D. Amélia e o envelhecimento ativo

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Espaço Associação Coração Amarelo | 7

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ostaria de vos apresentar a D. Amélia, minha vizinha, que vivia no rés-do-chão do mesmo prédio, nos anos 50 do século passado. Senhora casada, vivia com o marido e 3 filhos. Estes quando autónomos, visitavam os pais periodicamente. O relacionamento do casal era caracterizado por vários momentos de conflito, envolvendo agressões verbais, sendo a mulher a mais agressiva. Com a morte do marido, a D. Amélia passa a viver sozinha e julgo que, nesse momento, a sua idade deveria rondar os 80 anos. O relacionamento com os vizinhos resumia-se à saudação e pouMaria Helena Cadete co mais. Ao ficar viúva passa a ocupar-se do quintal, mas era pouco Fundadora da vista pela vizinhança, que não sentia a sua falta uma vez que era de Associação Coração trato pouco amistoso e muito superficial. Eu própria me incluía neste Amarelo, com naipe. experiência na área Uma noite, já perto da meia noite, no regresso a casa, deparo-me do envelhecimento com a D. Amélia sentada no elétrico, ao fundo, num dos bancos laterais. Olhando para ela, que nem me viu, fiquei extremamente preocupada, pois uma pessoa idosa sozinha àquela hora poderia precisar de ajuda. Dirijo-me à senhora, cumprimento-a, sento-me ao seu lado e pergunto-lhe se estava bem e se precisava de ajuda. Respondeume que se sentia muito bem, pois regressava de ter feito um passeio pelas ruas da cidade. Esta informação ainda mais aumentou a minha preocupação, se bem que Lisboa, nessa altura, se pudesse considerar uma cidade segura e sossegada. Começámos a conversar e perguntei-lhe se tinha televisão, o que lhe permitiria ficar em casa, sobretudo à noite a ver algum programa. Disse-me logo “nem pense nisso, a TV só transmite programas que não me interessam e alguns com legendas, que me custam a ler, e são sobre assuntos que também não têm nenhum interesse para mim.” E continua, “sabe, o meu filho, o que é general….”, e aqui as poucas pessoas que viajavam no elétrico olharam para ela, estou certa, pensando que estava mentalmente perturbada. E continuando o nosso diálogo diz: “ofereceu-me o passe para utilizar este transporte”. E continua a conversa: “Hoje estava sem sono e não tendo nada para me entreter, apanhei o elétrico e dei uma volta pela cidade: ouço conversas, vejo gente, sento-me num banco, vejo movimento à minha volta e quando chego a casa durmo bem. Durante o dia tenho mais motivos para passar o tempo: vou ver os cisnes à Avenida da Liberdade, os patos ao Jardim do Campo Grande ou ao Jardim da Estrela, sento-me nos bancos “(...) hoje, para todas as do jardim, conheço árvores e flores, converso Donas Amélias, existem com elas, vejo-as crescer, dar flor, envelhecer e respostas sociais capazes morrerem. Vejo namorados, crianças a correr e de promover e incentivar a brincar, converso pouco com os adultos, são um envelhecimento ativo curiosos e eu só conto o que quero, pois os e participativo.” meus filhos recomendam-me para ter cuidado com pessoas estranhas, mas eu geralmente sei escolher as pessoas com quem converso.” A partir deste momento estabelecemos uma relação amical, que se resumia ao cumprimentamo-nos e saber se estávamos bem e eu receber informações dos seus devaneios diurnos e noturnos. Não voltei a encontrá-la no transporte público. Estive ausente do país por alguns anos e no meu regresso soube que a D. Amélia, nos últi-

mos tempos, sofria de transtornos mentais, que perturbavam a vizinhança e punham em perigo a sua própria vida. A família havia decidido interná-la num lar. A minha ocupação profissional incidia, precisamente, na área da população idosa, pelo que toda a vida me debrucei sobre a problemática do apoio às pessoas idosas, decorrente das orientações da Organização Mundial da Saúde e da Organização das Nações Unidas acerca do envelhecimento da população. Todas as orientações decorrentes destes e outros organismos, nacionais e internacionais, ao longo de mais de 50 anos de profissão, afirmam que para garantir o bem-estar do idoso é necessária uma abordagem integrada nos setores da saúde, economia, trabalho, educação e Segurança Social, sempre no respeito pelos seus direitos e decisões pessoais, quando possível. Voltando à nossa D. Amélia, perdida algures neste texto, gostaria atrevidamente de considerar esta senhora uma idosa pioneira do envelhecimento ativo, dado reunir muitas das caraterísticas que entram na sua definição: não aparenta estar doente, é autónoma, tem poder de decisão, sabe ocupar o seu tempo, lutando sobretudo contra a solidão e o isolamento, escolhendo as atividades que gosta de realizar, ainda que corra riscos, tem suporte familiar, que não sendo assíduo, atua em situação de emergência. Contudo, faltava-lhe uma organização de suporte que a ajudasse a gerir e selecionar ao longo do tempo as suas atividades, zelasse pela vigilância da sua saúde e pudesse assegurar a higiene de si própria e do seu lar. Felizmente, essas respostas foram surgindo e hoje, para todas as Donas Amélias, existem respostas sociais capazes de promover e incentivar um envelhecimento ativo e participativo. Neste sentido, o voluntariado de proximidade, como o que a delegação de Lisboa da Associação Coração Amarelo promove e potencia a participação de todos, no respeito pelas competências, capacidades e vontades de cada um. Nada pude fazer pela D. Amélia, mas ela ajudou-me muito pela reflexão que realizei acerca do seu caso, constituindo matéria para discussão em aulas destinadas à formação de pessoal para o trabalho com pessoas idosas.


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