ISSN 2596-2485
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.4, 2016
Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.4, 2016
Centro de Filosofia e Ciências Humana Escola de Comunicação
Rio de Janeiro 2016
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v.4, 2016 Editora Carmem Gadelha Revisão e editoração Felipe Valentim Produção editorial Dani Câmara [Bolsista Cultura II] Capa e diagramação Dani Câmara Orientação: Andréia Resende Supervisão geral de produção Érika Neves Corpo editorial (Professores da Direção Teatral) Adriana Schneider, Alessandra Vannucci, Andrea Stelzer, Carmem Gadelha, Daniel Marques, Eleonora Fabião, Gabriela Lírio, Guilherme Delgado, Jacyan Castilho, José Henrique Barbosa Moreira, Lauro Góes, Lívia Flores
Distribuição gratuita
C568 CICLORAMA - Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral. v.4, 2016 - . -- Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 2013 v. : il. Anual. Editora: Carmem Gadelha. ISSN 2596-2485 1. Artes cênicas - Periódicos. 2. Teatro - Produção e direção Periódicos. I. Gadelha, Carmem. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 792
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Editorial
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ABERTURAS
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Que possíveis a arte disponibiliza para nós? Maria Eduarda Magalhães
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Arte de vagão: trânsito de afetos Danielle Câmara
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Neogrotesco: O que há de novo no grotesco? Homero Ferreira Kaneko
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O corpo do atuante na rua: método Panidrom Mariah Valeiras Aguiar Miguel
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O processo de assitência de direção da ópera João e Maria Antonio Ventura e Daniel Salgado
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A pedagogia do palhaço Daniel Cintra
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Representação e tragicidade Ian Calvet Marynower
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Memória e tragicidade Henrique S. Bueno
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Wiewpoints no ensino médio: a técnica em cena. Camila Simonin
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PASSAGENS
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Por uma perspectiva política, histórica e social do trágico na contemporaneidade: considerações preliminares Felicio Dias
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BR-trans: autoficção, documentário e militânci Antonio Ventura
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Editorial
“Que possíveis a arte disponibiliza para nós?” é a pergunta-título que abre a sequência de artigos deste número de Ciclorama. A pertinência da indagação mede-se pelas acentuadas mudanças na vida e na arte contemporâneas; entre os “possíveis”, os aspectos de resistência política. O olhar crítico se entrelaça ao sensível para revelar perplexidades e sentimentos de urgência. A cena, no espaço da revista, volta a dividir-se em duas: “Aberturas” apresenta a reunião de trabalhos realizados em Iniciação Científica, apresentados no Seminário de Pesquisa da Direção Teatral (julho de 2016). “Passagens” abriga artigo de um mestrando da Faculdade de Letras da UERJ; acolhe também uma pequena resenha crítica apresentada a uma disciplina de Direção Teatral. Confirma-se, assim, vocação assumida nas edições anteriores: a abertura a diferenciadas propostas, tendo como eixo principal a divulgação da pesquisa. Temas os mais diversos (não poderia ser de outro modo) freqüentam sempre estas páginas, desde o Número “0”. Desta vez, a pergunta norteadora de um dos artigos parece abrir um leque de respostas variadas nos restantes. São percepções de espaço e tempo, dinâmicas de afastamento e aproximação implicadas no diálogo entre arte e vida. Os possíveis da arte nascem, como poderia dizer Richard Sennett, dos embates do corpo com a cidade – Carne e pedra. A arte se espalha pelo cotidiano e invade os vagões do trem; “criaturas” mutantes transitam nas ruas, saltando sobre os obs7
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táculos e abrindo fendas na política dominante de ocupação dos espaços. Traçam-se questões sobre o prefixo neo acrescido ao vocábulo “grotesco”, buscando-se ressignificações no âmbito da cultura midiática. A pergunta inicial, explícita, traz em suas entrelinhas uma segunda indagação, desta vez implícita: “quem somos nós?” Novamente, tanto as interrogações quanto possíveis respostas encontram-se espraiadas pelos artigos. Em um deles, sobre a arte da palhaçaria, a afirmação de que “todos são palhaços em potencial” retira os bufões das cadeias do senso comum para colocar em relevo aspectos de engajamento político e transgressão: potencialidade das máscaras. Especula-se, ainda, sobre as relações da ópera com o público infantil, no relato de uma experiência em curso na Escola de Música. O “quem somos nós?” alcança a tragicidade da vida e da cena; em trabalho dedicado à representação, aparece a relação possível entre Artaud e a dramaturgia de Pirandello: o primeiro tenta fazê-la desmoronar; o segundo a faz multiplicar-se: vai-e-vens que configuram percalços contemporâneos. De que matéria é feita a memória? – pergunta necessária à abordagem aqui empreendida para propor um entendimento de A gaivota, de Tchekov. Finalmente, fecha a primeira seção um relato de experiência de estudante de Direção Teatral no Colégio de Aplicação da UFRJ. Nestes tempos bicudos, que “passarão”, indagar é a via do encontro com o “eu passarinho” da assertiva de Quintana. Tenhamos todos leveza, aproveitando aprendizados e encantamentos: “o que a arte disponibiliza para nós”.
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VĂłs sois carne, eu sou vapor. Minha carne ĂŠ um suspiro. Carlos Drummond de Andrade
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— ABERTURAS
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Que possíveis a arte disponibiliza para nós? Maria Eduarda Magalhães*
A partir de uma tentativa de compreender a desfronteirização das linguagens no mundo pós-moderno, procura-se identificar a presença de um certo dionisismo e ligá-lo a uma possível receptividade de nossa cultura a aspectos do trágico. Investigam-se as intrincadas interfaces da tecnologia com a arte, tensionando a ideia de naturalidade do corpo humano. Apoiamo-nos em Donna Haraway, ao pensar em corpo ciborgue nos tempos atuais. Além disso, a obra de Stelarc e a leitura de Rogério da Costa são referências fundamentais para o presente estudo. Palavras-chave: ciborgue – arte – dionisismo.
*Orientação Carmem Gadelha. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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Que possíveis a arte disponibiliza para nós?
Que possíveis a arte disponibiliza para nós? Em tempos de excesso de informação, (re)organização de territórios de poder, perda dos limites corpo/matéria, a arte se destaca como lugar possível para a compreensão dos processos pós-modernos como receptivos à tragicidade. Deparo-me com a pergunta que dá nome ao presente artigo, procurando fazê-la circular afirmativamente, sem pessimismos sobre estes tempos já demasiadamente melancólicos. É preciso olhar para a arte como disparadora de linhas de fuga possíveis; um lugar de criação – coletiva – de mundos; de desintegração do “eu” individualizante e proliferação de individuações. Recuso a melancolia: há vida e paixão, neste e em todos os tempos. Priscilla Porto Nascimento apresenta uma bela análise sobre a pós-modernidade, a partir de David Harvey, Jean Baudrillard e Jean-François Lyotard. Este último localiza seus argumentos no contexto das novas tecnologias de comunicação e situa a ascensão do pensamento pós-moderno na passagem para uma sociedade pós-industrial baseada na informação (NASCIMENTO, 2007, p. 49).
Antonio Negri e Michael Hardt, falando das relações de poder imperiais que operam no mundo atual, abordam transições, em processos interligados:da soberania dos Estados-nação, no período imperialista, ao Império em rede; e as transições de modos de produção. Vivemos a passagem de uma economia industrial para a economia pós-industrial (também denominada economia da informação), cuja principal mudança envolve a comunicação entre produção e consumo. Para apreender essa transformação, Hardt e Negri definem “trabalho imaterial” a partir de três eixos: a informatização da produção, que transforma por inteiro o processo industrial; o trabalho interativo de re14
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solução de problemas e de produção simbólica; e, finalmente, a produção e manipulação de afetos (serviços de saúde, indústria do entretenimento). Negri & Hardt destacam que Na pós-modernização da economia global, a produção de riqueza tende cada vez mais ao que chamamos de produção biopolítica, a produção da própria vida social, na qual o econômico, o político e o cultural cada vez mais se sobrepõem e se completam um ao outro (NEGRI & HARDT, 2001, p. 53).
Ao mesmo tempo em que a economia e o poder se globalizam, formando redes imperiais que rompem (e convivem) com a lógica do Estado-Nação, também a vida torna-se produto de uma (bio)política globalizante. Assim se dá com a fronteira (moderna) entre a cultura e tantos outros seguimentos, que se entendiam “separados” e independentes. Aos olhos de Nietzsche (2007), nada mais dionisíaco do que uma fronteira rompendo-se e, em seguida, reconstituindo-se diferentemente. A desfronteirização que se vem configurando no mundo pós-industrial abre a possibilidade de uma atualização do trágico. O convívio da sociedade disciplinar e da sociedade de controle revela uma certa complexidade apolo-dionisíaca. Uma das faces destes atravessamentos manifesta-se na relação da arte com a tecnologia e a ciência. A obra de Stelarc, assim como sua produção literária, tensionam no mais alto grau esses limites. Em Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota, Stelarc, faz uma espécie de manifesto no qual coloca a necessidade da arte assumir a reivindicação de novas estratégias: “O corpo precisa ser reposicionado, do reino psíquico, do biológico para a ciberzona da interface e da extensão – dos limites genéticos para a extrusão eletrônica” (in DOMINGUES, 1997, p. 52). Stelarc performa tornando-se corpo-máquina, implanta uma prótese de orelha no braço, introduz um robô-câmera dentro do 15
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estômago. Em todas estas ações, a arte e o corpo são colocados à prova; corpo, aquele que vem sendo incessantemente questionado desde o advento da encenação teatral, na passagem do século XIX para o XX, por exemplo. Assim como Stelarc, a artista francesa Orlan produz intervenções extremas no próprio corpo, com cirurgias plásticas no rosto a partir de figuras clássicas da história da arte, esgarçando as representações do feminino. A própria cirurgia transforma-se em ação performática, com figurinos, leituras de poemas e figurações de dançarinos e artista circenses dentro da sala de operação. Há, nestes casos, um processo de “desnaturalização” do corpo, em que este é retirado de seu lugar sacralizado, natural, orgânico e reposicionado num lugar de pura transformação e movimento. As perguntas que circulam em meio a tais obras e artistas são: o que é natural? (questão biológica); o que é natureza? (questão filosófica); qual o limite arte/cultura? (questão estético-política). Chama atenção a potência do tornar-se outro nas artes contemporâneas, retirando o corpo de uma lógica normativa. Ao tensionar os limites do corpo, tensionam-se os limites da arte. Que possíveis a arte disponibiliza para nós, diante de um “deslimite” em relação ao corpo e à tecnologia? Adentramos o campo da antropologia, coma “desnaturalização” do corpo. No Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX, Donna Haraway (2000) aponta para as fusões que ocorrem entre o “organismo humano” e o “ciborguiano” – as máquinas –, através de próteses (exemplo mais óbvio), de aparelhos de tecnologia portátil (exemplo biopolítico), das roupas e toda sorte de ornamento da pele (exemplo cultural), do simples existir (exemplo ontológico). Isto é, o “orgânico” e o ciborguiano estão desfronteirizados, encontram-se no mesmo patamar, porque não existe “uma” natureza. E, principalmente, não existe o domínio do homem sobre a natureza. O Manifesto ciborgue propicia imaginar corpos libertos, livres da dominação e de qualquer tipo de coloniza16
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ção, tendo como norte a mulher estadunidense. Estemito narra a libertação da linguagem através do empoderamento da mulher ciborguiana, “contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz todo significado de forma perfeita – o dogma central do falocentrismo” (HARAWAY,idem, p. 88). O mito celebra o imperfeito: sem pecado original e sem salvação, sem Deus criador, nem distinções de gênero e raça. “Ele assume a ironia como natural”. (Idem, idem,p. 96). Haraway, assim como Stelarc, explicitam o ciborguismo como elogio ou urgência de alteridade. Donna Haraway e o Manifesto ciborgue dizem à antropologia que não há uma essência natural do homem; que a introdução das tecnologias cada vez maior na vida não é inédita, mas existente em todas as culturas. Isto nos diferencia de uma suposta natureza. Por um lado, há sentimento de continuidade; de outro, mudança. Stelarc parece afirmar a potência de não ser mais humano, enquanto Haraway assevera que isto também é ser humano. No lugar de “errar é humano”, ser ciborgue é humano. Haraway e Stelarc são afirmativos, diferentemente de Baudrillard. De acordo com este último, o “homem-máquina” ou “homem-telemático” é sem paixão. Explica-se: Para o sociólogo, o movimento glorioso da modernidade não levou a uma transmutação de todos os valores, conforme sonhou Nietzsche, mas a uma dispersão dos valores. [...] O artifício da supersaturação das imagens é suprir o vazio, a ausência de sentido para a existência. Baudrillard afirma que fabricamos imagens em que não há nada para ser visto, imagens sem vestígios, sem sombra. (NASCIMENTO, 2007, p.56).
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Que possíveis a arte disponibiliza para nós?
Na negação de potência, o esvaziamento é total; ou não há produção de nada, ou há apenas simulacro, o símbolo do vazio improdutivo. Pergunto: o que se pode criar a partir disto? Jean Baudrillard constata uma ultrapassagem sem precedentes. Já não somos nós mesmos. O estranhamento é tão profundo que duvidamos se ainda somos humanos. Máquinas interativas são programadas para manter comportamentos humanos. Mas talvez isto tudo seja uma extensão do humano, não uma ruptura. Rogério da Costa, em Do tecno-cosmos à tecno-arte, reivindica: Ora, mais profundamente, é o corpo do homem que parece ser reinvestido a cada inovação tecnológica. Entretanto, apesar disso se dar cotidianamente, os homens parecem arraigados a uma imagem de si mesmos em descompasso com essas mudanças (in DOMINGUES, 1997, p. 63).
O humano produz dobra sobre si. Procurar até onde podemos ser máquina reconduz ao que temos de humano. A perseguição do fora encontra o que está dentro. Rogério da Costa percebe a arte como território de criação e compreensão de novas subjetividades. Porque reúne elementos técnicos, humanos, digitais, ela é o lugar da troca por excelência. O humano está situado na “adjacência de focos de produção múltiplos, heterogêneos, não-humanos” (idem, idem, p. 64). Se não olharmos para estes focos em sua processualidade, estaremos fadados à paralisia, ao pânico. Segundo Costa, “É apenas a partir dessa heterogeneidade constitutiva, micro e macrocósmica, povoada de elementos técnicos, semióticos, energéticos, que a produção de si é pensável” (idem, ibidem). Quando se compreende o tecnocosmos não na separação do humano/não-humano, mas como campo de criação de humanidades, não-humanidades e subjetividades, ampliamos o 18
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olhar para uma série de possíveis que têm na arte um disparador. É na reunião de discursos que a ciência busca, muitas vezes, separar e no território da estética que se encontram o futuro e o presente das nossas relações com a técnica. A obra de arte é um vetor de agregação de meios, discursos, mídias etc., o que Costa chama de um sistema de trocas. Se há um vazio subjetivo produzido pelo capitalismo, se nos encontramos hoje cada vez mais envoltos na solidão gerada pela desertificação dos espaços de troca - reduzidos à relação de consumo e reivindicação trabalhista -, esse vazio só pode ser suprimido pela apropriação subjetiva e material do tecnocosmos (idem, p. 66). O caminho é a apropriação, a ocupação dos territórios tecnocosmológicos, biopolíticos e midiáticos pela arte, neste devir-outro do humano. E a arte é zona de múltiplos devires, capaz de captar todos os focos de produção. Fico com a visão alegre de Costa, aproprio-me do que há de potente em Baudrillard e transformo angústia em produção de linhas de fuga. Não se pode nomear os possíveis que a arte disponibiliza para nós, há uma infinidade deles. Enquanto houver resistência, troca, produção de novas subjetividades não encapsuladas pelo capitalismo homogeinizador, haverá mundos possíveis.
BIBLIOGRAFIA: COSTA, Rogério da. "Do tecnocosmos à tecnoarte". In: DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997. DELEUZE, Gilles. "Post-scriptum sobre as sociedades de controle". In DELEUZE. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. HARAWAY, Donna. "Manifesto Cyborg: ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX". In: SILVA, Tomás Tadeu da (org). Antopologia do ciborg. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
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Que possíveis a arte disponibiliza para nós?
HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Império. São Paulo: Record, 2001. _____. Multidão. São Paulo: Record,2005. NASCIMENTO, Priscilla Porto. A relação ética da arte na sociedade do espetáculo. Niterói: EdUFF, 2007. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. STELARC. "Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota". In DOMINGUES, Diana (org). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997.
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Arte de vagão: trânsito de afetos Danielle Câmara*
O artigo aqui apresentado surgiu da necessidade de refletir e teorizar sobre a prática artística vivenciada por mim, em espaços não convencionais da cidade do Rio de Janeiro. Para um recorte, foco nas intervenções em vagões do Metrô da cidade porque encontramos poucos registros sobre as práticas artísticas que acontecem nesse espaço específico. A meu ver, as reflexões sobre estas contribuem para ampliar as discussões sobre arte independente e formas de uso do transporte público no âmbito da cidade, do Estado do Rio de Janeiro e de outros lugares do Brasil. Palavras-chave: arte independente – Metrô – rua.
*Orientação: Eleonora Fabião.
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Arte de vagão: trânsito de afetos
Começo Desde 2013 – meu ano de ingresso no curso de graduação em Direção Teatral da UFRJ –, venho realizando intervenções/apresentações artísticas independentes, que misturam música, teatro e poesia em espaços não convencionais da cidade do Rio de Janeiro. Dificuldades financeiras, busca por espaços para produzir e a necessidade de me articular com profissionais da área me fizeram olhar mais atentamente para a rua. A rua tinha os espaços deque eu precisava, tinha espaços dentro de espaços; e esses espaços eram meus. Além disso, a rua tinha o que foi minha maior motivação: pessoas. Era esse o jogo que eu queria jogar, um jogo de encontros que me permitisse experimentar e, a cada experimento, receber respostas inesperadas e trocar afetos, todo tipo de afetos. A música foi a forma mais rápida que encontrei para o primeiro disparo artístico na rua. Cantei; cantei sozinha, com pessoas, com espaços, com o movimento, com o tempo... Daí, no outro dia, voltei. Depois novamente. E depois também. Cada dia cantando novas músicas, em cada canto novos espaços da cidade, novos encontros. Cantei onde tinha fluxo de gente, onde tinha olho no olho. Praças, praias, calçadas, ônibus, trem, Metrô. Ações artísticas nos vagões do Metrô
Escolho refletir sobre o Metrô, dentre todos os espaços ocupados, também porque as práticas neste lugar específico me ajudaram a suprir uma necessidade importante: articular com outros artistas atuantes nas ruas. No Metrô, fiz parcerias e juntos formamos o Coletivo de Artistas Metroviários(AME). Como grupo, estamos constantemente nos organizado para 22
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pensar e propor ações artísticas no metrô e nas ruas da cidade, além de trabalharmos na elaboração de leis e militarmos para que estas se efetivem. Trabalhamos conjuntamente pela regularização da prática artística dentro dos vagões cariocas. O diretor teatral e pesquisador Francis Wilker, na sua dissertação de mestrado Teatro do concreto no concreto de Brasília: cartografias da encenação no espaço urbano, entende a urbe como campo potente para a prática artística – espaço gerador de reflexões, interações, criações e experiências. Wilker escreve: Ao abordarmos por diferentes pontos de vista a relação entre espaço, experiência e memória, buscamos evidenciar que o espaço urbano pode ser tomado como campo potencial na tentativa de promover experiências, gerar afetos. [...] Poderíamos propor uma leitura da prática artística na cidade enquanto um modo singular de “praticar os espaços”. O artista, ao praticar o espaço articulando um jogo poético, em alguma medida sempre considerando certo grau de indeterminismo, está também convidando os espectadores a reinventarem o seu modo de praticar o espaço, operação prenhe de experiência (WILKER, 2014, p.55).
A partir desta noção de “prática do espaço”, abordo as intervenções artísticas que acontecem no Metrô do Rio como verdadeiras operações de afeto que provocam, no espectador-passageiro e no próprio local, fendas, possibilidades de abertura de novos olhares para as relações humanas e para o mundo. Uma canção inesperada, um poema, um olhar, um sorriso são convites para que o espectador vivencie o espaço e o tempo de modo muito diferente daquele habitual. Uma ruptura que suspende o automatismo da noção de uso meramente utilitário do transporte público e reinventa modos de leitura do próprio espaço-vagão, pois que abre sua dimensão poética. 23
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Ainda no texto citado, Wilker propõe uma investigação sobre o que chama de “potência dramatúrgica do corpo-cidade”. Interessa a este diretor teatral pesquisar os “conceitos operadores que articulam as recíprocas influências entre caminhante, espaço, arquitetura, paisagem, experiência e percepção”. Interessa-lhe o que chama de “gramática do urbano”; e articula um diagrama de conceitos composicionais que exigem do artista um olhar atento para criar jogos poéticos específicos de acordo com o espaço-tempo. Identifico, nas ações que realizo no Metrô da cidade, o trabalho com alguns desses conceitos propostos por Wilker. Nomeadamente: distância, fluxo e tráfego, atividades e funcionalidades, sinalização e mídias, ruídos, segurança. Estamos atentas para aspectos como, por exemplo, qual o melhor horário para realizar as intervenções, que tipos de pessoas estarão presentes, a decorrente escolha de repertório, a forma como apresentá-lo, o volume sonoro das apresentações, o cuidado com a segurança dos presentes, os modos como passamos o chapéu; e uma série de opções conscientes que dão contornos precisos às intervenções. Um referente importante é o fluxo de pessoas – por exemplo, entre 10h e 15h e entre 20h e 22h, o fluxo é menos intenso e permite trânsito tranquilo de passageiros enquanto são realizadas as práticas artísticas. Por ser um local de Parceria Público-Privada entre o Governo Estadual e a empresa Invepar, os músicos também enfrentam outra relação, além daquela desejada, com os usuários: o enfrentamento com os seguranças do Metrô Rio. Apesar de não haver nenhuma lei que proíba apresentações artísticas dentro dos vagões, a concessionária trata as apresentações como ilegais. Os seguranças são orientados a retirar os usuários que realizem qualquer prática artística dentro das delimitações do Metrô. Para tal, utilizam como respaldo o artigo 4o da Lei no 6149/1974, assinada pelo então Presiden24
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te da República, o general Ernesto Geisel, durante a Ditadura Militar. O Artigo 4odispõe: “O corpo de segurança do metrô colaborará com a polícia local para manter a ordem pública, prevenir ou reprimir crimes e contravenções penais nas áreas do serviço de transporte metroviário”. Entretanto, quando abordados, os artistas questionam: “Que noção de ‘ordem’ é esta? Ela está em vigor hoje?” A concessionária também argumenta, baseada no Artigo 1o da Lei Municipal no5.728/2014, que dispõe sobre o uso de aparelhos sonoros nos transportes coletivos do Município do Rio de Janeiro e articula as seguintes providências: Fica proibido o uso de aparelhos sonoros ou musicais por parte dos usuários no interior de veículos de transporte coletivo de passageiros, salvo mediante auditivo pessoal. Parágrafo único. Para fins desta Lei, a expressão, aparelhos sonoros ou musicais, compreende, dentre outros, os tocadores pessoais de música em formato digital, telefones celulares, Ipod, tablet, notebook, netbook, rádio, MP3, MP4 e similares.
Esta Lei Municipal, importante enfatizar, nada especifica sobre o uso de instrumentos musicais ou o canto. Além de ser uma Lei Municipal, que não pode ser aplicada para uma concessão estadual. Ou seja, as duas leis usadas para respaldar as ações dos seguranças deixam claro que a prática de retirar artistas dos vagões de metrô não tem respaldo legal de fato; ou, ao menos, respaldo legal específico. André Lepecki, escritor e professor da Universidade de Nova York, em seu artigo Coreopolítica e coreopolícia, cita a polícia como um agente que oscila entre a violência que preserva e a violência que violenta. Diz:
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Uma figura também cheia de movimento, particularmente o ambíguo movimento pendular entre a sua função de fazer cumprir a lei e, a sua capacidade para a sua suspensão arbitrária; uma figura cujo espetáculo cinético é de chamar para si o monopólio sobre a determinação do que, no urbano, constitui um espaço de circulação, [...] executa com alarde a sua performance de transgressão de sentidos de circulação na cidade, [..] assim a sua excepcional ultramobilidade, uma vez que para a polícia nunca existe a contramão (LEPECKI,2012, p. 11).
Comparo aqui os seguranças do metrô à polícia, pois, dentro desse espaço aqui estudado, eles cumprem a função de executar “leis”. Cumprem o que lhes foi ordenado, com violência na maioria das vezes. Temos muitos casos de agressões verbais e físicas realizadas pelos agentes do metrô ao retirarem artistas dos vagões. Como também não há nenhuma lei específica que proíba o movimento artístico dentro desses espaços, nós artistas, seguimos realizando intervenções e procuramos sair sempre de forma pacífica quando um segurança aparece para nos retirar. Após atravessar a roleta, compramos novas passagens e entramos novamente. Como não há uma lei real de proibição, os seguranças não podem impedir que nenhum cidadão utilize o transporte público. Assim vivemos numa verdadeira briga de gatos e ratos. Atualmente o Coletivo AME se organiza para que o Projeto de Lei no2958/2014, que está em processo de votação na ALERJ, seja aprovado. Tal projeto regulamenta a manifestação cultural já existente no interior dos trens e no Metrô no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. E resolve como permitidas as apresentações artísticas dentro dos vagões. A arte de vagão é motivo de reflexão e discussão no que se refere a formas de apresentações artísticas e ao uso de espaços 26
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públicos. Há usuários/espectadores que aprovam a prática e há usuários que se manifestam de forma contrária. Há ainda que considerar que os artistas propositores também são usuários e têm o direito de se manifestar. Os que desaprovam falam sobre seu direito de viajar em silêncio e, sobre escolha de repertório, se vêem obrigados a ouvir determinado estilo musical que não escolheram ou que não lhes agrada. Os que aprovam a prática defendem pontos como: a inovação de modos de uso do transporte; o desenvolvimento de um espaço criador para trocas e experiências entre concidadãos; uma arte acessível para todos; a oportunidade de crescimento do artista e divulgação do trabalho; a oportunidade e incentivo para arte independente, entre outros. Pensando nos usuários que se manifestam de forma contrária, o Parágrafo 3o, do Artigo 4o, do Projeto de Lei apresentado pela AME prevê o seguinte: caso alguém se manifeste incomodado, o artista deverá cessar a sua apresentação. Ainda assim, a concessionária tenta hoje, a todo custo, impedir que o Projeto de Lei seja aprovado e se recusa a realizar qualquer acordo com os artistas que representam o Coletivo. Enquanto isso, nós seguimos praticando o espaço, criando rupturas estético-políticas, dissensos e trocas de afeto. Para nós, artistas, nada mais significativo que receber um abraço sincero, um sorriso e palavras como estas: Muito obrigada pela viagem de ontem no metrô do Rio. Eu estava levando minha irmã, que é autista e está com câncer de mama, para fazer exames. Estava ansiosa e preocupada. Muiiiiiiiito obrigada, obrigada mesmo. Por naquele momento entrar no vagão com seu parceiro Rodrigo e me acalmar com sua voz. Percebi várias pessoas emocionadas. Muito obrigada! Sucesso e boa sorte para vocês!!! (Bilhetinho deixado no chapéu por Adriana Aguiar em 31/12/2014)
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Arte de vagão: trânsito de afetos
BIBLIOGRAFIA: CARREIRA, André. “Ambiente, fluxo e dramaturgias da cidade – materiais do teatro de invasão”. In: O Percevejo. Rio de Janeiro: UNIRIO (13), 2009. FABIÃO, Eleonora. "Corpo cênico, estado cênico". In Revista Contrapontos - Eletrônica, v.10 - (3), 2010. Acesso em 136/2016. LEPECKI, André. "Coreopolítica e coreopolícia" In: Revista Ilha. Florianópolis: UFSC, 2012. wilker, Francis. Teatro do concreto no concreto de Brasília: cartografias da encenação no espaço urbano. Disponível em: http:/www.teses.usp.br/teses/siponiveis/27/27156/tde-24112014150956/publico FRANCISWILKERDECARVALHO.pdf. Acesso em 9/12/2015.
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Neogrotesco: o que há de novo no grotesco? Homero Ferreira Kaneko*
O que a percepção do grotesco em nossos dias nos traz? Nosso objeto de estudo é o grotesco contemporâneo, que perpassa tanto a cena teatral quanto outras manifestações da cultura midiática. Interessa-nos identificar atravessamentos do grotesco com a contemporaneidade e os efeitos que isto produz aos olhos da sociedade de hoje, embasando a criação cênica do espetáculo Crise de gente, da Companhia Hecatombe, que fará sua estreia em setembro de 2016. Nesta etapa inicial da pesquisa, procuramos mapear algumas das questões abordadas por autores que são referência no campo de estudos do grotesco, como Georges Minois, Mikhail Bakhtin e Victor Hugo - além de autores que atualizam sua leitura como Muniz Sodré e Marcia Tiburi. Palavras-chave: neogrotesco – investigação teatral – Companhia Hecatombe
*Orientação: Lívia Flores. Bolsa PIBIAC/UFRJ.
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Que possíveis a arte disponibiliza para nós?
Apresentação do problema
O objetivo aqui é apoiar a criação cênica do espetáculo Crise de gente, da Companhia Hecatombe, levantando elementos do neogrotesco – palavra-bomba, disparadora de inquietação à qual tenho me dedicado nos últimos anos de meu trabalho no campo do teatro. Para orientar definições sobre o que parece significar a palavra neogrotesco, é que nos reportaremos às origens do grotesco, revisitando algumas referências como Victor Hugo (2007) e Mikhail Bakhtin (2007), entre outros. O neogrotesco passou a fazer parte do nosso vocabulário desde a montagem da peça Orégano, de Sergio Lobo, em 2009, tendo sido retomado em 2012 na montagem do espetáculo Cheiro de carne, com argumento de Homero Ferreira. Porém, ao contrário de uma síntese temática, acabamos por produzir mais questões, o que nos leva agora, em 2016, a querer retratar o neogrotesco numa junção de todos os elementos levantados no curso da investigação. O que é o grotesco?
O termo grotesco teria derivado da palavra"gruta", por conta da descoberta de passagens subterrâneas em Roma. Foram encontradas nessas passagens estátuas não convencionais, que possuíam formas humanas e de animais, meio gente, meio bicho, figuras míticas e figuras que se apresentavam disformes. O aspecto rústico, grosseiro, por vezes caricatural, acaba por ser uma característica dominante no entendimento clássico designado ao grotesco. As festas de cunho religioso da Antiguidade clássica se davam em uma espécie de paródia do que seria o mundo, para eles, homens antigos, um mundo sob os desígnios dos deuses. Com aval da festa, mitos eram atualizados em atos cheios de 30
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simbolismo por meio de mascaramentos, pela inversão de hierarquias e convenções sociais, pelo excesso, transgressão, orgias: tudo era regido por um soberano provisório, que, ao final, seria sacrificado – um fenômeno que se convencionou chamar de bode expiatório. O contato com o universo divino, portanto, se manifestava através do riso festivo e da violência, canalizando pulsões agressivas contidas na vida cotidiana e oferecendo-lhes uma válvula de escape para que, ao final da festa e de seus excessos, a ordem se tornasse de novo desejável. Nesse sentido, o riso traz consigo um aspecto conservador. É assim, por associação e complementaridade entre riso e agressividade, que Minois enxerga a questão ao apontar que “o riso coletivo, de alguma forma, prepara o abandono da violência, ele a desarma” (MINOIS, 2003, p. 35). A ritualização do instinto de agressão seria uma forma menos mística de explicar o riso na festa arcaica. Minois define como “riso grotesco” o riso verdadeiro que aparece na inversão temporária das coisas. É a irrupção de forças vitais e irracionais que estão no centro da tragédia humana. Com sua erudição, Mikhail Bakhtin consegue jogar luz em diversos aspectos do grotesco. Em sua apresentação do problema, reforça a importância das festividades arcaicas para sua compreensão. Entende o carnaval como sendo a herança, na Idade Média, daquelas festividades antigas. Em consequência, essa eliminação provisória, ao mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas entre os indivíduos, criava na praça pública um tipo particular de comunicação, inconcebível em situações normais. Elaboravam-se formas especiais do vocabulário e do gesto da praça pública, francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação, liberados das normas correntes da etiqueta e da decência. Isso produziu o aparecimento de uma linguagem carnavalesca típica (BAKHTIN, 2013, p. 9).
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Esta é a fonte de investigação do princípio material e corporal do grotesco. Este espaço popular, indivisível, formado pelo todo e para o todo, atravessa a compreensão lógica da linguagem e adquire status universal, cósmico e social. Um corpo que não atende a um entendimento fisiológico (um corpo, uma unidade corporal), mas sim a uma ideia de massa, um conjunto de corpos numa ação sinestésica. A imagem desse corpo único coletivo remete a uma noção de tempo cíclico da vida natural e biológica. “O grotesco integrado à cultura popular, faz o mundo aproximar-se do homem, corporifica-o, reintegra-o por meio do corpo à vida corporal” (BAKHTIN, idem, ibidem). Embora a evolução das imagens grotescas não permaneça nesse estágio primitivo, o corpo em questão aparece sendo representado de forma ambivalente pelo velho e pelo novo ao mesmo tempo, exibindo dois corpos em um: um que dá a vida e desaparece e outro que é concebido, como por exemplo, nas figuras de terracota de Kertch – velhas grávidas que riem. Assim Bakhtin acaba por responder diretamente o que considera ser o grotesco: O verdadeiro grotesco não é de maneira alguma estático: esforça-se, aliás, por exprimir nas suas imagens o devir, o crescimento, o inacabamento perpétuo da existência: é o motivo pelo qual ele dá nas suas imagens os dois polos do devir, ao mesmo tempo o que parte e o que está chegando, o que morre e o que nasce; mostra dois corpos no interior de um único, a germinação e a divisão da célula viva (BAKHTIN, idem, p. 45).
Com o avanço do tempo, a tentativa de se criar um cânone grotesco não progride, pois, segundo Bakhtin, o grotesco é por si só anticanônico. Nos século XVII e XVIII, enquanto arte e literatura eram chanceladas pelo classicismo, o grotesco e a cultura cômica popular como um todo eram reduzidos a algo de baixo nível. 32
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Ao buscar balizas no pensamento de Victor Hugo, o que podemos ver é uma visão comparativa que busca exemplos de grotesco, sobretudo na iconografia medieval. Ele o contrapõe ao sublime como um recurso para contrastar a beleza monótona da Antiguidade: “o belo tem somente um tipo; o feio tem mil” (HUGO, 2007, p.36). A restrição imposta pelo belo – o lugar desejado, referência para todo o Classicismo que Hugo pretende combater – implica a inexistência de contraste; o grotesco, ao contrário, abarca ampla variação de formas. O escritor vê na potência criativa do grotesco “uma invasão, uma irrupção, um transbordamento; é uma torrente que rompeu seu dique” (HUGO, idem, ibidem). O que é o neogrotesco?
Inicialmente procuramos entender o que era neogrotesco para Sergio Lobo, autor de Orégano. Percebemos que, mesmo para Lobo, a compreensão do que poderia ser neogrotesco, vinculava-se ao próprio entendimento do grotesco: personagens exageradas, escatológicas, sexuais, disformes. A busca pelo “neo” parecia se esgotar ou não fazer tanto sentido até conhecermos a obra do professor Muniz Sodré (1992), que vai pensar neogrotesco no início da década de 1990 de uma forma bem próxima daquilo que também intuíamos ser esse novo grotesco. Sodré aponta para as consequências dos diversos rearranjos políticos, sociais, estéticos, econômicos na contemporaneidade e como as constantes crises mundiais, a violência, a velocidade com que o mundo muda atualmente são representadas por um novo modelo de grotesco. Os avanços tecnológicos, a automação do cotidiano, a dependência dos meios de comunicação passam a redefinir comportamentos, resultando em profunda mutação cultural e estetização generalizada da vida social. 33
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De acordo com Sodré, o abandono do corpo, aquele representado pela massa, pela praça pública, pela linguagem do todo, a voz coletiva, a festividade purgadora das pulsões é em si o abandono do grotesco, tal qual conhecemos. Esse abandono, passa a figurar uma forma outra de comunicação: a praça é substituída pela teletransmissão, cria-se um universo de telerrealidade capaz de instituir a linguagem sem a presença física do corpo. Para ele, o grotesco tradicional encontra-se no anômalo e é no aberrante que rompe com as leis e as normas. A possibilidade trazida por essa forma de habitar uma outra realidade, diferente, misteriosa, imprevisível, é o que produzia reflexão e crítica. Já o neogrotesco: Configura-se, entretanto, como anomalias ou aberrações sem efeitos históricos, [...] porque já surge como figura de um campo intensivamente equacionado por uma ordem tão operativa (tecnoburocrática) que já não dá lugar à lucidez pelo escândalo de estrutura. O traço grotesco continua a ser a adequação monstruosa de disparidades, mas no quadro de uma indiferença estrutural à deformação das regras e das cenas (que ajudaram a constituir o sujeito moderno) e à frieza do controle estatístico das populações (SODRÉ, 1992, p. 110).
De fato, ainda nos dias de hoje é surpreendente a velocidade com que avança a tecnologia, mesmo em um mundo pós-internet e smartphones. E é por esse viés que, ao chegar em 2016, torna-se necessário para nós pensarmos a atualidade acrescentando camadas a esse panorama histórico do grotesco. Ora, o que é o Facebook senão, salvaguardadas as devidas proporções, um simulacro do que outrora fora a praça pública, o local da festa arcaica? Nesse contexto, nos parece interessante a visão da filósofa contemporânea Marcia Ti34
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buri (2015), que reúne uma série de paradigmas de um modelo fascista de pensamento, o qual, a nosso ver, parece ser um lugar de proliferação do neogrotesco. Ela vai refletir sobre avanços comunicacionais para além de Sodré, já em um mundo conectado em rede social, que assiste um ajuntamento virtual de vozes individuais falarem sem sequer ter certeza de estarem sendo ouvidas. Vai dizer que passamos a consumir também a linguagem e discorre sobre a importância da alteridade e do diálogo na formação de indivíduos menos voltados a si mesmos, menos presos a suas concepções. Indispostos para a escuta do que o outro tem a dizer, fortalecem assim a infiltração do fascismo: [...] aquele que pensa que ele mesmo, o outro, a vida, a sociedade não podem ser diferentes não se abre ao diálogo. [...] O outro, esse alguém que o agente fascista trata como ninguém, é diferença demais para sua cabeça cheia de ideias prontas e bem encaixadas no mesmo lugar de sempre (TIBURI, 2015, p. 27).
A cena neogrotesca atravessa o grotesco a fundo e se dá no momento em que o não-reconhecimento, a falta de espanto, o conformismo, é “tão só uma conformidade patética com a violência das hibridações desiguais e das festas simuladas, onde se espia, à distância, o outro comer, beber, gozar” (SODRÉ, idem, ibidem). Logo, esta etapa da investigação se conclui, percebendo que o grotesco se faz presente, está por aí na sociedade contemporânea, anômalo, disforme – continua o mesmo; no entanto, não o notamos. Por fim, é na banalização do grotesco que o neogrotesco encontra seu campo de atuação e se revela como um estágio produtor de inquietação. Seguimos inquietos, almejando uma cena nova e grotesca.
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BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento - O contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora Hucitec, 2013. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo, Perspectiva, 2007. MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003. SODRÉ, Muniz. O social irradiado: violência urbana, neogrotesco e mídia. São Paulo: Editora Cortez, 1992. TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.
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O corpo do “atuante” na rua: método Panidrom Mariah Valeiras Aguiar Miguel*
O presente artigo estuda textos dos pesquisadores e artistas Francis Wilker e André Carreira para refletir sobre a metodologia desenvolvida pela Companhia Volante na criação do espetáculo Panidrom. Compreendo as “saídas” e “criaturas” como componentes fundamentais para o desenvolvimento do processo e busco identificar fatores que contribuam para a preparação e a apresentação do “atuante” na rua. Considero aqui o atuante como o artista que age no espaço, o agente político relevante na cena da cidade. Palavras-chave: metodologia – atuante – rua.
*Orientação: Eleonora Fabião.
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O corpo do atuante na rua: método Panidrom
Companhia Volante e Panidrom A Companhia Volante é um coletivo artístico que se formou após a apresentação de Panidrom – espetáculo de formatura dirigido por João Pedro Orban, no Curso de Direção Teatral da UFRJ. A encenação trata de remoções, especificamente de remoções executadas por forças policiais na Cidade do Rio de Janeiro, desde as manifestações de 2013. Sobre Panidrom, a Companhia Volante1 escreve: [...] Panidrom é uma peça itinerante que se desenvolve por ruas, praças e espaços da cidade. [...] é uma fábula que traz à cena a trajetória de nove personagens retirados de seus locais de origem por conta da construção de uma barragem, e que são conduzidos por El Gran Perez Perez para uma terra nova. [...] A ocupação espacial é o pilar principal da encenação. [...] O espectador é convidado a vivenciar a cidade por uma nova perspectiva, criando uma relação ativa com o espetáculo. Panidrom é um convite à experimentação, uma vivência no espaço, na cidade e em nós mesmos (COMPANHIA VOLANTE, 2015, p.3).
No Rio de Janeiro, Panidrom foi apresentado nos seguintes locais: UFRJ, UNIRIO e PUC; na Praça XV, em Pedra de Guaratiba, no Passeio Público e no Instituto Municipal Nise da Silveira. Comecei a fazer parte do elenco na apresentação do Passeio Público, em 31 de outubro de 2015, substituindo o “atuante” Deo Luiz na “criatura” Tristão. Digo “criatura”, pois, em Panidrom, a noção de personagem é substituída por essa ideia. São dez criaturas em cena como, por exemplo, o Peixe – ma1
Informações extraídas do almanaque desenvolvido e redigido coletivamente pela Companhia Volante como recompensa aos colaboradores do crowdfunding de Panidrom.
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cho beberrão e contador de histórias; a Puta – uma puta da rua; Tristão – pesquisador, acadêmico, ciclista, viajante do tempo, entre outros. Sobre o Método Panidrom: a metodologia das “saídas” e a noção de “criatura” Aqui analisarei dois eixos que identifiquei como base do método Panidrom: 1) a metodologia de criação através das “saídas” e 2) a noção de “criatura”, conceito que alicerça o trabalho composicional dos “atuantes”. Panidrom foi elaborado a partir de experiências com improviso, composições, sistemas e “saídas”. Mas entendo que a base fundamental do processo foram as “saídas”, momento do ensaio em que os “atuantes” vivenciavam o espaço da rua por determinado período de tempo, recebiam diretrizes específicas e respondiam à experiência elaborando uma proposição cênica a ser compartilhada com o grupo. Cito aqui, como exemplo, as diretrizes de uma “saída” realizada no processo: Escolha um lugar na cidade do Rio de Janeiro; Em 4 horas, vá até esse lugar e volte; Não fale; Responda às questões: Que? O que? Como? De onde? Como é? Que tamanho? O que levar? O que levaram? Quando voltar, sente-se em silêncio e espere que todos cheguem. Comece quando quiser. A composição deve ter no mínimo 3 minutos (ORBAN, idem, p.4).
Para elaborar o método das “saídas”, a equipe de criação baseou-se em experiências performativas propostas pela artista e professora Eleonora Fabião – como, por exemplo, “fazer um com a música”; e as “saídas” realizadas por João Pedro Or39
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ban, para as aulas de atuação e de Dramaturgias do Corpo, na UFRJ. Baseou-se também em duas práticas desenvolvidas pelo grupo Teatro da Vertigem – os workshops, resposta cênica a uma pergunta formulada. As “visitas”, processo em que os atores visitam algum local e partem dessa experiência para criar uma cena. Orban reflete: [...] entendo que as saídas foram fundamentais [...] para guiar
a pesquisa espacial do processo de criação e todos os seus desdobramentos dramatúrgicos [...] a dimensão ficcional da peça: quem eram essas criaturas, como se apropriavam do espaço, dos objetos, etc (ORBAN, idem, p. 5).
Para compreender a dimensão ficcional do espetáculo, foi preciso ir às ruas. A fábula, nessa encenação, nasce do contato direto com a cidade. Neste espetáculo, o Rio de Janeiro é mote dramatúrgico. O pesquisador Francis Wilker (2014), em sua dissertação Teatro do concreto no concreto de Brasília: cartografias da encenação no espaço urbano, compreende a cidade como um conjunto de dramaturgias. Acredito que foram justamente esse entendimento da cidade como dramaturgia e a centralidade das práticas das saídas ao longo dos ensaios que afinaram os corpos, a atenção e a sensibilidade dos “atuantes” da Companhia Volante, possibilitando o nascimento das “criaturas”. Nomear as criações dos atuantes como “criaturas” foi uma escolha-chave para o processo de Panidrom. Penso que, libertos de uma noção rígida e fechada de personagem, apostamos na abertura de um conceito - as criaturas, - teatrais, poéticos e políticos capazes de dar conta das múltiplas dimensões demandadas pelo espetáculo; capazes de lidar simultânea e integradamente com a rua, com a fábula, com o espectador, a personagem, o cidadão etc. Decorrido um ano 40
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e meio da estreia, o diretor definiu “criatura” com as seguintes palavras: Criatura, agora, passa a ser entendida como um atributo do momento. Uma cristalização performática do instante. A pessoalidade do ator somada à experiência de ser determinada personagem. As múltiplas conexões do estado performativo. As variáveis constantes da relação direta com o espectador. A criatura é o ator, é o performer e a personagem criada no processo, todos ao mesmo tempo, neste instante, agora (COMPANHIA VOLANTE, 2015, p.3).
Em Sobre um ator para um teatro que invade a cidade, André Carreira (2011) sugere que um ator que pratique o teatro de rua deve aprender a trabalhar com uma estrutura incompleta da encenação, ou seja, deve manter-se aberto aos estímulos do ambiente. “Agora”, “momento”, “instante”, “instante”, “agora”. A repetição dessas palavras na definição de “criatura” citada acima demonstra a importância do momento presente para a encenação e, justamente, aponta para a abertura do espetáculo e a flexibilidade dos atuantes no jogo com as “criaturas”, que são, por definição, porosas. Outro aspecto em questão no conceito de “criatura” é a relação aberta e direta com o espectador. Percorre-se um quilômetro e meio de cidade em noventa minutos e, neste percurso espaço-temporal, aproximadamente duzentos cidadãos-espectadores são conduzidos pelas “criaturas” em um cortejo, uma plenária, uma ruína, uma caminhada, uma festa. Condutores e conduzidos, juntos, caminham, dançam, pedalam, apoiam, desaprovam, cospem, fazem coro, se olham – desfazem e fazem cidades possíveis. Juntos. Quando Carreira (2011) diz que “é importante considerar essas interferências [dos espectadores] como elemento constituinte do espetáculo” (p. 22), identifico 41
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que este é mesmo um elemento da dramaturgia e da encenação de fundamental importância para os atuantes em Panidrom. Ou, ainda, compreendo que as “criaturas” criam condições para que a ação dos espectadores penetre a cena. Mas é, sobretudo, porque me interessa pensar o corpo do “atuante” como articulação entre artista e sujeito político atuante na rua, que me debruço sobre a noção de “criatura”. O pensamento poético-conceitual que alicerça a construção dos atuantes em Panidrom propõe uma “combinação entre uma personagem ficcional, com personagens reais do cotidiano e a pessoalidade do ator” (ORBAN, p.4). O resultado desse diálogo é notável, conforme se verifica nas falas dos “atuantes”: É impossível pensar o início exato de tudo, porque acho que sempre tive essa vibração dessa criatura dentro de mim (Padu / Marenka). O Homem Chamado Cavalo sou eu, mas exagerado, ampliado, para que caiba o que eu quero dizer, para que o gesto vá até onde tem que ir (Lucas Nascimento / O Homem Chamado Cavalo). Talvez já tenha trazido Noah junto comigo (Manu Libman / Noah). (COMPANHIA VOLANTE, idem, p. 15)
Sugiro que o fato de os “atuantes” se remeterem a suas próprias vivências enquanto cidadãos para construírem as “criaturas” é o que permite que a encenação consiga, de fato, discutir e interagir com o espaço público. Carreira afirma que na cena contemporânea (e eu proponho que, sobretudo, na rua) os atores precisam se reconhecer como sujeitos políticos: “O ator desse teatro deve reconhecer as implicações ideológicas das abordagens teatrais que se definem a partir de sua relação com a própria cidade” (CARREIRA, 2011, p. 12).
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Os “atuantes” de Panidrom praticam a cidade. As “criaturas”, em Panidrom, (des/re)organizam o Rio de Janeiro. Dialogam com o espaço. Articulam-se com o tempo. São corpos de cidadão comum, de sujeito político; corpos do cotidiano, mas abrem uma dimensão lúdica na urbe e, com sua força extracotidiana, carregam peso mesmo com barriga grávida, tocam sirene em bicicleta de acadêmico e fazem nadar a “criatura” Peixe no asfalto. O corpo do “atuante” de Panidrom continua a caminhar para encontrar as saídas num Rio de Janeiro que já não é lugar para criatura nenhuma viver.
BIBLIOGRAFIA: CARREIRA, André. “Teatro de rua: mito e criação no Brasil”. In: ARTCultura, no 2, v.1. Uberlândia: UFU, 2000. _____. “Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade”. In: LIMA, Evelyn F.W. (Org.) Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2008. _____. “Sobre um ator para um teatro que invade a cidade”. In: Moringa: Artes do espetáculo, no 2, v. 2. João Pessoa: UFPB, 2011. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/moringa/article/ view/11745. Acesso em: 29/4/2016. _____. “Teatro Performativo e a cidade como território”. In: Revista Artefilosofia, no 12. Ouro Preto: UFOP, 2012. Disponível em: <http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_12/(2 CARREIRA.pdf.> Acesso em 05/2/2016. FABIÃO, Eleonora. “Corpo Cênico, Estado Cênico”. In: Revista Contrapontos – Eletrônica, no 3, v. 10, 2010. do Bacharelado em Artes Cênicas - Direção Teatral Rio de Janeiro: ECO-UFRJ, 2015. ORBAN, João Pedro. Terra: espaço e tempo, experiência e vivência. Projeto de encenação para obtenção do Bacharelado em Artes Cênicas/ Direção Teatral. Rio de Janeiro: ECO-UFRJ, 2015 _____. Memorial. Projeto Experimental em Teatro (espetáculo Panidron). Bacharelado em Artes Cênicas Direção Teatral). Rio de Janeiro: ECO-UFRJ, 2015. WILKER, Francis. Teatro do concreto no concreto de Brasília: cartografias da encenação no espaço urbano. São Paulo: USP, 2014. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde-24112014150956/publico/FRANCISWILKERDECARVALHO.pdf>. Acesso em 9/12/2015. COMPANHIA VOLANTE. Almanaque desenvolvido pela companhia volante como recompensa aos colaboradores do crowdfunding de Panidrom. Disponível em: <http://www.companhiavolante.com/inicio mainPage>. Acesso em 11/12/2015.
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O processo de assistência de direção na ópera João e Maria Antonio Ventura e Daniel Salgado*
Como parte dos projetos “Ópera na UFRJ” e “A Escola Vai à Ópera”, as Escolas de Música, Belas Artes e Comunicação encenarão João e Maria,1 de Engelbert Humperdinck. Os projetos envolvem discentes, docentes e técnico-administrativos, proporcionando aos estudantes um campo de integração e qualificação acadêmico-profissional. O discente de Direção Teatral é responsável por estudar o libreto e realizar a pesquisa complementar, participar de reuniões com a diretora de cena e as equipes de cenografia e indumentária, realizar a preparação corporal dos solistas, dar assistência à diretora Alessandra Vannucci nos ensaios com solistas e coro, além de acompanhar a preparação do elenco e a direção nas apresentações da ópera. Palavras-chave: ópera – música – direção cênica.
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O projeto teve sua estréia no dia 12 de outubro de 2016. O presente artigo foi escrito para o seminário de pesquisa de Direção Teatral, quando a ópera estava ainda em fase de ensaio.
*Orientação: Alessandra Vannucci. Bolsa de Extensão Cultura II.
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O processo de assistência de direção da ópera João e Maria
Na história da ópera, desde o século XIX, houve artistas cumprindo função do que hoje chamamos encenador, tais como Richard Wagner, compositor alemão que dirigia o seu festival de óperas em Bayreuth com mãos de ferro, coordenando todos os eixos do espetáculo e idealizando novos espaços cênicos; Max Reinhardt, diretor austríaco responsável pela fundação do festival de ópera de Salzburgo e por intensa experimentação na montagem de gêneros líricos; Adolphe Appia, que, nas primeiras décadas do século XX, propôs cenários inovadores para as óperas de Wagner e Gluck. Entretanto, apenas a partir da década de 1950, a direção cênica se impõe como um crédito e uma tarefa indispensável na produção operística. Contando com o trabalho de diretores como Giorgio Strehler e Luchino Visconti nos teatros de Milão e Veneza, em parceria com o cenógrafo Gianni Ratto e com grandes intérpretes, como a soprano Maria Callas, a cena finalmente é equiparada à música e recebe especial atenção na construção do sentido do espetáculo. No cenário operístico atual, as casas de espetáculo realizam principalmente produções de obras do repertório tradicional canônico, de cerca de cento e cinquenta títulos, constantemente reapresentados. A explicação para este fenômeno é que determinados títulos operísticos tornaram-se clássicos cujos valores estéticos e poéticos devem ser mantidos, segundo concepção comum; assim, tornou-se tendência na encenação contemporânea buscar certa fidelidade às concepções originais dos compositores e ao seu contexto histórico, resguardando as práticas musicais de alterações significativas. Neste contexto, a encenação ganhou papel central na renovação do gênero, já que novas concepções cênicas podem oferecer interpretação inovadora das diversas possibilidades narrativas da música e da dramaturgia, eventualmente tornando a ópera mais interessante, relevante ou polêmica para o público contemporâneo. 46
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Além de constituir prática de integração acadêmica dos cursos da Universidade que trabalham nos diversos setores que compõem um espetáculo teatral, a encenação de João e Maria pelos projetos “Ópera na UFRJ” e “A escola vai à ópera” representa um investimento em formação de plateia, especificamente, no caso desta ópera, a plateia infantil. Assim, a primeira preocupação da diretora Alessandra Vannucci e da equipe foi saber o que atrairia as crianças para a nossa montagem e, posteriormente, para a ópera. A primeira decisão tomada foi a apresentação da ópera em língua portuguesa, ao invés do original em alemão, com o objetivo de imergir o público, seja infantil ou adulto, na narrativa exposta pela encenação. Para isto, foram usadas duas versões, uma em português lusitano, cuja prosódia era mais adequada para a música e que nos serviu como base; e outra em português brasileiro, como alternativa para a lusitana nos momentos em que as diferenças de vocabulário dificultariam o entendimento do texto por parte do público. Esse processo de adaptação foi conduzido de forma colaborativa, somando sugestões da equipe e dos cantores. Adaptar com certa liberdade tornou-se assim um ato de fidelidade ao espírito da ópera original. Apesar de a tradução ter por consequência a alteração de ritmo, prosódia e, em algum caso, afetar levemente as melodias, consideramos que a sedução que uma ópera cantada em língua materna exerceria sobre o público compensaria os desafios e possíveis perdas, permitindo uma melhor recepção da história (que, por ser aventurosa, constitui um entretenimento em si). Além disso, em se tratando de um projeto pedagógico, a tradução ofereceria oportunidade, rara para os intérpretes (alunos formandos da Escola de Música), de cantar em português, conquistando fluência e domínio do idioma cantado. Foi decidido também que a ópera, que na íntegra conta com cerca de duas horas de duração, seria apresentada com 47
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cortes, substituindo algumas partes com breves diálogos falados; de modo que a ópera, originalmente de estrutura musical contínua, nos moldes do drama wagneriano, aproximou-se da forma do singspiel, que alterna fala e canto. Ficou evidente, desde o princípio, que uma encenação “fácil” deste título, derivado de um conto dos irmãos Grimm muito visitado pela literatura infantil e pelo cinema, onde eventualmente aspectos sombrios do original são rejeitados em nome do final feliz, focando na salvação das crianças e sua volta ao lar, não seria desejado. As crianças desde a década de 1990, consideramos, consomem preferencialmente gêneros híbridos, entre o cômico e o macabro, como atesta o sucesso dos longas-metragens de Tim Burton reciclando contos de fada clássicos em tons sinistros, entre terror e comédia. Verificamos esta hipótese em laboratório, se assim podemos dizer, já que a ópera exige um coro infantil e nosso trabalho de criação com essas crianças nos provou que essa mescla entre comédia e medo seria muito apreciada. Uma delas chegou a afirmar, categoricamente: “A personagem que mais gosto é a bruxa, ela é que tinha que vencer!”. Esta escolha está amparada nas fontes dos contos de fada europeus, pertencentes à tradição oral das narrativas familiares que praticavam uma espécie de pedagogia realista, expondo para as crianças enredos que podem parecer hoje brutais e chocantes. Vemos isso especialmente nas versões de contos da tradição oral, por Charles Perrault (1628 - 1703) e pelos irmãos Jacob (1785 - 1863) e Wilhelm (1786 - 1859) Grimm, estes últimos, responsáveis pela coleta de João e Maria, onde são ressaltados aspectos sombrios em seguida rejeitados ou recalcados nas versões cinematográficas (especialmente da Disney). Estas, geralmente apresentam uma versão edulcorada e confortante do conto de fadas, tendendo a legitimar e fortalecer a distribuição mais convencional de valores como o bem e o mal, com o 48
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triunfo do bem como regra de uma pedagogia idealista e protetiva. Nossa proposta resgata o tom destas fontes, em que a fronteira entre bem e mal não é óbvia; o mundo protegido do lar pode se mostrar traidor e crianças podem decidir abandoná-lo para sempre, para enfrentar o mundo real e crescer. O libreto, escrito por Adelheid Wette, irmã do compositor, apoia a proposta. A dramaturgia, bastante fiel ao conto dos irmãos Grimm, nos apresenta um contexto cruel de miséria e de uma família disfuncional, chefiada por um pai bêbado e uma mãe violenta e depressiva. Esta última personagem, uma das mais complexas da ópera, é, em nossa proposta, um duplo da bruxa, escolha que motivou o fato de ambas as personagens serem interpretadas pela mesma cantora — o que é possível, devido ao fato de que ambos os papéis foram escritos para o registro de mezzo-soprano. Na criação dos duplos, buscamos fugir de dicotomias entre bem e mal: ambas as figuras femininas são tão carismáticas e sedutoras quanto potencialmente cruéis e impiedosas. A mãe, especialmente, tem seu comportamento motivado pelas condições sociais: é um ser humano visto à luz da miséria como condição universal e não pela exceção psicológica de ser “boa” ou “má”. Assim, o duplo projeta duas imagens vinculadas no subconsciente de qualquer criança: a imagem do medo pela possível traição e abandono por parte da mãe colada na imagem do desejo infantil do amor maternal. A bruxa, a madrasta e a fada (boa ou má), aparecem como possíveis variações da Mãe nos contos de fadas: variações assustadoras que o conto, apresentando, exorciza. Sua frequente aparição coincide com o afastamento involuntário ou até mesmo forçado da criança em relação ao lar e à mãe, seguido geralmente pela ida à floresta ou a um país distante, por uma fase de naufrágio ou perdição e pelo retorno após concluir alguma tarefa árdua e perigosa. Esta jornada descreve um possível processo de iniciação que podemos reconhecer na 49
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passagem da infância para a fase adulta: a adolescência como perdição, amadurecimento pelo impacto cruel com o mundo e reconquista de si (já sem a proteção da mãe). A perambulação pela floresta é, no imaginário nórdico, um rito de passagem. Por isso, em colaboração com as equipes de cenografia e figurino, ambas da Escola de Belas Artes da UFRJ, concebemos uma visualidade em que a floresta está sempre presente em cena: seja através de grandes árvores apavorantes que, no primeiro ato, invadem a casa onde João e Maria moram e, no terceiro ato, se tornam a gaiola onde as crianças são presas na casa da bruxa; seja através de uma proposta de figurino que busca tons terrosos e materiais que tenham aparência orgânica. Na nossa encenação, a jornada dos protagonistas é tão física (experimentar a fome, o medo, o fato de estarem perdidos, encantados, seduzidos e finalmente, o ato de matar a bruxa) como, também, psíquica. No concreto da marcação, é a floresta que passa pelas crianças e não elas pela floresta. Para conquistar certa identificação de outras crianças que podem estar passando, na vida real, pelo mesmo processo psíquico de João e Maria, inserimos as crianças e adolescentes do coro – os quais, pela partitura original, só aparecem no final do último ato – em outros momentos da ópera, ora em passagens coreográficas, ora perambulando pela floresta, ora se tornando parte dela, através de sombras, máscaras e mímica. Convidamos as crianças a representar a si mesmas, cada uma com sua idade, seus medos e desejos, enfrentando sonhos e pesadelos na forma simbólica de animais e monstros entre os quais alguns reconhecíveis por serem figuras típicas dos contos de fadas, como o lobo e o unicórnio. Por fim, ressaltamos que a economia da miséria e sua consequência física (a fome) são elementos cruciais e não simplificáveis, tanto no conto dos irmãos Grimm quanto na ópera de Humperdinck. Nossa encenação busca mostrar este contex50
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to sem retórica, tanto na interpretação dos cantores quanto na adaptação cênica. Assim, o pai não chega a casa com um banquete no fim do primeiro ato, mas com um mísero pepino que ele, bêbado e desastrado, apresenta como um magnífico jantar; a casa feita de doces que atrai os irmãos é uma miragem, já que, quando tentam comê-la, ela se afasta ou desaparece (num jogo cênico realizado com participação das crianças do coro, que nos pareceu mais interessante do que a convencional cenografia figurativa). Contextualizando a situação social da família e expondo a violência do sistema que a gera, buscamos uma estética que tenha impacto também político. Desta forma, criar uma versão cênica do conto musical de Humperdinck, que seja divertida e instigante não só para nosso público-alvo, mas para todas as idades. Uma encenação que possa divertir e fazer refletir, como proposto por Bertolt Brecht, no âmbito de uma pedagogia teatral não edulcorada, mas crítica, dialética e irreverente. Propomos uma ópera infantil para uma plateia real de hoje; para que, alinhados ao objetivo da Extensão da UFRJ em que o projeto está inserido, a ópera volte a ocupar o lugar que merece e que ocupou durante muitos séculos de sua história: o de um espetáculo popular.
BIBLIOGRAFIA: DUNTON-DOWNER, Leslie; RIDING, Alan. Guia ilustrado Zahar: ópera. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010.
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A pedagogia do palhaço Daniel Cintra*
Esta pesquisa investiga os aspectos pedagógicos que envolvem os procedimentos de criação e os princípios performáticos do palhaço, figura emblemática do campo da comicidade. Baseio-me em experiências como diretor, professor e palhaço nas relações com alunos e atores em aulas e ensaios. A potência de transgressão e subversão do palhaço é, agora, instigada em alunos e atores, partindo da ideia de que todos são palhaços em potencial e que estas práticas podem ser encontradas em seus próprios cotidianos. O artigo analisa os resultados observados em exercícios aplicados em aulas e ensaios, enfocando a contribuição dos recursos do palhaço na formação de atores, bem como os aspectos políticos e afetivos transformadores dos indivíduos que experimentam esta pedagogia. Palavras-chave: pedagogia – autonomia – palhaço.
*Orientação: Adriana Schneider. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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A pedagogia do palhaço
O interesse em me aprofundar no universo do palhaço começou em 2012. Desde então, tenho buscado estudos teóricos e práticos com o intuito de me formar e me aprimorar como palhaço. Compreendendo o palhaço como uma figura performática do campo da comicidade que visa a afetar o outro, me interessei em aprofundar esta relação de afetação; mas, agora, na posição de professor e diretor, de condutor de processos e administrador de afetos. Para esta análise, tomo como referência os resultados da experiência prática desse novo ponto de vista, como professor, desde 2015, em um curso de formação de atores para TV, no Nu Espaço, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Neste curso, que possui aulas de Técnicas de Palhaço na sua grade, o coordenador pedagógico ressaltou que a disciplina deveria oferecer aos alunos o aprendizado de alguns princípios de comicidade e também proporcionar a aceitação do ridículo de cada um. Outro aspecto relevante a ser destacado é de que este não é um curso voltado para a formação do ator de teatro e sim de televisão; os alunos, em sua maioria, são modelos que trabalham no mercado de publicidade e moda. Assim sendo, preocupações como “parecer bem”, manter determinadas posturas e comportamentos foram mais desafios a lidar. Destaco estas vivências para relacioná-las ao livro de Paulo Freire, Pedagogia da autonomia (2002), que me possibilitou bastante esclarecimento sobre a atitude do pedagogo em relação aos alunos. Freire mostrou que existe um lugar extremamente político na pedagogia, que diz respeito ao cuidado com a vida, com o material humano com o qual o pedagogo se relaciona. Ele coloca o ser humano, antes de tudo, como uma presença que se relaciona com outras presenças, que pode interferir nas vidas umas das outras. É o reconhecimento de que somos seres que podem afetar e ser afetados: 54
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[...] o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como ‘si própria’. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe (FREIRE, 2002, p. 9).
Essa noção de presença tira o pedagogo de uma posição hierarquizada na sala de aula e o coloca numa relação mais igualitária com o aluno. Assim, o pedagogo não seria o detentor de um saber absoluto a ser transmitido e sim aquele que ajudará o aluno a construir o seu próprio caminho: “[...] ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar; é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (FREIRE, idem, p. 12). Graças a essas vivências, entendo que o pedagogo tem muito mais a função de interferir na vida do aluno, de afetar, de estimular a sair de uma posição de inércia do que a de determinar a direção que vai tomar. Diferenças entre termos e palavras que muitas vezes se confundem – como ter autoridade e ser autoritário – são fundamentais para compreender o lugar do pedagogo proposto por Paulo Freire. Alunos que desistiam durante um exercício, ou que se recusavam a se levantar dos seus lugares, foram constantes. Neste sentido, a noção de “aluno autônomo”, de Paulo Freire, foi fundamental na condução de minhas aulas. Esta noção possui uma analogia com a compreensão de que o palhaço trabalha com a espontaneidade, com uma pré-disposição já existente no indivíduo; então percebi que não faria o menor sentido obrigar alguém a se lançar no desconhecido, se não fosse pela sua própria vontade. Muitas vezes tudo o que o aluno necessita é uma disposição inicial para se arriscar. Ana Achcar, ao falar sobre o processo de se55
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leção de alunos para o programa da Enfermaria do Riso, que prepara palhaços para atuarem em hospitais, diz que “espera-se que o candidato possa ao mesmo tempo estar disponível e se rebelar; exibir sua força, demonstrando sua sensibilidade” (ACHCAR, 2007, p. 102). Uma das primeiras práticas que propus aos alunos do curso foi o jogo do gromelô: cinco pessoas diante da platéia deveriam falar uma língua inventada, inspirada em alguma “língua” que eu sugerisse, como alemão, russo, francês, ou algo absurdo, como eletrodomésticos e outros objetos. Como um dos enfoques da aula é encontrar a comicidade de cada um, a simplicidade dessa prática permitia um olhar bem apurado sobre cada aluno. E peço sempre que a platéia, formada pelos próprios alunos, fique bem atenta, pois, após cada rodada, solicito que cada um comente e aponte as peculiaridades dos participantes, o que foi interessante, o que não foi e o porquê de cada impressão. O olhar de quem assiste é fundamental, pois é um momento onde o aluno deve apenas aprender a escutar e não se preocupar com o que ele acha dele mesmo, mas apenas absorver o que os outros captaram dele. O indivíduo descobre mais sobre ele mesmo na interseção entre a platéia e o performer. Outro fator interessante sobre essa mesma prática é que, por mais que não haja nenhuma punição, há um medo genuíno em cada participante. Numa rodada, em que pedi que falassem a “língua” da panela de pressão, vários alunos desistiram, alegando que não sabiam o que fazer. O curioso foi que não vi má vontade ou menosprezo com a prática, mas suas expressões e seus argumentos demonstravam um verdadeiro desespero. Uma aluna ainda disse que tinha real pavor dessa aula e que quando eu pedia voluntários para a prática, o simples fato de ela ter levantado e ido para frente do palco já era em si um desafio superado. Há uma passagem do livro de Freire onde ele fala que não se pode ignorar os sentimentos do aluno. Rai56
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va faz parte, assim como o medo. Isso diz muito sobre eles, o sentimento por trás move suas ações ou as impede. Me parece que há ainda um elemento fundamental na assunção de que falo: o emocional. [...] Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade (FREIRE, idem, p. 23).
Não consigo deixar de ver uma semelhança do processo pedagógico com o próprio processo artístico. Especificamente, a minha visão do levantamento de uma peça e, dentro dela, a relação diretor e ator. Semelhanças que dizem respeito, especialmente, à generosidade e ao rigor necessários para se chegar a um fim. Tanto o diretor, quanto o professor precisam trazer a sua bagagem e as suas referências, a sua pesquisa e estudos prévios para dar início ao processo. Diretores e professores necessitam ter planejamentos para se chegar a fins específicos (mesmo que esse fim mude durante o processo); estimular os alunos ou atores no processo criativo e fazer que se apropriem de suas criações; ter sempre escuta e generosidade com seus alunos e atores para tomar caminhos novos; saber ter rigor e autoridade quando necessários, o que não é o mesmo que ser autoritário. A ética permeia estes processos, que Paulo Freire chama de “ética universal do ser humano”: E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude (FREIRE, idem, p. 9).
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Nos últimos dias do curso, iniciei as aulas conversando com os alunos, partindo dos motes: por que vocês estão aqui hoje? O que têm aproveitado das aulas até o presente momento? Estas perguntas foram feitas para uma turma para a qual dei aulas por um semestre inteiro, que já possuíam uma vivência comigo e experiências prévias. O que mais me marcou foram os depoimentos de algumas alunas, que começaram a falar da condição delas como mulheres no curso, no mercado de trabalho e na vida em geral e como a palhaçaria afetou os paradigmas biopolíticos que elas vivem diariamente (PELBART, 2007). Falaram de como as pessoas constantemente esperam que elas se adequem a “formatos”, como sempre têm que estar bonitas, precisam se portar bem, agir de tal maneira. Quando estão diante de uma câmera, precisam ser perfeitas; e também longe das câmeras. E, quando elas chegavam às aulas de palhaçaria, eu simplesmente pedia o oposto. Pedia apenas que fossem elas mesmas, que não se preocupassem em acertar e que, justo no erro, poderiam encontrar o seu trunfo. Quando preparamos os números que iriam apresentar, pedia que fossem verdadeiras “ogras”, ou que encontrassem o grotesco em si mesmas. Elas relataram como isso foi libertador e afetou não só o trabalho delas de modo geral, mas as próprias relações fora do trabalho. Esses alunos e alunas entenderam na prática a importância da palhaçaria na sociedade em que vivemos e compreenderam o palhaço não como um “escape”, mas como uma figura subversiva e transgressora. Eles vivenciaram no próprio corpo, pelas práticas sugeridas, a potência do palhaço; o erro como inerente e inevitável ao ser humano; o risco; a relação com outros corpos, seja em cena ou na platéia etc. E, assim, foram experimentando, se descobrindo transgressores e subversivos consigo mesmos, encontrando a liberdade para operar dentro da sociedade em que vivem. Mesmo sabendo que 58
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seus familiares e empregadores esperam que eles sejam modelos perfeitos, eles descobriram que não precisam ser o que esperam que eles sejam, descobriram sua autonomia e que podem ir contra as expectativas. Às vezes, um simples convite para ir à frente do palco e falar uma língua inventada e nada mais pode ser simplesmente assustador e desesperador para alguns. Nos exemplos citados até aqui, está claro como cada aluno tem suas próprias barreiras, seus próprios impedimentos e que, muitas vezes, superar essas barreiras pessoais já é em si um grande objetivo. Na maioria dos casos, falamos de pessoas que não apenas tiveram dificuldades com exercícios ou no aprendizado de técnicas, mas que vivem dilemas de como proceder numa sociedade que julga, que consome imagens e possui ideais de perfeição, onde o mercado norteia e afeta diretamente as relações. Assim, pude afetar os alunos sem usar um nariz vermelho ou “performar”, mas aplicando apenas alguns princípios. O maior ganho não foi a obtenção do apuro técnico (ainda que muitos o tenham conseguido), mas esse entendimento da palhaçaria e a aplicação dela na sociedade, nas relações, enquanto instigadora para uma real autonomia do indivíduo. A pedagogia de aprender a ser quem se é se constitui como potência de transgressão e subversão.
BIBLIOGRAFIA: ACHCAR, Ana. Palhaço de hospital: proposta metodológica de formação. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2007. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Coletivo Sabotagem, 2002. PELBART, Peter Pál. “Biopolítica”. In: Revista Sala Preta, v. 7. São Paulo: PPGAC; Universidade de São Paulo, 2007.http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57320 Acesso em 20 de agosto de 2016.
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Representação e tragicidade Ian Calvet Marynower*
Verificam-se tensões entre representação e tragicidade. A existência humana é fadada a uma produção infinita de duplos de um “si-mesmo” que só se efetiva como representação. Descarta-se a possibilidade da escolha: o homem existe para ser duplo, habitar as representações de si e do mundo. Não poder escapar às representações é um aspecto do trágico. Um paralelo entre questões de Antonin Artaud e a peça Seis personagens à procura de um autor, do italiano Luigi Pirandello, tenta elucidar as indagações deste artigo. O projeto artaudiano visa ao aniquilamento da representação em busca do “si-mesmo”; Pirandello eleva a representação à máxima potência, evidenciando-a pela multiplicação. Isto insere sua dramaturgia na tradição barroca do “grande teatro do mundo”. Palavras-chave: tragicidade – representação – modernidade.
*Orientação: Carmem Gadelha. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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Representação e tragicidade
A existência é representação: eu existo naquilo que circunscreve o meu ser, um corpo que também é imaterial, afetivo, imagético, virtual. Estou fadado a ser sempre uma representação de mim mesmo: um “ser”, um “cidadão”, um “ator”, um “personagem”. Este corpo, meu, é indissociável da teia relacional na qual estou inserido; esta teia é e só pode ser uma cadeia de múltiplas e infinitas representações. Tenho um corpo que só se verifica – se afirma enquanto tal e circula – através da linguagem. Ela torna o meu corpo existente (do latim ex(s)istere: sair de, manifestar-se, mostrar-se); é a linguagem que cria o meu corpo, ou diferentes corpos de mim mesmo. Por que ter este corpo e não, antes, todo o resto? Por que ter este corpo e não, antes, nada? É necessário haver um “outro” para que eu possa existir e, na medida em que o outro me reconhece, jamais poderei ser aquele que me reconheceu. Além disso, o outro pode ser eu mesmo, no espelho. É um paradoxo insuperável e trágico: só posso existir quando me diferencio; contudo, ao me diferenciar, se estabelece a incompletude: só me completo no que me diferencia; e nunca serei todo o resto que me diferenciou. O outro, que me habita em diferença e identidade, força uma cisão de mim comigo mesmo, enquanto outro. Diferenciar para identificar; tudo está em relação, troca, reciprocidade. Mantém-se uma zona de contato, de mistura, de comum, pois a diferenciação nunca se efetua por completo. Ao homem cabe a capacidade de lidar com esse fato trágico. Dentro deste turbilhão incessante de produções de representação, que é a sua existência, ele se apodera dos mecanismos do agir sobre a representação, cria e provoca outros circuitos e representações que constituem tentativas de fugas (DELEUZE & GUATTARI, 1995). Portanto, introduzo ilustríssimas figuras: de um lado, Antonin Artaud; do outro, Luigi Pirandello. O atormentado Artaud e sua empreitada trágica pelo aniquilamento da representação para encontrar um “si-mesmo”. O 62
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dramaturgo Pirandello evidencia, multiplica e joga com os modos de representação. Abaixo, proponho uma abordagem dos projetos de ambos e identificar as zonas de contato. Antonin Artaud e a busca do aniquilamento da representação Há, portanto, algo que destrói o meu pensamento; algo que não me impede de ser o que poderia ser, mas que me deixa, a bem dizer, em suspenso. Algo furtivo que me tira as palavras que encontrei (ARTAUD apud DERRIDA, 1995, p.119).
Esse “algo que destrói”, dito por Artaud, é a representação, o duplo, a linguagem, aquilo que gera a diferença e a identidade. No surgimento de uma ideia, no lapso criativo ou no simples ato de começar a pensar em algo, ocorre o furto, tudo aquilo que se perde. Acredito que a extrema consciência de Artaud sobre este furto constitui a sua tragicidade; ficar constantemente incompleto, “em suspenso”, sabendo que há sempre algo que já fugiu, que foge agora e que constantemente fugirá porque pertence desde sempre à linguagem que só é minha sendo (d)o outro. “Caro amigo, o que tomastes [sic] como obras minhas era apenas o que não se aproveitava de mim próprio” (ARTAUD apud DERRIDA, idem, p.127). Os escritos de Artaud, sob seu ponto de vista – “sofrer e pensar estão ligados de uma maneira secreta” (ARTAUD apud DERRIDA, idem, p. 111), são representações de um grande “lixão” de objetos em desuso, descartados, abandonados. Sobretudo roubados. Representações daquilo que nunca foi de fato. Ele mesmo diz: “As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós” (ARTAUD, 2012, p.83). A reflexão sobre qualquer coisa é uma morte sofrida, posto que é construção de discurso, de representações a afastar cada vez mais o homem do próprio corpo. Pensar gera 63
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a impossibilidade do encontro com o “si-mesmo”, o duplo; cria a fronteira entre corpo e pensamento. Nietzsche apresenta a figura de Arquíloco: Belicoso servidor das musas, que se entrega febril e fogosamente à existência [...] aterroriza com o grito do seu ódio e do seu desprezo, com as explosões delirantes de todos os seus apetites (NIETZSCHE, 2008, p.37).
A priori, reconhecemos nesta figura a sua desmedida - como Dionísio, o “Sem-Contornos”. Ele seria mundo sem diferença; a unidade do “si-mesmo” que é sempre múltiplos outros, totalmente identificado com o “Uno Primordial”. Contudo, revela-se de imediato o inexorável fato: Arquíloco, homem das paixões ardentes [...] não é mais do que uma aparição do gênio, que já não é mais Arquíloco. Porque é o gênio do mundo que exprime sim bolicamente o seu sofrimento primordial na figura alegórica do homem Arquíloco (NIETZSCHE, idem, p.40).
Arquíloco não escapa de ser uma alegoria, individuada, apolínea; ele é uma representação do irrepresentável; o paradoxo tece definitivamente não somente a indissociabilidade entre Apolo e Dionísio, como também entre vida e representação. Só no ato da produção artística, e na medida em que se identifica com o artista primordial do mundo, é que o gênio poderá saber algo da essência eterna da arte; porque só então, como por milagre, se tornará semelhante à perturbadora figura lendária que tinha a faculdade de voltar os olhos para dentro de si própria; o gênio será então objeto e sujeito ao mesmo tempo, será simultaneamente poeta, ator e espectador (NIETZSCHE, idem, p.42).
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No limite, Artaud deseja esse ser-poeta-ator-espectador, sem diferenças. Um ser que só exista no ato da produção artística; ser, embora a contragosto, uma fábrica de alteridades para alcançar o “si-mesmo”. Evidencia-se, mais uma vez, um paradoxo: buscar a essência é produzir aquilo que o afasta dela. Artaud deseja esta figura lendária de Nietzsche: captações das reverberações nietzschianas ou profecias do gênio Nietzsche que deseja plasmar Artaud? Antonin Artaud foi diagnosticado como esquizofrênico. Suas questões são intrinsecamente ligadas ao diagnóstico: ele tem dificuldade de estabelecer fronteiras entre si e o outro, o dentro e o fora; é um corpo que tende a perder seus contornos e se espraiar no espaço. A primeira evidência esquizofrênica é que a superfície se arrebentou. Não há mais fronteira entre as coisas e as proposições, precisamente porque não há mais superfície dos corpos [...] é uma espécie de corpo-coador (DELEUZE, 1975, p.102).
Um corpo furado, que se deixa transpassar; se não há mais superfície, existe apenas profundidade sem limites. “Tudo é mistura de corpo e no corpo, encaixe, penetração” (DELEUZE, idem, p.103). Artaud é um encarcerado; sua vida é uma guerra contra as palavras que ele mesmo escreve. Ele está suspenso da “vida” – que se passa fora do hospício. Um corpo de limites não fixos. Paradoxalmente, dentro do espaço limitador da sala, esse corpo desfronteirizado é, ao mesmo tempo, a prisão de Artaud; esse corpo de contornos indefinidos também tende a se fundir com a frieza rígida limitadora da sala na qual habita – prisão que se dilui em outra prisão. A busca da eliminação do duplo para chegar ao “si-mesmo”, à vida, que pulsa sem diferenças, também pode ser a bus65
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ca por derrubar as paredes do hospício e integrar as fronteiras borradas de seu corpo à vastidão do mundo. Deste modo, Artaud encontraria outra prisão, mundo, reafirmando cada vez mais o seu trágico destino de ser sem fronteiras, habitando as fronteiras. Por outro lado, a mesma busca expressa o medo de se perder definitivamente, de se diluir por completo, de se dividir em um outro. Neste caso, o trabalho de reconstituição resulta sempre em diluição de contornos. Como Sísifo carregando a pedra para o alto da montanha e configurando a tragicidade de eternamente perder a si mesmo. Pirandello e Seis personagens à procura de autor Era mais um dia de ensaio da companhia de teatro, contudo, inesperadamente, surgem “seres” que se intitulam como “personagens” à procura de um autor. O conflito se estabelece entre o diretor da peça, os atores “reais” e os personagens “ficcionais”, que buscam meios para manifestar os seus dramas. A aparição destas figuras fantasmáticas mostra seu desespero por alcançar materialidade: só na cena elas podem existir; sem a figura de um autor para escrevê-los e o diretor para criá-los em cena, não haverá quem os identifique, quem os diferencie de todo o resto; logo, eles morrem. Porém, tanto os fantasmas quanto as personagens que se dizem “reais” são, obviamente, fictícios. É uma cadeia de representações: atores que representam personagens, cada um com sua história dramática, para serem representados por outros atores; estes também não escapam de serem representações feitas por atores. É uma teia de ramificações crescentes, como dois espelhos: mise en abîme. Perde-se o contraste, a diferença entre ator-personagem, real-ficcional. São infinitas representações, tornando-se impossível afirmar quem é o original, o “real fundante”, ou a cópia. 66
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Seis personagens à procura de autor é o próprio aprisionamento. Todos os personagens são pertencentes à obra, não podem escapar dos seus dramas, das palavras escritas por Pirandello, do resultado final da trama. Para além deste texto, todos os personagens já criados (escritos e inscritos) na história da humanidade e que povoam o imaginário universal, resistem no tempo, se individualizam do caos, compõem o cosmos; logo, são seres. Como seres, se igualam a qualquer outro, como eu ou você. Ora, ser ou não ser personagem não seria uma questão de estabelecer dicotomicamente um real ou um ficcional, mas sim, uma questão de ter consciência da autoria? Se eu não sei quem é o autor, me iludo com uma autonomia que não tenho? Se eu não sei quem é o autor, ele não existe, logo, sou totalmente autônomo? Se eu não sei quem é o autor, crio um para me adotar; logo, sou criador e criatura e, ele também, uma criatura e um criador? Artaud e Pirandello são diferentes posições de uma mesma coisa: o dividir e o multiplicar. Evidenciar a representação ou buscar negá-la é, de qualquer modo, assumir a inescapabilidade a ela. Ambos são produtores de diferença, de contornos. A exponenciação da representação, em Pirandello, gera um espaço aprisionador do “si-mesmo”, que abarca criador e criaturas. Artaud gera o mesmo espaço aprisionador quando, ao tentar apagar seus traços, cria-os cada vez mais. Trabalhar na multiplicação, como faz Pirandello; ou na busca por chegar a um “zero” indivisível, como faz Artaud, é, na mesma (des)medida trágica, trabalhar com possibilidades infinitas.
BIBLIOGRAFIA: ARTAUD, Antonin.O teatro e o seu duplo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2012.
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DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Ed. Editora 34, 1975. _____ & GUATTARI. Mil platôs. São Paulo: Ed. 34, 1995, v. 1. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. NIETZSCHE, Friedrich. A origem da tragédia. São Paulo: Centauro Editora, 2008. PIRANDELLO, Luigi. Seis personagens à procura de autor. São Paulo: Ed. Peixoto Neto, 2004.
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Memória e tragicidade Henrique S. Bueno*
Este artigo propõe a investigação da memória como aspecto de tragicidade. Adotando a peça A gaivota (Tchékhov) como objeto de estudo, pretende-se partir dos personagens Trepliov e Arkádina para evidenciar aquelas relações. No universo de Tchékhov, é possível verificarmos um estado de recusa do trágico. É característico dessas figuras negar o enfrentamento do tempo presente, muitas vezes por se apegarem a um passado ou a uma ideia de futuro. Assim, é possível utilizar conceitos elaborados pelos filósofos Henri Bergson e Nietzsche para entender como se dá a relação desses personagens com o trágico. Palavras-chave: tragicidade – memória – modernidade.
*Orientação: Carmem Gadelha.
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Memória e tragicidade
A memória define temporalidade: passado, presente e futuro se ordenam, cronologicamente ou não. Por essa capacidade de memória, o ser humano compõe também o espaço; articula essas dimensões no estabelecimento de relações com o mundo. Tomar a memória unicamente como uma lembrança vinculada ao passado é destituí-la de sua função relacional. Ocupamos determinada localização temporal e, por esta perspectiva, entendemos passado como algo que se deu no mundo externo, mas hoje subsiste em nosso interior, pelo que passado e futuro convergem para nosso corpo presente. Desta forma, a tragicidade funda-se justamente na confluência de tempos no corpo, onde eles convivem, fazem interferências mútuas e, em alguns casos, se embaralham. Naturalmente, a recusa ao trágico, que verificamos em A gaivota (TCHÉKHOV, 2000), é um acontecimento relevante nas relações humanas. A inação normalmente é consequência de apego ao passado, impedindo um posicionamento ativo em relação ao presente e ao futuro. Henri Bergson, em Matéria e memória (1999), aponta a existência de um tempo psicológico que não é o mesmo tempo tido como homogêneo, vivido no mundo externo. O primeiro corresponde a um aspecto de duração específico, não organizado pela cronologia dos fatos da mesma forma como se dá no tempo homogêneo (e externo). Assim, presente, passado e futuro ocupam uma duração que diz respeito a sensações, percepções e afetos. A memória tem suporte num tempo espesso: trata de relações dadas entre o corpo e o espaço. Pode-se mesmo dizer que o espaço do corpo constitui o tempo da memória. De acordo com isso, os estímulos que recebemos de fora nos afetam, convidam e impulsionam a agir. No entanto, é esse “convite” que nos diferencia de outros seres vivos: o fato de não respondermos de forma automática aos estímulos externos está ligado ao nosso poder de memória. A resposta a um estímulo 70
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é guiada pelas lembranças e, nesse sentido, podemos entender que o lugar da memória não se restringe a um arquivo de experiências vividas. A memória dá vida ao passado, que, mantendo-se no presente, aponta perspectivas de futuro. Desconsiderar por completo nossa experiência ao assumir determinadas ações é tomar-nos como um ser puramente impulsivo. Por outro lado, aquele que traz lembranças à luz da consciência sem aproveitá-las para transformar a situação atual, por viver apegado ao passado, é apontado por Bergson como o “homem sonhador”. Essa ideia de inação também está presente em Nietzsche (2013), que traz um outro olhar sobre a questão. Para ele, é possível falarmos em duas forças atuantes: uma de conservação e uma de criação e expansão. A primeira tem como fundamento a “moral de escravos”¸ enquanto a segunda provém da “moral de senhores”. Escravo e senhor operam em sentidos opostos. O senhor costuma agir como se tivesse pleno domínio sobre o mundo. Não há nele receio de negar as oportunidades que aparecem em seu caminho. Em contrapartida, o escravo constrói a memória de um lugar cruel, que o coloca em uma situação de permanente sofrimento. A imagem desse lugar traz o medo como principal motor da vida do escravo, impedindo a sua ação. O “homem ressentido”, então, surge no momento em que a “moral de escravos” passa a preponderar sobre a “moral de senhores”. Maria Cristina Franco Ferraz (2013) diz que esse homem não é capaz de esquecer a dor do passado; não percebe que a memória é feita também de esquecimento. As visões trazidas por Bergson e por Nietzsche apresentam claramente em comum a inação no tempo presente e a consequente inépcia para o futuro. Elas se aproximam e correspondem: enquanto o “homem sonhador” não age por apego ao passado, o “homem ressentido” não age por medo do futuro. Vale dizer que, em ambos os casos, o presente é desqualificado. 71
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Por tais perspectivas, podemos traçar uma diferença entre Trepliov e Arkádina, personagens de A gaivota. Entendemos que os dois se enquadram na conceituação formulada por Nietzsche, mas apenas a última pode ser tida como “sonhadora”. As experiências vivenciadas por Arkádina não são tomadas a partir de uma perspectiva ativa. Arkádina se nega a agir por adoração a um passado que, segundo seu próprio discurso, foi um tempo de grande sucesso na profissão de atriz. Porém, ao invés de tentar buscar no presente o que ele lhe pode dar, ela vive a nostalgia (dor da ausência), como se o passado, feito de vazio, preenchesse o presente. Por este viés, podemos sublinhar a diferença entre Trepliov e sua mãe, percebendo uma dramaticidade que se efetiva na trajetória do escritor através de sua recusa ao trágico. Quando Arkádina se nega a agir, isso se manifesta como resposta às suas percepções do mundo, enquanto seu filho parece simplesmente não responder àquilo que chamamos de “convite à ação”. Ainda em Matéria e memória, o filósofo Henri Bergson enfatiza a existência necessária de solidariedade entre matéria e espírito. A memória transcende o corpo, muito embora exista através dele; da mesma forma, o corpo também só vive porque tem memória. Um corpo incapaz de elaborar resposta aos estímulos da natureza não sobrevive a ela e se decompõe. É tragado pelo tempo. Assim como a capacidade de elaborar respostas a tais estímulos inexiste sem que haja um corpo. Trepliov é a representação desse corpo. O personagem não consegue transformar suas experiências vividas em movimento de resposta às afecções. Não consegue atribuir corpo a elas através de ações presentes. Aliás, Trepliov sequer chega a elaborar um movimento-resposta aos estímulos externos. É a figura do “homem ressentido” que se vê impedido de agir pela sensação de medo criada a partir de suas vivências. O personagem permite o medo como motor de suas 72
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atitudes e, assim, permite a renúncia a seu futuro (inclusive como escritor). Segundo Carmem Gadelha (2013), não escrever a peça dramatúrgica que tem em mente é sinal da incapacidade de Trepliov de produzir corpo, compondo-o com tudo aquilo que for capaz de tirá-lo da inércia de escravo. Esta inércia é também inépcia que o impede de ver o presente ao seu redor: o da Revolução gestada nos bastidores – do teatro, da Rússia de 1904. Nesse ponto conseguimos identificar a perversão de solidariedade entre seu estado cerebral e seu concomitante motor. E tal perversão, na obra de Tchékhov, se vê materializada na figura de Arkádina: é ela que nega ao filho a possibilidade de sua própria existência, subvertendo e desqualificando suas percepções do mundo, impedindo que ele se coloque como ser ativo. Inevitavelmente, a figura da mãe traz consigo um imaginário opressivo. Trata-se de um corpo com o qual estabelecemos um contato quase unificante. Fisicamente, os corpos de uma mãe e de um filho já se integraram de maneira quase indissociável. E essa indissociabilidade é o verdadeiro dilema da relação materno/filial: em que ponto se dá a cisão entre esses corpos? Diante da perspectiva de Bergson, entendendo o corpo como memória e linguagem, esse limite torna-se ainda mais tênue. Tomemos também D. W.Winnicott (1975) como referência: nos primeiros meses de nossa existência toda a nossa construção corporal é feita através da perspectiva espaço-temporal compartilhada com a mãe. Nossas memórias foram construídas em conjunto com nossas mães: dois corpos que ocupavam quase o mesmo espaço-tempo e vivenciavam as mesmas situações. A cisão de corpos se efetiva através do reconhecimento do próprio “eu”. Nos primeiros meses de vida, o bebê ainda não percebe a mãe como “outro”; isso se alcança através de objetos que, segundo Winnicott (idem), podem ser de73
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nominados como “objetos transicionais”. Na perspectiva de um recém-nascido, tais objetos vão assumindo espaços que eram ocupados pela figura da mãe e, assim, permitem que o bebê vivencie novas experiências. Esses “fenômenos transicionais”, no entanto, precisam ser permitidos e propiciados pela própria mãe. Ademais, é importante ressaltar o papel de espelho da figura da mãe: o bebê precisa receber de volta aquilo que está dando, ou seja, é preciso que haja reciprocidade e cumplicidade no olhar da mãe que segura seu filho no colo. Essa relação, feita de cisão e união, constroi-se de forma a desenvolver no bebê a capacidade de relacionamento com o meio social. É o afago da mãe (com seus afastamentos e aproximações) uma das primeiras percepções de mundo do bebê. No caso de Trepliov e Arkádina, tudo parece indicar o compartilhamento de um mesmo corpo de ressentimentos. Arkádina parece não ter viabilizado a individualidade de seu filho. Longe disso, o que se verifica é justamente a tentativa de negar-lhe essa individualização a partir da ridicularização daquilo que Trepliov traz de mais genuíno: a sua escrita criativa, que é, metaforicamente, a escrita de si mesmo. Porém, a força dessa maternidade, embora se coloque de forma intensamente perversa para o escritor, não concentra em si toda a potência que leva Trepliov ao seu destino de suicida. Junto a ela estão Nina e Trigorín, que refletem no personagem frustrações no âmbito afetivo e profissional. Ambos subjugam as ideias propostas por Trepliov e, quando ele perde o suporte materno, vê-se também oprimido pela mulher que gosta e pelo profissional que admira. A partir dessas frustrações, Trepliov não consegue se entender e assumir como o ser incompleto que somos. Ele refreia todas as suas possibilidades de ação: não há mais passado ou futuro que lhe sirva de trampolim para construir uma ação presente. 74
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Podemos entender o suicídio do personagem como uma forma de tentar encontrar sua própria completude. Isto o vincula ao romantismo e ao drama burguês. Ele renuncia ao seu poder de ação como quem ignora sua própria existência, agindo contra ela. O texto de Tchékhov pode ser visto como um paradigma moderno da recusa ao trágico, pois o que perfaz a tragicidade é agir contra as evidências, um atirar-se nada escravo sobre uma decisão. É esse aspecto de recusa que nos permite entender histórica e politicamente A gaivota. Numa Rússia pré-Revolução, pressupõe-se que as ideologias e os posicionamentos políticos fossem confrontados por muitos, embora o país estivesse em estado de latência. Os personagens desenvolvidos nesta peça, no entanto, colocam-se alheios a qualquer contexto político-social. Por escolha ou ignorância, eles não se envolvem com nada que não lhes pareça afetar a vida pessoal. Mais uma vez, a negação do risco e a persistência numa situação que, no entanto, não lhes soa capaz de mudar suas trajetórias. Para além do alheamento político ser, por si só, um posicionamento político, é possível ver no texto de Tchékhov a frágil zona de conforto pela qual as personagens transitam. Trepliov é atravessado por tempo e espaço, por mais que insista em pairar sobre eles. Será sempre abatido como uma gaivota.
BIBLIOGRAFIA: BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FERRAZ, Maria Cristina Franco. Homo deletabilis: corpo, percepção, esquecimento do século XIX ao XX. Rio de Janeiro, Garamond, 2010. GADELHA, Carmem. Corpo, espaço, tempo - investigações sobre poética do teatro. Rio de Janeiro: Aretê, 2013.
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Memória e tragicidade
NIETZSCHE, F. Origem da tragédia. Lisboa, Guimarães Editores, 1982. _____. A genealogia da moral. Petrópolis, Vozes, 2013. TCHÉKHOV, Anton. A gaivota. São Paulo: EDUSP, 2000. WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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Viewpoints no ensino médio: a técnica em cena Camila Simonin* A pesquisa de Iniciação Científica Viewpoints no ensino médio: a técnica em cena tem em vista estudar o método de treinamento de atores e criação cênica desenvolvido por Anne Bogart, com ênfase na aplicação e análise do Viewpoint “forma” na composição e direção de montagem de textos teatrais com alunos de Ensino Médio. Será analisado o processo de ensaio e apresentação de cenas da peça Rinoceronte, de Eugéne Ionesco; e apresentado o processo de montagem de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, sendo esta aprofundamento do estudo ainda em andamento no segundo semestre de 2016. A pesquisa teve início no segundo semestre do ano de 2015, no “Fazendo Gênero”, projeto pertencente ao setor de Artes Cênicas do Colégio de Aplicação da UFRJ.
Palavras-chave: viewpoints - ensino-médio - teatro físico
*Orientação: Celeia Machado. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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A pesquisa que intitula este artigo faz parte do “Fazendo Gênero”, projeto desenvolvido no Setor Curricular de Artes Cênicas do Colégio de Aplicação da UFRJ, orientado pela Professora Doutora Celeia Machado. Como objetivo, o “Fazendo Gênero” propõe a aplicação, nas aulas regulares de Artes Cênicas no Ensino Médio, de exercícios corporais e de jogos teatrais fundamentados nas ideias e conceitos do que, grosso modo, compreendemos por “teatro físico”. Como base para este trabalho, temos a pedagogia de ator desenvolvida por Jacques Lecoq (1997) em seu livro O corpo poético – uma pedagogia da criação teatral. No que tange à estrutura do ano letivo dentro das aulas de Artes Cênicas, iniciamos o processo com a “máscara neutra” como uma possibilidade de novas experiências de corporeidade e procura por um corpo extracotidiano. A ênfase recai no foco, limpeza e economia dos gestos, aspectos que serão muito exigidos ao longo do ano. A partir do segundo trimestre, iniciamos a experimentação dos territórios dramáticos tragédia, melodrama e comédia. Seguindo a pedagogia de Lecoq (1997, pp.152-155), cada território articula um corpo para a cena, um discurso e um modo do ser humano estar no mundo. Ao trabalhar com o jogo trágico, por exemplo, abordamos o ser da polis, do coletivo, que possui consciência de si e do mundo. Com efeito, o corpo demonstra isso através de uma amplitude de quem sustenta uma posição, razão pela qual os aspectos ressaltados nessa etapa são a tonicidade corporal, a argumentação, o coro, o herói e a presença. No último trimestre, trabalhamos o melodrama e o cômico. No melodrama, falamos do ser da subjetividade, portador das grandes emoções. Nesse território, os aspectos principais são a emoção, os níveis de intensidade dramática e o drama corporal. Vale ressaltar que, por drama corpo78
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ral, entendemos as relações físicas nas quais o corpo se coloca a fim de construir a dramaticidade com a qual trabalha o melodrama. Isto pode ser observado nas torções, oposições e na diagonalidade, seja no corpo do ator ou em suas trajetórias em cena; as pausas e suspensões também são tratadas como estruturas melodramáticas. Por fim, no cômico, falamos do ser que não pertence e que se coloca no lugar do ridículo. Ele é o alvo. Trabalhamos, nesse território, portanto com a relação com o público, a incongruência, o exagero e o contraste. Considero válido ressaltar que, dentro do projeto, não temos como prioridade alcançar um domínio desses conteúdos, mas proporcionar aos alunos a vivência dessas experiências. Ou seja, a vivência de um corpo trágico, dos grandes sentimentos, dentre outros. Iniciei minha jornada no “Fazendo Gênero” em março de 2015, acompanhando as turmas 21B e 21D em suas aulas de teatro – disciplina inserida na grade curricular obrigatória do Colégio de Aplicação e que consta de 1h40 como carga horária semanal. Em agosto de 2015, defini meu próprio caminho de pesquisa, cujo tema seria o diálogo entre a técnica de viewpoints e o “teatro físico”, na forma como ele é trabalhado no “Fazendo Gênero”. Em 2015, meu trabalho estava mais focado na observação e co-participação nas aulas, elaboração de relatórios e registros visuais e tradução do The viewpoints book, escrito por Anne Bogart e Tina Landau (2005), que tem sido meu principal referencial teórico na pesquisa. O interesse pelo tema já descrito anteriormente teve origem no desejo de experimentar uma outra abordagem para as formas do fazer teatral que não se prendesse a uma justificativa exclusivamente emocional e/ou psicológica para a construção de um personagem, por exemplo. O trabalho com 79
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as vertentes dos viewpoints e do ‘teatro físico” permite a desconstrução dessa ideia através da procura por um teatro que fuja do textocentrismo e busque uma imagética. Em 2016, continuo trabalhando com as mesmas turmas do ano anterior, agora na segunda série do Ensino Médio. No primeiro semestre, as turmas 22B e 22D ficaram responsáveis pela apresentação de algumas cenas da peça Rinocerontes, em que Eugéne Ionesco retrata uma cidade em que os cidadãos vão pouco a pouco transformando-se em rinocerontes. Originalmente escrita na segunda metade do século XX, a peça faz referência ao processo de adesão dos cidadãos alemães ao nazismo. Como mote para a montagem, procuramos elaborar uma concepção que trabalhasse com os elementos fascistas no atual contexto político e social brasileiro. Portanto, nessa segunda etapa, atuando na direção das cenas, passei a perguntar como trabalhar o viewpoint “forma” – ponto de vista cênico que escolhi para pensar nesses personagens humanos que se transformam em paquidermes – na construção de um corpo em cena para a montagem de cenas retiradas do texto de Ionesco. Segundo Anne Bogart e Tina Landau, “forma” pode ser definida como: O contorno ou perfil que o corpo ou corpos fazem no espaço. Toda Forma pode ser quebrada em (1) linhas; (2) curvas; (3) uma combinação de linhas e curvas. Portanto, no treinamento com Viewpoints nós criamos formas que são redondas, formas que são angulares, formas que são uma mistura dessas duas. (...) Por fim, Forma pode ser feita em um dos três modos: (1) o corpo no espaço; (2) o corpo relacionado com a arquitetura fazendo uma forma; (3) o corpo relacionado com outros corpos
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fazendo uma forma” (BOGART; LANDAU, 2005, p. 9) 1
Assim, os objetivos da minha pesquisa constituíram-se em investigar como construir um corpo capaz de formar imagens que não pertencessem a uma organização humana socialmente elaborada e fazer uso dessa nova organização corporal como meio de evidenciar as características “não-humanas” – ou seja, traços que transbordassem a forma humana naturalizada. Além disso, tinha como meta a geração de imagens ao longo das cenas compostas por seus diferentes elementos, tais como ator/ator, ator/cenário, dentre outros. Como metodologia, selecionamos, dentro da técnica com viewpoints, algumas práticas que trabalhassem com a “forma” e as aplicamos em ensaios e oficinas. A maioria dos exercícios procurava trabalhar com a pesquisa de movimentos que expressassem retas e curvas pelo corpo, compondo formas individuais e coletivas dentro das experiências em aula e da cena. Era extremamente importante que, durante as oficinas, o aluno tivesse um olhar sensibilizado para a imagem que ele estava compondo e a força que ela teria como signo para a cena. Avalio que as discussões e concepções elaboradas para o texto de Ionesco me permitiram, dentro da pesquisa, avançar no que tange à organização visual da cena, algo que, como estudante de Direção Teatral, busco constantemente. Isso porque o trabalho com formas gera um pensamento completamente 1
No inglês original: “The contour or outline the body (or bodies) makes in space All Shape can be broken down into either (1) lines; (2) curves (3) a combination of lines and curves. Therefore, in Viewpoints training we create shapes that are round, shapes that are angular, shapes that are a mixture of these two. In addition, Shape can either be (1) stationary; (2)moving through space. Lastly, Shape can be made in one of three forms: (1) the body in space; (2) the body in relationship to architecture making a shape; (3) the body in relationship to other bodies making a shape”
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diferenciado sobre o ator em cena, sua relação com os demais que ali estão e com o cenário. Quanto ao trabalho com alunos de Ensino Médio, muitas questões foram abertas. Percebi o quão desafiante é o trabalho com alunos-atores e a partir desta pesquisa, tenho a considerar que, dentro da escola, beira o impossível realizar uma relação ator-diretor fortemente hierarquizada, tratando o aluno/ator como alguém que “não sabe ou não entende de teatro” e portanto não tem muito a contribuir com a composição cênica, relegando a ele um papel de mero executor/objeto das ideias do diretor – pensamento e preocupação esta já colocada por Paulo Freire: É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. [...] Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina, aprende ao ensinar e quem aprende, ensina ao aprender. [...] Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender (FREIRE, 1996, p. 12-13).
Esta reflexão me levou a concluir que não posso exigir uma mesma proposta de direção a todos os alunos de todas as cenas trabalhadas. Assim, muito do meu investimento se baseou 82
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em uma troca constante: aproveitar para a composição artística aquilo que cada um poderia oferecer – tanto eu, como os adolescentes – para o alimento e a pesquisa dentro de cena; material expressivo, como tempo, dedicação e comprometimento. A partir dessa experiência, passo agora a mais uma nova etapa da pesquisa: o trabalho com o viewpoint “forma” na encenação da peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. Neste semestre, o foco será a utilização da forma não só para a organização visual cênica, mas também para a construção de personagens e trabalhos laboratoriais em sala de aula que sirvam como alimento para maior conscientização da criação de imagens na cena. É uma ampliação e aprofundamento da primeira experiência com viewpoints. O trabalho com alunos-atores tem-se revelado uma grande oportunidade de pensar em um processo integrado e dialógico do fazer teatral. E, sobretudo, creio ter sido muito importante para refletir sobre meu lugar como diretora dentro de uma pesquisa para a cena, seja ela dentro da escola ou não.
BIBLIOGRAFIA: BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The viewpoints book – a pratical guide to viewpoints and composition. Nova York: Consortium Book Sales & Dist, 2005. ECO, Umberto. “O fascismo eterno”. In: Cinco escritos morais. Editora Record, 1997. ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa. Editora Paz e Terra, 1996. LECOQ, Jacques. O corpo poético – uma pedagogia de criação teatral. São Paulo: Editora SENAC, 1997.
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Por uma perspectiva política, histórica e social do trágico na contemporaneidade: considerações preliminares Felicio Dias*
Este ensaio discute algumas questões recorrentes nas produções artísticas e culturais sob o redimensionamento das discussões na contemporaneidade e da inclusão das catástrofes históricas, políticas e sociais como eventos trágicos nos séculos XX e XXI. Para dar conta de nossas investigações, traremos as lições sobre o trágico por meio do viés histórico, político e não reducionista de Walter Benjamin, Raymond Williams e Terry Eagleton, pensando a obra The crucible, do dramaturgo Arthur Miller, cuja produção advoga a necessidade de se repensar e ampliar o escopo teórico sobre o trágico e a tragédia.
Palavras-chave: teoria – trágico – tragédia.
*Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UERJ. Bolsa CAPES.
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Por uma perspectiva política, histórica e social do trágico na contemporaneidade: considerações preliminares
Introdução
Se resgatarmos uma breve consideração de Hans-Georg Gadamer (1997, p. 212), nela observaremos uma reflexão em que, para o filósofo, o trágico não seria um fenômeno sobreposto a um específico tipo de gênero ou de arte, “[...] na medida em que se encontra também na vida”. Ao observar de que modo os termos “trágico” e “tragédia” se incorporaram ao discurso cotidiano, principalmente nas grandes cidades, cremos haver uma certa urgência em deslocar as teorias do trágico e da tragédia de um espaço que antes era, primeiramente, tributário das terminologias literárias e dramáticas, para o âmbito das esferas públicas, em que a problematização dos termos ruíram seu sentido ortodoxo, trazendo a necessidade de reaver não somente o problema filosófico, mas principalmente as marcas históricas e culturais que implicam ressignificação dos conceitos de trágico e tragédia. O trágico e a tragédia podem-se ocupar dos conflitos enraizados nas representações da cidade, como a experiência da violência urbana, da exploração social e ideológica, ou até mesmo do não-pertencimento, no caos da vida hostil na metrópole. Tal possibilidade do trágico, no entanto, nos situa em uma zona conflituosa, por se fixar na modernidade tardia, como bem mostra a professora e crítica Lucia Helena (2010, p. 15), a qual, a priori, não mais produz “[...] heróis em desgraça e falha trágica, e sim vidas desperdiçadas”. Auxiliados pelas reflexões de Lucia Helena, iremos estudar a perspectiva trágica pelo viés do que aqui decidimos chamar de “um olhar trágico”, assim definido por Helena (idem, ibidem): “[...] olhar que se manifesta capaz de desvendar um tesouro de sentido em que o fragmento, o caco e a ruína fazem falar o outro recalcado pela violência da urbanidade que banalizou o mal”. As palavras de Helena saúdam uma contemporaneidade que 88
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não renega o flerte com a solidão, com o esvaziamento da subjetividade, com a liquefação dos tempos, com a fragmentação, com o fechamento do sujeito e, principalmente, com as ruínas como uma forma de conceber não a queda do sujeito em si, mas o desmoronamento e o abalo de seu próprio mundo de segurança, certeza e felicidade. O crítico marxista Terry Eagleton (2013) advoga a reformulação dos termos sob as transformações dos entretempos pós-modernos, das sociedades globalizadas e, principalmente, das relações entre cultura, história e tragédia. Por isso, os estudos acerca do trágico e da tragédia, hoje, necessitam resgatar sua própria problemática interna – a saber, sua preocupação política e histórica – para ampliarmos o escopo teórico acerca dessas teorias. A visão trágica transcende as restrições da tragédia enquanto gênero literário e se fundamenta nas relações da arte com o mundo. O trágico não se circunscreve a uma pantomima trágica (BENJAMIN, 2011), mas se realiza numa amálgama de diferentes discussões dentro das artes e das humanidades em geral. Não há uma prescrição das manifestações do trágico no curso da literatura, mas sim uma especulação mais profunda e aberta, sem conceituar uma ideia fechada. Buscam-se, assim, aspectos do trágico e da tragédia que podem parecer obsoletos quando não vistos sob as preocupações contemporâneas, porém, que são determinantes para compreendermos as transformações históricas, políticas, sociais e culturais de nosso tempo, principalmente ao olhar nossa história de massacre e horror por um viés trágico e necessário. O esfacelamento da unidade: uma teoria em (das) ruínas
Ensaio sobre o trágico, de Peter Szondi (2004), é o melhor exemplo da multiplicidade de teorias que não dão conta da ex89
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tensão terminológica do “trágico”, a não ser aceitando a impossibilidade de uma única conceituação cabal da questão. Nessas bases teóricas, encontramos as reflexões sobre a filosofia da história de Walter Benjamin (2012), cuja incursão teórica sobre a temática recusa uma busca de um conceito universal do trágico, mas passa a estabelecer relações entre teoria da arte e da “ideia”. Não se busca um conceito geral, mas se revela uma configuração, uma “ideia”. Benjamin renuncia à proposta de um conceito geral do trágico e assim distancia da filosofia a ideia de representação clássica que, de alguma forma, recai nas reduções conceituais. A filosofia não pode ser capaz de apreender o trágico em sua totalidade, uma vez que por trágico devemos entender, tanto em Szondi quanto na história da filosofia, não somente uma dialética das diversas estruturas de pensamentos sobre o trágico, mas também sua condição de constante e eterna ressignificação; sempre por vir, ou, em sua especificidade filosófica, um devir. É dessa forma que Lucia Helena conclui que o mundo contemporâneo revisita e reencarna a hybris, a desmedida, pois ainda é um mundo em desgraça, povoado por vidas desperdiçadas e despedaçadas, sendo a tensão e o conflito os elementos trágicos que perduram. Essa desmedida do mundo pode ser percebida na violência urbana, nas profecias da teoria do progresso de um mundo em tormenta e no esvaziamento de um sujeito fechado em si, ou, o “Ser homem é ser só” (HELENA, 2010, p. 53). Os novos impulsos do trágico
As questões na tragédia, hoje, estão secularizadas nos dogmas da liberdade, do autoritarismo, do fascismo e da barbárie. Segundo Terry Eagleton (2013), para se pensar o trágico no sé90
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culo XX, é necessário partir da compreensão de que a tragédia está transformada. As forças do trágico que habitam a tragédia, hoje, estão representadas na forma de questões como a democracia, o liberalismo, o fundamentalismo, o trauma, a banalidade do mal, a fatalidade ideológica, as relações de poder, a arte, a história e o pensamento social. Como bem aponta Raymond Williams (1966), em Modern tragedy, há um julgamento de valor cuja antítese é a nobreza da arte trágica, em que a modernidade, assolada pela vida comum, é vista com desdém pela teoria tradicional do trágico. Por mais que alguns aspectos clássicos persistam, as nossas tragédias são outras, as formas de representação da tragédia no século XX conferem novas significações ao impulso trágico. Eagleton identifica a presença das ruínas a partir de impulsos sociais, culturais, ideológicos, políticos e históricos. O crítico marxista encontra em Willy Loman, de Death of a salesman (1961), de Arthur Miller, um exímio exemplo de ruína, mas não pela inconformidade ou transgressão da ordem social e da ideologia dominante, mas sim no excesso com que se entrega às estruturas sociais. Ainda, segundo Williams (1966), há uma afirmação da perda da liberdade, cuja conformidade social acarreta a sua própria desgraça. Diferentemente das ideias de altura e grandeza de sujeitos nobres que caem em desgraça no sentido shakespeariano do trágico, as obras de Miller privilegiam as demarcações sociais e éticas dentro das teorias da tragédia. Nossa proposta de leitura das possibilidades do trágico lida com um desamparo humano que se revestiu, ao longo da história da literatura e das disciplinas das humanidades em geral, como questões acerca do mal, da fatalidade, da monstruosidade, da violência, do esvaziamento e fechamento do ser, dos extremos, do traumático e do próprio choque da experiência dentro da cultura do capital. Esse abalo sistêmico está atrelado ao contrafluxo da história, esse desamparo hu91
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mano que só a arte e a tragédia podem representar. O próprio Arthur Miller (2003) traz à cena, em The crucible, os estilhaços do espelho da crueldade humana. A desgraça, a desmedida e o excesso extrapolam as constituições das personagens e se enraízam num sistema de terror e medo que mantém a nação unida; e corroboram num colapso da ordem mundial, tanto no contexto do macarthismo quanto nos diversos momentos da história americana, como na construção das narrativas do 11 de Setembro e da instauração do terrorismo. Eis a tempestade de desgraça que varre sujeitos banais e os inscreve dentro de uma trama política, social e cultural, encarnando a punição, a vigilância, a intolerância e o fundamentalismo como partes de um mosaico estruturado justamente por esses novos impulsos do trágico. A ruína está aí, emboscada na história de constante declínio da humanidade, em que é preciso muito mais do que um conceito para apreender, ainda que fora da completude, os fragmentos da ideia do trágico. A tragédia aqui se volta não para os deuses, para as formalidades artísticas aristotelicamente organizadas ou para a inevitabilidade do destino, mas sim para os embates entre conjunturas históricas, políticas, culturais e sociais e seus estilhaços arraigados no ser genérico no âmbito da própria fragilidade humana. Os séculos XX e XXI redimensionam as produções artísticas em geral e, com essas mudanças, há uma transformação do trágico e da tragédia. A ideia do trágico não pode se limitar à exclusividade do conceito ou à forma do drama; ela deve sim, entendemos, transcender as vicissitudes estéticas e se realizar no âmbito do diálogo humano, conforme entendido por Walter Benjamin (2011), como o palco em que são encenadas as paixões verdadeiramente trágicas.
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Breves considerações finais
Eagleton destaca como tese principal de seu estudo as forças perceptivas que se movem em direção a nós, estreitando os espaços para a manobra e para a resistência. Essas questões são suprimidas em uma época na qual parte da humanidade se torna refém de um sistema destruidor: mulheres morrem constantemente por apenas serem mulheres em um mundo machista; o fundamentalismo, como uma forma ideológica, invade as relações interpessoais; governos expulsam ou oprimem populações inteiras em uma eterna disputa por território, poder e dinheiro. Há um esfacelamento das antigas noções acerca das teorias do trágico e da tragédia; no entanto, a tragédia não está morta, muito menos seus impulsos trágicos, mas sim transformados. As forças do trágico que habitam a tragédia, hoje, estão representadas na forma de uma reação à barbárie moderna e na necessidade de compreender o devir histórico, deslocando a raiz da complexidade do pensamento crítico para questões de nossa modernidade tardia. Esse trágico tem sua origem nas ruínas e já não pode mais ter a sua unidade reconstituída; por isso não pretende advogar uma falsa universalidade quando a ideia, a dialética e a multiplicidade fragmentam os caminhos. É preciso, sim, assumir os restos e ressignificar seus estilhaços por meio de uma perspectiva que entenda a política, a sociedade e a história de nosso tempo presente.
BIBLIOGRAFIA: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. _____. A origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
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EAGLETON, Terry. Doce violência: a ideia do trágico. São Paulo: Editora UNESP, 2013. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997. HELENA, Lucia. Ficções do desassossego. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2011. MILLER, Arthur. Collected plays. London: Verso, 1983. _____-. The crucible. New York: Penguin Books, 2003 [Kindle Edition]. SZONDI, Peter. Ensaios sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. WILLIAMS, Raymond. Modern tragedy. California: Stanford University Press, 1966.
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BR-trans: autoficção, documentário e militância Antonio Ventura*
Com uma trajetória de três anos e passagem por diversas cidades do Brasil e por Dresden (Alemanha), o espetáculo-solo BR-trans, apresentado e escrito pelo cearense Silvero Pereira e dirigido pela gaúcha Jezebel De Carli, é uma investigação da realidade das mulheres transexuais e travestis no contexto brasileiro. Unindo práticas de teatro documentário e autoficção, o performer faz recortes — por vezes trágicos, por vezes cômicos — de vivências dessas personagens coletadas por ele, unindo-as na cena com canções e trechos de dramaturgias canônicas. O presente artigo é uma apreciação crítica do espetáculo, assistido pelo autor em três ocasiões: duas apresentações na temporada ocorrida no CCBB do Rio de Janeiro, em 2015; e uma terceira em 2016, no Teatro Poeira, na mesma cidade. O monólogo, que estreou em Porto Alegre, em 2013, trata do universo das travestis e mulheres transexuais no Brasil. Aborda, por um lado, questões como violência, preconceito, necessidade da prostituição como forma de sobrevivência; e amor, relacionamentos e descoberta de potencial artístico, por outro. Sem se prender apenas à condição de vítimas dessas personagens em nossa sociedade, BR-trans humaniza-as, aproximando-as do espectador. A dramaturgia, fragmentária e não-aristotélica, é cons*
A presente resenha crítica foi apresentada à Professora Andrea Stelzer
(História do Espetáculo V, ministrada em 2016/1).
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BR-trans: autoficção, documentário e militânci
truída através do entrelaçamento da vivência do ator com recortes biográficos de transexuais e travestis que conviveram com Silvero; com canções (de compositores consagrados ou criadas para espetáculos anteriores do coletivo do qual o artista participa) e fragmentos de dramaturgias canônicas, nomeadamente Hamlet, de William Shakespeare (c. 1601) e Hamlet-máquina, de Heiner Müller (1977). Apesar dessa riqueza de material, por se tratar de um espetáculo de militância, o foco da dramaturgia e, consequentemente, da cena, é o relato das vivências, alheias ou próprias. Se, por vezes, o ator delimita que aquele trecho do espetáculo é a realidade de outra pessoa (em geral, citando seu nome), na maioria das vezes não temos certeza de até que ponto aquele relato é pessoal do artista ou se foi coletado de uma das personagens que se entrelaçam no espetáculo. Por vezes, a dramaturgia deixa evidente que se trata de um relato factual do intérprete, como num momento, talvez o mais tocante do espetáculo, em que o ator lê em voz alta uma carta que a mãe enviou para ele anos atrás. Porém, em outros momentos, ainda que percebamos que o ator fala dele mesmo, paira a dúvida se o que é dito em cena são fatos ou não. Essa opção estética leva a uma confusão entre factual e ficcional; entre pesquisador e objeto de pesquisa. Nas palavras do autor/ator: Muitas das histórias vão se misturando, e às vezes se confundem com a minha história pessoal. Essa é uma prática na minha construção do texto documental, em que busco dar uma costura e criar uma confusão entre o pesquisador e seu objeto, tornando-os um só corpo, uma só história, uma construção de questionamento e provocação social, por vezes chegando a confundir o público sobre se aquilo que escuta é fato ou ficção, se é sobre o entrevistado ou o entrevistador (PEREIRA, 2016, p. 53).
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Dissolver esta dúvida, entretanto, é irrelevante — inclusive, prejudica a pretensão do dramaturgo que, como vemos na fala acima, é a de não deixar nenhum limite entre real e ficcional claro para o espectador — já que ela é parte do próprio conceito de autoficção. Diane Klinger (2012), em Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica, afirma que o texto autoficcional exige uma “dramatização de si”, pressupondo um sujeito duplo, simultaneamente real e fictício; a dramatização constrói, ao mesmo tempo, narrador e autor, da mesma forma que, em um espetáculo que siga a lógica representacional, o ator é simultaneamente ele próprio e uma personagem. A autoficcionalidade em BR-trans é, entretanto, apenas parte de sua estética e, de certa forma, um veículo para seu objetivo maior, que é a militância de minorias sociais. Silvero Pereira faz parte do coletivo artístico As Travestidas, que atua em Fortaleza desde 2005, tendo como pesquisa uma investigação do universo “trans”.É uma pesquisa que tem por ponto de partida não a subjetividade do ator-autor, para depois chegar à temática; e sim sua relação com as mulheres “trans”, as travestis e as transformistas do coletivo.Apartir dessa relação, chegar à subjetividade. Podemos dizer que este espetáculo, por sua estrutura e objetivos, é, antes de autoficcional, teatro documentário. Silvero, a partir da dramaturgia, não busca apenas dar espaço a travestis e mulheres transexuais, mas realmente expor seus discursos, com transcrições diretas destes discursos entremeadas no texto. Segue-se um trecho da dramaturgia: Eu queria contar a história de Tyna. Eu também conheci Tyna no Presídio Central de Porto Alegre, no meu 15o dia de oficina. Naquele dia, pedi que fizessem uma cena do passado, da infância ou da adolescência, mas que fosse uma lembrança boa. Então ela me levou para um canto da cela onde era possível ver uma janela de vidro e, através dessa janela, uma colina
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verde com uma casinha no topo. [...] — Está vendo ali? É a casa da minha avó! Sempre dói muito vir pra cá e ver isso. Fico imaginando todo mundo ali, tomando cafezinho, conversando. Mas eu ligo pra lá e ninguém atende, dizem que não tem ninguém pra falar comigo. — E o que você vai fazer quando sair daqui? — Rapaz! Eu vou lá! É minha família, eles têm que me ajudar e me aceitar! (PEREIRA, 2016, p. 44)
É interessante, principalmente, que esses relatos nunca sejam gravações da voz dessas pessoas, reproduzidas durante o espetáculo; é sempre a partir da voz do performer (e, em um trecho específico, através de uma projeção na parede) que esses relatos são ouvidos. Além de essa decisão operar com a ideia de que não é preciso “dar voz” ao oprimido (pois ele já a possui) e sim garantir que essa voz seja ouvida — pensamento já presente no trabalho de Augusto Boal com o Teatro do Oprimido —, essa opção estética é o dispositivo cênico principalmente responsável pela fluidez citada anteriormente entre performer e personagem, real e ficcional. Além dos planos autoficcional e documentário do solo, temos um terceiro, que é o que chamarei aqui de referencial. Em determinado momento, a dramaturgia e a cena associam as travestis vítimas de violência física e simbólica à personagem Ofélia, através de recortes de Hamlet, de William Shakespeare; e de Hamlet-máquina, leitura que Heiner Müller fez, nos anos 1970, da peça de Shakespeare. Sobre essa operação poética, Silvero diz: [...] Ao iniciar a dramaturgia de BR-trans, meu desejo era subverter os clássicos da dramaturgia mundial, trazer referências de Shakespeare, Brecht, Beckett, entre outros. Meu intuito era provocar um questionamento de igualdade: não importa se falamos de mulheres, homens, rainhas ou travestis, o importante é falar de seres humanos (PEREIRA, idem, p. 49).
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Além de abrir janelas metateatrais no espetáculo, criando um canal de aproximação empática do espectador com a realidade das personagens apresentadas através da identificação com referenciais já conhecidos, este novo plano tem por consequência, como apontado pelo dramaturgo, uma dignificação da travesti e da mulher transexual: de cidadã marginalizada, aqui ela é posta lado a lado com uma das mais complexas e relevantes personagens do cânone dramatúrgico ocidental. A autoficção e o caráter documental de BR-trans são, sem dúvida, responsáveis pela sua grande carga política de militância. Silvero opera através não de um didatismo simplista e facilitado para o espectador; mas, sim, para usarmos o conceito de Rancière (2005), pela partilha de um sensível — isto é, da criação de uma comunidade política a partir da comunhão de uma manifestação estética. Isto nos leva, através do jogo de cena e das palavras, imagens e sonoridades que ele cria, à identificação e à empatia do público com as situações apresentadas, sejam elas cômicas ou trágicas, da vida do ator ou das demais personagens a quem ele dá a oportunidade de ser ouvidas, provocando uma reflexão profunda sobre a questão da transfobia no Brasil. Os resultados são uma dramaturgia e uma cena caracterizadas pela forte potência estética e política, mais eficiente do que qualquer panfleto, seja ele impresso ou em forma de espetáculo.
BIBLIOGRAFIA: KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. PEREIRA, Silvero. BR-trans. Rio de Janeiro: Cobogó, 2016. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2005.
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Reitor Roberto Leher Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento Pró-Reitor de Graduação Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Leila Rodrigues da Silva Pró-Reitora de Extensão Maria Mello de Malta CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Decana Lilia Guimarães Pougy Vice-Decana Mônica Lima e Souza Coordenação de Integração Acadêmica de Graduação João Batista de Oliveira Ferreira Coordenação de Integração Acadêmica de Pós-Graduação Francisco Portugal ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretor Amaury Fernandes Vice-Diretora Cristina Rego Monteiro da Luz Direção Adjunta de Graduação Chalini Torquato Barros Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCOM) Denilson Lopes Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC) Adriana Schneider Alcure Coordenação de Direção Teatral Jacyan Castilho
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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral Ano IV, Número 3
Este projeto recebeu apoio da Pró-Reitoria de Extensão (PR-5) da UFRJ, através do “Edital Pró-Cultura e Esporte 2016”.
ISSN 2596-2485
3 Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
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