COHRE Bulletin Latin America Vol1 No.3 2008 - Portuguese

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Ano 1_Nro. 3 Setembro / Outubro 2008

CENTRO PELO DIREITO À MORADIA CONTRA DESPEJOS

Boletim_ Direito à Moradia e à Cidade na América Latina 2008 | #03 PAG

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Editorial

Reforma constitucional / Equador

Assentamentos urbanos / Venezuela

Direito à Cidade / Perú

Rumo a uma nova legislação / Uruguai

Avanços e resistências diante o Direito à Moradia na América Latina

O Direito à Cidade no novo projeto da Constituição equatoriana

Os Comitês de Terras Urbanas e o processo de regularização de terras

Resistência social pela Centralidade de Lima

A Lei de Ordenamento Territorial na República Oriental do Uruguai

Por Sebastian Tedeschi

Por Gerardo Pisarello

Por Ada Colau

Por Silvia de los Rios Bernardini

Por Graciela Dede

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Créditos | Apoios


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Editorial Avanços e resistências diante o Direito à Moradia na América Latina Por Sebastian Tedeschi

A América Latina está vivendo um momento de inovações legais no contexto dos governos mais progressistas. Esses avanços refletem-se nos processos constitucionais e mudanças legislativas na Bolívia, Equador, Venezuela, Uruguai e Brasil, orientados a abordar – de maneira diferente – o problema dos assentamentos informais. Esse processo é acompanhado por uma ampla mobilização social e protagonismo dos movimentos sociais urbanos. Essa tendência foi iniciada pelo Brasil com a promulgação da sua nova Constituição de 1988 e, depois, com o seu Estatuto das Cidades (2001). No decorrer dos últimos meses, foi a vez do Equador inovar com a inclusão do direito à cidade, à água, ao saneamento e a uma série de padrões internacionais referentes ao direito à moradia adequada no seu novo texto constitucional. Incorporam-se, ainda, as reivindicações jurídicas provenientes do movimento indígena, tais como o reconhecimento da Pacha Mama1 como titular de direitos, além do conceito de sumak kawsay que significa “bem-viver” no idioma quechua2 como articulador desses 1 2

direitos. Esses avanços também se refletem – em alguma medida – na Venezuela com o Decreto 1.666 (2002) e o protagonismo dos Comitês de Terra Urbana, bem como no Uruguai com a nova Lei de Ordenamento Territorial (2008). Entretanto, nesses países as organizações sociais urbanas continuam sustentando que os avanços legislativos ficaram na metade do caminho. Essa situação poderia melhorar se, por exemplo, na Venezuela se discutisse o projeto de Lei sobre Regularização de Assentamentos e se, no Uruguai o novo projeto aprovado tivesse um enfoque consistente com os padrões internacionais de direitos humanos de modo a não permitir – como até agora ocorre - os despejos forçados. No entanto, essas inovações apresentam como contraste processos regressivos como o do Peru. Nesse País, no marco de mudanças da última década, a eliminação do direito à moradia na Constituição ou a derrogação da Lei do Inquilinato deixou os vizinhos pobres do Centro de Lima indefesos perante os processos especulativos no

contexto dos planos de renovação urbana. Sem dúvida, devemos reconhecer que a consagração constitucional do direito à cidade, um marco jurídico mais adequado aos padrões internacionais de direitos humanos, e a implementação de políticas mais participativas no planejamento urbano e a regularização de assentamentos são conquistas significativas. Resta como dívida focar o problema dos despejos e a persistente criminalização dos “sem-teto”. Por outro lado, também persiste o desafio de fazer com que as políticas públicas apliquem essas conquistas normativas. Mesmo que essas mudanças demonstrem um balanço positivo, ainda assim requerem um compromisso contínuo para assegurar que o direito à moradia e à cidade sejam implementados, e que os destinatários das políticas de moradia sejam protagonistas nesses processos. Na presente edição, queremos retratar essas tendências com seus avanços, tensões e resistências. Nesse sentido, agradecemos a todos os autores por suas contribuições e reflexões vitais.

Pacha Mama é uma deusa venerada pelos povos indígenas dos Andes, na América do Sul; significa Mãe- Terra. Idioma quechua é uma língua de ameríndios, própria de comunidades indígenas da região dos Andes, na América do Sul.

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Reforma constitucional / Equador

O Direito à Cidade no projeto da Constituição equatoriana

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Por Gerardo Pisarello *

No dia 24 de julho passado, foi aprovada em Montecristi, Manabí, uma nova proposta para a Constituição do Equador. O texto, surgido da Assembléia Constituinte após um árduo debate, será submetido a um referendo no dia 28 de setembro. Se o texto for ratificado, essa Constituição se converterá na primeira do mundo em reconhecer, por um lado, o direito a uma moradia adequada e digna no marco explícito do direito à cidade, e por outro, a um hábitat seguro e saudável. O novo texto, que veio para substituir a atual Constituição de 1998, contém um Preâmbulo, 444 artigos, 30 disposições transitórias, uma derrogatória e uma final. Se, em termos gerais, se trata de uma proposta com claro perfil de oferecer garantias, a abordagem das questões habitacionais resulta especialmente inovadora. Os direitos vinculados à moradia e ao hábitat, se inscrevem no marco do que o constituinte chama de direitos do bom viver, tradução da expressão quéchua1 sumak kawsay. Concretamente, consagra-se o direito a um hábitat seguro e saudável, a uma moradia adequada e digna e, o que é mais interessante, "ao desfrute pleno da cidade e de seus espaços públicos, sob os princípios de sustentabilidade, justiça social, respeito pelas diferentes culturas urbanas e equilíbrio entre o urbano e o

rural" (artigo 31). Dessa forma, e dando eco aos reclamos de numerosos movimentos e organizações sociais equatorianas e latino-americanas, o texto de Montecristi é pioneiro no reconhecimento constitucional do direito à cidade. Um direito que se relaciona à gestão democrática do espaço urbano, ao exercício pleno da cidadania e à função social e ambiental tanto da propriedade como da cidade em si (artigo 31). Junto com esses direitos, o novo texto recolhe também uma série de obrigações estatais específicas em matéria habitacional. Assim, o dever de melhorar a moradia precária, de oferecer morada a pessoas sem recursos, de promover o aluguel social, ou de financiar a moradia de interesse social através de bancos públicos e instituições de finanças populares (artigo 375). Soma-se a isso o reconhecimento de direitos numa importante projeção urbana como o direito humano à água e à alimentação (artigos 12 e 13) e o direito à seguridade social, não só para aqueles que trabalham no mercado formal, mas também para aqueles que o fazem em suas casas por meio de atividades autônomas e de auto- sustento (artículos 33 e 34). É interessante destacar que todos esses direitos são exercidos com base nos dois princípios

centrais da nova iniciativa constituinte: o princípio da interculturalidade e plurinacionalidade, e da sustentabilidade ambiental. Os direitos habitacionais, efetivamente, consagram-se no marco de um Estado que, além de social e democrático, define-se como intercultural, plurinacional e laico (artigo 1). Como conseqüência disso, o direito à cidade aparece estreitamente vinculado ao equilíbrio entre o urbano e o rural, assim como ao direito à terra e ao território das diferentes comunidades, nacionalidades e povos que integram o Estado (indígenas, afroamericanos, montubio 2 ) (artigos 36 e 57). O texto equatoriano é igualmente original no seu reconhecimento à natureza da Pacha Mama3 como sujeito de direitos (artigos 7174). Esse reconhecimento conecta o exercício dos direitos habitacionais num contexto muito concreto com obrigações específicas como as de prevenir o dano ambiental, recuperar os espaços naturais degradados, promover o uso de tecnologias não contaminantes e de baixo impacto, ou não alcançar a soberania energética em detrimento da soberania alimentar ou do direito de todos à água (artigo 15). Por último, todas essas disposições aparecem apoiadas por um complexo e rico sistema de garantias que inclui a plena justiciabilidade de todos os direitos, sem distinção (artigo 11.3), o


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Equador Reforma Constitucional

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reconhecimento de diferentes mecanismos de democracia direta (103-107), a consagração de orçamentos participativos (artigo 100) e, inclusive, a admissão do direito à resistência frente a ações ou omissões, públicas ou privadas, que possam vulnerar direitos constitucionais (artigo 98). Naturalmente, a concreção do texto constitucional exige a remoção de grandes obstáculos jurídicos e materiais que, nas últimas décadas, têm feito das cidades e do campo equatorianos espaços caracterizados pela exclusão e a injustiça. As diferentes campanhas pelo "Sim", auspiciadas por movimentos sociais afins e críticos com o governo de Rafael Correa abrem, em todo caso, um cenário de esperança, não só para o Equador, mas também para o próximo Fórum Social de Guatemala, previsto para o mês de outubro.

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Quéchua é uma língua de ameríndios, própria de comunidades indígenas da região dos Andes, na América do Sul. 2 Montubio denomina-se ao povo campesino que habita a zona rural da costa interna do Equador. 3 Pacha Mama é uma deusa venerada pelos povos indígenas dos Andes, na América do Sul; significa Mãe-Terra.

* Gerardo Pisarello é vicepresidente do Observatório de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Observatori DESC) e professor de Direito Constitucional na Universidade de Barcelona. Nos últimos anos, esteve vinculado a diferentes movimentos sociais de defesa do direito à moradia e à cidade. Publicou sobre o tema, entre outros trabalhos, “Moradia para todos, um direito em (de)construção”, Barcelona, 2003.


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Assentamentos urbanos / Venezuela

Os Comitês de Terras Urbanas e o processo de regularização de terras

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Por Ada Colau*

No mês de maio passado, nós, membros do Observatori DESC de Barcelona, assistimos ao III Encontro Nacional dos Comitês de Terras Urbanas, realizado em Maracaibo, Venezuela. Fomos convidados na qualidade de observadores, junto a organizações sociais da América Latina como o Movimento de Ocupantes e Inquilinos (MOI) e a Federação de Terra e Moradia (FTV) da Argentina, A Federação Unificadora de Cooperativas de Moradia por Ajuda Mútua (FUCVAM) do Uruguai e a Secretaria Latino-americana de Moradia Popular (SELVIP).

A situação dos bairros ou assentamentos urbanos populares Com 23.054.210 habitantes, segundo o último censo do INE, mais da metade da população da Venezuela vive em assentamentos urbanos populares também denominados “bairros”. Esses são formados por casas auto-construídas em terrenos ocupados, propriedades particulares ou pertencentes ao Estado. Estima-se que hoje em dia ao redor de 14,3 milhões de habitantes vivem em ditos assentamentos, ocupando aproximadamente 170.000 ha.1

Ademais de serem assentamentos precários sem posse legal do solo, estes bairros localizam-se em terrenos instáveis, com serviços inexistentes ou deficitários em matéria de acesso à água, à saúde, à educação ou à coleta de lixo. Em relação a outras zonas das cidades, ditos assentamentos concentram um maior índice de desocupação e de pobreza. Durante décadas “a negação material é acompanhada pela negação simbólica: os bairros não são representados nas imagens da cidade, não aparecem em seus mapas, não são registrados nos censos, não se contam suas crônicas, não são consideradas na hora de inventariar seu patrimônio. Os bairros não existem na retórica da cidade, salvo como perigo ou anomalia.”2

O Decreto 1666 e os Comitês de Terras Urbanas (CTU) Para reverter essa situação, em fevereiro de 2002, dá-se um ponto de inflexão na política habitacional com a promulgação do decreto 1666 que, ademais de reconhecer os bairros como parte da cidade, inicia o processo de regularização da posse da terra urbana; promove a reabilitação integral dos assentamentos

populares e submete à discussão pública um projeto de lei. Para o desenvolvimento desse processo e consulta legislativa, o mencionado decreto também cria os Comitês de Terras Urbanas (CTU). Esse é um dos aspectos mais interessantes, já que permite aos destinatários das políticas de regularização e reabilitação (os pobres, os até agora excluídos) converter-se em agentes propulsores e executores das mesmas. Isto é, o CTU é a formalização legal que permite à assembléia de moradores de uma comunidade participar na definição das poligonais urbanas, o levantamento cadastral, decidirem sobre planos e projetos, validar uma posse, etc. Dessa forma, não somente se reconhece as comunidades já existentes e seu direito a regularizar a posse da terra em que habitam, mas também se avança em experiências de participação, autogoverno e democratização da cidade. Cada CTU corresponde a uma zona específica que não pode superar a 200 famílias, refletindo não somente uma unidade espacial, senão também social e comunitária. Na verdade, existem quase 7.000 CTU constituídos em nível nacional, o que significa mais de um milhão e meio de famílias organizadas e mais de sete


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Venezuela Assentamentos urbanos

milhões e meio de habitantes organizados.

Mais além da regularização fundiária Os CTUs vão muito mais além do processo de regularização fundiária já que se convertem em agentes políticos com uma visão global de cidade onde não há excluídos: elaboram propostas em matéria de hábitat como a democratização do solo, a criação de novas comunidades e a

planificação participativa. Ademais, trabalham conjuntamente com outros coletivos no marco do “movimento de povoadores”, como as redes de inquilinos (cuja luta se centra em parar os despejos que se produzem frequentemente) e o movimento de zeladores. Outro debate importante aberto pelos CTU são as modalidades da titularidade da terra. Conseguir títulos de propriedade tem sido essencial para as comunidades, já

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que permite erradicar o perigo de despejo e lograr financiamento para melhorar a moradia. Mais além da segurança jurídica na posse, os CTUs respondem a comunidades com um forte sentimento de arraigo que prioriza o cuidado da identidade urbana e cultural do bairro. Por isso, algumas comunidades começaram a ensaiar fórmulas de propriedade coletiva, com o fim de garantir às famílias a posse do imóvel em que habitam, sendo que a propriedade


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Venezuela Assentamentos urbanos

reside na associação constituída por todas as famílias do assentamento. Essa associação regula o espaço e autoriza as vendas ou arrendamentos como medida para preservar os interesses coletivos e enfrentar a ameaça de despejo indireto que provoca e a pressão do mercado imobiliário.

Tensões institucionais Apesar de que - formalmente - os CTUs nascem com o Decreto presidencial 1666, o fato de estarem constituídos por comunidades que existiam previamente, confere-lhes um caráter autônomo em relação às instituições. Sem dúvida, abundam os simpatizantes do governo, pois se reconhece no Presidente Chávez a autoridade que deu protagonismo aos excluídos. Não obstante, esse apoio é acompanhado de uma crítica constante, já que se considera que o processo bolivariano somente avançará se são as bases populares as que se mobilizam e decidem. Exemplos desse apoio crítico ao governo são as constantes denúncias que os CTUs fazem à excessiva burocracia, à corrupção de algumas instituições, os despejos

arbitrários e os que com freqüência se produzem abusos policiais, ou conflitos com algumas instituições no processo de entrega de títulos de terras.3

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*Ada Colau é membro do Observatório de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Observatori DESC) de Barcelona (Espanha). Também participa em distintos coletivos de apoio às mobilizações cidadãs do Estado Espanhol em defesa do direito à moradia e à cidade, como a Oficina contra a Violência Imobiliária e Urbanística ou VdeVivienda.

Nesse sentido, cabe destacar que recentemente os CTUs se mobilizaram para reclamar ao Executivo Nacional a aprovação da Lei de Reforma da lei Especial de Regularização Integral da Posse e da Terra dos Assentamentos Urbanos Populares, essencial para agilizar o processo de regularização e para criar novos instrumentos como o Banco da Terra Urbana. Até o dia de hoje, essa proposta de lei está à espera de ser debatida na Assembléia Nacional. Na Europa, as organizações que lutam para fazer efetivo o direito à moradia e à cidade, seguem com muito interesse o debate aberto não somente na Venezuela, senão que em toda América Latina, assim como os mecanismos que se estão impulsionando pelas organizações sociais da região. Nesse sentido, a recente criação do Fórum de Debate pelo Direito à Cidade na América Latina é um exemplo que pode inspirar ações futuras coordenadas das organizações que trabalham no âmbito europeu.

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Dados da Oficina Técnica Nacional para a Regularização da Terra Urbana, 2007. 2 Andrés Antillano, “A luta pelo reconhecimento e a inclusão nos bairros populares: a experiência dos Comitês de Terras Urbanas”, Universidade de Caracas. 3 Nos seis anos transcorridos desde o início do processo de regularização a OTNRTTU afirma haver entregado 350.000 títulos de propriedade, beneficiando a 520.000 famílias. A própria OTNRTTU reconhece lentidão nesse processo de regularização, devido a procedimentos excessivamente burocráticos nos levantamentos cadastrais e na transferência dos terrenos públicos, assim como a pouca colaboração de muitas prefeituras e os insuficientes recursos financeiros.


Direito à Cidade / Perú

Resistência social pela Centralidade de Lima

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* Por Silvia de los Rios Bernardini

Os habitantes organizados, especialmente os empobrecidos que habitam o Centro Histórico de Lima, cenário hoje da Centralidade de Lima1 , resistem com suas lutas à exclusão e ao desterro, paradigma do “modernismo imobiliário” que pugna pelo manejo desse “coração que não pára de bater”, porque tem memória, gerações e patrimônio que estão em suas veias. A Centralidade de Lima, que passou por múltiplas fases em sua história urbana, tem como referente espacial o Centro Histórico, declarado, pela UNESCO (1991) Patrimônio Mundial da Humanidade. Com seus 900 hectares, é considerado um dos maiores centros históricos do mundo. Não obstante, e frente a essa valorizada construção, dita Centralidade é testemunha do abandono progressivo da sociedade proeminente que foi deixando-a a trabalhadores e inquilinos que vivem em solares y casarões subdivididos, com confinamento e sem serviços básicos. Devido à obsolescência urbana e desatenção governamental, esses solares e casarões transformaram-se hoje em 27 mil moradias inadequadas, albergando 126 mil pessoas2, o que é equivalente a 43% da população do Distrito de Lima. Sem embargo, seu patrimônio e simbolismo arquitetônico, sua memória cultural, sua heterogeneidade de “funções” (de governo, de gestão, habitacional, etc), encontram-se debilitados pela ação imobiliária dessa mesma “sociedade proeminente contemporânea”, que tem como paradigma a atomização da centralidade: essa expulsa por exemplo - certas funções antes concentradas no Centro de Lima para outros distritos. Isso termina fazendo da capital peruana uma mega cidade policêntrica que limita sua antiga parte central a um espaço de atividades comerciais que geram mais-valia e especulação urbana. A isso se soma o seu crescimento com desbordes engrossados pelos excluídos, provocando a morte de sua história, e consolidando-a como cidade fragmentada, com um Centro Histórico “Museu”,

cenário destinado ao turismo sem identidade.

A resistência social na capital peruana pelo Direito à Centralidade A ameaça dessa atomização do Centro de Lima gera nele um espaço de tensão e pugna social: por um lado, os despejos, produto da pressão imobiliária e interesses econômicos por investir nessa zona; por outro lado, a resistência organizada dos habitantes na defesa da “centralidade” da capital que garanta o “habitar” esse espaço com identidade e cultura própria, constitutivos do patrimônio e do direito à cidade, adquirido durante gerações. Esses paradigmas ameaçantes na história urbana do país aparecem tanto em políticas públicas como em dispositivos legais, convertendose em ferramentas que vão minguando o direito à moradia. Isso se traduz, por exemplo, em: (1) a eliminação desse direito da atual Constituição Política do Peru (reforma 1993); (2) a desaparição da Lei do inquilinato e a sua passagem ao Código Civil que serve de detonante para os inquilinos, especialmente dos que habitam há anos na Centralidade de Lima, para mobilizar-se pelo reconhecimento legal do “direito à residência em seus bairros”. Dito reconhecimento foi aprovado, ainda que “declarativamente”, nas leis D.L. 696 e D.S. 1195, a partir de um enfoque “privatista” que trata à centralidade como mercadoria imobiliária, e ao despejo como mecanismo de “limpeza social” dos “empobrecidos”. Frente a essa situação, a resistência social, vulnerada em seu direito à cidade, organiza-se estrategicamente na Coordenadora dos Moradores para a Renovação Urbana, Regularização e Defesa dos Inquilinos e Ocupantes da Lima Metropolitana3 , e hoje no Comitê Promotor pela Renovação Urbana4 . Esse último defende, por um lado,


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Peru Direito à Cidade

a reforma urbana do Centro de Lima em processo sem despejos; e por outro, o reconhecimento legal do aceso à moradia que contribua a dignificar a vida dos empobrecidos através dos projetos de Lei: “Lei Geral de Renovação Urbana”4 e “Lei que Restitui o Direito à Moradia na Constituição Política”. Esse acionar gera reações governamentais ainda exíguas, mas são sinais, finalmente presentes, na agenda nacional. São exemplo disso: o Programa “Melhorando meu quintal”; o anunciado subsídio para a adequação das moradias inadequadas; a promoção do Plano Nacional e Metropolitano de Regularização; e a participação dos habitantes na negociação de acordos para os projetos de regularização. Não obstante, o Centro Histórico continua ameaçado por uma Zonificação que atenta contra seu uso residencial – habitacional. Em muitas cidades do mundo, o “uso habitacional” é

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protegido para garantir CENTROS VIVOS, que dinamizam a regeneração urbana, sem ações compulsivas e de confisco. Hoje, a luta social na cidade de Lima, mobiliza-se para restituir normas que promovam uma “humana” reforma, isto é: sem despejos e sem desterro. Também se propõe o reconhecimento legal do direito à moradia, reivindicação compartilhada por coletivos internacionais como SELVIP (Secretaria Latino-americana de Moradia Popular), UNMP (União Nacional de Moradia Popular) no Brasil, MOI (Movimento de Ocupantes e Inquilinos) da Argentina e FUCVAM (Federação Unificadora de Cooperativas de Moradia por Ajuda Mútua) do Uruguai, com quem se converge na luta pelo Modelo de Autogestão, de propriedade coletiva e ajuda mútua, como alternativa de política e ação nacional de acesso à moradia e cidade para os empobrecidos.

Centralidade urbana de Lima é concebida como um dos fenômenos urbanos da cidade de Lima, resultado dos diferentes momentos históricos, e não apenas o lugar geográfico ou território físico. Refere-se ao atributo, a qualidade, o fenômeno que congrega uma série de funções e atividades como as cívicas, políticas, administrativas, comerciais, recreativas, culturais, etc. que se manifestam na zona denominada “centro urbano”, que ademais alberga o Centro Histórico de Lima. Por outro lado, dito Centro Histórico, é o espaço urbano depositário das manifestações do fenômeno da “centralidade urbana”, que se caracteriza por sua heterogeneidade de funções, concentrando as principais atividades de governo, comércio, etc.; com uma carga significativa de componentes simbólicos como os códigos arquitetônicos e espaciais que conformam a identidade cultural dos habitantes de Lima. Fonte conceitual: Díaz Medina, Sergio, La Reivindicación de la Centralidad Urbana en la ciudad de Mérida, Peraza Guzmán, Tulio Marco, Arquitectura y Urbanismo Virreinal, Publicado pela Universidad Autónoma de Yucatán, 2000 2 (CIDAP-2004) 3 Mobilização social que data de 2000. 4 Organização popular, que alberga centenas de organizações de habitantes do Centro Histórico de Lima (inclui setores do Distrito de Lima e o Rimac), como organizações de inquilinos das propriedades públicas, da Igreja e proprietários empobrecidos que habitam cortiços.

* SILVIA DE LOS RIOS BERNARDINI é arquiteta – urbanista, com Mestrado em Renovação Urbana na FAUA, UNI, Lima (Peru). Tem Pós-Graduação em Gestão do Patrimônio Urbano Integrado no CECI, em Pernambuco (Brasil), e estudos no Instituto Lincoln. Ademais, é professora universitária convidada no Mestrado em Renovação Urbana / Seção Pós-graduação da FAUA-UNI de Lima (Peru) e é consultora do CIDAP (Centro de Investigação, Documentação e Assessoria Populacional).


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Rumo a uma nova legislação / Uruguai

A Lei de Ordenamento Territorial na República Oriental do Uruguai

Boletim_ Direito à Moradia e à Cidade na América Latina Ano 1_Nro. 3 | Set_Out 2008

* Graciela Dede

A Lei de Ordenamento Territorial e Desenvolvimento Sustentável, n.º 18.308 (LOTDS), foi aprovada pelo Poder Legislativo no mês de maio e promulgada pelo governo em junho de 2008. Até então, o Uruguai não contava com uma lei nacional de ordenamento do território. Apenas contava dispunha de instrumentos jurídicos que permitiam ordená-lo de maneira setorial e muito específica. Além disso, não existia uma lei – marco para o desenvolvimento sustentável, que conjugasse tanto aspectos econômicos, sociais quanto territoriais. Sem dúvida, a nova lei é um avanço em matéria de legislação do território, mas que gera, por

outro lado, a necessária formulação de regulamentações que a efetivem para a sua real aplicação. A falta – até o momento – de regras claras no âmbito do Ordenamento Territorial na República Oriental do Uruguai permitiu e fomentou durante anos a ocupação do solo de forma desordenada, insustentável e, acima de tudo, injusta: habitualmente os mais favorecidos eram os poderosos. Com vistas a reverter essa situação, a LOTDS pretende fixar as regras do jogo no território do País, definindo que o desenvolvimento

sustentável – relacionado com o território – é uma questão em que todos os habitantes devem participar. A mencionada lei estipula que se deve planejar o território e geri-lo, de forma a delimitar a arbitrariedade do governante, explicitando regras claras e certezas jurídicas que deverão ser corretamente monitorados. A Lei estava há muitos anos aguardando aprovação e se nutre basicamente do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001).1 Nesse sentido, desenvolve uma série de princípios a partir dos quais se deve ordenar e desenvolver o território. Um dos elementos mais destacados


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Uruguay Rumo a uma nova legislação

é o novo conceito qualitativo de espaço: político, amplo e em conformidade com o conjunto de ecossistemas. No seu artigo 5º, vislumbram-se os motivos e princípios norteadores que estruturam o ordenamento: a coordenação e cooperação entre as entidades públicas; a descentralização e a outorga de maior poder aos governos departamentais; a conciliação do desenvolvimento econômico com a sustentabilidade ambiental; o acesso igualitário de todos os habitantes a uma qualidade de vida e a equipamentos e serviços públicos; o hábitat adequado e, principalmente, o direito de acesso à informação. Por outro lado, se estabelecem princípios tais como: a redistribuição de responsabilidades e benefícios de “maneira solidária” no processo de urbanização e a recuperação de maiores valores imobiliários, fruto do ordenamento territorial. Isto significa: uma redistribuição eqüitativa e solidária dos ganhos.2 Em outros termos, compartilhar as riquezas geradas. Entretanto, ainda não ficou claro de que maneira se implementará essa “redistribuição”, ou seja: como se passa do “ideal” à concretização. Em relação à defesa do direito à moradia, essa

Lei apresenta certas “dualidades”: de um lado reconhece os poderes do Ministério da Moradia do Uruguai sobre a promoção e efetivação do “direito à moradia adequada”; por outro lado, faculta a esse mesmo poder a aplicação de sanções àqueles que ocupem imóveis ilegalmente. Pois então, o que aparece na letra e punho desse novo marco jurídico, com inovadores termos referidos na redistribuição de cargas, e hasteando princípios democráticos da cidade, ainda não se reflete na regulamentação dessa lei, no intento de gerar os instrumentos para a sua efetiva execução, ou seja: regular as formas e procedimentos em conteúdos que se materializem e cheguem de forma concreta e fidedigna à vida de todos os habitantes do Uruguai. Sendo assim, essa lei abre uma nova etapa na vida urbana, pois prevê a geração de planos diretores para as cidades que devem ser aprovados por audiência pública.

cidade que inclua a todos e todas? E, sobretudo, como se efetivará a divisão eqüitativa de benefícios e responsabilidades mencionada?

* Graciela Dede é arquiteta com especialização em Políticas Públicas e Direitos Humanos, com ênfase em Direito à Moradia. Trabalhou na Oficina do Alto Comissionado para os Direitos Humanos na equipe de Relatores Especiais das Nações Unidas. Desde 1997, trabalha em organizações da sociedade civil. Atualmente, assessora instituições como consultora e integra o capítulo uruguaio da PIDHDD (Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento).

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Nesse sentido, ficam perguntas que só se responderão no futuro: como as prefeituras debilitadas e com pouca infra-estrutura executarão suas novas responsabilidades? Como se abrirão os caminhos de participação cidadã legítima e efetiva? Como se implementará e fomentará uma cultura de informação responsável sobre os temas da

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O Estatuto das Cidades apresenta mecanismos, instrumentos e princípios para a implementação da função social da propriedade e a gestão democrática das cidades. 2 Os especialistas na área chamam esse fenômeno de recuperação de mais-valias urbanas : partindo da base que a cidade é uma produção coletiva na qual o valor do solo também é um fenômeno que se nutre e favorece das regulamentações municipais. Aplicando ao solo o conceito marxista de mais-valia, o artigo estabelece que deve retornar ao município parte das mais-valias ou das adições aos preços produzidos por ações urbanas que regulam a utilização do solo.


Pag 12 CENTRO PELO DIREITO À MORADIA CONTRA DESPEJOS

O COHRE (Centro pelo Direito à Moradia e Contra Despejos) é uma organização não-governamental, independente e de atuação internacional comprometida com a defesa e a garantia plena do direito humano à moradia adequada para todos em todos os lugares. A instituição promove, desde 1994, a busca e a implementação de soluções aos problemas da falta de moradia e de condições inadequadas de habitação. Para isso, fornece apoio a entidades que trabalham com direitos humanos e atua junto a diversas instâncias intergover-

namentais, na sua qualidade de entidade registrada com status consultivo na Organização das Nações Unidas (ONU), na Organização dos Estados Americanos (OEA) e com status de observador na União Africana. Para implementar suas ações, o COHRE se organiza em programas temáticos (Direito à Água, Litígio, Direito das Mulheres à Moradia, Restituição da Moradia e da Propriedade e Prevenção de Despejos Forçados) e programas regionais.

Esses últimos se dividem em: Programa para a África (COHRE – CA), Ásia e Pacífico (COHRE – CAPP), Europa (com projetos especiais) e Programa para as Américas (COHRE – CAP). Desde 2002, o Programa para as Américas (CAP) trabalha na defesa do direito a uma moradia adequada na região, organizando programas de capacitação, assistência legal e promovendo o direito à terra de grupos minoritários e comunidades marginadas em assentamentos informais. O

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CAP também realiza ações de incidência a nível nacional e internacional, missões de pesquisa, litigios, monitoramento e promoção de campanhas contra a prática de despejos forçados. O Programa organiza essas e as demais atividades em determinados países-foco onde trabalha em conjunto com entidades locais. Os países onde atualmente se realizam tais atividades são: Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, Guatemala, México e Honduras.

Apoiam esta publicação:

Boletim Direito à Moradia e à Cidade na América Latina Ano 1 – nro. 3 – Setembro/Outubro 2008 Editor Sebastian Tedeschi (Coordenador do Programa para as Américas - COHRE) Coordenação e Produção Soledad Dominguez (Coordenação da Comunicação do Programa para as Américas - COHRE)

Desenho GLOT (www.glot.com.uy) Diagramação Karla Moroso Fotografias Capa Venezuela / Caracas / Barrio 5 de Julio / Observatori Pág 2 e 4 / Ecuador / www.sxc.hu Pág 6 / Grupo do Comités de Terras Urbanas / Observatori Pág 10 / Uruguai / Cidade de Montevidéu / GLOT

Equipe de trabalho do COHRE - Programa para as Américas – CAP: Adriano Villeroy, Carolina Farstein (Programa Direito à Água), Claudia Acosta, Cristiano Muller, Daniel Manrique, Fernanda Levenzon (Programa de Direito à Água), Gilsely Barreto, Karla Moroso, Lucas Laitano Valente, Robinson Sánchez Tamayo, Soledad Pujó, Victoria Ricciardi (Programa de Direito à Moradia e Mulheres).

Este Boletim é uma publicação bimestral produzida e publicada por: COHRE - Programa para as Américas – CAP Rua Jerônimo Coelho, 102/31 Porto Alegre, RS - Brasil Te: + 55 51 3212-1904 Email: cohreamericas@cohre.org


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