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Casos clínicos...25 Escrita Livre
O desabafo da árvore de Cós
Dr. Rodrigo Alexandre Fortes, Alumnus Fmuc
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Permitam-me que a minha mente pinte em tão acriançado quadro uma árvore olhando-se ao espelho. Enraizada na ilha de Cós, uma árvore milenar, cuja sombra deu guarida a Hipócrates e seus discípulos, no local do nascimento da Medicina racional e científica. A todo este cenário acrescento o espelho de Machado de Assis para analisar a farda da Medicina, que se renova a cada geração, assim como as folhas da árvore de Hipócrates se renovam a cada Primavera. Machado de Assis expõe, em sua obra seminal “O Espelho”, que a nossa “alma externa”, ligada ao status e prestígio social, ao olhar alheio, tem precedência face à “alma interna”, tendo o título eliminado o homem numa identidade subsumida e subalterna de convenções e de jogos de poder. Com o seu tronco lenhoso, ostenta uma cabeleira crespa e florida, fazendo-se estar pelas suas raízes pivotantes. Olha-se mais uma vez ao espelho, vira-se para mim com os olhos lassos e diz-me: Sinto que a minha alma interior está engolfada pela minha alma exterior. Perfumada pelo prestígio, reconhecimento, poder e savoir-faire, deixei de representar os Médicos para representar os Doutores. Tenho conversado muito com aquelas plantas de pequeno porte e caule macio. Disseram-me ser da família das ervas daninhas. Não sei se me deram o nome falso (vou falar baixinho para que não me ouçam), chamam-se: orgulho, prepotência, vaidade. Permite-me mostrar-te os seis ramais que sustentam o núcleo duro dessa arrogância: 1. Herança cultural científica – A promessa iluminista e positivista dada pela elucidação dos mecanismos da doença e pela intervenção material específica sobre eles entregou resultados sem explicações comezinhas. O grande grupo é incapaz de compreender os meandros da ciência, por isso tem uma fé absoluta em seus dizeres. Mesmo os que têm algum grau académico contestam a postura médica e não a luz técnica. Não é por ser competente que não se pode dizer “asneiras no próprio campo de competência”. A arrogância, em sentido geral, pode não ser fruto de característica pessoal ou circunstancial da má prática médica. 2. Subcultura autoritária do ambiente laboral – A exposição constante de si e as imagens que medeiam as relações tendem a instaurar uma propensão ao mimetismo. Falo da ritualização e institucionalização de condutas, mediante as quais agimos para que seja robusto o sentimento de pertença. Um exemplo é o elogiar em privado e corrigir em público, amplamente praticado. 3. Processo pedagógico autoritário – É um processo historicamente cunctatório. O aprendizado da clínica, no hospital, pelos profissionais foi e continua a ser, provavelmente, ponto nevrálgico no processo pedagógico: vários anos de formação numa instituição autoritária são essenciais para a introjeção da arrogância e do autoritarismo em muitos médicos. O estudante de medicina geralmente é parte de: um estudo extenuante, por vezes com privação de atividades que enriquecem a vivência social; um grupo,

na maior parte das vezes, de classe e condições económicas privilegiadas. Ou seja, um indivíduo, no umbral da idade adulta, totalmente protegido. Destarte, subitamente, depara-se com o sofrimento multifacetado (desigualdade social, falta de estrutura, dor, morte…) e vê a sua visão imediatista, idílica e romântica das coisas substituída por um modo de blindagem, amiúde, arrogante. 4. Relação externa com a sociedade – As práticas hospitalares formadoras dos médicos, já discutidas, militam a favor de uma sensação de heroísmo atendendo a tão “decantado processo intelectual”. Também as dificuldades da cura não-hospitalar contribuem para materializar algo dessa sensação. A gratidão e o valor projetado fazem arraigar essa moldura em meio a sociedade. 5. Valores e posturas que credenciam essas atitudes – Intervencionismo, pressa, controlo, desconfiança, tensão emocional, etc. não se furtam da oportunidade de tecer pré-conceitos e pareceres. A título de exemplo, quantos já julgaram o paciente pela vinheta clínica da triagem? 6. Concorrência – Trata-se de uma profissão que lida com a confiança das pessoas, embasada pela: integridade, ação, respeito e resultado. Este último elemento tem sido sobrepujado, exagerado e hipersensibilizado, mormente quando posto em causa. Em quase todas as paragens, algum grau de competição é inescapável, só que há uma diferença entre a competição necessária (va- loriza a capacidade de antecipação) e a competição com rivalidade (valoriza a capacidade de procurar situações antecipáveis). O termo “bajulação” tornou-se o salvo-conduto para a obtenção dessas situações antecipáveis. Theodore Adorno dizia que “a competição é um princípio, no fundo, contrário a uma educação humana”. Mas o objetivo das profissões não é educar seres humanos, é pôr a educação a serviço de um fim. Será esse o caminho certo? Não sei! Há um lado solar e um lado obscuro. Peço desculpas aos meus frutos. Mas esta árvore, só por hoje, decidiu não abordar a virtude, a potência, a sabedoria, a dedicação, a vocação, a criatividade, a alegria e as experiências humanas que fazem crescer e enriquecer as vidas de médicos e pacientes, também presentes na prática médica. Sr. Machado de Assis, pode levar o seu espelho. Continuo a ser uma otimista inveterada!


A poesia da medicina

Bernardo Monteiro, 2ºano
Poesia e Medicina, conceitos que, numa primeira análise, mais leviana, não evidenciam, propriamente, uma relação íntima; porém, se cogitarmos um pouco, ir- -nos-emos aperceber de que, afinal, são áreas complementares e, de certo modo, indissociáveis. Na realidade, atrevo-me a asseverar que, sem Poesia, não haveria Medicina.
Talvez alguns julguem que estou ébrio pela afirmação que acabo de tecer … afinal, como ouso defender tamanho dislate? Então, qual é a relação entre os Poemas de Camões, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Anderson, Miguel Torga, Herberto Hélder (entre outros autores, que deixaram uma marca indelével no mundo através da sua escrita) e a Medicina, ramo puramente científico? Ora, para responder a esta excelente questão, estimados leitores, teremos de encetar uma breve reflexão acerca do cerne da Poesia. Vamos a isso? Infelizmente, por uma multiplicidade de fatores, entre os quais destaco a incúria do modelo de ensino hodierno, que se preocupa exacerbadamente em atribuir um «numerozinho» aos discentes, muitos ganham aversão à Poesia ou ficam com uma impressão errónea desta. Apesar de, ao longo de vários anos, sermos convidados a ler e analisar Poemas (e não obstante a diligência dos docentes empenhados), creio que uma percentagem relativamente elevada de indivíduos não nutre especial carinho pela Lira, porquanto não apreendem a sua essência. Para amá-la, não basta «estudar» o programa lecionado … temos de a respirar, viver e sentir. E como se faz isso? - perguntam os meus sagazes leitores. Temos de encarar um Poema como se de uma pessoa se tratasse. Cada um tem uma aparência (sublinho as imensuráveis formas de o organizar em versos e estrofes), um tom de voz (marcado mormente pela métrica e pelos venustos recursos expressivos que imprimem musicalidade à obra-prima), uma opinião … uma vida! Sim, sou arauto da «idiossincrasia lírica»! No entanto, todos os (verdadeiros) Poemas se pautam pela excelência, apanágio das (verdadeiras) obras de arte. Há, também, que ter em conta que a Poesia é verdadeiramente multitasking. Basta pensarmos na miríade de assuntos abordados nos diferentes textos, bem como nos distintos efeitos que despoletam. Estou, enquanto escrevo, a lembrar-me de um Poema da autoria de Miguel Torga - Plateia -, o qual levou ao recrudescimento da minha paixão por esta arte. De facto, o Poeta, de forma trivial, mas cabal, retratou, na perfeição, o passivismo e a hipocrisia da sociedade, relevando a necessidade premente e imperiosa de nos insurgimos contra a «farsa do presente». A Plateia foi, efetivamente, um despertador que me levou a adotar uma postura mais crítica, assertiva e Humana! Inobstante, a Poesia não tem, exclusivamente, um papel moralizador; tantos são, a título de exemplo, os textos poéticos arreigados na temática amorosa, que tanto nos ajudam, por termos consciência de que não somos

os únicos numa situação platónica ou, por outro lado, por nos apercebermos de que não somos os únicos ditosos a emanar uma quantidade exorbitante de regozijo por onde quer que passemos, apenas por termos correspondência. E poderia continuar a lista de funções da Poesia, mas não só seria maçador para os meus ímpares leitores como também não se me afigura necessário, visto que todas os seus papéis convergem numa finalidade: ajudar a Humanidade.
Costuma dizer-se que os melhores amigos do Homem são os cães, no entanto, e não querendo retirar qualquer mérito aos nossos companheiros de quatro patas, creio, com veemência, que o nosso verdadeiro melhor amigo é a Poesia. Quando estamos tristes, conforta-nos com as suas dóceis palavras; quando estamos felizes, amplifica o nosso sentimento; quando transgredimos as normas sociais, adverte-nos e desvela o caminho que devemos seguir! Que insólito … parece que estou a falar de Medicina …. Quando estamos doentes, a Medicina conforta-nos, ao nos facultar o tratamento devido; quando estamos salutares, regula a nossa estimada saúde com análises de rotina; quando transgredimos as normas que asseguram o nosso bem-estar, adverte-nos e desvela o caminho que deveremos seguir. Sem dúvida, a Poesia e a Medicina configuram sinónimos de bondade, altruísmo, filantropia, reflexão, compreensão, gratidão, sapiência e amor.
Amados leitores, espero não ter sido exaustivo! O meu fito, ao redigir esta pequena reflexão, é destacar a ignota relação entre a Medicina e a Poesia, duas áreas que, como referi no dealbar, são indissociáveis. A Poesia é muito mais do que aquilo que consta nos Manuais … é a ferramenta necessária para aprimorarmos a nossa personalidade e limarmos as arestas do «bom senso». Sem os seus valores, perspicazes leitores, questiono: será possível, mesmo detendo um leque eclético e completo de conhecimentos, desempenhar a função de Médico com zelo e profissionalismo?

Tempestade



Inês Pires, 6ºano LAR, AGRIDOCE LAR
O gotejamento da água era infinito na cabine. O som da chuva era tão alto e rápido que pareciam milhares de facas sibilantes a cortar o ar e colidir numa enorme explosão contra o convés. Os cães uivantes e os gritos assombrados de almas condenadas transportados pelo vento assustaram os tripulantes a barricar-se na cabine. No entanto, o Capitão mantinha-se firme, girando a roda do leme que gemia com a força da tempestade. Encharcado pela chuva e iluminado pela luz do bramido dos trovões, que estava num conflito contante com o mar selvagem espumante. E eu permanecia ao longe cantando uma melodia doce, atiçando o mar e o céu a aumentarem ainda mais a sua ira. E continuando a tentar futilmente encantar o solitário Capitão que se mantinha firme face aos desafios da fúria do Oceano.
Voltas ao mundo dou e eternamente darei Por pensamentos e sonhos sempre viverei, Dei conta que as saudades lar agridoce são Raízes tatuadas num plangente e inocente coração,
Ainda lacrimejo quando deixo de os ver Casal que amo e que me viu crescer, Agora não mais porque voo de asas soltas sem escolta Mas sim pelo receio de olhar para trás e não haver volta,
Lar, agridoce lar Só quem é filha amada sai sabe o que é sacrificar, Sentir o aperto da saudade a esmagar Um músculo que só domina labutar em par,
Contudo, e quase nada, treinado e ferido, esse não se permite jamais abalar Pelo contrário, descobriu que sozinho, muito mais sabe sobre amar, E que ser cidadão do mundo é ser tudo apesar do pesar Ou não fosse ele, um lar, agridoce lar.
Andreia Nossa, UCS - 6º ano
