais administrativos e fiscais que foram instalados no início de 2004 não foram, desde o início, dotados, em razão dos fortes constrangimentos orçamentais que rodearam o respetivo processo de instalação, dos recursos humanos que tinham sido identificados como necessários. Entraram, assim, em funcionamento com um significativo défice de juízes e funcionários, agravado por dificuldades decorrentes do novo sistema informático instalado, que nunca vieram a ser cabalmente resolvidas. E, por outro lado, a jurisdição viu-se impedida de recrutar juízes para os seus quadros ao longo dos anos que se seguiram à reforma, por inexistência da base legal necessária para o efeito, que dependia da aprovação dos diplomas complementares ao novo ETAF, que nunca chegou a concretizar-se. Esse recrutamento só veio, por isso, a tornar-se possível após a aprovação, em 2008, da atual lei do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), que, apesar das suas evidentes deficiências, acabou por vir dar o enquadramento normativo necessário ao recrutamento e formação dos juízes para a jurisdição: isto, quase 20 anos após a consagração constitucional da jurisdição e 5 anos após a reforma que instituiu os quadros de juízes que cabia preencher! Sucede, entretanto, que, nem a partir daí, o poder político entendeu dever dar resposta à situação cada vez mais dramática em que a jurisdição se encontra22


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va, mas, pelo contrário, foi deixando que ela se fosse agravando mais e mais, ao não proceder, ao longo dos anos que se seguiram, à regular abertura no CEJ, e em número adequado de vagas, de concursos de recrutamento de juízes para a jurisdição. Basta dizer que, ao longo dos dez anos subsequentes à entrada em vigor do atual ETAF, em 1 de janeiro de 2004, a jurisdição só por três vezes teve oportunidade de proceder ao recrutamento de juízes, e sempre em pequena quantidade, através de um concurso extraordinário e de dois recrutamentos já realizados no âmbito da Lei do CEJ de 2008. Na verdade, de 2008 para cá, sucessivos Governos não abriram concursos de recrutamento de juízes para a jurisdição administrativa e fiscal ou abriram concursos para vagas em número muito insuficiente. E tudo isto, num contexto, como foi o dos últimos 45 anos, de crescimento em proporções geométricas da procura da justiça administrativa e fiscal. 5. Como foi referido no início, um argumento que é hoje esgrimido em defesa da extinção dos tribunais administrativos e fiscais funda-se na situação dramática de afundamento em que esses tribunais se encontram, acumulando volumes de processos pendentes sem paralelo nos tribunais judiciais. O argumento não pode deixar de surpreender, na medida em que o elevado volume de pendências existente nos tribunais administrativos e fiscais não pode ser critério para a extinção destes tribunais. Uma eventual opção nesse sentido só poderia assentar no reconhecimento de que não é útil, nem necessária, a separação dos tribunais administrativos e fiscais dos restantes tribunais. Pelo contrário, se a existência autónoma de tribunais especializados em matéria administrativa e fiscal for reconhecida como útil e necessária, o que se impõe não é acabar com esses tribunais porque eles alegadamente funcionam mal, mas criar as condições para que eles funcionem de modo adequado. Mas o que, quanto a esse ponto, importa sobretudo dizer, como corolário de tudo o que foi dito até aqui, é que, se os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal se debatem hoje com um gravíssimo problema de acumulação de pendências, essa situação nada tem de surpreendente e não corresponde a uma inevitabilidade, que resulte da natureza dos tribunais administrativos e fiscais, mas resulta, no essencial, do desinteresse com que, lamentavelmente, estes tribunais têm sido tratados pelo poder político, que os tem relegado para segundo plano no contexto do sistema de justiça, sem os dotar dos meios mínimos indispen-

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sáveis para dar resposta ao crescimento da procura, no que em nada abona em favor do nosso Estado de Direito democrático 6. É, pois, urgente dotar a jurisdição administrativa e fiscal dos meios necessários para que ela possa cumprir a missão que a Constituição lhe confia. Impõe-se que o recrutamento de juízes para os tribunais administrativos e fiscais se passe a processar de modo regular, com periodicidade anual, e que, no imediato, se proceda ao recrutamento de um contingente reforçado, como única forma de ultrapassar o atraso acumulado dos últimos anos e permitir recuperar as elevadas pendências existentes. E é indispensável proporcionar aos juízes condições dignas de trabalho, através de serviços adequados de secretariado e assessoria, que permitam dispensá-los de tarefas menores para poderem concentrar-se naquilo que não pode deixar de ser feito por eles. Um ponto nos parece, em todo o caso, seguro: a situação em que a jurisdição administrativa e fiscal se encontra deve-se, como já foi dito, ao desinteresse com que, lamentavelmente, ela foi sendo tratada pelo poder político ao longo das décadas que o regime democrático leva de vida, perante a indiferença da comunidade jurídica nacional, que, como foi dito, a tudo foi assistindo, ao longo de todos esses anos, sem qualquer sinal de indignação e protesto. No ano em que, em silêncio, comemora o 30.º aniversário da sua consagração na Constituição, a jurisdição administrativa e fiscal ainda não se consolidou, pois, no Portugal democrático — e é por isso que, a nosso ver, a sua autonomia continua a ser, ainda hoje, posta em causa.

6 Fazendo nossas as palavras da Juíza Conselheira Dulce Neto, e, boa hora eleita Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, “o problema não reside no modelo constitucional de organização judiciária portuguesa. Reside essencialmente no facto de estes tribunais nunca terem sido dotados de meios e de recursos para dar resposta atempada ao enorme volume de litigância em matéria tributária e à sua complexidade. Reside em pendências excessivas que, desacompanhadas de adequado e oportuno investimento no modo como operam estes tribunais, inutilizaram a racionalidade associada a um bom funcionamento e a uma boa gestão. Reside, no fundo, na circunstância de estes tribunais terem sido, ao longo de décadas, negligenciados pelo poder político, quando se impunha precisamente o contrário, isto é, uma atenção acrescida e um investimento reforçado perante o aumento da litigância e o acréscimo da procura”: cfr. Dulce Neto, Organização e funcionamento da justiça administrativa e tributária em Portugal — justiça tributária, in Organização e funcionamento da justiça administrativa e tributária, Braga, 2019, p. 40.

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SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DOS ATOS PRATICADOS EM EXECUÇÃO FISCAL1 Joaquim Freitas da Rocha2

Sumário: 1. Colocação e pressupostos; 2. Modelos de execução coerciva de dívidas tributárias; 2.1. Modelo puramente administrativo; 2.2. Modelo puramente jurisdicional; 2.3. Modelo misto; 3. A ambiguidade do modelo português; 4. A natureza jurídica dos atos praticados no processo de execução fiscal; 4.1. Atos não jurisdicionais; 4.2. Atos jurisdicionais; 5. Propostas de simplificação.

1. Colocação e pressupostos Do ponto de vista científico-jurídico, o tema que constitui o núcleo central das presentes reflexões (a natureza jurídica dos atos praticados em execução fiscal) não é de apreensão cognoscitiva simples nem é suscetível de uma abordagem metodologicamente linear, desde logo por não se materializar numa única questão à qual deva ser apresentada uma única resposta. Pelo contrário, trata-se de um tema complexo que convoca um conjunto de questões e problemas cuja abordagem e eventual resolução depende da interseção de várias coordenadas que não são frequentemente consideradas de modo unitário e sistematizado. A tal acresce a dubiedade do ordenamento jurídico posto, pois a aparente simplicidade que encerra a disposição normativa mais relevante na matéria (o art.º 103.º, n.º 1, da LGT) é colocada em crise por várias outras disposições le1 Com o específico intuito de integrar a coletânea de intervenções da edição de 2019 dos Encontros de Professores de Direito Público, o presente texto constitui uma versão abreviada de um original publicado in Execução fiscal (e-book), Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2019, pp. 35 e ss. 2 Professor na Escola de Direito da Universidade do Minho.

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gais, e pela pluralidade de decisões jurisprudenciais que já há muito denunciam fragilidades inerentes. Antes de avançar, importa firmar claramente as fronteiras das possibilidades cognoscitivas aqui em debate: o presente texto não assume pretensões utilitárias ou pragmáticas, o que significa que não se intenta nesta sede encontrar as soluções adequadas para a aplicação das normas jurídico-tributárias ao caso em concreto. Tal é função dos órgãos aplicativos, designadamente, os Tribunais e os órgãos administrativos. Pela nossa parte, procura-se apenas estudar as questões e tentar encontrar uma coerência de sentido, procedendo a uma interpretação jurídico-científica, a qual — utilizando as sábias palavras do clássico Kelsen — «não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica»3.

2. Modelos de execução coerciva de dívidas tributárias Uma simples análise jurídico-comparativa, a partir das características dominantes das normas e arranjos organizatório-judiciais dos diferentes ordenamentos, permite identificar alguns modelos de execução coerciva de dívidas tributárias (e, eventualmente, outras dívidas que, para estes efeitos, sejam equiparadas, de modo direto ou indireto) 4. Três merecerão aqui especial menção: um modelo puramente administrativo, um modelo puramente jurisdicional e um modelo híbrido ou misto.

2.1. Modelo puramente administrativo Em primeiro lugar, é possível vislumbrar-se um modelo puramente administrativo, no âmbito do qual a tramitação conducente à cobrança coerciva de dívidas de natureza tributária assume natureza exclusivamente administrativa, podendo falar-se, em rigor, num autêntico procedimento coercivo de cobrança.

3 Cfr. Kelsen, Hans, Reine Rechtslehre, tradução portuguesa: Teoria pura do Direito, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, p. 387. 4 Impõe-se, desde já, uma pequena nota de feição terminológica: a, assim denominada, “execução fiscal” acaba por ser, na realidade, uma execução tributária, e assim deveria ser denominada, atento o seu objeto primordial (dívidas de natureza tributária e não apenas dívidas de natureza fiscal). Todavia, por razões de tradição discursiva (que não se restringem ao ordenamento jurídico-normativo português), e apenas por elas, manter-se-á ainda a utilização da primeira. Seja como for, sendo tarefa (indeclinável e obrigatória) do criador normativo edificar um sistema que, dos pontos de vista lógico e discursivo, se apresente coerente e claro, impor-se-á, a prazo, uma atualização do instrumentário conceitual.

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Será o caso, por exemplo, do que sucede nos ordenamentos jurídicos alemão 5, espanhol 6 ou francês 7. De acordo com este arquétipo, a cobrança coerciva não se distingue substancialmente da cobrança dita voluntária ou espontânea, somente se distinguindo quanto aos instrumentos utilizados e quanto ao momento, na medida em que apenas se efetivará numa fase patológica do desenvolvimento da relação jurídica tributária, após o respetivo prazo de pagamento normal ter decorrido. De resto, trata-se de uma genuína tramitação procedimental stricto sensu, (i) efetivada por órgãos de natureza administrativa — ou em nome destes —, (ii) assente na prática de atos orgânica e materialmente administrativos, e (iii) eventualmente sujeita a controlo ou sindicância administrativa de segundo grau. Na realidade, nestes modelos não ressaltam dúvidas quanto à natureza da tramitação cobratória executiva, nem quanto à natureza ou ao estatuto da entidade que nela atua, sendo suficiente a alusão aos seguintes exemplos literais: I No ordenamento alemão é feita menção a um Verwaltungsweg e a Vollstreckungsbehörden (as quais são os Finanzämter e os Hauptzollämter) 8; II No ordenamento espanhol, o legislador é até muito mais enfático e claro, ao referir, sem ambiguidades, que [e]l procedimiento de apremio es exclusivamente administrativo. La competencia para entender del mismo y resolver todas sus incidencias corresponde únicamente a la Administración tributaria 9; III Por sua vez, no ordenamento francês, o criador normativo refere-se claramente a comptables publics compétents par arrêté du ministre chargé du budget, ou em huissier de justice, ou ainda em tout agent de l’administration habilité à exercer des poursuites au nom du comptable 10. Outrossim, o legislador, nesses ordenamentos, não hesita em considerar que os atos de cobrança em causa são verdadeiros atos administrativos — referindo-se, por exemplo, a Verwaltungsakte 11 —, considerando-os indubitavel5 Cfr. a parte VI da AO (Vollstreckung) e §§ 249 e ss. 6 Cfr. a Sección 2 (procedimiento de apremio) da LeyGT e art.os163 e ss.. 7 Cfr. o Titre IV (Le recouvrement de l’impôt) do LPF e art.os L 252 e ss.. 8 Cfr. § 249 (1) da AO. 9 Cf. art. 163 da LeyGT. 10 Cfr., respetivamente, artigos L. 252 e L. 258 A, n.º 1, do LPF. 11 Cfr., uma vez mais, § 249 (1) da AO.

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mente impugnáveis por meio das garantias administrativas de reação ao dispor dos contribuintes ou outros obrigados tributários (Einspruch 12, Contestation 13).

2.2. Modelo puramente jurisdicional Em contraposição ao modelo anteriormente exposto, é possível conceber a cobrança coerciva de dívidas de natureza tributária como uma tramitação exclusivamente jurisdicional, materializada num verdadeiro processo, e no âmbito da qual as respetivas atuações assumem a forma de atos processuais, muitos deles (os atos decisórios) com natureza jurisdicional. Assim se passam as coisas, por exemplo, no âmbito de alguns ordenamentos de matriz latino-americana, como o brasileiro ou o uruguaio. Com efeito, no primeiro, o legislador conota expressamente com o qualificativo judicial a execução para cobrança da dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respetivas autarquias, reforçando a ideia de judicialização com a remissão expressa para a legislação processual (civil) em matéria de lacunas 14. Já no segundo, as menções a tribunal, audiencia ou sentencia não permitem a existência de dúvidas quanto à natureza do proceso ejecutivo tributario 15. Trata-se, assim, de um arranjo frequentemente decalcado do processo civil, assente num contencioso adversativo e eminentemente subjetivista, e não patenteia indisfarçáveis desconfianças relativamente às entidades administrativas e particularmente à Administração tributária, preferindo confiar apenas no juiz, enquanto bastião das garantias dos administrados e dos contribuintes. A omnipresença deste último, aliás, é mesmo uma das marcas de tal sistema, ao que não será alheia a consideração de que a finalidade principal da sua intervenção é, não a prossecução do Interesse público ou a efetivação da correta arrecadação da receita pública, mas antes a tutela das posições jurídicas dos contribuintes dignas de proteção.

12 Cfr. § 347 (1) da AO. 13 Cfr. article L. 281 do LPF. 14 Cfr., desde logo, o art.º 1.º da Lei 6.830, de 22 de setembro de 1980, a qual dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6830. htm?TSPD_101_R0=30301fc9c712795a1ff957be50f2c193m0b0000000000000000a3d79a59ffff00000000000000000000000000005b28bae00064ac501b). Para tais efeitos, o conceito de “dívida ativa” reporta-se a créditos da Fazenda Pública (assim, art.º 2.º da supracitada lei, a qual remete para outra normação). 15 V. art.º 362.º do Código General del Proceso e remissão aí constante (https://www.impo.com. uy/bases/codigo-general-proceso/15982-1988). V., ainda, art.º 91.º do Codigo Tributario (http:// www.dgi.gub.uy/wdgi/page?2,principal,CodigoTributario,O,es,0,).

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2.3. Modelo misto No “cruzamento” dos dois modelos anteriores, podem ser encontrados aqueles arranjos que expressamente assumem a natureza mista, administrativa e jurisdicional, das tramitações — seja incluindo fases perfeitamente autonomizadas, seja incluindo atos diversos nas diferentes fases —, e aqueles relativamente aos quais se pode afirmar que as respetivas soluções são ambíguas, dúbias ou juridicamente incertas. E aqui, no espaço de “cruzamento”, se inserirá o modelo português. E a expressão “inserirá” não é inocente, pois não resulta absolutamente clara qual terá sido a intenção do criador normativo a este respeito. A tal modelo se dedicarão as reflexões seguintes.

3. A ambiguidade do modelo português Grande parte das dúvidas respeitantes à natureza jurídica da execução fiscal encontram muita da sua razão de ser (i) na ambiguidade do desenho efetuado pelo legislador, acrescendo também (ii) alguma carga memorial remanescente de soluções anteriores. i Do ponto de vista legislativo, as soluções decorrentes dos arranjos positivo-legais não se demonstram absolutamente coerentes entre si, desde logo ao nível da literalidade de alguns dos enunciados da LGT e do CPPT. De facto, aquele primeiro diploma, em algumas localizações, assinala perentoriamente ou indicia fortemente a natureza judicial da execução fiscal ou tributária, como sucede quando o art.º 103.º, n.º 1, prescreve que “o processo de execução fiscal tem natureza judicial (…)” ou quando o art.º 54.º determina que “o procedimento tributário compreende toda a sucessão de atos dirigida (...) à cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial”; porém, em outras — como no art.º 101.º — parece querer significar realidade diversa, pois no elenco estabelecido dos “meios processuais tributários” não inclui a execução fiscal, mas apenas o recurso dos atos praticados na mesma (pese embora, logo de seguida, se refira a “processo”) 16. Além disso, a consideração sistemática das normas também parece indiciar em sentido não convergente com a ideia de judicialização ou, pelo menos, pode dizer-se que parece não corroborar tal natureza. Isto porque o CPPT não integra a execução fiscal no apartado sistemático respeitante ao (assim denominado) “processo judicial tributário” (Título III). Logo,

16 No mesmo sentido, de resto, apontará o art.º 97.º, n.º 1 do CPPT, nas suas alíneas n) e o).

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não infundadamente se conclui que os elementos literal e sistemático de interpretação podem apontar em sentidos divergentes. ii Para além de algumas indefinições e hesitações ao nível do Direito positivado, um outro importante fator deve ser salientado: do ponto de vista das perceções dos diversos atores (jurídico- e político-) tributários ainda persistem algumas ideias adquiridas de anteriores soluções, ao que se acumula alguma pré-compreensão de desconfiança relativamente à AT. Neste ponto, não será absurdo pensar que as contínuas menções, designadamente por parte da jurisprudência 17, à AT como “agente auxiliar do juiz” não estarão desprendidas das referências contidas no antigo CPCI (Código de Processo das Contribuições e Impostos) de 1963, e, simultaneamente, a um certo receio de parcialidade relativamente à mesma, induzindo a ideia de que apenas com a presença tutelar de um juiz tais receios poderão ser desfeitos. Ora, a partir do exposto, e independentemente da correção ou acerto das pré-compreensões de base histórica que podem permanecer, é insofismável que a existência dos fatores referidos implica dubiedade e coloca em crise a certeza jurídica ou, no mínimo, a exigível previsibilidade, seja ao nível objetivo (segurança jurídica), seja ao nível subjetivo (proteção da confiança). Acresce que a própria cultura de desconfiança do fisco não pode ter cabimento num Estado de Direito responsável, mesmo considerando eventuais excessos lesivos. Face a tais incertezas e indeterminações, os problemas relativos à execução fiscal e tributária têm-se afastado progressivamente das questões relacionadas com a análise da tramitação globalmente considerada, e têm-se direcionado antes para a análise dos atos que a integram, intentando averiguar se se está em presença de atos administrativos, atos processuais, atos jurisdicionais, atos não jurisdicionais, etc. Enfim, de um modo simples, pode dizer-se que o debate se tem afastado da teoria do processo para se centrar na teoria dos atos.

17 V., por exemplo, acórdãos do STA de 7 de dezembro de 2011, processo n.º 01054/11, de 23 de fevereiro de 2012, processo n.º 059/12, e de 23 de maio de 2012, processo n.º 0489/12.

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4. A natureza jurídica dos atos praticados no processo de execução fiscal Como modo de conseguir uma aproximação proveitosa às temáticas aqui em reflexão, assumir-se-á, nos desdobramentos subsequentes, a bipartição estrutural entre atos jurisdicionais e atos não jurisdicionais praticados na execução. Comecemos por estes últimos.

4.1. Atos não jurisdicionais Serão atos não jurisdicionais praticados na execução, para os presentes efeitos, os atos de feição individual e concreta, levados à prática pela Administração tributária, que não têm por objetivo a resolução definitiva de um conflito de pretensões. Nesta medida, importa considerar, por um lado, os atos de ordenação e, por outro lado, os atos administrativos propriamente ditos, consistindo os primeiros em meras operações materiais, no âmbito das quais não é convocada qualquer vontade valorativa por parte do agente administrativo tributário, limitando-se este a uma quase subsunção mecanizada e acrítica das normas ao caso, igualmente não se tornando necessária a indagação de factos, ou a produção ou recolha de provas; já no que concerne aos segundos (atos administrativos), a referida vontade valorativa é imprescindível, pois nesses casos, o agente administrativo tributário necessita de apreciar, avaliar, sopesar, ponderar interesses eventualmente conflituantes e soluções diversas (no mínimo, duas: aceitando, não aceitando; deferindo, não deferindo; avaliando para mais, avaliando para menos; relevando, não relevando, etc.), igualmente se tornando necessária atividade probatória em ordem à correta fixação dos factos subjacentes à decisão a tomar. Em qualquer caso, e em rigor, todos eles deverão ser considerados atos processuais 18, porque integrados numa tramitação a que o legislador impôs a natureza processual (art.º 103.º, n.º 1 da LGT). Sempre, contudo, atos processuais não jurisdicionais.

4.2. Atos jurisdicionais Entender-se-á por ato jurisdicional a emanação de vontade por parte de um órgão jurisdicional (Tribunal) com vista à resolução definitiva de um litígio ou conflito de pretensões. Como já resulta do que foi sendo aqui adiantado, o fim último da jurisdição será a composição em termos definitivos, finais, concluden18 Neste sentido, v., por exemplo, acórdãos do STA de 28 de março de 2012, processo n.º 0261/12 e de 11 de julho de 2012, processo n.º 0665/12.

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tes, de um arranjo respeitante a interesses conflituantes, introduzindo um estado de paz jurídica inexistente até então. Existe neste âmbito um princípio de reserva da função jurisdicional ou reserva do juiz, em termos de se afirmar juridicamente inadmissível e materialmente inconstitucional qualquer solução legal que consagre a última palavra sobre a resolução de um litígio a órgãos não jurisdicionais. Ora, também em matéria de execução fiscal, os atos jurisdicionais praticados (todos eles reservados ao juiz), pressuporão um litígio, e terão por fim a resolução do mesmo, como é o que sucede, por exemplo, nas decisões respeitantes a oposições à execução (art.os 203.º e ss. do CPPT), a reclamações dos atos do órgão de execução (idem, art.os 276.º e ss.), ou a incidentes (art.os 166.º e ss.) 19.

5. Propostas de simplificação Resulta de tudo quanto foi dito que a delimitação clara e inequívoca da natureza jurídica dos atos praticados em execução fiscal, não sendo propriamente uma tarefa inexequível, não deixa de se revelar problemática em concreto, tendo em vista (i) a natureza processual da tramitação, (ii) a diversidade dos sujeitos envolvidos, e (iii) a pluralidade de atos que podem ser praticados. Porém, tal demanda um esforço e uma tomada de tempo dos Tribunais que poderiam proveitosamente ser utilizados para outros fins. Por outras palavras: em lugar de ocuparem o seu precioso tempo a decidir se o ato de indeferimento de um pedido de prestação de garantia é um ato procedimental ou não (e se no contexto do mesmo se demanda o exercício do direito de audição); se o ato de reversão é um ato processual ou não processual (e se as exigências de fundamentação dos atos administrativos se lhe aplicam); ou se a AT participa no processo executivo a título de credor tributário ou de agente de execução auxiliar, os juízes deveriam apenas canalizar a sua atividade para a resolução justa, inequívoca e definitiva do dissídio jurídico-tributário propriamente dito, isto caso o legislador tivesse convincentemente resolvido as questões de qualificação jurídica. Ou melhor dito: se o legislador não tivesse complicado a questão, criando um sistema híbrido que permite interpretações díspares. Bastaria fazer como o fazem o legislador alemão, espanhol, francês ou brasileiro, optando claramente por um modelo nítido, fosse ele qual fosse. Ora, tendo em vista estas considerações, impõe-se uma simplificação do sistema, em termos de o tornar mais inteligível e de modo a eliminar as ambiguidades e os espaços de indeterminação. Neste rumo, avançam-se algumas propostas: 19 Cfr., a respeito, art.º 151.º, n.º 1, do CPPT.

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i Nesse intuito de simplificação, entende-se que o melhor caminho a seguir será o da administrativização da execução tributária, a exemplo do que sucede em ordenamentos insuspeitos em termos de garantias de Estado de Direito. Neste contexto, pensa-se que será proveitosa a consideração da execução como um procedimento (Verwaltungsweg), no âmbito do qual os atos praticados são indiscutivelmente atos administrativo-tributários ou atos de ordenação procedimental; ii Naturalmente que a administrativização da execução tributária pressupõe o estabelecimento de um estatuto de credibilidade da AT, acabando com os tradicionais receios de parcialidade, algo que apenas se conseguirá com uma cultura de Interesse público e de confiança. Neste quadro, importa perceber que o referido Interesse público não se identifica em absoluto (e exclusivamente) com o interesse concreto na arrecadação da receita tributária 20; iii Em todo o caso, em ordem à prossecução desse Interesse público de arrecadação da receita tributária — o qual, não sendo absoluto, também não pode ser negligenciado — e em ordem ao acautelamento do privilégio de execução prévia — que, indubitavelmente, continua a existir — o procedimento executivo tributário deverá ser enformado por princípios de simplicidade e celeridade, privilegiando atuações desburocratizadas e prevendo prazos máximos de duração (não necessariamente coincidentes com os prazos aplicáveis aos demais procedimentos). Neste seguimento, algumas das garantias administrativo-tributárias previstas nos restantes procedimentos (como o direito de audição antes da prática de atos lesivos ou a garantia de duplo grau de revisão administrativa) poderão ser atenuadas ou aligeiradas, até porque a dívida em cobrança já se considera certa, líquida e exigível; iv Em qualquer caso, e evidentemente, devem ser consagradas as mais amplas e efetivas garantias de ação ou recurso jurisdicional, quando se 20 Como já sinalizamos em outra localização, a noção de Interesse público a prosseguir pela AT não se subsume, nem tem que se subsumir, ao interesse público que se materializa na arrecadação da receita tributária. Além de ser altamente questionável a ideia de que a AT tem interesses que se possam qualificar como “próprios” (antes se devendo entender que os mesmos serão sempre interesses heterónomos e instrumentais), parece indiscutível que a mesma, integrando a Administração pública em geral, está vinculada a muitos mais deveres do que os que decorrem da (indispensável, é certo) mera arrecadação de receita. Para desenvolvimentos, v., a respeito, o nosso A administração tributária odiosa (repensando os fins e atuações do fisco), in Desafios Tributários, Vida Económica, Porto, 2015, pp. 127 e ss..

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esteja em presença de atuações ou omissões lesivas, seja sob a forma de verdadeiros atos administrativo-tributários (como penhoras, constituição de hipotecas, indeferimentos de pretensões, graduações de créditos, etc.), seja sob a forma de atos comunicativos potenciadores de efeitos gravosos (e.g., citações). Isto porque as pretendidas simplicidade e celeridade não podem ser efetivadas a expensas das garantias dos obrigados tributários, retirando a estes meios de amparo jurídico apenas para que se possa dizer que a tramitação obtém resultados mais eficientes. Neste particular, embora se afigure complexa a tarefa de ponderação e articulação entre as duas dimensões em conflito — tarefa essa indiscutivelmente imposta pelo próprio legislador constituinte no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição —, existirá aqui mais um limite intransponível: a plenitude das garantias de defesa, seja sob um ponto de vista substantivo, seja sob um ponto de vista adjetivo, procedimental e processual. Assim, qualquer restrição desproporcionada das ditas garantias de defesa não poderá deixar de se considerar inconstitucional. À parte estas propostas, uma outra ideia merecerá ser pensada: trata-se da necessidade de expurgar a execução tributária de todos os litígios que com a mesma pouco têm a ver. Isto porque, como é consabido, inundam os Tribunais tributários e os órgãos da AT uma multiplicidade de litígios e questões jurídicas que, em rigor, nada têm de tributário, apenas se tratando de questões respeitantes a quantias pecuniárias (preços, tarifas, contribuições, pseudo-taxas, etc.) relativamente às quais o legislador entende — a nosso ver, frequentemente mal — que podem ser cobradas por este meio coercivo. Tal utilização abusiva do processo traduz-se em elevadíssimos custos ao nível da coerência do sistema e da respetiva eficiência.

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O “DIÁLOGO JUDICIAL” NA UNIÃO EUROPEIA. A “QUÍMICA” DO DELICADO EQUILÍBRIO ENTRE AUTONOMIA E CONSTITUCIONALISMO MULTINÍVEL! Graça Enes1

Sumário: Nota Preliminar; 1. Premissas; 2. Princípios estruturantes – estabilidade e flexibilidade; 3. Sistemas constitucionais em dinâmica; 4. Diálogo judicial e “verticalização benigna” – do “Taricco” ao “M.A.S.”; 5. Algumas considerações para uma “constitucionalização marmórea”. uma preempção conflitual inversa assente na identidade constitucional? 6. A confiança e a autonomia num sistema multinível – em defesa da “margem de apreciação” judicial.

Nota Preliminar Este texto corresponde à comunicação apresentada no XII Encontro de Professores de Direito Público, realizado em Braga, em 25 e 26 de janeiro de 2019. A Organização do Encontro, constituída pelas Senhoras Professoras Doutoras Ana Gouveia Martins, Anabela Leão, Benedita MacCrorie e Patrícia Fragoso Martins, a quem desejo agradecer o gentil e honroso convite, desafiou-me para uma reflexão sobre o diálogo judicial, tema do encontro, no direito europeu.

1 Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, CIJE. E-mail: gferreira@direito. up.pt Na redação do texto segue-se o Acordo Ortográfico em vigor em Portugal. Porém, nas citações e excertos de outros textos mantém-se o texto original.

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O diálogo judicial entre a Jurisdição encarregada desde o Tratado de Paris de garantir o respeito pelo direito fundador e regulador da integração europeia e os tribunais nacionais dos Estados parte desse processo foi a principal via da construção de um sistema jurídico de feição “constitucional”2. Porém, esta “constituição” não corresponde ao paradigma constitucional estadual contemporâneo. Acompanha as constituições nacionais, que permanecem, e com elas forma uma “constituição multinível”, plural e dinâmica. Para efeitos ilustrativos, utilizamos metáforas “químicas”, incluindo de “química gastronómica”. Esclarece-se desde já que não são mais que metáforas, sem qualquer pretensão de validade ou sequer de relevo dogmático, pois não pretendemos trazer conceitos científicos de outras ciências para a ciência jurídica3. O seu despretensioso objetivo é ajudar a visualizar de modo mais fácil e apelativo a abstração da proposta ensaiada4 e comprovamos já a sua utilidade pedagógica em sala de aula.

1. Premissas A nossa análise considera o sistema jurídico da União Europeia com base em algumas premissas. Estas, na sua essência substantiva, já foram discutidas profusamente. Damos-lhes agora uma roupagem imagética “química”. O nosso ensaio assenta nelas para percorrer algumas manifestações do diálogo judicial entre o Tribunal de Justiça da União Europeia (de ora em diante, TJUE ou TJ) e as jurisdições constitucionais nacionais e o modo como ele reflete e contribui para o desenvolvimento e configuração do sistema jurídico europeu e dessas mesmas premissas. PREMISSA 1 - Na União Europeia encontra-se um sistema constitucional europeu in faciendi, com uma estrutura “molecular”. Os “átomos” que a constituem são as Constituições dos EM (de ora em diante “Constituições”), a Carta dos Direitos Fundamentais (de ora em diante, CDFUE), o Tratado da União Europeia (de ora em diante TUE), o tratado sobre o Funcionamento da União 2 A bibliografia sobre essa “constitucionalização” é longa. Por todos veja-se Graça Enes, Unidade e Diferenciação no Direito da União Europeia. A diferenciação como um princípio estruturante do sistema jurídico da União, Coimbra, Almedina, 2017. Sobre o contributo dos tribunais nacionais, veja-se Graça Enes, “A europeização dos direitos nacionais dos Estados-membros. O papel dos tribunais nacionais”, AAVV, Estudos Comemorativos dos 20 anos da FDUP, Vol. I, Coimbra, FDUP/Almedina, 2017, pp. 571-591. 3 Sobre os riscos associados a essa “importação”, acompanhamos a crítica formulada por Alan Sokal e Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais, (trad. port. de Impostures Intelectuelles, 1997, Paris, Editions Odile Jacob), Lisboa, Gradiva, 1999. 4 Esta utilização “heurística” afigura-se iconicamente curiosa, pois coincide com o facto de a “capital” da União Europeia, Bruxelas, ter o “átomo” como um dos seus monumentos simbólicos.

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Europeia (de ora em diante, TFUE) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (de ora em diante, CEDH). PREMISSA 2 – O sistema constitucional europeu apresenta-se morfologicamente como um sistema multinível com uma conformação entrecruzada e não sobreposta, como um “bolo mármore”, não como um “bolo de bolacha”, ou seja, não há elementos constitucionais com uma posição estruturalmente superior. O seu alcance regulador concreto pode variar dependendo da natureza das exigências e da inter-relação com os restantes elementos, em especial os “átomos constitucionais” nacionais5. PREMISSA 3 – À imagem das relações químicas moleculares covalentes, em que os diversos átomos de uma molécula partilham eletrões, no sistema constitucional europeu todos os sistemas constitucionais integrantes daquele partilham uma base axiológica comum, os valores fundamentais plasmados no Estatuto do Conselho da Europa de 5 de maio de 1949: “Reaffirming their devotion to the spiritual and moral values which are the common heritage of their peoples and the true source of individual freedom, political liberty and the rule of law, principles which form the basis of all genuine democracy” (Preâmbulo, § 2) Esses valores encontram-se igualmente refletidos no enunciado do artigo 2.º do TUE, que os declara partilhados pela União e pelos EM. “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.”

2. Princípios estruturantes – Estabilidade e Flexibilidade Os vários níveis e os múltiplos elementos que os integram (Tratados, CDFUE, Constituições, CEDH) são articulados entre si através de princípios fundamentais, alguns previstos normativamente, outros desenvolvidos jurisprudencialmente. Esses princípios são estruturantes, pois são eles determinam o âmbito de ação legítima e garantem a unidade e a estabilidade do sistema, contribuindo do mesmo passo para a configuração da respetiva natureza jurídico-política6. 5 Já utilizamos outra metáfora, desta feita, geométrica. O sistema constitucional da UE pode representar-se como um poliedro irregular, afastando-se assim da habitual “pirâmide normativa”. 6 Não pretendemos debruçar-nos sobre esta questão. O debate é longo e as qualificações numerosas ao longo de um espectro que vai do federalismo até à organização internacional interestadual.

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São esses princípios o princípio das competências de atribuição, o princípio da subsidiariedade e o princípio da preempção. O princípio das competências de atribuição, manifestação específica na União do princípio da especialização das organizações internacionais, mas igualmente presente em sistemas estaduais federais, foi reconhecido jurisprudencialmente e encontra-se plasmado em diversas disposições do TUE (artigos 4.º, n.º 1, 5.º, n.ºs 1 e 2) e na Declaração 18. Este é o limite constitucional fundamental da União. A União não detém a Kompetenz-kompetenz, que se encontra antes nos EM, e o seu poder jurídico restringe-se aos domínios que estes entenderam colocar sob a sua alçada através da previsão nos Tratados de objetivos e competências. Este limite não se mostrou rígido, pois o âmbito das atribuições foi sucessivamente alargado e a intensidade reguladora das competências das instituições da União foi igualmente aprofundada ao longo das sucessivas revisões dos tratados. O Tratado de Lisboa positivou o sistema de competências que o TJ reconheceu na respetiva jurisprudência e dividiu-as em competências exclusivas, competências partilhadas (categoria extensa, definida por exclusão e que inclui competências com diferentes objetivos e intensidades regulativas diversas) e competências complementares e de apoio. Essas categorias encontram-se enunciadas e os domínios por elas abrangidos são indicados nos artigos 3.º a 6.º do TFUE. O princípio da subsidiariedade, depois de consagrado, no Ato Único Europeu, no domínio ambiental, foi consagrado como princípio geral no Tratado de Maastricht, e, estritamente enquanto princípio definidor do nível apropriado de intervenção nos domínios das competências partilhadas, tal como determina o artigo 5.º do TFUE, confere legitimação à intervenção reguladora primacial dos níveis de decisão estaduais. Em contrapartida, o princípio da preempção, tal como resulta do artigo 2.º, n.º 2 do TFUE, assegura a estabilidade do sistema jurídico multinível, ao garantir que no âmbito das competências partilhadas fica precludida a intervenção reguladora dos EM, na medida e enquanto a União regular um domínio dessa categoria de competências. O Protocolo relativo ao exercício das competências partilhadas, no seu artigo único, esclarece-o sem margem para dúvidas, nos seguintes termos: “…quando a União toma medidas num determinado domínio, o âmbito desse exercício de competências apenas abrange os elementos regidos pelo acto da União em causa e, por conseguinte, não abrange o domínio na sua totalidade.”

Depois de uma jurisprudência que, com um alcance diverso, legitimou a extensão da intervenção europeia, admitindo mesmo a preempção por simples

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“marcação”, a preempção fica limitada ao âmbito do preenchimento regulativo operado pela União. É certo que, no âmbito das competências externas, este limite é significativamente mitigado pelas cláusulas do artigo 3.º, n.º 2 do TFUE. O objetivo de clarificação da divisão de competências presente no Tratado de Lisboa não se logrou em absoluto e essa importante questão, onde se joga decisivamente o poder dos EM, continua fundamentalmente a ser arbitrado na esfera judicial. De novo, o Tribunal de Justiça assume protagonismo e nos litígios que se têm sucedido tem sido reforçada uma competência exclusiva funcional assente em cláusulas gerais que convocam um exercício hermenêutico complexo de articulação entre competências exercidas e não exercidas7. Segundo essa disposição, a União tem a “competência exclusiva para celebrar acordos internacionais (i) quando tal celebração esteja prevista num acto legislativo da União, (ii) seja necessário para lhe dar a possibilidade de exercer a sua competência interna, ou (iii) seja susceptível de afectar regras comuns ou de alterar o alcance das mesmas.” Com fundamento nesta disposição, o TJ, em domínios que não se integram no elenco de competências exclusivas inscrito no n.º 1 do artigo 3.º do TFUE (v.g. “transportes”), afastou a competência dos EM no âmbito da celebração de acordos internacionais8. A estrutura multinível do sistema jurídico da União, a respetiva integridade e unidade, impõe o reconhecimento e a efetivação de diversos princípios funcionais de articulação entre os níveis constitucionais. A estabilidade do sistema constitucional plural, seja em virtude da evolução das exigências regulatórias comuns, seja em virtude da indispensabilidade de reconhecimento de exigências fundamentais dos seus elementos constituintes, impõe a consagração de mecanismos de flexibilidade, instituídos pela via normativa ou desenvolvidos pelos respetivos agentes no exercício das suas funções. Tal como nos princípios indicados acima, encontramos sinais de sentido diverso. No sentido centrípeto, encontram-se o princípio do primado/prevalência, o princípio da cooperação leal, o reconhecimento de preempção conflitual, o princípio da confiança mútua e o princípio do reconhecimento mútuo. Igualmente, o reconhecimento de competências implícitas, as previsões do artigo 352.º e artigo 3.º, n.º 2 do TFUE, no âmbito da ação externa, foram vias de uma flexibilidade que reforçou a intervenção reguladora do nível jurídico da União. Já a diversidade da realidade económica, social, jurídica e até política dos EM obrigou desde o início a admitir elementos no sentido centrífugo. Assim 7 Vejam-se os Pareceres 2/15, 3/15 e 1/17, e os Processos C-284/16 (Achmea), C-626/15 e C-659/16 (Convenção de Camberra). 8 Depois de toda a controvérsia em torno do TTIP e das objeções suscitadas pela Valónia, foi decidido que o CETA seria celebrado como acordo misto, implicando a ratificação por todos os EM.

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foi desde o início da integração europeia. Os regimes derrogatórios, de que são exemplo as restrições às liberdades de circulação previstas com justificação na ordem pública, etc., limitam o alcance regulador do direito da União. A diferenciação normativa admitida pela via da cooperação reforçada satisfaz exigências dos dois níveis, promovendo a integração e, em simultâneo, admitindo que alguns Estados não fiquem a ela vinculados. O respeito das funções essenciais e da identidade constitucional dos EM, prevista no artigo 4.º, n.º 2 do TUE, por sua vez, aponta no sentido da preservação de imperativos fundamentais dos Estados. O respeito pela diversidade aponta para a necessidade de equacionar uma forma de diferenciação normativa ou casuística admitida no plano nacional e que conhecemos há muito da jurisprudência do TEDH sob a fórmula de uma “margem de apreciação” a a reconhecer às autoridades nacionais como legítima. Também a temos encontrado na jurisprudência do TJ. A tensão entre os diferentes níveis, com pretensões de sinal diverso, é imediatamente percetível. É certo que o substrato axiológico partilhado e os princípios comuns imperativos limitam o alcance disruptor dessas pretensões e garantem a subsistência do sistema. A sua estabilidade e coesão, ainda assim, requerem uma mediação reflexiva agonística capaz de promover uma dinâmica constitucional positiva. Os tribunais, nos níveis europeu e nacional, são agentes especialmente apropriados para desempenhar esta função. A via de diálogo prevista através do reenvio prejudicial, hoje consagrado no artigo 234.º do TFUE, é o instrumento adequado e pode colocar em interação as jurisdições com responsabilidades fundamentais na garantia e preservação de todos os sistemas jurídicos – o TJUE e os tribunais nacionais com função constitucional. Durante muito tempo, os tribunais constitucionais nacionais não fizeram uso dessa via e não foram interlocutores diretos do TJ, tarefa assumida pelos tribunais comuns. Mais recentemente, com a extensão do direito da União a domínios como o direito penal ou as finanças públicas, interferindo no núcleo fundamental da soberania e dos direitos fundamentais, a situação mudou e foram já vários tribunais constitucionais que lançaram mão do reenvio prejudicial. O primeiro foi a Corte Constitucional espanhola, no caso “Melloni”.

3. Sistemas constitucionais em dinâmica O sistema constitucional europeu não é estático, desenvolve-se por via de uma dinâmica dialógica entre os “átomos”. As ordens jurídicas europeias e nacionais apresentam uma autonomia relativa, aberta e reflexiva que permite que os diferentes “átomos” possam integrar essa nova estrutura molecular que é o sistema constitucional da União.

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As constituições dos EM são o fundamento legitimador normativo sobre que foi construído o projeto de integração europeia. Por isso, no início e até hoje, os momentos reformadores fundamentais são consubstanciados em Tratados celebrados pelos EM de acordo com as suas normas constitucionais. Muitas vezes, esses compromissos assumidos em comum exigiram modificações formais das Constituições9. A evolução, seja do sistema constitucional comum, seja dos sistemas constitucionais nacionais, também se faz quotidianamente, no exercício das funções próprias de interpretação e aplicação do Direito que competem aos tribunais, ao TJUE e aos tribunais nacionais, desde logo aos tribunais comuns, mas igualmente aos tribunais constitucionais. É sobejamente conhecida a jurisprudência do TJUE que desenvolveu a proteção dos direitos fundamentais com base na inspiração recolhida das constituições nacionais. Atualmente, além do seu reconhecimento no artigo 6.º, n.º 3 do TUE, a interação entre os diversos níveis de proteção dos direitos é objeto do artigo 52º, n.ºs 3, 4 e 6, e do artigo 53.º da CDFUE. Estas disposições devem nortear o exercício das competências de todos tribunais na União, enquanto guardiões do Direito e dos direitos. De seguida, percorreremos alguns exemplos significativos da evolução constitucional no nível nacional promovida pelo diálogo judicial com a Jurisdição europeia, incluindo de resistência, bem como a reação a esta, evidenciando uma dinâmica complexa, própria desse sistema constitucional “marmóreo”.

3.1. O diálogo judicial como catalisador da mudança constitucional nos Estados-membros e na União Uuropeia - O CASO “TANJA KREIL”10 (igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso ao emprego no âmbito das Forças Armadas). O acesso das mulheres a empregos nas forças armadas alemãs estava sujeito a diversas limitações e condições, previstas constitucional e legalmente. Segundo o artigo 12.ºa, § 4, da Constituição alemã, “[s]e, em situação de defesa, as 9 No caso português, assim sucedeu em diversas revisões constitucionais, tenha sido para a adesão, para a participação na união económica e monetária ou para compatibilização com o projeto de Tratado Constitucional. 10 Acórdão de 11 de janeiro de 2000, Tanja Kreil, Processo C-285/98, EU:C:2000:2. Sobre este caso, Jörg Gerkrath, Le principe de l’égalité de traitement et l’accès des femmes aux emplois dans les unités armées dans la Bundeswehr, Europe, 2000, Décembre, Chron. nº 11, p.5-7. Em geral, sobre a influência constitucional da jurisprudência de tribunais internacionais, Karen J. Alter, The New Terrain of International Law: Courts, Politics, Rights, Princeton, Princeton University Press, 2014. A Autora apresenta este caso como um exemplo dessa “influência” (Chapter 8: “Internacional Constitucional Review”).

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necessidades em serviços civis dos estabelecimentos sanitários civis e dos hospitais militares fixos não puderem ser cobertas com base em voluntariado, poderão ser afectadas a esses serviços, por lei ou por virtude de uma lei, as mulheres com idades compreendidas entre os dezoito e os cinquenta anos completos. Não deverão em caso algum prestar serviço armado”. Alegou o governo alemão que “o direito comunitário não se opõe (…) a norma constitucional que veda às mulheres a prestação de um serviço com armas. (…) o direito comunitário [76/207/CEE] o não regula, em princípio, as questões de defesa, (…) que continuam na esfera de soberania dos Estados-Membros. (…) mesmo a supor que a directiva possa aplicar-se às forças armadas, as disposições nacionais em causa, que limitam o acesso das mulheres a certos empregos no Bundeswehr, podem ser justificadas…”. O aresto do TJ reconheceu que “cabe aos Estados-Membros, que têm de adoptar as medidas adequadas para garantirem a sua segurança interna e externa, tomar as decisões relativas à organização das suas forças armadas. Daqui não resulta, no entanto, que tais decisões devam escapar totalmente à aplicação do direito comunitário.” (p. 15). Testemunhamos aqui a imposição de uma preempção conflitual do direito comunitário, em virtude da qual “[a] Directiva 76/207/CEE do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de emprego, opõe-se à aplicação de disposições nacionais, tais como as do direito alemão, que excluem, de maneira geral, as mulheres dos empregos militares que incluam a utilização de armas e que autorizam o seu acesso somente aos serviços de saúde e às formações de música militar.” No espírito de um sistema aberto e flexível, capaz de acomodar a diversidade nacional de preferências, e acompanhando a posição da Comissão, o TJ declara (p. 24): “As autoridades nacionais competentes dispõem, todavia, e consoante as circunstâncias, de uma certa margem de apreciação quando adoptam medidas que entendem necessárias para garantir a segurança pública de um Estado-Membro”. Este acórdão do TJ integrou o debate que estava em curso a nível nacional e foi um catalisador da modificação da Constituição alemã, que ocorreu 10 meses depois, e da subsequente reorganização militar germânica. De uma proibição absoluta do desempenho de funções que envolvessem o uso de armas, passou-se para a proibição, em quaisquer circunstâncias, de obrigar as mulheres a desempenhar funções que envolvam o uso de armas11. 11 Veja-se na tradução inglesa a diferença de sentido entre o enunciado anterior “They may on no account render service involving the use of arms” e o enunciado posterior “Under no circumstances may they be required to render service involving the use of arms”.

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- O CASO “OMEGA”12 (livre prestação de serviços e livre circulação de mercadorias v. dignidade humana) A propósito de um jogo em que havia simulação de homicídios, o Tribunal alemão declara “[u]m valor constitucional supremo como a dignidade humana não pode ser posto de parte no âmbito de um jogo de divertimento. Os direitos fundamentais invocados pela Omega não podem, à luz do direito nacional, alterar esta apreciação.” (p. 12). A proteção da dignidade humana justificaria uma derrogação às liberdades do mercado interno, enquadrada no conceito de “ordem pública”. Porém, segundo o TJ, embora esse valor fundamental invocado esteja inscrito na Constituição nacional, “o conceito de «ordem pública» no contexto comunitário (…) como justificação de uma derrogação à liberdade fundamental de prestação de serviços deve ser entendido em sentido estrito, pelo que o seu alcance não pode ser determinado de modo unilateral por cada um dos Estados‑Membros, sem fiscalização das instituições da Comunidade.” (p. 30). Por outro lado, como se espera de um sistema aberto e reflexivo, “as circunstâncias específicas que podem justificar o recurso ao conceito de ordem pública podem variar de um país para outro e de uma época para outra. É portanto necessário, a este respeito, reconhecer às autoridades nacionais competentes uma margem de apreciação dentro dos limites impostos pelo Tratado.” (p. 31). O vaivém dialógico continua, desta vez remetendo para o quadro axiológico comum aos sistemas europeu e nacionais. A jurisdição europeia recorda que “a ordem jurídica comunitária tem inegavelmente por objectivo garantir o respeito da dignidade humana como princípio geral de direito. Não há, portanto, dúvidas de que o objectivo de protecção da dignidade humana é compatível com o direito comunitário, sem que para isso seja relevante que, na Alemanha, o princípio do respeito da dignidade humana beneficie de um estatuto particular enquanto direito fundamental autónomo.” (p. 34). Assim, se o eco nesse fundamento axiológico comum tem de estar presente, “não é indispensável que a medida restritiva adoptada pelas autoridades de um Estado‑Membro corresponda a uma concepção partilhada pela totalidade dos Estados‑Membros no que respeita às modalidades de protecção do direito fundamental ou do interesse legítimo em causa.” (p. 37). Vemos subjacente o reconhecimento “avant la lettre” da identidade constitucional que justifica o alcance diferenciado admitido no 12 Acórdão de 14 de outubro de 2004, Omega, Processo C-36/02, EU:C:2004:614. Sobre este caso, M. K. Bulterman, H. R. Kranenborg, What if rules on free movement and human rights collide? About laser games and human dignity: the Omega case, European Law Review, 2006, pp. 93-101; Alberto Alemano, À la recherche d›un juste équilibre entre libertés fondamentales et droits fondamentaux dans le cadre du marché intérieur. Quelques réflexions à propos des arrêts «Schmidberger» et «Omega», Revue du droit de l’Union européenne, 2004, nº 4, pp.709-751.

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âmbito da margem de apreciação nacional a concretizar de acordo com o quadro constitucional interno. Assim, conclui o TJ que “[o] direito comunitário não se opõe a que uma actividade económica que consiste na exploração comercial de jogos de simulação de actos homicidas seja objecto de uma medida nacional de proibição adoptada por razões de protecção de ordem pública, devido ao facto de essa actividade ofender a dignidade humana.” Neste caso, testemunha-se uma modelação do regime das liberdades do mercado interno, em resultado da abertura a exigências constitucionais nacionais, operada através de um preenchimento reflexivo do conceito de “ordem pública”, com apelo ao substrato axiológico comum onde se encontra o valor da “dignidade humana”. Por outro lado, embora legitimando a derrogação que instituíam ao regime comunitário do mercado interno, o regime nacional e a determinação dos contornos da “dignidade humana” no sistema jurídico alemão evoluíram e o tipo de atividades em causa tornou-se legal. A interação com os restantes sistemas jurídicos europeus e com o respetivo enquadramento desse valor contribuiu, com certeza, para o debate que conduziu a esse resultado.

3.2. O diálogo judicial como modelador hermenêutico de normas constitucionais - O CASO “MELLONI”13 (direito a um processo com todas as garantias previsto no artigo 24/2 da Constituição Espanhola). Para contestar a entrega às autoridades italianas, em cumprimento de um mandado de detenção europeu, o arguido alegou “la consolidada doctrina de este Tribunal (…) citando al efecto las SSTC 91/2000, de 30 de marzo, y 177/2006, de 5 de junio.” O Tribunal Constitucional espanhol, pronunciando-se depois do acórdão de reenvio do TJ, declara “el canon de control que debemos aplicar para enjuiciar la constitucionalidad (…) ha de ser integrado a partir, entre otras, de las normas de Derecho de la Unión Europea que protegen los correspondientes derechos fundamentales, así como de las que regulan la orden europea de detención y entrega” [tal como previsto no 10/2 Const Esp.]. Mais adiante diz “producida la integración debe destacarse que la Constitución no es ya el marco de validez de 13 Tribunal Constitucional espanhol (Sentencia 26/2014, de 13 de febrero de 2014. Recurso de amparo 6922-2008). Sobre este caso, Pablo J. Martín Rodríguez, Sentencia 26/2014, de 13 de Febrero, en el recurso de amparo 6922-2008 promovido por Don Stefano Melloni, Revista de Derecho Comunitario Europeo, 2014, nº488, pp. 603-622.

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las normas comunitarias (…) si bien la Constitución exige que el Ordenamiento aceptado como consecuencia de la cesión sea compatible con sus principios y valores básicos”. Embora não retire consequências, está subjacente a esta afirmação uma preempção conflitual inversa, i.e., para salvaguarda em concreto do direito nacional, e que encontra respaldo, no nosso entendimento, no artigo 4.º, n.º 2 do TUE. A Corte Constitucional envereda por um percurso hermenêutico segundo o qual, na União Europeia, a constituição nacional não é um mundo isolado, mas reconhece as pretensões fundamentais dos restantes sistemas constitucionais nos casos em que estes têm uma legítima competência. Recorta, então, dois planos diferenciados de eficácia dos direitos constitucionalmente tutelados, um externo, i.e., nas relações com outros ordenamentos, e outro apenas interno. Diz, por isso, “el Derecho de la Unión Europea opera como un instrumento que permite delimitar la parte del contenido de ese derecho que despliega eficacia ad extra, esto es, las facultades y garantías cuyo desconocimiento por las autoridades extranjeras puede dar lugar a una vulneración indirecta en caso de que acuerde la entrega sin condicionamiento”. Já no plano interno, “los poderes públicos españoles se hallan vinculados de modo incondicionado ad intra por los derechos fundamentales, tal y como éstos han sido consagrados por la Constitución, el contenido vinculante de los derechos fundamentales cuando se proyectan ad extra es más reducido. (…) tan sólo sus exigencias más básicas o elementales, las exigencias que constituyen la esencia misma del proceso justo”. Apresenta depois o “património fundamental comum” que define o âmbito imperativo dos direitos e princípios fundamentais no espaço europeu e que condiciona, como mínimo, a eficácia dos direitos constitucionais no plano externo: “tanto la interpretación dada por el Tribunal Europeo de Derechos Humanos del derecho a un proceso equitativo recogido en el artículo 6 del Convenio europeo como la realizada por el Tribunal de Justicia de la Unión Europea de los derechos a la tutela judicial efectiva, a un proceso equitativo y de defensa recogidos en los arts. 47 y 48.2 de la Carta, coincidentes en buena medida, operan como criterios hermenéuticos que nos permiten delimitar la parte de lo que hemos denominado contenido absoluto del derecho a un proceso con todas las garantías, que es la que despliega eficacia ad extra”. À parte a presunção da superioridade da proteção constitucional espanhola, esta é uma via possível para a articulação entre os múltiplos sistemas integrantes de um sistema multinível como temos no espaço europeu. Pode ser objeto de crítica, na medida em que não reconhece que a harmonização normativa comum operou uma preempção que retirou o domínio em causa da esfera de aplicação do direito nacional, incluindo a Constituição. O referencial, embora objeto de uma interpretação baseada em normativos externos, continua a ser o direito constitucional interno, utilizando a cláusula do artigo 10/2 da Cons45


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tituição que prevê a interpretação dos direitos à luz das convenções de que a Espanha é signatária. Em abstrato, não nos parece apropriado ao sistema jurídico da União14. Em concreto, quando estejam em causa as funções essenciais dos Estados ou a identidade constitucional, tal como contemplada no artigo 4.º, n.º 2 do TUE, a prevalência dos imperativos da constituição nacional deve ser admitida, enquadrada numa concretização hermenêutica de conceitos “situada” ou em mecanismos derrogatórios previstos no direito da União.

4. Diálogo judicial e “verticalização benigna” – do “Taricco” ao “M.A.S.” O diálogo judicial na União Europeia tem o seu amparo e via fundamental através do reenvio prejudicial previsto no artigo 234.º do TFUE. Este mecanismo não institui qualquer tipo de submissão hierárquica entre o tribunal nacional, que coloca questões prejudiciais, e o TJ que a elas responde. A sua articulação com princípios como o princípio da cooperação leal e os termos em que se concretizou produziram uma “verticalização”, objeto de atenção e até de severa crítica doutrinal15. - O CASO “M.A.S.”16 (compatibilidade do princípio da efetividade e do artigo 325.º TFUE com princípios constitucionais – “controlimiti” para que vos quero?) Depois do caso “Taricco”17, que compreensivelmente suscitou uma crítica acirrada por atentar contra princípios fundamentais do direito criminal, como 14 Em sentido semelhante a crítica desenvolvida por Pablo J. Martín Rodríguez, Sentencia 26/201, pp. 608-612. 15 A crítica é já antiga. Veja-se H. Rasmussen, On Law and Policy in the European Court of Justice. A Comparative Study in Judicial Policymaking, Dordrecht/Boston/Lencaster, Martinus Nijhoff, 1986. Uma análise crítica mais recente da jurisprudência do TJ e da relação entre esse tribunal e os tribunais nacionais pode ver-se em m. adams/ h. de warle/ j. meeusen/ g. straetmans (eds.), Judging Europe’s Judges, Oxford, Hart, 2013. 16 Acórdão de 5 de dezembro de 2017, M.A.S., Processo C-42/17, EU:C:2017:936. Sobre este aresto, veja-se Daniel Sarmiento, Adults in the (Deliberation) Room. A comment on M.A.S., Quaderni costituzionali, 2018, pp.228-231; Valeria Marcenò, La sentenza M.A.S.: conseguenze di una sovranità incerta, Quaderni costituzionali, 2018, pp. 231-234. 17 Acórdão de 8 de dezembro de 2015, Taricco, Processo C-105/14, EU:C:2015:555. Sobre este aresto, veja-se Emmanouil Billis, The European Court of Justice: A “Quasi-Constitutional Court” in Criminal Matters? The Taricco Judgment and Its Shortcomings, New Journal of European Criminal Law, 2016, Vol. 7, pp. 20-38. Sobre a evolução entre o caso “Taricco” e o caso “M.A.S.”, veja-se Gioavanni Piccirilli, The “Taricco Saga”: the Italian Constitutional Court continues its European journey, European Constitutional Law Review, 2018, Vol.14, Issue 4, pp.814-833; Mateo Bonelli, The Taricco saga and the consolidation of judicial dialogue in the European Union, Maastricht Journal of European and Comparative Law, 2018, Vol.25, N°3, pp. 357-373.

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a segurança/certeza jurídica, legalidade/tipicidade ou a não retroatividade de normas incriminadoras, o TJUE corrigiu a orientação no caso “M.A.S.” no reenvio efetuado pela Corte costituzionale italiana. Se o obiter dictum responde às críticas que o anterior acórdão tinha recebido, o acórdão é insuficiente e pouco clarificador. Se “a Corte suprema di cassazione (…) e a Corte d’appello di Milano (…) consideram que, em conformidade com a regra enunciada no acórdão Taricco, se deveriam abster de aplicar o prazo de prescrição, previsto nas disposições do Código Penal em causa, e decidir quanto ao mérito.” (pt. 12), (…) “[a] Corte costituzionale (…) tem dúvidas sobre a compatibilidade dessa solução com os princípios supremos da ordem constitucional italiana e com o respeito dos direitos inalienáveis da pessoa. (…) a referida solução é suscetível de violar o princípio da legalidade dos crimes e das penas, que exige (…) que as disposições penais sejam determinadas com precisão e não possam ser retroativas.” (pt. 13). Em apoio das questões suscitadas, a jurisdição constitucional italiana integra na análise o nível do sistema jurídico da CEDH, lembrando que “a exigência de que a natureza penal da infração e a pena aplicável sejam prévia e claramente determináveis pelo autor do comportamento punível decorre igualmente da jurisprudência pertinente do TEDH relativa ao artigo 7.o da CEDH.” (pt. 16). Por sua vez, o TJ começa por reconhecer que “os órgãos jurisdicionais nacionais competentes, quando tiverem de decidir não aplicar (…) as disposições do Código Penal em causa, estão obrigados a garantir que sejam respeitados os direitos fundamentais” (pt. 46) (…) e “podem aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, desde que essa aplicação não comprometa o nível de proteção previsto pela Carta, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, nem o primado, a unidade e a efetividade do direito da União” (pt 47). Depois, a Jurisdição europeia convoca o substrato axiológico comum e refere “a importância, tanto na ordem jurídica da União como nas ordens jurídicas nacionais, que reveste o princípio da legalidade.” (pt. 51). Salienta de imediato que “[e]ste princípio, consagrado no artigo 49. o da Carta, é imposto aos Estados‑Membros quando aplicam o direito da União (…). Assim, a obrigação de garantir a cobrança eficaz dos recursos da União não pode ir contra o referido princípio (pt. 52). Na lógica de um sistema multinível, recorda que o princípio da legalidade “faz parte das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros (…) e foi consagrado por diversos tratados internacionais, nomeadamente no artigo 7.o, n.o 1, da CEDH” (pt. 53). Determina o conteúdo e o alcance do princípio da legalidade, articulando a Carta com a Convenção, dispondo que “nos termos do n.o 3 do artigo 52.o, da Carta, o direito garantido no seu artigo 49.o tem o mesmo sentido e âmbito que o direito garantido pela CEDH.” (pt. 54). Ignora o

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relevo das constituições nacionais, prevista no artigo 53.º da Carta. Esta é irrelevante, afinal, bastando a articulação dos dois níveis europeus, o da Carta e o a CEDH. Confere até valor de precedente normativo ao acórdão Taricco, “em processos relativos a pessoas acusadas de terem cometido infrações em matéria de IVA antes da prolação do acórdão Taricco, o juiz nacional não aplique as disposições do Código Penal em causa” (pt. 60). Decide que “o artigo 325.º, n.ºs 1 e 2, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um processo penal por infrações relativas ao IVA, impõe ao juiz nacional que se abstenha de aplicar disposições internas do direito substantivo nacional em matéria de prescrição que obstem à aplicação de sanções penais efetivas e dissuasoras num número considerável de casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União ou que prevejam prazos de prescrição mais curtos para os casos de fraude grave lesiva dos referidos interesses do que para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do Estado‑Membro em causa, a menos que essa não aplicação implique uma violação do princípio da legalidade dos crimes e das penas, em razão da falta de precisão da lei aplicável ou devido à aplicação retroativa de uma legislação que impõe condições de incriminação mais severas do que as vigentes no momento em que a infração foi cometida.”

5. Algumas considerações para uma “constitucionalização marmórea”: uma preempção conflitual inversa assente na identidade constitucional? Observando a jurisprudência mais recente examinada, há que sublinhar que no caso “Melloni” havia harmonização legislativa europeia, enquanto no “M.A.S.” não havia. Recorde-se que tal facto significa que no primeiro caso se verificou uma preempção normativa em favor da UE e no segundo cado tal não sucedeu18. A decisão do Tribunal constitucional espanhol não recusou a efetivação do mandado de detenção europeu. Contem, no entanto, diversas ambiguidades merecedoras de análise crítica19.

18 Entretanto foi adotada a Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2017, relativa à luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros da União através do direito penal, JO L 198 de 28.7.2017, p. 29-41. 19 Sobre as três decisões em torno do “caso Melloni”, veja-se aida torres pérez, Melloni in Three Acts: From Dialogue to Monologue, European Constitutional Law Review, 2014, Vol. 2, pp.308333.

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Submete ao escrutínio constitucional do tribunal espanhol os “excessos” desrespeitadores da Constituição europeia que não sejam controlados pelo TJ (pt. 3). Esta orientação parece ir além da doutrina do controlo “ultra vires” elaborado pelo Tribunal constitucional alemão . Nesse sentido se exprimiu o voto concorrente de Adela Asua Barrita. Assistimos ao renascimento da doutrina “Solange”, numa versão europeia, e o Tribunal constitucional espanhol erige-se em garante de amparo da “constituição europeia”? O acórdão limita-se a reconsiderar uma doutrina anterior que considera aplicável de modo prevalente o direito constitucional nacional e o que admite é interpretá-lo à luz do direito europeu como se este fosse direito internacional como qualquer outro resultante de tratados, tal como determina o artigo 10.º/3 da Constituição espanhola e não o artigo 93.º relativo à integração europeia (pt. 4). Acaba por fazer um juízo de constitucionalidade numa matéria que foi objeto de harmonização (o TJ não o admite) e desconsidera a preempção conflitual que tem o potencial de afastar direito constitucional nacional, como foi declarado no voto concorrente Encarnacion Roca Trias. Em nossa opinião, a questão poderá ser colocada de modo inverso (o que o Tribunal espanhol não fez) e equacionar-se em abstrato como uma preempção conflitual inversa, i.e., em favor das normas constitucionais nacionais que consubstanciem a identidade constitucional do EM. Tal como o 4.º, n.º 3 do TUE (princípio da lealdade) é a base para admitir a preempção conflitual em favor do direito da União, o artigo 4.º, n.º 2 do TUE (princípio da identidade constitucional) pode ser a base para admitir uma preempção conflitual em favor das Constituições. O caso “Grogan” poderia ter sido uma manifestação dessa necessidade, aliás equacionada pelo Advogado-Geral, não fosse a deflexão do TJ. A salvaguarda da Constituição irlandesa através de uma Declaração desse EM, no Tratado de Maastricht, e posteriormente num Protocolo, é a prova de que há exigências constitucionais que não podem ser subordinadas à integração europeia. Tal pode conduzir a um alcance diferenciado do direito da União, na linha da margem de apreciação do alcance de derrogações admitidas, tal como se observou no caso “Omega”. Esta possibilidade enfrenta um óbice. Houve harmonização europeia, logo preempção, não podendo os Estados legislar na matéria. Deve considerar-se, não obstante, que a interceção entre os dois níveis normativos, o nacional e o europeu, é conflitual, não regulatória. Efetivamente, se tal não for admitido, embora de modo excecional, numa lógica semelhante à que foi seguida na jurisprudência “Omega” e depois “Sayn-Wittgenstein”20 ou “Malgoža20 Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Sayn-Wittgenstein, Processo C-208/09, EU:C:2010:806. Sobre este caso, veja-se Leonard F. M. Besselink, Respecting Constitutional Identity in the EU, Common Market Law Review 2012, pp. 671-693.

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ta Runevič-Vardyn”21, em que se estava perante liberdades do mercado interno com efeito direto, esvazia-se o respeito pela identidade constitucional. Consideramos que não faz sentido reservar o respeito da identidade constitucional apenas aos domínios não harmonizados, pois as competências dos Estados já estão salvaguardas pelo princípio da atribuição e pela consagração da preempção regulatória apenas por ocupação, e não por marcação, e pela admissibilidade da preempção conflitual em benefício de princípios comunitários fundamentais, tais como a liberdade de circulação no âmbito da cidadania. Um outro requisito imperativo é que as exigências da identidade constitucional devem enquadrar-se no substrato axiológico comum e obedecer ao teste proporcionalidade. Mais ainda, ao abrigo do princípio da confiança mútua, as exigências imperativas da União e dos outros EM devem ser integradas na equação valorativa desses princípios. Vimos essa preocupação presente no acórdão do Tribunal constitucional espanhol no caso “Melloni”. Esta perspetiva da interação multinível impõe sempre uma avaliação casuística (nos termos admitidos no caso “Aranyosi”22 e, mais recentemente, no caso “LM”23). Não pode ser deixada à consideração unilateral dos EM e dos respetivos tribunais nacionais, antes integrando-os num poliedro institucional que inclui o TJ e o TEDH, bem como a Comissão e o Conselho. O diálogo com o TJ através do reenvio é crucial. No caso “M.A.S.” não havia harmonização legislativa, logo a preempção é mínima e corresponde apenas à latitude da norma do Tratado que prevê a obrigação do EM (artigo 325.º TFUE), pelo que o princípio da efetividade não pode impedir uma maior latitude da autonomia dos EM, no caso praticamente restrita à garantia do princípio da efetividade. Neste caso, apesar de uma decisão menos controversa do que a prolatada no acórdão “Taricco”, a ambiguidade e a incerteza não estão afastadas. O tribunal constitucional italiano, no Despacho de reenvio, tinha colocado a reservas à jurisprudência “Taricco” também na perspetiva do respeito por 21 Acórdão de 12 de maio de 2011, Malgožata Runevič-Vardyn, Processo C-391/09, EU:C:2011:291. Sobre este acórdão, veja-se Hélène Brodier, De l’invocation de l’identité nationale des États pour justifier des restrictions aux libertés fondamentales des citoyens: le dernier mot appartient à la Cour de justice!, L’Europe des libertés: revue d’actualité juridique, 2011, nº 36, pp.25-2. 22 Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Calderaru, Processos apensos C-404/15 e C-659/15 PPU, EU:C:2016:198. Sobre este acórdão, veja-se Giorgios Anagnostaras, Mutual confidence is not blind trust! Fundamental rights protection and the execution of the European arrest warrant: Aranyosi and Caldararu, Common Market Law Review, 2016, pp.1675–1704. 23 Acórdão de 25 de julho de 2018, LM, Processo C-218/18 PPU, EU:C:2018:586. Michal Krajewski, Who is afraid of the European Council? The Court of Justice’s cautious approach to the independence of domestic judges, European Constitutional Law Review, 2018, Vol.14, Issue 4, pp.792-813.

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princípios supremos da Constituição que integram a identidade constitucional. O TJ não considerou sequer essa questão, mesmo sem ter havido qualquer harmonização do regime da ilicitude de factos lesivos dos interesses financeiros da UE, fazendo simplesmente um enquadramento à luz dos princípios gerais de direito e da CDFUE. Não está errado, mas não responde à questão fundamental, que é antes a seguinte: se esses princípios conferissem uma tutela dos direitos do arguido inferior à constitucional, desconsiderar-se-iam as exigências constitucionais apenas porque o EM desempenha uma função de efetivação dos objetivos consagrados no artigo 325.º TFUE? O TJ dá a entender que sim (n.º 47). O TJ aprecia as questões essencialmente com fundamento no princípio da certeza jurídica, não trata da questão da natureza substantiva ou adjetiva da prescrição, coisa que também a diretiva aprovada recentemente não faz, pelo que o problema não está inteiramente superado. Sem harmonização europeia, nem a tradição constitucional, nem a CEDH podem valer em absoluto, a primeira pela oposição de soluções, a segunda pelo facto de esta não impor, mas admitir um regime mais garantístico para os arguidos, que resulta da sua natureza substantiva. O direito dos Estados pode ficar sujeito a preempção conflitual do direito da União, mas, no confronto com princípios da identidade constitucional, deve admitir-se o valor superlativo destes e integrá-los entre os limites ao princípio da efetividade, reforçando a autonomia dos EM. Só esta orientação é conforme com um sistema jurídico plural e “marmóreo”. Impõe-se, quer na acomodação das exigências europeias, quer na acomodação da diversidade das exigências constitucionais nacionais, o mesmo enquadramento no substrato axiológico imperativo e um escrutínio casuístico dialógico entre tribunais nacionais e TJ.

6. A confiança e a autonomia num sistema multinível – em defesa da “margem de apreciação” judicial Quer o Tribunal constitucional espanhol, no caso “Melloni”, quer o TJ, no caso “M.A.S.”, enfermam da mesma conceção que não assumiu integralmente o paradigma de um sistema multinível de tipo “marmóreo”. Permanecem encerrados num numa perspetiva multinível, certamente, mas hierárquica, de níveis justaposto. Em consequência a concretização jurídica só pode fazer-se no quadro dos topoi normativos da própria ordem jurídica e não integra as exigências de abertura e reflexividade recíproca dos sistemas que o compõem. No sistema multinível que propomos, as ordens jurídicas integrantes relacionam-se como vasos comunicantes e têm uma autonomia aberta e reflexiva, segundo uma dialética agonística.

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O sistema constitucional comum aliás, desenvolve-se recolhendo inputs dos múltiplos “sistemas constitucionais” que o integram, sejam os dos EM, seja a CEDH. De modo semelhante ao que a integração no sistema da CEDH impôs às ordens jurídicas nacionais, essa abertura deve ir a par do reconhecimento de que a diversidade pode impor a diferenciação normativa, mas também uma margem de apreciação24, como a reconhecida pelo TEDH, quando as normas europeias se confrontem com exigências constitucionais enquadráveis no artigo 4.º, n.º 2 do TUE. Se a interdependência e abertura recíproca, nomeadamente através do princípio da confiança mútua, são crescentes, o princípio da autonomia é reconfigurado, mas não pode ser absolutamente sacrificado. As funções essenciais e a identidade constitucional, e mais latamente a identidade nacional, merecem salvaguarda. Esta via do sistema multinível tem como agentes construtores principais os tribunais nacionais e o TJUE, desejavelmente em diálogo com o TEDH. De novo aqui se salienta um papel que nenhum outro dos poderes num Estado de Direito pode desempenhar. É verdade que este sistema é “alinear” e comporta maior incerteza. A pluralidade, flexibilidade e inclusão são as suas maiores vantagens, em especial para enquadrar uma realidade política, económica, social e jurídica diversa e com exigências fundamentais de salvaguarda como apresenta a atual realidade europeia25.

24 Sobre o relevo da margem de apreciação, veja-se Janneke Gerards, Pluralism, Deference and the Margin of Appreciation Doctrine, European Law Journal 17, n.º 1 (2011): 80-120; J. A. Sweeney, A Margin of Appreciation in the Internal Market: Lessons from the European Court of Human Rights, Legal Issues of Economic Integration, vol. 34 (1), 2007, pp. 27-52; Francisco Javier Mena Parras, Libertés de Circulation et conceptions particulières de droits fondamentaux: quelle conciliation à travers la marge nationale d’appréciation et le respect de l’identité constitutionnelle?, in (Dés)ordres juridiques européens, Vol. 3, Genève · Zurich · Bâle, Schulthess Médias Juridiques SA, 2012, pp. 153-183. 25 Giandomenico Majone propôs que a diversidade deve ser consagrada nos Tratados como um princípio fundamental, Unity on Diversity: European integration and the enlargement process, European Law Review, 2008, pp. 457-481. Catherine Barnard, por sua vez, sugeriu que o TJ deve ter em conta essa diversidade e reconformar o princípio da efetivadade, admitindo uma maior latitude de autonomia às autoridades nacionais, “Van Gend and Loos to(t) the future”, in 50th anniversary of the Judgment in Van Gend en Loos 1963-2013, Conference Proceedings, Luxembourg 13 May 2013, Luxembourg, Office des publications de l’Union européenne, 2013, pp. 117-122. A diversidade é apresentada como a essência da cultura jurídica europeia por Constanze Semmelmann, “Legal Principles in EU Law as an expression of a European Legal Culture between unity and diversity”, Maastricht European Private Law Institute Working Paper No. 2012/7 (publicado in Towards a European Legal Culture, Munich/Oxford, Beck/Hart/Nomos, 2013).

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O DEVER DE CONFORMAÇÃO DAS DECISÕES NACIONAIS COM A JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA – FORMAS INSTITUCIONAIS INTERNAS Dulce Lopes1

Sumário: 1. O Crescente diálogo entre Jurisdições; 2. A Progressiva institucionalização daquele diálogo; 3. A Inscrição de formas nacionais de reabertura do diálogo com a Justiça da União Europeia; 4. Soluções previstas no direito português: opacidade ou clareza?

1. O Crescente Diálogo entre Jurisdições É comum referir-se a crescente tomada em consideração e a menção, tanto pelas jurisdições internacionais e europeias, como, cada vez mais, pelas jurisdições nacionais, a decisões tomadas noutras sedes, em regra jurisdicionais, que não aquela em que organicamente se situam. Nesses casos, os exemplos jurisprudenciais e legais e, por vezes também, os instrumentos de soft law são mobilizados como argumentos adicionais ou complementares, sobretudo em situações em que se pretende inflectir decisões prévias dos tribunais ou, mesmo, de outras autoridades públicas ou encontrar novas sedes de relevância para regras e, sobretudo, princípios compartilhados ao nível internacional ou regional.

1 Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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O dever de conformação das decisões nacionais com a justiça da União Europeia – formas institucionais internas Dulce Lopes

Este recurso ao direito comparado e a dogmáticas que passam a conviver entre si, toma por vezes na doutrina o nome de hibridização2 e reflecte-se, essencialmente em áreas em que, como o direito constitucional ou disciplinas em mutação e/ou consolidação, a força motriz pertence a categorias mais amplas e abertas, como as de direitos fundamentais e humanos ou categorias mais recentes como, por exemplo, as de risco sistémico3. Não é, porém, isoladamente, este o tema que nos ocupa, ainda que com ele se relacione. Procuraremos sim dar conta das evoluções, ao nível institucional, daquele diálogo, permitindo, assim, que aqueles laços de referência e tomada em consideração sejam fortalecidos, ao preverem-se procedimentos, processos ou, mais genericamente, mecanismos de relacionamento formal entre Jurisdições4, que conduzam à necessária consideração de decisões de uma nas demais. Dentro destes mecanismos ocupar-nos-emos em particular daqueles que são inseridos nas ordens jurídicas internas de maneira “voluntária”, ou seja, aqueles em que são os Estados, em especial o Estado português, que mostram, de maneira inequívoca, a sua abertura a outras ordens jurídicas para além, como veremos, das exigências que delas já decorreriam. Para tanto procuraremos reproduzir, em reduzidas páginas, a nossa, também ela curta, intervenção no XII Encontro de Professores de Direito Público, para o qual fomos gratamente convidadas. 2 Cf., entre outros, John McEldowney, Hybridization: A Study in Comparative Constitutional Law, Penn State International Law Review: Vol. 28, N.º 3, 2010, pp. 327-355; e Jasper Finke, Concepts, hybridization, principles, and the rule of law: New literature on international monetary and financial law, International Journal of Constitutional Law, Vol. 12, N.º 4, 2014, pp. 10541070. 3 Todavia, não exclusivamente, encontrando-se exemplos, sobretudo ao nível legislativo, de consideração de institutos estrangeiros, desde logo na área do direito privado. Ora, quanto mais específica for a área em que essa interacção ocorre e, sobretudo, quanto mais concreta for aquela consideração (que por vezes se assemelha à “importação” de institutos jurídicos estrangeiros), é comum usar os termos “transplantes legais”, “formadores legais” [Alan Watson, Legal Transplants: An approach to comparative law, 2.ª ed., University of Georgia Press (1.ª edição já de 1974) e, do mesmo autor, From Legal Transplants to Legal Formants, The American Journal of Comparative Law, Vol. 43, N.º 3, 1995, pp. 469-476] e “irritantes legais” (Günther Teubner, Legal Irritants: Good Faith in British Law or How Unifying Law Ends up in New Divergences, The Modern Law Review, Vol. 61, No. 1, 1998, pp. 11-32). 4 Reconduzir-nos-emos sobretudo, para efeitos do presente texto, à relação entre Jurisdições, ainda que os desafios trazidos pelo relacionamento formal entre outras Entidades, sobretudo no seio da União Europeia, seja conhecido também no âmbito político-administrativo (pense-se no comité de representantes permanentes no seio do Conselho e em toda a miríade de formas de participação das administrações estatais nas Instituições, órgãos e organismos da União, em especial das suas agências) e no âmbito legislativo (pense-se na possibilidade de participação dos parlamentos nacionais no procedimento legislativo da União Europeia, por intermédio do procedimento de controlo prévio do princípio da subsidiariedade).

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2. A Progressiva Institucionalização daquele diálogo O diálogo entre jurisdições, por constituir um inegável – ainda que nem sempre consensual, nem linear – factor de desenvolvimento do(s) direito(s) e também um mecanismo para a sua maior aproximação, senão mesmo harmonização, cedo se viu reconduzido a formas específicas. Formas estas que são previstas e mobilizadas em situações em que aquela interação entre jurisdições é essencial para a maior “implantação” e “influência” de uma delas, porque inserida num enquadramento institucional que assenta em pilares de integração ou de estreita cooperação que não subsistem sem uma cooperação estável e funcionante entre autoridades, inclusive judiciárias. E não obstante o propósito seja, portanto, a maior eficácia do direito “pressuponente”, não se pode contestar que de diálogo se trata, uma vez que este não tem sempre de ser – e nem o será a maioria das vezes – igualitário, podendo a troca de ideias e de argumentos conduzir a uma solução que se venha a impor argumentativamente a um dos dialogantes. Referindo-nos nós ao dever de conformação das decisões nacionais com a justiça da União Europeia, é imprescindível fazer referência ao mecanismo formal do reenvio prejudicial (previsto e regulado no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), instrumento de colaboração entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça da União Europeia e a cujo recurso aqueles estão, dentro de uma margem de ponderação que lhes é reconhecida pelo direito da União Europeia (e que difere consoante em causa estejam situações de reenvio prejudicial facultativo ou obrigatório), adstritos. A nossa formulação pode parecer ter um cariz muito impositivo perante a liberdade que tradicionalmente se reconhece aos juízes de suscitarem o reenvio prejudicial apenas se tiverem dúvidas sobre a validade ou interpretação do Direito da União Europeia. Contudo, os mais recentes desenvolvimentos nesta matéria – e que foram desenvolvidos por colegas de mesa neste Encontro – mostram que aquela “margem de atuação” se encontra hoje mais delimitada, por se ter concretizado que as consequências de um reenvio omitido (quando, em concreto, devido) pode conduzir a uma ação por incumprimento do Estado e à responsabilidade deste por violação de Direito da União Europeia5. Mas também em matérias particulares, em que a íntima imbricação entre Direito da União e direitos nacionais é evidente, como a matéria da concorrência, se têm vindo a consolidar nas legislações nacionais formas impostas de refe5 Cf., respectivamente, Acórdão do Tribunal de Justiça Comissão contra República Francesa, de 4 de Outubro de 2018, proferido no processo C-416/17, ECLI:EU:C:2018:811, e o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia João Filipe Ferreira da Silva e Brito e o. contra Estado português, de 9 de Setembro de 2015, proferido no processo C-160/14, ECLI:EU:C:2015:565.

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O dever de conformação das decisões nacionais com a justiça da União Europeia – formas institucionais internas Dulce Lopes

rência ou consideração das decisões de outras jurisdições. É o caso da Directiva 2014/104/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia, transposta, entre nós, pela Lei n.º 23/2018, de 5 de junho. No artigo 9.º, n.º 2 daquela Directiva, os Estados membros devem assegurar que as decisões definitivas de tribunais de recurso ou de autoridades nacionais da concorrência de outros Estados “possam ser apresentadas nos seus tribunais nacionais, de acordo com o seu direito nacional, pelo menos como elemento de prova prima facie de uma infração ao direito da concorrência e, conforme apropriado, possam ser avaliadas juntamente com quaisquer outros elementos aduzidos pelas partes”. O que significa, afinal, a obrigação de uma consideração mínima de um efeito extraterritorial6, a decisões judiciais (mas também administrativas) provenientes de outros Estados7. Obrigação mínima esta que, assinale-se, o legislador português excedeu, ao estipular não apenas a força probatória daquelas decisões judiciais mas sim que as mesmas configuravam uma “presunção ilidível da existência, natureza e âmbito material, subjetivo, temporal e territorial dessa infração, para efeitos da ação de indemnização pelos danos dela resultantes” (artigo 7.º, n.º 3). Portanto, auto-vinculou-se o Estado português a mais obrigações processuais do que aquelas que resultam do Direito da União, configurando este, portanto, um instrumento que se encontra a meio caminho entre o reenvio prejudicial e aqueles a que nos referiremos infra.

3. A Inscrição de formas nacionais de reabertura do diálogo com a Justiça da União Europeia 3.1. Razões Para além das formas de diálogo que se impõem ao juiz nacional por força do Direito da União Europeia, há que ter em consideração a possibilidade do estabelecimento de formas procedimentais e processuais nacionais próprias e

6 Sobre os possíveis efeitos extraterritoriais dos atos públicos, cfr. o nosso Eficácia, Reconhecimento e Execução de Actos Adminstrativos Estrangeiros, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 396-415. 7 Note-se que outras das vias pelas quais o legislador da União impõe alterações processuais ou procedimentais internas, passa pelo reconhecimento e eficácia de sentenças judiciais, bem como por outras formas como a aceitação de alguns atos autênticos. Dadas as especificidades destas formas institucionais e a circunstância de as mesmas se reflectirem sobretudo nas áreas do direito civil e penal, ficarão de fora da nossa análise.

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autónomas que, em cada Estado, permitam a revisão de decisões judiciais nacionais com caso julgado, motivadas pela sua contradição com o direito da União. São estas as situações relativamente às quais o debate tem sido hoje mais acentuado, uma vez que estas permitem, numa dimensão positiva, promover a congruência do direito nacional já definitivamente adjudicado com instrumentos europeus e, sobretudo, com decisões judiciais, que deveriam poder conformar o sentido, função e concretização daquele direito, nas situações em que o mesmo houvesse sido previamente “mal aplicado”. Numa dimensão negativa, pois sempre se permitiria obstar aos efeitos nefastos resultantes da imputação de responsabilidades ou obrigações de reparação ao Estado, por o mesmo ter violado, agora sem apelo nem agravo, direito da União Europeia, através de decisões judiciais transitadas em julgado e que, por isso, se tornam firmes e irreversíveis na ordem jurídica nacional. Tanto numa dimensão como na outra a influência (mas não imposição)8, como veremos, do Direito da União Europeia e, em geral, do Direito Europeu (tendo em linha de conta a intenção de respeito, o mais possível in natura, das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) é evidente. Pretende-se, assim, pela inscrição das formas nacionais, abrir novas formas de diálogo ou “reabrir” vias que já pareciam esgotadas, cumprindo, assim, da melhor forma os desígnios, proposições e decisões daqueles Direitos.

3.2. Objecções É natural que a inscrição de mecanismos que tenham incidência sobre que actos consolidados na ordem jurídica – tenham eles força de caso julgado ou de caso decidido, questão esta que não abordaremos aqui –, suscita várias campainhas de alarme em todos os operadores jurídicos, nacionais e não só. De um ponto de vista político, retornam os debates sobre a cessão de soberania, como se os Estados não estivessem já comprometidos com espaços de integração ou estreita cooperação e apenas procurassem encontrar formas de os tornar mais eficazes (encontrando-se, por isso, a questão da cessão de soberania a montante destoutra discussão). De um ponto de vista jurídico, chama-se à liça a intangibilidade do caso julgado e a estabilidade do caso decidido, como se o interesse da segurança jurídica na ordem jurídica interna não tivesse sempre de ser sopesado com a dimensão da juridicidade face a parâmetros e decisões provenientes de ordens jurídicas outras. Ao que acresce que esta ponderação, não obstante algumas, importantes 8 Sobre os graus de influência do direito da União no contencioso administrativo nacional já nos pronunciámos em “Direito da União Europeia e Contencioso Administrativo”, Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 3.ª ed., Lisboa, AAFDL, 2017, pp. 195-227.

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e nalguns casos bastante precisas, indicações para o efeito fornecidas pelo direito da União, sobretudo quando a situações administrativas, competirá primariamente aos Estados-membros, que poderão definir os moldes em que os “ajustamentos” ao direito da União devem ocorrer. Esta questão conduz-nos à terceira objeção à integração destes mecanismos nos ordenamentos jurídicos nacionais: o da violação do princípio da autonomia dos Estados que se veriam forçados a, de modo a evitar violações substantivas aos Tratados e a disposições adotadas em sua execução, integrar formas processuais de revisão ou reexame das suas decisões judiciais. Ora, como veremos, encontra-se na disposição dos Estados definir os termos em que devem dar cumprimento às demandas de reposição da legalidade comunitária, flexibilizando a autoridade dos casos julgado e decidido nacionais ou, ao invés, mantendo intacta a invulnerabilidade daqueles, convocando os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Considerar que a melhor solução nestes casos deveria passar pela uniformização de condições de revisão de atos e sentenças definitivas por banda da legislação ou da jurisprudência comunitária9, isso sim equivaleria a uma excessiva intrusão nas esferas de competências estatais, em particular no que se refere à organização e tramitação dos seus órgãos judiciais e administrativos. Isto porque não se trataria apenas de desaplicar normas nacionais para cumprir exigências comunitárias ou motivar uma harmonização de standards aplicáveis mas de conformar diretamente o próprio funcionamento e tramitação das instâncias nacionais10. Nada disso é, porém, advogado pelo Direito da União, nem pela Jurisprudência do seu Tribunal de Justiça que, no seu Acórdão Impresa Pizzarotti & C. Spa contra Comunidadede Bari et al., de 10 de Julho de 2014, proferida no processo C-213/13. expressamente articulou que “direito comunitário não obriga um órgão jurisdicional nacional a afastar a aplicação das regras processuais internas que confiram a autoridade de caso julgado a uma decisão judicial, mes9 Neste sentido, Dominique Ritleng, Le Retrait des Actes Administratifs Contraires ao Droit Communautaire, in L’état actuel et les perspectives du droit administratif européen, Bruxelles, Bruylant, 2010, pp. 263 e 269, que lamenta que o direito de revisão de um ato administrativo nacional que convém às regras comunitárias não tenha a sua raiz no direito comunitário, mas no dos Estados-membros, estando sujeito às variações destes e aponta para a necessidade de se criar um regime jurídico de revogação dos atos administrativos ao nível comunitário com condições uniformes. 10 Já não nos parece desadequada a proposta de Jörg Philipp Terhechte, Die föderalen Strukturen der Europäischen Union und das europäische Verwaltungsrecht, Berlin, Springer-Verlag, 2012, pp. 472, que considera estar em falta um sistema originário de direito processual administrativo na União que relacione melhor os vários níveis existentes, mas sem eliminar as suas especificidades.

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mo que isso permitisse reparar uma situação nacional incompatível com esse direito”, acrescentando de seguida que “logo, o direito da União não exige que, para ter em conta a interpretação de uma disposição pertinente desse direito, adotada pelo Tribunal de Justiça posteriormente à decisão de um órgão judicial que tem a autoridade de caso julgado, este deva, por princípio, revogar essa decisão”11. E é nisto que consiste o princípio da autonomia, a que deve obediência o legislador e o juiz comunitários. Julgamos, por isso, que não procedem as razões que têm vindo a ser aventadas para colocar em causa a possibilidade dos Estados definirem modos de reabrir o diálogo judiciário, quando este pareceria já estar vedado pelos institutos do caso julgado e dos casos decididos nacionais.

3.3. Natureza Encontramo-nos, nestas situações, perante situações que não configuram um conflito directo entre normas de direito substantivo, mas perante conflitos indirectos, entre regras substantivas da União e meios processuais nacionais que permitem (ou dificultam) a sua concretização. E ainda que se chegue a estes muito em virtude de se desrespeitarem as regras que regem os conflitos directos (não se reconhecendo o efeito directo de uma norma comunitária que, afinal, o tem), muitas vezes acompanhadas do não recurso a prévios mecanismos de diálogo entre juízes (sendo o mais evidente o reenvio prejudicial)12, o plano em que nos encontramos é dominantemente processual. Isto muito embora a linha divisória entre substância e processo não seja nítida nem estanque, seja para os direitos nacionais, seja para o direito da União. E neste plano, como já vimos, tem particular aplicação o princípio da autonomia dos Estados-membros, o que representa, de certa forma, um ponto de partida “inverso” àquele que nos é fornecido pelo princípio do primado.

11 No entanto, não deixou de apelar para os princípios da equivalência e da efectividade, ao referir que “na medida em que as regras processuais internas aplicáveis o permitam” um órgão jurisdicional nacional deve usar os mecanismos internos (no caso de Itália, os de completar o caso julgado ou os de revogação) para ter em conta a interpretação da legislação de contratação pública feita posteriormente pelo Tribunal de Justiça. Para uma análise deste acórdão, cfr. António Mendes Oliveira, O Acórdão Pizzarotti: caso julgado vs primado do direito europeu, Revista da AGU, Vol. 18, N.º 1, Janeiro/Março, 2019, pp. 67-106. 12 Sobre estes conflitos, cfr. Maartje Verhoeven, The Costanzo Obligation – the Obligations of National Administrative Authorities in the Case of Incompatibility between National Law and European Law, Cambridge, Intersentia, 2001, pp. 91-93, e Rolf Ortlep en Maartje Verhoeven, The principle of primacy versus the principle of national procedural autonomy, NALL – Netherlands Administrative Law Library, Junho, 2012, DOI: 10.5553/NALL/.000004.

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Em termos gerais e de modo a não nos repetirmos13, da jurisprudência do Tribunal de Justiça não resulta uma imposição do dever de reapreciação/ revisão de decisões firmes adotadas pelo Estado, ainda que aquela Alta Instância nem sempre tenha sido consequente na sua apreciação14. Existe sim, o que tem vindo a ser deduzido da jurisprudência comunitária, sobretudo em matéria administrativa e tributária, um “dever prudencial” dos Estados de ponderação do tipo de questão e direitos envolvidos e da gravidade da violação do direito da União e os distintos resultados a que por seu intermédio se chega. Acrescendo que o dever de reponderação e eventual revisão, como configuram uma excepção à regra da legalidade e da preservação do caso julgado, devem ser interpretados restritivamente. Haverá, portanto, situações em que a revisão de decisões judiciais transitadas em julgado se poderá ter por inexigível e outras em que corresponderá a um verdadeiro dever, mas sempre por força e com mediação das opções que os Estados tiverem feito tendo em consideração a promoção da conformidade das suas decisões com o direito da União15. Podemos assentar, enfim, que em causa está uma tarefa estatal, mas influenciada pelo Direito da União. E, por isso, que a exigibilidade de recurso aos mecanismos dispostos no direito interno resulta, em primeira linha, de opções deste.

3.4. Limites Na ausência de vias especificamente dispostas pelo legislador comunitário, a tutela jurisdicional garantida pelos tribunais nacionais assenta no já referi13 Sobre esta questão, cfr. o nosso O artigo 168.º, n.º 7 do Código do Procedimento Administrativo: texto e contexto, Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, Vol II, 5.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2020, pp. 371-408. Cfr., ainda, Rui Tavares Lanceiro, “O Dever de Anulação do Artigo 168.º, N.º 7, do Novo CPA e a Jurisprudência Kühne & Heitz”, disponível em http:// www.icjp.pt/content/o-dever-de-anulacao-do-artigo-168o-no-7-do-novo-cpa-e-jurisprudencia-kuhne-heitz, pp. 1-6 [publicado também n’O Direito, III, 147.º, 2015, p. 795 ss, e nos Estudos em Homenagem a Rui Machete, Coimbra, Almedina, 2015]. 14 Koen Lenaerts, Federalism and the Rule of Law: Perspectives from the European Court of Justice, Fordham International Law Journal, Vol. 33, n.º 5, 2011, pp. 1377-1378, entende que, quanto à autonomia procedimental se podem distinguir três momentos: um de remissão para os direitos nacionais; outro em que a União fez pender a balança a seu favor, incluindo nestes os casos Köbler e Kühne & Heiz; e uma aproximação mais recente em que o Tribunal de Justiça é menos assertivo, tendo uma actuação mais proactiva apenas em alguns casos. 15 Como refere Koen Lenaerts, Federalism and the Rule of Law: Perspectives from the European Court of Justice, Fordham International Law Journal, Vol. 33, N.º 5, 2011, p. 1375, existe uma divisão de tarefas entre os dois níveis de governança: o direito da União providencia o direito e as regras nacionais o remédio processual, níveis estes que têm necessariamente de se articular entre si de forma tendencialmente completa e garantística.

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do princípio da autonomia. Todavia, este encontra sempre limites nos princípios da equivalência e da efectividade. Isto porque, se compete aos Estados organizar-se e dotar-se dos meios processuais, estes devem assegurar a eficácia do Direito da União, o que acontecerá se: a) as vias internas disponíveis para o ajuizamento de litígios comunitários não sejam menos favoráveis do que as vias acessíveis para a protecção de direitos decorrentes da ordem jurídica nacional (princípio da equivalência) e; b) os meios divisados não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil a satisfação do direito conferido pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade)16. Nestes termos, a autonomia processual dos Estados membros nunca foi ilimitada, na medida em que se encontra sujeita a duas condições delineadas já nos Acórdãos Rewe de 16 de Dezembro de 1976, proferido no processo 33/76 e Comet da mesma data, proferido no processo 45/76, quanto aos sistemas jurisdicionais nacionais: a equivalência (ou não discriminação) entre as formas processuais nacionais aplicáveis às situações internas e às situações que convocam direito da União; e a efectividade no exercício dos direitos conferidos pela União17. A estes princípios veio juntar-se mais recentemente o princípio da tutela jurisdicional efectiva, disposto no artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do Tratado da União Europeia e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que veio acentuar o papel dos Estados-membros na garantia de condições suficientes e satisfatórias de recurso aos Tribunais e de administração da justiça nos domínios abrangidos pelo Direito da União. Deste princípio retira-se um especial nível de exigência quanto à satisfação dos direitos por via judicial, que já não se basta com presunções de equivalência, mas antes demanda a conformação ou, mesmo, a criação pelos Estados

16 Sobre estes critérios e indicações jurisprudenciais, cfr., por todos, Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia – Lições, Coimbra, Almedina, 2015, pp. 223225, pp. 196-197; e João Mota de Campos/António Pinto Monteiro/João Luiz Mota de Campos, O Direito Processual da União Europeia – Contencioso Comunitário, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste de Gulbenkian, 2014, pp. 111-116. 17 Johan Lindholm, State Procedure and Union Rights A Comparison of the European Union and the United States, Uppsala, Iustus Förlag, 2007, pp. 98 e ss, acrescenta duas outras limitações ao princípio da autonomia procedimental: a salvaguarda de princípios gerais da União Europeia (nos quais hoje tem particular relevo o do respeito pelos direitos fundamentais) e a existência de regulamentação comunitária específica em matéria processual.

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de meios processuais adequados à defesa daqueles direitos, sob pena de poderem ser violados direitos garantidos ao nível da União Europeia18. Todavia, a conjugação destes princípios não exclui diferenciações entre meios processuais puramente internos. No Acórdão Dragoș Constantin Târșia, de 6 de Outubro de 2015, proferido no processo C-69/14, o Tribunal de Justiça não censurou – por considerar que compete aos direitos nacionais definir se pretendem ou não estabelecer as mesmas regras para contenciosos de diferente natureza, que em matéria civil não exista a possibilidade de revisão de uma decisão judicial definitiva quando essa decisão for incompatível com uma interpretação do direito da União adotada pelo Tribunal de Justiça posteriormente à data em que a referida decisão se tornou definitiva –, apesar de essa possibilidade existir quanto às decisões judiciais proferidas no âmbito dos recursos de natureza administrativa. E também não exclui diferenciações entre meios processuais internos que introduzem cláusulas de abertura ou “janelas” para jurisdições internacionais. No Acórdão do Tribunal de Justiça XC e o., de 24 de Outubro de 2018, proferido no proc. C-234/17, perante o artigo § 363a do Código de Processo Penal Austríaco19, o Tribunal entendeu que o direito da União, em especial os princípios da equivalência e da efetividade, deve ser interpretado no sentido de que não impõe a um juiz nacional que alargue às violações do direito da União (nomeadamente da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) uma via de recurso de direito interno que permite obter, unicamente em caso de violação da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, ou de um dos seus protocolos, a repetição de um processo penal encerrado por uma decisão que adquiriu força de caso julgado. Ou seja, concluiu o Tribunal que aqueles princípios não ficam beliscados se não se estender à violação de normas comunitárias meios processuais que foram especificamente desenhados para acomodar esquemas de relacionamento com 18 Neste sentido, cfr. Miguel Prata Roque, Direito Processual Administrativo Europeu, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 330-333, que se refere a uma dimensão negativa e a uma dimensão positiva do “princípio do efeito útil”. Cfr., ainda, John S. Delicostopoulos, Towards European Procedural Primacy in National Legal Systems, European Law Journal, Vol. 9, N.º 5, Dezembro, 2003, p. 610, e Linda Maria Ravo, The role of the Principle of Effective Judicial Protection in the EU and its Impact on National Jurisdictions, Sources of Law and Legal Protection, Triestine Lecture 1, EUT Edizioni Università di Trieste, 2012, pp. 111-112. 19 Esta norma, de acordo com a tradução do Acórdão, tem a formulação seguinte: “Quando um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarar que uma sentença ou uma decisão de um órgão jurisdicional penal violou a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais[, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950,] ou um dos seus protocolos, deve ser deferido o pedido de repetição do processo na medida em que não possa ser excluído que essa violação influenciou o conteúdo de uma decisão penal em prejuízo da pessoa afetada por essa violação”.

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ordens jurídicas outras (como sucede com o sistema institucional desenhado no seio da Convenção Europeia dos Direitos Humanos). De acordo com as conclusões do Advogado-Geral Saumandsgaard Øe, o princípio da equivalência não é o princípio da “norma mais favorecida”, pelo que a diferença objectiva entre o direito da União e o direito da Convenção Europeia dos Direitos humanos implica que as ações de direito interno que tenham por base, respetivamente, esses dois corpos de normas, e que sejam relativas à validade de decisões nacionais que adquiriram força de caso julgado, não tenham de ser consideradas semelhantes. A este argumento, ao qual aderimos, pode acrescentar-se outro relacionado com a própria formulação literal, sentido e interpretação do artigo § 363a do Código de Processo Penal Austríaco. Estes impedem que o âmbito de aplicação deste artigo possa ser alargado, de acordo com os imperativos de interpretação conforme ao Direito da União Europeia, às decisões do Tribunal de Justiça que contrariem decisões nacionais com força de caso julgado. De facto, mesmo um entendimento muito amplo do princípio da equivalência não poderia conduzir a resultados que se revelassem contra legem, dado o afunilamento deliberado da formulação da disposição austríaca apenas aos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Não vemos, por isso – ao contrário do que parece resultar das conclusões do Advogado-Geral –, que o princípio da equivalência valha apenas quanto a “normas cuja origem se encontra na ordem jurídica interna do Estado-Membro em causa” (recursos semelhantes a direito interno), mas sim a quaisquer normas internas que estabeleçam mecanismos que possam ser motivados, dado o seu sentido e função, por decisões do Tribunal de Justiça. É este, como veremos, o caso português.

4. Soluções previstas no direito português: opacidade ou clareza? Em Portugal assistiu-se precisamente à tentativa de, através de mecanismos administrativos e judiciais, obstar à impossibilidade de afetar decisões judiciais que se haviam tornado firmes, de modo a promover a conformidade com o direito da União Europeia. Cumprindo, assim, os efeitos positivos e negativos que assinalámos já a estes mecanismos de direito interno. Tanto ocorreu, mais recentemente, através da inclusão, no novo Código de Procedimento Administrativo, do artigo 168.º, n.º 7 do Código do Procedimento Administrativo que prescreve que “desde que ainda o possa fazer, a Administração tem o dever de anular o ato administrativo que tenha sido julgado válido por sentença transitada em julgado, proferida por um tribunal adminis-

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trativo com base na interpretação do direito da União Europeia, invocando para o efeito nova interpretação desse direito em sentença posterior, transitada em julgado, proferida por um tribunal administrativo que, julgando em última instância, tenha dado execução a uma sentença de um tribunal da União Europeia vinculativa para o Estado português”. Artigo este que, pela “interminável” rede remissiva em que coloca tribunais e administração será, a nosso ver, tudo menos operativo20. No entanto, há que acentuar a existência, algo mais remota, de outra via alinhamento com jurisprudência posterior de direito da União. Referimo-nos ao artigo 696.º, alínea f) do Código de Processo Civil que - a par do artigo 449.º, n.º 1, alínea g) do Código de Processo Penal21 –, prevê o recurso de revisão de decisão transitada em julgado sempre que uma decisão nacional seja “inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português”. Não obstante as dúvidas que esta norma suscita em termos de formulação e de fundamentação, julgamos que uma sua interpretação adequada permite retirar ilações ao nível interno de decisões tomadas em sede de ação por incumprimento (o único meio que se reporta diretamente à apreciação do incumprimento estatal) e de decisões prejudiciais (que se traduzem de um meio indireto mas particularmente relevante de aferir do incumprimento estatal)22. De facto, o texto, sentido e função das disposições portuguesas é muito distinto do da disposição austríaca, apresentando-se mais amplo no seu escopo e dando, por isso argumentos válidos para que nele se incluam também decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia. Contudo, também esta via estritamente judicial também suscita, porém, algumas dúvidas, dada a rigidez dos prazos a que se encontra submetida, o que a tornará dificilmente concretizável23. 20 Sobre as dúvidas suscitadas por este artigo cfr. o nosso “O artigo 168.º, n.º 7 do Código do Procedimento Administrativo: texto e contexto”, cit. 21 A formulação desta disposição é a seguinte: “Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça”. 22 Cfr., igualmente, Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia – Lições, Coimbra, Almedina, 2015, pp. 223-225, e Rui Tavares Lanceiro, “O Dever de Anulação do Artigo 168.º, N.º 7, do Novo CPA e a Jurisprudência Kühne & Heitz”, disponível em http://www.icjp.pt/content/o-dever-de-anulacao-do-artigo-168o-no-7-do-novo-cpa-e-jurisprudencia-kuhne-heitz, pp. 20-21.Sobre as dúvidas de aplicação desta disposição, cfr. Nuno Piçarra, Recurso de revisão de que «decisões inconciliáveis» com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem? Anotação ao Acórdão do TCA-Norte de 8 de Julho de 2011, Cadernos de Justiça Administrativa, N.º 92, 2012, pp. 62-63. 23 Referindo algumas destas questões, vide João Ramos Lopes, A Question of Procedural Law:
the Principle of the Inalterable Nature of a Tried Case and the Violation of EU law, UNIO – EU Law Journal, 2014, disponível em http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt/Uploads/UNIO%20ENG/ UNIO%200%20-%20Joao%20Lopes%20_eng.pdf, p. 111.

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Julgamos, por isso, que não obstante compita aos Estados a criação de “respiradouros” ou “janelas” para outros sistemas, que permitam uma compatibilização, ainda que posterior e de matriz interna, do ordenamento jurídico nacional e do ordenamento jurídico comunitário, o legislador português deve repensar os meios existentes de modo a torná-los de aplicação menos duvidosa e mais operativa. Sabemos que é difícil a formatação das cláusulas normativas que estabelecem relações entre sistemas e nas quais estão em causa igualmente direitos e interesses pretensivos de privados. Todavia, a compatibilização e diálogo entre ordens jurídicas, com simultânea protecção dos direitos dos envolvidos, só se conseguirá se se cumprirem duas ideias força: clareza e flexibilidade. Ideias estas que não parecem ter presidido a nenhuma das disposições de direito interno português a que nos referimos, o que deve ser revisto.

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Título

Atas do XII Encontro de Professores de Direito Público - O Poder Judicial: Revisitar o passado e Pensar o Futuro

Edição

Escola de Direito da Universidade do Minho

Comissão

Ana Gouveia Martins | Anabela Leão | Benedita Mac Crorie | Patrícia Fragoso Martins

Data

Agosto 2020

ISBN

978-989-54587-6-9


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