Justiça Social - Eixo 5

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Economista, Coordenador do Fórum Nacional pela Redução da Desigualdade Social. Vice-presidente da AEALC. É conselheiro e ex-presidente do Conselho Federal de Economia.

Entre os dias 24 de setembro a 15 de outubro, o Fórum Nacional pela Redução da Desigualdade Social realizou o webinário Democracia e Participação Social. O assunto é complexo e passa por questões que vão desde a correta utilização do orçamento público até a democratização do sistema de comunicação social, passando pelo acesso à justiça e pela garantia de efetividade dos direitos consagrados na Constituição de 1988. Para tanto, é preciso garantir que os recursos arrecadados por todas as esferas de governo sejam, de fato, investidos na melhoria da qualidade de vida da população. O que vemos hoje é que uma parte expressiva deles é desviada para os mais diferentes interesses, atendendo a banqueiros e rentistas, em nome de uma dívida pública que, além de não ter contrapartidas em investimentos, tem grande parte da sua origem em governos que não foram escolhidos pela população brasileira. Uma dívida ilegítima, portanto. Além disso, nos últimos anos vivemos um cenário de ataques seguidos ao mundo do trabalho. A retirada de direitos, além de precarizar as relações de trabalho, fragiliza ainda mais aqueles que já se encontram em condição de vulnerabilidade e, por óbvio, aumenta as desigualdades. Andamos na contramão do mundo neste momento em que o Papa Francisco, na construção de uma economia popular, social e solidária, conclama jovens economistas a

editorial

Wellington Leonardo

pensar numa nova matriz econômica, mais sustentável e justa, para o planeta. O acesso à justiça também é fundamental no combate às desigualdades. A população mais vulnerável é precisamente aquela que mais precisa de acesso ao poder Judiciário, e a que menos tem conhecimento dos seus direitos. É inegável que houveram progressos nesta área, mas também é verdade que ainda temos muito o que melhorar – especialmente numa sociedade em que os mais ricos cometem ilícitos e utilizam todo tipo de recurso protelatório, adiando o cumprimento das penas e ocasionando, inclusive, a prescrição. Por último, mas não menos importante, somente teremos uma democracia digna deste nome se tivermos uma sociedade na qual a imprensa esteja ao lado dos cidadãos, cumprindo a tarefa de transmitir uma informação fidedigna, com liberdade, sem medo de assumir posições ao lado da verdade. Este é o caminho para combater o obscurantismo reinante, que tem sua máxima expressão na divulgação de “fake news” – algo que sempre existiu, mas que se tornou muito mais evidente durante a atual pandemia. Sem mais delongas, desejo que esta edição da revista Justiça Social sirva para embasar debates, disseminar informações e dar uma contribuição efetiva à Campanha pela Redução da Desigualdade Social no Brasil.

Boa leitura.

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DÍVIDA DOS ESTADOS COMO PARTE DO ENRIQUECIMENTO PRIVADO José Menezes Gomes Neste momento iremos tratar do processo de endividamento das unidades federativas, sua relação com o endividamento externo desde os anos 1970, sua conexão com o fluxo internacional de capital e os ciclos de endividamento dos estados nacionais e especialmente o papel dos bancos estaduais no financiamento das burguesias regionais. Quando falamos da origem da dívida dos estados, temos que inicialmente responder a uma questão fundamental: por que os estados nacionais e as unidades federativas se tornaram grandes tomadores de empréstimos junto aos bancos privados e mesmo junto às instituições multilaterais? A resposta a essa questão nos remete ao processo de acumulação de capital e seus impasses, já que o destino da mais valia deveria ser a sua reconversão em capital produtivo, com a aquisição de capital constante e variável e, por sua vez, elevação do Produto Interno Bruto (PIB). Os bancos originalmente tinham como papel fundamental centralizar capital – dinheiro dos vários setores, e colocar capital à disposição do setor privado – dinheiro para auxiliar no processo de produção. Todavia, com a chegada do capitalismo à sua fase monopolista, com a eliminação da livre concorrência e a substituição da exportação de mercadorias pela exportação de capitais e do crescente parasitismo privado, temos o distanciamento de parte do capital da atividade produtiva e a entrada dos estados nacionais como tomadores de empréstimos, seja para financiar uma nova etapa de infraestrutura necessária para a acumulação de capital, seja para atrair moeda estrangeira para a obtenção de reservas cambiais ou assegurar a rolagem da dívida pública. Para entendermos melhor o processo de endividamento externo e público, precisamos

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entender o que ocorre nos países industrializados, fruto do acirramento das contradições internas do capitalismo, que provocam a crise de superprodução e, por sua vez, a necessidade da exportação de capital, seja na forma produtiva, seja na forma de mercadoria ou na forma de dinheiro. Segundo Eichengreen (2000) apud Gomes (2005), as crises cambiais e o ciclo de endividamento dos países subdesenvolvidos estão associados às etapas das crises capitalistas nos países centrais e sua busca de novos mercados nos países subdesenvolvidos. Isto fica mais claro quando resgatamos o processo de endividamento externo brasileiro desde os anos 1970, durante o Regime Cívico Militar. Tal fato se repetiu no endividamento externo de Alagoas e no financiamento do pólo cloroquímico.

José Menezes Gomes é professor da UFAL, doutor pela USP, coordenador do Núcleo Alagoano pela Auditoria Cidadã e membro da Rede Internacional de Cátedras sobre a Dívida Pública (RICDP)

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Nessa direção, precisamos ver como capital inativo se converte em capital produtivo. Xavier (1995) afirmou que esse processo de conversão de capital inativo em capital produtivo ocorre por conta e risco do próprio estado. Rosa Luxemburgo, em A Acumulação de Capital, já havia percebido esse processo. No Brasil, em especial, o surgimento do capital produtivo, em grande parte, resultou do surgimento dos bancos estatais: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia, e demais bancos estaduais. Os bancos privados tiveram como marca principal o distanciamento dos empréstimos de longo prazo e a proximidade dos mecanismos de rolagem da dívida pública. No regime Cívico Militar, depois de 1964, o Estado brasileiro impulsionou uma fase de expansão chamada de Milagre Brasileiro (1968 a 1973), que, em parte, resulta dos empréstimos externos tomados pela União, estados, municípios e empresas estatais. Tal processo possibilitou a conversão de capital inativo vindo do euromercado em capital produtivo, que determinou as elevadas taxas de crescimento do PIB. Com isso, os estados acabaram se convertendo em grandes tomadores de empréstimos para impulsionar a acumulação privada. Tal fato acabou por abrir o caminho para a montagem da dominação do sistema da dívida sobre a gestão pública, sempre priorizando o pagamento do serviço da dívida e colocando em segundo plano as políticas sociais.

Por outro lado, esse processo de endividamento externo, a partir da crise do euromercado com a moratória mexicana e argentina em 1982, acabou levando à intervenção do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, que buscavam recriar as condições para a retomada do pagamento dos serviços da dívida via empréstimos e condicionalidades. Depois de passarmos pela experiência de vários planos de estabilização que fracassaram no combate à inflação (Cruzado, em fevereiro de 1986; Bresser, em abril de 1987; Verão, em 1989 e Collor) e do surgimento e desaparecimento de várias moedas, tivemos a introdução do Plano Real em julho de 1994. Antes disso tivemos a moratória brasileira de 1987, o Plano Brady, que renegociou as dívidas externas da América Latina e o processo de conversão das dívidas externas em dívidas internas, preparatórios para a introdução da âncora cambial (Plano Real). A introdução do Plano Real com a abertura econômica e introdução das políticas neoliberais, reforma do Estado, privatizações e desregulamentação financeira, acabou por estabilizar a moeda, mas desestabilizar a economia e as contas públicas com a explosão da dívida pública. Esse processo foi marcado por um grande deficit das transações correntes e por uma crescente política de juros altos, seja pela própria lógica do Plano Real como pela ocorrência da crise mexicana, em 1995; da crise asiática, em 1997; e da crise russa, em 1998.

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Com o fim da âncora cambial em 1999, tivemos a introdução do regime de metas de inflação como fundamento da política monetária, que manteve a política de juros altos como instrumento de combate à inflação. Tal proposição manteve a lógica da política econômica dos rentistas, enquanto sacrifica as atividades produtivas e acelera o processo de endividamento público. A dívida do Estado e das unidades federativas teve seu nascedouro exatamente durante o governo Cívico-Militar e nos grandes empréstimos vindos especialmente do sistema monetário internacional privado, chamado de euromercado de moedas, onde prevaleciam os eurodólares. Naquele momento, tínhamos de um lado um grande volume de capital inativo (que não se reinvestia por conta e risco dos agentes privados) e governos estaduais apoiadores da ditadura que buscavam se legitimar com obras que impulsionam o crescimento econômico e a pressão das oligarquias regionais por maior intervenção do Estado que desse sustentação aos investimentos privados. O Banco do Estado de Alagoas (Produban), conforme revelou a CPI, foi liquidado a partir da intervenção do Banco Central tendo em vista o rombo produzido pelos usineiros que tomaram empréstimos e não pagaram. O Estado de Alagoas pegou, junto ao Tesouro Nacional, recursos para cobrir os recursos não pagos pelos usineiros e acabou, em seguida, convertendo dívida privada em dívida pública. Vale lembrar que os recursos do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (PROES) representaram muito para a dívida de Alagoas que foi renegociada em 1997 pela Lei 9496/97. Atualmente, 35% da dívida pública alagoana renegociada pela Lei Complementar 156, em 2016, tem como origem a dívida privada dos usineiros vindos do Produban. Quando nos referimos à evolução das dívidas dos Estados, temos que recordar, em primeiro lugar, os efeitos da política de juro alto imposta pelo Banco Central dos EUA, no final da década de 1970, que elevou a taxa de 5% para 20% ao ano, e a existência de taxa de juros flutuantes no euromercado, o que influenciou na crise fiscal de Alagoas em 1997. A resposta encontrada foi a criação da Lei 9496/97, que federalizou as dívidas estaduais rolando por trinta anos, mas exigindo um massivo processo de privatizações das estatais estaduais e a introdução do PROES, que visava reestruturar esses bancos e prepará-los para a privatização ou liquidação. Depois

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de vinte anos e com uma nova etapa de colapso fiscal, surgiu a Lei Complementar 156, que renegociou a dívida por mais 20 anos, exigindo mais uma vez a privatização das estatais que restaram, a aprovação da reforma da previdência estadual, da reforma do Estado e o fim das carreiras e dos concursos públicos. No estágio atual, o que podemos observar é que as dívidas dos estados, que já foram pagas mais de quatro vezes, continuam a crescer, tendo em vista um novo ciclo de endividamento interno e externo desses estados. Todavia, agora temos mecanismos ainda mais perversos de endividamento, como a securitização de créditos. Ao mesmo tempo, temos o aprofundamento da guerra fiscal e a expansão das renúncias fiscais, que subtraem as receitas estaduais, o que, somado à Lei Kandir e ao pagamento do serviço dessas dívidas, leva ao risco da generalização da adoção pelo governo federal de decretos de Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para os estados. A dívida vinda dos estados derivada dos empréstimos externos se somou à dívida vinda dos bancos estaduais, em parte constituída para financiar as burguesias regionais. Isto fica evidente quando analisamos a planilha da Secretaria do Tesouro Nacional, com dados do Banco do Brasil, que trata da composição da atual dívida dos estados, em especial a relevância da dívida vinda do PROES sobre a dívida pública dos estados renegociada em 2016. Neste momento podemos ver o impacto dessa incorporação dos passivos dos bancos à dívida dos estados, comprometendo o financiamento dos serviços públicos, conforme dados a seguir. Em 2016, quando o Estado do Acre renegociou sua dívida pública por mais vinte anos, de acordo com a Lei Complementar 156, a participação do PROES no novo saldo devedor era de 93% – ou R$ 321 milhões do Banco do Estado do Acre (Banacre). Alagoas tinha uma participação de 35,78%, R$ 2,3 bilhões, derivado do Produban. O Amazonas ficava com 100% , R$ 546 milhões, tendo origem no Banco do Estado do Amazonas (BEA). O passivo do Banco do Estado da Bahia (Baneb) representava 72%, R$ 3,3 bilhões, da dívida pública na Bahia. No Ceará, o Banco do Estado do Ceará (BEC) determina 100%, R$ 879 milhões , da dívida que foi renegociada. No Espírito Santo, o Banco do Estado do Espírito Santo (Banestes) contribuiu com 41% , R$ 684 milhões, da dívida do estado. Em Goiás, o Banco do estado de Goiás (BEG) representava 9,5% , R$ 333 milhões, do novo saldo devedor. No Maranhão, a participação do Banco do Estado do Maranhão (BEM) foi de 70,7%, R$ 766 milhões , sobre o saldo

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No estágio atual, o que podemos observar é que as dívidas dos estados, que já foram pagas mais de quatro vezes, continuam a crescer, tendo em vista um novo ciclo de endividamento interno e externo desses estados.

devedor renegociado. Em Mato Grosso, o Banco do Estado do Mato Grosso (Bemat) respondeu por 22,9%, R$ 490 milhões, da nova dívida renegociada. Em Minas Gerais, a participação do Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge) era de 29% , R$ 23,9 bilhões, no saldo refinanciado em 2016. O Pará tinha no Banco do estado do Pará (Banpará) uma participação de 37,57%, R$ 360 milhões, no saldo devedor renegociado. O Paraná neste momento tinha uma participação de 90%, R$ 8,8 bilhões, vinda do famoso Banco do Estado do Paraná (Banestado). Pernambuco tem uma das participações mais elevadas com 92,3%, R$ 2,9 bilhões, vinda do Banco do Estado de Pernambuco (Bandepe). Rondônia tem no Banco do Estado de Rondônia (Beron) 80,1%, R$ 1,9 bilhões, do saldo renegociado. Em Roraima, o Banco do Estado de Roraima (Baner) responde por 53,3%, R$ 97 milhões , do novo saldo devedor. O Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) tem uma participação de 59,3% , R$ 5,6 bilhões, da dívida renegociada em 2016. O Estado do Rio Grande do Norte, repactuado pela Lei Complementar 148/2014, tem 100% , R$ 254 milhões, vindo do Banco do Estado do Rio Grande do Norte (Bandern). No Rio Grande Sul, o Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul), que não foi privatizado, determina 20%, R$ 11,6 bilhões, do saldo devedor. Já nem Sergipe, o Banco do Estado de Sergipe (Banese) responde por 10,7%, R$ 110 milhões, mesmo não tendo sido privatizado. Para facilitar a compreensão do impacto, precisamos lembrar que mesmo esses estados já tendo pago um volume elevado de recursos à União – correspondente a mais de 3 vezes o montante refinanciado na década de 90 – a tabela fornecida pela Secretaria do Tesouro Nacional indica que ainda restaria um volume muito grande de dívida originada do PROES, o que compromete o financiamento das universidades estaduais e dos demais serviços públicos. Os dados apresentados nos remetem à necessidade de aprofundamento da auditoria

cidadã em cada estado, com um grande destaque para os passivos desses bancos estaduais, que foram transformados em dívida pública, pois onde esta investigação já foi feita se sabe que parte do rombo desses bancos estaduais deriva dos empréstimos tomados pelas burguesias regionais, que detêm o poder econômico e por sua vez o poder político estadual e federal; os mesmos que estão defendendo a Reforma Administrativa e que já votaram nas reformas trabalhistas, previdenciária etc. Dessa forma, a privatização iniciada no final do anos 1990 continua a ser amplificadora da dívida dos estados, enquanto se tenta a cartada decisiva de liquidação dos serviços públicos com a privatização, com dinheiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), das estatais que ainda restam, enquanto os estados continuam a tomar mais dinheiro emprestado junto aos bancos (pagando juros muito mais elevados que os oferecidos pelo BNDES aos beneficiários das privatizações), fazendo renúncia fiscal para os grandes grupos, cobrando impostos de pobres e permitindo ao setor financeiro ganhos ainda maiores, enquanto se inviabiliza a manutenção de serviços públicos essenciais à população. Não troque dívida contraída para favorecer os interesses privados pelas universidades públicas.

REFERÊNCIAS BUKHARIN, Nikolai. La Economia Politica del Rentista: uma crítica à escola marginalista. Barcelona, Editorial Laia,1974. GOMES, José Menezes. Acumulação de capital e Plano de Estabilização: um estudo a partir da âncora cambial na América Latina nos anos 1990. Tese de doutorado em História Econômica,USP, 2005. XAVIER, Jurandir Antônio. A industrialização subdesenvolvida: capital, classe e Estado na industrialização brasileira. João Pessoa: Edufpb, 1995.

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A ABI NÃO É CUMPLICE DA MISÉRIA Paulo Jeronimo Gostaria, inicialmente, de agradecer o convite para participar deste evento. Para nós jornalistas é muito importante saber da consideração que os senhores têm pela nossa Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Não é minha intenção ensinar padre nosso ao vigário. Mais do que ninguém, os economistas estão entre os que entendem de fato o tamanho da encrenca em que estamos metidos. Seria redundante ocupar este espaço para falar sobre o aumento assustador da miséria, do desemprego, da queda do PIB, a mortandade provocada pela crise sanitária, pela irresponsabilidade criminosa dos governantes e da criminosa destruição das políticas de inclusão social.

Paulo Jeronimo é jornalista com vasta experiência em veículos impressos, programas de TV e assessoria de imprensa. É presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e participou como palestrante no webinário Democracia e a Participação Social no dia 15 de outubro.

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Represento a categoria dos jornalistas e dos comunicadores. Somos treinados para mostrar a realidade deste país através das imagens e das palavras. Por isso, tomo a liberdade de reavivar na memória dos senhores uma foto publicada na primeira página do jornal Extra, na sua edição de 29 de setembro passado. Um cidadão negro “garimpa”, dentro da caçamba de um caminhão, restos de carcaças de animais. Uma tentativa desesperadora na busca de alguma proteína animal para sobreviver à fome. Um detalhe: o caminhão em questão não estava parado na porta de uma favela. Mas, sim, no bairro de classe média da Zona Sul do Rio, a Glória. Esta foto é um ícone do ponto a que chegamos. Para muitos, isso é o fundo do poço. Talvez, mais grave do que isso, só a antropofagia. Pelo descaso das autoridades e das elites brasileiras não estamos muito distantes do canibalismo como forma de sobrevivência. Ter a cabeça coberta por cabelos brancos traz suas vantagens. Como jornalista, vivi a recessão crônica que dominou os chamados “anos de chumbo”. Tempos em que a Nação era governada a golpes de tortura, censura e extermínios. Heranças de uma ditadura militar que durou mais de duas décadas. Ainda me recordo do início dos anos 90, quando o presidente José Sarney encerrou a sua administração com estonteante índice inflacionário de 1.764,86%. Também convivi com dívidas externas que, na época, diziam ser impagáveis. Lembram-se da sucessão de planos econômicos que, às vezes, não duravam seis meses? Graças à mobilização das forças políticas, vencemos essas adversidades. Represento uma entidade que tem 113 anos de existência. Sempre atuou como uma representante

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Predomina entre nós uma cultura que vem desde os tempos da escravatura. Nossas elites são oportunistas Estúpidas. Exatamente, como os escravagistas do passado.

da sociedade civil organizada. Sempre defendeu a liberdade de imprensa, o Estado Democrático de Direito e a democracia. O pedido de impeachment de Fernando Collor de Mello foi redigido por Dr. Barbosa Lima Sobrinho, na qualidade de presidente da ABI. “Dr. Barbosa”, como o chamamos, liderou um ato político para tirar a Nação de um atoleiro. Infelizmente, estamos agora de volta ao pântano. A dignidade – não só a do cidadão que aparece dentro daquele caminhão catando osso, como a de todos os demais brasileiros – terá que ser resgatada. Mas isso só acontecerá quando a consciência da maioria de nós estiver convencida de que esta Nação não suporta mais a miséria. Infortúnio que destrói as vidas de um impressionante contingente de 13,5 milhões de desempregados, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Algo superior à população da Bolívia. Reparem que não falei de pobreza. Refirome, única e tão somente, àqueles que estão abaixo da linha de miséria; que estão precisando garimpar restos de carcaças de ossos para não sucumbirem. Cantam os românticos que somos “um país bem-dotado de riquezas naturais e um povo generoso”. Nada mais equivocado. Se somos ricos em recursos naturais, certamente, somos paupérrimos quando se trata de nossas elites. Sejam elas as que representam os donos dos meios de produção, os políticos, os governantes e até mesmos os segmentos um pouco mais escolarizados. De maneira geral predomina entre nós uma cultura que vem desde os tempos da escravatura.

Nossas elites são oportunistas. Estúpidas. Exatamente como os escravagistas do passado. São vingativas e violentas. Têm dificuldade de conviver com a diversidade de ideias. São incultas. São egocêntricas. Os adjetivos citados não são gratuitos. Enfatizo que, até agora, nossos governantes e os chamados “representantes do povo” não sabem de onde irão retirar os recursos necessários para bancar o maior programa social brasileiro – o antigo “Bolsa Família”. Mas, não tiveram dificuldade para irrigar o Congresso Nacional com “emendas orçamentárias” e “orçamentos secretos” que somam perto de R$ 28 bilhões. Isso não é nenhuma novidade. Serve, contudo, para mostrar o quanto é complexa a luta pela inclusão social no Brasil. O quanto é penoso querer criar políticas públicas para reduzir a desigualdade social que persiste neste país. Um parêntese: o racismo nunca acabou no Brasil. A desventura de 600 mil vidas ceifadas pela Covid-19 só não foi maior graças ao SUS. Mesmo solapado por este governo que reduziu verbas da saúde, em plena pandemia, conseguiu atender e salvar uma parte significativa dos que foram infectados pelo vírus. O SUS faz política pública de verdade. Se fomos capazes de criar um sistema respeitado mundialmente, como o SUS, por que não venceremos a tragédia do momento? Como disse, a verdadeira ABI nunca se furtou à luta política. Faço parte de um grupo que se empenha pelo resgate do prestígio histórico desta entidade. Estamos entre os primeiros que pleitearam na Câmara Federal a destituição do presidente da República que aí está. O mesmo fizemos em relação ao incompetente ministro da Saúde fardado. Temos um ano pela frente até as eleições de 2022. Aprendemos com o processo de 2018 o que acontece quando cruzamos os braços. Ou quando deixamos que a desinformação e o ódio tomem conta de nossas escolhas eleitorais. Sem democracia, Estado Democrático de Direito, estabilidade institucional e liberdade não há governo populista que dê jeito. Aliás, se continuarem persistindo a polarização, o ódio e a mansidão, o atraso dos dias atuais triunfará. O que posso garantir aos Senhores é que a ABI não cruzará os braços. Jamais seremos cúmplices disso que aí está. Jamais aceitaremos o genocídio que acabam de cometer neste país. Jamais aceitaremos a miséria e a profunda desigualdade reinante como consequências do atraso.

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A democratização da mídia e o fim das desigualdades sociais Samuel Pantoja Lima Em dezembro de 2009, 1.800 representantes da sociedade civil, eleitos delegados em todos os estados e o DF, protagonizaram um fato histórico, em Brasília: a I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Convocada pelo Governo Lula, era o primeiro evento na área desde o advento da Constituição Federal de 1988; setores como saúde, educação e cultura já haviam realizado mais de uma dezena de eventos similares no período. No relatório final, 633 propostas foram aprovadas, sendo 569 nos 15 grupos temáticos de trabalho e 64 na plenária final do evento. Tais proposições, que expressavam um entendimento de amplos setores da sociedade civil – incluindo grupos empresariais da comunicação, à exceção do Grupo Globo, que boicotou o evento – jamais saíram da gaveta do ministério das Comunicações nos governos Lula e Dilma, lamentavelmente. O tema da 1ª Confecom ainda é extremamente atual: “Comunicação: Meios para a Construção de Direitos e de Cidadania na Era Digital”. O objetivo geral da Conferência era discutir a modernização da comunicação social brasileira, nos marcos da redemocratização do país, especialmente pelas mudanças tecnológicas dos últimos anos, que indicavam uma crescente convergência entre as diversas mídias. Nada mais tempestivo e relevante. No webinário promovido pelo Conselho Federal de Economia no dia 15 de outubro, o tema foi debatido à luz desse referencial político, contudo acrescentei duas questões que me parecem fundamentais para pensar no tema neste momento histórico, no qual um governo de extrema-direita se diverte testando os limites do Estado Democrático de Direito – por vezes ameaçando as instituições democráticas, por outras tantas blefando em torno de um “autogolpe”. A estratégia de poder do atual mandatário do Executivo Federal está assentada na massificação da mentira, na fraude e na manipulação

da realidade, usando, para tanto, uma extensa rede de produção e distribuição de “fake news”. Portanto, nada mais adequado do que discutir: “De qual jornalismo e democracia falamos quando afirmamos que um não existe sem o outro?”. Jornalismo e Democracia Nascido como “filho da modernidade”, cujo modelo de jornal-empresa remonta ao período entre 1830 e 1850, na França, o jornalismo veio ao mundo fazendo três promessas seculares: a defesa das liberdades (especialmente a de expressão e de imprensa), da democracia e do paradigma da verdade. Sob signo das luzes da revolução burguesa (1789), essa forma social de conhecimento foi aos poucos ocupando seu espaço nas modernas sociedades de

Samuel Pantoja Lima é professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo e do Programa de PósGraduação em Jornalismo (PPGJOR), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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consumo nascentes, florescendo numa íntima relação com o regime democrático. Menos de dois séculos depois, na transição entre o fim da modernidade e aquilo que se convencionou chamar de “pós-modernidade”, o jornalismo e todas as formas sociais de conhecimento, construídas e reconhecidas histórica e socialmente, encontram-se imersas numa profunda crise de relacionamento com seus públicos, centrada na erosão da credibilidade e no aparente recrudescimento do credo sobrepondo-se à ideia generosa do conhecimento humano como baliza de nossas decisões cotidianas. A experiência democrática brasileira é tão incipiente e bizarra que somente a partir de 1989 teríamos uma sequência de oito eleições diretas para presidente da República (de Collor, em 1989, a Bolsonaro, 2018), processo interrompido pelo golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016, com a interrupção do mandato de Dilma Rousseff. Nesta experiência, prevaleceu o que a historiadora Emília Viotti da Costa definiu com precisão vertical: no Brasil temos o “liberalismo antidemocrático” como regime de governo. Segundo Emília Viotti, “No Brasil, os principais adeptos do liberalismo foram homens cujos interesses se relacionavam com a economia de exportação e importação. Muitos eram proprietários de grandes extensões de terra e de elevado número de escravos e ansiavam por manter as estruturas tradicionais de produção”. Lamentavelmente, ainda estamos muito longe de viver numa democracia cujo significado transcenda a formalidade de “votar e ser votado”, a cada dois anos. Ou seja, para um verdadeiro Estado Democrático de Direito, precisamos construir um projeto de sociedade democrática inclusivo, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Para que alcancemos

esse estágio civilizatório, os meios de comunicação de massa, de forma geral, e o Jornalismo podem contribuir decisivamente. Defendo que passemos a encarar o jornalismo como uma forma social de conhecimento humano, indispensável à construção desse projeto de sociedade democrática. Isto implica na mudança de valores seculares e a redefinição de outros parâmetros conceituais e empíricos que possam orientar o jornalismo nas duas dimensões – como forma de conhecimento e como profissão. Não é mais possível seguir respondendo aos desafios postos por este momento da história, marcada por um abismo de desigualdades sociais nunca visto desde o advento do capitalismo, com palavras de ordem do século 18 – “objetividade, neutralidade, isenção, imparcialidade”. Não estou propondo a volta às origens do jornalismo, ou seja, à prática do jornalismo de opinião, cujo conteúdo era um discurso político direto e proselitismo de todas as ordens, da política à religião. Contudo, penso que podemos falar em honestidade intelectual, em objetividade no âmbito da produção de um conhecimento que reconhece a potência subjetiva das/os jornalistas, de métodos rigorosos de apuração, da diversidade plural de fontes, do balizamento ético contemplado nos códigos deontológicos da profissão e no primado da verdade, como norte. É fundamental que se articule a luta histórica em defesa da democratização dos meios de comunicação (preceito constitucional nunca regulamentado) às lutas cotidianas que os movimentos sociais travam pelo fim das desigualdades, sua defesa dos direitos humanos, e dos direitos sociais tão duramente conquistados entre 1988 e 2018 – que hoje, no seu conjunto, se encontram sob ameaça de um governo de destruição nacional, sem compromisso com a vida. Por fim, as causas humanitárias que hoje têm força global (agenda feminista, antirracista, direitos da comunidade LGBTQIA+, luta contra a fome, o fim das desigualdades sociais etc.), impulsionadas pelas redes sociais e pelo jornalismo independente, publicado exclusivamente na internet, nos desafiam a pensar no jornalismo como forma social de conhecimento humano capaz de assumir claramente posições, sem abrir mão do primado da verdade, do rigor dos métodos de apuração e, especialmente, incluindo toda a diversidade de posições e fontes presentes na realidade histórico-social. Este seria um encontro fecundo entre jornalismo e democracia, seguramente.

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Fórum discute a ampliação da participação social no Estado democrático Por Júlio Poloni, equipe Cofecon Uma sociedade em que parte significativa da população não tem acesso aos serviços mais básicos de educação, saúde, saneamento, transporte, cultura e lazer pode se dizer verdadeiramente democrática? Existe soberania popular quando o povo é alijado dos processos de decisão? Estas e muitas outras questões que permeiam a condição prática do Estado Democrático de Direito no Brasil foram discutidas no 2º Encontro do Webinário do Fórum Nacional pela Redução da Desigualdade Social, sob o título “Democracia econômica e participação social”. O evento aconteceu no dia 1º de outubro e foi transmitido ao vivo pelo canal do Cofecon no YouTube, onde o vídeo ainda se encontra disponível. Os palestrantes convidados foram Romualdo Portela, presidente da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), mestre e doutor em Educação, com atuação em Política Educacional; Marcela Vieira, educadora popular e especialista em gestão de projetos, membro da Articulação Brasileira para Economia de Francisco e Clara, além de assessora na Cáritas Brasileira; e Valmor Schiochet, professor da Universidade Regional de Blumenau (FURB) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia Solidária, Trabalho e Desenvolvimento Regional, com atuação na área de Sociologia Política. A mediação foi feita pela vice-presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), Denise Kassama, que é coordenadora do Grupo de Trabalho Responsabilidade Social e Economia Solidária da autarquia, que tem promovido a área por meio de debates, seminários, eventos e projetos de incentivo às iniciativas do setor. “O Fórum Nacional pela Redução da Desigualdade Social, desde a sua fundação, entende que o fortalecimento da democracia e a ampliação da

participação social nas tomadas de decisão no país são condições indispensáveis para o alcance de uma sociedade justa, igualitária e desenvolvida”, enfatiza a mediadora do encontro. O matemático, doutor em Educação e presidente da Anpae, Romualdo Portela, foi o primeiro palestrante da noite. Ele estruturou a sua fala sobre a democracia a partir de duas ideias correlatas: o desenvolvimento e a participação popular. “O conceito moderno de desenvolvimento abandonou aquela ideia simples de que desenvolvimento se refere apenas ao crescimento econômico. Hoje entendemos que desenvolvimento está relacionado também a diversos outros fatores sociais, como o empoderamento da sociedade, ou seja, a disponibilização de oportunidades para que as pessoas tenham a liberdade de escolherem caminhos para as suas vidas. E essa ideia de desenvolvimento depende do segundo conceito que eu vou abordar, que é a participação popular. As pessoas precisam ter maior influência nas tomadas de decisão do Estado, nas definições das políticas públicas”, elucidou. Outro ponto vital para o adequado funcionamento da democracia é a Educação. Portela relembrou acontecimentos recentes para apontar que o Brasil tem regredido neste ponto nos últimos anos. “Após o golpe parlamentar de 2016, ficou muito claro que o governo não cumpriria o Plano Nacional de Educação (PNE). Ao mesmo tempo, houve um processo de desorganização dos mecanismos de participação social que fariam o acompanhamento das metas do PNE. O Governo Temer restringiu a ação do Fórum Nacional de Educação e retirou diversas entidades sindicais e acadêmicas desse Fórum”. Assim, explica Portela, as instituições envolvidas e verdadeiramente preocupadas com a questão da Educação no país têm se mobilizado de forma

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autônoma e independente, desde então, para tentar construir bases de um PNE que deve ser implementado futuramente, sob um governo que ouça a sociedade. “O desprezo pela participação social no controle das políticas educacionais é um sinal claro de que o governo brasileiro tem ido na contramão do Estado democrático”, pondera. Na sequência, a mediadora Denise Kassama convidou a economista especialista em Gestão de Projetos, educadora popular e ativista da Economia Solidária, Marcela Vieira, para falar sobre como experiências em sua área de atuação são capazes de fortalecer a democracia. A economista citou alguns dos problemas que acometem o Estado democrático no Brasil na atual conjuntura, entre eles: o reducionismo do papel do Estado na promoção do desenvolvimento; o desmonte de políticas sociais; e o crescimento do capital improdutivo, dentro do processo de financeirização da economia. Marcela

apontou a Economia Solidária como um meio importante para a promoção de uma sociedade mais democrática. “Eu acredito no potencial da Economia Solidária para o estímulo da organização coletiva, da justiça social e de uma sociedade inclusiva, onde todos tenham voz”, sustentou Marcela. A conscientização política foi outro aspecto destacado por Marcela Vieira para o amadurecimento da democracia no Brasil. Para ela, as pessoas em condição de vulnerabilidade socioeconômica precisam, além, evidentemente, de ter suas necessidades de alimentação, habitação e saúde supridas, ser ensinadas, estimuladas e apoiadas no processo de participação social que lhes forneça voz e força política permanente. A Economia Solidária, afirma a especialista, é um mecanismo capaz de colaborar com esse processo civilizatório, uma vez que potencializa o trabalho em rede, fortalece o desenvolvimento local integrado e engaja grupos

Marcela Vieira

As pessoas em condição de vulnerabilidade socioeconômica precisam, além, evidentemente, de ter suas necessidades de alimentação, habitação e saúde supridas, ser ensinadas, estimuladas e apoiadas no processo de participação social que lhes forneça voz e força política permanente.

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sociais vulneráveis. “Precisamos de um modelo econômico alternativo a este de degradação ambiental, que mata o ecossistema, que saqueia a floresta, que produz pobreza e exclusão e expulsa o povo das decisões políticas”, defendeu a economista. O professor Valmor Schiochet, que também atua em Economia Solidária, foi o último palestrante do evento. Ele tem ampla bagagem no debate sobre movimentos sociais, crises do sistema capitalista, políticas públicas e democratização. Valmor ressaltou que o enfrentamento às desigualdades deve ser entendido como o princípio norteador de atuação do Estado na atual conjuntura. “Somos um dos países mais desiguais do mundo”, reforça. Para ele, é impossível conceituar como democrática uma sociedade tão contraditória e injusta. “Precisamos começar a refletir sobre a democracia do ponto de vista não somente da organização política, mas também sob a ótica da economia. Temos que entender que a volta da fome e da miséria, que o avanço da desigualdade e do desemprego compromete a vida da nossa população e também a saúde da nossa democracia”, argumenta. Schiochet defende uma visão ampla sobre o conceito da democracia, englobando o viés político, econômico, social e também ambiental. Para o especialista, qualquer um desses aspectos que estejam em desajuste compromete o todo e impede que a sociedade experimente uma democracia de fato. O professor também defendeu a Economia Solidária como mecanismo gerador de um novo modelo socioeconômico, em que a participação popular será

Somos um dos países mais desiguais do mundo. Valmor Schiochet

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fator fundamental de transformação. “Por meio das experiências que temos de autogestão, em Economia Solidária, posso afirmar que é possível construir um projeto de sociedade sustentado por uma economia não só democratizada, mas sob gestão democrática da sociedade, com as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros tendo poder sobre as decisões no nosso país. Esse é o desafio da Economia Solidária, que pode e deve servir de luz para toda a nossa organização social”, reflete o professor Schiochet.


A IMPRENSA LIVRE E DEMOCRÁTICA COMO INSTRUMENTO DA REDUÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL Vilson Antonio Romero INTRODUÇÃO

públicos e privados redutores da desigualdade social nas nações. Há, sem sombra de dúvidas, uma relação A Declaração Universal dos Direitos Humanos, intrínseca entre direito à informação e expressão adotada e proclamada pela resolução 217 da imparcial, livre e fidedigna e os diversos instrumentos Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, é fulcral nesse intento ao professar em seu artigo 19 que: Art. 19: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”. Já a Declaração de Chapultepec, aprovada pela Conferência Hemisférica sobre Liberdade de Expressão, realizada em Chapultepec, na cidade do México, em 11 de março de 1994, também aborda a questão e foi referendada e assinada por inúmeros chefes de estado, juristas e entidades ou cidadãos comuns. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso Vilson Antonio Romero é administrador firmou a declaração em 9 de agosto de 1996, compromisso reafirmado pelo então presidente Luis público e de empresas, jornalista, Inácio Lula da Silva em 3 de maio de 2006. coordenador de Estudos Socioeconômicos Essa carta de princípios reza que “uma da Associação Nacional dos Auditores imprensa livre é uma condição fundamental para que Fiscais da Receita Federal do Brasil as sociedades resolvam os seus conflitos, promovam (ANFIP) e membro da Comissão de Defesa o bem-estar e protejam a sua liberdade. Não deve dos Direitos Humanos e Liberdade de existir nenhuma lei ou ato de poder que restrinja a Imprensa da Associação Brasileira de liberdade de expressão ou de imprensa, seja qual for Imprensa (ABI). Também integra a Direção o meio de comunicação”. Nacional do Departamento Intersindical No decálogo de princípios aprovados na Conferência consta: de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos I – Não há pessoas nem sociedades livres sem (Dieese), do Escritório Regional do Dieese liberdade de expressão e de imprensa. O exercício no DF e é vice-presidente da Associação dessa não é uma concessão das autoridades, é um

Riograndense de Imprensa (ARI).

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direito inalienável do povo. II – Toda pessoa tem o direito de buscar e receber informação, expressar opiniões e divulgá-las livremente. Ninguém pode restringir ou negar esses direitos. III – As autoridades devem estar legalmente obrigadas a pôr à disposição dos cidadãos, de forma oportuna e equitativa, a informação gerada pelo setor público. Nenhum jornalista poderá ser compelido a revelar suas fontes de informação. IV – O assassinato, o terrorismo, o sequestro, as pressões, a intimidação, a prisão injusta dos jornalistas, a destruição material dos meios de comunicação, qualquer tipo de violência e impunidade dos agressores, afetam seriamente a liberdade de expressão e de imprensa. Esses atos devem ser investigados com presteza e punidos severamente. V – A censura prévia, as restrições à circulação dos meios ou à divulgação de suas mensagens, a imposição arbitrária de informação, a informação de obstáculos ao livre fluxo informativo e as limitações ao livre exercício e movimentação dos jornalistas se opõem diretamente à liberdade de imprensa. VI – Os meios de comunicação e os jornalistas não devem ser objeto de discriminações ou favores em função do que escrevam ou digam. VII – As políticas tarifárias e cambiais, as licenças de importação de papel ou equipamento jornalístico, a concessão de frequências de rádio e televisão e a veiculação ou supressão da publicidade estatal não devem ser utilizadas para premiar ou castigar os meios de comunicação ou os jornalistas. VIII – A incorporação de jornalistas a associações profissionais ou sindicais e a filiação de meios de comunicação a câmaras empresariais devem ser estritamente voluntárias. IX – A credibilidade da imprensa está ligada ao compromisso com a verdade, a busca de precisão, imparcialidade e equidade e a clara diferenciação entre as mensagens jornalísticas e as comerciais. A conquista desses fins e a observância desses valores éticos e profissionais não devem ser impostos. São responsabilidades exclusivas dos jornalistas e dos meios de comunicação. Em uma sociedade livre, a opinião pública premia ou castiga. X – Nenhum meio de comunicação ou jornalista deve ser sancionado por difundir a verdade, criticar ou fazer denúncias contra o poder público. A Carta Magna brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, apesar de já ter sofrido mais de uma centena de emendas, além das seis emendas de revisão do texto publicadas até 1994, consigna e prevê em seu art. 5º., inciso IX, o direito constitucional da liberdade de expressão e comunicação: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IX- é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Da mesma forma, o artigo 220 regra a comunicação social e a informação:

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

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§ 6º A publicação de veículo impresso de estabelecidas na Agenda ficaram definitivamente comunicação independe de licença de autoridade.” comprometidas, em especial demandas internacionais como erradicação da pobreza, fome zero, saúde A DESIGUALDADE AGRAVADA PELA PANDEMIA e bem-estar, igualdade de gênero, água potável e saneamento, energia limpa e acessível, redução das Como classifica a Organização das Nações desigualdades, entre outros. Unidas (ONU), o surgimento do novo coronavírus, Os índicadores de desenvolvimento humano originando a pandemia da Covid-19, teve e continua (IDH), do Programa das Nações Unidas para o tendo efeitos devastadores sobre todas as populações, Desenvolvimento (PNUD), também devem sofrer numa “catástrofe geracional”. perdas alarmantes a serem reveladas nas próximas Desde 1998, pela primeira vez, o percentual de quantificações, em particular nas variáveis principais terráqueos vivendo na extrema pobreza se aproximou de aferição: renda, educação e saúde. dos 10% da população mundial, subindo de 8,4% em Além disto, o Banco Mundial estima que, até 2019 para 9,5% no ano passado. 2021, a Covid-19 e a recessão global podem fazer Os países que integram a ONU, em setembro com que 150 milhões de pessoas caiam na pobreza de 2015, deliberaram que “a erradicação da pobreza extrema. Isso representa cerca de 1,4% da população em todas as suas formas e dimensões, incluindo mundial vivendo com menos de US$ 1,90 por dia. a pobreza extrema, é o maior desafio global e um Apesar das deficiências decorrentes do requisito indispensável para o desenvolvimento cancelamento e provável adiamento da realização do sustentável”. Censo Populacional, o Instituto Brasileiro de Geografia Representantes dos 193 Estados-membros e Estatística (IBGE), com base nos parâmetros do Banco adotaram o documento “Transformando o Nosso Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento (Bird) do Banco Mundial, classifica o Brasil como o Sustentável”, no qual se comprometeram com nono país com mais desigualdade social no mundo. “medidas ousadas e transformadoras para promover o De 2012 a 2019, a quantidade de pessoas que estavam desenvolvimento sustentável nos 15 anos seguintes”. na miséria passou de 6,5% da população ativa para Com a crise sanitária, os 17 Objetivos de 13,5%, o que representa 13,6 milhões de cidadãos. Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as 169 metas

Até 2021, a Covid-19 e a recessão global podem fazer com que 150 milhões de pessoas caiam na pobreza extrema.

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A pandemia contribuiu para a vertiginosa evolução dos veículos e meios de interação entre os seres humanos – em especial – consolidando as chamadas redes sociais que viralizaram e se consolidaram como instrumentos de comunicação, muito em decorrência da necessidade recomendada pelas autoridades médicas do chamado “distanciamento social”. Vimos o desenvolvimento e a popularização de uma infinidade de plataformas digitais, como Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitch, Twitter e TikTok, além dos programas de teleconferência que também se multiplicaram e tiveram intensificada sua utilização privada ou comercial como, Zoom Meetings, Skype, Microsoft Teams, Google Meet, Cisco Webex Meetings, StreamYard, e os canais do YouTube, onde, no início da pandemia proliferaram as “lives” de todo o gênero, em especial, as musicais. A comunicação social, através de todos os seus veículos e meios, como rádio, jornal, televisão e internet, assumiu um papel fundamental no acompanhamento e na orientação durante a maior crise sanitária vivida pelo planeta, combatendo o negacionismo (que contestava ou distorcia publicamente informações, fatos e orientações consensuais nos meios acadêmicos e científicos) e a desinformação (as chamadas “fake news”, informações e notícias falsas, publicadas, em especial, nas redes sociais). Mesmo assim, a exemplo do que ocorre com a pobreza e consequentes desigualdades social e de

A INFORMAÇÃO E A DEMOCRACIA Uma sociedade livre, num Estado Democrático e de Direito, não pode prescindir de uma imprensa isenta, imparcial e fidedigna. A informação jornalística independente e sem censura permite à população melhor discernir sobre a vida em geral de sua comunidade e de sua nação.

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A informação jornalística independente e sem censura permite à população melhor discernir sobre a vida em geral de sua comunidade e de sua nação.

Com o agravamento decorrente da pandemia, mais de 30% dos 211,8 milhões de residentes nas 5.570 cidades tiveram mitigadas suas deficiências de manutenção com auxílio de R$ 600 aprovado pelo Congresso. Mesmo assim, com todas as dificuldades, a crise sanitária contribuiu para aumentar o abismo entre os mais ricos e os mais pobres de nosso país Em 2020, quase a metade da riqueza do país foi toda para a mão do 1% mais rico da população: 49,6%. Em 2019, eles detinham 46,9%. A concentração de renda agudizou: em 2000, o 1% mais rico era dono de 44,2% das riquezas no Brasil e, em 2010, o percentual havia se reduzido para 40,5%, retornando a subir de forma desenfreada aos quase 50% do ano passado nas mãos mais aquinhoados. A par disto, além do retorno da inflação, houve o significativo corte no número de beneficiários do Auxílio Emergencial, que passou de 66 milhões de pessoas em 2020 para menos de 37 milhões em 2021, apesar do agravamento da pandemia. A fome também passou a bater em mais portas. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, assinala que, em 2021, 55,2% dos domicílios brasileiros se encontram em situação de insegurança alimentar: 116,8 milhões de brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar e, destes, 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade suficiente em casa, além das 19 milhões de pessoas que enfrentam a fome. O elevado desemprego e a “uberização” nas relações de trabalho excluíram do mercado de trabalho, até o início de 2021, mais de 14,8 milhões de brasileiros, além dos mais 6 milhões de desalentados (desistiram de procurar emprego, seja por falta de vagas, idade, qualificação ou medo da contaminação) e, quase à margem, cerca de 36 milhões de trabalhadores informais, segundo o IBGE.


desenvolvimento humano, o Brasil segue a trilha da última década, como o país da América Latina que mais regrediu em termos de liberdade de expressão, com campanhas de desinformação chanceladas pelo governo federal e ataques à imprensa que não eram vistos desde a ditadura militar (1964-1985), assim revelado pela Organização Não Governamental (ONG) Artigo 19, em seu Relatório Global da Liberdade de Expressão. Em 86º lugar no ranking de 161 países, o Brasil foi o país latino-americano que mais decaiu em relação ao relatório de 2019, sendo classificado como um local “restrito” à liberdade de expressão, que a ONG sinaliza como um alerta à democracia. Mesmo assim, num dos episódios mais emblemáticos da história recente, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, segundo apurou o jornal Folha de S.Paulo, o trabalho do jornalismo profissional pautou audiências e ajudou a embasar o relatório final, apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL). O documento final mencionou reportagens de diversos veículos de comunicação para organizar linhas de investigação e orientar pedidos de indiciamento. Entre outros casos, apurações feitas por profissionais da imprensa permitiram avançar na busca de responsabilização do plano de saúde que distribuía um kit-covid sem certificação sanitária, na suspeita de pedido de propina de agente público, em negociações de compra de vacinas com intermediários, sobre a pressão atípica para agilizar a importação da Covaxin, e na verificação de movimentações financeiras atípicas de empresas investigadas e falsificações de contratos. Em razão da sonegação de informações sobre a pandemia e da tentativa de ocultação de número de contaminados e óbitos, um grupo de empresas de comunicação também tomou uma iniciativa inédita, criando um consórcio de veículos de imprensa Formado pelos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Extra, além dos portais G1 e UOL, desde 8 de junho de 2020, o consórcio rompeu a restrição ao acesso a dados sobre a pandemia de Covid-19 que foi imposta naquela época pelo Ministério da Saúde. De forma integrada e colaborativa, reuniram equipes para buscar as informações sobre os casos, as mortes pela doença e, depois, a vacinação, nos 26 estados e no Distrito Federal.

A DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), desde os anos 1990, congrega entidades da sociedade civil para enfrentar os problemas da área no país. São mais de 500 filiadas e parceiras, entre associações, sindicatos, movimentos sociais, organizações não-governamentais (ONG) e coletivos que se articulam para denunciar e combater a concentração econômica no setor, a ausência de pluralidade política e de diversidade social e cultural nas fontes de informação, os obstáculos à consolidação da comunicação pública e democrática e as inúmeras violações às liberdades de imprensa e de expressão. Na última Plenária Nacional do FNDC, realizada em outubro de 2020, foi aprovado um Plano de Ação orientando a atuação local dos Comitês e parceiros, objetivando impulsionar a mobilização pelo direito à comunicação em toda a sociedade. Nessa linha, os participantes definiram como fundamentais três eixos de atuação: 1) combate à concentração da mídia e da internet; 2) defesa da liberdade de expressão e democracia, combate à censura; e 3) defesa da privacidade, da proteção de dados e combate à desinformação. No primeiro eixo, foram deliberadas algumas ações principais, como:

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1) Acompanhar e denunciar as irregularidades na expedição e exploração das concessões de rádio e televisão, bem como dos arrendamentos e do controle de emissoras por políticos, visando criar subsídios para os debates das renovações das concessões que vão acontecer em 2022, considerando as mudanças estabelecidas recentemente na legislação pelo governo Michel Temer (Lei nº 13.424/2017); 2) Acompanhar as ações do Ministério das Comunicações, restaurado em 2020 (...) e o Decreto 10.405, que facilitou a licença de funcionamento, eliminando etapas no processo de concessão; 3) Denunciar a captura ideológica do aparato de comunicação do governo federal, a exemplo da Secretaria de Comunicação Social (Secom), que virou máquina de propaganda da direita; acompanhar também a distribuição das verbas publicitárias, cada vez mais dedicadas aos veículos ‘chapa-branca’ do governo federal (...). No segundo eixo, as ações prioritárias, entre outras, envolvem: 1) Seguir denunciando aos organismos internacionais as violações à liberdade de expressão, nos moldes do que fizemos durante a visita do relator

da Organização dos Estados Americanos (OEA) para Liberdade de Expressão ao Brasil, Edison Lanza, em 2019, e que resultou em audiência sobre o tema realizada no Haiti em março de 2020; 2) Seguir denunciando as violações à liberdade de expressão e a violência contra jornalistas e profissionais de comunicação que vem sendo promovida pelo governo federal e por seus aliados, tanto no ambiente virtual quando no cotidiano presencial (...) E, no que tange ao terceiro eixo, os integrantes da plenária nacional apontaram como essenciais, entre várias ações: 1) Combater as violações da privacidade e vigilância em massa ocorridas na internet, praticadas tanto pelas empresas quanto pelo Estado brasileiro, e denunciar a coleta e o uso indevido dos dados; 2) Incidir publicamente para a criação do conselho consultivo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e para que entidades da sociedade civil com notório saber no tema e compromisso com a classe trabalhadora o integrem. 3) Acompanhar a implementação de ações de coleta de dados nos estados, em especial as ações de

A redução da desigualdade social está umbilicalmente ligada ao aumento da liberdade de imprensa, de expressão e, acima de tudo, de informação fidedigna e pulverizada entre toda a sociedade.

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reconhecimento facial para fins policiais, denunciar os abusos e cobrar transparência das autoridades locais (...). O documento completo pode ser acessado no site do FNDC. CONCLUSÃO Com todos estes elementos, ainda conseguimos cotejar que algumas nações com elevado IDH ou menor desigualdade, como os países escandinavos, entre eles, em particular, a Noruega, despontam como os de maior liberdade de imprensa e melhor índice de desenvolvimento humano. Cabe ressaltar que entre os 10 primeiros países de ambos os rankings (tanto o de liberdade de imprensa, elaborado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, como o do Índice de Desenvolvimento Humano, do PNUD, das Nações Unidas), há presenças coincidentes nos melhores postos de outras nações como Suíça, Suécia, Dinamarca, Holanda e Nova Zelândia. Por outro lado, o Brasil, um dos 10 países mais desiguais em termos de concentração de renda, ocupa agora a posição 111 num total de 180 países - atrás da Etiópia, Kuwait, Líbano e Bolívia, no ranking mundial da liberdade de imprensa da ONG Repórteres sem Fronteiras e o 86º lugar no elenco de 161 países pesquisados no Relatório Global da Liberdade de Expressão da ONG Artigo 19. E, antes de refletir os efeitos da pandemia, o Brasil ocupava a 84ª posição entre 189 países no ranking mundial do IDH, tendo caído 5 posições em 2020. Isso claramente evidencia que a redução da desigualdade social está umbilicalmente ligada ao aumento da liberdade de imprensa, de expressão e, acima de tudo, de informação fidedigna e pulverizada entre toda a sociedade. Democratizada, enfim. Temos um longo caminho a trilhar neste Brasil que pranteia a perda de mais de 605 mil vidas em decorrência da pandemia, mas que também tem milhões de brasileiros alijados do acesso à informação, por falta de condições estruturais, financeiras e de inclusão digital. A liberdade de imprensa e a democratização dos meios de comunicação social é diretamente proporcional à melhoria das condições de vida dos povos, em especial no que tange à distribuição de renda e ao desenvolvimento humano e, por conseguinte, à redução da desigualdade social.

REFERÊNCIAS Folha de S.Paulo. Revelações do jornalismo profissional ajudaram a embasar relatório da CPI da Covid. 22 de out. de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/revelacoes-do-jornalismo-profissional-ajudaram-a-embasar-relatorio-da-cpi-da-covid.shtml Insper Conhecimento, Instituto de Ensino e Pesquisa. Liberdade de expressão: 4 momentos-chave para entender sua evolução. 7 de out. de 2021. Disponível em: https://www.insper.edu.br/conhecimento/politicas-publicas/liberdade-de-expressao-4-momentos-chave-para-entender-sua-evolucao/ XXIII Plenária Nacional do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). 17 de out. de 2020. Disponível em: http://fndc.org.br/plenarias/xxiii-plenaria-outubro-2020/ Portal DSSBR, Fiocruz. Covid-19 aumentou a pobreza, a fome e as desigualdades. ‘Catástrofe geracional’, afirma a ONU. 10 de ago. de 2021. Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/covid-19-aumentou-a-pobreza-a-fome-e-as-desigualdades-catastrofe-geracional-afirma-a-onu/ CNN Brasil. Desigualdade no Brasil cresceu (de novo) em 2020 e foi a pior em duas décadas. 23 de jun. de 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/desigualdade-no-brasil-cresceu-de-novo-em-2020-e-foi-a-pior-em-duas-decadas/ Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

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DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA Renata Gil I. INTRODUÇÃO Desde a sua disposição inaugural, a Carta Política de 1988 é expressa ao estabelecer que o Brasil tem a cidadania como um de seus fundamentos basilares, além de constituir-se em Estado Democrático, em que todo poder emana do povo. A democracia, portanto, é uma preocupação visível do Constituinte, que fez questão de afirmar, de plano, a necessária centralidade do cidadão na condução da coisa pública. Essa centralidade, como não poderia ser diferente, também alcança o Poder Judiciário, que se tem tornado cada vez mais democrático em diversos aspectos, como, por exemplo, na ampliação do acesso à Justiça mediante sistemas digitais e na ampliação da participação feminina na Magistratura. De todo modo, apesar dos notáveis avanços do Judiciário no sentido de tornar o Sistema de Justiça cada vez mais democrático, mais inclusivo e receptivo às diversidades, ainda existem obstáculos que precisam ser superados. Em primeiro lugar, diante de uma Justiça que a cada dia se torna mais virtual, mostra-se imprescindível reservar uma atenção especial aos “excluídos digitais”, bem como às pessoas com deficiência, de sorte a garanti-las condições materiais de efetivo acesso à jurisdição. Além disso, impõe-se ampliar a participação da mulher na Magistratura, que ainda se afigura baixa, sobretudo no segundo grau e nos Tribunais Superiores. II. DEMOCRATIZANDO O SISTEMA DE JUSTIÇA 1. Igualdade Social Em que pese a existência de Justiça gratuita para as pessoas hipossuficientes, sabe-se que as desigualdades sociais têm repercussões para além dos aspectos exclusivamente econômicos. Conforme

sustenta Boaventura de Sousa, “os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de reparação jurídica”.¹ Portanto, as desigualdades sociais são muito mais do que um problema de insuficiência de recursos, são um problema que afeta a própria capacidade do cidadão tanto de reconhecer-se enquanto sujeito de direitos quanto de reconhecer no Judiciário a instância adequada de tutela desses direitos. Dessa forma, um Sistema de Justiça democrático requer, invariavelmente, uma sociedade mais justa e igualitária.

Renata Gil é presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e juíza titular da 40ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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2. Justiça Digital O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) têmse empenhado incansavelmente no fortalecimento do Poder Judiciário e na ampliação do acesso à Justiça, enquanto instrumento de garantia dos direitos fundamentais de todo cidadão. Nesse sentido, destaca-se o programa Justiça 4.0 — um novo paradigma na Justiça brasileira que se propõe a aprimorar a prestação jurisdicional e o acesso à Justiça por meio da tecnologia. O objetivo do programa é democratizar o acesso à Justiça, por meio do uso colaborativo de produtos que empregam novas tecnologias e inteligência artificial, de modo a propiciar o incremento da governança, da transparência e da eficiência do Poder Judiciário, com a efetiva aproximação do cidadão e a redução de despesas. Nessa conjuntura, destaque-se o Juízo 100% Digital, que emerge como proposta voltada a concretizar o princípio constitucional de amplo acesso à Justiça, eliminando a barreira da distância e imprimindo maior celeridade ao processo. A propósito, cumpre rememorar que existem diversos fatores que se colocam como obstáculos à garantia de acesso à prestação jurisdicional, entre os quais se encontra a distância entre o jurisdicionado e a administração judiciária. Com efeito, embora não seja capaz de solucionar todos os problemas de acesso à Justiça, o Juízo 100% Digital, ao valer-se da Internet para viabilizar a prática remota de atos processuais, acaba por ampliar o alcance do Judiciário, eliminando o obstáculo de acesso à Justiça relacionado à distância. No entanto, malgrado se trate de instituto apto a reforçar o direito de acesso à Justiça, não se pode olvidar que ainda existe uma parcela considerável da população brasileira que se encontra excluída digitalmente. Conquanto esteja presente em todos os municípios, a Internet ainda não alcança a totalidade da população. Segundo aponta pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE)², quase 20% dos domicílios brasileiros não têm acesso à rede mundial de computadores — problema que afeta especialmente as regiões Norte e Nordeste. Ainda de acordo com a pesquisa do IBGE, entre os principais motivos apontados como causa da falta de acesso à Internet, encontram-se o custo dos serviços de banda larga, a ausência de conhecimento quanto a sua utilização e o custo dos equipamentos necessários a viabilizar o acesso à rede mundial de computadores. Diante dessa problemática, a partir de sugestão da AMB, surgiu a Recomendação CNJ n.º 101/2021, em que o egrégio CNJ orientou os tribunais brasileiros a adotar medidas específicas para o fim de garantir o acesso à Justiça aos “excluídos digitais”. Dentre essas medidas, destacam-se tanto a disponibilização de um servidor em regime de trabalho presencial para atender ao jurisdicionado em condição de exclusão digital quanto a anotação dessa condição nos autos para a adoção das providências pertinentes. Em sentido semelhante, versou a Resolução CNJ n.º 345/2020 ao estabelecer o dever dos tribunais de fornecer infraestruturas de informática e de telecomunicação necessárias ao funcionamento das unidades jurisdicionais incluídas no Juízo 100% Digital (art. 4º), além de definir, no parágrafo único do art. 5º, a possibilidade de as partes requererem ao juízo a participação na audiência por videoconferência em sala disponibilizada pelo Poder Judiciário. Observase que o CNJ se tem mostrado sensível à situação das pessoas que não possuem acesso à Internet. No entanto, é inegável que essas medidas têm caráter

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paliativo, fazendo-se imprescindível a implementação de políticas públicas orientadas a garantir às pessoas hipossuficientes educação digital, bem como facilidades de aquisição de equipamentos eletrônicos e contratação de serviços de banda larga. 3. Participação Feminina Outro ponto em que se faz fundamental o avanço em termos de democratização do Sistema de Justiça diz respeito à participação feminina na Magistratura. O Judiciário ainda se afigura bastante desigual na questão de gênero, especialmente no que concerne ao segundo grau e aos Tribunais Superiores. Observe-se que de 11 Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), apenas duas são mulheres; de 33 Ministros no Superior Tribunal de Justiça (STJ), apenas 6 são mulheres; de 27 Ministros no Tribunal Superior do Trabalho (TST), apenas 5 são mulheres; e de 15 Ministros no Superior Tribunal Militar (STM), apenas uma é mulher. Vê-se que as mulheres representam só 16% dos membros das Cortes Superiores, o que demonstra que a representatividade feminina no Poder Judiciário não é adequada. Segundo o Censo do Poder Judiciário, realizado pelo CNJ em 2014, apenas 35,9% dos Magistrados eram mulheres. Além disso, as pesquisas identificaram que, quanto maior o nível da carreira, menor a participação feminina, que representa 44% dos Juízes Substitutos, 39% dos Titulares e 23% dos Desembargadores. O CNJ também publicou, no ano de 2019, o Diagnóstico da Participação Feminina

no Poder Judiciário, segundo o qual esse Poder é composto, em sua maioria, por Magistrados do sexo masculino. No ano de 2018, eles correspondiam a 61,2% da Magistratura em atividade, enquanto as mulheres, 38,8%. Além disso, a pesquisa “Quem Somos. A Magistratura que Queremos”, da AMB, divulgada em 2018, destacou que, de 2.975 Juízes de 1º grau participantes da pesquisa, apenas 36,7% eram mulheres. No 2º grau, essa representatividade foi ainda menor: somente 21,2% eram mulheres. Trata-se de números que também denotam a baixa participação da mulher no Judiciário. Cumpre destacar, ainda, que uma maior representatividade feminina na Magistratura se mostra fundamental não apenas para efeito de ampliar a participação da mulher nos espaços de poder, mas também porque essa providência tende a incorporar ao Judiciário os valores e os ideais da mulher, de sorte que esse Poder se tornaria mais inclusivo e receptivo às demandas e à pauta feminina. Significa dizer que lutar pela igualdade de gênero na Magistratura representa, em última análise, o fortalecimento do próprio direito de acesso à Justiça, tornando o Judiciário mais permeável e sensível às demandas que envolvam os direitos da mulher. Diante disso, a AMB tem trabalhado em conjunto com o CNJ para estabelecer a paridade de gênero nas Bancas Examinadoras e nas Comissões Organizadoras de concursos para ingresso na Magistratura.³ Isso, porque foi demonstrado que os

Lutar pela igualdade de gênero na Magistratura representa, em última análise, o fortalecimento do próprio direito de acesso à Justiça (...)

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concursos realizados com maior participação de mulheres nas bancas examinadoras apresentaram maiores percentuais de aprovação entre mulheres e, portanto, maior democratização da carreira.4 Assim, pensar formas de inclusão da mulher no Judiciário também se afigura indispensável no processo de ampliação da democracia no Sistema de Justiça brasileiro. 4. Inclusão das Pessoas com Deficiência Outra preocupação da AMB e do CNJ é a questão da acessibilidade da pessoa com deficiência ao Sistema de Justiça. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, mais de 12,5 milhões de brasileiros, correspondente a 6,7% da população, possuem grande ou total dificuldade para enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus.5 Por essa razão, deve-se não só questionar e debater se o sistema judiciário possui acessibilidade para essa população, como também criar mecanismos próprios que eliminem as barreiras que impedem o acesso à jurisdição por parte das pessoas com deficiência. Nesse contexto, destaque-se o empenho do CNJ, manifestado, por exemplo, pela Resolução CNJ n.º 343/2020, que trata da necessidade de ações formativas, de sensibilização e inclusão, e cursos voltados ao conhecimento e à reflexão sobre questões relativas às pessoas com deficiência e seus direitos. Ainda, no plano da inclusão e acessibilidade, a Resolução CNJ n.º 401/2021 previu o estabelecimento de indicadores de desempenho voltados para esses temas, como acessibilidade em serviços; acessibilidade comunicacional; acessibilidade tecnológica; e acessibilidade arquitetônica e urbanística. III. CONCLUSÃO Diante do exposto, observa-se que, embora o Poder Judiciário brasileiro já se mostre bastante inclusivo, ainda existem alguns obstáculos ao direito de acesso à Justiça que precisam ser superados. Em que pese o mérito da digitalização da Justiça, afigura-se fundamental que seja garantida especial atenção aos chamados “excluídos digitais”, isto é, as pessoas que não possuem acesso à Internet. O mesmo sucede com as pessoas com deficiência, às quais se deve garantir melhores condições de acessibilidade à jurisdição. Além disso, o Judiciário ainda sofre com a baixa representatividade feminina, sobretudo no segundo grau e nos Tribunais Superiores, cabendo reforçar que a igualdade de gênero na Magistratura repercute invariavelmente em maior acessibilidade à Justiça, tornando o Judiciário mais permeável e receptivo quanto às demandas envolvendo os direitos da mulher. Trata-se de providências que se fazem imprescindíveis, estando orientadas a tornar o Sistema de Justiça brasileiro cada vez mais inclusivo e democrático.

REFERÊNCIAS 1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 21, novembro de 1986, p. 21. 2 IBGE. Uso de Internet, televisão e celular no Brasil. 2019. Disponível em < https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e-celular-no-brasil.html>. Acesso em 26 out. 2021. 3 Recomendação CNJ n.º 85/2021. 4 CNJ. A participação feminina nos concursos para a magistratura. Brasília, 2020, p. 31. 5 IBGE. Pessoas com deficiência. 2010. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/ 20551-pessoas-com-deficiencia.html. Acesso em 26 out. 2021.

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Como mecanismos do Sistema da Dívida inviabilizam o desenvolvimento socioeconômico do Brasil Maria Lucia Fattorelli O Brasil é atualmente a 12ª maior economia do mundo, embora em 2013 tenhamos chegado a ostentar a 7ª posição nesse ranking. Apesar disso, a desigualdade social é escandalosa em nosso país e ocupamos a vergonhosa 84ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) medido pela ONU, lidando com fome, indigência, desemprego recorde e atraso brutal em nosso desenvolvimento socioeconômico. Esse paradoxo não é fruto do acaso, mas decorre do modelo econômico aqui aplicado.¹ Estamos vivendo no avesso do Brasil que merecemos2 . Enquanto enfrentamos recordes negativos nos mais diversos índices econômicos e sociais

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

(queda do PIB, desemprego, precarização do trabalho, desindustrialização, quebra de empresas, contrarreformas, etc.), os bancos batem recorde de lucros! E esse lucro aumenta ainda mais diante da disparada da Selic pelo Banco Central, sob a falsa desculpa de controlar inflação. Juros altos amarram o funcionamento de toda a economia do país e só favorecem ao setor financeiro. A culpa da crise atual, que vem se arrastando desde 2014 e derrubou o PIB em 7% (2015-16), decorre do modelo econômico aqui aplicado, o qual produz crises econômicas sucessivas. A responsabilidade do setor financeiro privado (bancos) e institucional (bancos centrais, Banco de Compensações Internacionais, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial) tem sido evidenciada nas crises que tivemos em todas as décadas desde os anos 70. Em todas elas, os mecanismos que produzem a crise econômica provocam o aumento da dívida pública, enquanto crescem os lucros dos bancos. Para “debelar a crise” e “pagar a dívida”, valem-se de “Planos de Ajuste Fiscal” ou de austeridade, cortando investimentos e gastos públicos, impulsionando privatizações e contrarreformas. Enquanto a sociedade perde direitos e o patrimônio público é rifado, assistimos a mais aumentos dos lucros dos bancos, que lucram com os mecanismos que produzem a crise e também com as medidas adotadas para contornar a crise. Qual a causa da crise que enfrentamos desde 2014?3 Temos mantido trilhões em caixa há vários anos.4 Chegamos a quase R$ 5 trilhões em caixa no final de 2020: R$ 1,289 trilhão na conta única do Tesouro Nacional, R$ 1,393 trilhão no caixa do Banco

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Central, e R$ 1,836 trilhão em reservas internacionais. Essa crise fabricada afetou estados e municípios devido à queda de arrecadação tributária e à retração das transferências federais aos entes federativos, enquanto o lucro dos bancos seguiu aumentando.5 O custo da política monetária provocou a crise atual.6 A partir de 2014, o Banco Central (BC) foi elevando a taxa básica de juros Selic até chegar ao patamar de 14,25%, no qual permaneceu por mais de um ano. O BC também aumentou o estoque das “Operações Compromissadas” (que na prática correspondem à remuneração da sobra de caixa dos bancos) até alcançar R$ 1 trilhão, e seguiu aumentando. Adicionalmente, gerou prejuízos de centenas de bilhões de reais, que foram transferidos ao Tesouro Nacional: só em 2016 o prejuízo do BC foi de R$ 250 bilhões! Ainda por cima, realizou prejuízos com as sigilosas operações com swap cambial acima de R$120 bilhões7. Houve também emissão excessiva de títulos da dívida interna em quase meio trilhão de reais!8 Como consequência, a dívida interna cresceu R$ 732 bilhões em 11 meses de 2015, enquanto o investimento federal em 2015 foi de apenas R$ 9,6 bilhões, e não foi financiado pelo endividamento público. Ou seja, a dívida cresceu unicamente para alimentar esses mecanismos financeiros que fabricaram a crise!9 A “crise fabricada” pela política monetária do Banco Central tem sido usada para justificar inúmeras medidas restritivas, por exemplo: PEC do Teto do Gastos (EC 95); Aumento da Desvinculação

de Receitas da União (DRU) para 30% (EC 93); edição das Leis Complementares 159/2017 e 178/2021, que aplicam o teto aos estados e municípios e implementam nocivo regime de “recuperação fiscal”; desonerações danosas ao financiamento da Seguridade Social; contrarreformas Trabalhista, Previdenciária e Administrativa; privatizações insanas; o fraudulento esquema de “Securitização de Créditos Públicos”; a autonomia do Banco Central (PLP 19/2019); a “legalização” da remuneração da sobra de caixa dos bancos (PL 3.877/2020); o Plano Mais Brasil “para banqueiros” (PEC 186, 187 e 188; PEC 438, EC 106, EC 109), entre outras. Documento da Frente Parlamentar da Reforma Administrativa (PEC 32) também usa a “crise fabricada” como justificativa, conforme trecho a seguir: “A crise iniciada em 2014 e a dificuldade em retomar a economia, que persiste nos dias atuais, tornam clara a baixa capacidade de resposta do Estado brasileiro aos desafios contemporâneos (...)”, e segue defendendo a PEC 32 como “solução” para contornar a crise, quando sabemos que essa PEC, na realidade, desmonta a estrutura do Estado para abrir mais espaço ainda para privatizações e terceirizações. Considerando as imensas riquezas e potencialidades do Brasil, a tarefa de todos nós deve ser identificar claramente o que separa a realidade de abundância que de fato existe aqui, do inaceitável cenário de escassez. É evidente que o modelo econômico errado aplicado no país promove essa

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escassez generalizada, concentrando a riqueza e a renda nas mãos de pouquíssimos. Os principais eixos, como ilustrado na campanha “É hora de virar o jogo”, são: Sistema da Dívida, Política Monetária Suicida, Modelo Tributário Regressivo e Modelo Extrativista Irresponsável para com as pessoas e o ambiente. A cada ano, aumentam os gastos financeiros com a chamada dívida, que não tem servido para investimentos no país, como já declarou o Tribunal de Contas da União (TCU) ao Senado. Se o próprio TCU afirma que a dívida brasileira não tem servido para investimentos no país, para que tem servido então? A dívida pública tem sido gerada por mecanismos financeiros que alimentam o que denominamos Sistema da Dívida: utilização do instrumento de endividamento público para transferir recursos públicos para o setor financeiro e grandes corporações e favorecer o rentismo. Dentre os mecanismos, sobressaem as transformações de dívidas do setor privado em dívida pública ilegal (PROER, PROES e EC 106, por exemplo); transformação de dívida externa irregular, suspeita de prescrição (Plano Brady); aplicação de elevadíssimas taxas de juros sem justificativa técnica ou econômica; juros sobre juros (anatocismo) – a irregular contabilização de juros como se fossem amortização da dívida, burlando-se o artigo 167, III, da Constituição Federal; a remuneração diária da sobra do caixa dos bancos por meio do abuso das sigilosas “operações compromissadas” e da bolsa-banqueiro ; emissão excessiva de títulos para formar “colchão de liquidez”; transformação dos vultosos prejuízos do Banco Central, que são transferidos para o Tesouro Nacional (Art. 7º da LRF), além do esquema de “securitização”, que gera dívida ilegal que é paga por fora do orçamento, mediante

REFERÊNCIAS 1 Os materiais da campanha “É hora de virar o jogo” tratam do modelo econômico aplicado no Brasil: https://auditoriacidada. org.br/e-hora-de-virar-o-jogo

desvio de arrecadação tributária que nem sequer alcançará os cofres públicos. Apesar do superavit primário de mais de R$ 1 trilhão, acumulado ao longo de 20 anos, a Dívida Interna federal explodiu, passando de R$ 86 bilhões em 1995 para quase R$ 4 trilhões em 2015. Dessa forma, é evidente que os investimentos e gastos sociais não foram os responsáveis pelo aumento da dívida interna, mas sim os mecanismos que alimentam o Sistema da Dívida, antes exemplificados, sem contrapartida alguma em investimentos. Durante a pandemia, os privilégios dos bancos aumentaram ainda mais: logo de início, o Banco Central aprovou um pacote de trilhões de reais, liberando liquidez, capital e outros instrumentos para os bancos. Além disso, a pauta do mercado avança como nunca! Só em 2021 já aprovaram a independência do Banco Central (PLP 19/2019); sucessivas elevações da taxa de juros pelo BC sob a falsa justificativa de conter a inflação; PEC 186 (EC 109); risco de dolarização e liberdade para operações em dólar no país (PL 5.387/2019); privatizações insanas; securitização de créditos e regime de “recuperação” fiscal nos estados (LC 173 e 178); Orçamento Federal 2021 com amplo privilégio para gastos financeiros com a “dívida pública”; entre várias outras. O que podemos fazer para mudar esse jogo? Precisamos, todos, conhecer o modelo econômico que fabrica crises e produz escassez e enfrentar os principais eixos que o sustentam. Precisamos popularizar esse conhecimento e construir uma grande mobilização social consciente, capaz de impulsionar a mudança radical desse modelo. É hora de virar o jogo!

7 http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/09/bc-tem-prejuizo-de-quase-r-120-bilhoes-no-ano-com-swaps-cambiais.html https://auditoriacidada.org.br/conteudo/sobraram-r-480-bilhoes-no-caixa-do-governo-em-2015/

2 https://bit.ly/3AWc2QN

8 A Crise Fabricada. Vídeo: https://bit.ly/39WBg5C, e artigo: https://bit.ly/3liKWeM

3 https://auditoriacidada.org.br/conteudo/o-que-provocou-crise-economica-atual/

9 https://auditoriacidada.org.br/conteudo/a-ameaca-do-regime-de-recuperacao-fiscal/

4 Fonte dos dados no artigo “O déficit está no Banco Central e não nos gastos sociais. Disponível em https://auditoriacidada.org. br/conteudo/extra-classe-o-deficit-esta-no-banco-central-e-nao-nos-gastos-sociais-por-maria-lucia-fattorelli

10 https://auditoriacidada.org.br/e-hora-de-virar-o-jogo/

5 Ver “Assalto aos Cofres Públicos”: https://bit.ly/3xKnEp4

12 https://auditoriacidada.org.br/conteudo/deposito-voluntario-remunerado-e-bolsa-banqueiro-sem-limite-e-semcausa/

6 O Banco Central está suicidando o Brasil: https://bit.ly/2EQSXWf

11 https://auditoriacidada.org.br/video/tcu-afirma-que-divida-nao-serviu-para-investimento-no-pais/

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A DEMOCRACIA ECONÔMICA E A PARTICIPAÇÃO SOCIAL Marcela Vieira A sociedade em que vivemos está baseada no modo de produção do sistema capitalista, dividida em classes, perpassada por todos os níveis de relações de dominação, subordinação, opressão e exploração. O poder é concentrado no Estado e se processa nas relações das classes sociais como correlação de forças que surgem dentro da própria contradição do modo de produção capitalista. Neste sentido, o capitalismo nasce e se retroalimenta dos interesses individuais, da divisão social do trabalho e das relações sociais de produção. Com isso o poder se origina na base da formação social e se gera em toda relação social e humana. A organização dos movimentos sociais tem historicamente um papel importante, bem antes da Assembleia Constituinte de 1987, que promulgou a Constituição Federal de 1988, que, desde então, vem desempenhando um papel fundamental para consolidação do nosso Estado Democrático de Direito. Com o objetivo de atuar junto aos empobrecidos e excluídos pelo sistema, a Cáritas Brasileira vem atuando há 65 anos com o apoio, fomento e acompanhamento das organizações de grupos produtivos alicerçados na economia popular solidária, como forma de resistência popular em prol de um novo modelo de sociedade, a Sociedade do Bem Viver. A Cáritas é um organismo da igreja católica, e vinculada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que atua junto aos empreendimentos, sendo eles grupos informais, associações, cooperativas ou redes de Economia Solidária. Essa tem sido uma estratégia de enfrentamento e resistência ao capitalismo. Na Economia Solidária, a democracia é um dos princípios que sustentam os empreendimentos e mobilizam os

trabalhadores e trabalhadoras organizados nestes grupos a atuarem em prol de políticas públicas e de melhorias das condições de vida e de trabalho. A Cáritas Brasileira, através de seus regionais do Rio Grande do Sul, diocese de Santa Maria/RS, vem realizando há vinte e sete anos a Feira Internacional de Economia Solidária (FEICOOP), que é um espaço de comercialização, mas também de articulação entre os movimentos sociais, entre eles o da Economia Solidária. No regional Ceará, foi realizada a 16ª Feira de Agricultura Familiar e Economia Solidária dos territórios de Nhamús e Cratéus, organizada

Marcela Vieira é educadora popular e especialista em Gestão de Projetos. Membro da articulação Brasileira para Economia de Francisco e Clara e assessora na Cáritas Brasileira.

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Na Economia Solidária, a democracia é um dos princípios que sustentam os empreendimentos e mobilizam os trabalhadores e trabalhadoras, organizados nestes grupos a atuarem em prol de políticas públicas e de melhorias das condições de vida e do trabalho.

pela diocese de Crateús/CE. Estes dois eventos são historicamente espaços de resistência dos movimentos dos pequenos agricultores familiares, artesãos e artesãs, entre outros núcleos produtivos. Em 2019, a Cáritas Brasileira, através do regional Norte, realizou em Belém/PA, a Feira Pan Amazônica de Economia Solidária, que oportunizou o intercâmbio entre os empreendimentos da região, bem como um diálogo entre as mulheres que fazem a economia solidária, sendo elas a maioria nos grupos produtivos. Os processos de organização destes grupos produtivos vêm desencadeando historicamente pequenas revoluções e fazendo acontecer essa outra economia, que traz um novo de jeito de pensar as relações de trabalho, de produção, de consumo, de convivência com o meio ambiente e com a casa comum. A Economia Eolidária continua cumprindo esse papel mesmo com todos os desmontes sofridos enquanto política pública: o movimento perdeu a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), passou pela desarticulação do Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES) e teve uma queda brusca nos recursos oriundos da gestão pública para fomento de suas ações. No entanto, a Cáritas Brasileira está executando um projeto de redes de cooperação solidária que inicialmente apoiava 136 empreendimentos de Economia Solidária. Em sua reta final, o projeto entregará 166 empreendimentos, integrando doze redes de Economia Solidária, apoiados pelos regionais da Cáritas em todo país.

A partir de todo esse contexto afirmamos que não existe democracia sem participação e controle social. Mesmo que o atual governo negue a possibilidade de a sociedade civil organizada participar dos espaços de discussão e definição das políticas públicas, os movimentos sociais e a Economia Solidária vêm resistindo e se afirmado enquanto resistência em prol de outro modelo de sociedade, apesar do crescimento do capital improdutivo, da miséria e da pobreza, da redução dos investimentos na geração de novos postos de trabalho, do alto índice de desemprego que vem afetando principalmente as mulheres e, sobretudo, as que na sua maioria são arrimo de família. Outro problema grave que os movimentos sociais e a Economia Solidária buscam combater é a invisibilidade dos jovens, a falta de oportunidade para o primeiro emprego, que se reflete no crescimento do trabalho informal e do trabalho precarizado, sendo estas, muitas vezes, as únicas oportunidades de gerar renda para as famílias. Temos ainda o enfraquecimento do Estado, o fortalecimento das empresas privadas e a concentração de riqueza no topo da pirâmide social. Vivemos, então, num sistema que produz pobreza e, neste sentido, retornamos às campanhas de coleta e doação de alimentos para as famílias empobrecidas nas periferias das cidades. Diante de todo o desmonte das políticas sociais e do cenário de aumento das desigualdades, os movimentos sociais e a Economia Solidária, com

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o apoio da Cáritas, têm enormes desafios a serem enfrentados, mas seus militantes são pessoas teimosas, que acreditam na Economia Solidária como alternativa concreta à exclusão causada pelo sistema capitalista. Neste sentido, a Cáritas luta pela articulação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) como espaço de construção e fortalecimento da área como instrumento de aglutinação dos atores e atrizes que fazem a Economia Solidária acontecer nos territórios. O FBES nasce dessa articulação e organização da sociedade civil em prol de uma

alternativa para uma nova sociedade, embasada na economia popular e solidária. Neste momento de pandemia, os empreendimentos de Economia Solidária, foram desafiados a se reinventar, para que não faltasse a renda a diversas famílias. Muitos deles tiveram que diversificar a produção, como foi o caso do artesanato, que passou a produzir máscaras Na construção de uma democracia, popular, social e solidária, o Papa Francisco conclama jovens economistas para pensar uma nova matriz econômica para o planeta, pois frente à escassez dos recursos naturais, à degradação ambiental, à crise das mudanças climáticas, temos uma bomba relógio prestes a explodir, caso nenhuma medida emergencial seja tomada. No entanto, com a desaceleração da pandemia em alguns lugares, já se identifica o crescimento do consumo e a retomada da extração dos recursos naturais. O chamado do Papa Francisco tem o objetivo de “realmar” a economia, de forma que ela tenha em seu foco não apenas o capital, o lucro. O Papa, em sintonia com a Sexta Semana Social Brasileira, que irá trabalhar a elaboração de um projeto popular para o Brasil, a partir dos eixos terra, teto e trabalho, traz uma mensagem de que a sociedade se inspire nas transformações que já acontecem dentro dos processos democráticos, autogestionários, que desencadeiam revoluções graduais do local para o global, para a construção de uma sociedade em rede.

REFERÊNCIAS SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. São Paulo, Editora Vozes, 1998. BALDISSERA, Adelina. O poder social/participativo nas comunidades eclesiais de base (CEBS) em vista à Nova Sociedade. Revista Sociedade em Debate, Pelotas, 2000. SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo, Editora da Fundação Perseu Abramo, 2002. DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e a participação: os dilemas da confluência perversa. Revista Política e Sociedade, 2004. Relatório de desenvolvimento humano, PNUD , 2015. Estatística de gênero e indicadores sociais no Brasil, IBGE , 2018. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/multidominio/genero/20163>

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Desigualdade e acesso à justiça

No dia 08 de outubro foi realizada a terceira mesa do webinário “Ampliar a democracia e a participação social”, correspondente ao eixo número X da Campanha pela Redução da Desigualdade Social no Brasil. O debate foi mediado por Natália Duarte, diretora da Associação Nacional de Política e Administração na Educação do Distrito Federal (Anpae-DF), com pós-doutorado em Política social; e contou com Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e juíza titular da 40a Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ); Suzani Andrade, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP, professora adjunta da UFRRJ, advogada e conselheira da OAB-RJ; e José Geraldo de Sousa Júnior, professor da Faculdade de Direito e do programa de pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília. “A ideia é apresentar a construção de mecanismos de participação da sociedade civil organizada no sistema de Justiça, evidenciando limites e possibilidades, perdas e conquistas no campo democrático”, afirmou Natália Duarte em sua fala de abertura, passando em seguida a palavra aos palestrantes. Renata Gil foi a primeira a falar. Ela mencionou que o Brasil tem o maior acesso à Justiça e o maior volume de processos tramitando no mundo: 75 milhões. “Cada juiz brasileiro tem em seu poder, anualmente, 4.500 processos. Em Portugal, por exemplo, cada magistrado tem 350 processos, e esta é a média europeia e dos Estados Unidos”, mencionou. “A condição humana demanda a existência de uma Justiça que não pode ser nunca contabilizada como despesa. Quanto mais pessoas necessitando acessar a Justiça, mais deveríamos investir nela recursos financeiros e humanos”.

A juíza também comentou que a Justiça brasileira está sob ataque, mas que o Brasil tem instituições robustas. Também citou duas pesquisas – uma delas, de ordem interna, capitaneada pelo ministro Luiz Felipe Salomão, detectou que a maior angústia do magistrado brasileiro hoje é o tempo do processo e a lentidão da Justiça. Outra pesquisa, de ordem externa, verificou que mesmo tendo o dobro da confiabilidade dos poderes Executivo e Legislativo, o Judiciário precisa ser aperfeiçoado para se tornar mais ágil. Após elogiar o processo de digitalização da Justiça no Brasil, mencionou que foi feito um trabalho junto aos juízes para que não parassem seus trabalhos no momento de maior pânico durante a pandemia, a fim de que a sociedade brasileira não ficasse sem cobertura. “As decisões de não interromper serviços essenciais como água e energia por falta de pagamento, num momento em que as pessoas estavam sem salário, foram decisões judiciais; a reabertura de hospitais públicos que estavam em processo de falência; a formação de jovens médicos antes de terminarem seus cursos, para que pudessem atuar no front salvando vidas; foram decisões

A ideia é apresentar a construção de mecanismos de participação da sociedade civil organizada no sistema de Justiça, evidenciando limites e possibilidades, perdas e conquistas no campo democrático Renata Gil

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Por Manoel Castanho, equipe Cofecon


proferidas no Brasil todo. A Justiça garantiu mais de um bilhão de reais para a sociedade, tornando efetiva a cidadania estampada na nossa constituição cidadã”. Ao falar sobre a Justiça Digital, Renata manifestou a preocupação com os excluídos digitais. “De nada adianta ter uma Justiça 4.0 como a que o ministro implementou, a transformação de todos os processos físicos em digitais, se ainda temos 20% da população brasileira sem acesso à internet, especialmente nas regiões Norte e Nordeste”, afirmou, fazendo referência ao trabalho realizado para que as pessoas sem internet pudessem ser atendidas. “O mestre Boaventura Santos costuma dizer que as pessoas mais pobres tendem a reconhecer menos seus direitos e são as que mais precisam da ajuda da Justiça”. Por último, tratou da igualdade de gênero e da participação feminina no Poder Judiciário. “Eu participo deste Grupo de Trabalho criado pela resolução 255 do CNJ, e nós tentamos entender quais são as barreiras físicas, ou seja, por que as juízas e serventuárias são impedidas de progredir na carreira, e quais são os entraves invisíveis, ou seja, o que faz com que as mulheres se sintam apenas garantidoras de suas famílias e não tenham coragem de progredir e ocupar estes espaços”, pontuou. Entre as medidas tomadas, mencionou a resolução que determinou a paridade de gênero nas bancas examinadoras de concursos para a magistratura. Suzani Andrade, professora da UFRRJ com atuação na área de direitos sociais e previdência, foi a palestrante seguinte. “Como advogada tenho um embate muito grande com o Judiciário. Lidamos no dia-a-dia com cidadãos que estão excluídos e tratados de forma desigual pela sociedade”, iniciou Suzani. Ao comentar as reformas propostas para a Previdência,

afirmou que “a sociedade vem evoluindo nos últimos tempos, temos discutido muito e há necessidade destas reformas. Nossa fala é no sentido de uma adequação legislativa, de modo gradual, para atender esta população excluída e, de certa forma, desafogar o Judiciário”. Ao comentar o número trazido por Renata Gil (4.500 processos por magistrado), Suzani acrescentou que 90% dos processos na esfera federal têm a ver com direitos sociais, em especial a benefícios previdenciários por incapacidade. “Esta última reforma traz um impacto muito grande para a sociedade porque altera de forma radical o sistema de cálculo do benefício do cidadão brasileiro, do trabalhador brasileiro, reduzindo de forma contundente tanto os benefícios dos trabalhadores da iniciativa privada como os benefícios dos servidores públicos”, afirmou. “Daí a necessidade de aprofundar o estudo para evitar as reduções e as desigualdades. Lutamos para que a justiça social seja uma justiça distributiva”. Ao falar sobre os impactos da reforma previdenciária, mencionou a redução do poder aquisitivo, a falta de políticas públicas do Estado para reduzir a desigualdade e o número de conflitos instalados e que o Poder Judiciário não consegue dar conta de atender e dirimir da melhor forma possível. “Por que se instalam estes conflitos? Por causa da não efetividade dos ditames constitucionais e da falta de entrosamento entre o Poder Executivo e o Legislativo, indo desaguar todas estas questões no Judiciário”, comentou Suzani. “Quando levantamos a questão dos direitos sociais, dentro desse âmbito temos conflitos de desigualdade de gênero, porque a mulher não só na magistratura, mas na sociedade, ainda tem um papel muito desigual com relação ao homem, e isso reflexo muito grande, inclusive estatístico, com relação às normas que são aplicadas para um futuro benefício previdenciário. As normas ainda não podem ser colocadas de forma genérica para um homem e uma mulher devido à existência de muita desigualdade de tratamento destes homens e mulheres na nossa sociedade”. Ainda em relação à desigualdade de gênero, falou sobre as eleições das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil. “Foi aprovada no início do ano a paridade de gênero para ocupar cargos na OAB, e isso tem trazido neste momento um conflito muito grande”, afirmou a palestrante. Embora as mulheres sejam 52% dos advogados brasileiros, Suzani pontuou que elas ainda não conseguiram espaços de destaque no sistema OAB. “Nestas eleições existe a paridade:

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50% da diretoria e dos conselheiros serão mulheres e 50% serão homens. Isso é um grande avanço na questão da desigualdade”. Suzani apontou que ainda há muitas desigualdades a serem vencidas quanto aos direitos sociais, e trouxe uma sugestão. “Tentou-se trazer na emenda constitucional, mas não de forma adequada, a implementação de fundos de pensão, mas não só no sistema de capitalização – porque aí só vai beneficiar pessoas de poderes aquisitivos altíssimos, mas também fundos de pensão ou previdência privada, seja ela de entidade aberta ou fechada, mas de maior amplitude para a população de baixa renda, para que ela possa complementar sua renda, porque hoje vivemos um momento de estado mínimo, e isso vem trazendo mais empobrecimento”, argumentou. “Da forma como foi posta, as regras de transição não atendem a redução da desigualdade e a justiça social. Faltou ao Poder Executivo e ao Legislativo um entendimento melhor para a redução da desigualdade com relação aos direitos sociais”. José Geraldo iniciou sua fala dizendo que não havia um espaço tão adequado para esta discussão quanto o Conselho Federal de Economia. “Pensando em desigualdade social, não há como não pensar na dimensão material dos direitos, aquilo que o economista Amartya Sen chamou de direito como liberdade, no sentido de que realize funções de teoria da justiça”, comentou o professor Caracterizando Amartya Sen como idealizador do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), falou dele também como um “interlocutor das injunções de todas as mobilizações sociais, no sentido de redução de desigualdade, colocando como eixo de realização deste sentido de justiça, que deve presidir a economia, superar a fome como fator mais incrementador da desigualdade, que desumaniza e incapacita para o exercício pleno da cidadania”. Geraldo também falou sobre os 33 anos da Constituição de 1988, comemorados na mesma semana em que se realizou o webinário. “O principal fator que concretiza a constituição é pensá-la como uma estratégia de sociedade democrática e participativa. Uma sociedade democrática é uma sociedade que realiza direitos, e a Constituição é a expressão contínua e inacabada da emancipação pelos direitos”, discorreu o professor. “A professora Marilena Chaui dizia que a configuração da Justiça é a mediação do emancipar do humano pela aquisição e pela construção contínua e interativa dos direitos. Quanto mais humanizada, quanto mais emancipada,

inspirada nos princípios democráticos, mais caracterizados são os direitos”. Ao comentar os episódios ocorridos no dia 7 de setembro, argumentou que a Esplanada dos Ministérios foi “sequestrada por mobilizações antidemocráticas e contra o sistema de justiça e o STF, os indígenas se apresentaram na cena pública reivindicando um protagonismo realizador de direitos e assumiram a tribuna do tribunal principal do País para afirmar a anterioridade estatal de seus direitos e reconhecer que o Estado não cria direitos. Quem cria direitos é a sociedade”, afirmou. José Geraldo citou que quando o ministro Ricardo Lewandowski tomou posse, falou que a característica do seu mandato seria cumprir dois grandes objetivos: universalizar as audiências de custódia e formar os magistrados numa competência que eles revelavam insuficiente. “Duas ONGs, a Dignitat e a Terra de Direitos, concluíram que parte do déficit de realização de justiça estava no fato de que, pela pesquisa, 40% da magistratura brasileira diziam que jamais tinham ouvido qualquer referência a direitos humanos na sua formação, seja nos cursos de direito, seja nas escolas de formação das corporações”, comentou. “E menos de 6% afirmavam ter conhecimento ou ter aplicado em qualquer tempo um dispositivo originado das cortes internacionais de direito”. O professor também criticou as reformas realizadas no sistema – que não se aplicariam à satisfação dos direitos. “Todas as reformas do sistema jurídico apoiadas pelo Banco Mundial orientam modernizações do aparato, mas não as reformas da mentalidade, da cultura jurídica de formação dos operadores, que está ligada à expectativa deste sistema de operadores de equilíbrio global na estabilidade dos negócios, dos contratos, e não na satisfação dos direitos”, criticou. “Numa cultura que mergulha na tentação autoritária encontra na cúpula do sistema a tese de que é preciso conter todo o ativismo social do país, e se desmantela toda a estrutura de participação constitucional popular”. E terminou sua fala pedindo que a formação jurídica dos operadores do direito seja repensada. Após as falas, os palestrantes responderam às perguntas dos que assistiam à transmissão, resultando num rico debate.

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Vacina no braço, comida no prato: auxílio emergencial digno é garantia de sobrevivência Por Fórum Nacional pela Redução da Desigualdade Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Social - nota postada em 15/09/2021 Alimentar e Nutricional, indicam que, em 2021, 55,2% dos domicílios brasileiros se encontram em situação Diante do aprofundamento do quadro da de insegurança alimentar: 116,8 milhões de brasileiros desigualdade econômica e social, a continuidade convivem com algum grau de insegurança alimentar da pandemia e as novas variantes do vírus, que e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em certamente acentuarão o caos socioeconômico no quantidade suficiente em casa, além das 19 milhões país, o Governo Federal disponibilizou valor irrisório de pessoas que enfrentam a fome. para o Auxílio Emergencial, inferior ao do ano passado Ao longo de 2020, foram pagas até 9 parcelas e indisponível para a maior parte dos brasileiros em do Auxílio Emergencial, no valor de R$600,00, por 5 situação de vulnerabilidade. meses, e de R$300,00, por 4 meses, para os 65 milhões Para justificar a redução do valor do auxílio, de brasileiros que mais sofreram com os impactos que não atende às condições mínimas da população, da pandemia. Em 2021, após uma interrupção de e ainda, o corte no número de beneficiários, que 3 meses, o Auxílio Emergencial voltou a ser pago, passou de 45 milhões de pessoas em 2020 para menos e a previsão é que 33 milhões de pessoas sejam de 37 milhões em 2021, apesar do agravamento atendidas, recebendo até 6 parcelas entre R$150,00 e da pandemia, o Governo alega não ter recursos R$375, valores insuficientes para lidar com o aumento disponíveis. Por meio de dados, pode-se comprovar do custo de vida ocorrido desde o início da pandemia. que a alegação é falsa. O Auxílio Emergencial foi fundamental para Nos últimos 12 meses, o valor da Cesta Básica que a quantidade de brasileiros vivendo abaixo da teve aumento significativo em todas as capitais linha da pobreza não aumentasse significantemente pesquisadas pelo DIEESE, variando entre 11,17% de ao longo de 2020 e sua interrupção, no início de 2021, aumento, em Recife, e 29,87%, em Brasília, enquanto aliado aos efeitos da pandemia, causou um aumento a inflação oficial (IPCA/IBGE) ficou em 8,35%, e o significativo da pobreza, que hoje acomete 12,8% dos principal índice de preços utilizado em negociações brasileiros – 27 milhões de pessoas, de acordo com salariais, o INPC/IBGE, ficou em 9,22%. pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas. Com base na cesta mais cara que, em junho, Outro problema significativo é o elevado foi a de Florianópolis, o DIEESE estima que o salário desemprego e a informalidade nas relações de mínimo necessário deveria ser equivalente a R$ trabalho: no primeiro trimestre de 2021, mais 5.421,84, valor que corresponde a 4,93 vezes o de 14,8 milhões de brasileiros encontravam-se piso nacional vigente, de R$ 1.100,00. Os valores de desempregados, 14,7% da população em idade para remuneração estão reduzidos, muito distantes do trabalhar. Além disso, mais 6 milhões de brasileiros necessário para que o brasileiro faça jus ao mínimo de são classificados como desalentados – o que significa dignidade conforme determinado pela Constituição dizer que estão disponíveis para trabalhar, mas Federal. desistiram de procurar ativamente um emprego, Dados recentemente divulgados no Inquérito seja por falta de vagas, idade ou qualificação. Ao fim Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da do primeiro trimestre deste ano, de acordo com o Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a taxa de

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O Auxílio Emergencial foi fundamental para que a quantidade de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza não aumentasse significantemente ao longo de 2020

subutilização da força de trabalho brasileira chegou a 29,7%. Um dos exemplos mais marcantes desse fenômeno é a “Uberização”, relação desprotegida de trabalho assemelhada à servidão, que leva às ruas o trabalhador que teria condições de desempenhar a sua profissão, contribuindo assim, com o desenvolvimento coletivo do País. Assim, torna-se imperativo nos posicionarmos em favor da ampliação do valor do benefício e de sua extensão temporal. Manifestamos nossa forte divergência em relação à política econômica implementada pelo atual governo que, em plena pandemia, vem aprofundando ainda mais os mecanismos financeiros que privilegiam o sistema da dívida. Enquanto alega dificuldades para ampliar o valor e o alcance do Auxílio Emergencial, o Congresso Nacional aprovou remuneração diária aos bancos, sem limite ou parâmetro algum (PL 3877/2020), uma verdadeira “bolsa banqueiro”. Esse ato vai contra os anseios da população. Ao invés disso, o governo deveria privilegiar os investimentos produtivos, que geram emprego e renda, além de proporcionar saúde, assistência social e demais investimentos sociais necessários para debelar a crise sanitária que devasta o país. Agravando a situação, o Banco Central elevou a taxa básica de juros Selic 4 vezes seguidas, impulsionando as demais taxas de mercado e prejudicando, assim, a população que se encontra endividada. A inflação é resultado dos aumentos de preços administrados pelo próprio governo (energia, combustíveis, inclusive o botijão de gás, dentre outros em decorrência principalmente da privatização de setores estratégicos da Petrobrás e sua equivocada política de preço equiparado ao preço de importação em dólar), e da alta nos preços da Cesta Básica, devido a fatores cambiais e do mercado internacional, em um contexto de erros na condução de políticas agrícolas e na falta de programa de reforma agrária. Um dos objetivos fundamentais da República, constante na Constituição de 1988, em seu artigo 3º, é a redução das desigualdades sociais; sendo assim, é oportuno lembrar que, até o momento, não houve ações efetivas necessárias para atender às demandas da população carente. Portanto, os argumentos apresentados pelos técnicos do governo, de que não há recursos orçamentários, não se sustentam em face de uma isenta análise técnica e econômica, aqui apresentada. O Governo mantém mais de quatro trilhões de reais em caixa há vários anos. Em maio de 2021,

o saldo era de R$ 1,56 trilhão na conta única do Tesouro Nacional; R$ 1,85 trilhão em Reservas Internacionais, e R$ 1,15 trilhão no caixa do Banco Central. No Orçamento da União para 2021, aprovado no Congresso Nacional, estão previstos mais de R$ 2 trilhões para pagamento de juros e amortizações da dívida pública federal, o que beneficia principalmente grandes bancos e investidores. Diante deste quadro catastrófico, agravado pela maior crise sanitária de todos os tempos, que já ceifou quase 600 mil vidas e incapacitou outras centenas de milhares de cidadãos, o Fórum Nacional pela Redução da Desigualdade Social vem a público denunciar a necessidade de políticas sociais mais efetivas, que garantam a dignidade a esta enorme parcela da população brasileira que sofre nas ruas e nos becos de todo este país continente. O Fórum Nacional pela Redução da Desigualdade Social enfatiza a necessidade de reverter essa situação e aprofundar este debate em todas as esferas do Estado, com participação popular.

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EXPEDIENTE COORDENADORA DA PUBLICAÇÃO Natália Duarte CONSELHO EDITORIAL Wellington Leonardo da Silva Gilson Duarte

REDAÇÃO PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Renata Reis, Manoel Castanho e Júlio Raquel Passos Poloni SECRETARIA Jane Silva e Raphael Pacheco

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