Como Olhar para trás

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Algumas afirmações freudianas estão à céu aberto nesses dias de hecatombe que estamos vivendo, como: No inconsciente cada um de nós está convicto da própria imortalidade. O inconsciente não conhece cronologia. O inconsciente é regido por outras leis de condensação e deslocamento, conceitos chaves para Freud. O ser não é uma experiência que permaneça no tempo. No inconsciente há uma mistura de temporalidades como nos sonhos, espaço e tempo se misturam, se deslocam e se condensam. O inconsciente tem uma lógica temporal que é a do Só-depois. Ele instaura em nós sujeito do tempo, um tempo do atraso. Nós não sabemos nem o que dizemos nem o que fazemos no ato do dizer e fazer. Há um intervalo que, necessariamente, inscreve um hiato de uma possível consciência. Na melhor das hipóteses, só depois teremos acesso a uma certa compreensão de nossa trajetória, que não será sem os efeitos da relação com um outro sujeito. Ou seja, a memória e a lembrança passam a ser secundárias à vida. Elas são efeitos de uma história que precisa ser reescrita. Nossas lembranças se constróem a partir do que fomos a partir do Outro e a partir de traços marcados pelo início de nossa existência. Nem a Segunda Guerra, nem o COVID-19, deixará acesa por muito tempo o verdadeiro clarão que esses dias trouxeram à tona: a transitoriedade da vida. Ainda, apesar dessa tragédia, continuaremos negando a nossa própria morte. Quando a realizamos é através da morte de um outro próximo, pela dor e pela culpa. A transitoriedade da vida, não faz empuxo à própria vida. Apesar de terem tirado nosso futuro em 2020, a humanidade continuará seu caminho negando as evidências de sua fugacidade. É essa impossibilidade de reconhecer essa divisão entre fazer e dizer, vida e morte, que não conseguimos reconhecer a passagem do tempo. Se o tempo não se escreve, a busca que incide no sujeito não é a busca de algo que se teve no passado e no presente que se quer recuperar, e sim a busca de sua própria unidade, a do desejo. A busca é de algo que está fora da cadeia associativa, fora do que pode ser encontrado através da lembrança.A própria cadeia simbólica impõe ao sujeito essa busca, ao fazê-lo falar, fazê-lo agir. A busca é do lugar do sujeito, do idêntico e do diferente, o interno e o externo, o que é unido pela separação - o si próprio e o Outro. O enigma é de algo que escapou, que não se pode encontrar pela memória, mas, sim, nos intervalos - o encontro com o sujeito do desejo. Encontramos aí, a grande essência da vida e do sujeito: há nesse encontro com o passado um vazio, uma perda de representação, mas essa perda torna-se encontro a partir de um momento presente e representado. Quando narramos, a fala não torna a memória mais completa, apenas há uma reconciliação com a cadeia histórica, onde o contorno do ponto velado se escreve como efeito de vida no sujeito.


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