Entre o contemporâneo e o grotesco: Piolin e as comédias de picadeiro encenadas entre 1933 e 1960

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Demarcada a sociabilidade no espaço público do circo, onde se podia, em contraste, construir uma privacidade não permitida no espaço de trabalho, o homem simples210 podia experimentar a fuga da realidade cindida imposta pela modernidade, gerando um complexo processo de construção de identidade, ponteado por uma vasta e constante variedade de oscilações dialéticas entre público e privado, consciente e inconsciente, arcaico e moderno, trabalho e lazer, lógico e ilógico, passado e futuro, corpo e alma.

6.2 A modernidade e o homem simples O circo envolve a sociabilidade do cidadão de uma metrópole em construção, emergente, polifônica e polissêmica. No entanto esse homem simples guarda traços marcantes de uma sociabilidade rural – a temática caipira das peças é herança desse tempo sem tempo – ao passo em que é talhado pelas referências externas, em especial as do cinema norte-americano – que implanta tramas guiadas pela realidade da guerra e pelas conspirações. O homem simples, portanto, constrói um imaginário a partir dos signos da modernidade, mesmo que a partir da cisão a que sua condição humana está exposta. O sociólogo José de Souza Martins acredita que só é possível investigar a modernidade se for considerado o modo como “o moderno e os signos de modernidade são incorporados pelo popular”211, pois nesse processo de mediação é que se pode observar as dificuldades da modernidade. Ao empreender tal processo, é possível percebe que as camadas populares apreendem o moderno como simulação, ou seja, como expressão da inautenticidade. Um moderno “capturado pela mentalidade tradicional na trama de relações sociais que não se modernizam além de certo ponto, bloqueadas pela condição dependente do capitalismo na periferia dos centros hegemônicos”.212 Essa simulação acaba gerando certa crítica ao mesmo moderno a partir do referencial da tradição, e se dá “mais no rir do que no pensar”. 213 Martins aponta: “O riso crítico nasce e se apoia, justamente, na desengonçada e caricatural junção do que é propriamente moderno com o que não o é; na forçada convivência de 210

O sociólogo José de Souza Martins define este homem simples “cuja existência é atravessada por mecanismos de dominação e de alienação que distorcem sua compreensão da História e do próprio destino” e que “luta para viver a vida de todo dia, mas que luta também para compreender um viver que lhe escapa porque não raro se apresenta como absurdo, como se fosse um viver destituído de sentido”. (MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Contexto, 2008, p. 9) 211 Idem, p. 29. 212 Idem, p. 30. 213 Ibidem.

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