O mundo virado do avesso
J. Norberto Pires
robótica
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DA MESA DO DIRETOR
Prof. da Universidade de Coimbra
"O mundo está numa encruzilhada terrível. Desapareceram os valores e tudo é mais importante do que as pessoas, os seus sonhos e as suas vidas. A prova é que na Europa, antes uma esperança de um mundo melhor, se levantam muros, se acicatam fantasmas e se adiam respostas (...) observo os muitos milhões de euros que estamos disponíveis para gastar em pesquisa espacial, por exemplo, para observar e compreender novos mundos, e fico a pensar como não sabemos nada do que se passa no nosso planeta, nomeadamente com as pessoas que cá vivem. E fico a pensar na razão de tudo isso."
Olho para a imagem daquele bebé e digo peremptório que poderia ser meu filho; aliás, é mesmo. Nele tudo me é tão próximo. Os sapatos, penso que a minha filha mais nova tem uns iguais, as calças, o formato da cabeça... a maneira como está deitado, como que a dormir – mais uma vez, a minha filha dorme assim, coloca os braços nesta posição e afunda a cabeça no travesseiro – numa imagem que tem tudo para ser serena. E é, na verdade, terrivelmente serena. Nunca vou esquecer esta imagem. Olho para os comboios de Budapeste cheios de gente desesperada, marcada como se fosse diferente, que nasceu do lado "errado" do mundo, cheia de vida e sem esperança, a correr freneticamente à procura de um oásis de paz e de esperança. Leio que são interrompidos na sua viagem para a Alemanha e para a Áustria para serem levados a campos desenhados para pessoas "diferentes" como eles. Só os iguais seguem a sua vida a caminho de casa, e de um destino que para os outros seria uma oportunidade de sobrevivência. Imagino outros comboios, noutros tempos que, em sentido inverso, traziam gente considerada "diferente" para sítios sem esperança, sem vida e onde o destino era a morte. Olho para os dirigentes europeus e não vejo urgência. Quando estava em causa o dinheiro as reuniões eram marcadas em menos de 14 horas, mas neste caso estando em causa vidas a urgência é relativa e mede-se em semanas. Ouço as suas palavras e pasmo de vergonha. Estamos perante uma "praga" de gente diferente que não é problema nosso, mas antes da Alemanha. Ouço e leio isto
de pessoas que dirigem países e não têm a mínima vergonha, nem sobressalto humano e cívico, de o dizerem alto e em público. Não deixa de ser curioso ouvir a chanceler alemã, com toda a razão, a apelar a uma resposta coordenada da Europa, unida em torno de valores superiores, depois da campanha de desunião e desinteresse que promoveu para o problema grego. Agora percebe as consequências de tão mesquinha e irrefletida atuação. A Europa escolheu a autodestruição e deu voz aos nacionalismos mais primários. Agora com a crise dos refugiados pura e simplesmente não tem resposta, porque não existe como UNIÃO. Não tenho nenhuma esperança que o bebé que podia ser meu filho, os comboios de Budapeste ou a vergonha das declarações de certos líderes europeus alterem seja lá o que for. O mundo está numa encruzilhada terrível. Desapareceram os valores e tudo é mais importante do que as pessoas, os seus sonhos e as suas vidas. A prova é que na Europa, antes uma esperança de um mundo melhor, se levantam muros, se acicatam fantasmas e se adiam respostas. Não é importante, pois não tem a ver, aparentemente, com dinheiro. Lamento que tenhamos, de novo, chegado aqui. Nota final: observo os muitos milhões de euros que estamos disponíveis para gastar em pesquisa espacial, por exemplo, para observar e compreender novos mundos, e fico a pensar como não sabemos nada do que se passa no nosso planeta, nomeadamente com as pessoas que cá vivem. E fico a pensar na razão de tudo isso.