10 | A Voz de
E os olhos ainda coçam:
um pot-pourri de pandemia, risos, lágrimas e velhices1 Natalia Negretti Doutoranda, pela área Estudos de Gênero, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP. Especialista em Gerontologia pela Faculdade de Educação em Ciências da Saúde do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (FECS/HAOC). natalia_negretti@yahoo.com.br
P
© Natalia Negretti
Figura 1. Duas texturas de sombra.
[...] enfim, sentimentos que se estendem de alma em alma por ressonâncias afetivas. Tudo isso diz respeito ao essencial da vida. Tudo isso é sério, até mesmo trágico, por vezes. Só quando outra pessoa deixa de nos comover, só nesse caso pode começar a comédia. E ela começa com o que poderíamos chamar de enriquecimento contra a vida social (Henri Bergson)
ouco tempo após o início da pandemia da Covid-19 no Brasil, recebi um vídeo pelo WhatsApp em que imagens de mulheres e homens, sob, entre outras, pronúncias sonoras de risadas e das palavras ‘avó’ e ‘avô’, informavam tentativas de sair de casa. Num momento de primeira e maior (quiçá única) adesão ao isolamento – sobretudo dos sujeitos em idade mais avançada -, tentar passar por grades de portões ou dizer que não ia deixar de ir à rua delineava conteúdos, falas e ações repetidas e ininterruptas; criavam um pot-pourri. Como músicas em uma única faixa, as sobreposições daquele vídeo apresentavam seu personagem: um tom de graça. Longe de recebe-lo como uma isolada criação, o vídeo chamou-me atenção pelo seu fluxo. O tempo investido na captura imagética, a despreocupação com as emoções em feições, gestos e voz de quem era filmado e a edição montavam um novelo audiovisual que juntou a um tempo só dois ditados populares: “caiu na boca do povo” e “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. A reação que tive naquele período se direcionou, em suma, a uma noção de que sujeitos que têm relações afetivas estabelecidas com pessoas consideradas idosas não necessariamente reflitam sobre a velhice como questão. Em outras palavras, no plano privado e familiar as referências de velhices costumam ser socialmente nossos avós (e
1
Este texto é uma continuidade do texto Quando os olhos coçam: a pandemia, o riso e o idoso, originalmente publicado em 23/04/2020 no Jornal GGN, Brasil. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/quando-os-olhos-cocam-a-pandemia-o-riso-e -o-idoso-por-natalia-negretti/
em seguida, ou junto, a depender do tempo, tias e tios, pais e mães), mas como sabemos, ou deveríamos saber, elas e eles não são, não foram e não serão nem nossos e nem somente avós. Esse horizonte não significa diminuir a importância social e afetiva de avó e avô, muito menos de nossos avós e de nossos antepassados. Pelo contrário, por via de suas trajetórias podemos atentar ao traçado social de quem amamos e, por conta de seus rostos, ter em lembrança também as singularidades e importância de cada uma dessas existências. O exercício proposto, de processamento social e geracional acerca do envelhecimento, está relacionado a uma necessidade atentada por Henri Bergson (2006), a de revisão da perceção, e ao estranhamento frente a naturalizações em distintas escalas da vida social. Empreender então um deslocamento, o de se retirar, em suma, do foco do envelhecer apenas de pessoas amadas, amplia o enquadramento pelo qual se olha as velhices. Esse investimento em um novo olhar ao redor me recorda parte do texto escrito há pouco mais de um ano: “É muito bom que haja opiniões, curiosidades e sentimentos frente ao envelhecimento. Pena que não sobre ele” e “É muito bom que a compaixão sobre o envelhecimento exista. Pena que essa preocupação ocorra só quando com os ‘seus velhos’”. Tais trechos se alinhavam ainda a um esforço de atenção, no sentido de que olhar para velhices como abrangência não significa deixar de considerar as pessoas que se ama, estima e respeita, mas entender que a questão extrapola “avós”, “meus velhos” e “família”. Esses três termos são considerados, nessa perspetiva, passagens, referências e posições de relações com velhices.
“É muito bom que a compaixão sobre o envelhecimento exista. Pena que essa preocupação ocorra só quando com os ‘seus velhos’.” A ponte entre aquele texto e essa ocasião é o encontro entre emoções e velhices por conta de um outro episódio que, se não envolveu edição, envolveu encenação. O tempo de investimento na fabricação de um vídeo que ria de idosas e idosos que, por sua vez, não riam, entre março e abril de 2020, articula-se ao que fora fincado um ano depois no solo de uma Instituição de Longa Permanência para idosos por meio de uma de bomba falsa, que encenou a literalidade de um relógio para explosão e, a contar dela, possibilidades de consequências de vida, feridas e finitude.