Criminalizar o género

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Criminalizar o género? Experiências Femininas em Contexto de Reclusão Criminalize the gender? Feminine experiences in reclusion context Marcela Dias Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - Portugal Resumo Neste artigo, procura-se mostrar parte de um trabalho de natureza exploratória, resultante da investigação para a tese de mestrado em ciências da educação. Um dos objectivos foi desenvolver uma pesquisa na perspectiva de compreender como o Género, Cidadania e Educação estão presentes e enformam os percursos das mulheres que cumprem pena numa instituição prisional do Norte de Portugal. Fez-se, assim, uma pesquisa que se centra nos trajectos, quotidianos e nos discursos femininos experienciadas pelas mulheres reclusas, procurando perceber como se constróem como criminosas, compreendendo particularmente a naturalização do género nessa construção. Evidenciamos também, as práticas e experiências sentidas pela investigadora, de forma a reforçar as subjectividades presenciadas e vividas em contexto prisional. Palavras-chave: Género, Narrativas, Prisão, Crime, Percursos. Abstract In this article, we pretend to show a part of the results obtained in an exploratory work developed in the ambit of an investigation for a Master degree thesis in Sciences of Education. One of the main purposes was to develop a research in the perspective of understanding how the Gender, the Citizenship and the Education are present and shape the courses of the women who are imprisoned in a prison institution of the north of Portugal. In this way, the research was centred in the walks, the daily routines, the feminine talks experienced by the imprisoned women, seeking to understand how they build themselves as criminals and, specially understand the gender’s naturalization in that construction. We give also evidence to the practices and experiences felt by the investigator, strengthening the subjectivities witnessed and lived in prison context.


Keywords: Gender, Narratives, Prison, Crime, Trajectories

Introdução Este artigo pretende, numa perspectiva exploratória, fundamentalmente no campo das ciências da educação, debruçar-se sobre experiências e subjectividades de mulheres em contexto prisional, em regime de reclusão feminina, na relação com o seu passado e com as perspectivas e possibilidades de futuro. Tratou-se, assim, de uma pesquisa centrada em narrativas biográficas acerca de trajectos, quotidianos e rotinas de mulheres e, também, de conversas e observações dos quotidianos de agentes que vivem, trabalham ou dirigem estes estabelecimentos. Por conseguinte, partimos de encontros/entrevistas realizadas a cinco mulheres, entre os 19 e os 53 anos, com penas de prisão entre os dois e os seis anos, que embora apresentem percursos muito heterogéneos, também evidenciam regularidades e homogeneidades relacionadas com género, transgressão e crime, e «deambulações» nos meandros do retalho da droga. Este estudo, apesar de localizado numa prisão, não teve como objecto a prisão mas sim uma compreensão acerca de como nela se constróem, moldam diariamente experiências e significados de mulheres reclusas, e como estas agem e negoceiam esses lugares e circunstâncias prisionais nas suas vidas. Assim, apresentamos neste artigo o resultado de um trabalho de investigação, onde o género está estruturado de modo central tanto no objecto de estudo como no seu objectivo. Deste modo, pode ser captado através, quer de um olhar sobre os tipos de crime e as suas circunstâncias contextualizadas, como através das penas atribuídas e aplicadas. Igualmente pode ser observado nos processos de chegada ao tornar-se criminosa. O género é ainda visto e escutado nos modos e processos vividos de punição, tratamento e re/educação. Esta “lente de género” (Matos, 2002) pode, finalmente, ser direccionada para captar o lugar de tudo isto na construção e perspectivação das vidas presentes e futuras. Do mesmo modo, a partir das vozes e silêncios das mulheres encarceradas, é possível inscrever e perceber estas realidades sob uma segunda lente - a da educação e cidadania re/genderizadas, tendo em conta, não só os percursos educativos passados, onde o crime ocupa um lugar importante, mas prestando sobretudo particular atenção às


formas como as vidas presentes estão a ser vividas, em que a punição, disciplinação e tratamento (re/educação?) dos corpos e das mentes têm um lugar central. Percurso de pesquisa no terreno... contar como foi... Importa neste momento situar a pesquisa e seus contornos, enquadrando-a no meu trajecto vivido na prisão enquanto investigadora, durante sete dias, concentrada na exploração das experiências de mulheres em contexto de reclusão, percebendo o lugar destas vivências no “resto das suas vidas”. Razões e sentidos da escolha do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo O Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo é uma prisão de mulheres, cuja lotação à altura era de 354 reclusas (26 das mesmas em regime aberto) distribuídas pelos quatro blocos divididos e interligados. A escolha deste estabelecimento deve-se fundamentalmente a três razões. A primeira é o meu enorme interesse pessoal e profissional pela educação e o sistema prisional feminino; a segunda razão prende-se com o facto de que este estabelecimento prisional ser de construção e funcionamento recente na área metropolitana do Porto, além de ter o estatuto de primeiro estabelecimento prisional a ser gerido privadamente, o que reporta a inúmeras questões com importância para os debates em torno das políticas prisionais, nomeadamente femininas; a terceira e última razão, relaciona-se com a escolha do local de investigação - ser uma cadeia que recolhe mulheres de vários pontos do País, sendo que devido ao tamanho das suas infra-estruturas e às parcerias existentes com várias instituições, pretende ser o novo modelo para a melhoria do sistema prisional feminino. Assim, a ausência de familiaridade com o contexto prisional foi no início um factor constrangedor, pois questionava-me se conseguiria alcançar a cooperação e colaboração das reclusas para a realização da minha pesquisa, bem como com o corpo de guardas na prossecução deste trabalho. Receio que foi ultrapassado quando conheci o local e se deu início à pesquisa e à interacção no terreno. Consciente de que o curto tempo que se passaria em investigação poderia ser um ponto negativo acerca da “validade” do que iria ser investigado, tentei criar estratégias de trabalho, que tiveram o apoio e estímulo da Directora Adjunta, no delinear em conjunto comigo de um plano de trabalho abrangente e elucidativo.


A prisão como uma instituição total tem sido caracterizada por uma lógica funcional, aliás a questão central sobre a qual se debruçam a maioria das investigações, possuindo um ritmo e uma cultura própria. Apesar da nossa distância face ao objecto prisão, ao invés interessa-nos as experiências das mulheres presas, todavia para esta incursão no terreno, considerou-se o espaço das Alas prisionais como um espaço privilegiado para a realização da observação, uma vez que revelava a permanente acção e interacção das mulheres, especificamente as relações entre pares. Como foi negociar a entrada e presença no EPESCB?: Viver «reclusa» 7 dias, das 7 às 7, da estranheza e instabilidade a ser elemento de “composição de si” A entrada no estabelecimento prisional realizou-se de forma cautelosa, consciente dos constrangimentos associados ao papel de investigadora e de que se trata de um contexto onde a liberdade é, por inerência «condicionada» e onde, por isso, as relações «transparentes» que se poderiam desenvolver com as reclusas ficam muito questionadas. Com efeito, ao optar por pesquisar o universo prisional, a principal atenção recai no facto de este ser um mundo «separado» do mundo, onde não se questionam regras, práticas ou políticas prisionais, de que é revelador o cuidado de colocar as prisões «fora» das cidades e longe dos nossos olhares. Assim, genericamente, o que caracteriza estes contextos é a imposição de separações, regras, disciplinas, vigilâncias e privações. Na verdade, é sentida uma forte ambiguidade de posições e sensações, quando se entra nestes contextos, nomeadamente relacionadas tanto com curiosidade como com a possibilidade real de exercer «transparência» nas interacções de pesquisa, vista desde o início como um ambiente de silêncio, de contrastes e de intimidações. Os primeiros passos foram de certo modo estranhamente entranhados1, o edifício se, por um lado, transmite uma sensação de protecção visto ser uma casa enorme com ar de habitação familiar onde os seus jardins verdes se fundem no local, «estrategicamente» tranquilo. “A minha

primeira

reacção foi

de

espanto.

O

Estabelecimento Prisional nada se parece com uma prisão como ideia pré concebida. Aliás, com a ideia visual que eu tinha de prisão. É um local bem estruturado, parecendo-se com uma casa exteriormente. Claro que a


existência do arame farpado torna o local diferente, mais prisão”. (Notas de terreno 02/07/07)

Por outro lado, o processo de entrada da prisão é constrangedor traduzido, não apenas na presença de arames e guardas prisionais estrategicamente posicionados à entrada da cadeia, como depois da entrada quando de imediato somos apanhadas e confrontadas com a revista minuciosa dos corpos e bens pessoais, sendo não raras e frequentes vezes retirados à entrada. Trilhar os caminhos da fragilidade No meu primeiro dia de contacto com uma prisão fiquei em frente ao portão cerca de cinco minutos absorvendo o espaço que até então não conhecia. Toquei à campainha e logo um guarda com um ar sério e sisudo me veio perguntar o que pretendia. A partir deste momento, o processo foi constrangedor, como se a minha intimidade fosse invadida. Foi-me pedido para tirar o cinto das calças e a minha bolsa foi examinada ao pormenor para posteriormente ficar na posse dos guardas, na portaria, até à altura da minha saída. Deste modo, comecei a criar um diário mental tentando captar todos os passos, momentos, e curiosidades da instituição. “Fui acompanhada por um dos guardas do portão exterior à porta do edifício principal da cadeia, o qual tentei “invadir” com perguntas, sobre as quais obtive apenas respostas monossilábicas. Neste momento entendi que não se sentia à vontade, ou não podia, lidar com perguntas de mais uma estranha, carregada de questões e curiosidades” (Notas de terreno, 02/07/ 07)

Entrei e, assim, permaneci na cadeia durante sete dias, entrando ainda antes das 7 da manhã e saindo depois das 19h00, altura em que as mulheres eram encerradas nas celas. No primeiro dia, cheguei à prisão pouco passava das seis e meia da manhã. No contacto inicial começo por aceder ao edifício principal onde se encontram os gabinetes dos funcionários administrativos, guardas, serviço educativo, médico e da directora e


directora adjunta, uma vez que os principais serviços se concentram neste bloco da prisão, assim como a escola e a biblioteca. Também, logo no primeiro dia, como cheguei cedo ainda, entro mesmo a tempo de ver a abertura das celas. Assim, acompanho as mulheres desde a saída das celas, na sua deslocação para a cabine das guardas, «para dar o número» que as identifica. Assisto, deste modo, às rotinas matinais das mulheres. Depois, mais uma vez, num curto espaço de tempo, as mulheres voltam a identificar-se pelo número uma segunda vez, requisito indispensável para poderem tomar o pequeno-almoço. Colocam-se em fila frente ao refeitório, onde aguardam a vez, procedimento que repetem à hora do almoço e, também, do jantar. Enquanto aguardam pela refeição conversam umas com as outras e, neste primeiro dia, o tema é a minha presença e algumas mantêm comigo uma conversa imediata e aberta, numa aparência que parece tomada e sentida como normal. Estas primeiras recordações de observar e abordar as mulheres reclusas foram vividas com muita ansiedade, experimentando também sensações pouco positivas, sobretudo porque sou arrebatada por uma sensação de que estava à prova a minha verdadeira intenção. Diariamente deambulei pela prisão, na minha procura das realidades e da cultura prisional feminina. Estas primeiras deambulações deram-me os primeiros elementos sobre os percursos, rotinas e na relação das mulheres reclusas com o corpo e com as disciplinas prisionais. “Dirigi-me ao gabinete da sub-directora que era a pessoa que esperava por mim para podermos desta forma conversar sobre a minha investigação.“Iniciei a minha investigação no Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo. Fui recebida pela Directora Adjunta, que de imediato me explicou o funcionamento geral da instituição”. (Notas de terreno 03/07/07)

Apesar dos caminhos abertos institucionalmente, este primeiro dia de contacto foi o mais complicado. Trilhava os caminhos da fragilidade na tentativa de aceder ao objecto. Nesta altura os olhares procuravam-me seguindo os meus passos e começaram as verdadeiras questões: quem eu era, que fazia ali, se gostaria de trabalhar ali.


Depois de ter explicado que a minha pesquisa era de carácter académico, a preocupação e desconfiança foram desaparecendo, dando lugar a uma interacção com os sujeitos que me veio a surpreender. Imaginava e supunha, por vezes, a prisão como um muro de desconfiança e de silêncio em crescimento. Esperava encontrar grandes dificuldades de aproximação. “A estranheza também é sentida face à minha presença pelas reclusas que entretanto passam nesta parte da cadeia. Muitas delas questionam-me se sou educadora.” (Notas de terreno 03/07/07)

Todavia, em vez do silêncio aterrador encontrei, também, no que toca às mulheres, uma rápida maneira de me confrontar com desabafos, queixas e memórias, o que me fez sentir e partilhar o que refere Ivone Cunha, “tratava-se certamente de um teste, mas também, para muitas reclusas, de uma maneira de iniciar ou de assentir no contacto comigo, funcionando como pretexto quer para uma aproximação instigada pela curiosidade, quer para assinalar abertura às minhas tentativas de diálogo”. (1994:4)

À medida que os dias foram passando e a minha presença era sentida como normal e as mulheres reclusas mostravam-se mais disponíveis começava também a perceber melhor as suas rotinas e vidas prisionais. Consequentemente as perguntas iam-se tornando mais concretas, bem como as suas queixas e desabafos. Na verdade, também sentia que era vista pelas mulheres como uma possibilidade de fuga ao quotidiano e à rotina institucional, uma espécie de elemento estranho que as poderia ligar ao mundo exterior, o que Cunha caracterizou como a “sua tentativa de recompor uma identidade positiva e de recapturar a pertença a uma ordem social «legítima» em que se reviam”. (1994: 5)

Entrada na prisão e na vida prisional: isolamento, medo…. Todas as mulheres entrevistadas no percurso do nosso estudo falam do primeiro impacto e do choque vivido à entrada na prisão e da sua adaptação a esta nova vida


prisional. Contam-nos, pois, vários e modos singulares de adaptação, assim como as estratégias diversificadas encontradas e possíveis para poderem enfrentar e viver com esta realidade. Assim, o impacto e a estranheza inicial à instituição prisão e suas normas são vividos de vários modos. Por vezes, o começo deste novo percurso pode trazer as marcas de isolamento e medo ou constituir um desafio com algum potencial para pensar e enfrentar a mudança de vida. Na maior parte dos casos, recordam com veemência a experiência, pesadamente negativa, dos amargos primeiros dias, como contam e se torna evidente nos discursos destas três mulheres. “Nos primeiros dias não queria sair da minha cela. Tinha medo (...) É muito complicado estar numa cadeia… não posso fazer nada!” (Aldina) “Aqui dentro acho que é um dos sítios onde as pessoas se sentem

mais

sozinhas…

Sem

apoio!

Mais

desamparadas”. (Paula) “Só que as pessoas às vezes não entendem. O que está aqui dentro... é muito difícil. Muito difícil. Quando você entra para a cela (Chora convulsivamente)… Dá impressão que nunca vai acabar!” (Luísa)

A aceitação e adaptação à condição de presa não são imediatas: estados de espírito de boa disposição vs revolta Talvez decorrente da reincidência no crime e na condição de reclusa, o discurso da Alice sobre a condição de prisão parece reportar sobretudo a dimensões relacionadas com a aprendizagem da aceitação. Assim, na medida que se torna consciente e confiante de uma atitude “objectiva” e “menos dramática”, aprende e percepciona que isso lhe poderá trazer mais benefícios, tanto no que concerne à sua quotidianidade no interior da cadeia, como ao mesmo tempo pode proporcionar recursos para fortalecer o seu manancial útil quando, eventualmente, sair em liberdade. Assim, a Alice é a mulher que afirma e parece demonstrar uma relação de melhor aceitação da sua condição de reclusão, como fica evidenciado, especificamente, nas suas


falas, sentidos e comportamentos evidenciados de boa disposição e de cuidado de si, expressos nos seguintes termos. “Ando sempre bem disposta porque isto é para mim... Ninguém vai cumprir a cadeia por mim! Porque é que vou andar por aí a chorar? Triste e desarranjada”. (Alice)

Efectivamente, a Alice parece ter conseguido um estado de reconhecimento do crime, a par duma aceitação de si, que lhe conferem um estado de tranquilidade perante a sua própria reclusão. Talvez esta “fácil” aceitação funcione como estratégia de autogoverno do self. Talvez, também, sejam o resultado duma situação de reincidência, idade, percurso e experiência de vida, ou de todos simultânea e dinamicamente. “Sou muito tranquila, tudo muito tranquilo, muito bem disposta... Adianta estar a lamentar-me? Se errei, meti-me no erro segunda vez, fui estúpida. Não me adianta andar para aí triste e a dizer assim «estou cheia disto». Quando for embora vou e vou na boa”. (Alice)

Diferentemente da Alice que, como vimos, consecutivamente reforça os estados de espírito “positivos” experienciados na cadeia, outras possibilidades e experiências de “aceitação” emergem. Por exemplo, esta entrevistada, contrapõe o seu olhar tranquilo com a revolta, como sendo uma outra possibilidade, afinal, o sentimento mais comum por parte das outras mulheres reclusas, na sua óptica, “Há quem diga que se sente revoltada… Há quem diga que sai revoltada”. (Alice)

Em etapas distintas da vida em reclusão, os comportamentos das mulheres podem tornar-se relativamente adaptados à vida prisional. Ou seja, às mudanças abruptas, inicialmente vividas e consideradas como muito negativas, podem surgir agora como uma acomodação ao tempo que passam na prisão, o que pode ser factor da ajuda para ultrapassar o tempo de pena. “Apesar de tudo isto é uma cadeia de está-se bem!” (Alice)

As sensações iniciais são contornadas pelas rotinas e percursos institucionais, moldando as mulheres numa tentativa de concretizar a punição e o reencaminhamento


para as normas da cadeia. A Paula mostra-se desadaptada e com um sentimento de perda presente no seu discurso mas consciente de que conformando-se ao seu estado de reclusa, o tempo passará de um modo mais fácil e menos doloroso. “Mudaram-me para a Ala 2… Foi aquele sentimento de perda… conquistar novas amizades… Agora vão agarrar todas as oportunidades! Foi uma aposta que tiveram em mim “. (Paula)

Conhecer as estratificação das reclusas em Alas e o interior de uma cela Durante este dia em que ia ver e permanecer na Ala 2, uma das guardas «oferece-se» (destacada) para me acompanhar. “Iniciei o meu dia na prisão às 7 horas da manhã. O chefe dos guardas estava à minha espera e levou-me de imediato à Ala 2 para me acompanhar no início do dia.” (Notas de terreno 03/07/07)

Para observar e acompanhar os quotidianos de prisão leva-me a conhecer uma das celas para que possa ter uma noção do espaço destinado a cada uma das mulheres que ali cumprem pena e perceber melhor as suas acomodações. “Vi o interior de uma cela: cada uma tem uma cama, casa de banho privada, suporte para televisão, secretária, armário. Fui ver a cela de uma das reclusas da ala 2. Não é grande, nem pequena... tem uma janela gradeada (branca), uma cama de ferro e uma secretaria. Todas elas têm wc composto por sanita, lavatório e polivan.” (Notas de terreno 02/07/07)

No primeiro dia pude, assim, percorrer toda a cadeia, desde as quatro alas aos serviços administrativos e educativos, bem como a creche, copa e despensa (onde as reclusas compram os seus produtos), biblioteca e gabinetes dos guardas. Imediatamente no contacto com as reclusas consegui percepcionar “o respeito”, obediências, regras e normatividades, visíveis nas rotinas diárias, comportamentos e falas com as guardas que sempre as vigiam e acompanham.


“Papel das guardas: Relação com as reclusas decorre sem problemas:

cumplicidade

positiva.

Sempre

que

necessitam de algo ou deslocar-se a outro local da prisão, dirigem-se ao gabinete das guardas, dão número e todos os passos são registados”. (Notas de terreno 03/07/07)

Começar a entrar na rotina A partir do segundo dia, eu própria entrei na rotina intra e entre muros, seguindo já as rotinas e os hábitos que, apenas variam quando existe uma actividade vinda, pontualmente, do exterior ou de algo dinamizado por reclusas decorrente das aulas, no interior da cadeia. Nos restantes momentos assiste-se a um processo de (sobre)vivência natural, onde a vida destas mulheres decorre entre o acordar, fazer as refeições, identificar-se, participar nas oficinas, receber visitas, e conversar sobre vidas que passaram e ansiedades dos momentos que ainda vão viver. “Cada ala tem o seu horário (rotina) desde o dia para a lavandaria e para a cabeleireira não coincidindo com as outras alas. Logo de manhã a enfermeira deu a medicação às reclusas e depois do almoço repetiu-se o processo.” (Notas de terreno 04/07/07)

Deste modo, acompanhando e percebendo os comportamentos, rotinas, quotidianos e vivências prisionais, iniciei as conversas mais organizadas com algumas destas mulheres, com o objectivo de construir narrativas biográficas, sendo essa a principal finalidade do trabalho a que me propus. Estar e conversar com 5 mulheres na cadeia Assim, e a partir do dia dois, pude começar a conversar de modo mais estruturado com algumas mulheres. Aliás, da conversa com a directa adjunta, esta já me tinha sugerido nomes e trajectos possíveis. Todavia, este processo de estar e interagir na prisão fez-me imediatamente pensar conversar com uma jovem que desde o primeiro momento e estada na prisão me prendeu a atenção porque andava constantemente a deambular pelos corredores. Não me foi criado nenhum entrave na escolha das pessoas


a entrevistar, o que facilitou e tornou os encontros relativamente mais livres e enriquecedores. Apesar da população prisional, em número elevado, ser a mesma e permanecer por largos períodos (excepto as que aguardam julgamento), torna consideravelmente acessível o processo de recolha de material para as pesquisas. Assim, como não conhecia as mulheres com quem construí os encontros biográficos e narrativos, numa primeira fase limitei-me à observação dos movimentos, passos e quotidianos das mulheres em reclusão. Tentei perceber os tipos de crime que cometeram, os tipos de penas que cumpriam e os principais comportamentos adoptados no dia-a-dia da prisão. “Recordo uma reclusa que deambulou toda a manhã pela cadeia com uma carteira a tira colo, com um penteado saído do cabeleireiro, com um conjunto de saia e camisa debaixo da bata, com o rosto pintado e um olhar distante” (Notas de terreno 06/07/07)

As cinco mulheres com quem conversei, particularmente com a finalidade de fazer as narrativas, tinham idades compreendidas entre os 19 e 53 anos e eram todas reclusas condenadas. Cumpriam penas de prisão entre os dois e os seis anos. Eram mulheres que “habitavam” diferentes alas. Na sua selecção tive em atenção os seus contextos de vida e de encarceramento. Falei com uma mulher que tinha uma filha consigo na prisão o que dificultou/potenciou a nossa conversa, no sentido de perceber melhor os sentidos e as experiências vividas pelas mulheres/mães com filhos na prisão. O que mais se destaca na constituição deste grupo de mulheres é o facto de partilharem a instituição, cujas experiências e reacções são sobretudo influenciadas pelas determinações e processos quotidianos, inerentes a este contexto. Deste modo, as dinâmicas prisionais rotineiras, revelam um padrão de acontecimentos reconhecível através não só das rotinas que obrigatoriamente as reclusas têm que cumprir, mas também das suas posturas, no modo como gesticulam, como se sentam e como olham em seu redor. Comecei por me encontrar com a Alice, uma mulher da Ala 2, que durante o nosso encontro falou de grande parte da sua vida, mostrando-se adaptada à situação prisional, não revelando grandes mágoas, lamentos ou ansiedades, vivendo a rotina diária a aguardar a liberdade.


“Realização da primeira entrevista com a Alice. Durante o dia de hoje andei livremente pela prisão, de ala em ala para entrevistar as reclusas. Aproveitei também e falei com as guardas. Dia proveitoso. A realidade de vida destas mulheres é bem diferente daquela que eu pensava”. (Notas de terreno 06/07/07)

As conversas duram mais ou menos o mesmo período de tempo, cerca de duas horas, tendo sido realizadas individualmente nos gabinetes de cada ala onde estavam as mulheres. A Alice, no final destas horas abandona a sala com um sorriso no rosto, tal e qual como entrou, despedindo-se com a frase “seja feliz”. Esta mulher, de aparência calma, manteve sempre o mesmo discurso sereno, divagando sobre o passado e prevendo o que a espera depois da reclusão. O sorriso esteve sempre presente. “Sou muito tranquila, tudo muito tranquilo, muito bem disposta... Adianta estar a lamentar-me? Se errei, meti-me no erro segunda vez, fui estúpida”.(Alice)

Da Ala 2 rumei à Ala 1, a ala das mães, para assim entrevistar a Aldina e a Paula. Pelo caminho, tentei preparar-me para entrar em duas novas realidades, depois de conhecer, pelo menos em parte, a Alice. “Enquanto passava de uma ala à outra senti que as dores são reais, as recordações...tudo está muito à flor da pele. As mulheres que estão nos corredores têm urgência em falar” (Notas de terreno 06/07/07)

Na Ala das mães, falei primeiro com a Aldina que manteve consigo a filha de três meses durante toda a conversa. Ao contrário da Alice, que parece viver conformada e adaptada à situação de encarceramento, a Aldina vive a contar todos os minutos que faltam para a sua saída em liberdade. É uma mulher ressentida e ansiosa pela liberdade. De olhar triste e cabisbaixo, segura na filha como se a qualquer momento lhe fosse ser retirada. Deste modo, chega a altura de conversar com a Paula, a jovem que anda a caminhar pela prisão e que me cativou desde o primeiro dia que entrei no estabelecimento


prisional. A Paula é uma mulher com rosto de menina que vive em desespero dentro de um espaço que lhe é completamente estranho. “Entrevistei a Paula hoje. Uma jovem que teve um desenrolar de vida difícil, por caminhos errados. Tem força, mas ao mesmo tempo parece-me muito perdida. Com ela, senti que realmente a reinserção funciona com bastantes deficiências e lentidão...” (Notas de terreno 06/07/07)

Conversamos e rimos sobre as suas histórias passadas, mas quando direcciona o discurso para o que a levou à prisão, chora e culpa-se por não ter conseguido deixar a droga, “o vício” que a prende em todos os sentidos. Posteriormente, voltei à Ala 2 para, assim, observar o encerramento das celas. As mulheres encontram-se sentadas nos corredores ouvindo música e dançando enquanto esperam pelo som vindo dos altifalantes para entrarem nas celas e esperarem pelo dia seguinte, “Luísa fala do momento em que fecham as celas e o que isso significa para ela: Quando fecham as celas custa muito, porque é a altura em que a solidão bate” (Notas de terreno 07/07/07)

No entrementes: as rotinas, as aberturas e os fechamentos Ouvindo as vozes destas mulheres, elas revelam como esta é uma das rotinas mais difíceis, porque são fechadas, confrontando-se com as suas quatro paredes, dividindo o tempo entre a música e a televisão, até chegar o sono e, assim, acordarem para mais um dia. No segundo dia regressei à prisão exactamente à mesma hora e depois de assistir novamente à rotina da abertura das celas e ao pequeno-almoço, voltei às conversas nas várias alas. Encontrei-me com a Fátima para uma curta conversa que ela direccionou para a saudade que sente do filho e para o tráfico que deu cabo da sua vida. Mais tarde procurei pela Luísa que andava atarefada nas lides da copa, cumprindo a tarefa de ajuda na distribuição do jantar. Percepcionei de imediato a manifestação de um interesse e curiosidade perante a minha abordagem. Então, desde logo as palavras fluíam contando ao pormenor o seu percurso, desde quando se inicia no crime, até à altura em que a apanharam no aeroporto com a mala cheia de droga.


Terminadas as entrevistas/conversas continuo na observação de movimentos e trajectos das mulheres reclusas bem como da relação existente entre as guardas. “Sinto uma relação de respeito e de cumplicidade entre as guardas e as mulheres. Não levantam o olhar quando se aproximam das guardas… a hierarquia está muito presente” (Notas de terreno 04/07/07)

As visitas: um retrato do exterior Também tive a oportunidade de estar presente durante o período das visitas que se realizaram num horário definido e fixo, encontrando-se divididas em duas partes. Ou seja, à quarta-feira, o dia de visitas é concedido às reclusas que se encontram em preventiva e que aguardam julgamento. Durante o sábado e o domingo, as reclusas já condenadas, recebem as suas visitas de manhã e de tarde durante duas horas. “Encontro-me sentada no átrio, os familiares das reclusas em preventiva começam a chegar. Trazem sacos e muita pressa. Entram crianças também a correr para a porta que dá acesso à saída das reclusas. Os familiares entram na prisão, depois de serem revistadas e todos os seus bens analisados. Existem coisas que passam na altura, outras que ficam para serem analisadas pelo chefe. Entretanto, as reclusas são chamadas para o parlatório (local onde estão dispostas mesas e cadeiras) para assim verem os seus familiares. Algumas reclusas já lá encontram as suas famílias, outras têm de esperar que elas passem na portaria.” (Notas de terreno 04/07/07)

O processo que antecede as visitas é composto por rigorosas e necessárias normas. Antes de cada visita (com excepção dos familiares que já possuem o cartão e cuja veracidade já foi averiguada), as reclusas têm que preencher um formulário e remeter este papel, devidamente preenchido, à directora do estabelecimento. Posteriormente, o serviço educativo confirma os dados da pessoa que quer visitar a reclusa e só depois de todo este processo, a autorização para a visita é decidida. O serviço educativo tem um papel fundamental na promoção da reinserção e controlo social, onde se tentam afastar as reclusas das possíveis visitas que as colocaram na situação de prisão, com o objectivo de preservar a segurança das mulheres.


Embora este processo seja minucioso e rigoroso, a justificação obtém-se na manutenção da segurança da prisão. A verdade é que, mais uma vez, se reflecte o poder da hierarquia prisional. Algumas reclusas tentam contornar as regras, requerem autorização para “primos”, quando se referem a casos esporádicos que conhecem através de correspondência ou nas saídas precárias. Pude perceber como é grande a privação e avassalador o seu sentimento de solidão no caso das reclusas estrangeiras, cujo sofrimento emerge de forma ainda mais clara. Na sua grande maioria, foram condenadas por tráfico, ou seja, foram condenadas a penas de longa duração e, dificilmente conseguem liberdade condicional a meio da pena, apesar de existir mais flexibilidade por parte do Conselho e do Juiz que o constitui. Nesta situação, o risco é maior, pois existe uma impossibilidade territorial de acompanhar estas mulheres em liberdade condicional, implicando a sua saída a mudança para o seu país e a consequente extradição. As reclusas estrangeiras não podem também usufruir das saídas precárias, visto que Portugal não é o seu País de residência e a sua saída implicava outros métodos que não são nem económica nem legalmente viáveis. Além da ausência de afecto e atenção dos familiares as reclusas que não recebem visitas, também ficam privadas de bens materiais que as famílias trazem. Estas trazem alimentos, papel, cobertores, rádios, cds e livros, que de outra forma teriam de ser comprados dentro do estabelecimento prisional a preços muito elevados. Quando os familiares destas mulheres entram na cadeia inicia-se também o processo automatizado, ou seja, dirigem-se para o parlatório e sentam-se enquanto aguardam pela chegada das reclusas parecendo uma actividade rotineira nas suas vidas que dificilmente estranham. Mesas espalhadas numa grande sala, um parlatório por cada Ala com uma entrada para as reclusas e uma outra para os familiares. À porta de cada uma destas entradas encontra-se um/a guarda que fica de vigia até ao fim da visita, tentando não deixar escapar nenhum detalhe. “O Guarda que estava ao serviço de vigia ao parlatório, confidenciou-me

algumas

situações

entre

guardas,

guardas – reclusas e situações institucionais. Pareceu-me um homem amargo.” (Notas de terreno 04/07/07)

A partir das duas da tarde começam a entrar as crianças carregadas com sacos, arrastando-os pelos corredores. Pais, mães, irmãos, irmãs, chegam e sentam-se aguardando que a porta das reclusas se abra. Estas saem e uma das senhoras que


aguardava numa das mesas, não se contém e chora compulsivamente, “é muito difícil ter aqui uma filha”. “Uma senhora entrou a chorar, segundos depois aproximou-se do local onde eu estava com o guarda de vigia e disse que era a primeira vez que lá estava e mesmo duas horas depois (fim da visita) saiu a chorar.” (Notas de terreno 04/07/07)

Abraços, choros e gargalhadas são o que mais se vê durante estas duas horas. Os guardas assistem a tudo sem retirar o olhar das mesas. No final da visita como medida de segurança, os homens são os primeiros a sair. As crianças e as mulheres aguardam até que a contagem das reclusas seja efectuada e depois saem as reclusas para assim saírem o resto das familiares. É mais um processo doloroso e individualizante, justificado como forma de preservar a segurança dentro e fora da prisão. Depois da observação desta rotina fica-se com a sensação de viver um dia de emoções fortes, tal é a intensidade e variedade das que presenciamos. Um misto de emoções: a alegria de ver os familiares contrasta com a tristeza de verem sair os filhos, os companheiros, as irmãs, as mães. “No final, saem primeiro os homens, depois as reclusas são contadas e identificadas e apenas depois deste processo saem as mulheres visitantes.” (Notas de terreno 04/07/07)

Assim termina o dia, as mulheres saem do parlatório perto das seis da tarde, hora em que se dirigem para o refeitório. É hora do jantar. Novamente assisto ao processo rotineiro das mulheres a colocarem-se em fila, identificando-se pelo número e seguem para recolher o jantar. Quando se sentam não podem deixar lugares vagos, o que resulta em estratégias na fila, pois existem mulheres que se querem sentar perto das pessoas com quem têm melhor relação. Mal são chamadas pelo altifalante para se dirigirem para o refeitório, notam-se olhares a indicar lugares e pequenos grupos formados enquanto esperam. “Com as indicações da guarda Paula, reparei na cumplicidade de duas mulheres quando se colocaram na fila para o refeitório. Sentaram-se estrategicamente – A


guarda prisional falou sobre as rotinas destas duas reclusas” (Notas de terreno 06/07/07)

Terminado o jantar as mulheres reclusas espalham-se pelo átrio da ala enquanto aguardam as ordens para entrarem nas celas. As gargalhadas são notórias entre duas das mulheres que, diariamente, encontrei a rir e bem-dispostas. “Uma mulher despertou-me especialmente a atenção. Tem um sentido de humor rico e andou toda a manhã de um lado para o outro a sorrir e a cantar. A guarda gosta da maneira dela, senti-o na maneira como lhe fala.” (Notas de terreno 04/07/07)

Vivências, sentimentos e rotinas de prisão Ao longo deste trabalho tentamos debater e compreender os discursos e as vozes de mulheres que se deram a conhecer, partilhando a sua experiência vivida e reflectida em contexto prisional. O foco de interpretação incidiu sobre vivências, dilemas, medos, conflitos, silêncios forçados e apreendidos e centrando-se em torno de temas e questões que me parecem mais salientes nas falas que com elas mantive. • Quais são as facetas comuns e específicas que se podem encontrar nas prisões femininas em termos de organização das rotinas e quotidianos e dos processos relacionados com a ressocialização e re/educação? • Como é o ethos duma prisão feminina e, especificamente, desta? • Como são os sentidos e as materialidades das mulheres na vida prisional? • Que formas e tipos de comunalidade e variabilidade de género se encontram nas experiências das mulheres reclusas? É no interior destes questionamentos que situamos o trabalho realizado, fazendo especificamente uma incidência nos aspectos acima enunciados. Tudo será enquadrado sob uma visão que busca compreender os processos e mecanismos, explícitos e implícitos, do modelo de trabalho de intervenção punitivo, re/educativo e de re/integração das mulheres, tanto em contexto de reclusão, como em termos da passagem e inserção para a vida exterior.


Assim, estas mulheres apresentavam como características comuns além da sua condição de género, uma situação de encarceramento, embora diferentes no que diz respeito a uma variedade de experiências relacionadas com a contextualização prisional (o crime, a idade, a condição face à maternidade…). Emergiu, assim, a preocupação central em revelar e trazer à luz as realidades vividas e as dinâmicas prisionais, nas suas relações com as experiências de vida tidas anteriormente, bem como com as articulações que fazem desse passado na vida presente e, ainda, das eventuais mudanças, transformações e desejos que esperam alcançar nas suas vidas. Trata-se, como se disse, das vozes e sentires relatadas por cinco mulheres que connosco acederam a diálogos e, a partir da re/escuta e eco das suas palavras, produzir

conhecimento,

focalizando

nos

possíveis

significados

genderizados

especificamente em ambiente prisional. Como está o género presente nos percursos e na punição das mulheres? Um dos objectivos traçados foi, através das vozes e diálogos das mulheres consideradas transgressoras, conhecer as particularidades das experiências vividas na instituição prisional, num espaço intra-muros onde o fosso das realidades entre os sistemas de valores sociais externos e internos à instituição são intencionais e coercivamente confrontadas, tendo em consideração preocupações com género e cidadania (s). Assiste-se à existência de um espaço social prisional que, apesar das novas concepções políticas e culturais, continua a ter como base a disciplina e as relações de poder e coersão, de modo a coagir o crime de transgressão e de privar a comunidade dos efeitos negativos destes comportamentos criminosos (Cunha,1996). Todavia, este espaço é hoje mais do que no passado visto como um lugar de reeducação para experiências de vida fora do crime, pelo que nele se organizam espaços e ocorrem um conjunto de actividades, que permitam não só a ocupação do tempo como a formação de competências vocacionais e de autonomia futura das pessoas reclusas, onde o género pode estar a ser mantido não questionado ou até exarcerbado. Nos percursos destas mulheres, sejam eles de crime, punição, ou de tratamento e educação parecem evidentes os modos como estão atravessados pelas relações sociais de género presentes na sociedade e nas suas organizações e contextos. Ou seja, nos papéis, lugares e estatutos que desempenham nas suas famílias, como mulheres


cuidadoras, servidoras e protectoras; nos modos como são tomadas no mundo dos pares e do crime – exploradas, traficadas, enganadas ou vistas como intermediárias fáceis na medida em que são seres de pouco poder e talvez socialmente melhor posicionadas para o negócio (Matos, 2002). Na sociedade e na prisão são tomadas como mulheres transgressoras da norma social e, por isso, localizadas e concebidas, tendo em vista os lugares e estatutos sociais que ocupam e os processos de reeducação considerados adequados de modo a virem a “ocupar o seu lugar” como boas mulheres (Cunha, 2007). Os cuidados e preocupações com a (re)inserção e com a (re)educação, estão modelados por alguma instrumentalização e modelação das reclusas como mulheres em preparação para uma sociedade onde a sua participação enquanto cidadãs está relacionada com posições sociais (classe, género, etnia, local, idade...) Uma outra referência muito marcada nos seus discursos é o desejo da prisão as ajudar a distanciar-se dos circuitos da droga nas suas vidas exteriores, vendo a prisão como uma oportunidade nesse sentido, tornando-se assim “umas mulheres”. As palavras das nossas mulheres evidenciam a realidade prisional, mostrando o papel do género e da disciplina numa instituição punitiva no moldar de comportamentos internos e prisionais e, também, externos na sociedade mais ampla. O que levou estas mulheres à situação de encarceramento é «minimizado» nos seus discursos, sendo encarado como um percurso e uma forma de sobrevivência numa sociedade em que não se sentem protegidas e que as torna combatentes numa batalha pelas condições de vida. Talvez, apareça apenas como um caminho e uma solução para o qual foram empurradas. Deste modo, este estudo apesar de não pretender focar as prisões, procurou explorar e (procurar) perceber como se constroem diariamente estas mulheres enquanto reclusas e como vivem os diferentes lugares prisionais, o que não deixa de nos fornecer pistas importantes, sobre os modos como o cárcere se organiza, pensa e perspectiva para as mulheres reclusas, onde as ideias de género se encontram aí atravessadas e naturalizadas, ainda que não ditas.

Como são as suas experiências de prisão? As experiências e sentidos das mulheres que conhecemos, remete-nos para uma realidade bem diferente daquela que consideramos normal e que até então nos era mais


familiar. Na prisão sente-se a disciplina e a hierarquia em cada passo que se dá e nos rostos cabisbaixos das mulheres que saem das celas quando ouvem o altifalante. As famílias, os companheiros e a droga foram os termos mais enunciados nos diálogos mantidos com as mulheres reclusas. Marcadas por uma vida nos retalhos da droga encaram a prisão como a última hipótese de se redimirem, para assim poderem ser integradas na sociedade e numa vida longe do crime e da cadeia. Na verdade, parece não se sentirem com forças reais (as fantasias persistem...) para enfrentarem sozinhas a dureza das suas realidades de vida. Sentimos que a prisão é vista também como sendo um lugar estratégico, para uma vida de liberdade. Apesar de alguma homogeneidade de percursos no crime estas cinco mulheres vivem a prisão de modos diversos, o que se inscreve nos seus trajectos e na forma como experienciam a prisão: umas revelam sentimentos e estados de depressão e de tristeza, a par de outras que têm discursos de acomodação e aceitação da condição e vida prisional. As vivências da cadeia estão marcadas pelas normas e rotinas institucionais (Leal, 2007). O crime pelo qual foram julgadas permanece nos seus trajectos e memórias, exercendo uma influência nas suas vidas e nas relações que mantém dentro da prisão. Algumas destas mulheres parecem sentir-se mais protegidas na prisão, tão desprotegidas têm sido as suas vidas, dadas as «durezas» e dificuldades que carregam sobre si. Desta vez já não se trata de sobrevivências camufladas pela droga, mas sim das responsabilidades de reintegração e ressocialização perto das famílias e na procura de novos empregos. Quem são estas mulheres que se tornaram criminosas e a que estruturas obedecem as suas vidas? Estas mulheres têm em comum, além da sua condição de género, uma situação de encarceramento, apresentando todavia, uma variedade de experiências relacionadas com a contextualização e a especificidade do crime, a idade, a condição de maternidade, a condição social em toda a sua complexidade e multiplicidade, o ajustamento às condições de reclusão, entre outros. Na realidade, vivem atrás de muros silenciadores, mas não estão completamente silenciadas, estando presas mas não completamente aprisionadas, sendo capazes de resistir às disciplinas próprias deste modelo de instituição total, cujos contornos também evidenciam sentidos e traços patriarcais. Apesar das marcas e rotinas de re/educação dos quotidianos da reclusão, estas mulheres


também tentam e parecem encontrar espaço para se re/educarem e transformarem, (sub)objectivando assim a sua integração/(des)adaptação na busca de um novo sentido singular para as suas vidas. Mesmo sendo apenas 5 as biografadas, os seus percursos e vidas revelam uma diversidade de proveniências locais no país, assim como retratam também o fenómeno da emigração articulado com circuitos do tráfico internacional da droga, a par do retalho local junto do consumidor. Lidaram com situações de droga durante todas as suas vidas, umas pelo consumo, pelo tráfico ou como forma comercial fácil de vida, como qualquer outra. São mulheres com pouca escolarização e com a clara noção de que se tivessem estudado mais poderiam ter seguido outros caminhos. Conversamos com mulheres com saudades e ligações (ou desejos) fortes às suas famílias, vistos nas palavras positivas e relembradas constantemente ou nos sentimentos relatados pela ausência, particularmente quando falam das filhas, das mães que apesar das mágoas e marcas em relação a ambos os lados, continuam a ser o suporte real e emocional cuja força ou atribuição imaginária ajuda a suportar melhor a vida na prisão. Os percursos de se tornarem criminosas são diversos e estão relacionados com os modos como são vividas as condições sociais relacionadas como a exclusão/inclusão social, tanto no percurso que conduziu ao crime como no modo como é vivida a condição de reclusão, onde em ambas as circunstâncias o género e a cidadania marcam lugar de relevo, muitas vezes no cruzamento com outras diferenças. Ouvimos e interpretamos os discursos de cinco mulheres que apesar das condicionantes de prisão, anteriormente referidas, se tornaram parte da cadeia e das suas rotinas e vivências diárias. Permanece no final deste trabalho, a vontade de continuar a procurar mais sobre vidas prisionais e observar as experiências vividas em encarceramento. Ficam olhares, vozes, sentidos, pensamentos, trajectos, experiências, práticas e sentimentos das cinco mulheres que quiseram mostrar um pouco da sua realidade prisional e partilhar as suas vidas, recordações e desejos.

Considerações Finais Destacamos a preocupação em perceber a partir da interpretação de rotinas e de quotidianos prisionais, os processos vividos pelas mulheres em sistema de reclusão, bem como as realidades sentidas e experienciadas durante o tempo de cumprimento de


pena (ou de preventiva), decorrente dos percursos e processos que conduziram à criminalização. Pretendeu-se, assim, contribuir/investigar para desmistificar o crime no feminino (e intervir) num campo onde poucos/as investigadores/as e técnicos/as, têm pesquisado, cujo significado representa desvalorização social, e a que o género não parece ser estranho. Por isso, tendo presente esse desejo (exploratório), urgem «respostas» à pergunta central na altura da elaboração da dissertação, a par com um conjunto de outras perguntas que dão corpo e a especificam, sobre as quais, podemos pensar algumas ideias conclusivas: Que caminhos e percursos tornaram estas mulheres criminosas? Como é que as políticas criminais e punitivas estão a enfrentar as mudanças sociais actuais? Que preocupação e práticas moldam as cadeias femininas? Como é que o crime e o género se relacionam? Poderemos e como falar de cidadania para entender as vidas prisionais? Como foi conversar com estas mulheres? Como são os seus percursos e quem são estas mulheres? Como foi conversar com mulheres em contexto de reclusão? Tendo a consciência da natureza de iniciação deste trabalho, retratou uma primeira exploração e confronto com uma realidade complexa. Também sabemos que as cinco vidas que escutamos e com quem mantivemos “conversas” representam um pequeno universo do mundo prisional feminino. Na verdade é aquele universo que abriu as portas das suas celas interiores para falar ora sobre o que lhes é questionado, mas, também, sobre o que gostariam que lhes tivesse sido perguntado. Durante as conversas, falaram do crime descrevendo os passos dados quando se movimentavam nos meandros da droga e os motivos que as levaram a enveredar por tais caminhos. Foram discursos evidentemente marcados pelas práticas rotineiras e institucionais, uns mais pensados, outros mais instintivos e espontâneos, mostrando as relações existentes dentro da prisão e as estratégias de sobrevivência por que cada uma tem que saber optar. Ao conversarmos com as mulheres, cujo quotidiano é agora viverem e sentirem a prisão, em todas as suas rotinas, nuances como um local/espaço de vida, percebemos a dificuldade de falar, fazer falar e ser confrontada com as experiências e sentidos destas mulheres em privação de liberdade. Os processos de aproximação a esta realidade obrigam-nos a ver a prisão para além dos olhos externos que construímos, para nos abrirmos e nos deixarmos chocar e surpreender com a estranheza de modos de vida, organizados para a «habitação» de humanos - espaços de punição do crime, de ocupação


e de tratamento/educação para outras vidas fora (ou dentro) do crime. Aqui somos também confrontadas com as apropriações e negociações destes espaços por sujeitos concretos e suas pertenças (famílias, redes de amigos e comunidades). Na estranheza dos «olhos interiores» vimos mulheres reclusas privadas de liberdade e confrontamos contextos concretos, de experiência e de organização de sentido e interferência nas identidades e movimentos de pessoas oriundas de contextos e lugares sociais problemáticos – nos meandros do tráfico de droga – retalho e circuitos de comercialização. Das conversas fomos confrontadas com as perdas e a confusão, acomodação, os dilemas vividos mas também a vontade de um dia ser capaz de vencer. Tivemos a oportunidade de ver in locu (e não nos jornais, media, ou livros...) realidades da cultura prisional feminina... e experienciar como o desconhecido e estranho incomodam… assim como os quotidianos de reclusão expressam corpos, rotinas

e

disciplinas

concretas.

Essa

oportunidade

permite

perceber

contextualizadamente o lugar dos percursos de castigo e punição e tratamento no resto das vidas que se têm vindo a construir como criminosas. Os medos que sentia antes da entrada numa prisão foram-se dissipando enquanto conversava com estas mulheres e percebia que são tão reais e tão verdadeiras e sujeitos quanto qualquer pessoa que está na parte exterior daqueles muros. As prisões e todas as suas especificidades, particularmente as de mulheres, constituem um assunto que sempre me suscitou interesse e curiosidade. Apesar disso não deixei de me confrontar, na altura da observação no terreno, com uma mistura de sensações de medo do desconhecido e do real. Os diálogos transmitiram-me novas concepções sobre as experiências prisionais. As celas e as grades impuseram respeito e talvez um sentimento de compaixão, algo que aquelas mulheres rejeitavam por completo. Percebi que são mulheres fortes (na sua maioria), que lidam com as vivências prisionais da melhor forma que sabem… Parece que nenhum sentimento nem comportamento lhes é ensinado.

Notas Lembrando Fernando Pessoa “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, discurso proferido a um jornalista quando este o levou a provar a bebida coca-cola.


Nota sobre a Autora Marcela Dias é doutoranda de Sociologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – ISCTE (marcela_dias@yahoo.com)

Referências Bibliográficas Cunha, Manuela (1994), Malhas que a reclusão tece. Questões de identidade numa prisão feminina, Lisboa, Cadernos do Centro de Estudos Judiciários. Cunha, M. P. da (2007). A reclusão segundo o género: Os estudos prisionais, a reclusão de mulheres e a variação dos contextos da identidade. In AAVV. Educar o Outro: As Questões de Género, dos Direitos Humanos e da Educação nas Prisões Portuguesas. Coimbra: Publicações Humanas. Cunha, M. P. da (1996). O corpo recluído: controlo e resistência numa prisão feminina. In Miguel Vale de Almeida (ed.). Corpo presente: treze reflexões antropológicas sobre o corpo, pp. 72-86. Oeiras: Celta. Leal, M. P. J. (2007). Crime no feminino: Trajectórias delinquenciais de mulheres. Coimbra: Almedina. Matos, R. e Machado, C. (2002). Reclusão e laços sociais: discursos no feminino, Análise Social, vol. XLII (185), pp.1041-1054.


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