Novasleituras39

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Novas Leituras 39 maio

2013

Sugestões de títulos e orientações para o trabalho em sala de aula — complementar ao Caderno de Leituras

A beleza de colher flores, a liberdade de escolher textos Marise Hansen é mestre em literatura brasileira pela USP e professora de literatura do colégio Bandeirantes

Em tempos de informação e comunicação incrivelmente velozes, tornaram-se lugares-comuns ideias de que, para acompanhar tal ritmo, é preciso desenvolver competências múltiplas, adotar mudanças de paradigma que relativizem a lógica cartesiana de causa e efeito e até de que existem vários tipos de inteligência. Nesse contexto, parece inegável a importância de se estimular — com consciência e consistência — uma inteligência literária, expressão que pode remeter, só para um começo de conversa, ao aprimoramento da percepção do “eu” e do “outro”. Tanto a constituição da subjetividade (em especial na adolescência, época da definição da identidade, das preferências individuais) quanto a compreensão da alteridade são facilitadas pela leitura das histórias possíveis encontradas nos textos literários. Conhecer-se melhor; enxergar possibilidades de intervenção no mundo; vislumbrar, a partir da empatia, atitudes de tolerância; conhecer não só outras realidades, mas, principalmente, outros olhares sobre a realidade, capazes de desmontar preconceitos; adquirir consciência cidadã — seriam apenas algumas faces dessa inteligência. Nesse sentido, quanto maior a diversidade de autores, temas e gêneros com os quais o leitor (especialmente o jovem) tem a chance de entrar em contato, maiores suas oportunidades de aprimorar essa inteligência. As antologias costumam ser ótimas (e deliciosas) facilitadoras dessa diversidade, e tendem a ter lugar garantido em qualquer biblioteca. O selo Boa Companhia, constituído por antologias organizadas por tema ou gênero literário, vem ao encontro desse sortimento ao mesclar, no interior da unidade de gênero presente nos volumes No restaurante submarino (contos fantásticos), O casamento da lua (contos de amor) e A linguagem dos animais (contos e crônicas sobre bichos), uma variedade de autores; ou por apresentar, numa seleção de textos de um só autor, excertos de obras e temas diversos, como ocorre em O contador de histórias (seleção de cenas de romances de Jorge Amado) e Primeiras leituras (crônicas de Paulo Mendes Campos). O leitor encontra, portanto, uma multiplicidade de contextos com a inclusão de autores de épocas e visões de mundo diferentes. Um volume como A linguagem dos animais, por exemplo, reúne de Irmãos Grimm e Andersen a Machado de Assis, Italo Calvino e Lygia Fagundes Telles, cujas histórias sobre bichos, inclusive, permitem aproximações com os gêneros fábula, conto maravilhoso e conto fantástico, já que animais pensantes e falantes provocam reflexões sobre os mais variados aspectos do comportamento humano. Por exemplo, enquanto o canário falante do conto machadiano encarna alegoricamente a pretensão humana, os pássaros do conto de Calvino simbolizam a intuição e a sabedoria que os humanos não têm. A inteligência literária pode também ser explorada pelo viés da

inteligência poética, quando se favorece o (re)conhecimento de estilos, de concepções estéticas ou modos distintos de se dizer aparentemente o mesmo, no entanto, com a obtenção de efeitos diferentes. E, para além das investigações sobre a linguagem propriamente dita, as antologias do Boa Companhia facilitam o estudo das especificidades do gênero literário a que se filia um texto, afinal o gênero já diz muito sobre ele: em que tradição se inscreve? Qual o objetivo do texto, se é que existe um? Qual sua extensão? Qual o tipo de linguagem empregado? Por que se optou por determinada estrutura e não por outra? Como se conta um conto fantástico? Quais as características de uma fábula? O que é um soneto? Para ser poesia, tem de ter rima? O que imprime ritmo a um poema? Qual a diferença entre contar uma história de desencontro amoroso no conhecido poema “Quadrilha”, de Drummond, e no conto “Laila”, de Daniel Galera (volume O casamento da lua), em que o desencontro se dá no tempo, e não espaço, e apenas entre duas pessoas? No gênero poesia, a diversidade comparece no volume Verso livre e se apresenta na reunião de poetas “clássicos” (pois, como diz Drummond, os modernos se tornaram eternos) e contemporâneos, o que por si só já é positivo num cenário escolar em que a poesia não é tão trabalhada como poderia, ou — em se tratando de poesia contemporânea — praticamente não é trabalhada. E deveria ser, porque existe uma produção contemporânea efervescente, mostrando que a poesia, apesar dos adventos da internet, do celular, do tablet — ou, em grande parte até por causa deles —, continua viva como forma poderosa de expressão, valendo-se portanto desses mesmos meios digitais, de blogs e redes sociais, que até há pouco tempo tendiam a ser vistos como inimigos da literatura. Também as leituras propostas por professores e educadores costumam ser vistas como inimigas, por parecerem contrariar a ideia de liberdade inerente à literatura, ao prazer de ler sem se preocupar com responder a perguntas. Mas, ao mesmo tempo, quem trabalha com formação de jovens leitores sabe que faz parte da prática a ampliação de seus critérios de escolha, donde surge um paradoxo: propor a um aluno a leitura de uma obra que ele não escolheria é um convite à diversidade, portanto favorável à liberdade, sim, já que pretende que esse jovem não se torne leitor de um só gênero ou de um só autor. Como lembra Mia Couto, a etimologia do verbo “ler”, legere, significa “escolher”: ler é escolher para não ser escolhido — tornar-se sujeito de uma escolha, e não objeto ou mais um número em listas de “mais vendidos” (isso, sim, foge totalmente à ideia de “liberdade”). Uma antologia favorece essa possibilidade de escolha, como atesta a origem grega da palavra “anthología”: ação de colher flores. Em antologias como as do Boa Companhia, o leitor pode “colher” textos de acordo com uma infinidade de critérios e intenções.


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