Ruy de Carvalho: “O espírito não tem rugas”

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Entrevista | 49

5X\ GH &DUYDOKR “O espírito não tem rugas” texto e fotos por André Manuel Mendes

Aos 92 anos é o símbolo de uma geração. Acarinhado pelos portugueses, Ruy de Carvalho é um dos atores mais conceituados em Portugal, um verdadeiro sinónimo de arte e cultura que continua viva e persistente. Mas acima de tudo Ruy de Carvalho é pai, avô, bisavô, um homem amado por aqueles que fazem parte da sua vida, e esse tem sido um dos seus pilares. Na jornada da sua vida contou com a companhia e o amor de Ruth. Apesar de já não estar ao seu lado, Ruy de Carvalho acredita que se vai encontrar com ela “lá”. O avô de muitos portugueses continua no ativo e a trabalhar em teatro, novelas, anúncios e com uma agenda sempre preenchida. A revista “Dignus” foi conhecer de perto o ator, aliás, o homem por detrás do ator, e tentar perceber o segredo para um envelhecimento ativo e saudável. Sentados no sofá de sua casa, no meio dos “trabalhos de casa”, de livros e de distinções, Ruy de Carvalho contou-nos sobre a sua vida, o seu trabalho, as suas paixões e do que é preciso para ser feliz: “vivam sempre”.

Dignus: O facto de ter vontade de trabalhar com 92 anos é o elixir para se manter ativo? Ruy de Carvalho (RC): Sobretudo para mim sim, porque para mim é um prazer trabalhar. Não vou desistir de viver, porque a morte é certa, e enquanto a vida andar comigo e me acompanhar eu vou vivendo e trabalhando. Tenho uma memória dentro do possível, decoro com facilidade, ainda conduzo, ando apenas com alguma dificuldade, já não faço o que fazia com tanta facilidade e tenho que ter cuidado com as quedas. Trabalho todos os dias, tenho a televisão, o teatro, e mesmo com os 92 anos ainda me vou aguentando. Eu disse isto uma vez e repito sempre, eu tenho 92 anos por fora mas tenho 28 por dentro. Nunca devemos desistir do nosso espírito, porque o espírito não tem rugas, e como tal temos que nos valer dele. Ainda faço muitas coisas que muitas pessoas mais novas do que eu dizem que já não podem fazer, aliás, não podem ou desistem, mas não podemos desistir de nada na vida.

cas oficinas, há pouco interesse estatal pela cultura e sobretudo pelo teatro. Há imensos teatros fechados atualmente, e o público também tem que ajudar, pois sem público não há espetáculo. Há muitas terras em que os teatros funcionariam se as pessoas os frequentassem, mas essas mesmas pessoas abandonam o teatro, o cinema, e só optam pelo futebol, mas isso é pouco. O que marca e marcará sempre um país é a sua cultura, pois é extremamente importante para todos os povos, tanto quanto o desporto, pois o grande objetivo da vida é uma “mente sã em corpo são”. Mas basta ver qual é o orçamento do Estado para a cultura para vermos que não se faz nada em Portugal.

Dignus: Como são encarados os atores com mais idade dentro da arte da representação? RC: Eu sou muito bem recebido, os jovens gostam muito de mim. Trabalho no Teatro Experimental de Cascais que tem muitos jovens e recebem-me como se eu tivesse a idade deles. Mas infelizmente há muito pou-

Dignus: Qual foi a primeira peça em que entrou há 77 anos quando começou na representação? RC: Foi numa peça portuguesa, de um autor e músico portugueses, Joly Braga Santos e Luiz Francisco Rebello, a peça chamava-se “Jogo para o Natal de Cristo”. Depois disso continuei a fazer diversos trabalhos para o

“Eu disse isto uma vez e repito sempre, eu tenho 92 anos por fora mas tenho 28 por dentro.”

Teatro do Centro Universitário da Mocidade Portuguesa, peças dirigidas pelo mestre de teatro Ribeirinho. Mas a peça que mais prazer me deu a fazer foi “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires onde representava o povo português. Aqui era cego, mas apenas quando queria [risos]. Dignus: Uma carreira de 77 anos é uma vida. Quais os momentos que mais o marcaram? RC: Foram imensos, não consigo especificar um em particular, mas tenho sobretudo momentos muito marcantes na minha vida particular. Tenho os meus filhos, tive um casamento muito feliz com uma pessoa que me completava e eu a ela, e isso é uma parte muito importante da vida de um artista, é ter em casa um amparo muito grande. Tive momentos muito bonitos na minha vida, e tenho ainda hoje, principalmente quando o público se aproxima de mim, me agradece, são essas as coisas que me tocam profundamente, são sinal que fui verdadeiramente útil na sociedade a que pertenço. Eu sou do país, e se fosse trabalhar lá fora gostaria que fosse sempre como representante do meu país, nunca perderia a minha nacionalidade. Dignus: E compara a sua arte de hoje com aquela que existia há 77 anos? RC: Houve sempre crise na cultura em Portugal. Houve muita gente a dizer que lutava pela cultura, mas isso nunca foi verdade. Só tratam da parte económica do país, que é claro muito importante, mas também é importante ser competente, e pessoas que sabem não são levadas como carneiros, uma pessoa culta não é um carneiro, e por isso a arte é por vezes um inimigo dos Governos, sobretudo nas ditaduras. Dignus: O amor pela leitura sempre o acompanhou. Lê bastante e foi autor e co-autor de diversos livros. Esse mesmo amor é um dos segredos para se manter uma mente ativa numa idade avançada?


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