O Auto da Barca do Inferno

Este livro foi desenvolvidona disciplina de Projeto Específico em Comunicação Visual do Curso de Design da PUC-Rio, 2020.

Orientação Evelyn Grumach Coorientação Fábio Lopez e Luiz Ludwig Concepção editorial e ilustrações da capa Giovanna Chiletto

Título do livro O Auto da Barca do Inferno Autor Gil Vicente Texto íntegro em memória ao autor, 1517 Diagramação e Ilustrações Giovanna Chiletto Numero edição / Editora Primeira edição, comemorativa de 503 anos em memória ao autor.

Companhia das Letras.

Data da impressão Impresso no Brasil, 2020 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ S.A

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 - São Paulo - SP Telefone: (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br facebook.com/companhiadasletras instagram.com/companhiadasletras twitter.com/ciadasletras

Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno Edição comemorativa 503 anos

Sumário Autos e Folias , sobre o autor .08 A testemunha da época .10 O Auto da Barca do Inferno .13 Outras peças do autor .56

Nasce um Rei e um teatro

Autos e folias Sobre Gil Vicente, o autor

1470 - 1540

As datas de nascimento e morte de Gil Vicente são aproximadas. Acredita-se que tenha nascido em 1470 e que morreu depois de 1536 e antes de 1540. Portanto, viveu sob os reinados de Dom Afonso V, Dom João II, Dom Manuel e grande parte do reinado de Dom João III. A cidade mais provável a lhe servir de berço teria sido Guimarães, embora outras duas também reivindiquem a honraria: Lisboa e Barcelos. Casou-se duas vezes. Sua primeira mulher foi Branca Bezerra, com quem se casou em 1484. Morta em 1514, Gil Vicente escreveu-lhe o seguinte epigrafo: “Aqui jaz a mui prudente Senhora Branca Bezerra Mulher de Gil Vicente Feita terra.”

Três anos depois casa-se pela segunda vez com Melícia Rodrigues. Dois de seus filhos, Luís Vicente e Paula Vicente, ganharam notoriedade já que publicaram em 1562 a compilação de todas as obras de Gil Vicente.

Não se sabe ao certo quais outras atividades praticavam o autor, mas é certo que tinha formação escolar, ainda que seu latim não fosse além dos texto crônicos. Essa formação

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escolar é demonstrada pelas referências que fez em sua obra a Aristóteles, Santo Agostinho, Alberto Magno, Duns Escoto, Alexandre de Hales, Sêneca, Plínio, Cícero, Demóstenes e outros autores, além da influência teológica que recebera de Erasmo.

Desde a representação do Monólogo do Vaqueiro, na câmara da rainha Dona Maria, Gil Vicente passou a ser incumbido de organizar autos, representações e folias. Algumas dessas marcaram importantes acontecimento na corte:

1520

É incumbido de organizar, em novembro e dezembro, autos e representações que marcariam a entrada solene em Lisboa de Dona Leonor, terceira mulher de Dom Manuel.

1525

Organiza a cerimônia de despedida de Dona Isabel infanta de Portugal, que parte para Castela para casar-se com imperador Carlos V.

1532

Compõe o Auto da Lusitânia para festejar o nascimento do infante Dom Manuel.

Essas representações atestam o seu prestígio na corte e as recompensas monetárias que lhe concederam os reis. Temse notícia de que, em 1515, Dom Manuel concedeu-lhe 20 mil réis como subsídio para o casamento de sua irmã Filipa Borges. Em 1525, Dom João III concede-lhe 12 mil réis. No mesmo ano, por ocasião do nascimento de Valéria Borges, acrescenta-lhe mais de 8 mil réis. Três anos depois, o rei concede-lhe mais uma tença de 20 mil réis.

Finalmente, em 29 de janeiro de 1537, Dom João II, com o intuito de auxiliar a família do dramaturgo, concede a Belchior Vicente o ofício de escrivão segundo da feitoria da Mina.

A testemunha da época

Antes e depois do primeiro auto O fim da Idade Média o início da utilização da tipografia de Gutemberg, o Humanismo, o Renascimento e a Inquisição foram contemporâneos de Gil Vicente.

Nascido na segunda metade do século XV e falecido em meados de XVI, Gil Vicente testemunhou as transformações por que passaram Portugal e e a Europa, tendo vivido entre séculos em que nasceram Erasmo de Roterdam, Michelangelo, Tomas Morus, Sá Miranda, Rafael Sanzio, Nicolau Copernico, Martinho Lutero, Leonardo da Vinci, Américo Vespúcio e Nicolau Maquiavel.

No mesmo período, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança (1488); Dom Afonso, príncipe herdeiro, filho de Dom João II, casa-se com Isabel de Castela, filha de Reis Católicos da Espanha (1490); Vasco da Gama chega à Índia (1498); Cristóvão Colombo chega à América meridional e Pedro Alvares Cabral chega ao Brasil (1500).

Em 1536, quando o papa Paulo III estabelece oficialmente a Inquisição em Portugal, Gil Vicente encerra a sua atividade como escritor de autos.

Os tempos que se sucederam foram de decadência cultural e econômica em Portugal. Outros países europeus preparamse, através da divulgação das ideias dos humanistas para o Renascimento; Portugal... para o atraso que duraria séculos.

Com Gil Vicente nasce um teatro, mas não o teatro português. Este já existia, ainda que disperso, de caráter oral e embrionário, antes de Gil Vicente. O texto vicentino, pela sua qualidade, acabamento estético e organização dramática,

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pressupõe uma gestação anterior. Contudo, ao dar forma e conteúdo literários a elementos rudimentares, deu-lhe qualidade e existência literária, tirando-o da pré história.

As manifestações teatrais pré-vicentinas eram de caráter religioso ou profano. Centenas de figurantes participavam de cenas da vida de Cristo, por ocasião do Natal e da Páscoa; situações dramáticas da vida dos santos eram encenadas; personagens alegóricas encarnavam vícios e virtudes. Ao primeiro deu-se o nome de mistérios ao segundo, de milagres e, ao ultimo, moralidades.

As encenações de caráter profano eram os momos e entremeses, nas quais os atores, baseando-se mais na mímica que na palavra desfilavam representando personagens simbólicas, ou se fantasiavam de animais. Havia ainda os sermões burlescos: monólogos breves recitados por atores ou jograis em vestes sacerdotais. Nos intervalos dos mistérios, representavam-se as farsas, de intenção satírica, apresentando os defeitos e acontecimentos cômicos da vida.

Nestas fontes, Gil Vicente foi buscar o seu teatro, que no início sofreu a inffluencia do teatro espanhol de Juan del Encina, Lucas Fernández e Bartolomé de Torres Naharro.

Gil Vicente escreveu mais de 44 peças em português, castelhano e bilingues, algumas das quais se perderam. Além das peças, deixou-nos o que os editores da Compilação de 1562 chamaram de “obras miúdas”: trovas, cartas, romances, etc.

O Auto da Barca do Inferno Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto Rei Don Manuel, primeiro de Portugal deste nome.

Começa a declaração e argumento da obra.

Primeiramente, no presente auto se figura que, no ponto que acabamos de expirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dois batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis têm cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.

Fidalgo O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe leva a cauda de um rabo10 mui comprido e uma cadeira de espalda11. E começa o Arrais do Inferno antes que o Fidalgo venha12.

DIABO

COMPANHEIRO

DIABO

COMPANHEIRO

À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré!13 Ora venha o carro a ré!14 Feito, feito!

Bem está!

Vai tu muitieramá,16 e atesa aquele palanco17 e despeja aquele banco, pera a gente que virá. À barca, à barca, hu-u!

Asinha, que se quer ir!18 Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu!19 Ora, sus! que fazes tu?20 Despeja todo esse leito!21 Em boa hora! Feito, feito!

Abaixa aramá esse cu! 22 Faze aquela poja lesta23 e alija aquela driça. 24 Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!25

DIABO Oh, que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa.

Verga alta! Âncora a pique!26 Ó poderoso dom Anrique, 27

10. Rabo: Manto muito comprido.

11. Espalda: Espaldar, as costas da cadeira.

12. A vaidade e a ostentação do Fidalgo estão simbolizadas pelo comprimento da cauda do seu manto e pela cadeira de espaldar.

13. Gentil: boa.

14. Caro: Carro, peça que cruza num mastro ou que se prende por um dos extemos em um mastro.

Vira-se o carro à ré para adaptar a vela à direção do vento.

16. Muitieramá: Em muita má hora.

17. Atesa aquele palanco: Estica aquele cabo.

18. Asinha: Depressa.

19. Berzebu: Belzebu, príncipe dos demônios.

20. Sus: Interjeição, “Vamos!”.

21. Leito: Área compreendida entre o mastro grande e a popa.

O Diabo pretende ter mais espaço para alojar os pecadores.

22. Abaixa maora esse cu!: Trabalha com cuidado.

Maora: Má hora.

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Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz: FIDALGO

Esta barca onde vai ora, que assi está apercebida?28

DIABO Vai pera a ilha perdida,29

e há-de partir logo ess’ora.30 FIDALGO

Pera lá vai a senhora? 31

DIABO Senhor, a vosso serviço.

FIDALGO

Parece-me isso cortiço...

DIABO Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO Porém, a que terra passais?

DIABO Pera o inferno, senhor.

FIDALGO

Terra é bem sem-sabor.

DIABO Quê? E também cá zombais?

FIDALGO

E passageiros achais pera tal habitação?

DIABO Vejo-vos eu em feição32

pera ir ao nosso cais...

FIDALGO DIABO FIDALGO

DIABO

Parece-te a ti assi!...

Em que esperas ter guarida?33 Que leixo na outra vida34 quem reze sempre por mi.

Quem reze sempre por ti?!..

Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...

E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer35 por que rezam lá por ti?!...

Embarca - ou embarcai...36

23. Poja: Cabo que prende o carro. Lesta: Significa “rápido” 24. Alijar: Deitar fora da embarcação, aliviar a carga.

Driça: Adriça, cabo utilizado para içar bandeira, flâmula, determinadas vergas e velas.

25. Ô, caça! Ô iça! Iça!: Apanha (a vela), levanta! Levanta! ( A verga, para esticar a vela).

26. Âncora a pique: Âncora recolhida.

27. Anrique: Forma arcaica de Henrique 28. Apercebida: Aparelhada, enfeitada, ornada.

29. Ilha Perdida: Eufemismo de inferno.

30. Logo ess’ora: Imediatamente.

31. Senhora: O fidalgo refere-se à embarcação ou confunde o Diabo com uma mulher. No verso seguinte, o Diabo perece retificar o fidalgo “Senhor, a vosso serviço”.

32. Em feição: Com aspecto de 33. Guarida: Refúgio, salvação.

34. Leixo: Forma arcaica de “deixo”.

35. Guarecer: Guarir, o mesmo que curar-se, salvar-se.

que haveis de ir à derradeira!37 Mandai meter a cadeira, que assi passou vosso pai. 38 Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!

FIDALGO

DIABO Vai ou vem! Embarcai prestes!39

Segundo lá escolhestes, assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes, haveis de passar o rio.

FIDALGO

Não há aqui outro navio?

DIABO Não, senhor, que este fretastes,

e primeiro que expirastes me destes logo sinal. 40 FIDALGO

Que sinal foi esse tal? quem reze sempre por mi.

DIABO

Do que vós vos contentastes.41

FIDALGO

A est’outra barca me vou.

Hou da barca! Para onde is?

Ah, barqueiros! Não me ouvis?

Respondei-me! Hou-lá! Hou!...

Par Deus, aviado estou! 42 Quant’a isto é já pior.

Que gericocins, salvanor! 43 Cuidam cá que são eu grou? 44 Que quereis?

ANJO FIDALGO

Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais.

ANJO FIDALGO

Esta é; que demandais?

Que me leixeis embarcar.

36. Observe a sutileza da ironia do Diabo ao mudar a forma de tratamento de tu para vós.

37. À derradeira: Por fim.

38. Mandai vosso pajem pôr a cadeira no barco, que assim foi vosso pai para o inferno.

39.Prestes: Rápido, ligeiro.

40. E o primeiro que expirastes / me desde logo um sinal: Na Compilação de 1562 está: “e já quando expirastes / me tinhes dado um sinal”. Aqui a palavra sinal é usada como o sentido de garantia, penhor. No caso, o “sinal” dado pelo Fidalgo foram suas más ações terrenas.

41. Do que vós vos contentastes: Os atos pecaminosos que tinham dado prazer e contentamento a um fidalgo.

42. Bem aviado: Bem arranjado, bem servido.

43. Gericocins: Diminutivo de jericos, empregado aqui como sinônimo de asnos, estúpidos. Palavra derivada da expressão espanhola “salvo honor”.

44. Cuidam cá que sou eu grou!: Grito e ninguém me ouve! Grou: Ave, pernalta.

Sou fidalgo de solar, 45 é bem que me recolhais.

ANJO

Não se embarca tirania neste batel divinal.

FIDALGO Não sei porque haveis por mal

que entre a minha senhoria...46 ANJO

FIDALGO

ANJO

Pera vossa fantesia 47 mui estreita é esta barca.

Pera senhor de tal marca 48 não há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio! 49 Levai-me desta ribeira! 50 Não vindes vós de maneira51 pera entrar neste navio.

Ess’outro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo caberá e todo vosso senhorio. 52 Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, 53 cuidando na tirania 54 do pobre povo queixoso.

E porque, de generoso, 55 desprezastes os pequenos, achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso.

45. Fidalgo de solar: Senhor de nobre linhagem, de família tradicional.

46. Observe que o fidalgo usa o termo “senhoria” para designar-se, dando a si mesmo um tratamento respeitoso.

47. Fantesia: Fantasia.

No verso, a palavra é usada como sinônimo de presunção, vaidade.

48. Pera senhor de tal marca: Para senhor de tal distinção.

49. Prancha e atavio: Tábua com cordas de apoio para embarcar.

50. Ribeira: Praia.

51. De maneira: Com modo particular de ser ou de agir.

52. É interessante notar a ironia do Anjo nestes versos, quando afirma que na barca do inferno todos os pertences do Fidalgo caberiam, assim como a sua presunção. Vosso senhorio: Vossa presunção.

53: Fumosa: Vaidade, soberba.

54. Cuidando: Pensando

DIABO À barca, à barca, senhores!

Oh! que maré tão de prata!

Um ventozinho que mata e valentes remadores!

55. Generoso: Ilustre, de alto nascimento, de boa origem.

Diz, cantando: DIABO

Vós me veniredes a la mano, a la mano me veniredes. e vos veredes peixes nas redes.56

FIDALGO Ao Inferno, todavia!

Inferno há i pera mi?

Oh triste! Enquanto vivi não cuidei que o i havia: Tive que era fantesia! 57 Folgava ser adorado, confiei em meu estado 58 e não vi que me perdia.

Venha essa prancha, e veremos esta barca de tristura.

DIABO

Embarque vossa doçura, que cá nos entenderemos Tomareis um par de remos, veremos como remais, e, chegando ao nosso cais, 59 todos bem vos serviremos.

FIDALGO Esperar-me-eis vós aqui,

tornarei à outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi.

DIABO

Que se quer matar por ti?!...

FIDALGO

Isto bem certo o sei eu.

DIABO

Ó namorado sandeu, 60 o maior que nunca vi!...

FIDALGO

Era tanto o seu querer que m’escrevia mil dias?

DIABO Quantas mentiras que lias,

e tu... morto de prazer!...

56. Em sua cantiga, o Diabo demonstra a certeza de que levará passageiros para o inferno.

57. Não cuidei que o i bavia / Tive que era fantasia: Pensei que era ficção / que o inferno não existia.

58. Estado: Condição.

59. Nosso cais: Inferno, 60. Sandeu: Doido.

FIDALGO

DIABO

FIDALGO DIABO

FIDALGO

Pera que é escarnecer, quem não havia mais no bem? 61 Assi vivas tu, amém, como te tinha querer!

Isto quanto ao que eu conheço Pois, estando tu expirando, 62 se estava ela requebrando com outro de menos preço. 63 Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher.

DIABO E ela, por não te ver,

despenhar-se-á dum cabeço!

Quanto ela hoje rezou, entre seus gritos e gritas, foi dar graças infinitas a quem a desassombrou. 65 FIDALGO

Quanto ela bem chorou!

DIABO Não há i choro de alegria?

FIDALGO DIABO

FIDALGO

E as lástimas que dizia?

Sua mãe lhas ensinou...

Entrai, meu senhor, entrai: Ei la prancha! Ponde o pé...

Entremos, pois que assi é.

DIABO Ora, senhor, descansai,

passeai e suspirai.

Em tanto virá mais gente.

FIDALGO

Ó barca, como és ardente!

Maldito quem em ti vai!

64

61. Pera que é escarnecer, / que não havia mais tão bem?: Para que escarnecer / que não havia amor maior 62. Expirando: Morrendo 63. Com outro de menos preço: Com outro de menos valor 64. Cabeço: Monte pequeno e arredondado; coluna de ferro, de altura reduzida, encravada à beira de um cais 65. A quem a desassombrou: A quem a aliviou de sua má sombra.

Diz o Diabo ao Moço da cadeira: DIABO Não entras cá! Vai-te d’i!

A cadeira é cá sobeja; 66 cousa que esteve na igreja nom se há-de embarcar aqui.

Cá lha darão de marfi, 67 marchetada de dolores, 68 com tais modos de lavores, 69 que estará fora de si... À barca, à barca, boa gente, que queremos dar à vela!

Chegar ela! Chegar ela!

Muitos e de boa mente! 70 Oh! que barca tão valente!

Vem um Onzeneiro71, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

ONZENEIRO

0nzeneiro Pera onde caminhais?

DIABO Oh! que má-hora venhais,

onzeneiro, meu parente!

Como tardastes vós tanto?

ONZENEIRO

Mais quisera eu lá tardar...

Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto. 72

DIABO Ora mui muito m’espanto

não vos livrar o dinheiro!...

ONZENEIRO

Nem tão-sóis para o barqueiro 73 não me leixaram nem tanto...

DIABO Ora entrai, entrai aqui!

ONZENEIRO

Não hei eu i d’embarcar!

DIABO Oh! que gentil recear,

e que cousas pera mi!...

ONZENEIRO Ainda agora faleci,

DIABO

ONZENEIRO DIABO

71. Onzeneiro: Usuário, pessoa que empresta dinheiro a juros; agiota.

E pera onde é a viagem?

Pera onde tu hás-de ir.

DIABO Pera a infernal comarca.

ONZENEIRO Dixe, não vou eu tal barca. 76

Est’outra tem avantagem.

Vai-se à barca do Anjo, e diz: Hou da barca! Houlá!

Haveis logo de partir?

E onde queres tu ir?

ONZENEIRO Eu pera o Paraíso vou.

ONZENEIRO

69. Lavores: Lavor, ornamentação, enfeite.

Pesar de Jam Pimentel!

Porque não irás aqui?

ONZENEIRO Mas pera onde é a passagem?

ANJO

68. Marcheta de Dolores: Adornada de dores.

70. Boa mente: Boa vontade.

DIABO Não cures de mais linguagem. 75

ANJO

67. Marfi: Marfim

leixa-me buscar batel! 74

ONZENEIRO Havemos logo de partir?

ONZENEIRO

66. Sobeja: Sobejar, ser por demais.

Pois quant’eu mui fora estou77 de te levar para lá.

Essoutra te levará; vai pera quem te enganou!

Porquê?

72. O sentido dos versos é que, na época de receber os lucros, Saturno, o tempo, infligiu ao Onzeneiro o sofrimento da morte. Para Augusta Gersão Ventura, segundo a astrologia e a medicina da época, acreditava-se na influencia maléfica do planeta Saturno sobre os pulmões, daí inferir-se que o Onzeneiro tenha morrido de pneumonia.

73. Nem tão-sois para o barqueiro / não me deixais nem tanto: Nem ao menos para o barqueiro (o Diabo) / me deixaram uma moeda.

Nem tão-sois: Nem se que, nem ao menos.

74. Batel: Pequeno barco.

75. Não cogites de maiores informações.

76. Dixe: Pretérito do verbo dizer, aqui no sentido imperativo e exclamativo.

77. Quant’eu: Quanto a mim.

ANJO

Porque esse bolsão tomará todo o navio. 78 Juro a Deus que vai vazio!

ONZENEIRO ANJO

Não já no teu coração.

ONZENEIRO

ANJO

Lá me fica, de roldão, Vinte e seis milhões nüa arca.

Pois que onzena tanto abarca, 79 não lhe deis embarcação!

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz: ONZENEIRO

Houlá! Hou! Demo barqueiro!

Sabeis vós no que me fundo?80 Quero lá tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro.

Aqueloutro marinheiro, porque me vê vir sem nada, dá-me tanta borregada 81 como arrais lá do Barreiro.

DIABO Entra, entra, e remarás!

ONZENEIRO

78. Assim como o Fidalgo, que carrega consigo um pajem, uma cadeira e porta um grande manto, símbolos de sua soberba, o Onzeneiro leva consigo uma grande bolsa, símbolo de sua usura.

79. Pois que onzena tanto abarca: Já que tantos juros recebe. Onzena: juros de onze por cento. Em sentido figurativo: juro exorbitante, excessivo.

80. Sabeis vós no que me fundo?: Sabeis vós no que me baseio?

81. Borregada: O verbo borregar significa berrar muito, emitir som semelhante ao do borrego, cordeiro com menos de um ano. No verso, seu sentido é repreensão.

82. Que te pês: Ainda que custe a ti.

Não percamos mais maré!

83. Cal’te, que cá chorarás: Cala-te, que cá chorarás.

Todavia...

84. Côrtes: Adjetivo em função adverbial, cortesmente.

DIABO Per força é!

Que te pês, cá entrarás! 82 Irás servir Satanás, pois que sempre te ajudou.

ONZENEIRO Oh! Triste, quem me cegou?

DIABO Cal’te, que cá chorarás. 83

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete:

85. Arrenegueis: Renegar, abjurar.

86. Parvo: Tolo, ingênuo, apetado.

87. Hou daquesta: Ô de casa!

88. Naviarra: Grande barca.

89. Samicas: Advérbio obsoleto: talvez, porventura.

ONZENEIRO

Santa Joana de Valdês!

Cá é vossa senhoria?

FIDALGO Dá ò demo a cortesia!

DIABO Ouvis? Falai vós cortês! 84

Vós, fidalgo, cuidareis que estais na vossa pousada?

Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que arrenegueis! 85 Vem Joane, o Parvo86, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO DIABO

Parvo Hou daquesta! 87 Quem é?

PARVO Eu soo.

É esta a naviarra nossa? 88 DIABO De quem?

PARVO DIABO

PARVO

Dos tolos.

Vossa.

Entrai!

De pulo ou de vôo?

Hou! Pesar de meu avô!

Soma, vim adoecer e fui má-hora morrer, e nela, pera mi só.

DIABO De que morreste?

PARVO

Samicas de caganeira. 89

DIABO PARVO

De quê?

De caga-merdeira!

Má rabugem que te dê! 90

DIABO Entra! Põe aqui o pé!

PARVO Houlá! Não tombe o zambuco! 91 DIABO

Entra, tolaço eunuco, 92 que se nos vai a maré!

PARVO Aguardai, aguardai, houlá!

E onde havemos nós d’ir ter?

DIABO Ao porto de Lucifer.

PARVO

Hã?

DIABO Ao Inferno! Entra cá!

PARVO

Ao Inferno? Eramá!93 Hiu! Hiu! Barca do cornudo.

Pêro Vinagre, beiçudo, rachador d’Alverca, hu-há!

Sapateiro da Candosa! 94 Antrecosto de carrapato!95 Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa!96 Tua mulher é tinhosa 97 e há-de parir um sapo chantado no guardanapo!98 Neto de cagarrinhosa!

Furta cebolas! Hiu! Hiu! Excomungado nas erguejas!

Burrela, cornudo sejas! 99 Toma o pão que te caiu!

A mulher que te fugiu per’a Ilha da Madeira!

90. Ravugem: Sarna que ataca os cães.

91. Zambuco: Pequeno barco usado ainda hoje no Oriente. O Parvo, ao pôr os pés na prancha, desequilibra-se e desiste de embarcar.

92. Tolaço: Superlativo de tolo.

93. Eramá: Má hora, mau momento.

94. Sapateiro da Candosa!: O parvo dirige uma série de insultos ao Diabo, muitos deles obscuros e sem nexo.

95. Entrecosto: Carne entre as costelas da rês, junto ao espinhaço.

96. Aleivosa: Traidora: 97. Tinhosa: Repugnante, nojenta.

98. Chentado: Posto, metido.

99. Burrela: Termo não muito claro, de acepções diversas nas obras do autor, aparecendo ora no diminutivo, ora como sinônimo de esparrela ou de zombaria.

Ratinho da Giesteira, 100 toma o pão que te caiu!

Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha! 101 Dê-dê! Pica nàquela! 102 Hump! Hump! Caga na vela!

Hio, cabeça de grulha! 103 Perna de cigarra velha, caganita de coelha, pelourinho da Pampulha!

Mija n’agulha, mija n’agulha! 104 Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz: PARVO

Hou da barca!

ANJO PARVO ANJO

Queres-me passar além?

Quem és tu?

Não sou ninguém.

101. Pulha: Praga.

102. Pica: Lança antiga.

Aquela: Provavelmente, “aquela” seria o local onde o Parvo gostaria de ver fincada a lança.

103. Grulha: Tagarela, palavra derivada do espanhol “grulha”: grou, ave pernalta.

ANJO Que me queres?

PARVO

100. Ratinho: Trabalhador do campo.

105

Tu passarás, se quiseres; porque em todos teus fazeres per malícia não erraste.

Tua simpreza t’abaste106 pera gozar dos prazeres.107 Espera entanto per i: veremos se vem alguém, merecedor de tal bem, que deva de entrar aqui.

Vem um Sapateiro com seu avental carreado de formas, e chega ao batel infernal, e diz:

104. Provavelmente, o Parvo se refere à bussola do barco do inferno.

105. Observe que, ao contrário de outros personagens, o Parvo não trás nada consigo. Todos os demais, com exceção dos Quatro Cavaleiros, carregam símbolos da sua vaidade e arrogância e da materialização simbólica dos seus pecados.

106. Tua simpreza t’abaste: Tua simplicidade te basta.

107. Como o leitor pode observar, a oscilação de grafias é comum no português arcaico.

Sapateiro

SAPATEIRO Hou da barca!

DIABO

Quem vem i?

Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?...

SAPATEIRO

Mandaram-me vir assi...

E pera onde é a viagem?

DIABO Pera o lago dos danados. 108 SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

Os que morrem confessados onde têm sua passagem?

Não cures de mais linguagem!

Esta é a tua barca, esta!

Renegaria eu da festa e da puta da barcagem!

Como poderá isso ser, confessado e comungado?!...

DIABO Tu morreste excomungado:

não o quiseste dizer.

Esperavas de viver, calaste dez mil enganos...

Tu roubaste, bem trint’anos o povo com teu mister. 109 Embarca, eramá pera ti, que há já muito que te espero!

SAPATEIRO Pois digo-te que não quero!

DIABO Que te pês, hás de ir, si, si!

SAPATEIRO

Quantas missas eu ouvi, não me hão elas de prestar?

108. Danados: Danado, condenado, amaldiçoado.

109. Mister (é): Profissão, ofício.

110. Então: No verso, então tem o sentido de “depois”.

111. Nesses versos, o Sapateiro refere-se às oferendas que se davam aos santos em razão de promessas e de orações feitas pela sua alma.

112. O Diabo contesta o Sapateiro, perguntando que tipo de satisfação receberam aqueles a quem ele explorou.

113. Cordovão: Couro de cabra curtido e preparado especialmente para a confecção de calçados.

DIABO

SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

Ouvir missa, então roubar,110 é caminho per’aqui.

E as ofertas que darão?

E as horas dos finados? 111 E os dinheiros mal levados, que foi da satisfação? 112 Oh! Não praza ò cordovão, 113 nem à puta da badana, 114 se é esta boa traquitana 115 em que se vê Jan Antão!

Ora juro a Deus que é graça!

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

SAPATEIRO

Hou da santa caravela, podereis levar-me nela?

ANJO A cárrega t’embaraça. 116 SAPATEIRO

ANJO

Não há mercê que me Deus faça? 117 Isto uxiquer irá. 118 Essa barca que lá está Leva quem rouba de praça. 119 Oh! almas embaraçadas!

SAPATEIRO Ora eu me maravilho

haverdes por grão peguilho 120 quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito!

ANJO

SAPATEIRO

Se tu viveras direito, Elas foram cá escusadas. 121 Assi que determinais que vá cozer ò Inferno?

114. Badana: Pele de animal curtida muito macia.

Observe que o Sapateiro renega objetos do seu ofício.

115. Traquitana: Carro desconjuntado. O Sapateiro refere-se à barca do inferno.

116. Cárrega: Cara, utensílios que o Sapateiro carregava.

117. Mercê: Favor, graça, benefício.

118. Uxiquer: Em qualquer parte, onde quer.

119. De praça: Expressão que significa “publicamente”.

120. Grão peguilho: Grande estorvo, grande obstáculo.

121. Escusadas: desnecessárias.

28

ANJO

Escrito estás no caderno das ementas infernais. 123

Torna-se à barca dos danados, e diz:

SAPATEIRO

Hou barqueiros! Que aguardais?

Vamos, venha a prancha logo e levai-me àquele fogo!

Não nos detenhamos mais!

Vem um Frade com üa Moça pela mão, e um broquel124 e üa espada na outra, e um casco125 debaixo do capelo126; e, ele mesmo fazendo a baixa127, começou de dançar, dizendo:

Frade

124. Broquel: Antigo escudo pequeno e redondo utilizado para conter golpes de espada.

125. Casco: Capacete.

FRADE Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;

ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã: tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Hu-há! 128 DIABO

Que é isso, padre?! Que vai lá?

FRADE Deo gratias! Sou cortesão.

129

DIABO Sabeis também o tordião?

130

FRADE Porque não? Como ora sei!

DIABO

Pois entrai! Eu tangerei e faremos um serão.

Essa dama é ela vossa?

FRADE Por minha la tenho eu,

e sempre a tive de meu,

123. Coser: Palavra parônima de cozer, reflete a ironia do autor e tem levado a grafias diferentes em várias edições. O sapateiro vai costurar (coser) no inferno e cozinhar (cozer) no inferno.

126. Capelo: Capa com cobertura para cabeça.

127. Baixa: Tipo de dança que se executava com passos arrastados, sem pulos nem saltos.

129. Deo Gratias: Graças a Deus!

130. Tordião: Dança de origem francesa do século XVI

29

DIABO

Fezestes bem, que é fermosa!

E não vos punham lá grosa 131 no vosso convento santo?

FRADE E eles fazem outro tanto!

DIABO

Que cousa tão preciosa...

Entrai, padre reverendo!

FRADE Para onde levais gente?

DIABO

Pera aquele fogo ardente que não temestes vivendo.

FRADE Juro a Deus que não t’entendo!

E este hábito no me val? 133

131. Grosa: Por grossa, censura.

DIABO

Gentil padre mundanal, a Berzebu vos encomendo! 134

133. E est’hábito não me val?: E este hábito não me vale?

FRADE

Corpo de Deus consagrado!

Pela fé de Jesu Cristo, que eu não posso entender isto!

Eu hei-de ser condenado?

Um padre tão namorado e tanto dado à virtude?

Assi Deus me dê saúde, que eu estou maravilhado!

DIABO

Não façamos de mais detença. 135 Embarcai e partiremos: tomareis um par de ramos.

FRADE Não ficou isso n’avença. 136 DIABO

Pois dada está já a sentença!

FRADE

Par Deus! Essa seria ela!137 Não vai em tal caravela minha senhora Florença. 138 Como? Por ser namorado e folgar com üa mulher

134. Berzabu: Belzebu, o príncipe dos demônios.

135. Detença: Demora, delonga.

136. Avença: Combinado, acordo.

137, Essa seri’ela!: Expressão que corresponde a “E essa agora!” ou “Só me faltava essa!”

138. Minha senhora Florença: O padre refere-se a moça que o acompanha.

se há um frade de perder, com tanto salmo rezado!

DIABO

Ora estás bem aviado!

FRADE Mais estás bem corregido! 139 DIABO Devoto padre marido,

haveis de ser cá pingado... 140 Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o Frade: FRADE Mantenha Deus esta coroa!

141

DIABO Ó padre Frei Capacete! 142

Cuidei que tínheis barrete...

143

FRADE Sabei que fui da pessoa!

Esta espada é roloa e este broquel, rolão. 145 DIABO

Dê Vossa Reverença lição d’esgrima, que é cousa boa! 146

Começou o frade a dar lição d’esgrima com a espada e broquel, que eram d’esgrimir, e diz desta maneira: FRADE Deo gratias! Demos caçada! 147

Pera sempre contra sus!

Um fendente! Ora sus! 148 Esta é a primeira levada. 149 Alto! Levantai a espada!

Talho largo, e um revés!

E logo colher os pés, que todo o al não é nada!

Quando o recolher se tarda o ferir não é prudente.

Ora, sus! Mui largamente, cortai na segunda guarda!150

139. Bem corregido: O mesmo que bem aviado. Bem aviado: Bem arranjado, bem servido.

140. Pingado: Castigo que consistia em pingar gordura fervente no corpo da vitima.

141. Coroa: Tonsura. Corte circular, bem rente, que se faz na cabeça dos clérigos.

142. O Diabo se refere que o frade usava um capacete e ironiza.

143. Barrete: Solidéu.

Cobertura para a cabeça usada por clérigos.

144. Da pessoa: Expressão que significa “pessoa de categoria”.

145. Roloa (rolão): Referese a Rolão ou Rolando, herói do Ciclo Carolíngio.

Guarde-me Deus d’espingarda mais de homem denodado. 151 Aqui estou tão bem guardado como a palha na albarda. 152 Saio com meia espada... 153 Hou lá! Guardai as queixadas! 154 DIABO Oh que valentes levadas!

FRADE

Ainda isto nom é nada...

Demos outra vez caçada! 155 Contra sus! E um fendente, E, cortando largamente, eis aqui sexta feitada. 156 Daqui saio com üa guia e um revés da primeira: esta é a quinta verdadeira.

Oh! quantos daqui feria!

Padre que tal aprendia no Inferno há-de haver pingos?

Ah! Não praza a São Domingos com tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo: FRADE

Vamos à barca da Glória!

Começou o Frase a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta maneira: FRADE

Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã; rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã.

Huhá!

Deo gratias! Há lugar cá pera minha reverença?

E a senhora Florença polo meu entrará lá!

146. Os clérigos eram proibidos de portar armas.

O Diabo incita o Padre a esgrimir e assim mostrar que este contrariava a regra conventual.

147. Demos caçada: Comecemos a luta.

148. Fendente: Cutelada ou golpe forte para fender.

149. Primeira levada: Primeira estocada.

150. Segunda guarda: Golpe que consiste em passar a lâmina da espada por cima da lâmina do adversário.

151. Denodado: Ousado, destemido.

152. Albarda: Sela grosseira, enchumaçada de palha, para bestas de carga.

153. Meia espada: Movimento de esgrima que consiste em avança o pé direito só até a metade do alcance possível.

154. Levadas: Movimentos de levar a espada.

155. Demos: Entenda-se como imperativo afirmativo de dar.

156. Sexta feitada: Sexto movimento estratégico de esgrima.

157. Polo meu: Por minha causa.

158. Trinchão: Bom bocado, fatia grossa. O Parvo, provavelmente, refere-se à Florença.

PARVO

Andar, muitieramá!

Furtaste esse trinchão, frade?158

FRADE Senhora, dá-me à vontade 159

que este feito mal está. 160 Vamos onde havemos d’ir!

Não praza a Deus coa a ribeira!

Eu não vejo aqui maneira senão, enfim, concrudir.161 DIABO

Haveis, padre, de viir.

FRADE Agasalhai-me lá Florença,

e compra-se esta sentença: ordenemos de partir.

Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual chegando à barca infernal, diz desta maneira:

Brízida Vaz

BRÍZIDA Hou lá da barca, hou lá!

DIABO Quem chama?

BRÍZIDA Brízida Vaz. DIABO Ei! aguarda-me, rapaz?

Como não vem ela já?

COMPANHEIRO Diz que não há-de vir cá

sem Joana de Valdês.

DIABO Entrai vós, e remarês.

BRÍZIDA Não quero eu entrar lá.

DIABO Que saboroso arrecear! 162

BRÍZIDA Não é essa barca que eu cato. 163 DIABO E trazeis vós muito fato? 164 BRÍZIDA O que me convém levar.

DIABO Que é o que haveis d’embarcar?

BRÍZIDA

DIABO

Seiscentos virgos postiços 165 e três arcas de feitiços 166 que não podem mais levar. 167 Três armários de mentir, e cinco cofres de enleios, 168 e alguns furtos alheios, assi em jóias de vestir, guarda-roupa de encobrir, enfim, casa movediça; um estrado de cortiça com dois coxins de encobrir. 169 A mor cárrega que é: 170 essas moças que vendia.

Daquestra mercadoria trago eu muita, à bofé! 171 Ora ponde aqui o pé...

BRÍZIDA Hui! E eu vou pera o Paraíso!

DIABO E quem te dixe a ti isso?

BRÍZIDA Lá hei-de ir desta maré.

Eu sô üa mártela tal! açoutes tenho levados e tormentos suportados que ninguém me foi igual. 172 Se fosse ò fogo infernal, lá iria todo o mundo!

A est’outra barca, cá fundo, me vou, que é mais real.

159. Dá-me a vontade: Desconfio, suspeito.

160. Que este feito mal está: Que situação desfavorável.

161. Concrudir: Aceitar.

162. Que saboroso arrecear: Que saboroso receio.

163. Não é essa barca que eu cato: Não é essa barca que eu busco.

164. Fato: Roupas, vestes.

Era frequente, no século XVI, o emprego da palavra com o sentido de bagagem ou carga de navio.

165. Virgos postiços: Himens postiços.

166. Além de explorar a prostituição, Brísida Vaz era também feiticeira.

167. Que não podem mais levar: Que estão lotadas, cheias.

168. Enleios: Atrativos.

Brísida carrega vários elementos para atrair os homens.

169. Coxim: Acolchoado.

170. Mor carrega: Maior carga.

171. Bofé: Contração de “à boa fé”. Corresponde a “em verdade”, “de certo”.

Trata-se de uma formula de juramento.

172. Brísida refere-se aos castigos aplicados às alcoviteiras. Como prescreviam os Ordenações Manuelinas: “E se alcovitar alguma moça virgem, ou viúva, honesta de boa fama, ou consentir que em sua casa faça maldade de seu corpo, seja açoitada e degradada para sempre fora de Vila, e Termo, e perca todos seus bens...”.

Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo: BRÍZIDA

ANJO

Barqueiro mano, meus olhos, prancha a Brísida Vaz. 173 Eu não sei quem te cá traz...

BRÍZIDA Peço-vo-lo de giolhos!

174

Cuidais que trago piolhos, anjo de Deus, minha rosa?

Eu sô aquela preciosa que dava as moças a molhos, 175 A que criava as meninas pera os cónegos da Sé. 176 Passai-me, por vossa fé, meu amor, minhas boninas, olho de perlinhas finas!

E eu som apostolada, angelada e martelada, 177 e fiz cousas mui divinas.

173. Prancha: Tábua que serve de ponte entre a embarcação e o cais.

174. Giolhos: Joelhos.

175. Aos molhos: Em grande quantidade.

177. Martelada: Martirizada.

178. Santa Úrsula converteu onze mil virgens ao cristianismo. Foi martirizada pelos hunos juntamente com as suas companheiras.

179. Cachopas: Moças.

Santa Úrsula nom converteu 178 tantas cachopas como eu: 179 todas salvas polo meu 180 que nenhüa se perdeu.

E prouve Àquele do Céu que todas acharam dono.

Cuidais que dormia eu sono?

Nem ponto se me perdeu! 181 ANJO

Ora vai lá embarcar, não me estês importunando.

BRÍZIDA

Pois estou-vos eu contando o porquê me haveis de levar.

ANJO Não cures de importunar,

que não podes vir aqui.

180. Polo meu: Graças a mim, por meu mérito.

181. Nem ponta: Nada.

182. O sentido desses versos é: Não me será útil tudo o que obrei.

183. Cuj’é?: Contração de “cuja é?”, que significa “de quem é?”.

BRÍZIDA

E que má-hora eu servi, pois não me há-de aproveitar!... 182

Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo: BRÍZIDA Hou barqueiros da má-hora,

que é da prancha, que eis me vou?

E, já muito que aqui estou E pareço mal cá de fora.

DIABO

Ora entrai, minha senhora, e sereis bem recebida; se vivestes santa vida, vós sentireis agora.

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veio um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

JUDEU DIABO JUDEU

Judeu

Que vai cá? Hou marinheiro!

Oh! que má-hora vieste!...

Cuj’é esta barca que preste? 183

DIABO Esta barca é do barqueiro.

JUDEU Passai-me por meu dinheiro.

DIABO

E o bode há cá de vir?

JUDEU Pois também o bode há-de vir.

DIABO Que escusado passageiro!

JUDEU Sem bode, como irei lá?

DIABO Nem eu nom passo cabrões.

JUDEU Eis aqui quatro tostões

e mais se vos pagará.

Por vida do Semifará184 que me passeis o cabrão! 185 Quereis mais outro tostão?

184. Por vida de Semifará: O sentido desta forma de juramento não foi estabelecido.

DIABO Nem tu não hás-de vir cá.

185. Que me passeis o cabrão: Deixar embarcar o meu bode.

JUDEU Porque não irá o judeu

186. Azará: Má sorte, desgraça.

onde vai Brísida Vaz? Ao senhor meirinho apraz?

Senhor meirinho, irei eu?

DIABO

JUDEU

E o fidalgo, quem lhe deu o mando, dizeis, do batel?

Corregedor, coronel, castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda, 186 lodo, chanto, fogo, lenha, 187 caganeira que te venha!

Má corrença que te acuda! 188 Par el Deu, que te sacuda 189 coa beca nos focinhos!

Fazes burla dos meirinhos? 190 Dize, filho da cornuda!

PARVO Furtaste a chiba cabrão?

191

Parecês-me vós a mim gafanhoto d’Almeirim chacinado em um seirão. 192 DIABO

Judeu, lá te passarão, 193 porque vão mais despejados.

PARVO E ele mijou nos finados

n’egreja de São Gião!

187. Chanto: Pranto.

188. Corrença: Diarreia.

189. El Deu: Deus. Gil Vicente usa esta forma de invocação do nome divino para caracterizar a linguagem dos judeus.

190. O Judeu crê que o Fidalgo é um meirinho, antigo magistrado ou funcionário judicial correspondente ao oficial de justiça. Fazes burla: Escarneces, zombas.

191. Chiba: Cabra nova, cabrita.

192. Seirão: Espécie de saco ou cesto.

193. Judeu, lá te levarão: Na barca da glória te levarão.

Parece que nem o Diabo quer levar o Judeu.

194. O Parvo refere-se aos vários pecados que teriam sido cometidos pelo Jude.

São Gião: São Julião 195. À toa: A reboque.

O Diabo por fim resolve levar o Judeu, ainda que a reboque.

E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor! 194 E aperta o salvador, e mija na caravela!

DIABO Sus, sus! Demos à vela!

Vós, Judeu, irês à toa, 195 que sois mui ruim pessoa.

Levai o cabrão na trela!

Vem um Corregedor197, carregado de feitos198, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:

Corregedor

CORREGEDOR Hou da barca!

DIABO Que quereis?

CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?

DIABO Oh amador de perdiz.

199

gentil cárrega trazeis!

CORREGEDOR No meu ar conhecereis

que não é ela do meu jeito.

DIABO Como vai lá o direito?

CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.

DIABO

Ora, pois, entrai. Veremos que diz i nesse papel...

CORREGEDOR E onde vai o batel?

DIABO

No Inferno vos poremos.

196. O arrais infernal também decide levar o bode amarrado com uma trela. Tira de couro com que se prendem os cães.

197. Corregedor: Antigo magistrado cujas atribuições eram análogas às dos atuais juízes de Direito.

198. Feitos: Autos judiciais, processos.

199. Os juízes eram acusados de aceitar suborno. As perdizes e os coelhos são muito citados por Gil Vicente como agrados utilizados para tal.

CORREGEDOR Como? À terra dos demos

há-de ir um corregedor?

DIABO Santo descorregedor,

embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, pois que viestes!

CORREGEDOR

Non est de regulae juris, não! 200

DIABO Ita, Ita! Dai cá a mão! 201

Remaremos um remo destes.

Fazei conta que nascestes pera nosso companheiro.

-Que fazes tu, barzoneiro? 202 Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR Oh! Renego da viagem

e de quem me há-de levar!

Há’qui meirinho do mar? 203 DIABO

Não há tal costumagem.

CORREGEDOR Não entendo esta barcagem,

nem hoc non potest esse. 204 DIABO Se ora vos parecesse

que não sei mais que linguagem 205 Entrai, entrai, corregedor!

CORREGEDOR

DIABO

Hou! Videtis qui petatis! 206 Super jure magestatis tem vosso mando vigor? 207 Quando éreis ouvidos Nonne accepistis rapina?208 Pois irei pela bolina Onde nossa mercê for. 209 Oh! que isca esse papel pera um fogo que eu sei! 210

CORREGEDOR Domine, memento mei! 211

200. Não está de acordo com as normas do Direito, da Lei. Muitas frases em latim, ainda hoje, são usadas pelos juristas, se seguirão; só que em latim macarrômico.

201. Ita, ita: Sim, sim. O Diabo também emprega o latim para não ficar para trás.

202. Barzoneiro: Vadio, vagabundo.

203. Acostumado a ter um meirinho para auxiliá-lo, o Corregedor pergunta por ele.

204. Isso não pode ser.

205. Linguagem: Português, em oposição ao latim.

206. Vede o que reclamais!, adverte o Corregedor, evocando o direito de majestade que protegia os representantes do rei.

207. Acima do direito de majestade / a sua ordem pode vigorar?

208. Não recebestes suborno?

209. Ireis para onde formos.

Observe que o Diabo utiliza ironicamente o plural de majestade referindo-se a si próprio: nossa mercê.

DIABO Non es tempus, bacharel!

Imbarquemini in batel quia Judicastis malitia. 212 CORREGEDOR Sempre ego justitia

213

fecit, e bem por nivel. 214 DIABO E as peitas dos judeus 215

que a vossa mulher levava?

CORREGEDOR

DIABO

Isso eu não o tomava eram lá percalços seus.

Não são pecatus meus, peccavit uxore mea. 216 Et vobis quoque cum ea, não temuistis Deus. 217 A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum.

Ut quid eos non audistis? 218

CORREGEDOR

Vós, arrais, nonne legistis que o dar quebra os penedos? 219 Os direitos estão quedos, sed aliquid tradidistis... 220

DIABO Ora entrai, nos negros fados!

Ireis ao lago dos cães 221 e vereis os escrivães como estão tão prosperados.

CORREGEDOR

DIABO

E na terra dos danados estão os Evangelistas? 222 Os mestres das burlas vistas lá estão bem fraguados. 223

210. O papel dos processos será um bom combustível para o fogo do inferno.

211. Senhor, lembra-te de mim!

212. Não é tempo, bacharel! / Embarcai no batel, / porque sentenciastes com malícia.

213. Eu sempre fiz justiça 214. Nivel: Com equidade, por medida justa.

215. Peitas: Suborno.

216. Minha mulher é que pecava.

217. E vós, estando com ela / não temestes a Deus?

218. Enriquecestes muito à custa / do sangue dos lavradores, / ignorantes inocentes. / Por que não atendestes a eles?

219. E vós, arrais, não lestes o que dar quebra os penedos? O sentido dos versos é: O dinheiro quebra (amolece) as rochas.

220. Os direitos se calam (a lei não se mexe), quando trazeis alguma coisa (suborno).

221. Lago dos cães: Inferno, onde sofrerá também o suplício de ser atacado eternamente por cães.

222. Evangelistas: Assim eram chamados os escrivães e advogados trapaceiros.

223. Fragoados: Atormentados a marteladas depois de levados, assim como os metais, ao fogo de frágua ou forja.

Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal, chegou um Procurador carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

CORREGEDOR

Procurador Ó senhor Procurador!

PROCURADOR Beijo-vo-las mãos, Juiz!

Que diz esse arrais? Que diz?

DIABO Que serês bom remador.

Entrai, bacharel doutor, e ireis dando na bomba. 224 PROCURADOR E este barqueiro zomba...

Jogatais de zombador? 225 Essa gente que aí está pera onde a levais?

DIABO Pera as penas infernais.

PROCURADOR Dix! Não vou eu pera lá!

Outro navio está cá, muito milhor assombrado. 226 DIABO

CORREGEDOR

Ora estás bem aviado!

Entra, muitieramá!

Confessaste-vos, doutor?

PROCURADOR Bacharel sou. Dou-me à Demo! 228

Não cuidei que era extremo, nem de morte minha dor.

E vós, senhor Corregedor?

CORREGEDOR Eu mui bem me confessei,

mas tudo quanto roubei encobri ao confessor...

Porque, se o não tornais,229 não vos querem absolver, e é mui mau de volver depois que o apanhais.

DIABO

Pois porque não embarcais?

PROCURADOR Quia speramus in Deo. 230 DIABO Imbarquemini in barco meo...

Pera que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo: CORREGEDOR

ANJO

Ó arrais dos gloriosos, passai-nos neste batel!

Oh! pragas pera papel, 231 pera as almas odiosos!

Como vindes preciosos, sendo filhos da ciência!

CORREGEDOR Oh! habeatis clemência

e passai-nos como vossos!

PARVO

Hou, homens dos breviairos, 232 rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum 233 e mijais nos campanários!

CORREGEDOR Oh! Não nos sejais contrários,

pois não temos outra ponte!

PARVO

Belequinis ubi sunt? 234 Ego latinus macairos. 235

ANJO A justiça divinal

vos manda vir carregados

224. E ireis dando na bomba: Trabalhar na bomba que retira água do barco.

225. Jogatais: Brincais 226. Muito melhor assombrado: De melhor aspecto, ou sombra.

228. Dou-me ó demo!: Juramento com imprecação em que se põe o diabo como testemunha.

229. Tornais: Restituís.

230. Porque esperamos em Deus.

231. A resposta do Anjo é irônica, mas o sentido do verso é controvertido.

O Anjo talvez se refira ao Procurador e ao Corregedor como pragas que atacam o papel, já que eles interpretam os processos ou os falsificam conforme suas conveniências: são pragas da justiça.

232. Breviários: Aqui tem o sentido de livros de Direito.

233. O latim macarrônico falado pelo Parvo dá o tom humorístico: roubastes coelhos, / pernis e perdizes.

234. Onde estão os beleguins? Isso é, os agentes de polícia ou meirinhos que irão entregar o Procurador e o Corregedor ao arrais da barca do inferno.

235. Continua o efeito humorístico do latim incorreto: o nome Macário era dado aos latinistas de pouco conhecimento, que se expressavam mal em latim.

porque vades embarcados nesse batel infernal.

CORREGEDOR

Oh! Não praza a São Marçal! com a ribeira, nem com o rio!

Cuidam lá que é desvario haver cá tamanho mal!

PROCURADOR

Que ribeira é esta tal!

PARVO Parecês-me vós a mi

como cagado nebri, mandado no Sardoal.

Embarquetis in zambuquis!

CORREGEDOR Venha a negra prancha cá!

Vamos ver este segredo.

PROCURADOR Diz um texto do Degredo... 236 DIABO Entrai, que cá se dirá!

E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque a conhecia: senhora Brízida Vaz! Já siquer estou em paz, que não me leixáveis lá. 237 Cada hora sentenciada: «Justiça que manda fazer...»

CORREGEDOR E vós... tornar a tecer

e urdir outra meada.

BRÍZIDA Dizede, juiz d’alçada:

vem lá Pêro de Lisboa?

Levá-lo-emos à toa e irá nesta barcada.

237. Lá: na Terra.

238. Pero de Lisboa: Escrivão da Fazenda e Contas da Casa de Imposição de Lisboa, nomeado em 15 de dezembro de 1500. Esta é uma das muitas insinuações de Gil Vicente sobre os personagens de seu tempo.

239. Garcia Moniz: Personagem real tesoureiro da Moeda no tempo de Gil Vicente.

240. Como cordo na buiz: Como pássaro na armadilha.

CORREGEDOR Oh! esteis muitieramá,

BRÍZIDA

236. Degredo: Decreto, leis. O Procurador ainda tenta consultar as leis, o que colabora para o tom humorístico do texto.

238

241. Beleguim: Oficial de justiça, de nível inferior por ser um aprendiz.

Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o Arrais, tanto que chegou:

Enforcado

DIABO Venhais embora, enforcado!

Que diz lá Garcia Moniz? 239 ENFORCADO Eu te direi que ele diz

que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz, 240 e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado.

DIABO Entra cá, governarás

até as portas do Inferno.

ENFORCADO

Não é essa a nau que eu governo.

DIABO Mando-te eu que aqui irás.

ENFORCADO

Oh! Não praza a Barrabás!

Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz são livres de Satanás...

E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado; e que fosse Deus louvado que em bo’hora eu cá nascera; e que o Senhor m’escolhera; e por bem vi beleguins. 241 E com isto mil latins, mui lindos, feitos de cera.

E, no passo derradeiro, me disse nos meus ouvidos

que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro; 242 nem guardião do moesteiro não tinha tão santa gente como Afonso Valente 243 que é agora carcereiro.

DIABO Dava-te consolação

isso, ou algum esforço?

ENFORCADO Com o baraço no pescoço, 244

mui mal presta a pregação.

E ele leva a devação que há-de tornar a jantar. 245 Mas quem há-de estar no ar 246 aborrece-lhe o sermão.

DIABO Entra, entra no batel,

que ao Inferno hás-de ir!

ENFORCADO

DIABO ENFORCADO

O Moniz há-de mentir?

Disse-me que com São Miguel jantaria pão e mel tanto que fosse enforcado. 247 Ora, já passei meu fado, e já feito é o burel. 248 Agora não sei que é isso: não me falou em ribeira, nem barqueiro, nem barqueira, senão “logo ò Paraíso”. 249 Isto muito em seu siso.

E era santo o meu baraço... 250 Eu não sei que aqui faço: que é desta glória improviso?

Falou-te no Purgatório?

Disse que era o Limoeiro, e ora por ele o salteiro 251 e o pregão vitatório; 252

242. Limoeiro: Prisão de Lisboa.

243. Afonso Valente: Carcereiro da cidade de Lisboa.

244. Baraço: Corda.

245. Ele crê que continuará a viver. Devação: devoção.

246. Estar no ar: Estar pendurado na corda.

247. Tanto que fosse: Logo que fosse.

248. Burel: Luto.

249. Garcia Moniz lhe dissera que, logo que fosse enforcado, iria para o paraíso.

250. E era santo o meu baraço: E era santa a corda com a qual seria enforcado.

As cordas dos esforçados eram usadas como amuleto para feitiços.

251. Salteiro: Para livrar-se do purgatório rezara o saltério, os sete salmos penitenciais.

252. Pregão vitatório: O mesmo que “próprio para evitar”. Pregão realizado anres da execução de um condenado.

253. Disse que o tormento para aqueles que eram castigados equivalia às horas que se rezam para os mortos e às missas de São Gregório.

e que era mui notório que àqueles deciprinados eram horas dos finados e missas de São Gregório. 253 DIABO Quero-te desenganar:

se o que disse tomaras, certo é que te salvaras.

Não o quiseste tomar.

Alto! Todos a tirar, que está em seco o batel! 254 Saí vós, Frei Babriel!

Ajudai ali a botar!

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrecentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena255 per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d’Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja.

E a cantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

CAVALEIROS

Cavaleiros À barca, à barca segura, barca bem guarnecida, à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais pola vida transitória, memória , por Deus, memória deste temeroso cais! À barca, à barca, mortais, Barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores, que, depois da sepultura, neste rio está a ventura de prazeres ou dolores! À barca, à barca, senhores, barca mui nobrecida, à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira: DIABO Cavaleiros, vós passais

e não perguntais onde is?

Vós, Satanás, presumis?

Atentai com quem falais!

1º CAVALEIRO

2º CAVALEIRO

Vós que nos demandais?

Siquer conhecê-nos bem: morremos nas Partes d’Além, 256 e não queirais saber mais.

DIABO Entrai cá! Que cousa é essa?

Eu não posso entender isto!

CAVALEIROS

Quem morre por Jesu Cristo não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam, diz o Anjo:

254. A barca está tão cheia de pecadores que o seu casco encostou na areia. O Diabo ordena a todos que desembarquem e a empurrem antes de tornarem a embarcar.

255. Absoltos a culpa e pena: Absolvidos pela culpa e castigo. Ao Cavaleiros foram absolvidos dos seus pecados porque morreram nas lutas contra ou mouros, defendendo o cristianismo.

256. Partes d’além: Longe, em terras do Oriente.

ANJO

Ó cavaleiros de Deus, a vós estou esperando, que morrestes pelejando por Cristo, Senhor dos Céus!

Sois livres de todo mal, mártires da Santa Igreja, que quem morre em tal peleja merece paz eternal.

E assi embarcam.

Surpreso com a narrativa dessa obra?

Não deixe de conferir outras peças de Gil Vicente:

1502 Auto da Visitação (Monólogo do Vaqueiro)/ Auto pastoril castelhano 1503 Auto dos Reis Magos 1504 Auto de São Martinho 1509 Auto da Índia / Auto da Sílaba Cassandra 1510 Auto da fé 1511 Auto dos quatro tempos 1512 O velho e a horta 1514 Exortação da guerra 1515 Quem tem farelos?

1518 Auto da Barca do Purgatório / Auto da Barca da Glória/ Auto da Alma

1521 Auto da fama / Cortes de Júpiter / Comédia de Rubena / Auto das ciganas 1522 Dom Duardos 1523 Farsa de Inês Pereira / Auto pastoril português 1524 Comédia do viúvo / Frágua de amor /Auto dos físicos 1525 O juiz da Beira 1526 Breve Sumário da História de Deus / Templo de Apolo / Diálogo sobre a ressurreição 1527 Auto das fadas / Auto da festa / Nau de amores / Comédia sobre a divisa da estrela / Farsa de almocreves / Auto pastoril da serra da Estrela 1528 Auto da feira 1529 Triunfo do inverno / O clérigo da Beira 1531 Mistérios da Virgem (Auto da Mofina Mendes) / Floresta de enganos 1532 Auto da Lusitânia / Romagem de agravados 1533 Auto de Amadis de Gaula/ Auto da Cananéia

Edição comemorativa de 503 anos em memória a Gil Vicente, Rei do Teatro Português.

2020

Esta obra foi impressa no Brasil, para a Editora Companhia das Letras, na tipografia corbel 9/11 e impressa em offset sobre papel offset 90 g/m².