Algumas anotações e inquietações sobre a questão dos públicos de cultura

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Algumas anotações e inquietações sobre a questão dos públicos de cultura1 José Marcio Barros2

A categoria públicos de cultura refere-se a uma realidade polissêmica, dinâmica e complexa, resultante da ação indutora que as instituições sociais, primárias e secundárias, realizam, direta ou indiretamente, com seus sujeitos e grupos, de acordo com as normas, valores e práticas sempre determinadas espaço-temporalmente. Públicos de cultura não existem a priori e não decorrem naturalmente da condição humana. Não se configuram como uma potência ou latência, mas como o resultado de oportunidades e aprendizagens. Públicos de cultura são construções históricas, mas também, sempre passíveis de contextualização sincrônica. São formados, criados, cultivados, ou não. De acordo com Isaura Botelho, públicos de cultura não é uma categoria natural: públicos são formados, daí porque se constituir em grosseiro equívoco pensar a questão pelo simples viés da oferta ou pela ainda predominante perspectiva nascida na França nos anos 60 do século XX, de se buscar dar acesso ao legado da cultura culta. A centralização das iniciativas de formação de público, na questão do preço e da distribuição espacial das ofertas, reduz a questão a uma dimensão econômica, ignorando-se que as práticas culturais existem no cotidiano. Aqui estamos diante de um grande paradoxo, ao qual voltaremos em outros momentos do texto - políticas de acesso reforçam o desequilíbrio e a desigualdade, ou seja, democratização cultural sem democracia cultural reforça desigualdades. A predominância de uma perspectiva de mercado produz um excesso de ofertas de bens culturais legitimados pelas leis de mercado, secundarizando o fato das pessoas transitarem por diferentes registros culturais que implicam mediações socioculturais da ordem da linguagem, das regras, valores e hábitos cotidianos. É a exposição constante e diversificada à cultura e a participação ativa nas escolhas que atuam de forma mais determinante e definitiva na formação de públicos, ou seja, dizem respeito, fundamentalmente, aos âmbitos da produção, circulação e fruição de valores e bens culturais dos quais participam, ativamente, 1

Texto produzido a partir da participação como relator do Encontro Internacional Públicos da Cultura, realizado entre os dias 12/11 a 14/11 de 201, no SESC Vila Mariana em São Paulo. 2 Professor da PUC Minas e UEMG. Coordenador do Observatório da Diversidade Cultural. josemarciobarros@gmail.com


2 indivíduos e grupos. A disponibilidade para fruição aumenta e se qualifica quanto maior e melhor for a experiência de proximidade com a cultura, que se forma e transforma-se no bojo das interações sociais, no plano da vida ordinária. Falar de públicos, portanto, é menos uma questão que se esgota no comportamento de consumidores de bens e serviços culturais, e mais a percepção e compreensão qualitativa dos inúmeros processos configurados e instituídos socialmente, que induzem ou reprimem o surgimento de um comportamento instituinte no sujeito: buscar acesso, desejar fruir, se apropriar e ressignificar bens simbólicos. Falar de públicos significa, nesse contexto, para além do consumo de bens simbólicos, a tentativa contínua e planejada de acompanhar e compreender os sentidos conferidos à vida cotidiana, os quais revelam interesses e motivam práticas culturais. Práticas de mediação sempre presentes em todas as dimensões da experiência de socialização dos indivíduos e grupos, especialmente aquelas mobilizadas pela educação e pela ambiência familiar, estabelecem tensionamentos com as variáveis de acessibilidade física e econômica, e atuam de forma a favorecer ou não o encontro com bens e serviços artísticos e simbólicos. Neste sentido, a questão da formação de públicos de cultura assume uma característica bem mais complexa do que a construção de públicos para a cultura. Na primeira e mais ampla dimensão, estamos diante da formação de um habitus cultural cotidiano que se caracteriza pelas práticas ordinárias de convivência com bens e serviços culturais, e que configuram e são configurados pelo capital cultural dos sujeitos. Na segunda dimensão, nos referimos à formação de um hábito cultural flutuante referente às práticas de uso do tempo livre configuradas pelas opções de entretenimento e lazer. Na primeira, estamos enfrentando a questão de formação de sujeitos e cidadãos com direito à cultura. Na segunda, estamos nos referindo a públicos consumidores. Uma dimensão afeta, positiva ou negativamente a outra, daí o caráter sempre relacional e dinâmico que impede de se considerar os públicos de cultura ou para a cultura, como entidades estáticas, necessitadas apenas da descoberta e do manejo pedagógico por especialistas em público. Arriscaria a dizer que, se os públicos de cultura precisam ser formados, isso significa tratar os desafios por um tríplice viés: dos direitos à cultura; da educação e da comunicação. Portanto, estamos falando de políticas públicas de cultura, da relação entre cultura e educação e entre cultura, produção e difusão de informações, ou seja, dos significados produzidos por estes públicos e dos sentidos compartilhados socialmente.


3 Dois conceitos podem ser úteis para agrupar as diversas dimensões sociais, econômicas e políticas para se pensar os públicos de cultura. Como dois grandes vetores que se relacionam e se afetam, a perspectiva dos direitos culturais e a de habitus, cunhada pelo sociólogo Pierre Bourdieu, nos oferecem a amplitude e o imbricamento necessário para sua compreensão. Na primeira perspectiva, a dos direitos culturais, vale lembrar com Jesús Prieto de Pedro (2011), jurista espanhol e especialista no assunto, que o termo refere-se aqui menos a uma categoria jurídica e mais a um conjunto de direitos fundamentais, cada vez mais centrais na sociedade contemporânea. A necessidade de incorporar os direitos culturais aos direitos fundamentais assenta-se na altíssima importância política, social e científica que o cultural adquiriu hoje, após um processo desenvolvido principalmente na segunda metade do século passado. Ao velho ideal ilustrado – da cultura como fator essencial do desenvolvimento pessoal – acrescenta-se agora seu valor como fator de igualdade e solidariedade, de integração social e desenvolvimento. (Prieto de Pedro, 2011, p.44) Tratar a questão, neste enquadramento, nos faz alterar a maneira mais recorrente de pensar o público, sugerindo até mesmo a troca do referente público pelo de cidadão. Nesta perspectiva, vale lembrar, ainda com Prietro de Pedro (2011), que isso significa tratar os direitos culturais como integrante dos direitos e econômicos fundamentais (políticos, sociais) e em sua complexidade, como afirma em recente artigo. ... proponho entender os direitos culturais como aqueles direitos fundamentais que garantem o desenvolvimento livre, igual e fraterno dos seres humanos em seus diferentes contextos de vida, valendo-nos dessa singular capacidade que temos, entre os seres vivos, de simbolizar e criar sentidos de vida que podemos comunicar aos outros.(Prietro de Pedro, 2011,p.46) Por outro lado, na perspectiva de Bourdieu, abordar públicos de cultura significa compreender as relações entre os condicionamentos materiais e simbólicos que interferem e se interpenetram, tanto no que se refere ao comportamento dos indivíduos, quanto dos grupos sociais. Habitus significa aquilo que decorre das experiências de socialização e que se configura tanto na dimensão objetiva, corpórea e material, quanto na dimensão imaterial e simbólica. Habitus constitui-se como “uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio


4 de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas.” (VASCONCELOS, 2002, p. 79) Nesta perspectiva, há uma afetação mútua e contínua das variáveis que integram a questão de públicos de cultura em uma circularidade dinâmica e contínua. Tratar no recorte dos direitos culturais significa inquirir a existência e a efetividade de políticas públicas, sejam elas governamentais ou não, envolvendo, portanto, a abordagem integrada das relações entre agentes públicos e privados, tendo em vista suas implicações nas dimensões simbólica e material. Abordar a questão na perspectiva do habitus representa a possibilidade de abordar aquilo que configura o gosto, o desejo, a disponibilidade e as intenções de sujeitos individual e coletivamente constituídos. Na primeira dimensão, nos referimos ao que é instituído e que responde na forma de políticas, programas e ações disparados por aparatos institucionais. Na segunda dimensão, nos referimos ao conjunto de ações instituintes, fruto da ação dos sujeitos aqui tomados como cidadãos. A questão, portanto, deixa de ser apenas (como se isso já fosse pouco) formar públicos para ofertas culturais e se transforma em uma questão, simultaneamente, de direitos culturais, de educação e de comunicação. Políticas públicas, integração efetiva da educação e cultura e a democratização e pluralização dos meios de comunicação constituem dimensões centrais e inseparáveis da questão. Passamos, assim, de uma concepção transmissiva do processo comunicacional, para uma abordagem, necessariamente, dialógica e relacional que visa o intercâmbio de visões de mundo e a troca social em espaços democráticos de participação e interação. Em sua intervenção no Encontro Internacional Públicos da Cultura, Olivier Donnat3, afirmou que vivemos tempos de novos modos de expressão cultural que são reconhecidos e legitimados pelas políticas culturais. O alargamento da questão da sustentabilidade da cultura introduz a questão do mercado e das indústrias culturais na questão dos públicos. Emergem novas categorias de públicos: públicos específicos e com restrições de acesso passam a ser objeto de investimento e pesquisas (jovens, presos, deficientes etc). Os anos 2000 promoveu, em sua visão, uma radical inversão com relação às preocupações da democratização cultural dos anos 70 e 80 do século XX. O Estado provedor foi substituído pelo Estado mínimo, a promoção da diversidade cultural inverte prioridades. A

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Olivier Donnat é sociólogo do Départament des Études, de la Prospectivee des Statistiques (DEPS) do Ministério da Cultura e da Comunicação da França. Proferiu a Conferência “O Conhecimento de práticas culturais: medir, avaliar, qualificar”, no dia 12 de novembro de 2013, no Encontro Internacional Públicos da Cultura.


5 urgência não é mais a de democratizar o acesso às obras da humanidade, as obras capitais, mas o de democratizar a partir do reconhecimento de todas as formas de expressão. Isso leva à ideia de tratar o cidadão como consumidor, como pessoas que fazem escolhas individuais. A questão é a de saber como as novas e velhas práticas de consumo cultural se articulam entre si. Como pensar o digital, as interações on line, as novas estratégias de mediação? Há uma crescente generalização da cultura da tela, estamos diante de um recuo nos hábitos de leitura e de jornais em papel, o consumo de música cresce e altera-se radicalmente, a cultura em domicílio cresce e se fortalece na vida cotidiana dos pequenos, médios e grandes municípios. A midiatização da experiência exige, certamente, considerar a formação de públicos marcados por processos de desterritorialização, que interagem por meio de práticas culturais midiatizadas, caracterizadas por dinâmicas comunicacionais que, ao mesmo tempo em que fortalecem vínculos territoriais, por outro lado, expandem as conexões no tempo e no espaço, formando, assim, outros públicos, temporários ou mais duradouros. Trata-se de observar a conformação dinâmica de públicos, no bojo das práticas comunicativas contemporâneas das quais emergem ações concretas no mundo. A ambiência midiática deve ser entendida aqui como espaço da experiência, da interpretação e recriação dos modos de viver junto. Assim, as mudanças no cenário apontam para três objetivos interligados a serem perseguidos pela política cultural: incorporação efetiva da educação artística e cultural nas políticas educativas, medidas para que os equipamentos culturais tenham uma real política de desenvolvimento dos públicos e criação de um serviço público de “cultura em domicílio” que alcance o maior número de pessoas. (BOTELHO, 2011,p.11) Alguns desdobramentos podem ser aqui ensaiados. Quando a discussão de públicos de cultura é enquadrada na perspectiva do consumo de bens e serviços, a reflexão desloca-se para o campo do acesso e acessibilidade, portanto, da democratização cultural, seja em seu contorno público e estatal, seja na conformação mercadológica. O desafio é aqui tratado como o de ampliar o acesso por meio da ampliação de oportunidades. Nesta perspectiva, o público é tratado como público alvo ou cliente e pode ser atingido através de rotinas de difusão e facilitação de consumo. Criar, ampliar e fidelizar, além de renová-lo, constituem os imperativos para com o público. Neste enquadramento, a meta é ter sempre novos públicos e a forma de fazer é entender a relação entre oferta e procura, segundo uma visão da cultura como produto e não como processo permanente de produção e recriação dos sentidos.


6 Por outro lado, quando a questão é tratada pelo viés da formação, na maioria das vezes, o diagnóstico, para além do acesso, refere-se à questão da competência. Como se a instituição escolar e os processos educativos representassem a oportunidade de qualificar a recepção das artes. O público aqui é tratado como carente de competências e precisa ser formado para a compreensão das obras e seus produtores, os artistas. Ao contrário de se pensar a educação como lugar de construção de habitus de criação e consumo de cultura pela oferta contínua e equilibrada, o trabalho da formação se dá na forma de criação de rotinas e normativas de compreensão do universo codificado da obra e de seu criador. Conforme afirma Lopes (2005: p.3, citado por TEIXEIRA, 2012, p.31) , por trás desta perspectiva,encontramos visões que atuam na perspectiva da “...submissão às rotinas, à previsibilidade e à própria necessidade psicossociológica de reduzir a complexidade dos públicos, (o que) leva, não raras vezes, a criar currículos ocultos de comportamento dos públicos”. Trata-se, portanto, da missão de fazer com que o público seja educado, por meio da qualificação de sua recepção, de sua atualização e aumento de capital cultural. Aqui o público é sempre pensado na perspectiva das instituições que ofertam bens e serviços. Ou seja, os Públicos encontram-se, de certa forma, condicionados pelos conflitos existentes entre ideologias interpretativas e as intuições de circulação. Por outro lado, será também importante salientar que pertencer a um Público é “ser um certo tipo de pessoa, habitar um certo tipo de mundo social, ter ao seu dispor certos media, estar motivado por um determinado horizonte normativo e falar dentro de uma determinada linguagem ideológica” (...) “É deste encontro – polêmico, provisório e infinito- que se fazem e desfazem os Públicos da Cultura” (Warner, 2002:431/432, citado por TEIXEIRA, 2012, p.32) De forma mais geral, e a título de problematização, penso que quando a reflexão enquadra os públicos de cultura pelo viés dos direitos culturais, a discussão migra do campo exclusivo e insuficiente da democratização cultural e da formação do público, para o da democracia cultural. Aqui não se trata de apenas facilitar o acesso e qualificar a recepção. Trata-se de partilhar espaços e poder. Aqui o público transforma-se em cidadão. O desafio passa a ser o de manter e ampliar o diálogo com o público de cultura, reconhecido e empoderado como cidadão. O trabalho passa a ser o de descobrir e produzir convergências por meio da participação ativa e, por consequência, cidadania, sem negar ou eliminar, no entanto, as divergências, ao contrário, considerando-as como fator inerente ao processo político caracterizado, fundamentalmente, por relações de alteridade e conflito. A meta é a de ter todos os públicos e compreendê-los em sua dupla face de emissores e receptores, expressão estético/política das capacidades simbólicas. Trabalhar públicos de cultura deixa de


7 ser o trabalho de investir no alcance do povo, para se transformar naquilo que tenciona nos diversos públicos o conhecido e vivido e o desconhecido e nem imaginado. A questão adquire uma complexa e espiral dinâmica:

Direitos e cidadania cultural

Hábitos

Processos

Formação de gosto

de mediação

Acessibilidade

Acesso

Essa perspectiva nos faz ampliar e complexificar a questão: Assim, de acordo com Donnat e Cogneau o sistema de gostos não corresponde a uma escolha de conhecer ou não conhecer, mas a uma “quantidade de competências institucionalizadas pela hierarquia social, pela escola e pelos meios de informação” (1990: 237). Portanto, o eclectismo não se dá apenas nas práticas culturais, mas também na recepção das diferentes formas de cultura. A recepção é ecléctica quase por definição, desde logo porque existem diferentes formas culturais que promovem diferentes formas de recepção. E porque, consoante às características individuais de cada um, bem como o contexto e a situação em que se processa a recepção, ela assumirá, com certeza, formas diversas. (Martins da Silva, 2009, p.11) Apesar de ter variáveis constantes que interferem em sua constituição e explicação, a questão revela dinamicidade e se molda em processos de atualização contínua. Tanto as instituições, quanto os valores socialmente compartilhados e valorizados, a família, a


8 escolarização, a comunicação, as políticas culturais, tomadas como realidades e conformações dinâmicas, tanto pelo viés diacrônico quanto sincrônico, afetam de forma sempre mutável a questão dos públicos de cultura. Isso implica reconhecer que, na visão de Bourdieu, os recursos e poderes, chamados por ele como configuradores de capital econômico (renda), de capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos), de capital simbólico (prestígio) e capital social (rede de relações sociais), não podem ser tomados de outra forma, senão, como expressão de permanências e mudanças. Pedro Guell4, no Encontro Internacional Públicos da Cultura, reforçou o coro por um novo enquadramento afirmando que o que motiva o público é um conjunto complexo e dinâmico de variáveis e não apenas seus pertencimentos sociodemográficos. Enquanto o público continuar sendo tratado como uma realidade que surge após a oferta cultural, as pesquisas em quase nada ajudarão. Segundo ele, a maioria dos estudos tratam públicos, instituições e obras como variáveis independentes, como se cada dimensão tivesse uma realidade própria, autônoma, que, apenas no momento da oferta e do acesso, misturam-se. Tais estudos acabam por reproduzir um olhar a-histórico, em que se abandona a necessária perspectiva de trajetórias dos sujeitos e das instituições e se esquece de levar em conta os sentidos das experiências culturais. A historicidade entre público e bens culturais é fundamental para que se compreenda o processo onde um institui o outro, superando a tendência de se pensar os coletivos como ativos, mas os indivíduos como sujeitos passivos. É preciso reconhecer que a relação entre subjetividade dos públicos, as ofertas culturais e as sociedades estão mudando. A experiência cultural contemporânea transformouse em uma experiência de abertura dinâmica em duas direções: a abertura das obras de arte contemporâneas, sua plasticidade e polissemia, e a abertura e dinâmica das identidades subjetivas dos sujeitos, tomados individualmente e ou em grupo. Isso nos obriga a pensar as experiências culturais como algo que surge em práticas reais que inauguram relações intersubjetivas configuradoras de subjetividades, sempre abertas e em formação e transformação. Neste enquadramento, as práticas culturais deixam de ser reduzidas ao rol de coisas que as pessoas fazem, configurando-se como as condições sociais que definem aquilo que indivíduos e coletivos realizam. Daí a possibilidade de tomar as práticas culturais como experiências, ancoradas, portanto, nas vivências cotidianas dos indivíduos e grupos, como 4

Pedro Guell é sociólogo e professor titular da Universidade do Chile. Apresentou a comunicação “O instável cenário dos públicos culturais. Notas para a investigação”, no dia 14 de novembro de 2013, no Encontro Internacional Públicos da Cultura.


9 campo político de forças entre distintas lógicas que interagem entre si: lógicas de sujeitos, lógicas institucionais, lógicas dos bens culturais, dentro de uma moldura social marcada pela estrutura social, das mudanças socioculturais e as hegemonias em disputa. Isso nos ajuda a pensar, por exemplo, nas possibilidades de mudanças nas políticas e nas instituições de arte e cultura que fazem com que o público, ou cidadão, esteja também no centro das atenções e não mais, apenas, artistas, historiadores e especialistas, alterando e ampliando o modo de pensar e agir. E ainda em processos interacionais por meio dos quais se torna possível o contágio entre essas referências, ou a diluição entre os limites de espaços distintos, para a construção conjunta de permeabilidades, fluxos e porosidades que permitam os processos criativos e a emergência de públicos híbridos. Da mesma forma, a conjunção da emergência dos chamados direitos difusos com o desenvolvimento de tecnologias móveis inaugura a possibilidade de experiências culturais marcadas pela ubiquidade e contiguidade. O consumo emerge como um dos mais importantes centros dos direitos individuais e coletivos e da experiência cultural contemporânea. Por outro lado, papeis sociais, antes delineados por fronteiras, embaralham-se, produzindo novas dinâmicas e hibridações. Novos arranjos tecnológicos produzem novos sujeitos. É assim com o receptor que também passa a ser emissor, é assim com o consumidor que também é produtor de sentidos e processos culturais. Se olharmos para as instituições culturais, outro movimento de ruptura se configura, elas não mais se restringem aos contornos territoriais onde suas institucionalidades originais foram criadas. Vivemos um tempo de internacionalização dos fluxos e das instituições culturais, do qual o Museu do Louvre - Abu Dabi é um exemplo. Os circuitos culturais alteraram-se, no interior e entre diferentes sociedades. A mobilidade reinventa o chamado turismo cultural, altera perspectivas e práticas museológicas. De acordo com Anne Krebbs5, em sua exposição no Encontro Internacional Públicos da Cultura, cerca de 900 mil americanos, 440 mil chineses e mais de 300 mil brasileiros visitam o Louvre anualmente. Novos hábitos, novas possibilidades, novos sujeitos, mobilidade e protagonismo, configuram-se como balizas do comportamento nos grandes centros urbanos.

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Anne Krebs é chefe do Departamento de Estudos e Pesquisas do Museu Louvre, em Paris. Apresentou a comunicação “O Louvre e seus públicos: da construção de uma relação à criação de um valor público”, no dia 12 de novembro de 2013, no Encontro Internacional Públicos da Cultura.


10 Entretanto, Sergio Amadeu da Silveira6 alertou em sua fala no Encontro Internacional Públicos da Cultura, que as tecnologias digitais reconfiguraram a vida cotidiana, alteraram a nossa sensibilidade e cognição e substituíram o valor da propriedade pelas possibilidades do compartilhamento. A questão passa a ser: em que medida essa cultura do compartilhamento, efetivamente, contribui para a constituição de públicos de cultura? Em que medida as possibilidades trazidas pelo digital, de fato, potencializam políticas territorializadas de educação e comunicação, efetivamente, empoderando e promovendo a cidadania, superando, enfim, o viés do determinismo tecnológico, para enraizar-se como processo histórico de transformação social? Alan Brown7 chamou a atenção para o fato de que tratar o público de cultura como um problema de marketing constitui-se como grande equívoco que libera curadores e gestores de suas responsabilidades. A formação para as artes, no contexto da educação, supera em muito todo e qualquer investimento para aumentar públicos. A formação de públicos de cultura é também uma questão de experimentação de linguagens, espaços, sujeitos e táticas. Curadoria participativa, ludicidade e interatividade exacerbada, bem como a utilização dos mecanismos de comunicação usuais nas relações sociais, em um determinado contexto, são pré-requisitos para um bom equacionamento entre públicos e cultura, configurando-se, desta forma, como estratégias consideradas necessárias na atualidade. Rui Telmo8 alertou, em sua participação no Encontro Internacional Públicos da Cultura, que, “aumentar o número de públicos”, “criar novos públicos” ou “fidelizar públicos”, implica a definição de estratégias muito diferenciadas de planificação e dinamização de atividades. Apesar do consenso sobre a necessidade de formar públicos para a cultura, este objectivo parece cruzar uma multiplicidade de estratégias e medidas diferenciadas. Nem sempre a noção de “formar públicos” é igualmente percebida pelos vários agentes implicados, podendo corresponder a modos distintos de comunicar e de fomentar uma relação entre as populações e os objectos da arte e da cultura. Tais diferenças são visíveis em diversos planos, especialmente no que diz respeito aos seus objectivos, ora assentadas em lógicas estritas de recrutamento de públicos, ora em princípios de democratização cultural e coesão social; à sua periodicidade com que se desenvolvem (esporádicas ou com

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Sergio Amadeu da Silveira é sociólogo e professor adjunto da Universidade Federal do ABC. Apresentou a comunicação “Públicos da Cibercultura”, no dia 13 de novembro de 2014, no Encontro Internacional Públicos da Cultura. 7 Alan Brown é pesquisador e consultor em Artes, da Wolf Brown, nos Estados Unidos. Apresentou a comunicação “Construindo Demandas para a arte”, no dia 12 de novembro de 2013, no Encontro Internacional Públicos da Cultura. 8 Rui Telmo Gomes é pesquisador do Observatório de Actividades Culturais, em Lisboa. Apresentou a comunicação “Tendências de evolução das práticas culturais dos portugueses no contexto europeu”, no dia 13 de novembro de 2013, no Encontro Internacional Públicos da Cultura.


11 continuidade); à sua configuração (diferentes actividades para diferentes públicos alvo); e aos seus conteúdos / métodos, particularmente no que concerne a formas diferenciadas de comunicar com os públicos, (ora mais assentes numa lógica unívoca de transmissão de conhecimentos, ora interactiva, apelando à participação e envolvimento de públicos e de comunidades específicas). GOMES & LOURENÇO, 2009, p.21 Tudo isso nos leva a outro grande desafio de ordem metodológica. Uma perspectiva de horizontalidade e diálogo entre pesquisadores de públicos e curadores de serviços culturais demanda uma ruptura com práticas nas quais apenas tabular respostas a questionários ou reunir estatísticas de comparecimento são realizadas. Conhecer públicos transformou-se em algo mais complexo, uma tarefa qualitativa e etnográfica: “ ... encarar de uma forma mecânica os indivíduos como membros de tal classe ou grupo social, sendo os seus gostos pessoais os mesmos dos da classe à qual pertencem, é ignorar as características individuais de cada um, bem como as variáveis contextuais e situacionais das práticas e consumos culturais. “ (SILVA, 2009, p. 10) Trata-se, portanto, como nos lembrou Carmen Morsch9, no Encontro, de pesquisar com e não apenas o público.

Pensar tal empreendimento como mais um processo de

mediação que envolve pessoas e instituições e que realiza o entrecruzamento de desejos. A abertura das instituições a esse propósito requer a mudança do paradigma assistencialista, para o da legitimidade do direito à cultura. Enfim, alargamentos conceituais, reinvenção de metodologias, transformações nas práticas e incorporação de todos os sujeitos envolvidos na questão da formação de públicos de cultura e não, apenas, da ou para a cultura. Com Morsh, parece não fazer mais sentido separar as intenções entre curadores, público e instituições. Do contrário, podemos afirmar que estas são vistas como entidades distintas e isoladas que se encontram em situações comunicativas cujo maior desafio dos processos de gestão cultural é o controle ou, no máximo, a convivência entre suas diferenças, mediante a necessidade de formação de consumidores da ou para a cultura. A situação pedagógica ideal deve produzir situações incontroláveis, superando a obcessão em controlar resultados. O que mais interessa nos públicos de cultura é justamente aquilo que escapa à previsão e ao controle. Essa ruptura, associada ao compromisso com os direitos culturais, parece configurar as urgências da atualidade. Referências 99

Carmem Morsh é artista e educadora e diretora do Instituto de Arte Educação da University of Arts, em Zurich, Suiça. Apresentou a comunicação “Mediação e educação permanente”, no dia 13 de novembro de 2014, no Encontro Internacional Públicos da Cultura.


12 BARROS, José Marcio, Mediação, formação, educação: duas aproximações e algumas proposições. Revista Observatório Itaú Cultural: OIC. - N. 15 (dez. 2013/maio 2014). – São Paulo : Itaú Cultural, 2013. p.8 a 14 BOTELHO, Isaura, Os públicos da cultura: desafios para as políticas culturais, Revista Observatório Itaú Cultural: OIC. – N. 12 (maio/ago. 2011). – São Paulo: Itaú Cultural, 2011, p. 08 a 18 BOURDIEU, Pierre. In: ORTIZ, Renato Org. Pierre Bourdieu Sociologia. São Paulo: Editora Ática. 1983. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil. 2002. DONNAT, Olivier e COGNEAU, Denis, Les pratiques culturelles des Français 1973-1989. Paris: La Découverte/ La Documentation Française, 1990, disponível em http://www.pratiquesculturelles.culture.gouv.fr/enquetes.php DONNAT, Olivier. Democratização da cultura:fim e continuação? Revista Observatório Itaú Cultural: OIC. – N. 12 (maio/ago. 2011). – São Paulo: Itaú Cultural, 2011, p. 19 a 34 GOMES, Rui Telmo e LOURENÇO, Vanda. Democratização Cultural e Formação de Públicos: Inquérito aos “Serviços Educativos” em Portugal, Lisboa, Observatório das Actividades Culturais, 2009. disponível em www.oac.pt LAHIRE, Bernard, O homem plural: as molas da acção, trad. José Godinho. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. LAHIRE, Bernard. Patrimónios individuais de disposições - Para uma sociologia à escala individual. Revista Sociologia, problemas e práticas, n.º 49, 2005, pp. 11-42. Porto: Edições Afrontamento LAHIRE, Bernard. Diferenças ou desigualdades: que condições socio-históricas para a produção de capital cultural? Fórum Sociológico, N.º 18 (II Série, 2008), disponível em http://forumsociologico.fcsh.unl.pt/PDF/FS18-Art.8.pdf Lopes, J. (2005). Estranho no Museu. In Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 49, p.1-7. Porto: Edições Afrontamento. MARTINS DA SILVA, Sílvia Maria, A recepção dos públicos da cultura: A recepção dos públicos da cultura: uma abordagem sobre os modos de recepção dos públicos d’A Escola da Noite. Dissertação de Mestrado em Cidades e Culturas Urbanas, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009 PRIETO DE PEDRO, Jesús, Direitos culturais, o filho pródigo dos direitos humanos, Revista Observatório Itaú Cultural / OIC – n. 11 (jan./abr. 2011) – São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2011.p. 43 a 48 SILVA, Sílvia Maria Martins da, A recepção dos públicos da cultura: uma abordagem sobre os modos de recepção dos públicos d’A Escola da Noite., Dissertação de Mestrado em Cidades e


13 Culturas Urbanas, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009 TEIXEIRA, Rute Priscila de Magalhães Alves, “Cultura e a Diversidade de Públicos - um estudo de caso” Dissertação apresentada ao Departamento de Ciências da Educação e do Património para obtenção do grau de Mestre em Ciências da Educação na Universidade Portucalense, Porto, Portugal em 2012. VASCONCELOS, Maria Drosila. Pierre Bourdieu: A herança sociológica. Educ. Soc. [online]. 2002, vol.23, n.78, pp. 77-87. Warner, M. (2002). Publics and Counterpublics. In Quarterly Journal of Speech, Vol.88, nº4, p. 413-425. New York: Zone Book.


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