Ciclorama - Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral (v.5, 2017)

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ISSN 2596-2485

Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.5, 2017

Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.5, 2017

Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Comunicação

Rio de Janeiro 2017

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v.5, 2017 Editoria e revisão Carmem Gadelha Felipe Valentim Capa e diagramação Sarah Ferragoni [bolsista PROART/GARIN] Orientação: Andréia Resende Produção Érika Neves Corpo editorial (Professores da Direção Teatral) Adriana Schneider, Alessandra Vannucci, Andrea Stelzer, Carmem Gadelha, Daniel Marques, Eleonora Fabião, Gabriela Lírio, Jacyan Castilho, José Henrique Barbosa Moreira, Lauro Góes, Lívia Flores, Marilia Martins

Distribuição gratuita

C568 CICLORAMA - Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral. v.5, 2017 - . -- Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 2013 v. : il. Anual. Editora: Carmem Gadelha. ISSN 2596-2485 1. Artes cênicas - Periódicos. 2. Teatro - Produção e direção Periódicos. I. Gadelha, Carmem. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 792

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07 Editorial — ABERTURAS 13

Tchekhov e a escritura do silêncio Henrique S. Bueno

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Detritos humanos na experiência de um não-lugar Ian Calvet Marynower

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Arte e política em coletivos teatrais Taís Sobrinho Trindade

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Dramaturgia “drag” Gabriel Pardella

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Atravessando a rua da crise Homero Ferreira Kaneko

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A cena do espectador Camila Simonin

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Acessibilidade no palco e platéia – interação entre e para deficientes visuais com poéticas de encenação Silvia Galter

— PASSAGENS

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A criação de imagens na cena teatral contemporânea Juliana de Paulo

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A dança de João Cabral e a poesia de Deborah Colker: imagens do Cão sem plumas Felipe Valentim

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Aspectos do universo artaudiano e seu impacto no teatro Anna Duran

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O que é direção teatral - O olhar de Marcéu Pierrotti - O olhar de Fernanda Arrabal

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Editorial

A vida contemporânea traz consigo um intenso processo de refronteirização; centros e margens se deslocam, por um lado, enfraquecendo o Estado-Nação através da economia globalizada; por outro, recrudescendo, manu militari, as separações e exclusões. Em terceiras (melhor dizer múltiplas) margens, a produção simbólica e artística se vê provocada ao pronunciamento. Assim, é possível afirmar que o cruzamento arte/política se dá por uma via de “mão dupla”: encontramos o fortalecimento das relações de poder, provocadas por diferenciações sócio-econômico-culturais; além disso, os imaginários e a ressignificação de símbolos encontram constantes deslocamentos criativos. Não cabemos mais na modernidade. Nossa arte acompanha e cria novos modos de produzir afetos, ali mesmo onde os corpos se confundem com a pletora de imagens. Apresenta-se ao teatro um insistente problema: ter seus suportes de tempo e espaço sempre desafiados a novas configurações e conceituações. Uma coisa parece clara, nestes tempos de incerteza: a arte alarga, cada vez mais, os horizontes para as utopias que muitos crêem banidas da vida política e social. Estas premissas, melhor definíveis como indagações, têm alimentado os jovens artistas-pesquisadores, estudantes de Direção Teatral. O desejo de Ciclorama é acolher e partilhar perturbações, incitando à criação. O momento não é generoso, mas desafiador. Isto inclui a invenção de alternativas para enfrentar o desprestígio ao qual, em momentos de crise, são os artistas tratados cada vez mais como peças dispensáveis e de luxo. 7

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Convém trazer à baila a fala da brasileira e historiadora da arte Iclea Borsa Cattani que, no artigo “Cruzamentos e tensões”, publicado em 2006 (Interfaces Brasil/Canadá, v.6, no1, Universidade Federal de Pelotas), anuncia a constante busca artística por uma “ideia sem lugar”; uma utopia projetada no interior do próprio objeto artístico. Aí se dão novas cartografias, criam-se mundos, na apropriação do existente – para subvertê-lo, pervertê-lo, invertê-lo, revertê-lo. Aí se inserem novos sentidos e significados. As fronteiras porosas, feitas de transversalidades, recompõem lugares e apostam em não-lugares, num processo que se faz e refaz – infinitamente. Só para lembrar que a vida não se deixa aprisionar em finalidades. Neste número de Ciclorama, apresentamos um esboço das cartografias afetivas que perpassam a formação dos alunos-diretores. É possível perceber – em cada ponto, vírgula ou seleção vocabular – a preocupação e a arte de compor trajetórias, descobertas, migrações: “[...] signos da memória e dos afetos, das perdas e das novas conquistas [...]” – conforme diz Cattani. Ciclorama está em seu Ano V. Este Número 4 confirma e reafirma a vocação dos anteriores: abrir-se a diferenciadas propostas, tendo como eixo principal o registro dos trabalhos de Iniciação Científica, apresentados no Seminário de Pesquisa da Direção Teatral. Mas isto não se limita à divulgação, embora o faça. Temos percebido que seminário e revista promovem a formação estudantil, em muitos casos construindo lastros para desdobramentos acadêmicos, ao revelar caminhos. Disto beneficia-se o PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena – também sediado na ECO. Como de costume, organizamos os artigos em duas cenas: “Aberturas” apresenta a reunião das iniciações; “Passagens” reserva-se a contribuições não oriundas dos seminários. Tem-se acolhido trabalhos de pós-graduação de outras instituições e 8

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textos que se destacaram em explorações de sala de aula nos períodos regulares da Direção Teatral. Tchekhov e a escritura do silêncio inicia a secção “Aberturas”. Traz, em suas entrelinhas, as leituras insinuadas pelos hiatos tchekhovianos, através de personagens colocados “à margem do tempo presente por um apego ao passado ou receio do futuro”. Assim, Henrique Bueno aponta costuras de tempo na modernidade com leituras da atualidade, motivadoras do investimento no presente, na busca e criação de “novas utopias”. Em Detritos humanos na experiência de um não-lugar, Ian Calvet, baseado nos conceitos de “multidão” e “império”, tece uma análise sobre a questão dos refugiados na contemporaneidade. É de interesse do estudante investir em uma construção dramatúrgica colaborativa, a partir das migrações, êxodos, descobertas e trajetórias. Esta pesquisa cênica destina-se à Mostra de Teatro da UFRJ, a realizar-se no final de 2017. Os questionamentos políticos acentuam seus contornos na escrita de Taís Trindade. Com Arte e política em coletivos teatrais, ela analisa a interrelação entre os modos de produção dos coletivos teatrais do Rio de Janeiro e as ações oferecidas pelo Estado, no crítico momento sócio-político-cultural da atualidade. Homero Kaneko e Gabriel Pardella investem na produção de novas formas da cena contemporânea. O neogrotesco e a estética “drag” encontram na performance um modo de expressão que desperta olhares, críticas e modos de ser. Tanto Kaneko quanto Pardella destacam a rua como um espaço destinado à existência política. Pensando nas expressões que a arte pode assumir, Camila Simonin se pergunta, em A cena do espectador: “Como gerar um espaço possibilitador de encontros entre espetáculo-espectador?”. No trabalho, ela busca leituras sobre o intervalo existente entre quem faz e quem vê teatro, partindo do pressuposto de que reunir pessoas é um dos sentidos primordiais da cena. 9

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Finalmente, com uma pesquisa sobre acessibilidade e inclusão no teatro, Silvia Galter fecha a primeira seção. Seu trabalho investiga uma ação necessária e dedicada à pessoa com deficiência, no que se refere ao consumo de bens culturais, destacando-se a importância de tornar a experiência do espetáculo teatral acessível e inclusiva. Desta vez, os convidados a realizar “Passagens” são dois artigos de doutorandos. Juliana de Paulo, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Belas Artes da UFRJ, investiga a criação de imagens e o uso da tecnologia digital: suas interferências na estrutura cênica. Felipe Valentim (Programa de Pós-Graduação em Letras – UERJ), além de co-editor de Ciclorama, é aluno-formando de Direção Teatral; ele observa a dança da poesia cabralina no espetáculo de Deborah Colker, O cão sem plumas. A estudante de DT Anna Duran mostra trabalho apresentado à disciplina Poéticas do Espetáculo II (2016/2): uma reflexão sobre o projeto ético e estético de Artaud. A Professora Alessandra Vannucci perguntou a seus alunos de Direção IV “O que é a direção teatral”, com o intuito de fazer refletir sobre como a formação os têm provocado a pensar-se como diretores. Ciclorama festeja seus cinco anos de existência resistindo aos solapamentos do ensino e da pesquisa; e insistindo em afirmar a universidade pública na criação da democracia plural e inclusiva, lembrando o papel desempenhado pelas artes no horizonte obscuro que nos cerca atualmente. Assim exige o espanto diário de um viver perigoso.

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O que nós vemos das coisas são as coisas Por que veríamos uma coisa se houvesse outra? Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir? Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

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— ABERTURAS

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Tchekhov e a escritura do silêncio Henrique S. Bueno*

Este trabalho apresenta uma continuidade ao estudo realizado em “Memória e tragicidade”, que resultou no artigo publicado em Ciclorama, no 3. A partir das relações entre Trepliov e Arkádina (A gaivota); Liúba e Lopakhin (O jardim das cerejeiras), pretende-se demonstrar como a memória se impõe enquanto estado de recusa ao trágico na obra de Tchekhov. Seus personagens se colocam à margem do tempo presente por um apego ao passado ou receio do futuro, o que nos possibilita partir de conceitos elaborados pelos filósofos Henri Bergson e Nietzsche1 para entendermos a relação estabelecida com o tempo. Palavras-chave: tragicidade – memória – modernidade

* Orientação: Carmem Gadelha 1

O conceito de “homem sonhador” (BERGSON, 1999) consiste naquele que traz lembranças e experiências à luz da consciência, mas não as utiliza como motor para a transformação de sua situação presente. Por outro lado, Nietzsche (2013) aponta, no “ressentido”, um homem que tem, no medo, o principal motor de sua vida, impedindo qualquer ação.

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Tchekhov e a escritura do silêncio

Uma triste melodia. O esquecimento se instala no jardim das cerejeiras. Uma corda de violino se rompe e o velho Firs se deita na sala. O silêncio se impõe por uma profusão de vozes emaranhadas em um mesmo plano: narrativas em disputa. Os personagens tentam a consagração de suas trajetórias, pervertendo suas capacidades de ação. Paira um estado de antitragicidade. O aspecto da inação é ostensivo no universo tchekhoviano, através da perspectiva da memória. Admitindo-se que através dela é propiciada a experiência e possibilitada a formação do indivíduo, temos que esse sentido de experimentação vê-se repetidamente corrompido. Os personagens estão imersos em narrativas que não dão conta do presente e perpetram insistentemente o retorno ao passado. Em Memória e tragicidade, abordamos o tema trazendo para a discussão o aspecto da construção individual a partir da memória pessoal. Adotando como paradigmas os personagens Trepliov e Arkádina, de A gaivota (TCHEKHÓV, 2000), trouxemos à luz do debate o “sonhador” bergsoniano e o “ressentido”, de Nietzsche . Para além de inércia e inépcia, suas trajetórias de ressentimentos os envolvem em um nexo de (tentativas de) perversão mútua. Trepliov e sua escrita são impugnados pelo discurso auto-enaltecedor de sua mãe sobre o próprio passado. O dramaturgo tenta reescrever o teatro a partir de novas concepções e, assim, negar as tradições que teriam propiciado um passado glorioso a Arkádina. Em oposição, a mãe subjuga as tentativas do filho, ridicularizando sua escrita e inviabilizando seu processo de afirmação pessoal: “[...] é ela que nega ao filho a possibilidade de sua própria existência, subvertendo e desqualificando suas percepções do mundo, impedindo que ele se coloque como ser ativo” (BUENO, 2016, p. 73). Da mesma forma, Liúba, de O jardim das de cerejeiras (TCHEKHOV, 2003), traz um discurso envaidecido sobre seu 14

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passado. Tal qual a mãe de Trepliov, ela apresenta contornos do “sonhador”, permanecendo inerte por adoração ao tempo pretérito. Destaca-se, porém, que, se Arkádina costura seu discurso por meio de si própria, Liúba coloca como protagonista o seu núcleo familiar. Naturalmente, o ser humano, por tratar-se de um ser social, não encerra em suas memórias pessoais a sua individualidade. Ao contrário, ele é fruto de um meio social dotado de memória e discurso de coletividade; e por esse contexto trazemos também ao debate os personagens Liúba e Lopakhin (O jardim das cerejeiras). Ressalte-se, porém, que a memória coletiva não se restringe a uma historiografia. Antes, trata-se de uma experiência vivida por um grupo social que transpassa o próprio discurso, afetando efetivamente as relações que se estabelecem dentro do grupo (ou deste com seu exterior). É no âmbito relacional que situa-se a escrita tchekhoviana: em oposição ao discurso historiográfico, que desenha uma linha hierárquica entre as várias versões de um mesmo acontecimento, criando narrativas de protagonismos e antagonismos. O universo criado pelo dramaturgo não contempla a possibilidade de definir-se um protagonista específico, mas evidencia justamente as relações de disputa que se estabelecem como tentativas de imposição de discursos. Trata-se de um equilíbrio que se mantém por vozes desierarquizadas, sublinhando os aspectos de memória dos personagens e impedindo a manifestação do trágico por excesso de apego ao passado. Silviano Santiago refere-se a Octávio Paz para ressaltar que “a proposta de tempo vitorioso em termos de modernidade é a da ‘colonização do futuro’” (SANTIAGO, 1989, p. 98). Porém, ele próprio denuncia que, não obstante essa nova perspectiva sobre o tempo, a produção moderna retoma o passado através de um discurso de tradição. É nesse espaço discursivo que po15

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demos enquadrar Arkádina, Liúba e Lopakhin. Eles não negam suas próprias temporalidades, disseminando, ainda que à sua revelia, o contexto pré-revolucionário onde estão inseridos. Não mais passará impunemente o culto ao passado de forma quase religiosa, que impede que o presente se realize enquanto novo. Trepliov, incapaz de compor sua própria corporeidade com a escrita e assim furtar-se à inércia (GADELHA, 2013), se mostra, por outro lado, uma exceção nesse espaço discursivo de retomada do passado. Renunciando manifestamente à existência, sua trajetória serve ainda como metáfora para os demais. Arkádina, Liúba e Lopakhin constróem uma discursividade que também presume o aniquilamento de suas próprias existências. Tal aniquilamento surge, paradoxalmente, como fruto de um processo de monumentalização, conforme apontado por Michael Pollak (1989) em Memória, esquecimento e silêncio. Ele alude aos “lugares de memória” descritos por Pierre Nora: São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é um lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança. Os três aspectos coexistem sempre (NORA, 2012, pp. 21-22).

A percepção do monumento, enquanto lugar de memória, surge a partir dessa concorrência de sentidos; mas, para além, 16

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seu peso arquitetônico o coloca abruptamente como um imperativo de recordações. Trata-se, ambiguamente, de celebrar a vitória em uma determinada disputa, rememorando a aniquilação do outro para reafirmar o triunfante. O monumento, tanto celebrando quanto lamentando a perda, impõe silêncio. O sentido de aniquilamento das existências de Arkádina e Trepliov surge na medida em que verificamos que ambos compartilham “um mesmo corpo de ressentimentos”. Arkádina impede o processo de afirmação pessoal de seu filho; e assim, também, o seu próprio. Ela tenta criar em seu filho um corpo monumentalizado, capaz de reproduzir o seu próprio passado e calar quaisquer novas vozes que possam emergir. No entanto, para além desse monumento não se sustentar em Trepliov, ela própria não consegue existir fora de seu passado automonumentalizado. A inépcia e o processo de monumentalização discursiva expostos na trajetória das personagens de A gaivota se configuram também em Liúba e Lopakhin. A relação dos personagens é absolutamente pautada por um discurso de classes: a matriarca de O jardim das cerejeiras traz consigo os traços da aristocracia russa pré-Revolução; e o negociante, um notável burguês desenhado nos moldes do self-made man, produz um discurso embebido pelo orgulho das conquistas propiciadas por seu trabalho. Há, porém, uma fragilidade patente no discurso de Lopakhin: mesmo dissimulando o “sonhador”, o que se tem verdadeiramente é um homem sonhador às avessas. O orgulho da trajetória pregressa surge como forma de travestir o ressentimento que tem em relação ao passado de Liúba. Esse sentimento disfarçado o impele a produzir um movimento reverso em direção a um passado de glórias que nunca lhe pertenceu. O movimento de Lopakhin determina uma disputa não declarada entre ele e Liúba sobre o jardim das cerejeiras. O 17

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jardim se institui enquanto lugar de memória para um e para outro. Liúba, apesar de não se posicionar de forma manifestamente ativa nessa disputa, vê no jardim a possibilidade de conservação de seu poder aristocrático; e Lopakhin o vê enquanto forma de atestar sua escalada social (que, metaforicamente, é também da classe burguesa). Esse jardim é visto enquanto possibilidade de monumento: se traveste em promessas de silenciamento. E, ainda que se concretize uma espécie de vitória de Lopakhin sobre Liúba, o glorificado monumento concebido por ambos representa em si a derrota de um e de outro. A conquista da propriedade por Lopakhin, ao invés de homologar seu pertencimento à classe aristocrática, reafirma o burguês que é. Como Trepliov, o negociante se coloca em direção ao próprio fracasso e evidencia sua inércia e inépcia. O movimento produzido pelo burguês não se constitui em ação, posto que não gera deslocamento. Ele descreve círculos em torno de seu próprio ressentimento, reiterando a definição nietzschiana da classe burguesa: o medo como motor da existência conduz a um passado inalcançável (por não lhe pertencer), renegando a sua própria condição. Há um processo de monumentalização que não se concretiza no discurso burguês. Não há de fato um aniquilamento de sua existência enquanto classe, porém a condição burguesa pressupõe a perspectiva de seu próprio fim. Não se trata de ascender através do trabalho. Não se trata de trabalho, necessariamente. É sobre alcançar uma posição de poder, vingando-se de um passado de sacrifícios. É ainda, portanto, um culto ao passado em detrimento do presente. E é essa idolatria regressiva que constitui o universo tchekhoviano através das tentativas de monumentalização que se dão nos planos pessoal e coletivo. Impõe-se o aniquilamento da existência presente. Constrói-se um monumento que si18

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lencia qualquer potência de vida. Permanece um estado de latência que se encerra em si. O silêncio se impõe: faz de si seu próprio monumento.

BIBLIOGRAFIA BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BUENO, Henrique S. “Memória e tragicidade”. In: Ciclorama – Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral, número 3, ano IV. Rio de Janeiro: Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016. GADELHA, Carmem. Corpo, espaço, tempo – investigações sobre poética do teatro. Rio de Janeiro: Aretê, 2013. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. NIETZSCHE, F. Origem da tragédia. Lisboa: Guimarães Editores, 1982. ----. A genealogia da moral. Petrópolis: Vozes, 2013. NORA, Pierre & KHOURY, Aun. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo: PUC-SP, 2012, v.10, pp. 7-28. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em 29 de junho de 2017. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. In Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CAT Torres, 1989, no 3, v. 2, pp. 3-15. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/ view/2278. Acesso em 29 de junho de 2017. SANTIAGO, Silviano. “A permanência do discurso da tradição no modernismo”. In: Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989. TCHÉKHOV, Anton. A gaivota. São Paulo: EDUSP, 2000. TCHÉKHOV, Anton. “O jardim das cerejeiras”. In: Teatro II: As três irmãs/O jardim das cerejeiras. São Paulo: Veredas, 2003. WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

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Detritos humanos na experiência de um não-lugar Ian Calvet Marynower*

O objetivo deste artigo é pavimentar um campo conceitual para meu Projeto Experimental em Teatro: encenar uma construção dramatúrgica colaborativa, no segundo semestre de 2017, no Curso de Direção Teatral da UFRJ. Parto de uma análise sobre a questão dos refugiados na contemporaneidade e dos conceitos de “multidão” e “império”, de Antônio Negri e Michael Hardt. Adoto também a ideia de “linhas abissais”, de Boaventura Souza Santos – situando os refugiados em relação ao Estado Ocidental Capitalista. Além disto, os conceitos de “liso”, “estriado” e “máquina de guerra”, desenvolvidos por Gilles Deleuze, assim como a análise de Décio de Almeida Prado sobre os personagens na obra de Bertold Brecht, serão fundamentais para mapear as minhas intenções na encenação. Palavras-chave: teatro político – dramaturgia colaborativa – tragicidade

* Bolsista PIBIC. Orientação: Carmem Gadelha

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Na contemporaneidade, a geopolítica é fruto de uma estratégia capitalista que visa a reduzir a autonomia dos países, eliminar suas fronteiras e produzir um território global. Respaldada por um falacioso discurso humanista – redução dos conflitos, paz mundial e ordem global –, o que se revela, no fundo, é a produção de “slogans” que legitimam a atualização e a expansão, sem limites, da própria máquina do Estado capitalista. Trata-se de um Império que fortalece as grandes corporações burguesas, constrói um campo neoliberal, um mercado global que prioriza o lucro e um Estado mínimo: O conceito de Império é apresentado como um concreto global, sob a direção de um único maestro, um poder unitário que mantém a paz social e produz suas verdades éticas. [...] O Império exaure o tempo histórico, suspende a História, e convoca o passado e o futuro para dentro de sua própria ordem ética. Em outras palavras, o Império apresenta sua ordem como algo permanente, eterno e necessário (HARDT, 2001, p.25).

O Império impõe-se através de mecanismos ideológicos que fabricam a imagem homogênea de um único “concreto global”; contudo, é nos atritos intrínsecos a sua dinâmica que se revelam conflitos entre os seus elementos constitutivos. Os alicerces da própria máquina de Estado – a competição irrestrita e a busca pelo lucro – tornam precários os modos de relação entre concidadãos, produzem inevitáveis heterogenias, diferenças e exclusões. Em suma, produzem-se linhas abissais: “[...] que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’” (SANTOS, 2009, p.23). O Estado, na empreitada de impor uma epistemologia única, traça inúmeras linhas e as aprofunda, produz excluídos – restos da sua própria construção; são detritos humanos, aquilo 22

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que ressalta, que foge, que sobra. Estes corpos singulares, em conjunto, formam uma multidão. O processo de construção da peça será uma investigação sobre uma multidão de refugiados que bóiam, neste momento, em algum barco sem rumo no meio de algum mar. Dizem Negri e Hardt que [...] multidão desafia qualquer representação por se tratar de uma multiplicidade incomensurável. O povo é sempre representado como unidade, ao passo que a multidão não é representável [...] Ao contrário do conceito de povo, o conceito de multidão é de uma multiplicidade singular, um universal concreto. O povo constitui um corpo social; a multidão não, porque a multidão é a carne da vida (NEGRI & HARDT, 2004, p.17).

A multidão não é povo, posto que é constituída por acordos provisórios, mas também não é indivíduo – ou “indivíduo-proprietário” – pois ela é da ordem do intangível, do imensurável; não é numerável nem métrica – a multidão pode ser cem, mil ou um corpo só. Como pensar a multidão na cena? Partindo da noção de coro; trata-se de pensar as singularidades que se articulam no múltiplo, ou seja, corpos em cena que, em conjunto, produzem simultaneamente consensos e dissensos, se organizam e se desorganizam a todo momento: corpos em trânsito. Segundo Décio de Almeida Prado, ao analisar o modo de construção da personagem em Brecht, diz que o ator Não deve encarnar a personagem no sentido de se anular, de desaparecer dentro dela. Deve, por um lado, configurá-la, e, por outro, criticá-la, pondo em evidência os seus defeitos e qualidades [...] devem ser menos dos indivíduos do que da classe social a que eles pertencem (PRADO, 1981, pp.76-77).

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Portanto, nossa produção dramatúrgica não deve aprofundar questões psicologizantes; e sim se interessar pelo conjunto de corpos que são, simultaneamente, personagens e atores e assumem, sem nenhum pudor, o caráter fictício daquela situação. Isto não quer dizer que o personagem abandona definitivamente a sua individualidade. Mas, devemos nos ater ao fato de que as questões políticas e existenciais do grupo de refugiados se sobrepõem às subjetividades de ordem individual; isso distingue, inclusive, a lógica do Estado do modo de operar do coro nômade, como veremos a seguir. Podemos compreender o corpo do indivíduo no exercício de sua relação com o espaço organizado da cidade e os outros sujeitos – amparados pela lei, resguardados por uma polícia e por um governo. Por outro lado, o seu afastamento para as zonas periféricas do Estado implica a construção gradativa do refugiado, corpo que perde a sua funcionalidade dentro do aparelho do Estado e se torna detrito humano, matéria flutuante, escombro. Os refugiados, desamparados da estabilidade de qualquer instituição, vivenciam trajetórias trágicas: são destituídos de origem e destino, fadados a serem eternamente sem territórios, nômades (mesmo que absorvidos pelo Estado, nunca deixarão de ser “carimbados” como estrangeiros). A analogia entre o refugiado e o nômade se faz porque, embora diferentes entre si, ambos são tensionados por derivas. Com Deleuze e Guattari (1997), constatamos que o espaço da máquina do Estado é estriado. Seu ímpeto é geometrizar o mundo – delineá-lo com o intuito de facilitar a governabilidade, o controle; enquanto o mar tende ao liso, ao fluxo: Da turba ao turbo: ou seja, dos bandos ou maltas de átomos às grandes organizações turbilhonares. O modelo é turbilhonar, num espaço aberto onde as coisas-fluxo se distribuem, em vez de distribuir um espaço fechado para coisas lineares e sólidas. É a di-

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ferença entre um espaço liso (vetorial, projetivo ou topológico) e um espaço estriado (métrico): num caso, “ocupa-se o espaço sem medi-lo”, no outro, “mede-se o espaço a fim de ocupá-lo” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p.19).

O corpo do refugiado, originalmente organizado pelo Estado, vaga no mar de modo turbilhonar e em multidão, se atritando com o espaço estriado do Estado: há fluxos que levam o corpo nômade para longe do Estado, fazendo-o desprender-se; mas, na contracorrente, há fluxos que refazem as camadas do Estado no corpo, reconstituindo a sua organização. O corpo nômade à deriva produz o liso e o estriado, desapega-se e se apropria. O Estado também se apropria das idiossincrasias dos refugiados; são medidas protecionistas, mecanismos que buscam atualizar a sua hegemonia, domesticar o estrangeiro para poder governá-lo ou expeli-lo. Além disso, o Estado busca aprofundar as estrias no espaço do mar; um exemplo são as cartas de navegação que traçam rotas no espaço marítimo para que ele sirva ao Império. O que intimida o Estado, segundo Deleuze e Guattari, é a máquina de guerra; ela é exterior ao corpo do Estado e ameaça liquidificar os seus estratos; é um corpo autônomo e anárquico que, com seu bando de guerreiros (nômades) refugiados, desconstrói a ordem sistêmica do exército de soldados do Império. Os bandos são grupos do tipo rizoma, por oposição ao tipo arborescente que se concentra em órgãos de poder. [...] é evidente que os bandos, não menos que as organizações mundiais, implicam uma forma irredutível ao Estado, e que essa forma de exterioridade se apresenta necessariamente como a de uma máquina de guerra, polimorfa e difusa (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p.16).

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Detritos humanos na experiência de um não-lugar

Sendo de ordem rizomática, “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (idem, 1995, p.14), o refugiado se ressignifica aos olhos do Estado, deixando de ser detrito. Não é por acaso que o alto índice de refugiados à deriva nas bordas da Europa configura uma grande ameaça ao Estado ocidental capitalista. Esse Estado, com o seu projeto de abertura das fronteiras, se vê obrigado a reagir ao refugiado em contrafluxo, ou seja, reafirmando a soberania sobre o território, blindando os seus limites. Trazer à cena a questão dos refugiados é trabalhar com rizomas, agenciamentos dos fluxos cujas sedimentações são de caráter temporário. Como fazer da cena uma máquina de guerra? O coro da multidão também presume a coexistência da plateia e do palco. Juntos, mergulham e deslizam pela superfície, infinitas vezes, produzindo um campo de imanência, um encontro único no teatro que produz também um plano de consistência, uma cena concebida como corpo sem órgãos. O plano de consistência seria, então, o conjunto de todos os CsO, pura multiplicidade de imanência, da qual um pedaço pode ser chinês, um outro americano, um outro medieval, um outro pequeno-perverso, mas num movimento de desterritorialização generalizada onde cada um pega e faz o que pode... (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.18).

Corpo sem órgãos é o combate ao próprio organismo, ao modo “máquina de estado” que, através de suas instituições, deseja produzir modelos humanos em detrimento da carne imanente. O combate é às dicotomias, às cisões, aos compartimentos, aos territórios. Combate à própria mimese e à produção de duplos. O combate não é um objetivo, é um convite à ação, é um pressuposto para a prática; combate imanente. 26

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Em suma, as pessoas que se propuserem participar deste projeto de encenação na universidade devem zelar, do início ao fim do processo, pela diluição das linhas abissais: atores, diretores, autores, cenógrafos e figurinistas devem se colocar no risco de perder a autoridade de suas próprias funções, pois a diferença entre os setores será diluída na busca de uma radical coletivização. É um movimento de “desterritorialização generalizada onde cada um pega e faz o que pode” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.18); e faz o que deseja, como pressupostos éticos dentro das relações do próprio processo. A não-dicotomização e o esboroamento das linhas deflagram a insubstancialidade da própria máquina de Estado na sua delimitação e no seu histriônico projeto desenvolvimentista. O mundo não é divisível, a força da máquina de Estado é insuficiente para fixar seus contornos, estabelecer diferenças entre o seu território e o “resto” do planeta. Deflagra-se um mundo que, em sua totalidade, se configura como sendo o próprio “não-lugar”. A tentativa do Estado de constituir um território exige que ele sempre atualize os seus mecanismos para se conservar enquanto dominante. Trata-se de uma luta permanente que sempre se renova: enquanto o mundo faz rachar as estruturas e os contornos da máquina – e os refugiados são a personificação disto –, o Estado cria novos mecanismos para impermeabilizar essas rachaduras. A cena busca a teatralidade deste não-lugar, um espaço onde as narrativas se perdem e recuperam, a ruína do Estado se evidencia e a utopia de modos revolucionários de pertencer ao mundo nunca deixará de existir.

BIBLIOGRAFIA DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, v.5. ----. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, v.1.

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Detritos humanos na experiência de um não-lugar

----. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996, v.3. HARDT, Michael & NEGRI, Antônio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. NEGRI, Antônio. “Para uma definição ontológica da multidão”. Disponível em: http://uninomade.net/lugarcomum/19-20/ (Acesso em 4/08/2017). PRADO, Décio de Almeida. “A personagem no teatro”. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Decio de Almeida & GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem de Ficção. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981. SANTOS, Boaventura de Souza. “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes”. In: Epistemologias do sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

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Arte e política em coletivos teatrais Taís Sobrinho Trindade*

Este artigo explora a interrelação entre os modos de produção dos coletivos teatrais do Rio de Janeiro e as ações oferecidas pelo Estado, no momento sócio-político-cultural crítico da atualidade. A limitação de políticas públicas e a precariedade das ofertas de trabalho disponíveis não contemplam os trabalhadores da cultura carioca. Para analisar essa problemática, esta pesquisa propõe o exame da relação entre a prática teatral, as condutas do poder público, a articulação dos artistas e o impacto dos acontecimentos culturais na cidade como fatores de transformações sociais. Palavras-chave: modos de produção – políticas públicas – coletivos teatrais

* Orientação: Adriana Schneider

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Arte e política em coletivos teatrais

O objetivo inicial desta pesquisa era acompanhar o trabalho dos coletivos teatrais do Rio de Janeiro para detectar e entender os meios de produção utilizados por eles para realizações de suas pesquisas, espetáculos e demais acontecimentos resultantes do empenho dos grupos. Diante de um cenário político, social e cultural conturbado, em que o poder público não disponibiliza recursos suficientes para os trabalhadores da cultura, pareceu-me pertinente fazer esta investigação. As trajetórias dos grupos de teatro evidenciam algumas lógicas que operam em seus procedimentos de criação. Essas lógicas são provenientes de um princípio mercadológico hegemônico, que, no caso da cultura, torna-se perceptível através das ações fornecidas pelo poder público. São ações controversas e limitadas, que não suportam a quantidade de projetos que precisam ser contemplados. Sem dinheiro, os artistas não contemplados procuram outras formas de subsistência, muitas vezes recorrendo a áreas de atuação no mercado de trabalho diferentes das suas, fora do campo da cultura. Por sua vez, a rotina de trabalhos paralelos dificulta o encontro dos coletivos, que passam a se encontrar esporadicamente, obedecendo às datas provenientes das poucas ofertas que aparecem para eles, o que impede o trabalho contínuo dos integrantes. Além disso, os grupos passam a trabalhar suas obras de forma que resultem em produtos de qualidade para os patrocinadores em potencial. Mas, a esse modo de produção, somente produtoras e artistas renomados têm acesso com frequência. Grupos de teatro independentes e menos conhecidos pelos investidores não têm essa opção e, ainda assim, buscam se adaptar ao sistema excludente e desigual do mercado, que se impõe sobre suas necessidades vitais. No Manifesto arte contra a barbárie, texto de autoria de diversos artistas da cidade de São Paulo, escrito em 1999, essa estrutura mercantil é mencionada e criticada: 30

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Uma visão mercadológica transforma a obra de arte em “produto cultural”. E cria uma série de ilusões que mascaram a produção cultural no Brasil de hoje. A atual política oficial, que transfere a responsabilidade do fomento da produção cultural para a iniciativa privada, mascara a omissão que transforma os órgãos públicos em meros intermediários de negócios (2008, p.22).

Observando este panorama, o foco da minha pesquisa se deslocou em direção ao estudo das ações oferecidas pelo Estado, hoje incapazes de atender às demandas dos artistas cariocas. A proposta não é abandonar a minha ideia inicial sobre o estudo dos coletivos, pelo contrário, é entender como todas as questões que citei se entrelaçam e se afetam. Optei pela análise dos trâmites públicos porque, por mais que o Estado tenha atualmente uma forte relação de submissão ao empresariado, ainda parece o meio de se obter um alcance mais heterogêneo de trabalhadores, com mais chances dos artistas poderem criar com autonomia e de se estabelecer um diálogo com os poderes legislativo e executivo, com intuito de elaborar e implementar as leis necessárias à cultura. Em ambas as instâncias, tanto a pública quanto a privada, os artistas ficam suscetíveis a uma série de adaptações ao empresariado, uma vez que os avaliadores dos projetos usualmente estão ligados ao marketing das empresas patrocinadoras e, por conseguinte, os artistas devem aprender a lidar com o processo de venda de seus projetos usando métodos conhecidos e utilizados por aqueles que podem eventualmente comprá-los. É importante ressaltar que a criação de ações e leis não resolve essa problemática. Ao contrário, essas saídas vêm servindo como estímulo à adaptação dos modos de produção mercantilizados. O diretor Sergio de Carvalho1, em uma 1

Sergio de Carvalho é encenador e dramaturgo da Companhia do Latão.

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Arte e política em coletivos teatrais

palestra ministrada na UFRJ, falou sobre como os grupos se adequaram à lógica dos editais em São Paulo e sobre as consequências dessa adequação, que ficaram perceptíveis em cena desde o início do processo criativo dos atores, que se preocupavam em se comunicar com a plateia antes de atentarem à relação entre eles durante os ensaios, buscando uma eficácia típica do funcionamento de mercadorias. Por isso, a concepção de políticas públicas requer atenção aos detalhes, para que saibamos a que estamos a serviço. Todo esse esquema, ao mesmo tempo em que é atual, se encontra em um momento de falência, diante do desmonte em curso em toda esfera pública por todo o país e que vem atingindo a área cultural agressivamente. No Rio de Janeiro, além do congelamento dos editais, os artistas vêm testemunhando o fechamento de uma série de teatros, o fim de projetos importantes para a comunidade, corte de orçamentos, atraso no pagamento dos funcionários públicos, enfim, uma sucessão de ultrajes que enfraquecem e paralisam a produção cultural do Rio de Janeiro. Entre as falhas da prefeitura com a classe artística carioca, está o não pagamento da verba do Programa de Fomento às Artes de 2016 aos projetos contemplados. Motivados por esta e tantas outras adversidades, vários trabalhadores da cultura apresentaram uma série de dados que revelam a repercussão das práticas culturais, em carta aberta à prefeitura. Reproduzo aqui alguns desses dados: 204 projetos contemplados deveriam ter entrado em cartaz este ano; 3.083 apresentações artísticas deixaram de acontecer pela cidade (em teatros, lonas culturais, praças e ruas); R$ 28.360.000,00 entrariam na conta de fornecedores cariocas de transporte, bebida e alimentação; para realizar as inscrições no edital, os trabalhadores da cultura dispuseram 273.420 horas ou 11.392 dias de trabalho e, com isso, investiram R$ 21.082.000,00. 32

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Além de reivindicar o pagamento do edital de fomento de 2016, nessa carta os artistas demandaram o aumento do orçamento destinado à cultura para 2% e a elaboração de uma Lei Municipal de Fomento à Cultura. Não restam dúvidas de que o papel que a cultura exerce na cadeia produtiva da cidade é fundamental. E não surpreende a sequência de respostas evasivas e pouco proveitosas da Prefeitura e da Secretaria Municipal. O que gostaria de entender nesse momento é o grau de participação dos trabalhadores da cultura, em especial, dos artistas de teatro. Mesmo sabendo que está difícil trabalhar e que temos cada vez menos opções de pautas e editais para inscrevermos nossos projetos, nós ainda tentamos entrar nos moldes de produção como os anteriormente citados, que estão em crise e mal se sustentam. E, por vezes, acabamos atribuindo essas dificuldades a nós mesmos, desconsiderando que boa parte dos fatores que nos privam de trabalhar são derivados do descaso do poder público. Sabendo disso, o que estamos fazendo? Será que estamos suficientemente engajados na mudança desse panorama crítico? Gustavo Guenzburger2 , integrante do Reage Artista, durante sua palestra na Mostra Mais da UFRJ, relatou a diminuição drástica do número de participantes nas reuniões impulsionadas pelo não pagamento do edital do “Fomento”: de cerca de 200 pessoas que estavam presentes nos encontros, somente 8 integram o grupo atualmente. Ele também descreveu algumas conquistas da classe artística de São Paulo, passando pela criação da Lei de Fomento e dos diversos Programas e Prêmios, mencionando em seguida as consequências dessa articulação que ainda hoje é capaz de reunir milhares de trabalhadores quando há necessidade de 2

Gustavo Guenzburguer é ator, diretor, produtor, Conselheiro Municipal de Cultura e ativista do movimento Reage, Artista!

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Arte e política em coletivos teatrais

mobilização para reivindicação de seus direitos. Esse empenho coletivo e numericamente expressivo tem surtido efeito entre os paulistas. Neste sentido, ainda podemos apostar mais no potencial do encontro dos artistas do Rio de Janeiro, tanto para sermos capazes de pressionar o poder público, quanto para termos uma pluralidade de vozes representando a si mesmas e trazendo suas necessidades e ideias para as discussões em grupo. Para incrementarmos nosso nível de participação nas causas coletivas, podemos aproveitar a corrosão dos sistemas datados para inventar modos de produção mais proveitosos para nós e para alterar profundamente a forma com que se decide como e quais obras devem ser materializadas. Não precisamos reproduzir mecanicamente meios pré-formatados. A criação de modos de produção é capaz de reverberar no corpo social de maneira significativa, inclusive no público, que pode se tornar mais participativo no ato criativo, ampliando seu papel para além da atitude contemplativa diante de uma apresentação artística. Não podemos esquecer da integração entre teatro, comunidade e política. Ao formular a Lei de Fomento, os trabalhadores paulistas da cultura, articulados em um movimento intitulado Arte Contra a Barbárie, destacaram que a lei deveria ser voltada para a cidade e não para o teatro. No artigo As primeiras edições do fomento e a gestão Garcia-Frateschi na Secretaria Municipal de Cultura, temos uma afirmação de Luiz Carlos Moreira3 que ressalta essa relação teatro-cidade: Logo, o Fomento é um programa público que pretende consolidar um teatro fundamental para a cidade, através de recursos perma3

Luiz Carlos Moreira é autor, diretor, cenógrafo, iluminador, membro do Engenho Teatral.

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nentes do município e diz que esse é o papel de núcleos artísticos com propósito de trabalho continuado. [...] O tal teatro fundamental implica a relação de trabalho e produção, o desenvolvimento de técnicas, a criação de poéticas, mas também a formação de público, o que significa estabelecer outros vínculos com a população da cidade [...] (MOREIRA apud TENDLAU, 2012, p. 96).

Denis Guénoun, no livro A exibição das palavras, fala sobre como o público quer participar do teatro, da política, da vida em comunidade. E fala também sobre como em tempos de desapreço político há um esvaziamento dos teatros: “O teatro não poderia ser reabilitado a não ser numa época de democracia reavivada porque um público só vem ao teatro quando acredita, sabe ou quer ser politicamente ativo” (GUÉNOUN, 2003, p. 39). Portanto, essa conjuntura de retrocessos que estamos vivenciando desarticula a sociedade de maneira generalizada, mas, considerando a interrelação entre teatro e política que Guénoun sugere, em vez de esperarmos uma mudança no cenário político para agir, podemos nos empenhar em partir para a prática da mudança concomitante entre esses dois campos para que eles se retroalimentem e gerem as transformações sociais urgentes.

BIBLIOGRAFIA CAMARGO, Iná & CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da lei de fomento ao teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (Orgs.). Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec: Cooperativa Paulista de Teatro, 2012. GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro. Tradução: Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003. Carta aberta à Prefeitura: cultura pela cidade. Disponível em: <https://www.facebook.com/movimentospelaculturarj/videos/644796695724079/>Acesso em julho de 2017.

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Dramaturgia “drag” Gabriel Pardella*

Este breve artigo busca levantar e compreender as formas de produção e relação que permeiam o universo “drag”, levando em conta os encontros: “drag-drag”; “drag-outro”; “drag-discursos de ódio", “drag-arte” e entrelaçando conceitos sobre gênero e sexualidade com as performances geradas por esses encontros. Abordando aspectos que compõem a construção (montação), a história e as relações com outras artes, pretende-se compreender os desdobramentos políticos que estão ligados à arte “drag”. Palavras-chave: “drag” – performance – política

* Bolsista PIBIC/CNPq/UFRJ. Orientação: Adriana Schneider

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Dramaturgia “drag”

Inicio meu processo com o mundo “drag”, faço minha primeira “montação"1 , passo a me montar mais vezes. Crio um diário de bordo e dou início à pesquisa sobre a minha própria “drag”, Pina2 . Saio de uma festa. Maquiagem ainda sobrevivendo ao calor e sem descer do salto. Caminho até uma lanchonete na Lapa, centro do Rio, com uma amiga, Victoria. Lindas e belas entramos. Peço um suco. Ouço risadas e comentários sussurrados. Alguém grita: PRA QUE ISSO TUDO? Respondo: PRA TOMAR UM SUCO, UÉ! PINA3, 2015

Pina sai para tomar um suco para que eu possa sair sem tomar um soco. É então na vivência como drag queen, e no contato com outras queens, que passo a perceber as diferentes formas de produção usadas para criar e manter esse arte viva. Além de um desafio financeiro, pois se montar costuma exigir a compra de diversas ferramentas e materiais, é um desafio político. Se montar é expor o corpo, é performá-lo, é transformá-lo em obra de arte. E como tudo que está exposto, esses corpos estão em risco. É sobre um risco iminente de ser agredido verbal e fisicamente. Mas é também sobre a capacidade de criar políticas através desses corpos desviantes. A esses “modos de produção” estou chamando de “dramaturgia drag”, uma manei-

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Ato de se maquiar e vestir como “drag”.

2

Pina saiu pela primeira vez em maio de 2015.

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Trecho retirado do “diário de bordo” de Pina, não publicado.

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ra específica de estar e se relacionar com o mundo próprio do universo “drag”. Logo nas primeiras saídas4, entendo Pina como um corpo performativo. Corpo pensado para agir e reagir de outros modos, por meio de outras necessidades. Entendo aqui corpo performativo segundo a definição e os pensamentos da performer e pesquisadora Eleonora Fabião: Falar de corpo performativo, portanto, é falar de um corpo-contágio, um corpo-encontro, um corpo-desmantelo, e os seus efeitos. Trata-se de um corpo que não proclama uma expressão além de si mesmo; não metaforiza, nem literaliza, mas sim age, e recria-se (cognitiva e materialmente) no ato, recriando assim o outro que o espreita e interpela (FABIÃO, 2013, p. 260).

É corpo capaz de recriar-se a todo momento, de emergir como corpo-encontro, corpo capaz de transformar e ser transformado. Pina é ser/estar. É jogo. É encontro. Sou. O ato de se montar, por ele mesmo, é tão performático quanto político. Gera desvios no próprio corpo e nos corpos que o atravessam. "Drag" é corpo que escapa. Foge. Não se enquadra na normatividade, na heterossexualidade, escapa das regras binárias de gênero. Não é mulher nem homem. É “drag”. Mas o que é “drag”? Na busca por um entendimento mais aprofundado do termo “drag”, encontrei algumas definições. Guacira Lopes Louro (1997, p.05) entende que “drag” é: “um sujeito que, explicitamente, assume fabricar seu corpo, para, a partir dele, pensar o quanto cada sujeito ‘comum’ também ‘fabrica’, cotidianamente, seu corpo manejando os signos e códigos de sua cultura”. Guacira entende, assim, que “drag” é um sujeito que, tendo consci4

Modo como denomino o ato de me montar e sair.

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Dramaturgia “drag”

ência das reverberações da cultura na construção dos corpos, se apropria desse jogo para deflagrar e romper com os jogos de poder que são construídos por meio desta própria cultura. Enquanto Igor Amanajás (2014, p.02) define: “drag queen trata-se de uma construção de um personagem e não uma opção sexual; logo, configura-se como teatro ou performance”. Entretanto, apesar de não se tratar de opção sexual, a figura da “drag” performa as noções de gênero e cria atrito nas percepções sobre sexualidade. “Drag” é performance de gênero. Ao se montar baseado em um determinado gênero, está-se colocando em jogo as próprias noções de gênero e deflagrando o caráter cultural da construção do que entendemos como tal. Para complementar o pensamento sobre construção da noção de gênero, trago um trecho do Manifesto contrassexual de Preciado, que aborda a construção social da sexualidade e do gênero: O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstituir através de operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (PRECIADO, 2002, p.26).

É por meio dessa repetição de códigos que a “drag” cria atrito, paródia. É uma operação quase que falaciosa: mulher usa salto, logo sou mulher; homem tem barba, logo sou homem; uso salto e tenho barba, logo sou homem e mulher. Ou seja, sou construção, sou construído a partir de códigos preestabelecidos por uma ordem social vigente. É nesse jogo de sobreposição, mistura e construção de novos códigos que a figura da “drag” 40

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cria tensionamento sobre o que de fato determina o gênero de um corpo. Desestabiliza noções e concepções normativas de gênero e confunde as percepções de sexualidade. Contudo, apenas uma definição teórica não seria o suficiente para dar conta do que é essa arte performática. “Drag” é também experiência. Experimenta quem se monta e se desmonta, quem encontra. É nesse recorte da “drag”, como encontro, que se aproxima do teatro. Ambos acontecem no encontro, no “entre”. Se encontram também na dramaturgia. “Drag” tem história, ficção e processo autobiográfico, cria partitura corporal e ouso dizer que tem iluminação própria. Constrói a si e à cena nas relações. Não é à toa que vem sendo crescente o número de “drags” na cena teatral contemporânea. Para além de um desejo de por em evidência temáticas de gênero e sexualidade, a “drag” dialoga com o processo de construção das narrativas teatrais que vêm sendo influenciadas cada vez mais pela performatividade ou seja, o teatro performativo. Nesse sentido, Josette Féral, em seu artigo Por uma poética da performatividade: o teatro performativo, faz uma descrição do que seria um teatro performativo: […] se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que abalaram o gênero (transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo a uma receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia...). Todos esses elementos, que inscrevem uma performatividade cênica, hoje tornada frequente na maior parte das cenas teatrais do ocidente (Estados Unidos, Países-Baixos, Bélgica, Alemanha, Itália, Reino Unido em particular), constituem as características daquilo a que gostaria de chamar de “teatro performativo” (FÉRAL, 2008, p.198).

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Dramaturgia “drag”

E não apenas o teatro se beneficiou com as aquisições da performance. A “drag” também adotou características performáticas. A forma como conhecemos a “drag” contemporânea, que performa, se apresenta em boates, shows de televisão e outras plataformas, surge após o nascimento da performance-arte; contudo, há vestígios da arte “drag” anteriores à performance. Questiona-se a origem da “drag” como arte independente. Alguns teóricos afirmam que é possível identificar traços dessa arte nos atores que usavam máscaras femininas já no teatro grego; contudo, ser “drag” está para além de se travestir de mulher. “Drag” é estado, é jogo. Sobre o termo “drag”, Igor Amanajás afirma que: “especula-se […] que Shakespeare, ao conceber suas personagens femininas, ao rodapé da página em que descrevia tal papel, marcava-o com a sigla DRAG, dressed as girl (vestido como menina, em tradução livre), para sinalizar que aquela personagem seria interpretada por um homem” (AMANAJÁS, 2014, p.10). A “drag”, pós-advento da performance, que tem seu surgimento na década de 60, passa a ganhar mais espaço dentro e fora da comunidade LGBT, que, não por coincidência, no mesmo período, está conquistando espaço e direitos dentro da sociedade. Entendo “drag” como personagem, entidade, ser, criatura, alter ego. Nesse sentido, se assemelha também ao palhaço e ao bufão. Figuras que expõem muito do criador na criatura, são nomeadas de diferentes formas por seus diferentes performers e, em geral, surgem a partir de um processo de entendimento de si. Ambos tem suas construções ligadas a vivências muito próprias e cada criatura é exclusiva de seu criador. Trabalham com números, improviso, truques, comicidade e paródia. E desta maneira a “drag” também traz em seu arsenal características do cabaret e do teatro de revista. “Drag-performer”; “drag-palhaça”; “drag-comediante”; “drag-modelo”; “drag de balada”; “drag-conceitual”; drag 42

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king; “drag-cantora”; “drag-dançarina”; “drag-apresentadora de Tv"; “drag-prostituta”. Junto a esse turbilhão de possibilidades que essa arte abrange, estão também aquelas que permeiam aspectos não tão glamurosos. Fazer “drag”, para um grande maioria, é uma escolha, uma opção. Entretanto, algumas pessoas se vêem na necessidade de ingressar ou atravessar essa arte como meio para sobreviver e passar por processos de transição. “Drag” não tem diretamente nenhuma relação com a prostituição, mas, de fato, dialoga e fala de políticas de gênero que têm total relação com pessoas “trans” e travestis. Abro aqui o breve lembrete que em torno dessa arte existem diversos problemas sociais. Além das baixas remunerações decorrentes dos contratos casuais e da informalidade, muitas “drags” passam por processos dolorosos dentro de casa e na sociedade por, assim como travestis e transexuais, terem, muitas vezes, seu lugar de cidadão questionado e violado com agressões físicas e verbais. Neste momento, tenho atrelado minha pesquisa teórica com a minha prática de montagem de formatura. Sigo tensionando os materiais teóricos com as práticas na sala de ensaio, injetando conceitos da teoria queer5 e também pensando de que forma esse material dialoga com a construção da cena. De que maneira esses desdobramentos da “dramaturgia drag” estarão presentes na construção da dramaturgia e na criação das 11 “drags” em cena.

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Pessoas que não seguem ou não se enquadram no padrão heterossexual ou no binarismo de gênero.

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Dramaturgia “drag”

BIBLIOGRAFIA AMANAJÁS, Igor. “Drag Queen: Um percurso histórico pela arte dos atores transformistas”. Revista Belas Artes. São Paulo: Centro Universitário Belas Artes, Ano 6, no 16, pp. 1-24, 2014. FABIÃO, Eleonora. “Programa Performativo: o corpo em experiência”. In: Revista do Lume, no 4, 2013. FÉRAL, Josette. “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”. In: Revista Sala Preta. São Paulo: ECA-USP, no 8, pp. 197-209, 2008. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação – uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. PRECIADO, Beatriz. Manifiesto contra-sexual – Prácticas subversivas de identidad sexual. Madrid: Opera Prima, 2002.

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Atravessando a rua da crise Homero Ferreira Kaneko*

Após a criação do espetáculo Crise de gente, a Companhia Hecatombe busca possibilidades de maior reverberação de seu discurso. Ante a onda de conservadorismo crescente no Brasil e no mundo, passa a entender a rua como um espaço ampliador de discussão, resistência e luta. Experimenta dispositivos como o happening e a performance para dar cabo da sua aspiração, usando, como referências, apontamentos de Renato Cohen, Eleonora Fabião e Josette Féral. Palavras-chave: Companhia Hecatombe – neogrotesco – rua – performance

* Bolsista PIBIAC. Orientação: Lívia Flores

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Atravessando a rua da crise

A Companhia Hecatombe, de São José do Rio Preto, São Paulo, cria o espetáculo teatral Crise de gente no ano de 2016. O espetáculo propõe pensar a crise pelo viés do (neo)grotesco e carrega uma reflexão sobre o fato de que crises não são isoladas (políticas, econômicas, humanitárias), mas sim de todos nós, de toda gente. O entendimento clássico do grotesco ressalta seu aspecto rústico, escatológico, grosseiro, por vezes caricatural. Entretanto, percebemos, em nossas pesquisas, que os tempos atuais sugerem um novo tipo de grotesco, o neogrotesco. A cena neogrotesca apresenta-se mediada pela tecnologia, pelo controle midiático das informações, pelo sensacionalismo sobre as tragédias urbanas, pelas redes sociais. Aparece a partir do não-reconhecimento do outro, da falta de espanto, do conformismo, tornando o grotesco um lugar comum. Consequentemente, podemos afirmar que é na banalização do grotesco que vemos o neogrotesco operar. No entanto, debater sobre o neogrotesco não é o bastante: os tempos exigem ação e nos parece urgente entender como avançar a partir do reconhecimento desse novo grotesco e, assim, agir. Nossa primeira série de apresentações do espetáculo nos levou ao desejo de falar mais de perto (ainda), de estabelecer diálogos mais diretos. Haja vista estarmos vivenciando cada vez mais momentos delicados referentes a nossa política, retrocessos e uma onda crescente de conservadorismo. Perguntas concernentes ao nosso fazer demandam respostas: por que público limitado? Por que o edifício teatral? Por que refletir através do teatro? Por que não discutir essas urgências em um espaço de maior reverberação? Então, a rua passa não só a nos convidar, mas a acenar para o neogrotesco. Por ter sido construído cena a cena, já com grande teor performativo e posteriormente “dramaturgizado” a partir da costura de uma cena à outra, o espetáculo permite fragmentar-se. 46

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Para tanto, precisamos entender o que há no espetáculo, em sua construção e em seu processo de elaboração, que possibilita sua transposição para a rua. Crise de gente propõe que a entrada do público seja pelo backstage, sendo o público orientado a se posicionar no palco com os atores. Rompe-se com a convenção teatral exigindo do público o deslocamento, a troca de lugar, a alteração de ponto de vista. No palco, cria-se uma situação de fronteira e de segregação, pois há um muro que o divide. Cada ator assume um lado para juntos recepcionarem as pessoas no espaço cênico. O público é convidado a se mover entre esquerda e direita do muro a cada pergunta feita pelos atores. Por exemplo: “Usa transporte público? Se sim, esqueda, se não, direita”; “Jean Wyllys ou Bolsonaro? Jean esquerda, Bolsonaro direita”; “Ganha mais de seis salários mínimos? Se sim, direita, se não, esquerda”; e assim por diante, obrigando a plateia a se posicionar em relação ao jogo proposto – “direita ou esquerda” – colocando em questão suas convicções de mundo, políticas, sociais. Posteriormente o muro é desfeito, movimenta-se para o fundo do palco tornando-se um painel que ao longo do espetáculo receberá projeções de vídeos. Ao som da canção Bandeira Branca, os atores convidam a plateia ao mascaramento. A alusão ao carnaval visa a remeter à festa arcaica, ao corpo coletivo, à reunião em praça pública, ao encontro. Sem muro, o público ali presente se vê mascarado, se percebe e é convidado a se cumprimentar e a participar da festa. É então que aparece a figura do que chamamos de Judas – um boneco biruta (bonecão de posto de gasolina). Trata-se de outra alusão, desta vez retirada de estudos acerca do bode expiatório, à libertação e vazão das pulsões agressivas propiciadas pela festa, que culmina no escorraçamento de um soberano. Todos são convidados a malhar o Judas, sendo a ação de bater o passaporte para finalmente ganhar um assento na pla47

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teia. O público abandona o palco e reassume sua função passivo-receptiva, passando a acompanhar da plateia o desenrolar do espetáculo. Em seguida, as cenas passam a refletir as informações e fatos que nos chegam diariamente através dos noticiários, jornais, redes sociais. A leitura de uma crônica a que damos o nome de “Um navio impossível: O 87o dia” insere diretamente o tema/mote do espetáculo sobre o qual vínhamos até aqui dando pistas: estamos todos no mesmo barco. O que vem depois corrobora essa reflexão: atores montando uma peça, metateatro; a evocação do Golpe através de Hamlet; a TV como interposto importante para a construção da ideia de neogrotesco como um grotesco plástico, estético, digerível, lapidado; as manifestações de rua e sua presença na sociedade; a briga pelo poder evidenciada por um jogo de cabo de guerra feito pelos atores com uma bandeira do Brasil; a ruptura como alívio cômico nas cenas de alta tensão; a evocação de Electra por Ofélia em Hamlet machine; o poder feminino, a luta das minorias, a injustiça, o estupro e a violência; possibilidades e visões ante a crise, a crise como personagem; o 87o dia, o naufrágio, o afogamento, a boa notícia que não vem. Criamos as cenas em módulos ou blocos que poderiam ser encaixados ou desencaixados, a depender do curso dramatúrgico que se quisesse seguir. Nesse sentido, cada parte (cena) é um todo em si mesmo, o que nos permite operar com a possibilidade de variadas formas, inclusive apresentando-as separadamente. Conscientes desse recurso e da vontade de experimentar os atravessamentos da rua, fomos até ela. Elegemos inicialmente o happening como ponto de partida para esse primeiro contato, pois nele, segundo Cohen, “interessa mais o processo, o rito, a interação e menos o resultado estético final. Não existe um superego crítico. Os valores de julgamento foram abandonados” (COHEN, 2002, p.132). Uma 48

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abordagem de baixa esteticidade e liberdade sem grandes fins nos atraiu nesse estágio de reconhecimento. Precisávamos tatear a rua para perceber o alcance do acontecimento no lugar cotidiano, assim como a reação das pessoas diante daquela interferência não habitual, vivência que se mostrou providencial no desenho dos rumos a serem tomados. Tentarei dar aqui um panorama da experiência proposta na rua. Escolhemos um sábado de manhã no calçadão de São José do Rio Preto, talvez o dia mais movimentado da semana, quando famílias passeiam e fazem compras no comércio de rua. A força avassaladora dos, pelo menos, cinco grandes shopping centers da cidade enfraquece essa tradição, porém, não a extingue. Afinal, o consumo é feito para não ter fim. A cidade de São José do Rio Preto fica a 480 km da capital São Paulo, possui quase 500 mil habitantes e tem sido consecutivamente considerada pela FIRJAN (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) como a segunda melhor cidade em qualidade de vida no Brasil. Rio Preto está distante dos índices nacionais das desigualdades sociais que marcam nosso país, o que não quer dizer que está isenta de toda e qualquer mazela. Rio Preto é conservadora, cristã e quente. E é neste cenário que ganhamos finalmente a rua. Selecionamos três fragmentos do espetáculo para integrar o que chamamos de “atos”. Os atores Alexandre Manchini Jr. e Clarissa Maria vestiam coletes salva-vidas, tinham um boneco manequim bebê e empurravam a lavadora de roupas, todos estes elementos utilizados em cena. O ato 1: andar pelo calçadão empurrando uma máquina de lavar roupas sobre rodas. O ato 2: tirar selfies com o boneco bebê e transeuntes. O ato 3: replicar a cena da briga pela bandeira. Ações simples e sem objetivo aparente, mas que nos possibilitaram observar as mais diversas reações dos passantes: “isso é protesto”; “eles estão vindo aqui todo dia protestar” (fomos apenas um dia); “é pro49

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paganda de máquina de lavar”; “estão querendo lavar a roupa suja do Brasil”. Foi uma parada, mesmo que rápida, para uma observação mais aproximada, para um diálogo sem a mediação do teatro no que diz respeito às suas convenções. Perguntamo-nos: se a livre ação na rua já mobiliza tanto, como podemos começar a levar a discussão de Crise de gente do palco para rua e que atravessamentos são necessários para que isso se dê? Estamos ainda em uma etapa de experimentação, onde se começa a pensar em um próximo estágio. O que se quer a partir daqui nos parece ser uma aproximação com a performance. Eleonora Fabião, em artigo que aborda poéticas e políticas na cena contemporânea, traz um apontamento sobre sua força: Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: desabituar, desmecanizar, escovar a contrapelo. Trata-se de buscar alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial... (FABIÃO, 2008, p. 237).

Essas potências do desabituar, do desmecanizar, às quais Eleonora Fabião se refere estão em Crise de gente. Podemos dizer que se trata de um espetáculo que recorre sim à performance, pois transita nesse universo de disseminação de dissonâncias e de busca de alternativas ao estabelecido. Porém, a maior barreira nessa transposição do espetáculo do palco para a praça pública seria justamente a parte técnica. A projeção de imagens e a iluminação são componentes im50

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portantes na obra, pois foram pensadas em consonância com a dramaturgia para dar ao espectador o máximo de referências imagéticas, numa espécie de poluição visual, como acreditamos ser uma das tônicas do neogrotesco. Se optássemos por fazer o espetáculo integralmente na rua, como é um de nossos desejos nessa incursão, teríamos certamente que pensar como essa adaptação poderia ser feita. A supressão das imagens projetadas e sua rearticulação como cena pode ser uma das estratégias possíveis para essa transposição. De acordo com Josette Féral, “a performance toma lugar no real e enfoca essa mesma realidade na qual se inscreve, desconstruindo-a, jogando com os códigos e as capacidades do espectador” (FÉRAL, 2008, p.203). Já temos pistas que podem nos ajudar a decifrar esses códigos até chegarmos a um formato ideal e elas têm ligação, sobretudo, com recursos performáticos. Queremos a experiência de sair do edifício teatral: a performance mostra-se para nós como um dispositivo potente de luta. O reencontro com a polis nos parece essencial nesses dias de confronto. É a nossa resposta artística para a atualidade: ocupar a rua e o imaginário da nossa cidade, mesmo e apesar de toda e qualquer crise.

BIBLIOGRAFIA COHEN, Renato. Performance como linguagem – criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 2002. FABIÃO, Eleonora. “Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea”. In: Sala Preta, São Paulo: USP, 2008. no 1,v.8. http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57373/60355 Acessado em: 14/07/2017. FÉRAL, Josette. “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”. In: Sala Preta, São Paulo: USP, 2008. no 1, v.8. http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57370/60352 Acessado em: 14/07/2017.

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A cena do espectador Camila Simonin*

Esta pesquisa possui como tema “O espaço ocupado pela arte”. Dentro dos inúmeros caminhos a que este campo pode levar, decidi percorrer a pergunta “Como gerar um espaço possibilitador de encontros entre espetáculo-espectador?”. Para isto, foram selecionados autores urbanistas, dramaturgos, diretores e professores como compositores da base teórica deste estudo. O objetivo é tentar entender melhor o espaço que existe entre quem faz e quem vê teatro, partindo do pressuposto de que reunir pessoas é um de seus sentidos primordiais. Palavras-chave: espectador – espaço – palco/plateia

* Orientação: Adriana Schneider

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A cena do espectador

O teatro, efetivamente, implica em comparecer a um lugar com outras pessoas. Isto pode parecer natural, mas não é, absolutamente: as pessoas tendem a fazer cada vez menos esse gesto heroico de abandonar a privacidade de suas casas e mergulhar na coletividade do público. Ir ao teatro, integrar-se em um coletivo, é, portanto, uma decisão interessante a ser levada em conta: é ser indivíduo e querer participar e viver uma experiência coletiva (SINISTERRA, 2002, p. 74).

Este artigo originou-se a partir de experiências de ir ao teatro e algumas insatisfações pessoais. Insatisfações pelo conteúdo apresentado, sua relevância e seu objetivo como arte feita no Rio de Janeiro, em 2017. Também foram observados a forma de apresentação, o espaço em que me inseriam como espectadora, o número tímido de espectadores ali presentes e o modo com que se levantavam e aplaudiam com fervor até mesmo os trabalhos que mais odiaram ter visto. Fiquei me questionando como estudamos tanto sobre o que acontece no palco, mas pouco sobre o que acontece entre ele e quem assiste. Mais do que isso, como esquecemos de tratar do espaço ocupado pela arte, seja por quantos caminhos essa relação arte-espaço possa nos levar. Dessa forma, procuro neste artigo partir das relações da arte com o espaço que ocupa, para poder discutir como gerar encontros entre espetáculo-espectador. Além disso, analisar como a geração desse espaço promove não só uma “responsabilidade” maior ao espectador, mas também uma plateia que gere retornos mais honestos e produtivos às futuras produções. Segundo a urbanista Paola Berenstein Jacques (2010), atualmente, nas grandes cidades do Brasil, ocorrem Projetos de Revitalização voltados para a espetacularização dos espaços públicos. Esses projetos consistem em transformar áreas populares e informais da cidade em zonas pautadas por uma lógi54

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ca espetacular – isto é, na criação de imagens e construção de consensos urbanos. São, portanto, os projetos pacificadores, espetaculares e homogeneizadores. Cabe ainda uma ressalva ao termo “revitalização” como tentativa de dar uma nova vida – partindo da ideia de um espaço previamente “morto”. A autora se utiliza ainda do conceito elaborado por Milton Santos de “zonas opacas”, ao se referir às regiões periféricas da cidade, em oposição às “zonas iluminadas/luminosas” que tratariam das regiões “mais centrais”. Desta forma, é preciso entender esses ambientes opacos como espaços que sofrem uma tentativa de ocultamento, de redução ou eliminação. São os espaços que geralmente são ordenados, asseptizados e gentrificados – em outras palavras, que sofrem tentativas de espetacularização. Neste sentido, me questiono se esse processo também poderia ser transportado para o edifício teatral e os espaços da cena: existiria um projeto de revitalização em curso – pacificador, espetacular e homogeneizador – para o teatro? Ao delimitar o espaço de luz ao espaço do palco estaríamos também objetivando o silenciamento/ordenação da plateia? Estaremos aqui, portanto, tratando de espaços “pacificados” e sem conflitos entre espetáculo-espectador, que acordam a falta de dissensos, o que, para Paola Jacques, teria uma consequência apolítica. Talvez seja o caso de pensarmos a ideia de resistência exatamente em termos de desacordo, dissenso e desentendimento, como a noção de política pressuposta por Jacques Rancière [...]. O consenso exclui aquilo que é o próprio cerne tanto da política quanto do espaço público: o dissenso, a possibilidade de se opor um mundo sensível a um outro. Este também produz uma homogeneização das sensibilidades, através da hegemonia de uma forma, geralmente a publicitária, de produção de subjetividades. Enquanto a pacificação – a construção de consenso, que busca esconder os confli-

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A cena do espectador

tos – é uma forma de despolitização, o desentendimento – a explicitação de dissensos, que torna os conflitos visíveis – seria uma forma ativa de resistência, de ação política ( JACQUES, 2010, p. 109).

Assim, é preciso ter em mente a arte como espaço de micro-resistências urbanas e zonas de tensão, de construção de dissensos. Também, para Rancière (2008), o espectador está no cerne da questão que envolve arte e política, não existiria teatro sem espectadores. Porém, a ideia de um teatro sem espectadores não significaria um teatro vazio, mas um espaço de corpos em movimento diante de corpos vivos ainda por mobilizar. Desta ideia, surgem dois tipos de espectadores que estariam vinculados a uma plateia detentora de um poder ativo. O primeiro espectador quebra as fronteiras espessas entre palco e plateia e invade o espaço da cena, sendo tomado pelas energias vitais que dela emanam. Ele se move a partir do que ali comunga. O segundo tipo de espectador também abdica da posição de mero receptor, que se encanta com o que vê. No entanto, ele não se aproxima da cena, mas se afasta, estranhando o que é dado e procurando entender o fenômeno e suas causas. Ainda que possuam ações contrárias como espectadores – um que deve ganhar distância e outro que deve perder toda e qualquer distância – ambos são importantes ao tratarmos de uma emancipação do espectador. A emancipação, por sua vez, começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir. [...] Começa quando se compreende que olhar é também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição das posições. O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. [...] Participa da performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à energia vital que esta supostamente deve transmi-

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tir para transformá-la em pura imagem e associar essa pura imagem a uma história que leu ou sonhou, viveu, inventou. Assim, são ao mesmo tempo espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto (RANCIÈRE, 2008, p. 17).

Rancière introduz, ainda, um ponto importante a ser considerado: de que a procura pela emancipação do espectador deve ser pensada não só com o foco em quem assiste, mas também em quem promove o encontro palco-plateia. Nesse sentido, José Sanchis Sinisterra também traz reflexões similares em sua palestra Dramaturgia da recepção (2002). Os dois autores trataram da influência do encenador embrutecedor e como esse pensamento assinado pela direção afeta completamente a relação do espetáculo com a plateia. Diz-se que embrutece na medida em que coloca uma distância muito grande entre quem produz e quem “recebe” o espetáculo, em geral para evidenciar as supostas posições de conhecimento ou ignorância do que está a acontecer no espaço teatral. Mais do que isso, a direção embrutecedora presume, ao longo do processo de criação, o conhecimento das reações de seu espectador. Aqui vemos discutido o “espectador ideal”, conceito elaborado por Sinisterra para falar do leitor ideal, que é criado pelo artista no processo de montagem do espetáculo e, hipoteticamente, dialoga com todas as proposições feitas da maneira desejada pelo artista. Ou seja, é a idealização de uma plateia para a qual o artista espera se apresentar. No entanto, neste artigo, tratamos do “espectador real”, ser virtual que não participou do processo de criação e sobre o qual nenhuma reação ou informação podemos saber, sequer se existirá e se virá ao espetáculo em questão. A lógica da causa/efeito está no centro do pensamento embrutecedor e reproduz a ideia de artista como detentor do espetáculo, o que acaba por gerar um abismo entre o artista e o espectador. Muitas vezes, esse abismo é real, física e arquiteto57

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A cena do espectador

nicamente planejado para construir um espaço de não-diálogo entre palco e plateia. É evidente que, para falar da relação da arte em diálogo com o espaço que ocupa, é preciso falar da arquitetura na qual comumente fazemos teatro nos dias de hoje. Isso se deve ao fato de ser a arquitetura a primeira instância política que ordena a representação; a cena é prescrita, dirigida e comandada por ela em primeiro lugar. Para tratar desse aspecto físico e visível do não-diálogo, trago Denis Guénoun que, em seu livro A exibição das palavras, acredita que “a convocação, de forma pública, e a realização de uma reunião, seja qual for o seu objeto, é um ato político” (2003, p.14). Assim, pensar a cena sem pensar na arquitetura que a acolhe é pensar no teatro esquecendo-se da política que o ordena. É preciso que se pense, dessa forma, no espaço físico em que se faz arte, seja na arquitetura ou no local da cidade e o horário em que se apresenta. Além disso, outro fator que interfere na cena e em seu público é o regime de luz e sombra, já apontado no início do artigo. Para Guénoun (op. cit.), ele é característico nos tempos de instauração da ordem, processo que ocorre nas zonas opacas da cidade para Paola Jacques (op. cit.). Esses pensamentos são importantes, a meu ver, uma vez que trata o teatro, antes de qualquer conteúdo, da natureza de reunir pessoas. Não no sentindo de reunir seres humanos individualizados, mas uma reunião como reconhecimento de uma existência coletiva. Tendo em vista os pensamentos aqui trazidos acerca do lugar que a arte ocupa e a relação do conteúdo representado e seu espectador, esta pesquisa vem se propondo analisar essas relações a partir de um panorama do teatro apresentado hoje na cidade do Rio de Janeiro. Tenho realizado trabalho de campo que consiste em entrevistar diversos artistas, diretores e produtores a respeito da preocupação – existente ou não – com o espectador e com o espaço utilizado. Tenta-se perceber se há a intenção de obter diálogos entre a obra e seu público. Procu58

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rou-se ainda realizar entrevistas com os próprios espectadores, recebendo críticas e sugestões, insatisfações, tentando encontrar maneiras de afetar o trabalho do artista. Além disso, como estudo das formas de diálogo com a plateia a partir do ponto de vista da cena, pretendo fazer um panorama com trabalhos nos quais o contato com o espaço e a preocupação de como ocupá-lo estejam explicitamente colocados. Para isso, analisarei trabalhos artísticos feitos em espaços públicos, performances, ações e – como também colocado por Paola Jacques (op. cit.) – micro-resistências a partir da profanação do espaço público. Profanação que procura tirar do sagrado do espaço de consumo os espaços públicos espetacularizados, a fim de restituí-los ao uso comum dos habitantes. Essas micro-resistências podem ocorrer dentro do uso “não-planejado” do cotidiano da cidade, em especial nos seus usos conflituosos e dissensuais através da arte. Concluo com mais uma citação de Denis Guénoun (op. cit., p. 71) que trata da preocupação que procurei manter durante o artigo: “[...] É isso a ideia política do teatro: congregar a cidade, publicamente unida na mobilização de seu desejo de comunidade, para convidá-la a tomar assento no lugar da assembleia política, para abrir o político para outra coisa fora de si mesmo”.

BIBLIOGRAFIA BRITTO, Fabiana Dultra e JACQUES, Paola Berenstein. Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: Edufba, 2010. GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma idéia (política) do teatro. Tradução: Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2012. SINISTERRA, José Sanchis. “Dramaturgia da recepção”. _ v. 13. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2002.

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Acessibilidade no palco e plateia – interação entre e para deficientes visuais com poéticas de encenação Silvia Galter*

Este artigo tem por objetivo apresentar a pesquisa sobre acessibilidade e inclusão no teatro, como uma ação necessária para a independência da pessoa com deficiência, no que se refere ao acesso e consumo de bens culturais. A base de análise é o processamento dos dados teóricos e a experiência de criação do espetáculo Ô de dentro!, um processo de criação voltado à integração e inclusão de deficientes visuais no fazer teatral. O espetáculo foi resultado prático da disciplina Projeto Experimental em Teatro, obrigatória para o curso de Artes Cênicas – Direção Teatral da UFRJ; ao mesmo tempo, coroou o projeto de pesquisa de Iniciação Artístico Cultural (Bolsa PIBIAC-UFRJ), ambos realizados pela aluna-diretora-pesquisadora e orientados pela professora Jacyan Castilho. Palavras-chave: teatro acessível – direção teatral – deficiência visual

* Bolsista PIBIAC. Orientação: Jacyan Castilho

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Acessibilidade no palco e plateia – interação entre e para deficientes visuais com poéticas de encenaçã

A experiência perceptiva (que é corporal) surge da relação dinâmica do corpo como um sistema de forças no mundo e não da associação que vem dos órgãos e dos sentidos. Assim, o corpo é visto numa totalidade, na sua estrutura de relação com as coisas ao seu redor – como uma fonte de sentidos (MASINI, 2003, p. 40).

Os principais canais de percepção de uma obra artística, em sua grande maioria, são a visão e a audição. Em museus, uma das regras é não mexer nas obras e pinturas expostas. Nas atrações musicais, ouvir é essencial para sentir a música. O cinema nos obriga a prestar atenção em sons e imagens. O teatro tem como premissa básica ser um lugar para ver e ouvir narrativas. Em todos estes exemplos, visão e audição são protagonistas no consumo geral dos bens culturais. Como durante muito tempo a lógica de produção cultural tem sido esta, não é surpresa que caminhemos vagarosamente no que se refere à criação de espetáculos acessíveis à pessoa com deficiência. Isso tem um efeito imediato na vida deste cidadão que já sofre com a falta de oportunidades de inclusão em todo o processo de criação e produção artística e é impedido de ter acesso às artes. Neste cenário, esta pesquisa direciona o seu olhar para as possibilidades de uma cena criada a partir da junção entre direção teatral e projetos culturais acessíveis. Através de referências bibliográficas, relatos e coleta de experiências artísticas, foi possível empreender uma experiência criativa prática. A primeira etapa da pesquisa consistiu no levantamento bibliográfico e estudo de casos de companhias teatrais que já possuíam experiência na temática estudada, a exemplo de “palavra invisível”, “teatro dos sentidos”, “teatro cego” e Graeae; paralelamente foram processados textos de Virginia Kastrup (2012), Elcie F. S. Masini (2003), Merleau Ponty (2006; 2014) e Elisabet Dias de Sá (2002) para fundamentar o escopo teórico da questão. 62

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Na segunda etapa, os conceitos estudados deram origem à criação do espetáculo Ô de dentro. Através da disciplina de Projeto Experimental em Teatro, obrigatória para o curso de Artes Cênicas – Direção Teatral da UFRJ, a aluna-pesquisadora assumiu o papel de diretora e, sob orientação da professora Jacyan Castilho, empreendeu um processo de criação voltado à integração e inclusão de deficientes visuais no fazer teatral. A acessibilidade é uma forma de concepção de ambientes que considera o uso de todos os indivíduos independentemente de suas limitações físicas, sensoriais e intelectuais. Além das políticas públicas, a implementação de espaços acessíveis depende de mudanças atitudinais e culturais, o que implica uma nova forma de agir, pensar e se relacionar com a temática. No Brasil, apesar de existirem algumas leis e decretos que garantem a acessibilidade cultural1, a dificuldade de colocá-las em prática é um obstáculo encontrado por muitos artistas, companhias teatrais, produtores e espaços culturais. Acessibilidade é um atributo essencial do ambiente que garante a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Deve estar presente nos espaços, no meio físico, no transporte, na informação e comunicação, inclusive nos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, bem como em outros serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto na cidade como no campo.2

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Constituição Federal (art. 7o, inciso XXXI; art. 37, inciso VIII; art. 203 incisos IV e V; art. 208, inciso III; art. 227, § 1o e inciso II, § 2o; art. 244; art. 215). Além da CF, o Decreto Federal no 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamenta a Lei Federal no 7.853 de 24 de outubro de 1989 e a Lei Federal no 7.853, de 24 de outubro de 1989, estabelecem os direitos básicos das pessoas com deficiência.

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Acessibilidade. Disponível em http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/ acessibilidade-0. Acessado em julho de 2017.

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Acessibilidade no palco e plateia – interação entre e para deficientes visuais com poéticas de encenaçã

O último Censo Demográfico3, realizado no ano de 2010 pelo IBGE, apontou que mais de 45,5 milhões de brasileiros declararam ter algum tipo de deficiência. Deste montante, mais de 6,5 milhões disseram ter deficiência visual, sendo que 6 milhões afirmaram que tinham dificuldade de enxergar e mais de 506 mil afirmaram ser cegas. Em relação à deficiência auditiva, 9,7 milhões declararam ter deficiência auditiva; 2,1 milhões disseram ter deficiência auditiva severa; 344,2 mil relataram ser completamente surdas e 1,7 milhões de pessoas teriam grande dificuldade de ouvir. Estes dados reforçam a necessidade de equiparação de oportunidades para as pessoas com deficiência. Não obstante, ter como projeto realizar um espetáculo totalmente acessível parecia ser um sonho distante, principalmente se levarmos em consideração que, apesar dos esforços, este tema ainda sofre com o preconceito e falta da sistematização das ferramentas que facilitem a criação de espetáculos acessíveis e inclusivos. O espetáculo teatral precisa ser entendido, sentido, internalizado, para, somente então, desempenhar seu papel significador de instrumento social e cultural. Para tanto, o seu ato de comunicar deve ser abrangente, não seletivo ou excludente. Como arte democrática que é, deve ou deveria ser para todos (SILVEIRA, 2016, p. 145).

Na criação do espetáculo Ô de dentro!, uma das questões mais importantes era a de não vitimizar e nem romantizar a condição da pessoa com deficiência. Durante o processo, as propostas fo3

Realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a cada dez anos, o Censo Demográfico é um estudo estatístico que possibilita fazer um retrato de corpo inteiro do país com o perfil da população e as características de seus domicílios, ou seja, ele nos diz como somos, onde estamos e como vivemos. Mais informações estão disponíveis em http:// censo2010.ibge.gov.br/sobre-censo.html

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ram moldadas de acordo com as dificuldades e problemáticas trazidas pelo elenco, que era formado por uma atriz deficiente visual com 76 anos (Paulina Maria), um ator vidente de 23 anos (Bruno Parisoto) e um músico (Alexandre Marzullo), além dos apoiadores de cena, que interagiam diretamente com o público, oferecendo-lhe estímulos sensoriais. Com três horas de duração, o primeiro mês de ensaio serviu basicamente para perceber as diferenças corporais de cada um no espaço de cena, conhecer as potencialidades dos corpos em ação, explorar outros canais de percepção (tato, olfato e paladar) e entender como poderíamos criar o espetáculo a partir destes elementos. Com as experiências da sala de ensaio, ficção e memória se fundiram para a criação do roteiro final. As lembranças coletadas, decupadas e expandidas determinaram a narrativa. Tal investigação reuniu, portanto, a coleta do arquivo de histórias de vida, a comunicação de memórias pela via de jogos teatrais, o exercício da escrita dramatúrgica e a integração entre atores e não-atores no processo criativo. A repetição das ações pelos personagens foi um dos recursos utilizados para facilitar a memorização pelos atores. A sinopse resume a rotina da avó Zenólia e seu neto Edu, que vivem em uma zona rural, habituados à vida em comum um do outro. Ao se apaixonar, Edu abandona a sua avó, que tenta se acostumar a viver sozinha, mas fica doente. Depois de algum tempo, após o término do namoro, Edu retorna ao seu porto seguro (sua avó), mas ela morre durante a noite, deixando-o ali com as lembranças dos dias bem vividos ao lado dela. A ação dramática é reforçada pela trilha sonora, feita ao vivo por um músico, cuja função, além de prover a trilha, era de estar em cena como se fosse um espectro da lembrança sonora de ambos. O personagem do neto também acumula funções, convertendo-se em narrador da peça; em vários momen65

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Acessibilidade no palco e plateia – interação entre e para deficientes visuais com poéticas de encenaçã

tos ele “quebra” a “quarta parede” e direciona seu discurso ao público, que dessa maneira é inserido diretamente na ação como observador. Para ativação de outros canais de percepção, proporcionamos ao público uma experiência sensorial no início do espetáculo e oferecemos outros estímulos sensitivos durante a peça. Antes de entrar no espaço de cena, todos recebiam orientações para participar da experiência e eram convidados a tirar seus sapatos, colocar uma venda sobre os olhos (podiam escolher entre vendas pretas – que resultava em ausência total da luz; ou branca – sob a qual conseguiam ver formas embaçadas e luz) e em seguida formar uma fila. Para cada seis pessoas fornecemos um apoiador de cena (pessoa responsável por conduzir o grupo pela sala cuidando de sua segurança física e apresentando os ambientes). Na sala, provavam sabores, sentiam os objetos, tocavam o figurino, sentiam os cheiros e ouviam os sons do espaço. Ainda de olhos vendados, eles eram conduzidos até suas cadeiras para sentar e conhecer as memórias do jovem Edu. Ao longo da peça, o público podia escolher entre permanecer ou não com os olhos vendados, o que gerava a liberdade para que cada um recebesse o espetáculo da forma mais confortável. Para que pudéssemos realizar as experiências e ainda garantir a segurança do público, delimitamos 30 pessoas para assistirem à apresentação realizada na XVI Mostra de Teatro da UFRJ (2016). Fato bastante apreciado na perspectiva desta pesquisa é que, em uma apresentação em junho de 2017 no Centro de Integração da Pessoa com Deficiência (CIAD)4, conseguimos recepcionar 50 pessoas, sendo que mais de 90% do público tinha algum tipo de deficiência. Todos participaram das mesmas eta4

Endereço: Av. Presidente Vargas, 1.997. Centro - Rio de Janeiro/ Telefone: (21) 2242-7700.

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pas, incluindo a experiência sensorial e o uso democrático da venda. Nesta apresentação, incluímos a tradução simultânea em LIBRAS. Dois intérpretes seguiam os movimentos do Edu e da avó Zenólia pelo espaço, como se fossem “sombras” ou uma extensão das personagens pela cena. O espetáculo continuará e agora o foco é intensificar a experiência e os estímulos sensoriais ao longo da cena e modificar a dramaturgia, de modo que a audiodescrição fique mais evidente. Logo, os resultados alcançados demonstram que o desafio do processo de criação foi superado e que o grupo conseguiu atingir os objetivos iniciais da pesquisa: tornar a experiência da peça acessível e inclusiva.

BIBLIOGRAFIA KASTRUP, Virgínia. “A atenção na experiência estética: cognição, arte e produção de subjetividade”. In: Revista Trama Interdisciplinar, no 1, v. 3, pp. 23-32. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012. Disponível em http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tint/article/view/5000. Acessado em novembro de 2016. MASINI, E. F. S. “A experiência perceptiva é o solo do conhecimento”. In: Psicologia em Estudo. Maringá: Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, 2003, no 1, v. 8 , pp. 39-43. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003000100006. Acessado em julho de 2017. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ----. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2014. SÁ, Elizabet Dias de. “A bengala e a mulher invisível”. In: Do sentido... pelos sentidos... para o sentido: o sentido das pessoas com deficiências sensoriais. São Paulo: Vetor Editora Psicopedagógica, 2002. SILVEIRA, Izabel Cristina da. “Teatro para quem?! A arte de teatrar para todos – Um estudo sobre acessibilidade cultural em espetáculos teatrais no RS”. In: Revista da FUNDARTE. Montenegro: Fundação Municipal de Artes de Montenegro- FUNDARTE, 2016, no 32, pp. 142-162. Disponível em: http://seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/article/view/428 Acessado em julho de 2017. SPOLIN, Viola. Jogos teatrais: o fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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A criação de imagens na cena teatral contemporânea* Juliana Ferreira de Paulo**

No contexto contemporâneo da cena teatral, são bastante recorrentes alguns pontos como a hibridização, o caráter processual de criação e a não-hierarquização textual em relação à cena. São características como estas, assim como o uso da tecnologia digital e os recursos de multimídia tecendo a estrutura cênica, que constróem o pano de fundo do nosso objeto de análise. O artigo pretende investigar a criação de imagens, da cênica à digital, no espetáculo Um-Fausto (2013), com direção de Daniel Belquer e atuação de Evandro Manchini, baseado no Fausto: tragédia subjectiva, de Fernando Pessoa (1991). Imagens estas que não se restringem à construção de um imaginário ou de estímulos visuais, mas a um redirecionamento cênico, formal e transgressor. Palavras-chave: teatro contemporâneo – tecnologia digital – imagem cênica

** Este artigo foi pensado ao término do curso “O portrait fotográfico: entre criação e rupturas”, ministrado pela Profª. Drª Maria Teresa F. Bastos, oferecido ao PPGAV-UFRJ. O texto foi modificado para esta publicação. ** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV), da Escola de Belas Artes-UFRJ; bolsista Capes.

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O espetáculo Um-Fausto1 (2013), com direção de Daniel Belquer e atuação de Evandro Manchini, baseado no Fausto: tragédia subjectiva, de Fernando Pessoa (1991), teve sua estreia e curta temporada, em 2013, no Sesc Copacabana/RJ; e participação no I Festival Internacional de Arte e Tecnologia – FIART, em 2014. Embora não tenha tido vida longa (até o momento), por questões fora do âmbito artístico, fornece muito material para investigação. Ainda enquanto projeto2 , antecipava três pontos importantes. O primeiro seria a combinação de “teatro, tecnologia, música, som e vídeo”, o hibridismo que se dá por contaminação de linguagens diferentes como a dança e a música, de um lado; a fotografia e o vídeo, de outro. A tessitura estética é envolvida por recursos tecnológicos digitais e de multimídia. A partir da experimentação delas (segundo ponto), a obtenção deste múltiplo material para construção da cena evidencia o seu caráter processual. Isso dá conta de outras questões em relação à análise da encenação, que não poderá perder de vista os rastros processuais. Embora a encenação se baseasse em um texto poético-dramático3, não havia hierarquização do texto em re1

Ficha Técnica – Concepção e Direção: Daniel Belquer. Performer/ator: Evandro Manchini. Dramaturgia: Daniel Belquer e Evandro Manchini. Produção: Sonja Gradel; Cenário: Doris Rollemberg; Direção de movimento: Lavinia Bizzotto. Iluminação: JM Pallottino e R Grings. Figurino: Cássio Brasil. Visagismo: Maurício Melo. Projeto gráfico: Diogo Monteiro. Programadores: Belquer e Claudio Cabral. Música original: Carlos Eduardo Soares. Canções e vídeos: Belquer. Colaboração de interatividade: Marlus Araujo. Desenho de som: JA Mannis. Fotografias: Felipe O'Neill. Câmeras: Belquer, Diogo Fujimura e Claudio Amparo. Edição de vídeos: Belquer.

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De financiamento coletivo via Catarse (2012): https://www.catarse.me/umfausto

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No projeto, consta que seria baseado no Primeiro Fausto, de Fernando Pessoa e no UrFaust de Goethe. No material de divulgação, que seria baseado em Fausto: tragédia subjectiva, de Fernando Pessoa, outra edição do Fausto de Pessoa a qual adquire uma nova reorganização desse poema dramático.

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lação à cena; terceiro ponto: o texto não restringe ou limita a concepção cênica. Compreendia-se a adaptação de um texto dramático para o palco como uma disposição a mostrar a visão de mundo do autor, excluindo a do encenador e ator, como se o texto ditasse as regras da cena. Já no teatro moderno, é problematizada essa condição hierárquica. Claro que é evidente a potência da poesia pessoana; fosse ela diluída infinitamente, ainda assim seria presente a marca poética de Fernando Pessoa e do mito de Fausto. Mas a presença da palavra não pretende apenas usufruir dos sentidos por ela suscitados – sua potencialidade dramático-poética; mas também das escolhas de como é falada ou cantada. São propostas repetições, sonoridades, ritmos, além de aspectos extralinguísticos, assim como acontece a outros, como a luz e o som; o texto é um material de cena. Não menos importantes para tecer a estrutura cênica são o uso da tecnologia digital e os recursos de multimídia. A concepção do espetáculo compreende, além dessa profícua investigação de linguagens, integradas dentro de uma proposta que se intitula teatral, uma intensa criação de imagens – objeto de análise. Imagens estas que não se restringem à construção de um imaginário ou de estímulos visuais. Estamos falando de imagens concebidas como formais e transgressoras. Por um lado, as imagens são integradas ao trabalho do ator,4 fazendo uma conexão definitiva, em duas vias que valem ser destacadas: a imagem em estado de personificação, que pode ser o próprio personagem em imagem, ou outro “personagem imagético” com quem ele interage; ou, ainda, a imagem como matéria do mundo que reage, em formas e cores, ao personagem. Tecnicamente, a imagem poderá ser gerada pelo 4

Pensar na expressão “atuante”: ator/performer, como sugeriria o diretor Daniel Belquer.

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mapeamento do corpo do ator, primeiro caso citado; ou será a imagem animada, segundo caso. Em toda essa formatação, a imagem compreende uma função de estrutura cênica propriamente. Por outro lado, nessa proposta “teatral” específica, essas imagens – derivadas de sistemas visuais não teatrais – reconfiguram suas funções originárias, por assim dizer, estando condicionadas a novas formatações, que podem produzir percepções não previstas por seu código específico. Antes de recorrer ao exemplo referente ao caso da fotografia, vamos a uma possível conceituação de imagem. Interessante observar que a imagem digital é classificada, por Isabel Capeloa Gil (2011), enquanto um sistema visual, assim como seriam o cinema, a fotografia e a pintura. Endossando estudos do campo da Cultura Visual, ela sugere adotar a “literacia visual”, mais que um conceito, uma competência e estratégia, com finalidade de dar suporte às análises de objetos visuais para investigação das imagens. De imagem mental – image – a produto institucional – picture (MITCHELL apud CAPELOA GIL, 2011). Capeloa Gil acolhe conceitualmente a imagem, pensada seja como entidade mental suscitada por qualquer artefato ou experiência sócio-cultural, seja enquanto produtos institucionalmente definidos como artes visuais. Concebida, ainda, como uma instância de criação imagética – no espaço da imaginação, neste caso a imagem pode ser exemplificada em outros suportes, como o quadro criado na literatura; ou o objeto visual propriamente. Reitere-se que a imagem não seria um privilégio do visível (RANCIÈRE apud CAPELOA GIL, 2011). As imagens, quando na categoria de produtos tecnológicos ou artísticos, além de criações complexas, não se pode perder de vista que são produzidas em contextos, ou seja, são objetos culturais complexos. Partindo para o exemplo da fotografia, vejamos um caso de apropriação de um gênero fotográfico, o portrait, que pro72

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duz uma recodificação. O portrait apresenta alguma especificidade, que o faz ser classificado enquanto um gênero, mas, nesse universo teatral proposto, é usado como ferramenta ou dispositivo que cumpre uma proposição cênica. Ao ser “misturado” dentro de outros sistemas visuais, um novo uso entra em jogo, que condiciona, com a tecnologia digital, um trânsito entre imagem cênica e imagem digital, propiciando novas percepções a serem também mediadas pelo olhar do espectador. É justamente dessa envergadura entre dispositivos ou ferramentas e linguagens (citamos apenas um exemplo), que surge a cena teatral híbrida. O uso do portrait no teatro esteve sempre mais vinculado a uma função decorativa de cenários naturalistas, estes até pouco contemplados pela cena contemporânea. Em Um-Fausto, mesmo sendo uma pequena aparição, ao contrário do “objeto decorativo”, seu efeito é bastante produtivo. Amplia a condição estática e emoldurada para uma função interativa, como se a imagem se corporificasse, ganhasse vida através de leves movimentos ou pequenas oscilações, permitidos ao vídeo. Existe uma desconstrução – nesse tempo de grande velocidade –, do seu uso estático. A própria projeção do ator (o corpo do ator foi mapeado para que em tempo real ele interagisse com sua própria imagem), proporcionando o diálogo entre imagens e personagem. Instaura-se um ínterim entre a função do plano close e o portrait na sua condição originária. Há o uso cênico e narrativo do gênero portrait, que conduz o espectador a adentrar o universo do personagem, seu passado, sua memória e o que tudo isso provoca nele. Essa evasão à infância acontece muito em decorrência do recurso visual. Sobre as possibilidades de percepção do portrait fotográfico, Teresa Bastos (2007) pontua duas principais: validação de identidade e ausência de referente. Para Édouard Pommier (1998), o portrait se caracteriza por um signo de ausência, podendo ser 73

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uma expressão de nostalgia ou resposta à morte. Neste sentido, percebo a “função” dele no espetáculo, entre o fotográfico e o digital, como uma simbiose dessas duas formatações, um duplo. Ao se deslocar em tempo e espaço, promove a ausência do referente, visto que o personagem é levado a outro momento da vida, a infância, mas não encontra nessa chegada reconhecimento com o ser do “presente”, apesar da semelhança física. Também não há nostalgia, o personagem mostra-se resignado. De certo modo, existe uma consciência de que aquele tempo era mais simples e leve, sem o tormento dos “pensamentos”. A utilização da imagem que seria originariamente fixa – o portrait, em uma disposição que se apropria do movimento, se confundindo com o vídeo, mas sem perder de vista a relação estabelecida em cena com o atuante, performer/ator – convida o espectador a entrar nesse universo metonímico e paradoxal. Nele, a imagem da criança em sua totalidade de vida contrasta com o homem atual e sua total inoperância ou incapacidade de reagir à vida, onde a única ação possível – e fatal – seria pensar. É uma presença que marca uma profunda ausência, no caso do portrait onde ele se vê criança. Perdeu-se a ingenuidade, a capacidade de viver o presente. A força motriz da ação atual é o pensamento. Cabe aqui esta reflexão poética sobre a criança e o olhar: É estranho o nosso realismo. Quando a criança pequenina começa a aprender a brincar de esconde-esconde rimos porque fecha os olhos, certa de que, ao fazê-lo, os outros deixam de vê-la porque ela deixou de vê-los. Fechando os olhos, porém, ela exprime nossa crença ancestral de que a visão depende de nós, muito mais do que dependeria das coisas. Subjetivismo que reiteramos quando, diante de algo horrendo, fechamos os olhos para torná-lo inexistente, atribuindo ao olhar um poder de irrealização que ressurge quando dizemos que o que os olhos não vêem o coração não sente (CHAUÍ, 1993, p.33-34).

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Em outra perspectiva, vem à tona a relação entre atuante e interatividade na construção da imagem cênico-digital. O uso adequado da tecnologia se torna primordial na qualidade artística, como bem coloca, em texto teórico anterior ao espetáculo, o diretor Daniel Belquer, ao discutir a abordagem de sensores no processo criativo do ator. Se a tecnologia é simplesmente colocada em cena, sem a devida acomodação estrutural para comportá-la, a encenação geralmente “verga-se” sob seu peso e o que se vê é a demonstração do aparato técnico à frente do que se pretende exibir artisticamente. Por isso, é preciso uma escuta e um olhar atentos e sobretudo domínio das ferramentas para que essas possam atuar poeticamente em conjunção com o espetáculo. Além disso, o que se quer discutir aqui é a possibilidade do atuador ganhar flexibilidade no uso das ferramentas tecnológicas. E aí entra a questão dos sensores (BELQUER, 2010, p.2).

Nessa colaboração com o digital para a criação de imagens, outras questões foram fundamentais e devem ser citadas aqui, como o figurino criado por Cássio Brasil, na cor preta e que se torna superfície de projeção por meio do videomapping interativo. O cenário de Doris Rollemberg traz o conceito de “imersividade”, concebido para o funcionamento do digital (e do imaginário) nessa tessitura cênica. A iluminação, assinada por João Marcelo Pallottino e Ricardo Grings, mantém-se integrada ao vídeo, à música e ao corpo do ator. Hans-Thies Lehmann, quando aborda o que especifica como teatro midiático, uma das várias possibilidades das formas dramáticas, considera a imagem mais potente e fascinante ao espectador. Essa atração mágica proporcionada pela imagem se dá em virtude do extravio da vida real. À aparência da imagem se prende algo de libertação que dá prazer ao olhar. 75

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“A imagem liberta o desejo das penosas ‘outras circunstâncias’ dos corpos reais, elevando-os a sonhos” (LEHMANN, 2007, p.397). Por outro lado, as imagens midiáticas assumem, em primeira e última instância, uma função de representação, pois oferecem a sensação de estar a caminho de algo, mas em cada instante, ocorrem saciedade e preenchimento pela imagem. Destaquei aqui o – portrait fotográfico, que integra essas categorias especificadas: linguagem e dispositivo, mais no intuito de mostrar a complexidade dessa poética da cena que esgotar a análise. Outras ferramentas usadas com função semelhante de acolhimento do digital foram: vídeo, projeção, cenário-tela, figurino (neutro), ator/performer e a fotografia. Percebam que as imagens técnicas (fixas ou em movimento), as imagens interativas passaram por processos de mediações para então se tornarem estéticas, ou seja, neste caso, imagens cênico-digitais.

BIBLIOGRAFIA BASTOS, Maria Teresa Ferreira. Uma investigação na intimidade do portrait fotográfico. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2007. BELQUER, Daniel. “Descontrole, sensores e o atuador interativo”. In: GT Territórios e Fronteiras – Associação Brasileira de Pós-Graduação e Pesquisa em Artes Cênicas (ABRACE). Anais do VI Congresso, 2010. CHAUÍ, Marilena. “Janela da alma, espelho do mundo”. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp.31-63. CAPELOA GIL, Isabel. “O que é a literacia visual ou o estranho caso do coelho-pato” In: Literacia visual: estudos sobre a inquietude das imagens. Lisboa: Edições 70, 2011, pp.11-30. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático.Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007. PESSOA, Fernando. Fausto: tragédia subjetiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. POMMIER, Édouard. Théories du portrait: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Gallimard, 1998.

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A dança de João Cabral e a poesia de Deborah Colker: imagens do Cão sem plumas Felipe Valentim*

Esta breve reflexão toma como objeto de análise a releitura do poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, pela coreógrafa Deborah Colker, para o espetáculo de mesmo título, estreado em 2017. Nossa atenção recai sobre as imagens traduzidas pelos corpos dançantes e os diálogos estabelecidos por eles com os demais recursos cênicos. Aqui, o encontro entre dança e poesia é lido a partir dos relatos dos diretores Deborah Colker e Cláudio Assis, além das reflexões que cercam as questões poéticas e filosóficas que perpassam toda a temática do poema e da composição coreográfica. Palavras-chave: coreografia – Cão sem plumas – Deborah Colker

** Aluno do doutorado em Literatura Comparada do PPGL-UERJ e da graduação em Direção Teatral da ECO-UFRJ.

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A dança de João Cabral e a poesia de Deborah Colker: imagens do Cão sem plumas

O Capibaribe atravessa os versos do poema Cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, assim como também corta a cidade do Recife. Sobre o rio, navegam as narrativas da cidade, os imaginários e, também, gente e lixo. Os versos cabralinos denunciam que aquele rio apenas “sabia dos caranguejos / de lodo e ferrugem. / Sabia da lama / como de uma mucosa”.1 É um rio que se abre “[...] em flores / pobres e negras / como negros. / Abre-se numa flora / suja e mais mendiga / como são os mendigos negros. / Abre-se em mangues / de folhas duras e crespos / como um negro”. É a partir dos versos cabralinos que a coreógrafa Deborah Colker promove um encontro entre poesia, dança e cinema. Na sua releitura de Cão sem plumas, as fronteiras entre as linguagens artísticas se encontram e se misturam: o híbrido busca a tradução dos rastros de significantes deixados pelos significados de cada palavra posta por João Cabral na arquitetura poética. Deborah convida a poesia à dança. O jogo se estabelece em um diálogo fraterno, pois “a poesia é irmã da dança"2, alerta a coreógrafa. Assim, o encontro tenciona explicitar uma urgente denúncia: o descaso com a vida. No programa do espetáculo, a coreógrafa relata: “[...] é um espetáculo sobre coisas inconcebíveis, que não deveriam ser permitidas. É contra a ignorância humana. Destruímos a natureza, as crianças, tudo o que é cheio de vida” (COLKER, 2017, s/p). Além disso, ela de1

O poema referido nesta análise está disponível na íntegra no endereço apresentado abaixo. Não existe paginação, o que nos impossibilita a completa referência daquele neste trabalho. O poema virtualmente disponibilizado foi publicado na antologia Poesias completas (1940-1965), José Olympio, 1979. http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet001.htm. Acessado em 12/08/2017.

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Em reportagem de Nahima Maciel em 12/08/2017 para o Correio Braziliense. Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversaoe-arte/2017/08/12/interna_diversao_arte,617098/deborah-colker-traz-caosem-plumas-a-brasilia.shtml. Acessado em 14/08/2017.

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clara: “não pretendi fazer Cão sem plumas político, mas acaba sendo, por causa do conteúdo do poema e das imagens do filme” (id., ibid.). A luz sobre a lama em cena revela o chão povoado: conta-se a história do homem pelo chão que ele pisa, pela lama que reveste sua pele, pelo rio que o atravessa. Nos versos de João Cabral, a fluidez das águas é desenhada pelo jogo de palavras que humaniza o rio e animaliza o homem ribeirinho às margens dele; na coreografia de Colker, o homem-animal dança o rio e suas margens, dança a falta e o excesso, veiculando, no corpo, a crueza e a violência dos versos. Nos movimentos da dança, a poesia ganha carne: no palco e no filme, as palavras-imagens arquitetam a intermitência da composição cabralina. Tem-se o movimento ambicionado pelo jogo poético e também o intervalo que confere, no poema, toda a carga semântica que marca a presença e a ausência de um real espesso e vivente. “O que vive é espesso / como um cão, um homem, / como aquele rio”. A realidade espessa, crua e violenta cerca o tom imagético das linguagens poéticas aqui trabalhadas. O jogo vocabular do poeta encontra afinidades com a composição cênica da coreógrafa e a imagem em movimento do cinegrafista. Os arranjos e arquiteturas compõem imagens que impactam pela beleza da manipulação artística e pela violência da precariedade da vida. Podem-se trazer ao diálogo as reflexões apresentadas pela pesquisadora Marisa Flórido César (2014), em Nós, o outro e o distante, tomando-se por destaque o complexo jogo de relações que integram a imagem, seja pela ordem do que é visível ou invisível. Combate-se a violência no visível na construção do olhar pela palavra, na encarnação de um desejo de ver que jamais é satisfeito. O poder da imagem é aquele da palavra, um poder ambivalente

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A dança de João Cabral e a poesia de Deborah Colker: imagens do Cão sem plumas

e complexo. Entre a saturação das imagens e a centralização dos discursos, é preciso lutar contra a redução das imagens, abrindo-as à palavra e – dubiamente – fazendo-as resistir à palavra, preservando seus sentidos sempre abertos (CESAR, 2014, p. 246).

O cineasta Cláudio Assis também assina, junto com Colker, o registro em vídeo projetado durante o espetáculo. Parte do material projetado foi coletada durante uma das etapas do processo, que incluiu uma residência de 24 dias, durante o mês de novembro de 2016, em Pernambuco. Esta etapa proporcionou intercâmbio com os moradores da região e uma maior vivência pela geografia desenhada nos versos de João Cabral. O percurso ocorreu pelos pontos: Brejo da Madre de Deus, Belo Jardim, Fazenda Nova, Limoeiro e Recife3, sendo registrado por Cláudio e sua equipe e, depois, apresentados em preto e branco durante o espetáculo. Aos artistas, interessavam o que estava às margens do rio4. A imersão dos dançarinos e da equipe pelo percurso do rio revirou toda a estrutura do espetáculo, como se toda a trajetória de um rio tivesse mudado todo um percurso pré-traçado. À equipe foi permitido experienciar a invisibilidade tornada visível nos versos de João Cabral. Viver e “encarnar” as imagens postas no jogo poético permitiram que a equipe pesquisadora não confundisse o que foi dado a ver com aquilo que fosse desejado ver, para falar como César (2014). Ou seja, artistas se colocaram como espectadores do processo para também construir um lugar no extracampo da palavra. 3

Em entrevista ao Estúdio i, da Globo News. Disponível em http://g1.globo. com/globo-news/estudio-i/videos/v/novo-espetaculo-de-deborah-colkerfoi-inspirado-na-obra-de-joao-cabral-de-melo-neto/6039854/ Acessado em 14/08/2017.

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Em entrevista à Folha de Pernambuco. Disponível em https://www.youtube. com/watch?v=X-CxOIohrig Acessado em 14/08/2017.

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As imagens projetadas compuseram grande parte da cenografia. No programa do espetáculo, Gringo Cardia, que assina a cenografia e a direção de arte, afirma que o principal desafio foi contribuir para que as imagens projetadas invadissem o palco para estabelecer diálogos com a coreografia apresentada. Assim, registros de um percurso que vai da nascente do rio, passando pelo agreste quase sertão (de chão craquelado) até chegar à cidade comentam e “dançam” a coreografia dos corpos bailarinos. As fronteiras entre palco e tela são confundidas, borradas, indefinidas. As projeções que acompanham as danças, por vezes, nos despertam a mesma sensação do “eu” poético apresentado por Cabral: existe a descrição daquele que sobrevoa a geografia do Capibaribe, coletando as imagens para agrupá-las, segundo as sensações. Desta forma, o movimento é operado, tanto nas imagens esboçadas pelos versos quanto nas imagens capturadas pela equipe de filmagem, através da justaposição de acontecimentos, em sequência; todos modificadores de um estado estático (e extático). Maria de Fátima Gonçalves Lima avalia a estrutura apresentada pela composição cabralina: O eu poético, ao descrever o rio, apresenta imagens como se estivesse de posse de uma lente ou de um instrumento óptico voltado para o objeto da observação. Nessas imagens, as formas são oferecidas cinematograficamente, uma vez que a capacidade da informação visual é muito mais ampla do que aquelas transmitidas ou assimiladas pelos outros sentidos (2012, p. 27).

Cabral, Colker e Assis atestam que dançar o Capibaribe é se permitir sujar pelas margens: cena e poesia não se encontram apenas na arquitetura do jogo sígnico, mas no processo de descoberta do homem; ou do rio que atravessa a sua existência. Trata-se de um homem de sangue espesso, posto em 81

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A dança de João Cabral e a poesia de Deborah Colker: imagens do Cão sem plumas

cena numa estética da lama, a lama que é a sua pele; a marca de uma pertença reiterada pela pintura dos corpos na cena e no filme, pela viscosidade dos mangues e pelos figurinos de cores terrosas. Como todo real / é espesso. /Aquele rio / é espesso e real. / Como uma maçã / é espessa. / Como um cachorro / é mais espesso que uma maçã. / Como é mais espesso / o sangue do cachorro / do que o próprio cachorro. / Como é mais espesso / um homem / do que o sangue de um cachorro. / Como é muito mais espesso / o sangue de um homem / do que o sonho de um homem.

É o homem de sonho pouco espesso que habita aquelas margens lamacentas evocadas por João Cabral. O mesmo homem atravessado por um rio descrito pelo recurso imagético que surge desesperadamente contra o silêncio que nos invade em cada momento que tentamos exprimir a terrível experiência que nos rodeia (PAZ, 1971). É o sonho também fornecedor da matéria artística; o elemento inspirador dos caminhos de criação do rio cenicamente apresentado pelo espetáculo de dança da companhia de Colker. A diversidade de ritmos integra marcantes composições que ora nos remetem ao mangue beat, ora ao frevo, sempre tendo outras misturas adicionadas. A residência artística, realizada em novembro de 2016, possibilitou a expansão da potência lírica da criação a partir de encontros com o maracatu, com o cavalo-marinho, com o caboclinho, com o coco, além dos movimentos inspirados pelas danças africanas e indígenas, nos conta Deborah.5

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Em entrevista à Folha de Pernambuco. Disponível em https://www.youtube. com/watch?v=X-CxOIohrig Acessado em 14/08/2017.

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A equipe musical recebe a direção de Jorge dü Peixe e de Berna Ceppas, tendo a participação do poeta e cantor Lirinha, responsável por cantar e declamar alguns versos dentro das criações melódicas de dü Peixe. A música assume seu papel na transposição de linguagens: o percurso do rio; o rio espesso de fluidez incompleta, “[...] a fluidez das águas do discurso poético conduz o mundo real para uma ponderação sobre as vicissitudes causadas pelos pedregosos caminhos construídos pela própria desumanidade” (LIMA, 2012, p. 38). E João Cabral afirma que: Na paisagem do rio / difícil é saber / onde começa o rio; / onde a lama / começa do rio; / onde a terra / começa da lama; / onde o homem, / onde a pele / começa da lama; / onde começa o homem /naquele homem.

É na paisagem do rio que se inscrevem os aspectos decadentes não só da própria natureza, mas também do sistema social. Os versos de Cabral apontam para a não-distinção entre os elementos “rio”, “homem” e “lama”; tanto o “homem” quanto o “Capibaribe” equivalem ao “cão sem plumas” descrito por Cabral e que intitula a composição poética. Partindo de um homem animalizado pelo poeta nos versos, Colker nos propõe a criação de bichos-homens a partir dos movimentos, seja pela coreografia dos homens-caranguejos, em movimentação conjunta de tronco curvado e com os braços meio tortos, na terceira cena; seja pelo movimento de três bailarinas-garças que, representam a beleza da região e a elite que se nutre do Capibaribe, na sétima cena. Fato é que toda movimentação do espetáculo nos remete ao “devir-animal” apresentado nas leituras deleuzianas: é um devir que não se contenta em passar pela semelhança, para o qual a semelhança seria um obstáculo ou uma parada (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 12). 83

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Não passa pela semelhança porque o imitar limita o devir ou o impede. Na obra de Deborah Colker, o imitar o animal poderia até ser dado como estímulo para fácil inserção na zona de convergência, mas a beleza e a precisão de todos os movimentos não seriam possíveis se cada artista não estivesse engajado na descoberta de um devir-animal. Em cena, tem-se um processo de desterritorialização, que vem do exterior e arrasta a forma-homem. O movimento conjunto dos bailarinos, no palco, compondo um só corpo, nos evidencia a multiplicidade característica do devir-animal: “[...] estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma multiplicidade” (DELEUZE & GUATTARI, op. cit., p.19-20). Os pensadores nos falam de animais que se organizam em grupos e bandos. A união é o indicativo de uma propagação naturalmente organizada. Trata-se de uma lógica conjunta, marcada pela coletividade e por toda uma sutileza que integra o sistema comunicativo: pensar as multiplicidades de um devir-animal, compondo-se com o ambiente e as relações que se podem estabelecer naquele mesmo ambiente. Os movimentos do homem-bicho coreografados por Colker apelam a este poder de resistência: resistir pela multiplicidade, aprendendo a pensá-la. A filosofia nos alerta que o devir-animal expressa um fascínio pelo múltiplo. Por isso, os devires, no espetáculo e no poema, são também, entre outros, devir-rio, por exemplo. Na cena oito, o espetáculo faz alusão a uma movimentação da cidade, mas um grande caranguejo ainda aparece e resiste. Ele não quer largar seu habitat. Assim como nos versos de Cabral, a destruição da natureza e, consequentemente, da humanidade ganham contornos na coreografia de Colker, mas a artista salienta a ideia de um grupo que ressignifica uma aparente decadência pela arte do movimento. A arte de coreografar re84

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traça uma aliança que constitui o devir de que nos falam Deleuze e Guattari (1997). Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são nem os de família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiriam antes grupos minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos, ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos (DELEUZE & GUATTARI, op. cit., p. 30).

Enfim, tem-se um devir-animal que possibilita a criação de rizomas e, em movimentos contínuos, o fenômeno ocupa, invade e ganha corpos no intuito de constituir territórios. A dança das palavras de Cabral denotam a natureza disseminada da linguagem poética; a poesia de corpos coreografados por Colker, infinitas possibilidades de significar e ressignificar as vidas atravessadas pelo Capibaribe. A cena se abre para o que devém; o devir-animal indica a luta que se trava pelas bordas, ou pelas margens do Capibaribe. À guisa de conclusão, reiteramos o diálogo entre dança e poesia. O cruzamento de fronteiras proporcionado pela obra de Colker nos evidencia a beleza de uma arquitetura que se refaz nos instantes da movimentação, colocando a linguagem poética além de qualquer apreensão. Cabe-nos, aqui, levantar caminhos e possibilidades dentro desta rede de natureza disseminada que compõe poesia e dança. Poesia é corpo que se desfaz no efêmero dos instantes, como também é um corpo que se refaz na fluidez de um tempo-outro. Em cena, tem-se o movimento dos corpos atravessados por um rio. Um rio que também é corpo. Um rio que sabia daqueles homens sem plumas.

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BIBLIOGRAFIA CÉSAR, Marisa Flórido. Nós, o outro, o distante na arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014. CIA DEBORAH COLKER. Cão sem plumas. Adaptação e direção: Deborah Colker. Rio de Janeiro: Petrobras, 2017 (programa do espetáculo). DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997, v.4. LIMA, Maria de Fátima Gonçalves. Contemplação e poesia em “O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto. In: Gláuks, 2012, no 2, v. 12, pp. 27-41. PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Organização e revisão de Celso e Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1971.

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Aspectos do universo artaudiano e seu impacto no teatro Anna Duran*

O presente trabalho tem por objetivo refletir os impactos do pensamento de Antonin Artaud para a cena teatral contemporânea. O percurso aqui traçado se inicia com a mudança de paradigma nos campos social e cultural que cerca a primeira metade do século XX. Em seguida, uma breve análise sobre os elementos pontuais presentes no pensamento de Artaud é esboçada, tais como o símbolo, a metafísica e a crueldade. A conclusão nos coloca a vontade de potência nietzschiana como um projeto estético do artista. Palavras-chave: Artaud – teatro da crueldade – estética artaudiana

* Graduanda em Direção Teatral na ECO-UFRJ. Este texto foi apresentado como trabalho final, realizado pela estudante para a disciplina Poéticas do Espetáculo II, ministrada pela professora Carmem Gadelha, em 2016.2.

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Aspectos do universo artaudiano e seu impacto no teatro

Na primeira metade do século XX, a aceleração do tempo era um fator ativo nas relações macropolíticas tanto quanto no campo da experiência micropolítica. No terreno instável de uma Europa cujos fios diplomáticos já se mostravam tensionados ao seu limite, uma nova subjetividade se formava, já muito distinta daquela apresentada pelo impacto do início da Revolução Industrial, no fim do século anterior. Henri Lefebvre discorre sobre esse redimensionamento da experiência temporal e espacial: Por volta de 1910, um certo espaço foi destruído. Foi o espaço do senso comum, do conhecimento, da prática social, do poder político, um espaço até então consagrado no discurso cotidiano, assim como no pensamento abstrato, como ambiente e canal de comunicação... O espaço euclidiano e perspectivista desapareceu como sistema de referência, juntamente com antigos locais comuns, como “cidade”, história, paternidade, sistema tonal na música, moral tradicional e assim por diante. Este foi um momento verdadeiramente crucial (LEFEBVRE apud HARVEY, 1990, p. 266, minha tradução).

A reorganização espacial e especialização das funções como métodos de otimização e subsequente aceleração temporal na linha de produção fordista; a elaboração da teoria da relatividade por Einstein; a internacionalização de ocorrências para além das fronteiras físicas em que se davam, através do alcance do rádio; e a atualização dos meios de comunicação impressos, facilitada pela velocidade na transmissão de notícias – são exemplos de um modo inédito de interrelação espaço-temporal. A nova velocidade inextrincável e cotidiana dessa sociedade redimensionou o tempo-espaço e trouxe novas questões à tona em todos os campos. Na arte, moldava-se uma subjetividade atenta à centralidade do corpo como aporte do sensível, formulador de sentidos e 88

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produtor de signos, criadora e criatura de seu registro cultural. É desse entendimento que surgem encenadores cujas proposições estéticas firmavam um compromisso tão radical com o teatro do seu próprio tempo, que marcaram a arte para além de suas próprias obras, de algum modo fundando novamente o ofício através de seus modos de operar e conceber a cena. No transcorrer da disciplina Poéticas do Espetáculo II, fomos apresentados a artistas como Adolphe Appia, Edward Gordon Craig, Antonin Artaud e à formação de coletivos fundamentais na história do teatro brasileiro, como o Teatro Experimental do Negro, o Teatro do Estudante do Brasil e o Teatro Universitário. Diante deste espectro de criadores cujo ponto comum era a busca por uma teatralidade potente e capaz de responder com vigor às questões de seu tempo, o presente trabalho se dedica a apontar aspectos do universo artaudiano e seu impacto no Teatro. O símbolo em Artaud Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades. Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heróica e difícil (ARTAUD, 1999, p. 24).

Artaud buscava uma expressão cênica capaz de ultrapassar as limitações da palavra, da produção de sentido arregimentada pelos acordos da língua comum. Para isso, investia na pesquisa física de produção imagética através de figuras e símbolos-tipo, os quais agiriam “como se fossem pausas, sinais de 89

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suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas (ARTAUD, 1999, p. 23). É interessante observar que, de alguma forma, a busca artaudiana quanto ao símbolo-tipo e à força hieroglífica de apresentação do corpo são vetores improváveis na rede histórica da continuidade “quase nunca” linear do teatro, tendo em vista a busca de Stanislavski por uma psicofísica ou gestualidade que operasse máxima teatralidade na cena. Contidos em ambições estéticas tão divergentes, ambos foram fundamentais em suas formas de reaparição do teatro, com grande cuidado ao signo; Stanislavski buscava no real a inspiração e Artaud, como Appia e Craig, sentia-se irremediavelmente atraído pelo plano das sombras, do Sonho, da Morte, do Não-Ser, como caminho de apresentação das potências humanas. Entretanto, apesar de investir notavelmente no processo de produção simbólica pelo corpo do ator, sua pesquisa de distanciamento do sentido da palavra se estendia a tudo o que ocupa a cena, em tudo aquilo que pode se manifestar e exprimir materialmente numa cena, e que se dirige antes de mais nada aos sentidos em vez de se dirigir em primeiro lugar ao espírito, como a linguagem da palavra (ARTAUD, op.cit., p. 37).

Operação política na arte de Artaud Estamos fartos de sentimentos decorativos e inúteis, de atividades sem objetivo, unicamente devotadas ao agradável e ao pitoresco; queremos um teatro que aja, mas justamente num plano a ser definido. Precisamos de uma ação verdadeira, mas sem consequência prática. Não é no plano social que a ação do teatro se desenvolve. E menos ainda no plano moral e psicológico (ARTAUD, op.cit., p. 135).

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No entendimento de Artaud, o teatro age sobre os sentidos e somente no exercício pleno da sua potência estética pode, de modo genuíno, reverberar no mundo. O Teatro da Crueldade tanto recusa a condição de serviçal da sua própria função política, pedagógica ou moralizante, quanto nega a fetichização da catarse e a fruição meramente visual ou narrativa da cena. Ao mesmo tempo, justamente por ambicionar uma fidelidade à experiência integral do acontecimento cênico, potencializa suas ramificações éticas e políticas. O corpo dos que tomam parte na cena, espectadores ou atores, uma vez tocado pela experiência estética da obra de arte, é definitivamente modificado; e um novo corpo, renascido do encontro e do espelhamento, é capaz de modificar o mundo porque ele próprio já é incapaz de receber e ser recebido pela sociedade como anteriormente. Neste sentido também age a busca de Artaud pelo resgate do Mito como erupção discursiva de forças sociais de grandeza imensurável reapresentadas através de uma lógica arquetípica, dando vazão, portanto, a uma espécie de zona coletiva de sombra, nossos fantasmas comuns enquanto sociedade, os quais, na imanência do processo simbólico da cena, são reelaborados por todos os envolvidos na cena. Metafísica no Teatro [...] uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de “nada” como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado; nada de infinitamente extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que em alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por toda parte; como jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo [...] (NIETZSCHE, 1978, p. 397).

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Com frequência, os autores (Nietzsche e Artaud) usam termos associados à ideia de transcêndência, gerando interpretações controversas. Sua abordagem da metafísica não é imune a isso. É fundamental observar que na sociedade moderna relações de hierarquia divinas já haviam sido reestruturadas. Se outrora a centralidade de Deus produzia a cisão entre alma e corpo, sendo o último um mero recipiente do conteúdo imortal da primeira, na Modernidade, a existência do Homem enquanto modelo e medida do mundo produz a cisão entre mente e corpo, atribuindo à faculdade intelectual essa função hierarquicamente superior. Em ambas as abordagens, o corpo se confunde com a carne e se apresenta como matéria-suporte de algo maior. Parece-me que o teatro de Artaud aponta adiante, na medida em que exige um corpo integrado com seus sentidos e sentires, capaz de fabricar símbolos e explodir em significados. O corpo apresenta-se como corpo porque é, antes de qualquer coisa, linguagem. Desta forma, para manter-se vivo, deve operar a representação sempre de forma a ser ele próprio criador e criação de uma linguagem desprendida de códigos previamente estabelecidos, corpo que se faça símbolo para evocar e assim invocar, presentificar forças “sobre-humanas”, ou ainda, transumanas. Assim colocada, a questão do teatro deve despertar a atenção geral, ficando subentendido que o teatro, por seu lado físico, e por exigir a expressão no espaço, de fato a única real, permite que os meios mágicos da arte e da palavra se exerçam organicamente e em sua totalidade como exorcismos renovados. De tudo isso, conclui-se que não serão devolvidos ao teatro seus poderes específicos de ação antes de lhe ser devolvida sua linguagem (ARTAUD, op.cit., p. 101, grifos do autor).

Na perspectiva de Artaud, portanto, a devolução do teatro à sua própria linguagem passava por “uma metafísica da 92

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palavra, do gesto, da expressão, com vistas a tirá-lo de sua estagnação psicológica e humana” (ARTAUD, op. cit., p. 102). A metafísica a que se refere o encenador é da ordem da busca imanente por uma linguagem a qual, na concretude dos corpos e objetos multiplicadores de signos, seja capaz de acessar afetos que transbordam qualquer suporte material, habitando e constituindo o sensível com suas fantasmagorias inegáveis. Ainda sobre o assunto, Artaud explica: Essas ideias, que se referem à Criação, ao Devir, ao Caos, e que são todas de ordem cósmica, fornecem uma primeira noção de um domínio do qual o teatro se desacostumou totalmente. Elas podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos. A questão não é fazer aparecer em cena, diretamente, ideias metafísicas, mas criar espécies de tentações, de atmosferas propícias em torno dessas ideias. E o humor com sua anarquia, a poesia com seu simbolismo e suas imagens fornecem como que uma primeira noção dos meios para canalizar a tentação dessas idéias (op.cit, p. 102).

O Teatro da Crueldade ... Só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados. (Antonin Artaud, O teatro e seu duplo)

Abro a seção referente ao Teatro da Crueldade com a epígrafe acima porque me interessa combater a muito difundida ideia de que o projeto estético de Artaud teria fracassado. Em toda sua ambição quase utópica, o Teatro da Crueldade foi uma manifestação de poética cênica concreta e potente tanto quanto qualquer outra, porque o teatro opera com os seus pró93

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prios limites, cria a partir das suas precariedades, do seu impossível. É inclusive nos limites entre as coisas, na zona do risco – da linha que separa e põe em jogo – que o Teatro da Crueldade se faz possível enquanto poética: [...] o teatro é ato e emanação perpétua, que nele nada existe de imóvel, que o identifico com um ato verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico. E procuro tecnicamente e praticamente todos os meios de aproximar o teatro da ideia superior, talvez excessiva, mas de qualquer modo viva e violenta, que faço dele (ARTAUD, op.cit., p. 134).

Outra concepção equivocada, contra a qual o próprio Artaud tivera que lutar em vida, é a interpretação pueril de seu conceito de crueldade: [...] não se trata de modo algum da crueldade vício, da crueldade erupção de apetites perversos e que se expressam através de gestos sangrentos, como excrescências doentias numa carne já contaminada; mas, pelo contrário, de um sentimento desprendido e puro, um verdadeiro movimento de espírito, que seria calcado sobre o gesto da própria vida; e na ideia de que a vida, metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a espessura, o adensamento e a matéria, admite, por consequência direta, o mal e tudo o que é inerente ao mal, ao espaço, à extensão e à matéria (ARTAUD, op.cit., p. 133).

Na acepção artaudiana, crueldade é, portanto, como que um sinônimo da própria vida, das pulsões duais, do diálogo entre potência e presença, da volição que movimenta os corpos. É a crueza, a busca por um zero absoluto, por um teatro que apresentasse no lugar de representar, uma cena que rompesse espelhamentos, uma linguagem além e aquém da própria linguagem. E 94

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se, por um lado, a crueldade artaudiana é da ordem do inviável, por outro, foi essa impossibilidade mesma que criou vias cênicas, caminhos para o teatro seguir sendo teatro, ainda que nunca mais o mesmo após Artaud. Essa crueldade é simultaneamente um apontamento estético, porque norteia o campo narrativo, imagético, sonoro como um todo sensível; ético, porque trata o tempo todo de um rigor passional intrínseco à sua execução e um compromisso vital-mortal com a criação; e político, porque acessa todo um arcabouço cultural até então subexplorado para dar a ver forças de natureza coletiva, transpessoal e mítica. Conclusão Quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meia-noite? – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso! (NIETZSCHE, op.cit., p. 397).

Ninguém será artaudiano depois de Artaud, bem como ninguém poderá deixar de sê-lo. É uma afirmação feita durante o curso que se reafirma, a meu ver, neste trabalho. O projeto estético do artista é a própria vontade de potência (ou poder, conforme tradução) de que trata Nietzsche, é uma fundação de mundo no exercício pleno do teatro, cheio de vazios polissêmicos. De modo muito pessoal, a devoção de Artaud pela cena e pela arte como meio de tudo o que se furta à mediação me afeta quase como um paradigma ético. A relação com o teatro é tão precária quanto sua experiência nos fez ver e demanda esforços igualmente passionais. É preciso que a cena siga sendo reinventada como se o produto da nossa negligência fosse não a morte do Teatro, mas a nossa própria. 95

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BIBLIOGRAFIA ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999. HARVEY, David. The condition of postmodernity. Oxford: Blackwell Publishers, 1990. NIETZSCHE, Friedrich. “O eterno retorno”. In: Nietzsche - Obras completas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Abril, 1978.

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O que é direção teatral? Com esta pergunta, a professora Alessandra Vannucci, que ministrou a disciplina Direção IV em 2017.1 no Curso de Direção Teatral, desafiou seus alunos a arriscarem conceitos e definições, a partir de impressões pessoais, com acolhida da intuição. Dentre as muitas respostas, seguem-se duas opiniões.

A direção aos olhos de Marcéu Pierrotti

É propor um jogo. E jogá-lo. Propor a partir de si. Do outro. Do entre. Desse vem e vai. Do que circunda. Do que nos move. Sempre percebi no ato teatral um caminho de compreensão da existência. Logo, uma forma de digerir a morte. Assim como a vida, o teatro é efêmero. Nasce e morre naquela noite. Vai renascer no outro dia e tornar a morrer. E o que resta é o que ficou do “entre”. Do que aquele momento significou e ressignificou a todos os presentes naquele presente. Isso torna o acontecimento teatral grande para mim. Potente. Cheio de potencial. Cheio de vida. Cheio de risco. Cheio de jogo. O vazio do palco está cheio de possibilidades. Cheio de possíveis escolhas. Escolha. Escolher como significar algo. Qual história quero/queremos contar? 97

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O que é direção teatral?

Sobre o que queremos refletir? O que é preciso aprender? Que forma isso tudo deve tomar? Tudo está em jogo. É preciso jogar. Apostar alto. Ir para o risco. Ir para o limite. E quando chegar na borda, sugiro não respeitá-la. É preciso transformar. Sempre é possível. Todo acontecimento está à espera de uma estética e de uma significação. Há pouco mais de um mês perdi meu pai. Subitamente. Não vou discorrer sobre dor pessoal: só dar a ver o ritual de velório/cremação e as possibilidades de significação. O ritual é uma cerimônia, tem um roteiro. Escolhas. Por padrões sociais, normalmente tudo se encaminha para dar bases à dor, à tristeza – palavras sofridas, música triste. Escolhas. Resolvi escolher diferente. Dirigir aquela cerimônia de outra forma. Meus irmãos escolheram uma bossa leve para tocar – O barquinho, que nosso pai tanto adorava. Eu falei metaforicamente sobre a viagem de um barco e seus aprendizados na jornada. Resolvemos falar da vida ao invés de focar na perda. Escolhas. Tudo isso para dizer que sempre é possível escolher. Ou melhor, é necessário. Estar aberto. Olhos atentos. Ouvidos aguçados. Para onde encaminhar isso que está acontecendo agora no palco? Como significar? 98

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Qual a imagem? Tudo é possível. Escolha. Escolha junto. Escolha.

A direção aos olhos de Fernanda Arrabal

A ideia da reunião de diversas artes no espaço teatral sempre me atraiu. Antes mesmo de conhecer o conceito de “obra de arte total” elaborado por Richard Wagner, segundo o qual “a mais alta obra de arte coletiva é o drama [...] presente em sua plenitude somente quando cada variedade artística [...] está presente nele” (apud DEDUQUE, 2009, p.3), eu já reconhecia no teatro a possibilidade de suprir grande parte da minha necessidade de produção artística. Enxergava ali um possível caminho no qual poderia ampliar o contato com todas as artes que, desde pequena, me encantavam, moviam e davam vazão às minhas inquietações. A apresentação do mundo através de uma arte coletiva sempre me pareceu encantadora. O processo de criação desta cena é o que mais me interessa. A partir daí precisei entender que lugar, dentro das inúmeras possíveis funções no palco, satisfaria o meu desejo de manter acesa a chama de cada paixão artística pela qual eu já tivesse passado. A atuação seria o caminho mais óbvio, porém, a minha atenção pendia mais para a construção, para os mecanismos que levam ao resultado de uma determinada produção. Imagino que a timidez tenha contribuído para me afastar da opção pela atuação. Entretanto, as poucas experiências que eu tive como atriz provaram que tal posição me coloca, sim, dentro do processo, mas, de certa for99

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O que é direção teatral?

ma, dentro demais para que seja possível ter noção de como se desenvolve aquela criação. O ator, em geral, reflete sobre a cena em fase posterior à sua atuação – só então ele consegue um distanciamento dela. Já para o diretor, esse distanciamento se dá em cada momento, anterior, concomitante e posterior ao processo, demandando reflexões contínuas. Percebi, então, que o processo possuía grande relevância no que eu procurava. Desde sua aparição em meados do século XIX, a figura do diretor sempre esteve atrelada à ideia de ponto de convergência e organização dos diversos elementos que formam a cena. Nas palavras de Jean-Jacques Roubine: o encenador é o gerador da unidade, da coesão interna e da dinâmica da realização cênica. É ele quem determina e mostra os laços que interligam cenários e personagens, objetos e discursos, luzes e gestos (1980, p. 41).

O teatro, assim como todas as artes, necessita se reinventar de tempos em tempos. Na minha opinião, em função disso, a direção ganha, também, novos significados ao longo dos anos. Com o surgimento do cinema, o realismo mimético perseguido na cena teatral tornou-se insatisfatório e foi preciso atualizar sua forma. A figura do encenador surge a partir de uma demanda de interpretação cênica dos textos: de uma especificidade da cena ou de uma visão específica e autoral, que determina a confecção do espetáculo. Com o surgimento de novas tecnologias, a encenação passa a abranger a iluminação e a interferência de efeitos cenográficos e audiovisuais. Ou seja, a direção se configura como orquestração de um coletivo de artistas, cada um com a sua função, garantindo a coesão de todas as partes no lugar único do palco. Nos dias de hoje, parece-me que, além de orquestrar os vários aspec100

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tos da construção do espetáculo, a direção tornou-se responsável pela harmonização da equipe. O atual contexto político impõe a criação de vínculos afetivos para fazermos teatro, e o diretor seria a figura fundamental na criação de uma atmosfera criativa. Sendo assim, verifica-se que a arte da direção é marcada por certa premeditação. É o diretor quem primeiro concebe o projeto, imagina como vai se passar a cena e articula modos de encaixar todas as engrenagens da máquina. É ele o primeiro espectador; são dele as primeiras reações; é ele quem entende o que pode ou não funcionar. A partir de um certo desconforto, que para Anne Bogart é “um parceiro do ato criativo” (2011, p.115), o diretor inicia o trabalho de pesquisa para esta concepção – pois considerar todas as possibilidades e potencialidades do espetáculo implica a tarefa de escolher, ou seja, acatar ou descartar ideias. A decisão é, portanto, atividade crucial na direção; um exercício de crueldade, já dizia Artaud. Porém, como afirma Anne Bogart, “esse ato violento é uma condição necessária para todos os artistas. A arte é violenta. Ser decidido é uma atitude violenta” (BOGART, 2011, p. 51). Ao optar por uma possibilidade, abandona-se um campo infinito de outras e é nesse sentido que se comete uma violência. E são justamente as restrições geradas por tais decisões do diretor que dão ao ator a liberdade interpretativa necessária para que surjam outras tantas variações. O campo da direção teatral é onde se dá a elaboração ética e estética da cena e onde se desenvolve uma metodologia específica para cada processo, com o objetivo de levantar um espetáculo. O diretor, treinado na arte da observação e movido por um desconforto, captura um mundo e transpõe esta apresentação de mundo para a cena, articulando as tecnologias do palco. Instiga e provoca o ator para fazer com que este sinta-se veículo de um afeto, de uma mensagem através 101

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de seu corpo e voz, abrindo assim um canal de comunicação com o público.

BIBLIOGRAFIA BOGART, Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. Tradução: Anna Viana. São Paulo: Martins Fontes, 2011. DUDEQUE, Norton. “O drama wagneriano e o papel de Adolphe Appia em suas transformações cênicas”. In: Revista Científica./FAP, Curitiba, v.4, no 1 p.1-16, jan./jun. 2009. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral: 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1990.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor Roberto Leher Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento Pró-Reitor de Graduação Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Leila Rodrigues da Silva Pró-Reitora de Extensão Maria Mello de Malta CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Decana Lilia Guimarães Pougy Vice-Decana Mônica Lima e Souza Coordenação de Integração Acadêmica de Graduação João Batista Ferreira Coordenação de Integração Acadêmica de Pós-Graduação Francisco Teixeira Portugal ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretor Amaury Fernandes Vice-Diretora Cristina Rego Monteiro da Luz Direção Adjunta de Graduação Chalini Torquato Barros Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC) Elizabeth Jacob Coordenação de Direção Teatral Jacyan Castilho

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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral Ano V, Número 4

“Este projeto foi financiado pelo 1º Edital - Apoio aos Grupos Artísticos de Representação Institucional - PROART/GARIN/UFRJ”

ISSN 2596-2485

4 Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro

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