Boletim Marco 05 Portugues

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CAMPANHA NACIONAL PELA REGULARIZAÇÃO DOS

TERRITÓRIOS DE QUILOMBOS

QUILOMBOL@ www.cohre.org/quilombos

Editorial

Conflitos fundiários em Alcântara

Queremos saudar a todos e compartilhar o novo Boletim Eletrônico Quilombol@. A publicação faz parte da campanha nacional “Justiça Social é Regularização dos Territórios de Quilombos”, promovida pelo Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades de Quilombos (Conaq) e pela Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (Aconeruq). A iniciativa conta com o apoio da SELAVIP, Fundação FORD e Embaixada da Suíça no Brasil. Além de divulgar informações e promover o debate, a campanha contará com iniciativas jurídicas voltadas para agilizar e efetivar o processo de regularização e titulação das áreas ocupadas por quilombolas. O programa também realizará atividades de capacitação de lideranças como mecanismo de fortalecer a atuação comunitária e favorecer a apropriação de instrumentos jurídicos, nacionais e internacionais, que podem ser usados na defesa de suas reivindicações. O Quilombol@ divulgará os avanços e desafios do processo de titulação dos territórios, além de oferecer informações sobre o modo de vida e a situação de moradia das comunidades. Dessa forma, é um espaço aberto para partilhar informações e experiências de luta das comunidades quilombolas pela efetivação de seus direitos econômicos, sociais e culturais. Um abraço e boa leitura, COHRE AMERICAS

Entidades e lideranças comunitárias empenhadas na tentativa de solucionar os conflitos gerados pela instalação do Centro de Lançamento Espacial de Alcântara (CLA) reafirmaram, em audiência com autoridades federais, a necessidade de acelerar os processos de regularização fundiária nos territórios de quilombos. Para representantes da sociedade civil, a regularização é a medida mais eficaz solucionar os problemas econômicos, sociais e culturais que afetam as comunidades atingidas pelos planos de expansão da base militar, no Maranhão. A reivindicação foi reafirmada em reunião promovida pelo Grupo Especial Interministerial (GEI), em 18 de fevereiro, para discutir as propostas da sociedade civil e teve a participação de representantes do Movimento dos Atingidos pela Base (Mabe), Aconeruq, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, Relatoria Nacional do Direito à Moradia, Cohre, Prefeitura de Alcântara, Ministérios e Secretarias que compõem o Grupo. O CLA foi criado em 1983 para lançamento e rastreamento de foguetes e ocupava uma área de 52 mil hectares. A área foi ampliada para 62 mil hectares no governo Fernando Collor. Em 2000, o governo feferal assinou um acordo com o governo dos Estados Unidos para uso comercial da Base. O Centro ocupa 55 por cento do território do município, área onde

vivem 3.600 famílias. Nas duas últimas décadas, houve o deslocamento forçado de 20 comunidades (1350 pessoas) para as chamadas agrovilas, mas as famílias não receberam os títulos de propriedade dos lotes e a terra é de péssima qualidade. Os recursos materiais são escassos, não há local para a pesca, a caça foi dificultada, as praias estão distantes e o acesso aos recursos naturais foi limitado pela base militar. Atualmente, as comunidades de Samucangaua, Iririzal, Ladeira, Só Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha sofrem com a ameaça de deslocamento, o que provocaria a remoção de mais 1350 pessoas. Os casos violação de direitos econômicos, sociais e culturais de comunidades remanescentes de quilombos, provocados pelo projeto de expansão do Centro estão sendo acompanhados por várias entidades e organizações nacionais e internacionais. Para tentar mediar e resolver os problemas, o governo Lula criou o GEI, em 2004. Apesar da perspectiva inicial de trabalho do grupo ter apresentado uma boa direção com a busca de depoimento das partes em conflito e reconhecendo as violações praticadas por governos anteriores, ainda causa preocupação a demora na manifestação oficial sobre a possibilidade de novos casos de deslocamentos forçados.


Quilombol@, março 2005

Justiça Social

Obstáculos à titulação definitiva das terras quilombolas Representantes das comunidades quilombolas do Brasil, reunidos em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial 2005, elegeram como principal reivindicação a titulação de terras. O antropólogo Alfredo Wagner foi convidado a escrever sobre o tema para esta seção. Com experiência no acompanhamento de conflitos fundiários na Amazônia e na região de Alcântara, o autor sistematiza os principais entraves à titulação das terras de comunidades quilombolas, analisando a legislação vigente e os aspectos econômicos ligados ao problema fundiário. Apresentamos extratos do artigo, disponível na íntegra no Web Site do Cohre (www.cohre.org/quilombos).

“Obstáculos à titulação definitiva Começo tentando responder a duas perguntas repetidamente feitas pelo movimento quilombola que dizem respeito aos resultados, em termos quantitativos e à intensidade ou ritmo do processo de reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos, senão vejamos: por que após 16 anos do Art. 68 do ADCT(Const. Fed 1988), foram tituladas menos de 5 por cento do total oficialmente estimado de comunidades remanescentes de quilombos? Por que, nos últimos dois anos, não houve titulação de nenhuma comunidade? Art. 68 - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Decreto 4.887 (20 novembro 2003) Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Constato dois planos de obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes de quilombos: o primeiro concerne aos dispositivos jurídico-formais e aos procedimentos burocrático-administrativos que orientam a operacionalização do art.68, enquanto, o segundo compreende as estratégias de interesses econômicos que detêm o monopólio da terra e são responsáveis pelos elevados índices de concentração fundiária, controlando as engrenagens de diferentes circuitos do mercado de terras, cuja expressão política maior consiste na ação de partidos conservadores, que aglutinam a chamada “bancada ruralista” e exercem pressão constante sobre o aparato de Estado. Certamente que estes planos se entrelaçam em determinadas situações sociais, porquanto as leis expressam uma correlação de forças políticas, para efeito de exposição irei analisá-los separadamente.” ....

“Quilombos e mercado de terras Os obstáculos e entraves à titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombos não podem ser reduzidos tão somente a “defeitos” na engrenagem da máquina administrativa estatal ou a dificuldades operacionais. Há várias configurações neste jogo de poder que transcendem a questões de operacionalidade e a rubricas orçamentárias. Há tipos de entraves que inclusive não aparecem de maneira explícita, mas que efetiva e implicitamente inibem as instâncias de poder competentes. Uma delas concerne às relações de poder historicamente apoiadas no monopólio da terra e na tutela de indígenas, ex-escravos e posseiros. Com fundamento nelas interesses latifundiários e outros grupos responsáveis pelos elevados índices de concentração de terras rejeitam o reconhecimento de direitos étnicos pela propriedade definitiva das terras das comunidades quilombolas. Os argumentos que compõem suas alegações não são de ordem demográfica como no tratamento que dão às terras indígenas, isto é, não fazem uso da máxima: “muita terra para poucos pretos”. Não são também de ordem geográfica e agronômica como no tratamento que dão às entidades ambientalistas: “estão querendo tomar as terras férteis (a Amazônia) e ricas em minerais”, mas se atém ao princípio da propriedade e à sua história. Esta forma de dominação está enraizada na vida social, facilitando as reconstituições históricas com recuo às sesmarias, aos registros paroquiais ,a partir da Lei de Terras (18 setembro de 1850) e às leis posteriores a 1891. Como corolário destas genealogias ilustres e das cadeias dominiais, os quilombos só poderiam ter existido em terras devolutas e públicas. Em outras palavras, a história das chamadas “propriedades rurais” é um argumento que opõem à titulação de comunidades quilombolas. Consideram que se “tudo era sesmaria e depois fazenda e estava titulado”, os quilombos só poderiam ter existido fora do domínio das grandes propriedades. Advogam uma dicotomia absoluta entre fazenda e quilombo, pois consideram que este esteve sempre localizado em lugares remotos e de mata, distante da “civilização” e do mundo das terras tituladas regido pelas grandes plantações.”


Quilombol@, março 2005

Comunidade

FSM - Comunidades denunciam violação a direitos Durante a oficina “Garantias e Violações ao Direito à Terra e à Moradia dos Territórios Étnicos das Comunidades AfroDescendentes”, no V Fórum Social Mundial, as lideranças comunitárias denunciaram casos de violação de direitos humanos que afetam suas comunidades. “Na década de 70, a multinacional Aracruz Celulose chegou no Norte do Espírito Santo. Com o apoio do governo federal começou a tomar a terra do povo quilombola pelo fato da terra não ter documentação, provocando o êxodo rural das famílias que não tinham a documentação da terra e que acabaram indo para as grandes cidades morar nas periferias. Quem resistiu, em torno de 2 mil famílias de 34 comunidades, vive ilhado em meio à monocultura de eucalipto para celulose. Muitas destas pessoas não podem andar na área porque são pressionadas pelos guardas florestais da empresa. Muitas

famílias quilombolas são ameaçadas de morte porque querem fazer denúncias contra a empresa. No Sapê do Norte, as comunidades não têm mais água pois o eucalipto é uma planta que precisa de muita água. Não existe mais água nos córregos, não existe mais caça. Não tem como a família sobreviver de pesca e dos meios artesanais porque não há de onde tirar. Estão completamente ilhados pela monocultura de eucalipto”.

“Enfrentamos situações muito difíceis depois que o Centro de Lançamento (CLA) foi implantado na década de 80. São mais de 20 anos de luta. Neste período, tivemos mais de 20 comunidades de remanescentes de quilombos deslocadas das antigas moradias. Outras 20 comunidades devem ser realocadas novamente. Foram muitos anos de luta e, até hoje, não temos certeza do que pode acontecer a estas famílias. Lutamos para que as pessoas não sejam realocadas porque quem saiu das antigas moradias foi para as agrovilas, nome dado às novas moradias. A vida lá é muito difícil. A gente mora na beira da praia, temos pescado com fartura, a terra é boa para cultivar e isso faz com que a gente não queira sair. Não é só a comunidade de Canelatiua que não quer sair, muita gente não quer”.

Domingas Dealdina, As. Pequenos Dorinete Morais, moradora da Agric. e Comun Quilombolas comunidade de Canelatiua, em Alcântara (MA). (APAC), São Mateus (ES ).

Observatório de Direitos e Políticas O Cohre acompanha a luta dos quilombos pelo direito sobre os territórios culturais em Alcântara, desde 2003. Tendo como base a proteção ao direito à moradia fez, em conjunto com as comunidades organizadas, denúncias às Nações Unidas através do Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e do Comitê contra Discriminação Racial; acompanhou uma missão do Relator Especial do Direito à Moradia Adequada das Nações Unidas, Miloon Kothari, e uma visita às comunidades deslocadas, em 2004. Também preparou e apresentou um parecer técnico (Amicus Curiae) para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre violações do direito à moradia em Alcântara e para o Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do Decreto Federal que trata da regularização dos territórios. Em abril de 2003, a Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada, com apoio da Plataforma de Direitos Humanos Econômicos Sociais e Culturais (DhESC), Programa da ONU para Voluntariado e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, organizou uma missão a Alcântara para verificar casos de violação de direitos nas comunidades quilombolas. Os especialistas recomendaram ao governo brasileiro : - Reconhecer e reparar os direitos violados com medidas concretas como a revogação do Decreto que reduziu os lotes das comunidades deslocadas de 30 para 15 hectares e o reconhecimento do direito de posse; restabelecer o poder civil para inibir a ingerência do CLA sobre a região, apoiar o Município na realização do Plano Diretor, determinando o uso do território com a participação das comunidades quilombolas, e criação de zonas especiais de proteção étnico-cultural; impulsionar ações de desenvolvimento integrando propostas das comunidades, antes da formulação de projetos dos Ministérios; maior transparência das ações do GEI, criando-se um boletim que divulgue suas atividades. O Decreto de criação do GEI, em 27 de agosto de 2004, não mencionou a existência de quilombos em Alcântara. Após pressão do Cohre, houve uma modificação e a medida reeditada em 8 de novembro incorporou a participação da comunidade local na definição das ações governamentais e incluiu as peculiaridades étnicas e sócio-culturais dos quilombolas nas estratégias de desenvolvimento local. O GEI é formado pela Casa Civil; Ministérios (Ciência e Tecnologia, Defesa, Desenvolvimento Agrário, Transportes, Saúde, Educação,Turismo, Planejamento, Cultura, Meio Ambiente, Agricultura, Minas e Energia, Cidades, Relações Exteriores, Trabalho e Emprego, Desenvolvimento Social e Combate à Fome), Secretaria de Coordenação Política, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Agência Espacial Brasileira, Comando da Aeronáutica.Seu objetivo é desenvolver ações de regularização fundiária e ambiental, apoio aos produtores familiares, turismo e valorização da cultura local, expansão e melhoria dos serviços de infra-estrutura, saúde e educação.


Quilombol@, março 2005

Quilombo - um lugar possível para viver Foi com esse espírito que ocorreu no dia 27 de janeiro de 2005 no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, a oficina: “Garantias e Violações ao Direito à Terra e à Moradia dos Territórios Étnicos das Comunidades Afrodescendentes”. A atividade foi organizada pela Conaq, Aconeruq, Cohre, Escola Superior do Ministério Público da União, Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Instituto Polis, Social Watch, Centro de Justiça Global e Terra de Direitos. Os palestrantes destacaram a necessidade de que Estado e sociedade civil compreendam o sentido da construção histórica da territorialidade para estas comunidades, reconhecendo que o território étnico é construído na relação entre os quilombolas e a sociedade envolvente composta por grileiros, invasores e vizinhos. Territorialidade negociada ao longo do tempo que emerge no decorrer de várias situações de conflito que se tornam, no caso dos remanescentes de quilombos, não apenas constitutivos de seu território material, mas de sua própria noção de identidade étnica. Em muitos órgãos de governo ainda prevalece a idéia estereotipada de que quilombo é uma continuidade do passado que se mantém como uma sobrevivência de outras épocas. Essa crítica tem uma dupla dimensão: por um lado entende os quilombos a partir de um imaginário que remonta Palmares e reproduz a idéia de uma por outro, a falsa idéia da continuidade material onde as terras de quilombos seriam vistas como

as mesmas de séculos atrás. Essa perspectiva tira das comunidades quilombolas sua historicidade particular, construída em relação de conflito com a sociedade branca e de constantes usurpações de suas terras de uso tradicionais. As discussões também apontaram o descompasso existente nas políticas de governo. As políticas sociais beneficiam apenas determinados segmentos quilombolas enquanto o esforço em entender o significado peculiar que a titulação da terra possui para essas pessoas ainda é tênue. A tensão está no fato de que a maior parte das políticas governamentais é pautadas por uma lógica de benefícios economicistas contrários aos princípios tradicionais das demandas quilombolas. Assim, as ações de Estado, muitas vezes, acabam por tornar instável e alterar a organização social das comunidades. Durante a oficina ocorreu o lançamento da “Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios de Quilombos”, uma parceria do Cohre, Conaq e Aconeruq. A campanha dá ênfase a situações críticas vividas pelos quilombolas e proporciona atividades de capacitação em comunidades impactadas por ações governamentais e atos de justiça privada. Outro objetivo da campanha será monitorar o processo de titulação das comunidades quilombolas nos órgãos do governo.

Inter (Ações) Alcântara (MA) – O Grupo Executivo Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara promoveu um encontro com comunidades quilombolas, autoridades locais e sociedade civil, em 11 e 12 de março, em Alcântara. O objetivo foi recolher propostas para o município. No dia 10 de março, Cohre e Instituto Polis realizaram um workshop sobre Plano Diretor e Estatuto da Cidade com a Prefeitura Municipal, Câmara de Vereadores e entidades não governamentais. São Mateus (ES) – O Cohre, Conaq e Associação de Pequenos Agricultores e Comunidades Quilombolas de São Mateus (Apacq) promovem, em 1 e 2 de abril, em São Mateus, o curso de capacitação “Direito à Moradia e Regularização dos Territórios de Quilombos”. Participam do encontro, representantes de comunidades quilombolas do norte do Espírito Santo, advogados, antropólogos, Fórum Nacional da Reforma Urbana e ambientalistas. Será lançada a Campanha Nacional “Justiça Social é Regularização dos Territórios de Quilombos”. Contatos: quilombos@cohre.org São Luís (MA) – A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) promovem o simpósio “Regularização Fundiária de Terras de Remanescentes de Quilombos”, de 7 a 9 de abril, em São Luís (MA).

Equipe Letícia Osório, Sebastian Tedeschi, Emily Walsh, Cíntia Beatriz Muller e Sinara Sandri (8073 DRT/RS) Para comentários ou para receber Quilombol@, escreva para quilombo@cohre.org Para informações sobre a Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios de Quilombos ou sobre os programas do Cohre para as Américas, contate cohreamericas@cohre.org

Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos Forçados Demétrio Ribeiro 990/ 305 Porto Alegre (RS) Cep - 90.010-313 Tel (x) - (51) 3212.1904

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