Como Olhar para trás

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curadoria Fernanda Lopes



“A memória é uma ilha de edição”, afirmou Waly Salomão no verso que abre o poema Carta aberta a John Ashbery (1996). Há quase um ano, Ilana Zisman, Maria Amélia Raeder, Mariana Sussekind, Priscila Rocha e eu começamos a trabalhar em um grupo de acompanhamento e discussão de trabalhos. Nos últimos seis meses nos dedicamos a pensar esta exposição. Durante todo o tempo em que falamos sobre memória (um dos pontos de contato em comum, a partir de diferentes pontos de vista, entre as produções de cada uma delas), a frase de Waly sempre se fez muito presente para mim. Memória é o que construímos e, ao mesmo tempo, é também tudo aquilo que deixamos para trás. Entre pontos tão extremos (fazer presente e deixar ir) estamos nós. Ela não é uma coisa em si, mas um processo, uma ação, que necessariamente é posta em prática por alguém, em um momento determinado. É algo que se define e se redefine a partir dos olhos de quem vê, a partir do contexto em que se insere. Memória é situação. Ela é relativa, é parcial, é ponto de vista. Memória é disponibilidade, é envolvimento. A todo tempo estamos recriando, reinventando, reconstruindo nossa memória. Talvez nossas memórias digam muito mais sobre o que somos hoje, sobre o que acontece hoje, do que sobre como fomos ou sobre o que aconteceu um dia. O título dessa exposição – Como olhar para trás – se constituiu a partir das nossas conversas e das discussões sobre os trabalhos. Diferente do que possa parecer à primeira vista, não é um manual ou um passo-a-passo de como construir memória, mas sim um questionamento ou um lembrete para nos mantermos atentos sobre o que se passa no presente e como este se constitui como lembrança.


Há quatro anos, Ilana Zisman vem constituindo uma produção que tem como um dos motores a descoberta de que uma parte importante da memória de sua família era desconhecida por ela. Era como se parte da história de sua família antes de chegar ao Brasil não tivesse existido. O processo de busca por informações, entrevistando pessoas, encontrando documentos, imagens, testemunhos, mapeando e cruzando nomes, cidades e histórias, vem alimentando a reconstrução dessa história e sua investigação artística. Em seus trabalhos há, de maneira diferente a tentativa recorrente de dar corpo às coisas, de tornar ou tentar manter presente uma memória (coletiva/pessoal) silenciada ou apagada ao longo do tempo. Talvez por isso a dimensão e escala humana sejam tão recorrentes em parte de seus trabalhos. Arquivo 1, da série Taharah (2019), ocupa quase toda a parede principal da sala. Sua presença física contrasta com a delicadeza do material que o constitui. Os papéis de seda, sustentados por uma tela pregada diretamente na parede, são tingidos em tons de vermelho em processo manual que exige o empenho da força física da artista (são o resultado possível a partir da atuação direta do corpo dela). O processo também coloca em evidência a fragilidade do material usado, que precisa resistir ao processo para manter sua integridade física. A aparência de carne e pele expostas reforça à referência no título ao ritual judaico de respeito e cuidado pelo qual o corpo passa antes de ser enterrado. Na parede oposta, a série de três pinturas sem título (2016) lida com o inverso: o papel vegetal, sobreposto em diferentes camadas, preso diretamente na parede, sem a proteção de moldura ou vidro, quase some na arquitetura, velando e revelando as formas e cores feitas pela artista. Em ambos os trabalhos, sua capacidade de permanência física é posta à prova a partir dos materiais usados. Há um jogo de opostos: enquanto um reclama presença, o outro quase não está mais ali.




O material também faz o duplo papel – de suporte e elemento central – na produção de Maria Amélia Raeder. Nos últimos anos, sua pesquisa interveio fisicamente no jornal, cortando dobrando, colando ou encobrindo, e também esteve interessada em sua dimensão mais conceitual, interferindo ora nas imagens, ora nos textos, e também na relação entre a frente e o verso das páginas. Em Estratégia para permanecer (2019), tanto o jornal quanto a fotografia ao mesmo tempo veículos de circulação de informação sobre o presente, e fontes de constituição da história e da memória coletiva – tem seus estatutos originais de documento e de verdade imparcial colocados em cheque. Na grande instalação idealizada pela artista, os 350 desenhos em nanquim sobre papel vegetal que cobrem as paredes são como mais de 300 tentativas de manter uma mesma imagem presente. As linhas são traçadas a partir de um método desenvolvido pela artista que permite a criação de infinitos percursos dentro da mesma imagem. Não por acaso, vistas isoladamente, muitas lembram mapas ou labirintos, na tentativa de (re)construção de fronteiras e novos territórios. Nessas dezenas de tentativas, nenhuma é capaz de dar conta sozinha da imagem original, ao mesmo tempo em que nenhuma exclui a presença das outras. No corredor, a artista chama a atenção para outra possibilidade de olhar novamente para a mesma imagem. A página de jornal aqui é reproduzida quatro vezes e em cada uma delas a fotografia é coberta por uma das cores utilizadas na sua impressão. Escalas como a CMYK são responsáveis pela padronização das cores reproduzidas. Em conjunto, as duas obras evidenciam a ideia de imagem (e como consequência, a memória) como construção, estimulando também sua leitura crítica, a partir de diferentes pontos de vista, deixando de lado uma postura passiva, seja como público de uma exposição, seja como leitor de um jornal.


A ideia de construção e o interesse pela imagem também são motes da produção de Mariana Sussekind. Para realizar No dia que tiraram os lustres (2020) ela acompanhou ao longo de nove meses o desmonte de um apartamento após a morte de sua proprietária. Foram mais de 500 fotografias em preto e branco feitas nesse processo, sem uso de luz artificial e com planos mais fechados, evidenciando a experiência física da artista nesse espaço. Mas o que vemos na instalação não é a documentação desse processo de tornar algo passado e sim o olhar dela a partir dele. O espaço de exposição é como uma grande ilha de edição, onde estão reunidas 60 imagens, coladas diretamente nas paredes. Entre elas há variações de tamanhos e distâncias, além da repetição de algumas. A maneira como estão encadeadas, evidencia a importância da sequência e do ritmo nessa experiência, destacando as diferentes perspectivas e pontos de vista de cada imagem e também do conjunto. Como um documentário ficcional, é Mariana quem escolhe o que vai ser mostrado (e consequentemente o que vai ser descartado) e como vai ser mostrado (influenciando na leitura possível). Não se sabe onde ou quando as fotografias foram feitas. Não há indicação de quanto tempo durou esse processo. Nem mesmo se tudo o que vemos é a mesma casa. O peso de cada imagem e da maneira como se apresenta no espaço encontra com nossas memórias pessoais, reconhecendo em nossa experiência individual alguns daqueles objetos e situações, e à nossa curiosidade em tentar descobrir mais sobre quem morava lá, a partir das pistas deixadas pela artista. O áudio que faz parte da instalação soma mais uma camada às possibilidades de leitura. Assim, No dia que tiraram os lustres é um duplo exercício de observação e percepção: primeiro para artista e, depois, para o espectador. A cada olhar, uma nova história é criada e nenhuma, nem todas juntas, darão conta de reconstruir o que foi esse apartamento.



Ficção e realidade também estão em jogo nos trabalhos apresentados por Priscila Rocha. Suas pinturas, objetos e instalações tomam como base lembranças da infância, que nesta exposição se tornam presentes na figura dos soldadinhos de brinquedo. Presentes em diferentes épocas, culturas e lugares do mundo, essas figuras sobrevivem no imaginário coletivo por gerações, evocando uma memória coletiva e ao mesmo tempo individualizada. Em Valsa ensaiada e como o senhor era quando criança. Igualmente tristes e igualmente felizes (ambas de 2020) o processo de pintura se dá quase como em um campo de batalha. Pegadas impressas pelo brinquedo na superfície da tela se repetem e se acumulam, revelando os rastros deixados por uma brincadeira de ataque e defesa. Pegadas de tamanho adulto se misturam a essas, quase camufladas, revelando uma lógica de construção própria da pintura, com sobreposição de camadas, guardando no resultado final a história de sua construção. Quase irreconhecíveis, os soldadinhos também são a base material e conceitual de outros trabalhos que colocam em cheque o processo de institucionalização da memória. A vitrine que ocupa o hall de entrada da exposição – Museu de História (Des)natural (2019) ¬– assim como a linha do tempo desenhada na parede – Agora é tarde (2020) ¬– valem-se desses recursos expográficos comuns especialmente em museus de história para dar veracidade e peças e informações sem nenhum, ou quase nenhum, lastro histórico. A memória das obras produzidas por Priscila, assim como da própria casa, também são trazidas a público. Enquanto o livro-objeto sem título (2020) reúne parte do pensamento da artista durante o processo de construção da exposição, a instalação Ghost Army (2020) “revela” uma padronagem com folhas de acanto em uma das paredes da sala. Foi a pesquisa sobre os soldados de brinquedo que fez a artista descobrir que a folha de acanto, ao mesmo tempo em que se configurou como um símbolo militar, também teve forte presença na estética ornamental. As grades de ferro das portas da sala onde estão suas obras, assim como as sancas em gesso e o guarda-corpo da escada, originais deste casarão dos anos 1930, trazem essas folhas em seus ornamentos. Fernanda Lopes



ILANA ZISMAN





“Não passa por nós um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de nós? Não é a voz a que damos ouvidos um eco de outras já silenciadas? “ Walter Benjamin, “ Teses sobre o conceito de História”, 1940

Minha produção parte de uma investigação artística iniciada há quatro anos, quando percebi que um período importante da memória da minha família não existia. Como primeira geração de sobreviventes do Holocausto, vi a impossibilidade do meu pai transmitir a própria experiência naquela situação extrema que viveu. Não possuía registros, objetos e fotos significativas que pudessem preencher lacunas e vazios. Em Escavar e recordar (1932), Walter Benjamin usa a metáfora do arqueólogo que busca reconstruir, a partir de traços e vestígios, um determinado passado: “Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado, tem que se comportar como um homem que escava”. Assim, iniciei minha pesquisa escavando e catando, buscando informações, entrevistando pessoas, encontrando documentos, imagens, testemunhos, acumulando nomes, cidades e histórias. Em meio a tantas lacunas, foi difícil tecer a coerência de uma narrativa. O que obtive no fim das escavações da memória familiar e histórica foram imagens soltas, sussurros de vidas passadas, narrativas fragmentadas, restos de corpos, ossos, vestígios. Quantas pessoas como eu viveram e vivem esta mesma dor e este mesmo vazio causados por diferentes acontecimentos históricos? Falo de todos aqueles que tiveram sua ancestralidade atravessada na linha do tempo por guerras, violências, apagamentos sociais. Preservar a memória é também uma tarefa política, onde lutamos contra o esquecimento e contra a repetição do horror. Em meu processo criativo reutilizo restos de trabalhos antigos para criar outros novos. São como fragmentos preciosos, partes de uma matéria-memória que coloco novamente em cena, trazendo-os para o presente e anulando a sua coisificação, ressignificando-os. Estes pedaços de histórias, imagens e testemunhos compõem as obras expostas, nas quais reconstruo uma superfície de reminiscência. Panos de chão, lâminas de vidros, papeis, panos translúcidos, cordas e linhas são alguns dos materiais que venho utilizando nos meus trabalhos. Meu atelier é repleto de restos de trabalhos que acumulo e guardo para algum dia utilizar – ou não. É o que tenho: restos e fragmentos. A tecnologia do fragmento que emprego parece ser a maneira pela qual elaboro esse passado igualmente fraturado e flutuante. Este movimento de juntar insanamente, agrupar para depois expor, é fazer aparecer as possibilidades plásticas desta reunião como um impulso de responder às perguntas do presente trazidas do passado. Talvez seja disso que se trata: coreografar os movimentos pelos quais a memória se manifesta para mim. Criar formas de apresentação não apenas do meu passado, mas do nosso passado, do passado da humanidade, de todos os outros oprimidos. Uma coreografia da memória silenciada que só pode aparecer assim: estrutura frágil, feita de restos reunidos, descarte de coisas maiores, de papeis que desmancham, de linhas, de trapos. E de vermelho. É no vermelho, nas vísceras, que dou vida às minhas obras.


Imagens do processo de Tahara | 2019-2020.






Em minha pesquisa, encontrei várias listas de nomes de pessoas que haviam sido assassinadas e outras que estavam desaparecidas. Uma dessas listas, era a Bricheva Necrology, (Traduzida pela Ayana Kimron, http://www.jewishgen.org/yizkor/ bricheva/bricheva.html), onde encontrei os nomes dos meus avós, bisavô, tio paterno e outros membros da família. Contudo, as listas, mesmo as de nomes, podem se tornar estatísticas e os números viram dados, perdendo a sua humanidade. Um número não tem história. As listas de nomes não dão conta de falar do horror. Por esse motivo, tento dar uma corporeidade para cada unidade de memória. Assim como membros da minha família, muitos não se sabe onde foram enterrados. Na religião judaica, assim como em outras religiões, quando uma pessoa morre, o primeiro passo é a Tahará, um ritual de limpeza de cada parte do corpo para que ele seja devolvido à terra. No processo para a construção deste trabalho, cada papel de seda é mergulhado cuidadosamente e re-speitosamente em uma água preparada com cor. O papel é tingido e o ex-cesso de água, escorrido. Cada unidade é colocada delicadamente em uma superfície lisa para secar. As unidades são colocadas umas do lado das outras e depois sobre as outras. Nesse processo, cada nome recebe esse ritual, honrando e respeitando a memória dos mesmos. O resultado final, a obra, fica então à mercê do tempo, agora que o luto (através desse processo de lavagem) foi feito. A vida segue. Ilana Zisman


Arquivo 1, Tahara | 2019-2020 Papeis de seda banhados em acrĂ­lica e lona 170 X 400cm


Sem Título | 2016. Série de três trabalhos (66 X 97, 66 X 97, 48 X 65cm) Papel vegetal, acrílica, lápis grafite e linha de algodão

Estes três trabalhos, colocados justamente na parede oposta do trabalho descrito acima na sala de exposição, compõe uma obra e traz outro aspecto da minha pesquisa, que sugere que o passado não pode ser olhado como foi. Nebulosa, a opacidade da obra traz a não certeza, a não evidência do que aconteceu. Contudo, carrega traços característicos do meu trabalho: fluidez e movimento. Como seria a forma do encontro desses fragmentos? Utilizando um papel translúcido, pintados e sobrepostos, tento falar de como não se consegue ver as capas do tempo. Tudo parece uma coisa só. Coloco as formas em diálogo. Não se pode mudar o passado - no meu processo, recolho os restos e experimento como eles podem chegar no presente







MARIA AMÉLIA RAEDER



Estratégia para permanecer | 2019 Instalação composta de 350 desenhos em nanquim sobre papel vegetal e página de jornal.







Como se dá a produção de sentido das imagens nas mídias de comunicação? Qual sua contribuição para a construção de nossa memória/esquecimento? Ao nos deparamos diariamente com estas imagens a que tipo de experiência somos submetidos? Que conhecimento podemos adquirir a partir delas? Como reter algo, lutar contra o esquecimento e a banalização? Os 350 desenhos em papel vegetal que compõe a instalação Estratégia para Permanecer cobrem todas as paredes de uma sala da galeria. Eles derivam de uma única fotografia de jornal. O método usado para compô-los é um artificio criado para permanecer na imagem; uma resistência ao impulso de consumo imediato. O resultado desse processo não pretende ampliar a visualidade da imagem nem sua comunicação; acaba talvez, apenas por reforçar a invisibilidade das imagens jornalísticas - sua vocação ao esquecimento. A folha de jornal onde a imagem foi publicada originalmente faz parte da instalação. Ora é apresentada com seu conteúdo suprimido - deixando visível apenas a legenda da foto; ora é reproduzida e tem a imagem coberta pelas cores básicas usadas na impressão do jornal. Intencionalmente, a ocultação da imagem original convoca a imaginação do espectador, o convida a suspender o tempo cotidiano e mergulhar no universo atemporal da arte. Maria Amélia Raeder









CMYK | 2020 Acrílica sobre reprodução de página de jornal.



MARIANA SÜSSEKIND







No Dia Que Tiraram os Lustres, 2020. Instalação Audiovisual. Ao longo de nove meses acompanhei o desmonte de um apartamento após a morte de sua proprietária. Enquanto as coisas eram selecionadas, editadas e retiradas pela família, novas camadas eram desveladas e ressignificadas. Tempos soterrados pelo excesso e pelo acúmulo, ressurgiam. Ausências ganhavam corpo num processo intenso e transitório. A cada dia, a cada escolha, novos agrupamentos, coisas que perdiam sentido e outras eram alçadas a uma nova existência. O desmonte das lembranças, das memórias, o descarte e a atualização. A constante construção e desconstrução do passado. Em cada canto, em cada objeto, lembranças e sensações depositadas por cada um que por ali passou eram desafiadas a resistir ou fadadas ao esquecimento. Restos de vida que reconstroem um passado ficcional. Lacunas do passado onde novas narrativas podem ser criadas. No dia que tiraram os lustres é uma pesquisa sobre o processo de olhar para trás, reolhar, discartar e preservar. É sobre a constante desconstrução e montagem da memória. E a projeção que fazemos de nós no mundo. Rastros e vazios, presenças e ausência, lembranças e sensações persistem apenas nos olhos de quem as vê. Uma grande história em andamento mas que nunca dará conta de traduzir o que foi.

Mariana Süssekind















PRISCILA ROCHA


Como o Senhor era quando criança, igualmente triste, igualmente feliz | 2020. acrílica s/ telas. 100 x 80 cm


Ghost Army | 2020 Papel de parede, gesso, tinta acrílica s/ parede. Valsa Ensaiada | 2020 Acrílica e óleo s/tela, 150 x 140cm




Where have all the flowers gone? Para onde foram todas as flores? | 2020. Livro de artista, tĂŠcnica mista.



Agora ĂŠ tarde | 2020. adesivo em vinil e objetos diversos s/ parede



favor nĂŁo brincar | 2020 MĂĄrmore e chumbo. (detalhe)


Não se sabe a data exata do colapso do terceiro milênio. Pesquisas recentes indicam que o fato oco quando o vazamento de informações confidenciais de distintos governos, tornou pública a informaç não se sustentaria no curto prazo.

Os mais pobres, tornando-se cada vez mais pobres, seriam eliminados pela fome e pelas novas doe fundamental de consumistas compulsivos de coisas inúteis, afetando diretamente a fonte de renda

Como as informações foram negadas pelos governos envolvidos e ignorada por grande parte da pop o momento em que a humanidade se viu diante de seu maior dilema histórico: escolher entre o cap

O que hoje nos parece a escolha óbvia, não era percebido da mesma forma. É preciso lembrar que d foi educada para produzir e consumir como modo de vida essencial.

Aproveitando-se do fato anterior, os mais abastados desesperados por perder a condição de senho de consumo individual. Quando estas eram atingidas, o cidadão era condecorado com uma folha d troféus, que se tornaram o novo símbolo de status da pequeníssima classe média ainda sobreviven

O fenômeno da folha de acanto se disseminou rapidamente pelo mundo e invadiu a arquitetura, a enxerga-lo como o último movimento artístico pré-colapso conhecido como Acantismo.

O Acantismo era caracterizado sobretudo pelo desejo global e incontrolável de obter a folha de ac desejo desencadeou uma onda de assaltos generalizada provocada por aqueles que não possuíam O caos se estabeleceu no mundo e a presença das forças armadas foi solicitada para garantir a ord

Os militares unidos e destinados a garantir a segurança mundial, concentraram não apenas o pode descontentamento visto que a folha de acanto era uma condecoração militar tradicional e exclusiva no Acantismo a banalização do símbolo. Pelo direito de uso da folha de acanto, foi iniciada a maior civis.

Com medo da situação, as classes mais favorecidas, apoiaram os militares enquanto fingiam dest joias foram enterradas nos jardins, paredes cobertas com gesso e muitos closets secretos foram c A guerra perdeu a força, mas boa parte da população civil e militar estava dizimada.

Sem esta parte do mercado consumidor, a economia não se sustentou e os recursos básicos a so escassos. Por estes estabeleceu- se a última grande guerra mundial, onde todos os países foram quíssimos sobreviventes e vestígios, dando origem ao que somos hoje.


orreu logo nas primeiras décadas, ção: o sistema econômico mundial

enças, deixando de exercer o papel a dos mais ricos.

pulação, a situação foi agravada até pitalismo e a própria sobrevivência.

durante muitos anos a humanidade

ores do mundo, distribuíam metas de acanto em broches, medalhas e nte.

a moda e as artes. Hoje podemos

canto em uma de suas formas. Tal recursos financeiros para obte-la. dem.

er bélico, mas também um enorme a a determinados membros e viam r guerra histórica entre militares e

truir as próprias folhas de acanto: construídos.

obrevivência humana tornaram-se destruídos, restando apenas pou-

Priscila Rocha





Museu de Histรณria (des)natural (detalhe)


Museu de Historia (des)natural | 2020. gesso, mรกrmore, ferro e legenda.




Como Conter o Mar? As Ondas do Tempo - Memória em Psicanálise. Luciana Saad Falar em memória em psicanálise é se deparar com toda a complexidade e originalidade do pensamento freudiano. Em parte porque ele faz dessa concepção da memória não só o próprio nascimento do aparelho psíquico como é aí que ele fará um corte na ideia de memória arquivo, do jeito que é compreendido no senso comum. Freud também atravessará outros mares, aqueles do “eterno retorno”, onde será através da linguagem, da repetição inconsciente dos traços na relação analítica, a possibilidade real de viver numa perspectiva totalmente transformadora, a desconstrução dessa memória. É na vivência desse processo, e na intrincada e extensa trama teórica onde será possível se aproximar da real estrutura fundante do aparelho psíquico, ser essencialmente um processo do fazer criativo. Sabemos que foi Freud a anunciar o papel estruturante das experiências do início da vida infantil, afirmando-a como uma memória permanente, inerradicável e inacessível. Há aí um paradoxo inédito: se por um lado as primeiras lembranças sucumbem a uma amnésia estrutural, como operar através do engodo - recordação/consciência -, a verdadeira dimensão reveladora de um sujeito? A lembrança para Freud tem uma função de escudo para contornar o ponto velado do posicionamento do sujeito. Desde aí, Freud deixará claro que a memória que interessa, a que vai trazer a dimensão reveladora do sujeito virá através de cifragens. Essas cifras, marcas constantes dos primeiros vínculos entre a criança e o adulto, construirão uma verdadeira topografia da memória entre as balizas do desejo e da repulsa. Somos seres do sim e do não, mesmo quando desconhecemos a quem fazemos nossas afirmativas e negativas. Será o que a criança experimentou, sem compreender, que irromperá em sua vida futura em sonhos, lapsos, antipatias e simpatias como escrita de um futuro, determinado antecipadamente pelo desejo do Outro (Freud, 1939, p.126). Nossas lembranças infantis mostram-nos nossos primeiros anos não como eles foram, mas como nos apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos do despertar, as lembranças infantis, como nos acostumamos a dizer, não emergiram; elas foram formadas nessa época. (Freud, 1898/1969, p.354) Freud não fala da lembrança de um acontecimento. O que interessa numa análise é a escrita dos traços, a permanência e o deslocamento desses traços da lembrança. Apesar do traço ser o elemento indestrutível, há uma diferença entre os trilhamentos, fazendo da memória algo dinâmico e diferencial. Ou seja, a memória implica em preferência na escolha dos itinerários, sendo em si, alteração e mudança, marca constante de um tempo perdido que escapa. Não há qualquer consciência do passado que não se dê numa narrativa, onde esquecer faz parte da construção de si mesmo.


Algumas afirmações freudianas estão à céu aberto nesses dias de hecatombe que estamos vivendo, como: No inconsciente cada um de nós está convicto da própria imortalidade. O inconsciente não conhece cronologia. O inconsciente é regido por outras leis de condensação e deslocamento, conceitos chaves para Freud. O ser não é uma experiência que permaneça no tempo. No inconsciente há uma mistura de temporalidades como nos sonhos, espaço e tempo se misturam, se deslocam e se condensam. O inconsciente tem uma lógica temporal que é a do Só-depois. Ele instaura em nós sujeito do tempo, um tempo do atraso. Nós não sabemos nem o que dizemos nem o que fazemos no ato do dizer e fazer. Há um intervalo que, necessariamente, inscreve um hiato de uma possível consciência. Na melhor das hipóteses, só depois teremos acesso a uma certa compreensão de nossa trajetória, que não será sem os efeitos da relação com um outro sujeito. Ou seja, a memória e a lembrança passam a ser secundárias à vida. Elas são efeitos de uma história que precisa ser reescrita. Nossas lembranças se constróem a partir do que fomos a partir do Outro e a partir de traços marcados pelo início de nossa existência. Nem a Segunda Guerra, nem o COVID-19, deixará acesa por muito tempo o verdadeiro clarão que esses dias trouxeram à tona: a transitoriedade da vida. Ainda, apesar dessa tragédia, continuaremos negando a nossa própria morte. Quando a realizamos é através da morte de um outro próximo, pela dor e pela culpa. A transitoriedade da vida, não faz empuxo à própria vida. Apesar de terem tirado nosso futuro em 2020, a humanidade continuará seu caminho negando as evidências de sua fugacidade. É essa impossibilidade de reconhecer essa divisão entre fazer e dizer, vida e morte, que não conseguimos reconhecer a passagem do tempo. Se o tempo não se escreve, a busca que incide no sujeito não é a busca de algo que se teve no passado e no presente que se quer recuperar, e sim a busca de sua própria unidade, a do desejo. A busca é de algo que está fora da cadeia associativa, fora do que pode ser encontrado através da lembrança.A própria cadeia simbólica impõe ao sujeito essa busca, ao fazê-lo falar, fazê-lo agir. A busca é do lugar do sujeito, do idêntico e do diferente, o interno e o externo, o que é unido pela separação - o si próprio e o Outro. O enigma é de algo que escapou, que não se pode encontrar pela memória, mas, sim, nos intervalos - o encontro com o sujeito do desejo. Encontramos aí, a grande essência da vida e do sujeito: há nesse encontro com o passado um vazio, uma perda de representação, mas essa perda torna-se encontro a partir de um momento presente e representado. Quando narramos, a fala não torna a memória mais completa, apenas há uma reconciliação com a cadeia histórica, onde o contorno do ponto velado se escreve como efeito de vida no sujeito.


A obra “Quarto em Arles” de Van Gogh tem uma representação torta, desproporcional, e com uma montagem em perspectiva. Não estaria ela a nos levar para o vazio central, ao nada profundamente vivido nos encontros fugidios do pintor com o outro? Van gogh, pinta seu vazio, o prenúncio de sua ausência, sua marca da intensidade no traço e na cor de como a vida o alumbrava. É o idoso que ainda fala de seu pai; é o Tâmisa de Turner, com sua névoa, que se encontra com outras névoas; é a memória olfativa de uma Madeleine que faz Proust realizar seu sonho infantil de se tornar um grande romancista. É no ato da escrita do processo criativo que é produtor de uma vida que, segundo o autor, não foi vivida, por sua enorme inibição. É também neste ato que memória e lembrança, através de sua corporeidade, se entrelaçam a denunciar que aqueles anos tão cheios de angústias e faltas, fizeram dele sujeito de sua própria história através da contemplação. Proust era puro olhar. É isso que ele dá a ver no livro Em Busca do Tempo Perdido. O escritor participou da sua própria vida como espectador. Nele, vemos que esse ato de recordar, repetir e elaborar reinventam seu futuro. É só numa segunda vez que as experiências e as coisas ganham realidade ou “meia-verdade”, dando-lhes fundamento e profundeza. Nesse funcionamento do próprio aparelho psíquico, que é um aparelho de linguagem, é que percebemos a incidência real de um funcionamento essencialmente criativo. A memória não é única nem fixa, ao contrário, as lembranças vão sendo construídas num processo de retranscrição, formando novos nexos. Ou seja, o passado é criado e recriado em novas articulações. No inconsciente, passado, presente e futuro se misturam. É esse tempo que emerge numa sessão de análise. É essa trama que um psicanalista é instruído a seguir. Essa mistura de traços constitui um sujeito. A lembrança infantil é como um quadro, a moldura é o próprio texto. Esses traços revelam tanto o luto das perdas envolvidas como as marcas das escolhas eróticas. Excesso, falta, brilho, opacidade, se constroem à medida do fazer e dizer. É justamente porque a linearidade não é possível que emerge a discordância onde a realidade psíquica não coincide com a realidade material. É só no a posteriori que “recuperamos” uma realidade que nunca se teve. Vocês não podem nunca estar certos de que uma lembrança não é uma lembrança encobridora. Quer dizer, uma lembrança que bloqueia o caminho do que posso situar no inconsciente, isto é, a presença - a ferida - da linguagem. Nós não sabemos nunca; uma lembrança, tal como ela é imaginariamente revivida - o que é uma lembrança encobridora - é sempre suspeita. Uma imagem bloqueia sempre a verdade. (...) O conceito mesmo de lembrança encobridora mostra a desconfiança do analista no que diz respeito a tudo que a memória pensa que reproduz. ( Lacan, 1976, p.22)

Na primeira página de Em Busca do Tempo Perdido, o aroma de Madeleine traz uma Combray - cidade em que ele passava suas férias com a avó - jamais vivida. Combray passa a existir como outra cena, como nova e como retranscrição do que não fôra vivido e sim expectado. No entanto, é nesse encontro com a perda e com o excesso que Proust vai se deparar com sua Poderosa Alegria, que constrói um presente, um possível, em puro estado


de potência, um porvir desejante. É ela que, tão presente no ato criativo, “tem uma intenção de despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produz o ímpeto de criar”. (Freud, 1914:212,SE.) Há algo de imperioso na raiz do aparelho psíquico que o incita a transmissão. Sendo este um aparelho de linguagem, não há qualquer consciência do passado que se dê fora de uma narrativa. O ser falante está fadado a isso: fazer falar “o real”. Os artistas estariam mais perto dessa necessidade fugidia de reter esses momentos. Fixar esses momentos de intensa percepção, onde o encontro com a falta se deu - a lógica de não-oposição entre perda e encontro, a produção de uma meia-verdade procurada. Gabriel García Márquez declara que toda a sua obra provém de uma infinita saudade - de Mercedes, seu primeiro grande amor, de seus avós e sua fictícia Macondo.

Mas essa contemplação( de fragmentos de existência subtraídos ao tempo), embora de eternidade, era fugidia. E não obstante eu sentia como único fecundo e verdadeiro prazer que ela me concedia em raros intervalos da minha vida... Por isso, essa contemplação da essência das coisas, estava agora bem resolvido a retê-la, a fixá-la, mas como? (Proust, O Tempo Redescoberto, 1983,pp 55 e 56.)

No caso, Proust escolheu a literatura para contornar a nostalgia, fugindo da melancolia e frustração. Nele encontramos a junção entre criação e fantasia. Ora, entre os dois reside a força de um vazio, que longe de ser “triste”, é antes de mais nada, força propulsora de desejo. Designar, dar um nome ao real, invocar o enigma do desejo de cada um, disso nenhum ser humano é capaz de escapar. Daí uma dimensão trágica à trajetória humana; a de ter que inventar um real, onde é preciso construir uma narrativa para sua existência. Assim como diz um ditado francês, referindo-se aos vizinhos ingleses e ao conhecido Canal da Mancha: Du sublime au ridicule, il n’y a qu’un pas. Isso significa que, do sublime ao ridículo, há apenas um passo. Ou seja, cabe ver no enigma da mancha, que concerne a todos (o enigma de nosso desejo inconsciente) a emergência do traço, de uma cifra que possibilite a leitura e a produção de uma multiplicidade de sentidos que levem à Poderosa Alegria. O ato de criação se conjuga com um certo esforço da memória. Há uma via de acesso que o sujeito tem que atravessar até produzir objetos de valores tão diversos. Na mesma alcunha do ato criativo encontramos a tessitura do próprio aparelho psíquico; inefável, indizível, e da impossibilidade de capturar pelo simbólico e imaginário, tudo do real. Ou seja, há no processo criativo a incisão do caos intrínseco ao golpe da revelação do inconsciente, do real, simbólico, imaginário, objeto do desejo, objeto pulsional, corpo, ética, estética. Como não ceder à plena confirmação que o “inconsciente, é um depósito, um aluvião de linguagem” (Lacan, Radiofonia)? Retomando o sarcástico ditado francês, referindo-se aos vizinhos ingleses, quanto o que os separa é apenas um passo, traço, mancha - , sim, esse é o nosso veredicto humano. Nós lemos. Somos seres de territórios instáveis por “acharmos” no mundo a cifra, a letra, a escrita, a interpretação possível. Aludindo à Picasso - “eu não procuro, eu acho”- ainda


assim, na busca, algo me indetermina entre o que me separa e aproxima do outro. O “eu” nada mais é do que um emaranhado de fronteiras, ansiando por transformações. Essa inquietude humana também nos leva ao coletivo, a um outro paradoxo - sou mais eu sendo outro. Eu e Tu, indivíduo e social, fração e continuidade. Terrível e admirável sina humana, que produz guerras, conflitos, mas também Ciência, e prêmios Nobel. Nesse sentido, o artista assume esse lugar sintomático do entre duas mortes, onde se deve morrer duas vezes eternamente. Seu nome de sujeito o conforma e o engana, todavia, sua obra, por conseguir uma inscrição no real da causa humana, ultrapassa-o enquanto sujeito. Ele morre como pessoa para dar vida à ela. Da Vinci sobrevive ao tempo em seu sorriso de Monalisa sem, no entanto, sabermos de Leonardo. O que está a nos dizer o sorriso da Gioconda? A nossa transitoriedade? O enigma da sexualidade? Torna-se evidente a complexidade de inscrever no mundo algo durável. Algo que vire um “Bem” (meu bem querer, e Bem objeto do capital) que tenha valor de troca, e que no entanto é em si o ex-nihilo. Há em todo artista um conflito, onde o “objeto artístico”, seja ele de qualquer natureza, tenta resolvê-lo: como ser e permanecer quem se é em meio a um grupo? A arte passa a ser concebida como uma evasão, uma retirada da cena do mundo, mas ao mesmo tempo, como um manejo inconsciente de simbolizar as percepções, suportando a separação e a existência contingente. Pois, em cada traço do artista, o enigma da mancha nos concerne a assinatura de um certo cosmopolitismo. Quando mais eu sou “eu”, é quando eu me encontro com um pequeno passo do outro. Outro lugar, outro pensamento, outro sentimento, outro mundo, uma pequena invasão na tentativa de ir ao encontro do sublime, onde não há espaço para o ridículo e sim para o espanto do encontro. Quando ele acontece é sempre uma certa “instalação” - a fruição estética contempla o tempo e o espaço: a morada transitória de uma Poderosa Alegria.1 Rio, Agosto de 2020. Luciana Saad é Psicanalista lacaniana. Dedica-se à Psicanálise há trinta anos 1

A Paixão segundo G.H (trecho)

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem. Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos. Ficarei perdida entre a mudez dos sinais? Ficarei, pois sei como sou: nunca soube ver sem logo precisar mais do que ver. Sei que me horrorizarei como uma pessoa que fosse cega e enfim abrisse os olhos e enxergasse - mas enxergasse o quê? um triângulo mudo e incompreensível. Poderia essa pessoa não se considerar mais cega só por estar vendo um triângulo incompreensível? Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? a lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque verei apenas a claridade maior. Enxerguei, mas estou tão cega quanto antes porque enxerguei um triângulo incompreensível. A menos que eu também me transforme no triângulo que reconhecerá no incompreensível triângulo a minha própria fonte e repetição.



E bem, o que resta? As estratégias da arte para lembrar Mariana Caldas

O que você disser, não diga duas vezes. Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o. Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato Quem não estava presente, quem nada falou Como poderão apanhá-lo? Apague os rastros! Cuide, quando pensar em morrer Para que não haja sepultura revelando onde jaz Com uma clara inscrição a lhe denunciar E o ano de sua morte a lhe entregar Mais uma vez: Apague os rastros! (Assim me foi ensinado.) Bertold Brecht

O poema de Brecht nos apresenta um mal contemporâneo que não podíamos prever até o século XX: o apagar dos rastros. Para explicar o poema de Brecht, é necessário explicar como o conceito de rastro é uma chave analítica importante no âmbito da presente exposição Como Olhar para Trás. Em particular, é necessário de antemão defender uma forma de contar histórias diferente do que compreendemos tradicionalmente. Tratar da memória é por si só indicar que algo não existe mais entre nós, e, por isso, devemos entender o que aconteceu não como efeitos de uma causalidade, mas como fragmentos que ainda habitam o mundo que vemos e compartilhamos.

Walter Benjamin cita o poema de Brecht no texto Experiência e Pobreza (1933), que é uma importante referência para a discussão entre as potências e limites da arte para explicar a barbaridade. Ele escreve esse texto ao observar como muitos soldados da 1ª guerra voltam mudos dos campos de batalha. Benjamin irá, em conjunto com Brecht e tantos outros, se debruçar nas estratégias da arte contemporânea ao alargar a nossa compreensão do que aconteceu – não para reproduzir como foi exatamente, mas para que a ausência de palavras não leve ao esquecimento de eventos que todos nós somos (e devemos) ser responsáveis por lembrá-los. Percebemos, assim, que a exposição é uma proposta de propiciar um incômodo ao espectador que vê e circula nos diferentes ambientes: o incômodo da ruptura, do vestígio, e do fragmento. São pistas que iluminam possíveis narrativas que não encontraram em palavras uma possível representação. Abraça-se, aqui, uma estratégia que reconhece que muitas experiências de vida precisam ser lembradas de alguma forma, ainda que sempre estejam sob ameaça de serem esquecidas.


O tema da narração é fundamental para compreender como os rastros são essas pistas de um certo tesouro perdido que devemos escavar quando percorremos as diferentes poéticas das artistas da exposição. Para Benjamin, a questão fundamental é o que é contar uma história? É justamente essa relação entre memória e contar histórias que se torna fundamental para a constituição do sujeito e sua relação com o mundo ao redor. Isso vem de uma certa tradição grega que coloca a Odisseia como obra paradigmática para a escrita da história enquanto transmissão e oralidade. Dos gregos, aprendemos com Heródoto e Tucídides que a História surgiu para cuidar das narrativas dos grandes feitos históricos para que não fossem esquecidos. Dessa forma, contar histórias era uma prática social relevante para tecer os fios que nos conecta uns aos outros, por gerações. Quando Benjamin nos introduz à uma crise na experiência no século XX, ele entende que há alguma ruptura na forma como transmitimos um passado e como honramos aqueles que não estão mais entre nós. Isso é ainda mais evidente quando resgatamos a etimologia de “palavra”, intimamente associada à pedra, inscrição, algo que fica. “Rastro” vem do grego sèma, que implica inscrever algo na pedra para não esquecer: o túmulo, sepultura. Assim, a relação entre pedra, palavra e história que, de acordo com Heródoto, era papel dos poetas e historiadores cuidarem para não deixarem as experiências individuais caírem no esquecimento.

A exposição Como Olhar para Trás se propõe à uma espécie de canto de Ulisses: olhar para trás para trazer à superfície algo que se perdeu, um tesouro perdido. Porque, embora a tradição exalte os grandes feitos da história para que encontremos um sentido na forma de coabitar este misterioso mundo em comum, essa mesma tradição também apresentou a barbárie em seu desenvolvimento. Nesse sentido, Brecht aponta para a ferida da nossa época: os rastros – o que resta? Apague-os, esse é o imperativo. Diante do inenarrável e do irrepresentável dos campos de extermínio, Primo Levi diz que escreve É Isto um Homem? com uma necessidade que se liberte do que viveu. Nas suas palavras, essa urgência provém da constatação de que: “pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem”. Ao longo dos seus escritos, Primo Levi narra um pesadelo recorrente: voltar para casa e, entre amigos e familiares, falar o que aconteceu e ninguém se interessar. Por isso, Levi passa sua vida na insistência de falar ainda que ninguém possa narrar com precisão. A insistência de lembrar é um ato de coragem diante de tudo o que foi feito para que não houvesse pistas ou nenhum rastro de Auschwitz. E bem, o que sobra? Sobra a memória. Sobra o exercício ético de imaginar o que aconteceu para que o imperativo do nunca mais seja um norte coletivo de ação. Em uma contemporaneidade que ordena que apaguemos todos os rastros – corpos, narrativas, lembranças -, o arquivo, a biblioteca e o museu são repositórios de memórias materiais importantes para a reflexão do nosso mundo e de suas formas de acumulação e arquivamento para fazer memória. Por isso, a arte ocupa aqui um papel fundamental no resgaste da memória. Dado seu caráter fugaz, a arte apresenta estratégias de rememoramento capazes de recuperar aquilo que já não está mais. Assim, a arte tem a função política de


reorganizar sentidos, mobilizando-os em circuitos diferenciados, transformando a recepção passiva do espectador para participante ativo da circulação da informação – para tentar imaginar o irrepresentável. Os trabalhos da memória são bem ilustrados a partir das obras de Ilana Zisman. Em particular na série de pinturas, a artista apresenta camadas delicadas de papel de seda que se sobrepõem e no qual vemos pedaços tinta vermelha ao fundo. Embora apareça borrado e até fugaz, os borrões mostram que há algo submerso, fora do campo do que é possível ver. Não os vemos totalmente, porém o risco em grafite é uma pista. Um risco que nos deixa um rastro, que escapa, mas que insiste: há algo a se lembrar. Um risco que atravessando superfícies diferentes, propicia um encontro de tempo e espaço, entre o passado e o futuro, entre o que aí está, porém já não o está. Eis a experiência da memória: entre camadas territoriais, há um risco que suspende o nosso presente e nos recorda algo que esquecemos. Eis o dever de cada geração: nos ater ao risco do grafite para lembrar do que não é possível narrar. A arte pode propiciar estratégias de alargamento da experiência vivida, propiciando uma ruptura na ordem de como as coisas são contadas. Portanto, um exercício ativo de memória no sentido de se ater aos rastros que nos são deixados para refletir sobre as nossas condições presentes. Assim como na obra Tahara, Zisman delicadamente cuida da pintura e do processo de limpeza de cada papel de seda – um processo ritualístico -, para possibilitar um fragmento dos rastros apagados da sua história pessoal, não se trata de recuperar um passado como ele foi exatamente; ao contrário, se trata de alargar nossa consideração ética de si e de outros que constroem e projetam significados em um mundo comum. Nessa mesma linha, ainda tateando os rastros que ficaram, Mariana Süssekind nos apresenta uma série de fotografias tiradas enquanto acompanhava o desmonte de um apartamento após o falecimento da sua proprietária. Quando as câmeras fotográficas surgiram no século XX, elas colocaram uma tensão com as outras manifestações culturais, tais como pintura e escultura, pois retirava da obra de arte sua aura. A fotografia potencializava a reprodutibilidade da obra, colocando em xeque sua manifestação autêntica e única da obra de arte. Para além da inovação técnica de transmissão e reprodução, a fotografia também é reveladora pois se pretendia, no início, manter algo que já não estava lá. Então, um exercício de permanência das coisas. A artista incorpora esse exercício de escavação, buscando rastros de uma vivência que não está entre nós e que informa formas possíveis de se manter no mundo. Isso é ainda mais simbólico quando lembramos a associação dos objetos e sua relação com a memória, pois, como observa Levi: “[os objetos] essas coisas fazem parte de nós, são algo como os órgãos de nosso corpo; em nosso mundo é inconcebível pensar em perdê-las, já que logo acharíamos outros objetos para substituir os velhos, outros que são nossos porque conservam e reavivam as nossas lembranças”. São também esses objetos deixados para trás que Priscila Rocha usa para criar uma ficção de linha do tempo a partir da origem das folhas de acanto, usadas tanto em


ornamentos estilísticos arquitetônicos, mas também incorporada à símbolos militares, especialmente do Exército Napoleônico. A potência da obra reside na desestabilização dos signos e símbolos, e como eles são apropriados por certas narrativas para informar um sentido. Como a linha do tempo mostra, ao narrar uma história alternativa, nos damos conta das apropriações dos passados a partir de seus restos esquecidos. A ressignificação do uso dos objetos, e os soldadinhos de chumbo em pedaços, nos diz acerca dos usos políticos desses objetos e significados. Vemos como a memória é intimamente política porque seus sentidos e significados são um campo de disputa por distintos atores, que visam se apropriar desse passado de forma a determinar um sentido no presente e formalizar uma identidade social de comunidades políticas. Porém, as dimensões privada e pública da memória se interpenetram constantemente de forma a ser sempre uma textura aberta e em discussão. Nesse sentido, a exposição nos mostra como a memória é caracterizada por uma dinâmica frustrada de lembranças, interrupções, construções e esquecimentos que visam dar sentido à um passado coletivo – por isso, não se restringe apenas à experiência direta desse passado ou do passado traumático. A questão é como essa experiência é transmitida e politizada na esfera pública. E, sobretudo, como as dinâmicas de esquecimento e lembrança informam como damos sentido ao tecido comum de como vivemos no mundo.

Maria Raeder nos apresenta uma outra estratégia estética de rememoração: ela realiza um exercício de repetição e apropriação de materiais ao colocar um papel vegetal em cima de um jornal e, a partir dele, propor desvios. O método é desviante, pois criase, a partir de uma materialidade objetiva, esboços utópicos de percursos possíveis, cuja temporalidades se cruzam no papel, como se dissesse: “um outro caminho é possível”. A instalação nos remete uma desorientação, como um labirinto, no qual buscamos uma saída. Só que nesse labirinto, o espectador encontra elementos do passado que, na verdade, não parecem tão distantes do presente. Esses desenhos funcionam como um fio que guia os olhos para encontrar um caminho, tal qual o fio de Ariadne que aponta para uma saída possível. Nesse sentido, Jeanne-Marie Gagnebin vai dizer que a linguagem seria o fio da memória, às vezes rompida, mas que nós narramos uns aos outros. Assim, narramos o que lembramos e esquecemos em um labirinto que não necessariamente possui um centro único de significado. As artistas da exposição recorrem à materiais de uso ordinário, o que enfatiza que são os objetos cotidianos, banais, aqueles que guardam em si uma historicidade perdida. Formas de viver o espaço que demandam atenção. Porque é justamente no exercício da distração e dispersão que somos atravessados por uma memória involuntária ou, como Borges justifica, “porque el olvido es uma de las formas de la memoria, su vago sótano”. No momento da dispersão, é possível abrir espaço para uma outra experiência vivida, que nos demanda atenção. Nesse sentido, a materialidade da exposição nos apresenta um estranhamento, porém, um estranhamento necessário, pois deve-se ser irrompido por aquilo que vemos e sentimos para ousar imaginar o que não se pode representar. Colocamo-nos


em frente aquilo que escapa: “Frente a lo que desaparece: lo que no desaparece”, lembra Sara Uribe. No cenário das ditaduras latino-americanas, cujo silêncio insistente acerca dos desaparecimentos políticos se mantém, familiares em busca das suas filhas, filhos, netas e netos, etc. se voltam para aquilo que fica deles: pedaços de roupas, trapos, objetos esquecidos. Mães e avós que costuram esses tecidos velhos transformando-os em relíquias, carregando-os consigo, como se as protegesse. Assim, há uma materialidade que as faz não esquecer desses rostos, delicadamente envolvidos no tecido da memória, pois ali onde está o perigo, a dor, a exclusão, está também algo de potente, algo que dá presença a eles. Uma memória que insiste não passar, que não alcançamos, mas é o que pode nos proteger em sociedades marcadas pela violência silenciosa. A arte, dessa forma, se torna uma estratégia importante para o não- esquecimento, para encontrar outras formas de narrar, outras formas de sentir. Assim como Walter Benjamin ensina que o exercício da memória demanda um trabalho de escavar, tal qual um arqueólogo, a arte da memória não se reduz ao inventário dos objetos trazidos à luz (embora seja a primeira etapa desse resgaste: tornar visível o esquecido), mas a arte impõe uma experiência cognitiva sensorial disruptiva que alarga a compreensão do nosso presente. Por fim, ao voltarmo-nos ao que resta, a memória expressa em tecidos simples, descolamentos corporais labirínticos, imagens borradas – vemos uma representação impossível, em ruínas. Contudo, as ruínas são importantes ao incorporarem elas mesmas a dúvida sobre a sua origem: elas anunciam a perda de sentido que ameaça toda a obra humana. Mas é precisamente nessa falha que se lança uma luz. Em outras palavras, é precisamente a lembrança momentânea que nos revela tudo. Assim, é preciso atenção ao escavarmos os restos. É preciso cuidado para ver o perigo anunciado pela memória. Nesse sentido, a arte pode ser uma oferecer um lugar possível para alargamento de sentidos, pois propicia um outro tipo de reflexão que diz mais sobre quem as olha que sobre o que é olhado. Mariana Caldas






















Ilana Zisman

Maria Amélia Raeder

Mariana Süssekind

Artista visual e educadora. Entre 2009 e 2014, fez uma série de cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage,RJ. Curso de Filosofia e Arte Contemporânea na PUC-RJ. Curso o Processo Criativo, Charles Watson no Polo Contemporâneo. Bacharel em Psicologia na Universidade Santa Úrsula, RJ. Diretora do Expression, escola de idiomas e arte. Desde 2015, desenvolve uma pesquisa artística, através do que chama tecnologia do fragmento, na tentativa de reconstruir uma memória do inenarrável e uma memória do silêncio. Investiga como materiais que remetem as histórias, podem ser utilizados para acessar um passado fraturado no tempo.

Possui Pós Graduação em Arte e Filosofia pela PUC-RJ, especialização em artes pelo The Art Institute of Houston-USA e graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Bennett-RJ. Fez cursos livres na The Glassell School of Art (HoustonUSA), na Associacion Estímulo de Bellas Artes (Buenos Aires–AR) e na EAV-Parque Lage. Participou de Imersões Poéticas e Poéticas em processo na Escola sem Sitio do Paço Imperial-RJ, do Ateliê Mundo Novo de Charles Watson e do Laboratório de Estudos em Arte Contemporânea de Frederico Carvalho. Pesquisa as camadas de significação das imagens, em especial na produção de sentido das imagens nas mídias de comunicação.

Vive e trabalha Formada em Com pela PUC-Rio, em Fotografia n Cinema Docume com mestrado em Estética na ECO-U trabalha com mon e vídeo se aprofu arte e documen curta “Estado d premiado no R Internacional de C e os documentári Preso” e “Amadora e prática da mont de cinema. Sua pesquisa a técnicas artesana analógica e im para abordar auto-representaçã e montagem. experimentação c das imagens, e de observância do mergulha no te onde seu corpo é a justa de suas p agora.


d

no Rio de Janeiro. municação Visual pós-graduada na UCAM e em entário na FGV, m Comunicação e UFRJ. Desde 2001 ntagem de cinema ndando em vídeo ntário. Dirigiu o de Emergência”, RECINE- Festival Cinema de Arquivo ios “O Espaço do a”; e leciona teoria tagem em cursos

artística combina ais de fotografia magens digitais temas como ão, memória Através da com o descontrole e uma angustiante tempo, a artista rritório feminino, a medida, a forma possibilidades no

Priscila Rocha,

Fernanda Lopes

De Petrópolis, vive e trabalha no Rio de Janeiro Pós Graduada em história da arte e da arquitetura pela PUC- RJ, frequentou durante sua formação o Parque Lage no Rio de Janeiro, o Instituto Tomie Othake e FAAP- SP em São Paulo. Pesquisa as relações dos vestígios do tempo no espaço e como o homem se relaciona com eles. Busca encontrar nessa memória espacial, elementos que possam ser apreendidos e ressignificados artisticamente por técnicas distintas. Fez residência artística na Casa do artista Jaime Isidoro em Portugal, participou de diversos exposições. Destacando a Bienal de Arte de Cerveira de 2017, Exposição Quedas 2019 e Entre Conversas 2017. Possui obra no Acervo da Fundação Bienal de Arte de Cerveira- Portugal.

Doutora pela Escola de Belas Artes da UFRJ, atua como curadora assistente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. É organizadora, do livro Francisco Bittencourt: ArteDinamite (Tamanduá-Arte, 2016), e autora dos livros Área Experimental: Lugar, Espaço e Dimensão do Experimental na Arte Brasileira dos Anos 1970 e “Éramos o time do Rei” – A Experiência Rex (Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça, Funarte, 2006). Curadora da Sala Especial do Grupo Rex na 29a Bienal de São Paulo (2010). Em 2017 recebeu o prêmio da Associação Brasileira dos Críticos de Arte 2016 pela curadoria da exposição Em Polvorosa – Um panorama das coleções MAM-Rio.


COMO OLHAR PARA TRÁS

Exposição

Catálogo

Curadoria Fernanda Lopes

Textos Fernanda Lopes Luciana Saad Mariana Caldas

Realização Z42 Arte - Direção Zyan Zein Direção executiva Eduardo Guise

Identidade Visual e Design Gráfico Mariana Sussekind Iluminação Art & Luz - Rogério Emerson Tratamento de imagens Thiago Barros Equipe de Montagem Vitor Monteiro Assessoria de Imprensa Mídiarte Comunicação

Créditos Fotográficos Fernando Souza Claudia Tavares Maria Raeder Mariana Süssekind Visitação Z42 Arte Rua Filinto de Almeida, 42, Cosme Velho – Rio de Janeiro Segunda a sexta, das 13h às 18h (21) 9 8148-8146 (21) 9 93938976 WhatsApp Mais Informação @como_olhar_para_trás @Z42arte wwwz42.com.br


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