Dos brasis que se faz um país: em busca da arquitetura popular brasileira

dos brasis que se faz um país em busca da arquitetura popular brasileira cecília andrade fiuza

amar e mudar as coisas me interessa mais

Belchior

Capa: Lila Ruína em Igatu, foto pela autora, e composição com folhagem de Tanalee Youngblood, licença livre no Unsplash

Ao vir o seguinte símbolo escaneie o código com a câmera do app Spotify para explorar os sentidos deste trabalho com uma boa música popular brasileira.

dos brasis que se faz um país em busca da arquitetura popular brasileira * cecília andrade fiuza *

Trabalho Final de Graduação orientadora Camila Loffredo D’Ottaviano

Universidade de São Paulo

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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

2021

à minha mãe, raiz profunda, que dedicou sua vida aos estudos de suas filhas e me ensina desde sempre o valor da nossa terra.

Agradecimentos

Este trabalho, fruto de uma trajetória de 7 anos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, não teria sido possível sem o apoio de todos os envolvidos nesse período acadêmico e, muito menos, sem as trocas riquíssimas que pessoas de tamanha generosidade me ofertaram ao longo do processo. Assim, separo esse singelo espaço para agradecer: À Prof.ª Camila D’Ottaviano, que me acolheu em suas lutas diárias pela extensão universitária em prol do acesso à moradia digna para toda a população do nosso país, pelos seis anos de orientação e confiança, e por ter feito tanto por mim. Tudo que eu me tornei e que eu pude experienciar durante minha formação, eu devo a você.

A todas as amigas e amigos que a FAU me proporcionou, que fizeram, sem dúvida alguma, esse percurso ser muito mais leve: Titi, Lucas, Marina, Mariana, Thales, Maria Gabi, Débora, Vítor Fidelis, Arthur, Vitor, Luiza, Sylvia, João, Carla, Vitória, Anderson, Jesus, Alex, Beatriz Amancio, Jayne, Yuji e Isa Basso. À Juliana Lima e Catarina Raposo, amigas e companheiras, por todo o amparo, as trocas, as conversas. Por terem me ensinado tão bem que a liberdade é a única coisa que realmente precisamos buscar. E pela nossa viagem à Chapada Diamantina, que desaguou neste trabalho. Eu sou a melhor versão de mim hoje, graças a vocês.

Ao Dani, por ser sinônimo de afeto, e por ter me apresentado a encantadora Vila de Igatu. À Jennifer, Lígia, Paulo e Maga, amigos(as) queridos(as), por todo o apoio e afeto.

Vocês também têm parte neste trabalho. À toda a equipe do Comuta, por me mostrarem que é sim possível democratizar a arquitetura no nosso país, pela confiança depositada em mim, e por serem tão compreensivos e preocupados com o nosso bem-estar.

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RESUMO

A todos os moradores de Igatu e do Vale do Pati, e aos autogestores e autoconstrutores personagens deste trabalho, que me acolheram, confiaram em mim, e compartilharam comigo suas histórias de vida. Em especial, à Mayra que tanto me ajudou a viabilizar com segurança minha estadia em Igatu. À toda a minha família materna, base da minha vida. À minha mãe por ter me ensinado tão bem a importância que a educação pode ter nas nossas vidas, por ter feito sempre o possível e impossível para viabilizar nossos estudos, por ser colo e amparo de todas a horas, e por ter tanta paciência. Tudo que eu sou na vida eu devo a você. À minha irmã, em quem eu me espelho, pela amizade, pelo acolhimento e por todas as trocas. Ninguém acredita mais em mim que você. Às mulheres incríveis que a vida fez cruzar o meu caminho, em especial, à Laise, amiga de alma, por sua risada tão contagiante, por me ensinar a falar inglês e a ser revolução; e à Mariah, minha psicóloga, por acolher tantos choros e me fazer tão forte. À minha amiga de FAU Marília, que com tamanha generosidade dedicou inúmeros dias de trabalho à diagramação deste caderno e me acalentou tanto na minha reta final. Este caderno não teria sido o mesmo sem você.

Ao Rodrigo, companheiro, amigo, amor. Por ter me ajudado tanto no processo deste trabalho, desde a leitura dos textos até a logística das aproximações do estudo. Por ter tanta paciência, por me ouvir com tanta afetividade, por acreditar em mim, por me apoiar, por ter sido suporte integral, principalmente nessa reta final, por ensinar tanto sobre a nossa cultura popular, por ter me levado para ver o samba da Mangueira de 2019 de dentro da quadra, e por me ensinar que a vida é bem mais fácil quando se tem amor.

Por fim, à nossa rica cultura popular, que me preenche de encantamentos.

Resumo Este trabalho de conclusão de curso surge de um incômodo diante do modo como temos encarado a habitação popular no nosso país. Deve ser compreendido, no entanto, como um percurso de assimilação da pluralidade da arquitetura popular brasileira e de construção de um aprendizado, sem intenções de obtenção de resultados analíticos ou propositivos.

O trabalho está estruturado em 4 partes, a começar por uma contextualização e revisão teórica do tema habitacional, isto é, sobre a conformação do déficit habitacional do nosso país e sobre as políticas públicas de provisão habitacional para a classe popular, a fim de compreender como a leitura do déficit e as principais ações estatais têm respondido à questão da pluralidade cultural resultante da imensa diversidade regional do nosso país. Nessa primeira parte o exercício da autoconstrução e da autogestão popular foi colocado em foco, visto que esse é o principal meio de acesso à moradia da população brasileira.

A segunda parte trata do imaginário de precariedade que envolve as culturas construtivas populares brasileiras e se coloca como uma espécie de investigação dos porquês desse estigma existir com tamanha força. A obtenção de respostas concretas não ganha importância nessa investigação, que deve ser compreendida mais como um exercício exploratório do tema.

Em conseguinte, foi realizada uma pequena amostragem de algumas das inúmeras formas de habitar no nosso país que se utilizam de técnicas construtivas pouco ou nada abordadas nos nossos cursos de arquitetura e urbanismo. O objetivo dessa terceira parte, diferentemente de um estudo aprofundado, é a demarcação de um espaço de enaltecimento e valorização da nossa pluralidade construtiva tradicional, fortemente ameaçada de desaparecimento, cujos métodos, formas, práticas e variações carregam indiscutível valor cultural e técnico, merecendo ser compreendidas e validadas também como Arquiteturas.

A quarta e última parte é feita de aproximações. É o momento de me aproximar de outros povos brasileiros e de outros contextos de autoconstrução, de me retirar parcialmente do meu lugar de técnica e dar ouvidos às vozes construtoras, ao que elas têm a nos contar sobre os anseios e saberes que carregam. Para tal, são apresentados dois casos em que a cultura construtiva tradicional e a forma de habitar são o fio condutor da vida da população. São dois cenários completamente diferentes, porém ambos no interior do Estado da Bahia e dotados de uma forte relação com a cultura de seus ancestrais, nos quais a desvalorização da arquitetura popular incide de forma agressiva impactando diretamente a vida da população. Para finalizar o exercício de aproximação e de escuta, são apresentadas três histórias de gente e de casas, cujos interlocutores contam como a trajetória de suas vidas não se separa, nem por um instante, das decisões e escolhas projetuais que materializam suas moradas.

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RESUMO

O trabalho, portanto, conforma-se como um ponto de partida para a retomada de valores e saberes culturais para o campo da arquitetura. Trata-se de um esforço de tomada de consciência das necessidades e dos anseios das camadas populares, e de como são impactados pela cultura colonialista que nos domina. Mas, mais do que isso, da importância da nossa pluralidade para alicerçar um amadurecimento do exercício da arquitetura que considere soluções de baixo ou médio custo distintas das que estamos acostumadas, que priorize e dê a devida relevância à pessoa humana envolvida com sua cultura, sentimentos e aspirações.

Palavras chave: Arquitetura Popular – Habitação Popular – Autoconstrução – Autogestão – Habitat

SUMÁRIO Introdução | 18 Desaguadouro | 22 Dando nome aos bois | 26 PARTE I | 28 contexto e teoria

Como temos vivido | 30

A política habitacional à brasileira: manutenção do desvalor popular | 38

Autoconstrução popular: a produção social do habitat | 66

PARTE II | 80 construção do desvalor popular

A construção do desvalor popular | 82

PARTE III | 110 o avesso do mesmo lugar

Arquitetura e técnica popular brasileira | 112 I.

Casas de Terra | 115

II.

Casas de Pedra | 123

III.

Casas de Madeira | 129

IV.

Casas indígenas | 139

PARTE IV | 146 aproximações

Dois casos em foco | 148 Igatu | 150 Vale do Pati | 172

Histórias de casa e de gente | 202 A mulher da casa | 204 84 anos até aqui | 214 Pés vermelhos | 226

Considerações finais: validação das manifestações arquitetônicas populares como um caminho a ser trilhado | 242

Referências | 246 Entrevista com Marcelo Ferraz | 254

Imagem do início do caderno 1ª: Ornamento de proteção em casa no Vale do Pati.

Fonte: Autora.

2ª: Quintal da D. Fia, centro-oeste mineiro.

Fonte: Autora.

3ª: Vale do Pati, BA. Fonte: Autora.

4ª: Igatu, BA. Fonte: Autora.

Introdução Arquitetura é, por mim entendida, como o meio de estabelecer uma conexão entre indivíduo – material – imaterial. Muito mais do que construir ambientes, edifícios ou casas confortáveis, a arquitetura precisa olhar para o indivíduo e considerá-lo como parte intrínseca ao projeto. No entanto, a arquitetura no Brasil não é uma matéria democrática. A maior parcela da população brasileira não tem acesso à arquitetura no sentido humano que essa palavra pode e deve carregar.

Um dos maiores problemas do nosso país, há décadas, é o déficit e a precariedade habitacional de parte significativa de sua população. Os dois maiores programas federais criados com a promessa de resolver tal problema — Banco Nacional de Habitação e Programa Minha Casa Minha Vida) — tiveram uma produção habitacional numericamente inquestionável, mas, ainda assim, décadas depois, não vemos diminuição nos números da população sem moradia adequada. A baixa qualidade arquitetônica dos conjuntos e das habitações produzidas pode ser um fator relevante e grave para tal dificuldade em reduzir o déficit. Mesmo com programas de tamanha proporção, grande parte dessas produções acabam se tornando moradias temporárias para as famílias contempladas em razão da falta de conexão entre o indivíduo, as edificações e seu entorno o que resulta em um não pertencimento e em uma posterior mudança para outro lugar.

Algumas políticas habitacionais ensaiaram priorizar o indivíduo e deram autonomia a movimentos sociais de luta por moradia através de programas de mutirão e autogestão, como foi o caso do PMCMV-Entidades, por exemplo, extinto na gestão Temer.

Através de atividades de pesquisa e extensão durante 4 anos, acompanhei dois projetos do PMCMV-E a fim de compreender o que muda quando as famílias contempladas detêm poder de decisão e se envolvem diretamente com a produção de suas moradias. O resultado é surpreendente. O envolvimento e participação nas decisões gera um sentimento de pertencimento e de apropriação que reflete na redução drástica do repasse informal das habitações.

Se ouvir os indivíduos futuros habitantes, considerar suas opiniões no projeto, dar-lhes a palavra para que digam com o que realmente se importam e do que de fato precisam têm a capacidade de fazê-los se sentirem finalmente pertencentes e conectados com suas moradias, talvez os nossos representantes, gestores e outros responsáveis por oferecer dignidade à população (incluindo aí profissionais arquitetas(os) e urbanistas) não estejam compreendendo ao certo o que a classe popular realmente anseia.

A corrente arquitetônica modernista já muito nos ensinou sobre como tentar resolver problemas sociais com a imposição de soluções supostamente transformadoras pode ser ineficiente. Para pensarmos em como resolver problemas habitacionais, é preciso ir além de soluções arquitetônicas ideais, é necessário que conheçamos a nossa cultura popular e nossas origens arquitetônicas, saibamos como as camadas mais vul-

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neráveis do nosso país têm se virado para garantir suas moradias, o que pensam e o que verdadeiramente anseiam.

Para além de questionar o sentido arquitetônico das produções habitacionais, principalmente as governamentais, esse trabalho se propõe a ressaltar arquiteturas pouco ou nada estudadas nas academias de bacharelado. É tamanho meu estranhamento ao notar que em 7 anos de graduação pouco ou quase nada tenha sido dito a respeito das arquiteturas do povo brasileiro. Muito nos foi dito sobre a história da arquitetura europeia e sobre a herança de seus colonos em terras brasileiras. Mas a arquitetura brasileira não pode se reduzir a isso. Nossa arquitetura popular, de sua ancestralidade até os dias de hoje, possui uma riqueza técnica e de soluções adaptativas ao clima e região surpreendentes, mas, infelizmente, vem sofrendo um processo gradual de apagamento e de esquecimento, compreendido neste trabalho como um processo de desaculturação.

Tomando como norte o conceito do historiador Luiz Antonio Simas (2018), “cultura” é todo processo humano de criação e recriação das formas de viver, englobando padrões de comportamento, visões de mundo, elaborações de símbolos, crenças e hábitos. Formas de nascer, amar, odiar, matar, morrer, cantar, dançar, orar, praguejar, beber, comer etc. (Simas, 2018, p. 7)

E, a tudo isso, somo ainda as formas de morar, de assentar, de habitar. A cultura de um povo trata-se, portanto, da sua forma singular de existir no mundo. Invisibilizar, estigmatizar e inferiorizar tais singularidades é desaculturar um povo, é fazê-lo crer no seu desvalor e fazê-lo ansiar se assemelhar com a cultura do outro.

Não é por acaso que cada vez mais nossas cidades se confundem facilmente com cidades do norte do hemisfério. No entanto, isso não tem sido acompanhado por uma equivalência da qualidade de vida da maior parte da nossa população, muito pelo contrário. Embora as arquiteturas populares sejam comumente associadas à precariedade e, consequentemente, inferiorizadas, a sua substituição por outras ditas mais modernas e europeizadas não tem significado uma melhora na qualidade de vida do povo brasileiro. Imerso cada vez mais na lógica capitalista de valorização do trabalho árduo e do consumismo desenfreado, o indivíduo brasileiro parece-me estar cada dia mais desconectado com a sua história e com o seu meio.

Este trabalho propõe, portanto, a qualquer pessoa que se interesse pela cultura popular desse nosso país, a voltar o olhar para tais arquiteturas pouco notadas, compreender como estão sendo produzidas e por quem, e principalmente compreender como, por que, e à custa do que estão sendo substituídas. Para isso, é importante sairmos um pouco do nosso papel de técnicas e técnicos e ouvir a parcela da população que não pode acessar um profissional capacitado e que não está sendo contemplada por programas de acesso à moradia, mas que continuam, por gerações, construindo suas próprias casas.

INTRODUÇÃO

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M

uito questiono-me sobre a validade e a utilidade da angústia que me leva a escolha desse tema. Como habitante da maior e mais populosa cidade do Brasil, onde a urgência de ações efetivas para habitar de forma minimamente digna milhares de pessoas salta a mim a cada caminhar, a cada leitura, a cada notícia, a cada simples existir, faz-me inevitavelmente necessário que eu questione sim onde devem ser posicionados os limites da minha suposta erudição.

Há exatos 7 anos eu iniciei meus estudos em arquitetura e urbanismo nessa escola. Apesar de possuir, já àquela época, um pouco de experiência profissional na área da construção civil e relativa proximidade aos problemas sociais e habitacionais dessa imensa cidade que assim como muitos outros imigrantes também acolheu a mim e à minha família, eu não fazia ideia de como a minha escolha de me profissionalizar como arquiteta e urbanista seria indissociável da luta por moradias dignas à população brasileira. Nos meus primeiros meses nessa escola já compreendi ser impossível trilhar outro caminho. Como poderia eu, diante dos meus privilégios de acesso à uma das melhores universidades da América Latina, fechar meus olhos para tal questão que impossibilita que grande parte da população brasileira, nossas mulheres, suas crias e nossos homens, não tenham um lugar para dormir sossegadas e sossegados, com segurança, tranquilidade e dignidade?

A minha primeira experiência de pesquisa acadêmica, um grupo de extensão coordenado pelos professores Jorge Bassani e Camila D’Ottaviano,1 me levou a conhecer uma área da arquitetura que eu não tinha a menor ideia que existia quando escolhi minha carreira: a arquitetura popular periférica e autoconstruída. Essa experiência pode ser considerada, talvez, como o primeiro indício de que minha trajetória me traria ao presente trabalho sete anos depois. Digo isso porquê foi o primeiro momento em que eu me lembre de ter percebido que as prioridades e anseios do “leigo” (naquela circunstân-

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1 Para mais informações ver (D’Ottaviano & Bassani (org), 2014)

cia os moradores do Jardim Lapena em sua maioria, autoconstrutores de suas próprias moradias) podem não coincidir nem um pouco com o que os “doutos” compreendem como “o melhor”.

Nas visitas que fizemos ao Jardim Lapena nós adentramos algumas casas. O nosso projeto ansiava propor melhorias habitacionais aos habitantes do bairro. Para tal, o plano era concatenar visitas às residências escolhidas às conversas com seus moradores sobre suas percepções acerca de suas moradias, planos e anseios.

Essa experiência já faz mais de 6 anos e ainda é muito viva a lembrança do estranhamento que me ficou dessas visitas e conversas.

Algumas das casas não possuíam janelas para a rua, e isso gerava um forte sentimento de desconforto em nós, os “doutos”. No entanto, nas conversas, a inclusão de janelas nunca era mencionada como uma necessidade dos interlocutores. Aquelas famílias não queriam janelas voltadas para rua porque isso era sinônimo de falta de segurança, como nos explicou uma das moradoras.

Lembro muito bem do estranhamento que tive ao ouvir de alguma pessoa do nosso grupo (composto de acadêmicos de variados níveis, cursos e nacionalidades) o quanto se impressionava com o fato das casas serem tão precárias e ao mesmo tempo serem tão bem equipadas de aparelhos digitais “melhores que os da minha casa”. Tal fala eu nunca consegui superar. Era muito óbvio para mim o porquê que a minha televisão não era tão moderna como as das casas as quais visitamos, o porquê a maioria tinha até mesmo home-theater e playstantion, aparelhos que nunca fizeram parte da realidade financeira da minha família ao mesmo tempo que eu morava em um apartamento confortável, com ventilação cruzada e infraestrutura sanitária.

Era óbvio que aquilo ali demonstrava o cerne do nosso problema social. Desse tempo me ficaram duas inquietações: a primeira é a de que nós, munidos do nosso ego do erudito salvador dos pobres, por vezes nos esquecemos que no nosso sistema atual, o capitalismo do

DESAGUADOURO

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consumo desenfreado, todos estamos afundados na mesma lógica, não importando a classe social. A ordem do dia é que consumo significa sucesso, e ponto. A segunda inquietação é a de que nós, e aqui eu digo que com a melhor das intenções, tentamos mostrar outras possibilidades e soluções para os mais vulneráveis, no entanto muito pouco temos parado para compreender que nem sempre o anseio do outro se iguala ao nosso. Isso vale para tudo na nossa vida, porque não temos conseguido ouvir os anseios das camadas populares como válidos também?

A minha segunda experiência de extensão acadêmica foi uma iniciação científica da FAPESP coordenada também pela Profª. Camila D’Ottaviano. Passamos 3 anos acompanhando dois empreendimentos habitacionais icônicos para a cidade de São Paulo: o edifício Dandara, na Av. Ipiranga, e o edifício Marisa Letícia na rua Maria Domitila, no Gasômetro. São icônicos porque são duas conquistas da ULCM, de moradias sociais via MCMV-E, em pleno centro da cidade com o maior número absoluto de déficit habitacional do país.2 Sem dúvida alguma, acompanhar essas famílias por tanto tempo mudou a minha vida e a minha forma de enxergar a arquitetura.

No MCMV-E a Entidade, que no caso era a ULCM, detinha autonomia projetual para viabilizar as moradias conquistadas. E, sendo assim, foram dois empreendimentos considerados nesse trabalho como empreendimentos autogestionados, nos quais as famílias detentoras do direito àquelas moradias geriam elas próprias a elaboração do projeto e a execução da obra coletivamente com o auxílio de uma Assessoria Técnica contratada pela própria Entidade. A assessoria técnica neste caso contava com um time de arquitetos, engenheiros e assistentes sociais, e as tomadas de decisão ocorriam por meio de assembleias gerais abertas para todos os moradores e também por meio de reuniões menores com representantes de grupos de base criados para organizar o processo.

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2 Para mais informações ver (Fiúza & Lima, 2021).

O que vem ao caso aqui sobre tal experiência é que no empreendimento que pudemos acompanhar desde o início da elaboração do projeto sempre me atentei ao fato de que, na maioria das vezes em que alguma decisão de projeto era tomada, a escolha feita pela maioria dos futuros moradores e futuras moradoras divergia da escolha ansiada pelos profissionais técnicos que acompanhavam o processo. O sentimento do corpo técnico era na maioria das vezes de frustração e de não compreensão dos motivos que os levavam sempre a escolher “as piores soluções” ou “as cores mais feias”.

Outra vez diante de mim a mesma inquietação. E, para minha grande alegria, cito a Marcela Lopes, que em seu capítulo Artesanias na cidade autoconstruída do livro Saberes [auto]construídos (Nascimento (org) , 2015) me abraçou infinitamente e fez transbordar em mim um sentimento de acolhimento esclarecendo que Ao colocar lado a lado as invenções daqueles considerados especialistas do espaço (arquitetos, engenheiros, economistas e geógrafos) das ações daqueles considerados leigos do ofício (moradores e operários), nossa intenção é promover a discussão sobre a validade desta diferenciação, como já fez Boaventura de Sousa Santos (2008) quando recorreu à “douta ignorância” de Nicolau de Cusa, para quem tal designação, embora pudesse parecer contraditória – uma vez que é que é douto é, por definição, não ignorante −, o seria apenas em aparência, já que ignorar de maneira douta exige um laborioso processo de conhecimento sobre os próprios limites do saber. (Lopes, 2015, p. 37)

Este trabalho é, portanto, um convite a mim e a quem mais se interessar a reconhecer outras verdades que não as nossas. Nossas cidades não suportam mais muros, é preciso construirmos pontes.

DESAGUADOURO

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DANDO NOME AOS BOIS

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No percurso da pesquisa foi necessária uma reflexão mais minuciosa e um alinhamento pessoal acerca da diferenciação entre os conceitos vernacular e popular, a fim de delimitar bem de qual deles trata este estudo. Nem sempre há uma consonância no uso de tais termos e, portanto, se faz imprescindível esclarecer o que este trabalho compreende de cada um.

O termo vernáculo, provém do latim vernaculu, e possui hoje o significado de língua ou costumes próprios de um país ou de uma região (Weimer, 2005, p. XXXIX). A arquitetura vernacular é comumente designada pelos dicionários de arquitetura como aquela despretensiosa, simples, tradicional, indígena, que se utiliza de materiais locais, e que responde há um tempo e espaço específico. No entanto, essa designação não me parece clara o suficiente no contexto brasileiro cuja imensa parte da população constrói de forma simples e despretensiosa, se utilizando, muitas vezes, do que tem disponível na natureza, e ainda assim não são consideradas vernaculares. Isso porque o termo vernacular já carrega no inconsciente um determinado valor, uma estima, de prestigiada técnica, forma e rigor, que fazem com que as arquiteturas vernaculares sejam merecedoras de admiração e, sobretudo, respeito. É pelo valor que lhe é atribuído que este trabalho não trata das arquiteturas vernaculares brasileiras, e sim das arquiteturas populares brasileiras.

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O termo popular, em sua origem latina, populus, designava o conjunto dos cidadãos que excluíam, por um lado, os mais privilegiados, os patrícios, a quem estava reservada a representação no senado, e, por outro lado, os menos afortunados, a plebe, dos despossuídos. Portanto, em seu sentido mais direto, significa aquilo que é próprio das camadas intermediárias da população (Weimer, 2005). Gunter Weimer é um dos poucos estudiosos da arquitetura popular brasileira. Em seu livro Arquitetura Popular Brasileira, a define como sendo aquela que “exclui a arquitetura realizada para as elites – denominada erudita – e a dos excluídos em que, modernamente, se tem usado o termo favela e outros termos semelhados” (p. XL). Diferentemente de Weimer, para mim, arquitetura popular também é aquela proveniente das camadas intermediárias da população, excluindo-se, entretanto, além das classes abastadas, somente os miseráveis, ou seja, aqueles que não possuem quaisquer meios de promoção de seu habitat, lhes restando apenas o amparo estatal. Não considero, portanto, a produção das comunidades ditas faveladas como excluídos da produção arquitetônica popular.

Muito pelo contrário, representam a arquitetura popular dos grandes centros urbanos brasileiros. Desse modo, para o trabalho que se apresenta, arquitetura popular é toda e qualquer arquitetura que é própria do povo, por ele é idealizada, por ele é materializada, desde a produção caipira, aos sertanejos, os ribeirinhos, os amazônicos, indígenas, migrantes e imigrantes, até aos simples habitantes comuns das pequenas e médias cidades. A arquitetura popular representa grande parte da arquitetura brasileira e, mesmo na ausência de qualquer rigor, deve ser considerada, respeitada e validada como arquitetura, a arte de criar e edificar espaços organizados e animados, (Ferraz, 1996) e para mim, também encantados.

O homem do povo sabe construir, é arquiteto por intuição, não erra; quando constrói uma casa a constrói para suprir as exigências de sua vida Bardi, L. B. in Ferraz, 1996, p. 7 DANDO NOME AOS BOIS

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FIGURA 1. Condomínio Habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida.

Fonte: Direitos autorais Ubirajara Machado (MDS), Agência do Senado.

PARTE I contexto e teoria

COMO TEMOS VIVIDO?

“a casa má seria aquela que constrangeria os seus moradores, dificultando o seu modo de existência ou os enquadrando em um modelo que não fortalece as suas visões de mundo, as suas práticas de alegria ou de liberdade. É nesses termos que uma casa popular pode ser mais parecida com uma obra prima do que uma casa desenhada por um arquiteto diplomado. É uma questão de afeto.

Do que este corpo casa é capaz?”

Guizzo, 2018

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

O percurso que deságua neste trabalho final de graduação é repleto de dúvidas, de questionamentos pessoais e profissionais, e de angústias, principalmente sobre a forma como temos vivido, nós as brasileiras e brasileiros, nós as latino americanas e latino americanos. É preciso dizer que no trabalho que se apresenta, o percurso é mais importante do que a chegada.

Incomoda-me não ver as crianças brincarem na rua, não ver a rede de descanso no alpendre, a água da chuva não ser capaz de penetrar o solo. Incomoda-me o excesso do concreto, o ritmo acelerado da mulher que tem que dar conta de tudo e não consegue respirar na brisa da sua varanda. Incomoda-me que a brisa nem ao menos entre pela varanda. Incomoda-me o padrão, o igual, a produção em série. Incomoda-me não sabermos mais o que temos comido, e mais do que isso: incomoda-me que logo não teremos mais a cozinha da prosa, do cafezinho e do estar. Incomoda-me profundamente o não mais estar, em casa, em conforto, em paz, em tranquilidade e em proximidade da natureza. Incomoda-me o automático que nos é imposto sem nos darmos conta. Incomoda-me não ver meu povo rir, que não durmam bem, que não estejam refrescados ou aquecidos, que não estejam protegidos e satisfeitos.

Pergunto-me a todo instante por que temos vivido assim, afinal?

As críticas ao modo de viver contemporâneo, e com isso quero dizer pós-industrialização, são inúmeras. Os danos que nosso atual modo de produção causam em nossa sociedade estão cada vez mais irreparáveis. Por que com tanta indústria, tanta modernização, tantos avanços e progressos, estamos ainda passando fome, e com a maior parte da nossa população (sobre)vivendo imersa na precariedade? Conseguir tomar consciência de tamanha incoerência é dificultoso visto que somos bombardeadas 24 horas por dia com propagandas e publicidades que reforçam a ideia do progresso em que vivemos e do que ainda podemos alcançar com nosso árduo trabalho. A ideia da “compensação no fim” e do “merecimento” estão tão aprofundadas na nossa sociedade que não nos resta nem tempo para pensar como de fato estamos vivendo.

31 COMO TEMOS

VIVIDO

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COMO TEMOS VIVIDO

A verdade é que temos vivido uma busca constante por um bem-estar baseado em valores consumistas e que, portanto, nunca é, nem será verdadeiramente alcançada, já que a fonte da qual se nutre é infinita.

A ideologia equatoriana do Buen Vivir, é um dos exemplos de movimentações contemporâneas engajadas em conscientizar as pessoas sobre os altos custos que os países não desenvolvidos ou em desenvolvimento e as suas populações mais vulneráveis, principalmente, estão pagando pelo “progresso” vendido pelo atual sistema ocidental.

O Bem Viver propõe uma cosmovisão diferente da ocidental, posto que surge de raízes comunitárias não capitalistas.” (Acosta, 2016, p. 80) (...) deve ser assumido como uma categoria em permanente construção e reprodução.

Enquanto proposta holística, é preciso compreender a diversidade de elementos a que estão condicionadas as ações humanas que propiciam o Bem Viver: o conhecimento, os códigos de conduta ética e espiritual em relação ao entorno, os valores humanos, a visão de futuro, entre outros. O Bem Viver, definitivamente, como sugere o antropólogo equatoriano Viteri Gualinga, constitui uma categoria central da filosofia de vida das sociedades indígenas. Nesta perspectiva, o desenvolvimento convencional tem sido visto como uma imposição cultural herdeira do saber ocidental – e, portanto, colonial. Daí se conclui que muitas das reações à colonialidade impliquem um distanciamento do desenvolvimentismo. O Bem Viver, assim, se traduz em uma tarefa descolonizadora. Além disso, também deveria ser despatriarcalizadora. Para cumpri-la, será particularmente necessário um processo de descolonização intelectual nos âmbitos político, social, econômico e, claro, cultural. (Acosta, 2016, p. 79)

Na tentativa de resgatar valores esquecidos ou nunca nem mesmo sabidos da ancestralidade dos povos originários da América Latina, o Bem Viver alerta para o fato de estarmos tão cegos em busca do progresso vendido pelos nossos colonizadores que não conseguimos enxergar os males que essa busca tem nos causado, acentuando cada vez mais a desigualdade social, gerando maior concentração de renda, péssimas condições de trabalho, degradação desenfreada do meio-ambiente, distanciamento cultural, pobreza, precariedade, etc.

Não é intenção deste trabalho discutir ideologias anticolonialistas como a do Bem Viver, e sim fundamentar as inquietações e angústias que me trouxeram até aqui, compreendendo que tais angústias são reais. Nós, latino-americanas e latino-americanos, brasileiras e brasileiros, temos vivido, exaltado e ansiado o que nos foi (e ainda nos é, mesmo que indiretamente) imposto por nossos colonizadores.

O questionamento acerca de como temos vivido não deixa de ser também o questionamento de como temos habitado? É importante refletirmos o valor que temos atribuído para o nosso morar. Habitamos nossas casas ou apenas existimos dentro

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

delas? O modelo que hoje domina nossas cidades prega um modo de construir nossos habitats de maneira dispendiosa, materialista, agenciado aos modelos centrais, completamente tomado pelas práticas do consumo e desarticulado da essência de seus territórios. (Guizzo, 2019) A lógica capitalista a qual estamos imersas nos convenceu de que nossas casas, o lugar onde habitamos, onde existimos é apenas mais um bem de consumo, comparável a um objeto mais ou menos bonito, que ansiamos como um smartphone, um notebook, um carro... Cada vez mais temos acreditado que morar em um apartamento com uma “varanda gourmet”, portas de vidro e móveis planejados é sinônimo de “bem-estar” e de “sucesso”. Não haveria problema nisso se estivéssemos alcançando o “bem-estar” prometido, no entanto, estamos diante de uma sociedade cada vez mais frustrada, esgotada pelo cansaço e vítima de doenças psíquicas.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, autor de obras que tratam do ser-humano contemporâneo e do seu modo de viver, em seu livro “Topologia da violência” reflete sobre os danos do atual sistema capitalista ao indivíduo: A economia capitalista absolutiza o sobreviver. Sua preocupação principal não se dirige ao bem-viver, mas nutre-se da ilusão de que um incremento de capital significa igualmente um incremento de vida, mais capacidade de viver. A separação rígida, rigorosa entre vida e morte coloca a própria vida em uma rigidez espantosa. Assim, a preocupação por um viver bem dá lugar à histeria por sobreviver. A redução da vida a processos biológicos, vitais provoca seu desnudamento; a simples sobrevivência se torna obscena.

Com isso, retira-se da vida sua vivacidade, que é algo bem mais complexo do que a mera vitalidade e a saúde. (Han, 2017, p. 48)

Apesar de não tratar diretamente sobre a forma que habitamos, Byung-Chu, nessa passagem, alerta para uma perda do encanto na nossa existência. Da mesma forma, no imaginário do habitat da nossa sociedade, os anseios estão se distanciando dos encantos que nos trouxeram aqui, dos encantos dos nossos corpos nos espaços, dos encantos da natureza e dos encantos da nossa cultura.

[Re]pensar o modo como habitamos não se restringe a pensar na edificação que nos acolhe ao final do dia, nem, tampouco, na materialização do que compreendemos como a casa dos nossos sonhos. O habitar é um problema bem mais complexo e profundo, e que diz das experiências e dos afetos que nos animam, que nos movem, que nos fazem fortes e alegres e também da nossa relação com o outro e com a Terra. Diz dos nossos corpos, do nosso modo de ser e de viver (Guizzo, 2019). Como foi muito bem colocado pela equipe do Conselho Noturno, quase como um manifesto sobre o habitar, Habitar não é hospedar-se. A habitação não é, em última análise, apenas uma caixa, na qual as pessoas são “acomodadas” voluntariamente ou à força após o seu dia de trabalho e à espera do próximo. É uma gaiola cujas paredes são estranhas para nós. Viver é outra coisa. É um entrelaçamento de elos. É pertencer a lugares tanto quanto eles pertencem a nós. Não é ser indiferente às coisas que nos rodeiam, é estar apegado: às pessoas, às

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FIGURA 2. Na página seguinte, quintal de uma casa no Vale do Pati com espaço de encontros sociais em volta da fogueira. Fonte: Autora.

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atmosferas, aos campos, às sebes, aos bosques, às casas, a tal e tal planta que cresce no mesmo lugar, a tal e tal animal que nos acostumamos a ver lá. É estar em contato, em poder em nossos espaços. Habiter n’est pas loger. Un logement n’est pas finalement qu’une case, dans laquelle on “loge” de gré ou de force les gens après leur journée de travail et en attendant la suivante. C’est une cage dont les murs nous sont étrangers. Habiter, c’est autrechose. C’est un entrelacement de liens. C’est appartenir aux lieux autant qu’ils nous appartiennent. C’est ne pas être indifférent aux choses qui nous entourent, c’est être attachés: aux gens, aux ambiances, aux champs, aux haies, aux bois, aux maisons, à telle plante qui repousse au même endroit, à telle bête qu’on prend l’habitude de voir là. C’est être en prise, en puissance sur nos espaces. (Conseil Nocturne, 2019, p. 74, tradução livre)

Sim, é de se questionar se como habitamos é de fato o modo como queremos habitar.

Os muros cada vez mais altos e imponentes das nossas cidades explicitam a ordem do indivíduo, do isolamento. E pela ironia da vida, foi justamente o isolamento proporcionado pela pandemia da COVID-19 que nos enlouqueceu e nos levou aos nossos limites psíquicos. Será que já não temos vivido isolados(as) há algum tempo? Isolados de nós mesmos(as) e de nossa cultura, afastados cada vez mais dos valores dos nossos ancestrais, daqueles que não desassociam nem por um instante suas vidas do entorno que os abriga, e que por isso cuidam, de si, dos outros e do meio.

FIGURA 3. Pés descalços prestes à pular no rio. “Eu gosto daqui porque aqui tem o rio” me repetiu incansáveis vezes uma das crianças do Vale do Pati.

Fonte: Autora.

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

Revisitar nossas arquiteturas e reexaminar o nosso campo é convite para revisitarmos a nós mesmos(as). Lembrarmos o que fez nossa infância encantada, o que nos resta em memórias antigas, o que realmente faz nossos pelos se ouriçarem, o que vamos querer contar de nós e como queremos ser lembrados(as). Em um mundo onde temos nos relacionado mais com (e como) máquinas do que com gente, o habitar já foi reduzido a uma “máquina de morar” por arquitetos ilustres. Outros e outras, entretanto, e na contramão hegemônica de suas épocas, como Bardi e Fathy, já nos ensinaram que nossa casa pode e deve ser uma abertura à vida, entidade espiritual, fantasia e espelho da alma. (Guizzo, 2018) Revisitar nossa cultura ancestral não significa, no entanto, retomá-la de onde a deixamos, nem tampouco petrificá-la no tempo, significa aprender com ela, continuá-la, ou o contrário de exterminá-la, é deixá-la viver, conviver, reviver. Guizzo (2018) nos alertou para a “morte da cidade”, dada pelas experiências de desconexão da vida, isto é, para o aniquilamento das possibilidades orgânicas (físicas) ou inorgânicas (espirituais) de sua expansão e criação. Este caderno de estudo e de percurso íntimo é, portanto, um convite à vida através da arquitetura.

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106 LEVITAS, 1993, p.265), citado em HARVEY, 2009, p.250 apud LAGO, 2012, p. 186

manutenção do desvalor popular

A POLÍTICA HABITACIONAL À BRASILEIRA

“A principal razão pela qual vem a ser tão difícil localizar a utopia num futuro ligado de maneira crível ao presente por meio de uma transformação viável reside no fato de nossas imagens do presente não identificarem agente nem processos de mudança. O resultado é que a utopia entra ainda mais nos domínios da fantasia.”

Não sei se pela minha pouca experiência em questões que já estão esmiuçadas por estudiosas(os) da área ou se somente pelo forte anseio em exaltar e convencer, quem quer que seja, da importância que vejo e sinto diante arquiteturas produzidas pelo nosso povo, senti necessidade em contextualizar a problemática da produção popular sob a perspectiva da produção habitacional estatal no Brasil, do déficit habitacional brasileiro e de como nossos governos têm se mobilizado para resolvê-lo.

A razão disso me parece muito simples e lógica. As ações do nosso Estado não estão apartadas das ações populares, muito pelo contrário. A forma como o Estado lida com suas responsabilidades de provedor do bem-estar social reflete diretamente nos modos de produção do país e define (ou ao menos induz) o papel da indústria, da economia, do mercado, etc. E tudo isso tem forte impacto na vida de todos nós, mas principalmente na vida da camada popular, mais vulnerável e mais suscetível às dominações do sistema capitalista pela restrição de recursos e possibilidades que possui.

Jéssica Naime recorre a Bordieu (2006) para nos explicar como o Estado tem papel fundamental na configuração de um mercado habitacional (sendo público e/ou privado). E porque não teria, portanto, poder de, no menor dos casos, direcionar também os anseios populares para aquilo que lhe for mais interessante?

Bourdieu dá grande ênfase ao papel do Estado na conformação do mercado de habitação.

Sabe-se da importância das ações estatais na determinação das condições e funcionamento da economia e da sociedade. O Estado, por meio de seus órgãos e agências, tem a capacidade de intervir de diferentes maneiras para a conformação do mercado de habitação, pois: “Através nomeadamente de todas as formas de regulamentação e de ajuda financeira destinada a favorecer uma ou outra forma de realizar os gostos em matéria de alojamento, de ajuda aos construtores ou aos particulares, como os empréstimos, as isenções, os créditos bonificados, etc., o Estado – e aqueles que estão em condições de impor as suas perspectivas através dele – contribui de forma muito significativa para produzir o estado do mercado de habitações, nomeadamente orientando direta ou indiretamente os investimentos financeiros – e também afetivos – das diferentes categorias sociais em matéria de alojamento.” (Bourdieu, 2006, p.33-34, grifo do autor, apud Naime, 2012, p. 72)

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POLÍTICA HABITACIONAL À BRASILEIRA

Não é intuito deste trabalho, no entanto, percorrer o longo histórico habitacional nem, tampouco, todos os programas habitacionais propostos para solucionar a precariedade habitacional do nosso país. Faz-se necessário, contudo, ressaltar a gravidade da falta de moradias dignas para a população brasileira assim como a dimensão e ineficiência dos dois programas nacionais de produção habitacional mais notáveis do país: o Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Por fim, se quisermos rever a nossa relação com a produção habitacional do país, é substancial se considerar a parte da história das nossas políticas habitacionais reservada à autogestão que, mesmo de modo tímido na esfera política, teve e continua tendo uma imensa força na esfera social engajada na provisão de moradia para a população vulnerável e na construção de habitats dignos.

Dito isso, inicio essa revisitação histórica com um breve exame de como se conforma o sempre mencionado Déficit Habitacional Brasileiro. Com isso, espero ser possível enxergarmos que o chamado déficit habitacional, para muito além dos números, somos nós, milhares de nós, brasileiras e brasileiros que estão se virando para morar em nosso país. São milhares de Marias, Josés, Lúcias e Joões, construindo suas moradias, de uma forma ou de outra.

O Déficit Habitacional no Brasil Fruto de uma parceria entre a Secretaria Nacional de Habitação, o Ministério das Cidades e o Centro de Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro, foi apresentado à população brasileira o Déficit Habitacional Municipal no Brasil 20103 baseado nas informações do Censo Demográfico 2000, elaborado e divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Logo na sua apresentação, a publicação traz sua múltipla importância, enfatizando que o trabalho elaborado procura fornecer para as diferentes esferas de governo, pesquisadores e para a sociedade civil em geral um instrumento útil nas discussões e na elaboração de políticas públicas relacionadas à necessidade de moradia. (Fundação João Pinheiro, 2013, p.9)

3 Apesar de já ter passado quase 10 anos da publicação desse estudo, a escolha dessa versão se deu por ser o último levantamento em que se considera fatores de renda na contabilização do déficit. Para o trabalho que apresento, tal estudo, por mais defasado que possa estar, se coloca como suficiente para o entendimento da conformação do déficit e dos números alarmantes relacionados à habitação brasileira.

É necessário pontuar que tratarei aqui apenas sobre a publicação de 2010 citada acima, visto que a intenção em tratar do déficit habitacional neste trabalho é meramente para fins de compreensão do panorama habitacional com ênfase na produção social do habitat. Não é de meu interesse estabelecer uma análise minuciosa ou algo do tipo acerca dos números obtidos no estudo e esclareço que a escolha de trazer especificamente o documento de 2010 deve-se ao fato deste ser o mais recente estudo que contempla informações de renda concomitantes às informações de déficit.

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Segundo a Fundação João Pinheiro (FJP), O conceito de déficit habitacional utilizado está ligado diretamente às deficiências do estoque de moradias. Engloba aquelas sem condições de serem habitadas em razão da precariedade das construções e que, por isso, devem ser repostas. Inclui ainda a necessidade de incremento do estoque, em função da coabitação familiar forçada (famílias que pretendem constituir um domicílio unifamiliar), dos moradores de baixa renda com dificuldades de pagar aluguel e dos que vivem em casas e apartamentos alugados com grande densidade.

Inclui-se ainda nessa rubrica a moradia em imóveis e locais com fins não residenciais. O déficit habitacional pode ser entendido, portanto, como déficit por reposição de estoque e déficit por incremento de estoque. (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 13)

A análise da FJP baseada nos dados do Censo 2010 apontou um déficit habitacional de 6,490 milhões de unidades, o que correspondia à época a 12,1% dos domicílios do país. É muito importante analisar esse resultado tanto em valores absolutos quanto em valores relativos (ou seja, comparando o déficit habitacional ao total de domicílios da unidade de análise), e é o que farei a seguir. A região Sudeste concentrou 38% do déficit habitacional do país, o que correspondeu a 2,674 milhões de unidades, sendo mais da metade (1,495 milhões) somente em São Paulo.

Mas ao se analisarem os valores relativos, a região Norte foi a que apresentou os maiores (piores) resultados. O estudo apontou que 20,6% dos domicílios da região se enquadravam em algum critério do déficit e que em todas as unidades da Federação o déficit habitacional relativo era maior que o observado para o total do país (12,1%).

O estado que liderou o ranking, obtendo o maior déficit habitacional relativo foi o Maranhão, com 27,3%, 13 pontos percentuais acima da média da região Nordeste, que apresentou um déficit relativo de 14,1%. A região Sul foi a que apresentou o menor déficit habitacional relativo do país (8,7%).

Já em termos absolutos, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, estados que comportam as maiores e mais populosas cidades do país, se destacaram também pelos maiores valores de déficit habitacional. Enquanto Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Mato Grosso do Sul apresentaram os menores valores.

Verificou-se, portanto, que cerca de 70% do déficit habitacional no Brasil estava localizado nas regiões Sudeste e Nordeste. Tal proporção se assemelha quando consideramos apenas as áreas urbanas. Mas, no caso do déficit habitacional rural, a distribuição entre as grandes regiões foi diferente: mais da metade estava localizado na região Nordeste, cerca de 20% na região Norte, enquanto as demais regiões somaram pouco mais de 20% do déficit habitacional rural.

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100

adensamento

90 ônus

80 70

coabitação

60 precários

50 40 30

GRÁFICO 1. Déficit habitacional por componentes e regiões geográficas - Brasil, 2010. Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP). Centro de Estatística e Informações (CEI).

20 10 0 em %

NORTE

NORDESTE

SUDESTE

SUL

CENTRO-OESTE BRASIL

até 100 mil

menos de 10

de 100 a 200 mil

de 10 a 15

de 200 a 500 mil

de 15 a 20

mais de 500 mil

mais de 20

FIGURA 4. Déficit habitacional total por unidades da Federação - Brasil - 2010.

Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP).

Centro de Estatística e Informações (CEI).

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FIGURA 5. Déficit habitacional relativo por unidades da Federação - Brasil, 2010. Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP). Centro de Estatística e Informações (CEI).

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Metodologicamente, o cálculo do déficit habitacional é realizado levando-se em conta 4 componentes: 1. Domicílios precários, que abrange dois subcomponentes 1.1. Domicílios improvisados engloba todos os locais e imóveis sem fins residenciais e lugares que servem como moradia alternativa (imóveis comerciais, embaixo de pontes e viadutos, barracas, carcaças de carros abandonados e cavernas, entre outros), o que indica a carência de novas unidades domiciliares (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 14).

1.2. Domicílios rústicos aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada. Em decorrência das condições de insalubridade, esse tipo de edificação proporciona desconforto e traz risco de contaminação por doenças (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 15).

2. Coabitação familiar, que abrange dois subcomponentes 2.1. Famílias residentes em cômodos os cômodos são domicílios particulares compostos por um ou mais aposentos localizados em casa de cômodo, cortiço, cabeça-de-porco – entre outros (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 16).

2.2. Famílias conviventes secundárias com intenção de constituir um domicílio exclusivo famílias conviventes secundárias que viviam junto com a família principal e que declararam intenção de constituir um domicílio exclusivo (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 16).

3. Ônus excessivo com aluguel urbano corresponde ao número de famílias urbanas com renda de até três salários mínimos que moram em casa ou no apartamento (domicílios urbanos duráveis) e que despendem 30% ou mais de sua renda com aluguel (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 18).

4. Adensamento excessivo de domicílios alugados Essa condição é caracterizada pelo número médio de moradores por dormitório acima de três (3).

O número de dormitórios corresponde ao total de cômodos que servem de dormitório em caráter permanente e apenas para os moradores do domicílio (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 19).

Compreender o que tem por trás dos números que vemos com frequência nos jornais e que cansamos de citar em debates sobre os rumos das nossas cidades tem

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uma importância fundamental para este trabalho. Precisamos enxergar a precariedade que existe por detrás dos números e onde ela se instaura para podermos pensar soluções para um país de dimensão continental como o Brasil. Se o nosso problema fosse numérico, como pode parecer nas análises e debates correntes, poderíamos saná-lo apenas com realocação dessas famílias para os milhões de imóveis vazios que também possuímos. Por isso é preciso compreender que o problema não é numérico.

Se analisarmos o déficit habitacional 2010 pelos seus componentes veremos que quase 20% dos domicílios se enquadraram como precários. O próprio estudo da FJP explica que A média do país não reflete a desigualdade encontrada entre as regiões, estados e áreas metropolitanas e não metropolitanas. (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 32)

De maneira geral, os estados da região Norte, além do Maranhão e do Piauí no Nordeste, indicaram uma forte presença de domicílios precários. Sendo que no Maranhão 61,4% do déficit habitacional era composto por domicílios precários, o maior do país.

0,5 - 2,1 2,2 - 4,9 5,0 - 10,0

FIGURA 6. Domicílios precários por unidades da Federação - Brasil - 2010.

Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP).

Centro de Estatística e Informações (CEI).

10,1 - 16,7

Além do déficit habitacional que caracteriza a necessidade de reposição e/ou incremento de estoque de moradias, o documento analisado apresenta, ainda, dados sobre a Inadequação de Domicílios Urbanos 2010. Infelizmente, no que diz respeito ao presente trabalho, tal estudo foi realizado apenas para áreas urbanas, excluindo-se as inadequações de domicílios rurais.

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Para o cálculo da inadequação de domicílios urbanos são utilizados 3 componentes: 1. Domicílios carentes de infraestrutura; 2. Domicílios sem unidade sanitária domiciliar exclusiva; 3. Adensamento excessivo em domicílios próprios.

Segundo o estudo realizado, a carência de infraestrutura urbana é o componente da inadequação que mais afeta os domicílios urbanos. No Brasil, 3 milhões de domicílios urbanos (26,4%) carecem de pelo menos um item de infraestrutura básica: água, energia elétrica, esgotamento sanitário ou coleta de lixo. (Fundação João Pinheiro, 2013, p.55)

Os resultados mostraram que a região Nordeste é a que possuiu o maior número absoluto de domicílios particulares urbanos com alguma carência de infraestrutura (4,8 milhões) enquanto que a região Norte alcançou os piores resultados relativos ao total de domicílios particulares permanentes da unidade de análise, apresentando carência de pelo menos um componente de infraestrutura em 63,1% de seus domicílios.

Dos subcomponentes da carência de infraestrutura, a falta de esgotamento sanitário afeta o maior número de domicílios urbanos: 10,8 milhões. Destes, 4,2 milhões estão na região Nordeste, o que significa que quase 40% do total de domicílios carentes de esgotamento sanitário do país localizam-se nessa região.

Ainda analisando a componente de infraestrutura, é impressionante a disparidade entre os estados com maior percentual de domicílios deficientes de um ou mais itens de infraestrutura, Rondônia e Amapá, ambos com um índice de 76%, e o estado de São Paulo que apresentou o menor índice de domicílios com pelo menos uma carência, 7,6%.

Analisando, agora, os resultados referentes ao segundo componente, a ausência de banheiro exclusivo no domicílio, o estudo apontou que pouco mais de 1 milhão de domicílios brasileiros, o correspondente a 2% dos domicílios particulares permanentes urbanos, não possuíam banheiro exclusivo. Outra vez o maior percentual apareceu na região Norte (9,6%), com destaque para o estado do Acre que apresentou ausência de banheiro privativo em 20,5% de seus domicílios. Esse dado é ainda mais chocante quando o comparamos com o percentual de domicílios particulares permanentes sem banheiro exclusivo nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, que não chegou a 1%.

Por fim, o componente adensamento excessivo de domicílios próprios afetava, à época, 1,5 milhão de domicílios brasileiros urbanos (3,2%). Nessa condição, 8% dos domicílios foram apontados na região Norte e 3,5% e 3,3% nas regiões Nordeste e Sudeste respectivamente. Nas regiões Sul e Centro-Oeste, o número de domicílios próprios adensados foi inferior a 2%.

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A análise, mesmo que breve, do estudo sobre o déficit habitacional brasileiro se fez imprescindível ao presente trabalho, primeiramente pela importância de se estabelecer um contato mais profundo com esse documento que, por vezes, nos é citado e indicado como instrumento de apoio no curso de Arquitetura e Urbanismo, mas que nem sempre conseguimos dar a atenção devida, nos restringindo mais aos números e menos à sua conformação. E também por ser um estudo mais que esclarecedor das disparidades sociais e habitacionais entre as regiões brasileiras e os abismos que a concentração de renda causa ao nosso território, além de ser uma forte ferramenta argumentativa sobre a importância de assumirmos as múltiplas faces da questão habitacional brasileira e lidarmos com suas especificidades com coerência.

Estando bem compreendida, em termos numéricos e regionais, a urgente necessidade de soluções que garantam o direito à moradia digna a todo e qualquer indivíduo, sem distinção de classe, gênero ou raça, estabelecida pela Constituição Federal, veremos, a seguir, as principais respostas das instâncias governamentais à questão, em termos práticos. Com isso poderemos dar um primeiro passo para a compreensão da importância de uma arquitetura popular inclusiva, afetiva e coerente para a redução dos abismos sociais do nosso país.

Como temos respondido à questão habitacional brasileira A escassez de moradia digna para grande parte da população brasileira apresentada anteriormente através do déficit habitacional não é nenhuma novidade. E a constância dos números apresentados retrata um problema social histórico de longa data que ainda precisa da nossa atenção ao passo que não temos encontrado uma saída efetiva para a moradia para parcela significativa da população brasileira. Regina Ferreira, ao tratar da construção da política nacional de habitação no Brasil, explica que o desenvolvimento capitalista nos países ocidentais e o consequente processo de urbanização, colocaram o problema habitacional no centro da questão urbana, sobretudo a partir do século XX; no Brasil, a partir da década de 30. Passado um século, o problema não só persiste como cada vez mais se amplia, visto que suas causas estruturantes – um sistema econômico que produz e reproduz desigualdades sociais – não foram alteradas. (Ferreira, 2012, p. 116)

Para compreender o papel que o Estado tem assumido diante desse cenário, trataremos aqui sobre três iniciativas chaves: o Banco Nacional de Habitação – BNH; o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV e, os projetos de políticas públicas habitacionais baseados na Autogestão.

Acredito que a importância do BNH e do PMCMV para este trabalho seja a mesma: a pobreza arquitetônica das unidades produzidas e a incoerência cultural e regional

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

dessas atrelada, na grande maioria dos casos, à inexistência de infraestrutura básica que refletem claramente o modo como o poder público compreende a questão habitacional brasileira e o habitar: como uma mercadoria a ser reproduzida em massa e em larga escala para cumprir metas numéricas ao mesmo tempo em que aquece o mercado financeiro da construção civil.

Já os projetos de políticas públicas habitacionais que fomentaram a prática da Autogestão merecem espaço, em contrapartida aos programas citados, por terem tido como fundamento básico a promoção de unidades habitacionais considerando seus receptores, futuros moradores, como agentes ativos no processo de materialização das suas moradias a fim de se alcançar resultados mais satisfatórios em termos de qualidade projetual e melhoria social.

O Banco Nacional de Habitação – BNH O Banco Nacional de Habitação (BNH) foi o primeiro grande programa federal criado para tentar controlar o déficit habitacional que já atingia valores alarmantes. Sua criação data de 1964, juntamente à instauração do duro período de ditadura militar marcado, no âmbito da habitação, pela criação de uma estratégia de financiamento habitacional a longo prazo e pela produção massiva incorporada a um avanço tecnológico.

O BNH, buscou, com a construção de moradias, o atendimento de diversas necessidades políticas do período (estímulo à indústria da construção civil, equilíbrio social, setor financeiro, mercado imobiliário e criação de empregos). (Castilho, 2013, p. 105)

No entanto, controverso à sua criação, se conformou mais como um programa econômico de apoio às atividades da indústria da construção civil do que um programa efetivamente habitacional.

A produção do BNH ficou marcada pela replicação dos famosos “conjuntos carimbos”,4 amplamente implantados nas periferias dos centros urbanos, com destaque para a cidade de São Paulo, onde concentravam-se e concentram-se os maiores números de precariedade habitacional. Segundo Santo Amore (2015), a política habitacional autoritária do Banco Nacional da Habitação (BNH) beneficiou amplamente as classes médias e construiu conjuntos habitacionais populares de baixa qualidade em áreas periféricas.

(Santo Amore, 2015, p. 11)

4 Alusão à ideia de um único modelo de edificação ter sido replicado inúmeras vezes nos projetos habitacionais, como se fossem carimbos no território.

Tomemos a cidade de São Paulo como exemplo desse período. Apesar dos primeiros núcleos favelados terem surgido entre os anos 1940 e 1960 e desde essa época já terem sido tratados como uma “doença” da cidade, compostos por grupos marginais a serem removidos, é na década de 1970 que ocorre uma explosão desse modo de

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morar em São Paulo. E a política habitacional desse momento reafirmou-se, mais uma vez, pelo processo higienista de remoção do que denominavam “núcleos indesejáveis” articulado ao processo de provisão habitacional instituído através da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB-SP), com o direcionamento de parte das famílias para os núcleos habitacionais periféricos.

No entanto, esses empreendimentos caracterizavam-se primeiramente por sua exclusão territorial, alocados em imensos terrenos às margens do município (escolha sempre justificada pelos valores mais baixos desses imóveis, que possibilitava a viabilização financeira de grandes conjuntos habitacionais), sem acesso à infraestrutura e aos serviços da cidade. E, também, por unidades habitacionais sem qualidade projetual, pautadas na racionalização e redução dos custos da construção.

Os projetos não diferiam se alocados em uma cidade ou outra, para um público ou outro, em um estado ou outro. Eram como carimbos com unidades habitacionais universais que poderiam ser alocadas em larga escala por todo o país sem se levar em consideração nenhum aspecto cultural, regional, ambiental ou social do público ao qual se direcionavam.

A promoção desse modelo, em termos numéricos, foi surpreendente. Estima-se que, em 22 anos de vigência, o BNH tenha produzido cerca de 4,45 milhões de unidades habitacionais, significando o equivalente a 25% do total de unidades construídas em todo o país (Royer, 2009). No entanto, apenas 33,1% desses 4,45 milhões foram destinadas à população cuja renda salarial enquadrava-se entre 1 e 3 salários mínimos (SM) (Royer, 2009). Isto é, menos de 35% de toda sua produção foi voltada para a parcela populacional que compunha a quase totalidade do déficit habitacional do país.

Tal característica já aponta para o que e para quem veio a ser instaurado um programa de tamanha amplitude. Com isso, fica mais evidente o baixo interesse em se respeitar a heterogeneidade da problemática habitacional brasileira: Como apontam as principais críticas ao sistema, sua prática de cunho clientelista e tecnocrática acabou por atender aos interesses do setor imobiliário e de proprietários fundiários, favorecendo, sobretudo, as camadas de renda média e alta. Além disso, com a falência financeira do sistema, deixou um “rombo” nos cofres públicos. (Maricato, 1998 apud Shimbo, 2010, p.65)

O recorte feito aqui acerca do BNH foi bem sucinto a fim de ilustrar o modelo predominante de implantação do programa. É preciso pontuar, no entanto, que no período em que esteve vigente, algumas iniciativas incorporaram práticas populares de autoconstrução e programas de reurbanização de favelas – PROFILURB, PROMORAR e Projeto João de Barro.5 Porém os resultados desses programas foram bastante tímidos se comparados a outras linhas de financiamento do SFH devido ao baixo retorno financeiro e ao desinteresse da indústria da construção por tais empreendimentos.

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5 Para mais detalhes, ver Santo Amore, 2004.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

O que o BNH poderia ter nos ensinado é que a tentativa de solucionar o déficit habitacional com a produção em massa e desenfreada de unidades habitacionais, apoiada em uma lógica industrial, é falha e ineficiente ao passo que não promove acesso real à necessidade básica do habitar, que não se restringe a estar dentro de uma caixa de concreto.

Os estudos acerca do período de vigência do BNH são extensos e já estão esgotados6.

O que me cabe aqui, ao trazer à tona esse que foi o primeiro grande programa federal de provisão habitacional, é a reflexão acerca de uma continuidade de ações governamentais pautadas na lógica capitalista de fortalecimento do mercado, enrustidas, no entanto, de valores de defesa e busca de uma redução das desigualdades sociais.

6 Ver, entre outros, Castilho (2013); Drago (2011); Royer (2009).

O período de 1985 a 1989 significou uma perda de uma política habitacional na esfera nacional, que ficou restrita à aplicação de alguns programas alternativos e mais pontuais, somada à crise do SFH que resultou, em 1986, na extinção do BNH.

O Programa Minha Casa Minha Vida A extinção do Banco Nacional de Habitação não veio acompanhada de sua substituição por uma nova estrutura. Os anos 1980 e 1990 foram marcados por uma atuação mais local no âmbito da questão habitacional,7 e a falta de uma política federal forte voltada para a promoção de habitação alargou ainda mais o rombo habitacional no país, intensificando os loteamentos irregulares e a precariedade habitacional da população com renda inferior a 3 salários mínimos. Apenas na virada do século, com o início do governo Lula (2003-2010) é que o Estado passa a ter novamente um papel central como promotor do desenvolvimento urbano (Ferreira, 2012). Sete longos anos depois, em 2009, uma nova política habitacional de escala nacional seria implantada com o Programa Minha Casa Minha Vida.

A bibliografia e os estudos acerca do PMCMV8 são extensos, assim como não são poucos as(os) estudiosas(os) que esmiuçaram os aspectos positivos e os negativos do Programa. Aqui me cabe, no entanto, apenas trazer de modo conciso como a conformação deste que foi o maior programa habitacional do país até os dias atuais pouco se distinguiu da política anterior do BNH e reafirmou o papel que a moradia, e principalmente a moradia popular, tem assumido na nossa sociedade.

Não se pode questionar que o Programa Minha Casa Minha Vida teve papel fundamental na retomada das ações do Estado na questão da moradia, dessa vez ainda mais incisivo na problemática habitacional ao promover subsídios que chegavam a até 95% do valor total da moradia ofertada.9 (Barbon, 2018, p.110) A promessa era uma resposta à crise habitacional e à crise econômica norte-americana do subprime de 2008 ao mesmo tempo. A produção em massa de habitações em um curto espaço de tempo levaria um teto à milhões de famílias ao mesmo tempo em que sustentaria a economia do país.

POLÍTICA HABITACIONAL À BRASILEIRA

7 Descentralização institucionalizada pela Constituição de 1988.

8 Ver, entre outros, Barbon (2018); D’Ottaviano (org.) (2021); Lago (org.)

(2012); Rodriguez (2016); Rossetto Netto (2017); Santo Amore, Shimbo (2010), Rufino (orgs) (2015).

9 Para mais informações sobre as regras do Programa verificar a Lei nº 11.977/09 que dispõe sobre o Programa Habitacional específico do Governo Federal, intitulado “Minha Casa Minha Vida”.

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Se tratando de números, de fato, o PMCMV superou radicalmente a produção já impressionante do Banco Nacional da Habitação, contratando em apenas 5 anos quase 80% das unidades que o BNH financiou nos seus 22 anos de existência (Santo Amore, 2015). A meta para a primeira fase do Programa era a contratação de um milhão de unidades habitacionais. Ainda segundo Santo Amore: As apresentações oficiais que acompanharam o lançamento do programa se apoiavam nos dados quantitativos do déficit habitacional – àquela altura calculado em 7,2 milhões de moradias, 90% delas concentradas nas faixas de renda inferiores a três salários mínimos, 70% nas regiões Sudeste e Nordeste, quase 30% nas regiões Metropolitanas – para afirmar que o Programa o reduziria em 14%. Uma importante novidade em relação às práticas do BNH, que se caracterizou por desvios sistemáticos no atendimento das chamadas “demandas sociais”, era a preocupação com a produção para as rendas inferiores (...) com o aporte de 16 bilhões de reais em recursos da União (70% de todo o investimento). (Santo Amore, 2015, p.17) Para famílias da Faixa I, com renda de até 3 salários mínimos, a meta era construir 400 mil unidades, através do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), do PMCMV–Entidades, do Programa de Habitação Rural (PNHR) e do Programa Oferta Pública de Recursos.

Para a Faixa II, famílias com renda bruta de até 06 salários mínimos, a meta era construir 400 mil unidades, por intermédio do Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) e do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). E para a Faixa de renda III, o programa visa atender famílias com renda bruta de até 10 salários mínimos, com a meta de construir 200 mil unidades habitacionais. (Rodriguez, 2016, p. 51)

Tal meta foi cumprida em apenas dois anos causando uma boa repercussão na opinião pública, o que levou à segunda fase do Programa com a promessa de contratação de mais dois milhões de novas unidades habitacionais. Essa expressiva produção imobiliária consolidou a escala industrial da produção habitacional no país e respondeu positivamente aos anseios da indústria da construção civil.

No entanto, apesar da intensa produção, não podemos comemorar o PMCMV como uma vitória na redução das desigualdades sociais ou mesmo do déficit habitacional do país. Isso porque o Programa se mostrou ser mais uma estratégia de mercado do que uma estratégia de interesse social, ao passo que colocou o mercado imobiliário privado à frente da produção de moradias populares em escala nacional.

O atual Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) em nada converge ao entendimento das diversas situações que conformam atualmente os processos de habitar o espaço urbano brasileiro. Ao contrário, o PMCMV foi criado sob o argumento da redução do déficit habitacional, porém, em prol da urgência de se salvar a indústria da construção civil brasileira, impactada pela crise internacional de 2008. (Nascimento, 2015, p. 16)

O resultado, ao se priorizar os interesses do mercado em prol dos interesses sociais, acabou sendo a repetição dos mesmos erros do BNH: baixa qualidade arquitetônica

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para as moradias, produção urbana concentrada nas franjas das cidades devido aos baixos custos dos lotes periféricos, muitas vezes a quilômetros de distância do início do tecido urbano, alocados sem infraestrutura básica, distantes das ofertas de empregos, dos equipamentos públicos, etc.10 O governo, atendendo à demanda do empresariado da construção civil, priorizou a construção de casas populares feitas diretamente por construtoras, desconsiderando o papel dos governos municipais e estaduais na produção do ambiente construído e na implementação de uma política habitacional mais ampla, que inclua produção de novas moradias, urbanização, regularização fundiária e planejamento urbano. (Ferreira, 2012, p. 129)

10 Resultados analisados por, entre outros, Santo Amore, Shimbo and Rufino (orgs) (2015); (Cardoso, Amorim Aragão and Jaenisch, 2017).

A distância entre o discurso empreendido pelo PMCMV e o que tem sido realizado, de fato, demonstra a complexidade da questão habitacional e indica que os interesses econômicos e políticos sobressaem diante das necessidades habitacionais dos moradores de baixa renda. (Nascimento, 2015, p.16) O Programa foi concebido sobretudo para as grandes empresas construtoras, em especial dentro do PMCMV-Faixa 1, viabilizando seus ganhos através da produção de grandes conjuntos habitacionais (ganhos de escala) nas periferias das grandes cidades (captura da valorização na transformação de terra rural em urbana), por atuarem com valores maiores para produção. Tipologias padrão foram sistematicamente replicadas, minimizando custos de projeto e ampliando os ganhos de escala e fundiários. (Netto & D’Ottaviano, 2021, p.185)

Desse modo, o PMCMV, ao priorizar o campo econômico, deixou um importante aspecto de lado: o habitar. Um programa de tamanha escala, implantado amplamente por todo o território brasileiro não podia ter ignorado o fator regional nem tampouco o fator cultural das populações contempladas. O Brasil não é um território homogêneo e mais uma vez o déficit habitacional foi tratado unicamente como números, e a moradia apenas como teto. Não houve uma estratégia sólida do Programa de contemplação das diferenças regionais ou das variáveis socioculturais que poderiam, e que sem dúvida iriam, inferir em demandas distintas de projetos.

O cadastro e o processo de seleção de beneficiários, feito pelas prefeituras municipais, transformam pessoas em números de forma a condizer com o “déficit” que o programa tenta reduzir. Nessa dinâmica, não existe a abordagem das reais necessidades habitacionais daqueles que precisam ser abrigados. Uma vez dada essa “codificação” pessoa-número, o foco, tanto do Poder Público quanto das construtoras, passam a ser (meramente) quantitativo: ter uma produção de unidades que determina a realização do lucro da iniciativa privada e que cumpre as metas estipuladas pelo campo sociopolítico. No quebra-cabeça gerado pelas regras nacionais e municipais, imposto à esfera técnica do Poder Municipal pelo caráter gerencial do PMCMV, as famílias “candidatas” são reduzidas a números construídos pelas maiores ou menores condições de carências ou de deficiências, “enfileiradas” à espera da moradia (Nascimento & Bittencourt, 2015, p. 62).

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Isso fica muito claro no ANEXO II - ESPECIFICAÇÕES MÍNIMAS DAS UNIDADES HABITACIONAIS da Portaria nº 269, de 22 de março de 201711 que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração de projetos e estabelece as especificações técnicas mínimas da unidade habitacional e as especificações urbanísticas dos empreendimentos destinados à aquisição e alienação com recursos advindos da integralização de cotas no Fundo de Arrendamento Residencial - FAR, e contratação de operações com recursos transferidos ao Fundo de Desenvolvimento Social - FDS, no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV (Ministério das Cidades, 2017), ou seja, acerca dos projetos que contemplavam justamente a faixa de renda inferior a 3 salários mínimos, que representava 80% do déficit habitacional em 2010.

Tais especificações são completamente genéricas, com parâmetros de qualidade ambiental sem distinção territorial e sem considerar aspectos mínimos das variantes culturais.12 Além disso, estabeleciam restrições quanto ao uso de materiais e, por conseguinte, quanto às técnicas construtivas, que deveriam estar qualificados por normas técnicas reconhecidas.13 É importante pontuar que o processo de conformação de tais normas é profundamente influenciado pela indústria da construção civil, além de se fundamentar muito mais em uma cultura construtiva do norte-global do que propriamente na cultura habitacional brasileira.

Em entrevista realizada em 2020 Evaniza Rodrigues exemplifica como, na prática, essas diferenças regionais e culturais não são consideradas nos programas habitacionais

11 Essa foi a primeira portaria referente ao PMCMV que dispôs em seus anexos as especificações mínimas para a elaboração de projetos.

12 Para detalhes das especificações, acessar o texto completo da Portaria nº269 de março de 2017, disponível em www.in.gov.br/materia/-/asset_ publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/ id/20122352/do1-2017-03-24-portaria-n269-de-22-de-marco-de-2017-20122235 13 O mesmo se verifica no Código de Práticas de Engenharia para Habitação do Programa, documento enviado à construtora / EO quando efetivada a contratação.

(...)o que acontecia, é que você tinha coisas divergentes com a especificação ou por aspectos culturais, por exemplo, deu um trabalho pra tirar o aquecedor solar na região Norte e Nordeste, né, como diria minha amiga Cristiane de Manaus, né, ‘esse negócio aí só serve pra pegar Curumim’, né, queimar os meninos, queimar os indígenas, né, porque ninguém toma banho quente, né. Você precisa é de um refrigerador de água. Então a norma era que tinha que ter aquecedor de água e você não conseguia demonstrar, né, que se tinha necessidade de aspectos regionais, ou de aspectos culturais mesmo (...).

(Rodrigues, 2020)

Desse modo, fica evidente que o programa não só não se mostrou satisfatório na construção de um habitat coerente e integrado ao seu meio para solucionar o déficit habitacional como assumiu ainda um forte papel na manutenção da desvalorização da cultura dos saberes populares do Brasil e das(os) brasileiras(os).

Mas, e no campo?

Pouco se fala, nas discussões acadêmicas sobre o assunto, a respeito das políticas públicas de habitações rurais. Em parte, isso decorre justamente da inexistência de programas específicos para a habitação rural até o início da gestão Lula, quando a luta pelo desenvolvimento do campo começou a ganhar força. Mas por outro lado,

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esse silêncio expressa, do mesmo modo, o pouco caso com que a população camponesa é tratada também no âmbito acadêmico.

A gestão petista teve grande importância para o cenário rural e estabeleceu um amplo diálogo com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em 2003 foi lançado o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), primeiro programa exclusivo dedicado à habitação rural, que visava atender famílias com renda entre 1 e 3 salários mínimos exigindo contrapartida dos beneficiários. A meta era de atender 6.300 pequenos agricultores e beneficiários do programa de Reforma Agrária. (Rodriguez, 2016, p. 50)

Uma das modalidades do PNHR era o PSH Rural – Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social Rural que abrangia agricultores com renda de até R$ 465 mensais como público alvo, tendo como fonte de recursos o Banco Central do Brasil (RODRIGUEZ, 2016, p. 50). Uma das principais vantagens do programa era a possibilidade do regime de mutirão para a construção das casas, a utilização de materiais não convencionais e a possibilidade de discussão do projeto pelas famílias. (Rodriguez, 2016, p. 44) Após vários anos da implementação do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), pode se perceber uma preocupação na redução do déficit habitacional no campo, com uma meta física de 120.000 unidades habitacionais, das quais 70.000 correspondem ao Programa Nacional de Reforma Agraria (PNRA). Isto pode se considerar como um avanço, porém na maioria dos assentamentos rurais do país verificam-se soluções que nem sempre atendem de forma suficiente os condicionantes básicos e a organização das famílias. Por outro lado, no que se refere especificamente às moradias –no aspecto arquitetônico e tecnológico–, são construídas habitações a partir de um projeto padrão com área mínima, como alternativa para a redução de custos de produção das unidades. (Rodriguez, 2016, p. 11)

A formatação original do PNHR que incluía o PSH-Rural durou até 2009 quando foi incluído no PMCMV como um subprograma. O funcionamento do subprograma seguia a mesma lógica da divisão por faixas de renda e determinava a organização dos beneficiários em grupos de no mínimo 4 e no máximo 50 participantes, representados por uma Entidade Organizadora – EO. O diferencial desse programa é a obrigatoriedade da CRE – Comissão de Representantes, e do Trabalho Social – TS (também presentes na modalidade MCMV-Entidades que será abordada mais à frente). À CRE cabe a gestão dos recursos financeiros, a prestação de contas aos demais beneficiários, e a coordenação do conjunto da obra (Silva, 2014, p. 96 apud Rodriguez, 2016, p. 52).

Um ponto muito importante para o campo da arquitetura a respeito dessa modalidade é a presença da Assistência Técnica que deveria ser prestada pela EO através de um(a) responsável técnico(a) das obras. Apesar da instituição da Lei nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008, que “Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social”,14

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14 Trecho extraído diretamente da LEI Nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008.

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praticamente não temos no país programas que executam esse direito no âmbito municipal ou estadual, tornando quase impossível o acesso a esse serviço de forma gratuita por parte dos beneficiários do PNRH. Para tal, o Programa previa o valor de R$600,00 como forma de viabilização desse serviço para qualquer que fosse a região do país. É preciso considerar que a remuneração profissional sofre expressiva variação de região para região como também o fato de que essa verba estava longe de se fazer suficiente para a contratação de um serviço como esse. Mas, além disso, tinha ainda outro fator determinante para a manutenção da baixa qualidade projetual e da desconexão sociocultural, também marcantes das habitações produzidas pelo braço rural do PMCMV - PNRH: o fato de que a Caixa, operadora do programa, só liberava o recurso após a aprovação dos projetos, “inviabilizando a elaboração de projetos habitacionais adequados às necessidades dos assentados, incentivando assim a reprodução de um mesmo modelo de habitação social urbana nos assentamentos rurais.”(Rodriguez, 2016, p.56, grifo meu) O mais impressionante é a forma como o PMCMV e seu subprograma rural PNRH se estabelecem do mesmo modo como uma política com preocupações sociais reais, conscientes e bem estabelecidas, ao passo que o que é executado não condiz com o que se é proposto. Como já foi posto anteriormente, há uma distância entre o discurso e a prática, e essa distância se fundamenta desde a formatação dos documentos oficiais de regularização dos programas, sempre muito genéricos.

A falta de qualidade das habitações rurais produzidas, por exemplo, e a desconexão dessas com seu meio, resultando em produções padronizadas em todos os cantos do país, não era uma questão estranha e nem mesmo ignorada pelos documentos.

Pela Portaria Nº 194, de 30 de abril de 2013, do Ministério das Cidades, por exemplo, estabeleceram-se várias diretrizes com o objetivo de se assegurar a qualidade das habitações rurais. Merecem destaque: Art. 2º - Constituem diretrizes do PNHR: II - Os projetos arquitetônicos deverão apresentar compatibilidade com as características regionais, locais, climáticas e culturais da localidade, e ainda prever a ampliação futura da unidade habitacional. (...) (Ministério das Cidades, 2013, grifo meu) ANEXO I – Capítulo VII – DO PROJETO DO TRABALHO SOCIAL E DO SEU DESENVOLVIMENTO: 14. Os Projetos de Trabalho Social em empreendimentos voltados ao atendimento de comunidades quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, indígenas e demais comunidades tradicionais deverão considerar as peculiaridades de cada contexto, respeitando as tradições, costumes e valores locais que expressem a diversidade cultural existente e assegurando a interlocução com os agentes encarregados das políticas públicas voltadas para esses segmentos populacionais, tais como a Fundação Nacional do Índio - FUNAI, os Centros de Referência do Negro e demais instituições afins. (...) (Ministério das Cidades, 2013, grifo meu)

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No entanto, essas “diretrizes” não estavam acompanhadas de instrumentos que viabilizassem a compatibilização dos projetos com seus meios regionais e socioculturais. RODRIGUEZ, 2016, enfatiza tal aspecto ao notar que o documento citado acima ainda assinala como observação final, a compatibilidade que deverão apresentar os projetos arquitetônicos com as características regionais, locais, climáticas e culturais da localidade / comunidade. Mas, para o autor, Este último ponto é apresentado como uma observação, sem estabelecer diretrizes ou orientações claras sobre a forma de alcançar este objetivo, ficando assim a cargo dos empreendedores a vontade ou não de inserir estes conceitos nos projetos habitacionais. (Rodriguez, 2016, p. 57)

Portanto, repetiu-se no campo a mesma lógica identificada anteriormente de falta de direcionamentos mais específicos e plurais que pudessem atender demandas naturalmente distintas em um país como o nosso. Mas ainda mais grave, a política habitacional rural ignorou quase por completo as especificidades do habitar o campo, reproduzindo de maneira hostil e dessensibilizada parâmetros e vícios urbanos em projetos padronizados.

Em termos de desenvolvimento territorial, segundo Silva (2014), ainda falta a articulação do programa habitacional à integração rural-urbana, para que as áreas rurais deixem de ser tratadas como estoque de área a ser urbanizada, preservando e incentivando suas características sócio-territoriais. E por fim, vale a pena mencionar que a questão do contexto e do reconhecimento da diversidade do país requer maior atenção, partindo do pressuposto de que um programa de habitação rural não pode padronizar seus projetos, perante a enorme quantidade de costumes, padrões culturais, que variam conforme a região. (Rodriguez, 2016, p. 58, grifo meu)

As políticas de autogestão: o braço tímido que buscou reivindicar o papel do indivíduo na produção da sua moradia As modalidades autogestionárias de produção da moradia popular podem se originar nas próprias famílias atuando individualmente, em grupos organizados informais, em empresas sociais como cooperativas e associações de moradores, ou em organizações não-governamentais, sindicatos profissionais e inclusive instituições filantrópicas que atendem a emergências e grupos sociais vulneráveis. Tais modalidades incluem desde a autoprodução individual espontânea de moradia até a coletiva, que implica um alto nível organizativo dos participantes e, em muitos casos, processos complexos de produção e gestão de componentes do habitat. (Ortiz Flores, 2006, pp. 3-4) A autogestão como política habitacional não conseguiu se destacar em termos quantitativos no Brasil mas foi e tem sido fundamental no estabelecimento de uma crítica à lógica clientelista a qual os programas citados anteriormente adotaram e provavelmente o Casa Verde e Amarela, lançado em 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro, continuará adotando.

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A origem dos programas autogestionários na habitação está fortemente ligada à crítica da mercantilização da moradia e da cidade. (...) A autogestão surge como a oportunidade de um determinado grupo traçar suas próprias escolhas, definir seu rumo. (Ferreira, 2012, p. 181)

As iniciativas autogestionárias partem da premissa da importância da inclusão dos futuros moradores nas tomadas de decisão da produção da sua moradia e são defendidas como um caminho mais humano na produção do habitat para a redução do déficit habitacional, uma vez que passam a lidar com indivíduos reais e detentores de voz e não mais apenas com os números das estatísticas.

Tais iniciativas tiveram sua origem atrelada às ações pioneiras de mutirão e de autoconstrução que se tornaram um caminho viável para a produção de moradias em um momento lacunoso no âmbito federal e de baixos repasses às instâncias inferiores.

Frente às eleições diretas para os governos estaduais e municipais em 1982, à falta de recursos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e à pressão social por moradia, vários governantes buscaram opções de política de baixo custo como resposta. Desta forma, segundo Moreira (2009), surgem as iniciativas pioneiras de produção habitacional por meio de mutirão, financiadas pelos governos: (i) em São Paulo (governo Franco Montoro): Vila Nova Cachoeirinha (1982), Recanto da Alegria (1983) e Vila Comunitária de São Bernardo (1985); (ii) em Goiás (governo Íris Rezende): Vila Mutirão (1983) e o programa Mutirão da Moradia (1983-1986), que envolveu a construção de 5112 unidades habitacionais e 1321 lotes urbanizados (Barros, 2011). Estas iniciativas colocaram na ordem do dia a possibilidade das famílias beneficiárias decidirem sobre as várias etapas da obra, desde o projeto à construção, participando intensamente do processo.(Ferreira, 2012, p. 119)

Dessas iniciativas do fim do século passado, podemos dizer que foi em São Paulo onde borbulharam projetos pilotos influenciados fortemente pelas cooperativas uruguaias viabilizados com o auxílio da iniciativa de jovens profissionais organizados nas recém idealizadas Assessorias Técnicas e Sociais. Como nosso foco extravasa e muito os feitos realizados no estado paulista, passarei pelos três programas lançados especificamente na pauta da autogestão até então em escala nacional: o primeiro, o Programa Crédito Solidário (PCS) que utilizou recursos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) que não vinham sendo utilizados. O segundo programa foi a Ação de Produção Social da Moradia (APSM), lançado em 2008 após a modificação da Lei do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (através da Lei 11.578/2007), que viabilizou o acesso das associações e cooperativas ao Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). Este programa, que tem sua origem numa proposta inicial do Movimento Nacional de Reforma Urbana, ficou apenas no plano das ideias, por isso não entrarei em detalhes. O terceiro programa, lançado em 2009 e extinto em 2019 pelo governo Bolsonaro, foi a modalidade Entidades do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV-E), voltada para a autogestão, que resultou da articulação dos movimentos de moradia junto à Casa Civil quando do momento de lançamento do PMCMV. (Ferreira, 2012, p. 140)

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O Programa Crédito Solidário financiou, entre 2005 e 2011, 341 empreendimentos em 21 estados da federação, totalizando 21.695 unidades habitacionais (UHs) (Naime, 2012, p. 74) e representou a possibilidade concreta de ampliação da autogestão a nível nacional. (D’Ottaviano, 2021, p. 40) Drago (2011) afirma em sua dissertação, com base em Moreira (2009), que a construção da política envolveu por um lado “velhas ideias”, visto que sua criação estava vinculada a uma proposta gestada no início dos anos 1990, quando se criou um Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), mas que por outro lado envolveu “velhas ideias em outro contexto”, com a criação do Ministério das Cidades, em 2003, associada à proposição de uma nova relação entre organizações sociais e Estado. (Drago, 2011, p. 46) Muito distante dos resultados obtidos pelas inciativas paulistas, quase sempre assistidas por equipe técnica, em intercâmbio intenso com as experiências uruguaias e com insistente preocupação em torno da qualidade dos projetos executados, o PCS acabou por produzir “mais do mesmo”. O pouco recurso disponível unido à baixa experiência cooperativista e técnica dos beneficiários, além das inúmeras dificuldades relativas ao cumprimento da estrutura do Programa, levaram o PCS a resultados bem pouco satisfatórios quanto à qualidade esperada dos projetos.

Os projetos de habitação desenvolvidos no âmbito do Programa Crédito Solidário se mostraram, no geral, pobres em termos da qualidade dos espaços criados. Os espaços de convivência ensejam problemas para os futuros moradores, já que parecem não contribuir para a integração física e social dos moradores. O problema aparece na perspectiva dos técnicos da CEF no RS, estado onde o programa teve alto desempenho na contratação de propostas. (...)

De uma maneira geral, observou-se que as cooperativas e entidades inscritas no Programa Crédito Solidário, mais notadamente em seus primeiros anos de execução, não acumulavam experiência na elaboração de projetos e na produção habitacional propriamente. Tratava-se de grupos que buscavam sua moradia, vinculados ou não aos tradicionais movimentos de luta por moradia, já existentes. As primeiras levas de projetos aprovados, conforme descreve o técnico da CEF, não tinham viabilidade técnica para execução. (Naime, 2012, p. 95)

Drago explica que a forma como se consolidou o PCS foi coerente com a forma como havia sido pensado pelos seus atores responsáveis, menos como política de enfrentamento do déficit e mais como uma abertura para novas possibilidades. E que se tratavam de produções muito mais “artesanais” do que institucionalizadas, como ocorreu em São Paulo (Drago, 2011, p. 47). O autor ainda cita a autora Jéssica Naime (2009) para manifestar de modo conclusivo que o PCS acabou por apresentar “dupla paternidade”, por ter sido fruto de reivindicações sociais em torno da habitação associativa e da autogestão ao mesmo tempo em que seu objetivo político era, na verdade, dar um destino aos recursos acumulados pelo FDS geridos pela CEF – cujos técnicos, os responsáveis pela concepção, normatização e formato final do PCS, desconheciam as reivindicações das organizações sociais acerca da produção associativa da habitação e da autogestão. (Drago, 2011, p. 47)

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Mais uma vez nos deparamos com uma política habitacional cujos objetivos econômicos se sobressaíram aos objetivos sociais. Por mais que o PCS não tivesse como finalidade inicial qualquer redução do déficit habitacional, como apontaram seus operadores, era a primeira inciativa a nível nacional direcionada a priorizar a(o) beneficiária(o) e incluí-la(o) nas decisões projetuais. Tal anseio acabou outra vez se deparando com uma estrutura que inviabilizou grandes ganhos na qualidade da produção do habitat popular e acabou pouco se distinguindo das produções privadas do mesmo período.

No entanto, apesar de não ter atendido às expectativas projetuais que as experiências autogestionárias buscavam implantar, Naime (2012) esclarece que O que se identifica é que, no caso dos empreendimentos realizados pelas entidades, a escassez de recursos leva a projetos e a soluções construtivas mais pobres – mas o que também não é uma regra, como se observa nos empreendimentos realizados pela UNMP em SP; E, de outro lado, a experiência acumulada das construtoras reflete em melhor gestão de materiais e mão-de-obra, o que significa maior eficiência na utilização dos recursos. Ainda assim, a despeito da vantagem comparativa que levam, os projetos desenvolvidos pelas construtoras não são significativamente melhores, tendo sido observada a reprodução do padrão arquitetônico do BNH (Banco Nacional da Habitação). (Naime, 2012, p. 97, grifo meu)

A partir de 2009, todos os programas habitacionais vigentes passaram a ser incorporados pelo PMCMV. O mesmo ocorreu com o PCS cujo formato acabou sendo suplantado pelo Minha Casa Minha Vida Entidades – braço tímido do novo programa federal que previa autonomia dos movimentos sociais de luta por moradia organizados em torno da necessidade urgente de se repensar a política habitacional via autogestão.

Como o PCS, o PMCMV-Entidades destinava-se ao atendimento habitacional de famílias de baixa renda organizadas em associações ou cooperativas habitacionais, entidades sem fins lucrativos, com experiência comprovada na área e devidamente habilitadas pelo Ministério das Cidades. Dentre as modalidades do PMCMV-Entidades destacavam-se: a Compra Antecipada, para viabilização da compra do terreno e pagamento da assistência técnica; e Construção ou Requalificação de prédio habitacional. Seus recursos (não onerosos) eram oriundos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), provenientes do Orçamento Geral da União (OGU) (Rossetto Netto & D’Ottaviano, 2019). Assim, o PMCMV-Entidades incorporava ao PMCMV uma modalidade direcionada à autogestão, com características muito semelhantes ao PCS. De acordo com o desenho do Programa, foram destinados ao Entidades apenas 2% do total de recursos direcionados ao PMCMV. (D’Ottaviano, 2021, p. 45)

É de imensa importância ressaltar que essa modalidade do PMCMV foi uma conquista social de intensa pressão e mobilização dos movimentos sociais na defesa de uma mudança de paradigma no que tange as ações governamentais até então, que se mostraram mais preocupadas com a economia do que de fato com a resolução do déficit habitacional. Tal luta, além da pauta do direito à cidade, incorpora também o direito à moradia digna, que não se resume à construção de um teto e precisa ser, mais

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do que nunca, reformulada em prol das necessidades dos(as) usuários(as). D’Ottaviano (2021), ao tratar disso, se apoia na dissertação de mestrado de Evaniza Rodrigues (2013), liderança da União Nacional por Moradia Popular (UNMP), que afirma que: A proposta autogestionária propõe a melhoria das capacidades econômica, social e política dos setores populares. Além disso, a ação autogestionária empodera a comunidade, qualificando sua interlocução e a prepara para os enfrentamentos com o poder público.

A definição de autogestão na área habitacional refere-se a ações em que a produção de moradias, ou a urbanização de uma área, ocorra com o controle dos recursos públicos e de obra pelos movimentos populares, pelas associações e cooperativas. (...) Essa forma de atuação consiste não apenas na construção de moradias ou na urbanização, mas tem como pano de fundo o questionamento das estruturas sociais e econômicas, das injustiças sociais, como parte integrante do sistema econômico e da preponderância dada ao setor privado capitalista na produção do espaço construído e da cidade. (...) (Rodrigues, 2013, p. 25 apud D’Ottaviano, 2021, p. 35, grifo meu)

Em termos quantitativos, a modalidade Entidades do PMCMV contratou 78.599 unidades habitacionais, representando um total de 1,36% do total de UHs contratadas em todo o período de vigência do programa. Já o valor contratado, previsto para 2% do total de recursos, representou, na prática, apenas 0,70% (D’Ottaviano, 2021, p. 51).

Apesar da grande conquista social que essa modalidade representou, os números afirmam um papel bem pouco significativo se comparado ao Programa como um todo.15 No entanto, dentro do escopo do PMCMV-E, há um “detalhe” que interessa muito para este trabalho. Se por um lado, o Entidades foi um escape da produção habitacional capitalista hegemônica, conquista das organizações sociais, por outro, sua estrutura ainda evidencia os desafios que a luta por moradias que protagonizam os anseios populares ainda terá que assumir. Segundo as regras do Programa, a Entidade interessada teria a possibilidade de “escolha” entre quatro regimes distintos de contratação: a autogestão via autoconstrução; a autogestão por mutirão; a autogestão por administração direta e; a cogestão por empreitada global da obra (junto a uma empresa construtora).

15 O detalhamento dessa produção pode ser verificado em Rossetto Netto, A. (2017), Rossetto Netto, A. & D’Ottaviano, C. (2019), Rodrigues, E. L. (2013), D’Ottaviano, C. (2019).

A grande questão foi, no entanto, uma diferença fundamental entre as opções de autogestão e a opção de empreitada global: para todas as opções ligadas à autogestão havia uma redução de 8% no valor máximo do financiamento. Apenas na opção pelo regime de empreitada global era possível solicitar o valor máximo do financiamento definido pelo Programa. (D’Ottaviano, 2021, p. 48; Rossetto Netto & D’ottaviano, 2021). D’Ottaviano explica que: O regime de construção por empreitada global, no entanto, representa a contratação de empresas, para a execução total do empreendimento. Ou seja, a empreitada global caminha na direção oposta dos exemplos que originaram os programas habitacionais autogestionários. (D’Ottaviano, 2021, p. 48)

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E, citando outra vez Evaniza Rodrigues (2013), afirma ainda que esse desenho induzia a contratação dos empreendimentos via empreitada global / construtoras em detrimento de práticas autogestionárias. (Rodrigues, 2103, p. 80 apud D’Ottaviano, 2021, p. 48) Além disso, um outro ponto importante da conformação da proposta dizia respeito à contratação de assessorias técnicas para as EOs. Segundo Evaniza Rodrigues e Edilson Mineiro: A relação entidade/assessoria técnica constitui, historicamente, a essência da proposta autogestionária. Isso permite conceber a moradia não apenas como uma mercadoria a ser consumida, mas como uma forma de inclusão dos cidadãos nos processos econômicos, sociais e políticos. (Mineiro & Rodrigues, 2012, p. 39, grifo meu)

No entanto, os repasses previstos pela Caixa também não eram feitos de imediato, e sim por etapas, suscetíveis à aprovação via vistorias regulares, o que pressupunha das EOs uma reserva financeira para contratação da assistência técnica e do início das obras. Segundo Rovati (2015) isso significava que a equipe técnica ficaria um determinado tempo trabalhando sem receber honorários e ainda com a possibilidade do projeto ser barrado pela Caixa. E se aprovado, o percentual destinado para a equipe era de apenas 3% do valor total financiado. (Rovati, 2015, p. 11) Tal conformação acarretou em uma enorme dificuldade de acesso ao programa pelas Entidades Organizadas que, apesar de muito bem estruturadas internamente, não possuíam fundos financeiros suficientes para a realização das obras nem capacidade técnica suficiente para se responsabilizarem por elas. Muitas EOs acabaram tendo um acúmulo desproporcional de trabalho para desempenhar questões técnicas e administrativas que fugiam do seu âmbito de atuação original e outras tiveram que se ajustar ao modelo de cogestão via empreitada global. (Rossetto Netto, 2017) Deste modo, as avaliações do programa pelas estudiosas e estudiosos da área vêm demonstrando avanços e gargalos,16 sendo bem heterogêneos os resultados verificados quanto à qualidade projetual das unidades, a depender, principalmente, da localização dos empreendimentos. Lago (2012) afirma que os avanços qualitativos e quantitativos da produção por autogestão vinham apresentando, à época, diferenças significativas entre as metrópoles de São Paulo e Porto Alegre, em função (i) da base social, das formas de organização e da capacidade de mobilização das associações (comunitária ou sindical), (ii) da presença e do perfil das assessorias técnicas e (iii) da atuação das instâncias governamentais locais envolvidas com a política habitacional (LAGO, 2012, p. 196). E que tais diferenças regionais eram evidenciadas pela pauta de prioridades dos movimentos em São Paulo: a qualidade da moradia, no que se refere ao padrão estético e construtivo, à área útil da habitação e às áreas coletivas. (Lago, 2012, p. 198)

16 Ver Barros, (2019); Cardoso et. al., (2017); D’Ottaviano, (2019); Ferreira, (2014); Lago, (2012); Moreira, (2009); Rodrigues, (2013); Rossetto Netto, (2017); e Santo Amore et. al., (2015)

A autora reforça ainda a importância da voz dos contemplados nas tomadas de decisões para os resultados qualitativos das produções habitacionais ao afirmar que as

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discussões e decisões coletivas em todas as etapas da empreitada ampliam o campo de alternativas em todas as dimensões. (Lago, 2012, p. 198) E traz o depoimento da Adriana, coordenadora do mutirão Colinas da Oeste, na zona oeste de São Paulo: Então a assessoria fazia apresentação num datashow de todas aquelas obras que eles já fizeram pro movimento e a gente ficava olhando ali o que era legal e o que não era... A gente queria uma varandinha. E aí eles iam colocando e sempre orientando: ‘olha isso é possível...

Uma piscina não é, não tem recurso pra isso.. Ah tá. Um playground tem condição. Uma quadra de esporte não dá, porque não tem terra suficiente pra fazer’. Então assim: a gente falava, pensava, sonhava e eles diziam pra gente se conseguiam colocar ou não no projeto.

E no final saiu aí esse desenho gostoso, maravilhoso... (Entrevista com Adriana, em junho de 2010 apud Lago, 2012, p. 198)

Para Lago, a qualidade do material de construção, como janelas de alumínio, e a introdução de sacadas e cores fortes nas fachadas, por exemplo, são valorizadas pelos moradores, garantido distinção e status na relação com o padrão construtivo do entorno. Em muitas das experiências analisadas ficou clara a busca dos moradores em diferenciarem suas habitações do padrão típico dos conjuntos estatais. (Lago, 2012, p. 198) Por fim, vale ainda destacar um gargalo importante: a adoção de soluções de mercado para a modalidade Entidades. Rossetto Netto e D’Ottaviano (2021) afirmam que A reprodução de soluções de mercado, como a criação de condomínios, modelo usual em empreendimentos para a classe média, foi outro problema apontado nas análises e estudos do PMCMV (Cardoso 2013; Santo Amore et. al.; Tatagiba, 2015). No caso do PMCMV-Faixa 1, o modelo de condomínio, onde o custo de água, luz, limpeza e manutenção das áreas comuns fica a cargo dos moradores, gera despesa excessiva para as famílias, que normalmente supera as parcelas do financiamento habitacional previstas pelo Programa.

(Rossetto Netto & D’Ottaviano, 2021, p. 192)

Tal constatação reforça a urgente necessidade de se pensar soluções plurais para pessoas plurais, comunidades plurais, classes plurais, culturas plurais, etc. Isso não significa dizer que as soluções hegemônicas de mercado não são eficazes, elas podem ser muito eficazes em um determinado contexto, mas completamente ineficazes em outros.

Apesar desse balanço díspar e dos desafios que ainda se colocam à produção autogestionária, temos alguns projetos paradigmáticos17 que conseguiram driblar os percalços do programa e alcançar o êxito pretendido, como foi o caso dos empreendimentos MCMV-E Marisa Letícia e Dandara,18 ambos localizados na zona central de São Paulo. D’Ottaviano destaca que a importância desses projetos é justamente a constatação de que é, sim, possível a produção de moradia com qualidade para a população de baixa renda (D’Ottaviano, 2021, p. 65). E ressalta ainda a importância do subsídio propiciado pelo PMCMV que possibilitou o acesso ao Programa de famílias até então sem acesso a programas habitacionais. Segundo ela,

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17 Alguns exemplos estão detalhados livro Habitação, Autogestão & Cidade (D’Ottaviano, 2021).

18 Para mais detalhes, ver Fiúza e Lima (2021): Formas de moradia e a Unificação das Lutas de Cortiço e Moradia (ULCM) na cidade de São Paulo (Fiúza e Lima, 2021)

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a crítica ao MCMV-Entidades deve ser feita de forma a contribuir para a consolidação de programas autogestionários, apontando seus problemas, mas também suas potencialidades. (D’Ottaviano, 2021, p. 65)

Não há motivos para se esquivar das críticas ao modelo, mas é preciso ressaltar os ganhos e os desafios futuros.

Murro em ponta de faca Pode-se concluir, pelo que foi apresentado até aqui, que estamos há mais de meio século repetindo os erros e os caminhos escolhidos pelo Estado para a redução do déficit habitacional do nosso país. Dois programas habitacionais de escalas gigantescas são a prova real de que o modelo hegemônico de provisão habitacional popular não tem colhido os frutos prometidos já que o déficit habitacional nacional, em 2018, se mantinha num patamar superior a 6 milhões de unidades. (Rossetto Netto e D’Ottaviano, 2021, p. 212) Mas as consequências são ainda mais profundas, tanto relativas aos gastos orçamentários a se perder de vista quanto, principalmente, à moldagem da cultura habitacional popular aos parâmetros do mercado reforçando a desvalorização da cultura nacional e a manutenção da colonização do nosso território físico, imaterial e afetivo.

Os mecanismos públicos e privados estabelecidos para o enfrentamento numérico da questão da moradia vêm historicamente se ancorando e simultaneamente fortalecendo: (1) a predeterminação do modo de morar dos trabalhadores, apoiada na racionalização do espaço mínimo; (2) a mercantilização da casa própria, associada à produtividade lucrativa da indústria da construção; (3) a expansão do tecido urbano por meio da periferização, assentada em estruturas urbanas predeterminadas e nos interesses da especulação imobiliária; (4) a negação aos trabalhadores de baixa renda do acesso à terra, aos serviços urbanos, aos espaços públicos e ao crédito, pensados além do assistencialismo ou da doação de produtos; e (5) a exclusão dos cidadãos dos processos de decisão referentes ao espaço urbano (Morado Nascimento, Tostes, 2011 apud Nascimento, 2015, p. 16, grifo meu)

A reprodução de velhos modelos em novas embalagens nos aponta que o morar dos(as) brasileiros(as) têm valido muito menos que os interesses mercantis, e que esse morar vem sendo reduzido a invólucros pré-concebidos e replicáveis anulando assim o seu valor (prestígio, qualidade, relevância ou importância) em função do seu preço. É preciso, mais do que nunca, ampliar a crítica sobre o que estamos produzindo e como estamos produzindo. Tratar moradias como mercadoria é resolver o problema de quem, afinal?

A repetição de plantas e sistemas construtivos idênticos por todo o país, sem considerar as soluções locais, transforma a moradia em um objeto técnico “tipo”, (Rodriguez, 2016, p. 37) que responde à pautas urbanas muito específicas, e não às rurais, e não as sertanejas, e não as ribeirinhas, e não as amazônicas, etc. Angel Rodríguez cita muito bem Ferreira (2012) ao tratar desse descaso em sua dissertação:

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Uma regra simples da boa arquitetura parece ter sido esquecida: cada projeto deve respeitar as características climáticas locais, na escolha dos materiais, no desenho das plantas, no uso de aberturas etc. Geralmente, as soluções autóctones, que representam a cultura local, como casas caiçaras, casas caipiras, são indicativas das melhores soluções para a região, pois incorporam o saber local e suas tradições. (Ferreira, 2012, p. 87) Em geral, na maioria dos empreendimentos habitacionais de promoção pública são utilizados materiais e tecnologias convencionais, não considerando alternativas construtivas regionais ou com inovações tecnológicas ainda muito incipientes, mais focadas no aumento de lucratividade do que no ganho de qualidade (Ferreira, 2012, p. 90). As estratégias para a redução de custos por parte dos agentes promotores se fundamentam na padronização e a redução das dimensões das unidades, que além de afetar o conforto dos moradores, cria como consequência o reinvestimento em reformas ou adequações projetuais por parte do usuário, que, na maioria dos casos, não respondem às suas necessidades. (Rodriguez, 2016, p. 37)

A despeito da enorme quantidade de novas unidades produzidas, o acesso à terra para a população de baixa renda continua se dando quase que exclusivamente através da moradia autoconstruída ou alugada em assentamentos precários, favelas ou cortiços (Rossetto Netto & D’Ottaviano, 2021, p. 212) com os anseios completamente contaminados, consciente ou inconscientemente, pelo modo de morar disseminado pelo marketing do mercado imobiliário. É nesse detalhe que precisamos aprofundar, na conscientização popular do que vem sendo produzido e do que vem sendo vendido como o ideal do morar. Isso, nada mais é do que mais uma mercadoria.

O sociólogo Boaventura de Souza Santos (2019) explica que estamos vivenciando a ascensão do que ele denomina fascismo social: um regime social de relações de poder extremamente desiguais, que concede à parte mais forte poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca. Segundo ele, são formas de fascismo social: I. “o fascismo do apartheid social. Trata-se da segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas.”

II. “o fascismo contratual. Ocorre nas situações em que a diferença de poder entre as partes do contrato de direito civil (seja ele um contrato de trabalho ou um contrato de fornecimento de bens ou serviços) é de tal ordem que a parte mais fraca, vulnerabilizada por não ter alternativa ao contrato, aceita as condições que lhe são impostas pela parte mais poderosa, por mais onerosas e despóticas que sejam.”

III. “o fascismo territorial. Ocorre sempre que atores sociais com forte capital patrimonial tomam do Estado o controle do território onde atuam ou neutralizam esse controle, cooptando ou violentando as instituições estatais e exercendo a regulação social sobre os habitantes do território sem a participação destes e contra os seus interesses.” (De Sousa Santos, 2019, p. 80)

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Essas três formas podem ser claramente identificadas nas relações entre classe popular e Estado com base nas políticas públicas analisadas, e merecem, portando, reflexão por parte de nós técnicas e técnicos, profissionais, jovens arquitetas e arquitetos, para que repensemos a forma como temos atuado e para quem temos atuado.

Para arrematar essa revisitação histórica, deixo aqui um trecho de puro afeto do professor João Rovati para conosco mesmos: Nós, “acadêmicos”, temos o dever de ser críticos. E frequentemente apontamos, quase sempre com razão, os “erros deles”: das autoridades políticas, dos agentes financeiros e de outros agentes do mercado, como tem sido o caso das justas e fundamentadas críticas que temos produzido com relação ao Programa Minha Casa Minha Vida. Mas, pergunto-me: estaremos “proibidos” de nos articular visando construir hoje, em nossas universidades, o dia de amanhã? Até quando vamos privar nossos estudantes da possibilidade de se formar, como arquiteto-projetista, para desempenhar um outro papel que não o “conservador”?

Talvez um ponto de partida para esta articulação seja reconhecer que, seja qual for esta “nova” possibilidade de formação, deve integrar diferentes disciplinas e se abrir à diversidade, porque vivemos em um país de dimensões continentais e cheio de contrastes no plano histórico e cultural. (Rovati, 2015, p. 13)

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a produção social do habitat

Alexander, C., 1976, pp. 50-51 apud Guizzo, 2019

POPULAR

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“A história recente da arquitetura e do planejamento engendrou a falsa percepção de que só os arquitetos e os urbanistas são capazes de planejar o espaço construído.

O testemunho dos dois ou três últimos milênios prova exatamente o contrário. Através da história dos homens, a criação do ambiente, quase sempre, fora obra de profanos”

Existe uma significativa parcela da população brasileira cuja forma de acesso à moradia não se dá através da provisão habitacional pública e nem por via do mercado imobiliário formal. Esse modo de morar idealizado e materializado pelos próprios moradores, compreendido por mim como autoconstrução19 (ou autogestão20 particular), sempre foi e continua sendo a principal via de acesso à habitação do povo brasileiro.

Tal fatia da construção habitacional é representada por usuários que tomam suas decisões relativas à moradia de maneira isolada, sem a interferência ou a participação daqueles que detêm o conhecimento codificado (seja de qualquer natureza). Nesses casos a família, de posse de um lote urbano, obtido no mercado formal ou informal ou ainda via ocupação, decide e constrói por conta própria a sua casa, utilizando seus próprios recursos e, em vários casos, mão de obra familiar, de amigos ou ainda contratada. (Nascimento, 2015, p. 18) A autoconstrução – processo sociotecnológico em evolução e transformação constante –, é estimada em 70% aproximadamente da produção residencial nas cidades brasileiras; nesse caso, a moradia é caracterizada por se dar predominantemente em terrenos não regularizados e, em grande parte, com infraestrutura precária ou inexistente (Brasil, 2009 apud Nascimento, 2015, p. 19, grifo meu)

19 Autoconstrução refere-se à materialidade da obra, à atuação direta do morador ou futuro morador no processo produtivo da habitação. Essa atuação direta pode se dar na definição dos espaços, no planejamento e gerenciamento da obra (compra de materiais, logística de canteiro), ou também na participação direta na construção, podendo combinar mãode-obra não-remunerada, própria, de amigos ou familiares, com a de terceiros remunerados. (Santo Amore & Cabral, 2021, pp. 421-422) 20 Autogestão, por definição, é o controle dos processos produtivos envolvidos na construção da casa pelo morador ou futuro morador. Incluemse aí o projeto ou o planejamento da construção, o financiamento, a compra de materiais, a contratação de mãode-obra ou serviços especializados, a mobilização de parentes e amigos para o trabalho em mutirão. (Santo Amore & Cabral, 2021, p. 420)

A autoconstrução não está restrita às camadas populares, no entanto, é pouco significante esse tipo de produção nas classes mais abastadas, cuja principal forma de acesso à moradia se dá através do mercado imobiliário formal. Para esse estudo, interessa-me apenas a autoconstrução popular, da imensa maioria da população que, ou por falta de recursos financeiros, ou pela urgente necessidade em obter um abrigo ou mesmo por achar que o acesso ao mercado formal ou a técnicos especialistas “não é para si”, constroem suas habitações de acordo com suas prioridades, conhecimentos e possibilidades.

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Os motivos que levam à autoconstrução popular são variados, compreende-se que grande parcela dessa produção é consequência, antes de qualquer outra coisa, da falta de alternativas e da urgência da sobrevivência. No entanto, há de considerar ainda uma outra parte que, mesmo apresentando menos restrições financeiras, ainda assim escolhe o caminho da autoconstrução. O grifo no verbo escolher se faz imprescindível ao passo que nem sempre as escolhas das camadas populares são livres das condições sociais nas quais se inserem. O que quero dizer é que, na maioria das vezes, o caminho da autoconstrução “por escolha própria” está inconscientemente contaminado por estigmas do sistema capitalista que se fundamenta pelas desigualdades de classe.

A classe operária e a camada popular como um todo “sabe do seu lugar” na sociedade em que vive e isso fica evidente ao constatar empiricamente que, sempre que indagados sobre a possibilidade de contratação de especialistas da construção civil para execução ou reforma de suas moradias, os indivíduos integrantes dessa parcela não parecem nem ao menos cogitar isso como uma possibilidade tangível.21 A moradia digna é luta, é conquista popular. É preciso estar claro que a arquitetura não está para a classe popular como está para a elite, sendo assim, no que diz respeito à autoconstrução, essa “escolha” quase nunca é livre.

Tratarei aqui, portanto, da produção social do habitat, termo muito feliz emprestado do arquiteto mexicano Enrique Ortiz Flores, que abrange “(…) todos aqueles processos geradores de espaços habitáveis, componentes urbanos e moradias, que se realizam sob o controle de autoprodutores e outros agentes sociais que operam sem fins lucrativos.22 Podem se originar nas próprias famílias atuando individualmente, em grupos organizados informais, em empresas sociais como cooperativas e associações de moradores, ou em organizações não-governamentais, sindicatos profissionais e inclusive instituições filantrópicas que atendem a emergências e grupos sociais vulneráveis.” (Ortiz Flores, 2006, p. 3-4 apud Rovati, 2015, p. 3)

Esse não pretende uma revisão bibliográfica do tema. Se coloca, no entanto, como parte do percurso de compreensão da produção social do habitat brasileiro. É parte da trajetória de entendimento do que nosso povo tem produzido e, mais importante, seus porquês. É preciso afirmar e reafirmar a importância dessa produção independente, tanto por sua tamanha expressividade quantitativa23 quanto por tudo que podemos aprender com ela. É somente conhecendo nossa produção autoconstruída que poderemos estabelecer uma ponte entre a arquitetura e as reais necessidades populares.

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21 Um bom exemplo desse, digamos, não pertencimento das camadas populares à prática não autoconstruída tem sido a dificuldade que escritórios de arquitetura social, como o Nova Vivenda e o Comuta Arquitetura em São Paulo, o Dona Obra em Recife, o Arquitetos da Vila em Belo Horizonte, entre outros que viabilizam reformas em comunidades com vulnerabilidade social via financiamento social, têm encontrado em atrair o seu público alvo e convencê-lo de que esse serviço também pode pertencer a ele.

22 Aqui faço uma ressalva para não confundirmos o que o professor coloca como “agentes sociais sem fins lucrativos” com o fato de muitas produções autoconstruídas populares possuírem alguma intenção lucrativa, aproveitando-se do lote como geração de renda, muitas vezes acoplada à própria moradia.

23 Segundo Santo Amore & Cabral, uma pesquisa recente encomendada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/BR, 2012) indicou que 85% dos entrevistados construíram ou reformaram suas moradias sem contar com engenheiros e arquitetos. (Santo Amore & Cabral, 2021, p. 3)

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Farinhas de sacos diferentes: as diferentes produções sociais do habitat É natural que em um país com a dimensão continental do Brasil e com a imensa diversidade cultural e social que o abrange, haja também uma grande quantidade e pluralidade de processos de produção social do habitat. Denise Morado Nascimento estabelece três universos distintos desses processos autoconstruídos no que diz respeito ao contexto urbano de moradores de baixa renda: (1) os loteamentos periféricos; (2) as favelas; (3) as ocupações urbanas. (Nascimento, 2015a) Permito-me utilizar dessa classificação como ponto de partida para a compreensão dos grandes grupos de autoconstrução, com a ressalva de substituir o parâmetro de “baixa renda” por “popular” por razões já esclarecidas. Quanto ao item 3 – ocupações urbanas, Nascimento se refere às ocupações de terrenos e edifícios ociosos, que não cumprem sua função social prevista por lei, mas me permito separar essa denominação em duas, a fim de incluir a autoconstrução popular que acessa a terra urbana individualmente e que autoconstrói sua moradia unifamiliar.24 Incluo ainda o contexto rural nessa demarcação. A população urbana brasileira começa a ultrapassar a rural apenas na década de 1970 25, isso posto, a grande origem da autoconstrução se deu no âmbito do campo e essa modalidade de provisão habitacional ainda permanece como principal forma de acesso à moradia camponesa no Brasil, ainda que pouco ou nada considerada nos cursos de Arquitetura e Urbanismo.

24 Essa modalidade não é muito presente nos grandes centros urbanos, mas é muito corriqueira nas cidades menores e interioranas, onde o acesso à terra urbana ainda se faz viável para a população de baixa renda.

25 Segundo dados abertos do IBGE: censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index. php?dados=8

LOTEAMENTOS PERIFÉRICOS População majoritariamente migrante ou expulsa das regiões centrais quando se trata de grandes centros urbanos, ou migrantes rurais em cidades menores, em busca de melhores condições de vida e de emprego, vão para as franjas das cidades visando os terrenos mais acessíveis. Caracterizam-se pela tentativa de reprodução do tecido urbano já consolidado e, salvo poucas exceções de agrupamentos comunitários, pela busca individualizada de melhores condições de moradia.

Nos loteamentos periféricos a autoconstrução, por vezes, não se restringe à escala do lote. Os ocupantes acabam tendo que se mobilizar também para autoconstruir a infraestrutura necessária para suprir as necessidades básicas da moradia. O processo de periferização caracteriza-se justamente pela exclusão de parte da população do acesso aos serviços, zonas de emprego e infraestrutura básica da cidade.

São também promovidas sem a intervenção do Estado as conexões internas ao assentamento e desse à cidade, dotando-os de condições mínimas de conforto e segurança, pela abertura de ruas, becos e escadarias e a instalação de postes e redes precárias para

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iluminação pública, bem como as contenções ou pavimentações pontuais e os sistemas de disciplinamento de águas pluviais. Tem-se assim, além do trabalho incorporado à moradia, o trabalho coletivo incorporado aos espaços de uso comum. (Silva, 2013, p. 118 apud Santos, 2015, p. 41)

FAVELAS Possuem uma lógica de ocupação específica do local de inserção, normalmente com restrições severas de espaço que direcionam o adensamento construtivo verticalmente com a prática do solo criado das lajes. Inicialmente compostas majoritariamente por migrantes em busca de melhores condições de trabalho nos centros urbanos e grandes capitais, hoje é parte constituinte das cidades. (Pasternak, 2006) Predomina a escassez de recursos financeiros e a falta de infraestrutura básica devido à irregularidade e às más condições das ocupações.

Nas favelas (...) os terrenos são ocupados de forma espontânea, adquiridos ou não por contratos informais de compra/venda, em áreas centrais desprezadas pela cidade capitalista, porém importantes diante da necessidade de os trabalhadores residirem próximos aos seus lugares de trabalho. (Nascimento, 2015, p. 20)

Quanto aos métodos e materiais construtivos característicos das modalidades autoconstruídas dos loteamentos periféricos e das favelas prevalece a utilização das técnicas hegemônicas de construção: blocos cerâmicos ou de concreto e sistemas estruturais de vigas e pilares aramados. Em regiões alagadiças, as palafitas preponderam. Essas modalidades representam a parcela com maior restrição e vulnerabilidade social, sendo, portanto, necessário compreender que as escolhas construtivas são, na verdade, pautadas nas opções possíveis, no imediatismo e na necessidade de sobrevivência das famílias.

Outra característica comum às duas modalidades é a gradual evolução do emprego de materiais de construção, que evolui conforme a maturidade dos assentamentos e conforme a melhoria de vida das famílias. Normalmente iniciam as edificações com madeirite, passam para o bloco cerâmico, por vezes o bloco de concreto expressa uma certa ascensão social, e finalizam com o revestimento externo das edificações. (Pasternak, 2006)

MORADIAS POPULARES URBANAS INDEPENDENTES Parte da camada popular que consegue acessar, via mercado formal ou informal, os territórios urbanos providos de infraestrutura, seja em cidades pequenas, médias ou grandes. Geralmente constroem do zero suas habitações ou vão adaptando a edificação pré-existente no terreno, ampliando ou reformando, via autoconstrução, conforme vão ascendendo financeiramente, com planejamento projetual próprio.

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Essa modalidade se caracteriza por uma menor restrição financeira, normalmente representada por uma classe social em ascensão, e, devido a isso, consegue estabelecer uma lógica autoconstrutiva mais flexível baseada mais nos desejos e menos nas necessidades urgentes de sobrevivência.

Essa é a modalidade que mais me interessa, juntamente dos assentamentos rurais, devido a maior liberdade de escolha que detém e por acabarem, na maioria absoluta dos casos, trilhando o caminho da tentativa de reprodução das produções hegemônicas, seja quanto aos materiais ou quanto às técnicas construtivas ou mesmo quanto às relações comunitárias.

Essas ocupações são muito comuns hoje nas pequenas cidades e nos pequenos vilarejos interioranos ou litorâneos. Nas grandes capitais e grandes centros urbanos eram representadas pelos bairros operários que remontam às origens da autoconstrução urbana. Hoje, essa parcela da população residente nos grandes conglomerados urbanos acaba se submetendo ao mercado imobiliário dos minúsculos apartamentos, na maioria das vezes ainda distantes dos centros desses municípios, saindo, portanto, do universo da autoconstrução.

OCUPAÇÕES DE TERRENOS OU EDIFICAÇÕES OCIOSAS EM ZONAS URBANAS Ocupações de terrenos, com ou sem edificação prévia, planejadas e efetuadas por grupos sociais organizados sob o discurso e justificativa de cumprimento da função social do terreno ocupado em prol do acesso à moradia previsto na Constituição Federal. Essas ações costumam ser lentas, conflituosas e, muitas vezes, violentas, por serem interpretadas pelas instâncias jurídicas como ilegais. (Nascimento, 2015, p. 20) Através da autoconstrução, as moradias e os espaços comuns são aprimorados e ampliados por meio do apoio de redes sociais constituídas de operários da construção civil, donos de depósito de materiais de construção, ativistas, voluntários e estudantes e professores de universidades. (Nascimento, 2015, p. 20)

O maior objetivo dessas ocupações é de chamar a atenção do poder público para a falta de moradia digna da população de baixa renda em contraste com a imensa quantidade de imóveis ociosos operando na lógica da especulação imobiliária próximos às redes de infraestrutura das cidades. É verdade que a autoconstrução já opera desde o início dessas ocupações na adequação dos espaços ocupados para abrigar os ocupantes, no entanto, quando ocorre a conquista do movimento pelo direito de habitar legalmente o imóvel, o processo de autoconstrução (ou autogestão) pode ser operado dentro de programas habitacionais que prevejam essa modalidade como explicitado no título anterior sobre Programas Habitacionais de Autogestão.

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OCUPAÇÕES RURAIS População que reside em áreas demarcadas como rurais, e que, normalmente, possuem uma relação com a terra e com o meio que reflete diretamente na produção habitacional. O trabalho rural exerce forte influência nessas produções. Não estão inclusas aqui as produções rurais de temporada/lazer.

A moradia, independentemente da sua forma de produção, é considerada o eixo do habitat rural, pois além de servir de abrigo, abrange outras funções, como a de armazenagem, e até o beneficiamento da produção. Além disso, a habitação é a prova concreta da ocupação da terra pelo homem, assim, a habitação no campo se diferencia do que comumente acontece na cidade, pois é um elemento indispensável às atividades do trabalhador rural, permanecendo profundamente ligada à terra, além de contribuir no desenvolvimento da família. (...) a habitação se configura como um elemento de extrema importância na busca da redução da pobreza e o incremento da qualidade de vida dos seus moradores, objetivos essenciais de um desenvolvimento rural integral e duradouro.

(Rodriguez, 2016, p. 35)

A autoconstrução rural tende a seguir o mesmo caminho das anteriores quanto à tentativa de reprodução do habitat urbano hegemônico. Assim como nas favelas e loteamentos periféricos, a prática pode se iniciar com materiais diversos que estejam a disposição imediata incluindo-se o próprio solo, mas esse ponto de partida também se relaciona muito mais à restrição de opções do que de fato ao desejo das famílias. Com o tempo, caso haja uma melhoria social, a tendência é a busca pelas técnicas convencionais de construção e dos materiais industrializados nos depósitos urbanos.

OCUPAÇÕES DE TERRENOS OCIOSOS EM ZONAS RURAL Diferente da lógica das ocupações de terrenos ociosos urbanos, as ocupações rurais, apesar de também estarem organizadas em grupos e associações sociais de luta por moradia digna, visam a ocupação de terrenos para o estabelecimento permanente dos ocupantes. Sendo assim, a autoconstrução se faz muito mais presente e direta, ao passo que são grandes glebas, normalmente ausentes de qualquer edificação prévia, nas quais o habitat será autoconstruído e autogerido em conjunto pelos participantes.

Nesses casos, a origem dos ocupantes é variada e não se restringe à população originariamente camponesa, podendo abrigar também a população proveniente da exclusão social urbana em busca de moradia digna. O MST é o grande movimento responsável pelas maiores e mais organizadas ações desse tipo e possuem uma ideologia bem rígida quanto ao estabelecimento das famílias nas glebas ocupadas, atrelando sempre que possível esse processo à conscientização social e à politização dos envolvidos.

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Esse fator influencia fortemente a concepção das habitações e a relação delas com o entorno e com a vida comunitária do local. Geralmente iniciam as moradias no calor e urgência do ato de ocupar, utilizando-se de barracas e materiais variados de fácil acesso como, por exemplo, madeirite. Nesse caso, a escolha dos materiais também é influenciada pelas negociações jurídicas de reintegração de posse que diferenciam as construções de materiais “provisórios” das de materiais “permanentes” no processo.

Com a maturidade progressiva da ocupação maturam também as estratégias de construção do habitat familiar e comunitário. Aqui também se apresenta como impeditivo a forte restrição de recursos financeiros somada ao isolamento dos acampamentos rurais que encarece e dificulta ainda mais os processos construtivos convencionais.

Devido a isso, alguns assentamentos rurais têm trabalhado na concepção de escolas comunitárias de construção agroecológica26 com o apoio de assistências técnicas e de acadêmicos a fim de viabilizar outras formas de autoconstrução mais adequadas ao meio em questão e às condições financeiras dos assentados. É preciso pontuar, no entanto, que essa tentativa contra-hegemônica de produção habitacional nem sempre é bem recebida pelos assentados e precisa passar, portanto, por um longo processo de familiarização e convencimento dos envolvidos que vislumbram, quase sempre, a reprodução dos padrões convencionais de arquitetura.

26 Como por exemplo, o assentamento rural Rosa Luxemburgo do Movimento dos Trabalhadores SemTerra (MST), na cidade de Agudos-SP.

O acampamento não cria apenas uma alternativa sistêmica aos tempos conturbados, decorrentes de governos fascistas, que querem, a todo custo, restringir os direitos humanos àqueles que consideram ‘humanos direitos’. É uma tentativa de superar o patriarcado, o produtivismo, o desenvolvimentismo, todo esse campo de forças dominantes, e dar lugar a outras formas de vida que priorizem o direito à cidade, a moradia adequada, a soberania alimentar, a resiliência econômica, a memória e a permanência. (Cavalcanti, 2020, p. 80)

As inconsistências e contradições estão presentes, mas a prática e as experiências se demonstram válidas na construção social de um espaço que é cooperativo e que almeja uma outra economia, solidária e autogestionária. A ocupação reúne experiências formadoras que resultam de acúmulos de processos de aprendizagem, que, protagonizadas pelos ocupantes, formam bases de transição para uma outra cultura. (Cavalcanti, 2020, p. 80) Apesar das especificidades desses seis grandes grupos, a depender sobretudo da modalidade atrelada à sua inserção regional, há alguns pontos comuns que permeiam todos eles quanto à prática da autoconstrução: I. a transformação da moradia ao longo do tempo, sendo pré-requisito para o crescimento das casas e a consolidação das famílias no lugar; II. a base de valores como cooperação e cumplicidade dos envolvidos; III. o atendimento de demandas imediatas, mas também das possibilidades de mudança futura por meio de adaptações e de aprimoramentos necessários à funcionalidade permanente;

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IV. a capacidade dos moradores decidirem autonomamente sobre o espaço, muito além do mero atendimento aos seus desejos (Nascimento, 2015, p. 20); V. a expectativa de reprodução da estética construtiva das classes mais elevadas e da utilização das técnicas e materiais convencionais.

Para este trabalho, toda e qualquer forma de autoconstrução popular brasileira importa. Não farei, portanto, distinção, nem tratarei de nenhuma em específico. Mas acredito que tendo a ter um olhar mais atento às formas de produção social do habitat que extrapolem as comunidades e periferias dos grandes centros urbanos, como São Paulo. Acredito que as modalidades de autoconstrução dos grandes centros urbanos têm recebido intensa atenção dos estudiosos(as) e que, devido a sua corriqueira produção em condição temporária, fruto das urgências e limitações que as acompanham, seu estudo mais específico contribui para as discussões sobre o acesso à terra urbana e das políticas públicas de garantia da moradia digna. Considero ainda que, ao longo da graduação, pude ter muito contato com esses estudos27 e com essa forma de autoconstrução, tendo, portanto, uma forte curiosidade e interesse em extrapolar os limites das capitais e principalmente da metrópole paulistana.

27 Entre outras, D’Ottaviano (2021a), Nascimento (2015b) e Lago (2012)

Os estudos pioneiros de Maria Ruth Sampaio e Carlos Lemos Referências no tema da autoconstrução popular, Maria Ruth Sampaio28 e Carlos Lemos29 desenvolveram nos anos 1960 e 1970 um estudo aprofundado acerca da habitação popular paulistana autoconstruída30 com o objetivo claro de fornecer dados mais concretos sobre essa produção abrangendo, tanto no campo de interesse técnico-construtivo quanto no socioeconômico. Segundo eles, Os estudos, as pesquisas e todo o tipo de preocupação a respeito da problemática vinculada à habitação popular ressentem-se de maiores informações relacionadas às verdadeiras expectativas do principal interessado nela, isto é, o trabalhador paulistano. (Sampaio, 1978, p.9)

28 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1956), mestra em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1966) e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1973).

29 Arquiteto, formado em 1950 pela Faculdade de Arquitetura Mackenzie.

30 Uma de suas produções é o livro “Habitação popular paulistana autoconstruída”, publicado pela FAUUSP. (Sampaio, 1978).

A pesquisa buscou investigar os bairros populares da época, onde a autoconstrução existia enquanto principal forma de acesso à moradia para os trabalhadores urbanos.

Através de entrevistas e levantamentos dimensionais realizados nas casas de alguns desses loteamentos, procurou compreender as lógicas que moviam os moradores a construir e agenciar os espaços das suas casas. (Santo Amore & Cabral, 2021) Os objetivos do estudo ansiavam ir muito além dos estudos corriqueiros acerca do mesmo tema que se limitavam ao mapeamento e aplicação de questionários. Sampaio e Lemos buscaram compreender as expectativas dos moradores com relação ao (a) agenciamento das dependências; (b) dimensionamento dos cômodos; (c) superposição de

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funções num mesmo ambiente; (d) dinâmica de seu relacionamento e repercussões na utilização da casa; (e) critérios de localização da moradia dentro do lote; (f) atividades paralelas de lazer; (g) utilização do espaço exterior (jardim, quintal, horta); e (h) funções exclusivas e coletivas. Ao mesmo tempo buscaram ainda analisar (a) a organização familiar e dos antecedentes socioculturais; (b) a conduta e das condições de vida com relação à habitação; e (c) o estudo das atitudes dos moradores com relação às condições existentes e seus desejos de mudança no quadro habitacional da época. (Sampaio, 1978, p.9) A importância desse estudo se dá por ter sido uma das poucas iniciativas acadêmicas que se propôs a analisar a arquitetura popular sob o ponto de vista do indivíduo autoconstrutor. A tentativa de aprofundar a compreensão dessa produção, por parte dos pesquisadores, sem dúvida humaniza o tema que é, quase sempre, tratado apenas por meio de parâmetros estatísticos.

Os estudos, as pesquisas e todo o tipo de preocupação a respeito da problemática vinculada à habitação popular ressentem-se de maiores informações relacionadas às verdadeiras expectativas do principal interessado nela, isto é, o trabalhador paulistano. (Sampaio, 1978, p.9)

A respeito dos resultados obtidos, Verificou-se uma exasperante monotonia de soluções construtivas e, apesar da diversidade de origem das pessoas entrevistadas essas soluções, do ponto de vista técnico, são sempre as mesmas, surgindo um quadro construtivo medíocre e pobre sob o ponto de vista técnico-construtivo e obviamente artístico, mas rico no que diz respeito aos interesses da Sociologia e Antropologia. (Sampaio, 1978, p.10, grifo meu)

Essa conclusão pode parecer dura, mas é extremamente necessária para desromantizarmos a produção social do habitat. Foi essa tomada de consciência que me alertou para a necessidade de encararmos a habitação autoconstruída popular como uma produção ainda muito pouco estudada e incompreendida.

Outro ponto importante sobre os resultados do estudo de Sampaio e Lemos foi a satisfação majoritária dos moradores com suas moradias, caracterizadas tecnicamente pelos estudiosos como medíocres e portadoras de técnica construtiva pobre, baseada única e exclusivamente na alvenaria de tijolos. apesar de morarem em bairros desprovidos de infraestrutura, e em casas precárias, quase todos estão satisfeitos em suas propriedades, 88,3% das famílias inqueridas declaram estar satisfeitas com suas casas, que são permanentemente cuidadas e zeladas com carinho.

(Sampaio, 1978, p.29)

As declarações de satisfação dos habitantes diante de suas habitações é um fator comum aos estudos mais aprofundados acerca das habitações populares autoconstruídas e pode ser atribuído, segundo os próprios autores, a uma comparação com

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a ocupação anterior, que propiciava condições menos satisfatórias de vida, levando a migração (SAMPAIO, 1978, p.14), ou ainda a um sentimento de orgulho e pertencimento daquilo que foi construído com esforço próprio e que resultou em aumento de qualidade de vida da família.

O mesmo resultado também foi obtido por Salgado (2019), em seu trabalho acerca das habitações palafíticas da Vila Elesbão, na cidade de Santana-Amapá. Em seu estudo, 67,1% da população entrevistada considerou a condição aparente de sua habitação como boa e demonstrou satisfação com o grau de qualidade dos materiais utilizados na construção (Carvalho, 2015, p. 198 apud Salgado, 2019).

O estado de construção da casa expõe a sensação de satisfação com própria conquista de posse da habitação, que exige esforço e dedicação. Além da estatística, os relatos durante as entrevistas são carregados de orgulho pela vitória do desafio, visto que os habitantes por maioria estão na faixa de renda de um salário mínimo. (Salgado, 2019, p. 82)

O autor interpretou esse dado como pertinente ao sentimento de pertencimento, o orgulho da força e capacidade de ter construído um lar que satisfaz a consciência dos moradores, os quais preencheram esse espaço com sua rotina, cultura e afeto, um símbolo comum de liberdade, que permanece aberto; sugere futuro e convida à ação.

(Tuan, 1983 apud Salgado, 2019, p. 41) Esse fator de satisfação explicita ainda mais o descompasso existente entre as expectativas dos(as) técnicos(as) que atuam na área, seja dentro do âmbito acadêmico ou não, e as expectativas da classe popular em relação às suas moradias ideais, como já anunciavam Sampaio e Lemos.

* * *

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A autoconstrução é um fato no país, sendo a via mais comum de acesso à moradia e mecanismo importante de provisão habitacional não mercantilizada, de acesso à moradia e à propriedade (ainda que vinculado à precariedade física e ao sacrifício corpóreo de trabalhadores), e de estabilidade familiar (Nascimento, 2015, p. 21). Longe da intenção de romantizar esse tipo de produção,31 de incentivar a construção sem acompanhamento técnico adequado e menos ainda de menosprezar a importância da(o) profissional arquiteta(o) nessa produção, ressaltar a relevância da arquitetura popular autoconstruída é assumir que uma parcela muito mais que significativa da população tem se virado para construir suas moradias. Está dado, é fato e, nem por isso deixa de ser arquitetura.

Segundo NASCIMENTO, autores apontam a ausência de assistência técnica e a contratação de mão de obra desqualificada como responsáveis pelo baixo desempenho de grande parte das moradias autoconstruídas. Por outro lado, nossas pesquisas revelam que na autoconstrução há, inegavelmente, conhecimento implícito, lucidez e capacidade crítica por parte dos autoconstrutores na escolha e na avaliação das opções que possam atender, com flexibilidade, suas necessidades e aspirações individuais e coletivas, em relação não só às tecnologias, aos materiais, sistemas construtivos e à execução, mas também ao financiamento e/ou gerenciamento (Morado Nascimento, 2011). A autoconstrução é a resposta possível para as famílias pobres em razão das condições políticas, sociais e econômicas que enfrentam. As pessoas constroem um corpo de conhecimento substancial sobre como melhor construir; assim, o saber-fazer a moradia (como, quando, onde e a que custo) é gerado por informação e esta se transfere pelas práticas sociais. (Nascimento, 2015, p. 20, grifo meu)

31 É preciso pontuar um embate entre os estudiosos da área pelo fato de que “a habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto é, supertrabalho.

Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado - a casa - reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho - de que os gastos com habitação são um componente importante - e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de ‘economia natural’ dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho.” (Santo Amore & Cabral, 2021)

A mesma autora traz à luz, Flávio Villaça (1930 – 2021) para lembrar que o padrão habitacional ‘ótimo’ ou ‘certo’ ou ‘ideal’ é aquele que a classe trabalhadora acha que pode conquistar através do avanço possível dentro das condições políticas, sociais e econômicas em que se encontra. (Villaça, 1986, p. 31 apud Nascimento, 2015, p. 21)

O reconhecimento da arquitetura popular trata, portanto, de outra forma de pensar a arquitetura. É sobre compreender que uma arquitetura inclusiva não pode excluir a vivência, a cultura e o saber popular. E é sobre compreender também que essa camada não está imune aos artifícios do sistema capitalista sob o qual vivemos. Muito pelo contrário, é a camada popular a ferramenta chave para a manutenção do sistema que envolve apelo midiático cotidiano em torno de padrões construtivos pré-estabelecidos; mecanização crescente dos processos construtivos aumentando cada vez mais a distância entre a mão de obra física e a detenção do conhecimento ou saber-fazer32; e a monopolização da indústria da construção civil por parte de grandes empresas multinacionais, o que torna quase impossível o estabelecimento dos mercados locais.

Segundo a lógica do Capitalismo Cognitivo (Guizo, 2019), de acumulação de capital por meio das forças desejantes ou criativas,

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32 Adaptado do termo francês savoirfaire.

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Por um lado, o marketing estimularia o consumo como uma máquina de fazer desejar, muitas vezes não aquilo que estamos precisando ou que nos constituirá como sujeitos mais fortes, autônomos e alegres. Somos bombardeados por imagens de consumo a todos os instantes em casa, na cidade, no celular, e isso não cessa de constituir a nossa singularidade e o nosso desejo. Por outro lado, as forças que fogem a essa lógica – as novas criações -, são rapidamente incorporadas pelo mercado. Por meio de suas sucessivas inovações, o mercado faz com que tais forças se esvaziem dos seus primeiros propósitos e adentrem as novas campanhas de marketing. (Guizzo, 2019, p. 37)

É natural, portanto, que essa camada anseie e reproduza a lógica hegemônica da construção civil em suas moradias. O desafio é compreender como esses fatores estão de fato incidindo nessa produção, assim como fizeram Sampaio e Lemos para as casas proletárias paulistanas. Muito ainda precisa ser estudado sobre os demais contextos populares brasileiros se quisermos construir uma ponte genuína entre as(os) arquitetas(os) e urbanistas e OS autoconstrutores que não romantize a precariedade nem o sobretrabalho, não desvalorize a vivência prática dos autocontrutores, suas histórias e os processos de decisão sobre o espaço, e que resulte em melhoria da qualidade de vida dessa população evidenciando as manifestações do espaço vivido.

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FIGURA 7. Foto dos fundos de uma casa de taipa com revestimento de barro no Vale do Pati, BA. Fonte: Autora.

PARTE II construção do desvalor popular

Bardi, 1994, p. 2

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“Procurar com atenção as bases culturais de um País (sejam quais forem: pobres, míseras, populares), quando reais, não significa conservar as formas e os materiais, significa avaliar as possibilidades criativas originais. Os materiais modernos e os modernos sistemas de produção tomarão depois o lugar dos meios primitivos, conservando, não as formas, mas a estrutura profunda daquelas possibilidades”

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Este é um trabalho de percurso. Uma tentativa de compreensão da produção social do habitat brasileiro que parte de um anseio bem íntimo e pessoal. Sendo assim, após fazer uma revisão da conformação do déficit, da produção habitacional de interesse social estatal e, por fim, da produção habitacional autoconstruída popular, me deparei com a confirmação do incômodo principal que me trouxe ao tema: está em curso uma desaculturação popular brasileira, e essa desaculturação abrange amplamente as nossas culturas construtivas populares.

A melhor compreensão da conformação do déficit habitacional brasileiro me possibilitou enxergar as pessoas ocultas nos números. A variedade de origens e das necessidades desses indivíduos. A desaculturação já se mostra clara quando o déficit é tratado unicamente de forma numérica, sem diferenciação cultural e regional, como se a resolução pudesse vir em massa.

Não pode. De forma mais direta – e diria até violenta – a desaculturação se concretiza nas produções de edificações em massa dos nossos governos para abrigar nossa população mais vulnerável. A cultura não é privilégio das classes mais abastadas. Muito pelo contrário, as classes populares transbordam cultura. Culturas próprias, diversificadas, que se relacionam com seus modos de vida, de habitar um lugar, de se alimentarem, de cultuarem, etc. Essa cultura, que não é de forma alguma única e sim múltipla, não foi e não tem sido considerada nas produções estatais, como pudemos ver.

E, mais profunda ainda, a desaculturação popular age sutilmente no seio dos seus maiores prejudicados. A própria camada popular tem se afastado, facultativamente, da sua cultura, das suas origens construtivas, das suas ancestralidades. Envoltas por um sistema cuja luta pela sobrevivência assume o primeiro plano, tomar consciência desse processo implícito é tarefa árdua.

Não cabe a mim aqui o julgamento de um projeto arquitetônico como bom ou ruim, nem como certo ou errado. Eu não acredito nessa dicotomia. Eu acredito na pluralidade, na diversidade de opções, nas múltiplas alternativas para os múltiplos indivíduos, regiões, culturas e necessidades. No entanto, a forma como a arquitetura e o urbanismo são apresentados no Brasil, seja para o acadêmico, o técnico ou o leigo, é bem mais limitada. Limitada desde as escolhas projetuais tidas como “corretas” até o acesso ao serviço.

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Há toda uma “verdade” teórica e prática que sustenta os projetos de arquitetura e urbanismo, na maior parte das vezes naturalizada e, de fato, estruturada em uma tradição colonial e patriarcal. (Guizzo, 2019, p. 35) A propriedade dos espaços e a pessoalidade (...) são ideias construídas socialmente na cultura ocidental e que tomaram forma em longos processos históricos até definirem hoje um certo modo de ser predominante, nas quais todo o sistema econômico e seu processo de globalização está ancorado. (Guizzo, 2019, p. 49)

Para esse trabalho vou me ater mais às culturas construtivas populares, mas deixando claro que esse processo de desaculturação popular não se restringe à arquitetura e ao urbanismo.

A fim de entender melhor como passamos a considerar certas formas de viver e a desconsiderar completamente outras, vale citar a tese do pensamento abissal de Boaventura de Souza Santos. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”, e tudo que fica neste último desaparece como realidade e torna-se inexistente, ou seja, irrelevante e incompreensível. Sendo assim, a característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. (De Sousa Santos, 2019, p. 71) O sociólogo explica que, no campo do conhecimento, o “lado de cá da linha” consiste na dicotômica distinção entre o verdadeiro e o falso monopolizada pela ciência, em detrimento da filosofia e da teologia, ambos conhecimentos alternativos (De Sousa Santos, 2019, p. 72). No entanto, é preciso ressaltar que Boaventura defende que essas tensões entre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, têm lugar deste lado da linha: Sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma dessas modalidades. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso. (De Sousa Santos, 2019, p. 72)

A partir da tese de Boaventura, compreende-se que o processo de desaculturação popular se ampara na ideia do pensamento abissal ao transpor os conhecimentos populares gradativamente para o outro lado da linha, o lado da invisibilidade. Não é tão simples compreender isso visto que não desconhecemos (ainda por completo) a existência dos saberes populares e que, por vezes, até mesmo ressaltamos sua existência em homenagens e espetáculos. Porém, não é da simples consciência dessa existência que se trata a desaculturação, e sim da desagregação dessa cultura dos nossos modos de viver, em outras palavras, da folclorização da cultura popular brasileira. E, ao meu ver, essa falsa ideia de que damos a devida importância às nossas culturas populares é parte essencial do processo de desvalor do popular em curso.

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Guizzo, ao tratar da desaculturação popular dos nossos modos de viver e de habitar, faz referência à arquiteta e urbanista, militante da valorização genuína da cultura popular brasileira, Lina Bo Bardi, que afirmava que, ao ser petrificada em folclore, a cultura não apenas perdia a sua potência, mas interesses externos passavam a dominá-la, (...) inferiorizá-la e padronizá-la e ainda tirar proveito turístico das populações já exploradas. (Bardi, 1994, p. 20 apud Guizzo, 2019, p. 117) As perguntas que me movem são as seguintes: não deveriam ser validadas as inúmeras arquiteturas populares presentes por todo o território brasileiro? Por que damos menos (ou nenhuma) importância para nossas próprias culturas e técnicas construtivas?

Estamos cansadas de ver maus projetos arquitetônicos concebidos por arquitetos e urbanistas diplomados que nem por isso deixam de ser considerados e estudados como arquiteturas. Há variados embates sobre os diferentes estilos arquitetônicos hegemônicos, ocidentais. Sejam eles considerados certos ou errados. Eles existem como arquitetura. Bons ou ruins, eles existem do lado de cá da linha. A arquitetura popular beira a inexistência. É cada vez mais compreendida e assimilada à precariedade, à pobreza, ao ultrapassado e, quando muito, ao folclore.

Um exemplo claro disso é o fato de que até a publicação de 2013 do Déficit Habitacional Municipal de 2010 (FPJ, 2013), as construções de taipa, técnica construtiva tradicional da cultura brasileira, eram automaticamente designadas como contingente de precariedade. Nas publicações anteriores, as habitações de taipa eram classificadas de maneira geral como “Domicílios Rústicos”, ou seja, “aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada” e que, portanto, “proporciona desconforto e traz risco de contaminação por doenças”. Na publicação de 2010, essa designação permanece, mas com a ressalva de se considerar apenas as paredes de taipa não revestidas como indício de precariedade. Em outras palavras, é apenas a partir de 2010 que o principal estudo acerca das condições de moradia dos brasileiros e brasileiras passa a considerar que as construções de taipa podem oferecer condições de salubridade equivalentes às construções de alvenaria. (...) aqueles domicílios cujo material predominante nelas é a taipa não revestida foram classificados como rústicos, ao passo que aqueles cujo material predominante nas paredes externas é a taipa revestida não foram classificados como rústicos. Entende-se que a parede de taipa revestida se assemelha à de alvenaria, no que diz respeito à qualidade da edificação. (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 15)

Os modelos hegemônicos de ensinar, de educar, de edificar, de habitar, de proteger e de viver, invisibilizam quaisquer outros modelos. A superioridade abstrata do saber científico, por exemplo, nos afasta de uma infinitude de saberes populares e ancestrais e molda uma verdade homogênea a ser replicada sem precedentes. As bases coloniais e patriarcais nas quais foram consolidados tais modelos podem e devem ser desestabilizadas, questionadas e postas em cheque. Faço meu o apelo da arquiteta e urbanista Iazana Guizzo:

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o reposicionamento do campo é também o da nossa própria vida, das nossas percepções e sensações, de um certo modo de ser e exercer os ofícios. (Guizzo, 2019, p. 20)

Serão abordados, a seguir, 5 cenários em que pude identificar indícios do processo de desaculturação e de desvalorização da cultura popular nos campos da Arquitetura e do Urbanismo: I. Os currículos escolares de Arquitetura e Urbanismo e a Produção intelectual da USP; II. A indústria da construção civil sob a ótica marxista; III. A História dos três porquinhos – um imaginário criado; IV. Duas experiências de melhorias habitacionais para povoados tradicionais; V. A questão do Patrimônio.

I. Os Currículos escolares de Arquitetura e Urbanismo e a Produção Intelectual da USP A fim de buscar respostas para tamanha desvalorização das culturas construtivas populares como arquiteturas dignas de reconhecimento, estudo, aprimoramento e reprodução, realizei uma análise dos currículos escolares dos principais cursos de Arquitetura e Urbanismo do país. A análise buscou identificar a ocorrência ou não de disciplinas que abordassem o panorama da produção popular do habitat, o histórico e a diversidade das nossas culturas construtivas populares, as arquiteturas indígenas e as contribuições das populações afrodescendentes.

Os currículos e planos de cursos das seguintes faculdades foram analisados: • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco Em nenhum dos 9 currículos analisados foi encontrada alguma disciplina que abordasse diretamente a temática da arquitetura popular brasileira, seja no título, seja na ementa. Apenas a FAU UFRJ e a FAU UFMG possuem alguma disciplina obrigatória que especifique o Brasil em seu título: Arquitetura do Brasil (UFRJ) e Arquitetura e Cultura Brasileira (UFMG), mas também não mencionam nos planos de cursos destas, em momento algum, uma abrangência sob o ponto de vista popular.

A partir da análise mais aprofundada das ementas das disciplinas da UFRJ e UFMG que se propõem a oferecer a temática da arquitetura brasileira foi possível perceber que, no caso da intitulada Arquitetura e Cultura Brasileira, da UFMG, o conteúdo programático trata primordialmente sobre a matriz arquitetônica portuguesa, fazendo menção ao índio e ao negro apenas quanto à sua relação com o processo de coloniza-

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ção no contexto dessa matriz. A disciplina trata ainda do Barroco, do Neoclassicismo, do Ecletismo e do Modernismo brasileiros, assuntos corriqueiros nas disciplinas de história da arquitetura das demais faculdades.

Apenas na UFRJ foi identificada uma intenção em estabelecer um diálogo com arquiteturas de raízes populares brasileiras. A faculdade conta com três módulos da intitulada Arquitetura do Brasil, e o texto inicial da ementa já denota uma importância maior ao tema ao colocar as contribuições indígenas e negras lado a lado da contribuição portuguesa e não subordinada a ela: Raízes históricas da arquitetura no Brasil. A contribuição portuguesa, indígena e negra.

Evolução da arquitetura no Brasil desde a colonização até o século XVIII (...)33

33 Trecho extraído da ementa da disciplina FAH368 – Arquitetura no Brasil I da UFRJ

O terceiro módulo dessa disciplina demonstra uma intenção ainda mais concisa em estabelecer um diálogo genuíno com as nossas raízes arquitetônicas ao possibilitar um olhar críticos para as narrativas hegemônicas: A segunda abordagem tem como ponto de partida as revisões historiográficas recentes que questionam as narrativas hegemônicas e o discurso histórico operativo. Deste modo, a disciplina abre-se para outros olhares emergentes tais como, omissões históricas, obras dissonantes, questões de gênero e questões periféricas.34

É essencial que se tenha na formação profissional, como propõe a disciplina Arquitetura do Brasil da UFRJ, um espaço para a pontuação crítica sobre olhares emergentes e para a conscientização da existência de narrativas tendenciosas no campo da arquitetura e do urbanismo que excluem diversas outras narrativas como válidas, principalmente as populares. No entanto, parece ainda não haver espaço de aprofundamento das especificidades e singularidades dessas narrativas à margem35 e, tampouco, para a aplicação de suas experiências nas disciplinas que abordam campos da prática da arquitetura e do urbanismo.

Nas descrições das ementas analisadas, nenhum dos demais currículos apresentou qualquer indício ou intenção de incorporar ensinamentos acerca das arquiteturas populares brasileiras, indígenas ou negras, e muito menos sobre as particularidades arquitetônicas regionais. Apesar de algumas disciplinas do campo da História possuírem uma ou outra bibliografia que traga as temáticas especificadas acima, o foco da abordagem da arquitetura brasileira está na matriz portuguesa, passando pelas principais correntes arquitetônicas, mas sempre com enfoque para a produção das elites. As contribuições indígenas ou negras, por exemplo, por vezes aparecem de forma dispersa e genérica nas ementas curriculares, sem, no entanto, prever um conteúdo programático que as englobe ou um cuidado bibliográfico que denote intenção de seu aprofundamento.

34 Trecho extraído da ementa da disciplina FAH488 – Arquitetura no Brasil III da UFRJ

35 Termo utilizado por Iazana Guizzo (2019) para designar atuações e disputas dentro dos campos da Arquitetura, Paisagismo, Urbanismo e Design que fogem dos modelos hegemônicos desses campos, sempre atrelados aos sistemas de poder – religiosos, econômicos ou políticos.

Foram analisadas também as ementas das disciplinas da prática arquitetônica e dos métodos construtivos oferecidas por essas faculdades. Nesse campo ficou bem evi-

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dente a homogeneidade dos cursos quanto à prevalência única dos discursos hegemônicos convencionais e mercadológicos do cimento, concreto, tijolos cerâmicos e aço. A madeira, por vezes, é tratada, mas de forma pouco aprofundada e ainda aplicada à arquitetura da elite. Os métodos construtivos, sejam de edificação ou de infraestrutura, populares, indígenas e rurais não são abordados.

Após a análise desses currículos, considerei relevante verificar se a ausência do tratamento direto das arquiteturas populares nos currículos dos cursos de arquitetura e urbanismo poderiam refletir na produção acadêmica e intelectual acerca do tema.

Para tal, realizei um balanço simples do volume da produção científica sobre Arquitetura Popular e Habitação Popular no sistema de busca integrada da Universidade de São Paulo, buscando os trabalhos que se referissem à produção social do habitat popular brasileiro, em duas etapas:

A. Busca do tema “Arquitetura” e do tema “Habitação”, separadamente: anotação quantitativa de cada resultado.

B. Busca do tema “Arquitetura Popular” e do tema “Habitação Popular”, também separadamente: anotação quantitativa de cada resultado para efeitos comparativos e posterior filtragem por “assunto”36, finalizando com verificação minuciosa de cada título37 dos resultados obtidos em cada uma das buscas.

36 Esse refinamento foi necessário visto que muitos trabalhos, apesar de usarem corretamente a palavra-chave “popular”, referem-se a outros assuntos no primeiro plano, que não nos interessa para a presente análise, como por exemplo, à produção habitacional estatal (tema de maior volume encontrado nas buscas realizadas).

37 A análise dos títulos levou em conta, além dos próprios títulos dos trabalhos, informações complementares, descrições, resumos e, quando disponível online, a verificação do próprio conteúdo. Não se pode, no entanto, afirmar com absoluta certeza que todos os elencados realmente tratam dos habitats populares, haja vista a impossibilidade de acesso presencial às bibliotecas da USP durante o desenvolvimento da pesquisa, devido à pandemia de Covid-19, e ao fato de apenas algumas produções possuírem versões digitais disponíveis para consulta online.

Busca dos temas “Arquitetura” e “Arquitetura popular”:

FIGURA 8. Portal de Busca Integrada da USP (PBI).

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

FIGURA 9. Portal de Busca Integrada da USP (PBI).

A partir da análise efetuada acima, foi possível constatar um total de 15.333 resultados para o tema “Arquitetura” contra um total de 301 produções intelectuais com o tema “Arquitetura Popular”, o que significa que apenas 1,96% das produções acadêmicas sobre arquitetura do acervo se referem, direta ou indiretamente, à arquitetura popular. Quando aplicados os filtros refinadores, esse percentual reduz para 1,28% (um total de 196 resultados). E, ao analisar minuciosamente, título a título, os 301 resultados de “Arquitetura Popular”, foi possível identificar apenas 31 títulos que se referissem diretamente ao tema da produção de arquitetura popular independente. Isso significa, em termos percentuais, que a produção intelectual sobre arquitetura popular do acervo da principal biblioteca de Arquitetura e Urbanismo do país é da ordem de 0,21%. Ainda dentro dessa análise, é preciso pontuar que 18,75% e 12,50% dos 31 títulos identificados são, respectivamente, produções de autoria, coautoria ou orientação das professoras Maria Ruth Amaral de Sampaio e Akemi Ino, ou seja, quase 32% dessa produção está concentrada em duas únicas pesquisadoras.

Busca dos temas “Habitação” e “Habitação popular”:

FIGURA 10. Portal de Busca Integrada da USP (PBI).

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

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FIGURA 11. Portal de Busca Integrada da USP (PBI).

A partir da segunda análise efetuada, foi possível constatar um total de 2.518 resultados para o tema “Habitação” e 775 resultados para o tema “Habitação Popular”. Nesse caso, já era de se esperar uma representatividade bem mais elevada do tema “popular” no tema de origem, 30,78%, do que no caso anterior, visto que “Habitação” já significa uma filtragem no campo da arquitetura com relação mais direta à questão popular.

Quando aplicados os filtros refinadores, esse percentual reduz-se para 18,9% (um total de 476 resultados). Já na análise mais minuciosa de título a título dessas 476 produções acadêmicas foi possível identificar somente 72 trabalhos com referência direta sobre o tema da produção de arquitetura popular independente, ou seja, 2,86% dos resultados iniciais, uma redução percentual drástica. Também cabe pontuar aqui que dessas 72 produções, 15,28% são, mais uma vez, de autoria, coautoria ou orientação da professora Maria Ruth Amaral de Sampaio.

Tanto na análise do tema “Arquitetura Popular” quanto na do tema “Habitação Popular” só foi identificada a presença de uma única monografia de conclusão de curso (TCC/TFG) que se debruçasse sobre a temática, seja quanto aos aspectos históricos, construtivos, projetuais, sociais, regionais ou ambientais. Essa constatação põe em evidência a forte relação entre a ausência do tratamento do tema no currículo escolar da faculdade e o baixo interesse dos alunos pela questão popular.

Com isso, é possível fazer um paralelo com a tese de Boaventura de Souza Santos (2019) de que não existe um conflito de narrativas que defenda de um lado as práticas hegemônicas e do outro as populares. As práticas não hegemônicas nem sequer existem38 nos currículos que formam os principais profissionais do país e são raridades nas produções intelectuais acadêmicas. Elas não estão nem do lado de cá e nem do lado de lá. Em outras palavras, elas inexistem para o campo.

38 Quando existem são dadas como disciplinas optativas e designadas como “alternativas”, termo que corrobora para a estigmatização das mesmas.

Foi possível perceber, então, um apagamento das arquiteturas populares, negras, indígenas, ou qualquer outra não hegemônica, nos currículos escolares e nas produções acadêmicas pesquisadas, ao passo que arquiteturas de origem europeia são frequentemente abordadas e aprofundadas no campo da história e práticas construtivas provenientes dos países do norte-global dominam o campo das possibilidades de materialização arquitetônica.

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

II. A indústria da construção civil sob a ótica marxista A construção é um dos setores mais particulares da produção social e do seu conjunto. Ela não é uma indústria, ela é uma manufatura, porque não há máquinas operacionais no canteiro de obras. As máquinas são as mãos dos homens, a cabeça dos homens, a habilidade dos homens, assistidos por algumas máquinas muito primárias: guinchos, serras elétricas ou coisas desse tipo, máquinas secundárias que não executam um trabalho criativo. (Ferro, 2021)

Esse é um trecho transcrito por mim de uma aula ministrada pelo arquiteto e urbanista Sergio Ferro, em um curso sobre assistência técnica rural realizado em maio de 2021. A clareza com a qual o professor conta a história da construção civil sob a ótica do pensamento marxista foi, para mim, naquele momento sem pretensão alguma, tão esclarecedora que me lembro bem da minha sensação instantânea de absoluta compreensão e vontade insaciável de compartilhar com todos ao meu redor.

E é por isso que farei o possível para explicar de modo sucinto os ensinamentos tão precisos do professor e como eles podem nos ajudar a compreender melhor o fato de que a desvalorização dos saberes populares não se trata de um fenômeno natural desvinculado de intenções ideológicas, políticas e econômicas, muito pelo contrário, se conforma justamente como arma de manutenção do atual sistema capitalista, no qual estamos inseridos.

Ao explicar, no trecho transcrito, que a construção civil se trata de uma manufatura até os dias de hoje, o professor explica que a tecnologia da construção pouco evoluiu e que talvez tenha até mesmo involuído. E essa pouca ou nenhuma evolução pode ser perfeitamente comprovada pela maneira como os canteiros de obra permanecem sendo organizados da mesma forma que eram desde a época da Renascença, no século XV, quando o capitalismo nasce e começa a se desenvolver.

Na manufatura, em seus moldes originais, o trabalhador da construção civil detinha o conhecimento e a maestria do saber fazer, dominando o processo produtivo do começo ao fim. Na França, berço das maiores revoluções sociais do mundo ocidental, eram os grandes métiers da pedra e os métiers da madeira que dominavam o campo da construção e detinham o saber-fazer da atividade. São esses detentores do conhecimento que vão participar em peso, quando não liderar, revoltas sociais via associação sindicalista no fim do século XIX, a fim de chamar a atenção para as péssimas condições de trabalho, visando a transformação da sociedade. (...) como os operários da construção tinham esse privilégio de serem os únicos que sabiam e podiam construir com suas mãos, essa força vira a arma principal deles. Se eles parassem de trabalhar, ninguém mais poderia construir nada, ninguém mais saberia construir nada. Não havia conhecimento disponível nenhum. Daí o segredo profissional. O segredo dos métiers é para que esse conhecimento não fosse apropriado por outros e retirado dos trabalhadores, retirando deles essa arma de luta. (Ferro, 2021)

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

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Segundo Ferro, sempre foram os trabalhadores da construção civil os mais revoltosos, os mais revolucionários e os mais insubordinados mesmo dentro do processo de subordinação promovido pelo sistema capitalista. Eles promoveram, portanto, durante todo o século XIX, uma luta permanente e constante por sua dignidade, honradez, força, saúde e beleza.

Como estudioso e crítico do sistema capitalista, Ferro (2021) defende, portanto, que o início da desvalorização e substituição dos saberes desses mestres construtores no século XX foi uma artimanha do capital técnico do sistema que ajudou a cessar a ameaça constante promovida pelos trabalhadores civis sindicalistas.39 No lugar do saber tradicional desses mestres construtores se instaurou a utilização de outros materiais de trabalho, que são o concreto e o ferro. (...) O concreto e o ferro são os primeiros materiais cujo saber não vem do povo, não vem dos trabalhadores, mas é um saber de intelectuais, um saber de cientistas e de técnicos de organização do trabalho e de organização dos materiais. Esse saber outro, artificial, do concreto e do ferro, vai retirar dos canteiros de obras os trabalhadores da madeira e os trabalhadores da pedra. (Ferro, 2021)

39 Muitos desses trabalhadores (principalmente italianos) expulsos de seus canteiros de obras migram para o Brasil e seus saberes aplicados em nosso território fazem parte da imensa miscigenação cultural popular brasileira subvalorizada.

Outros trabalhadores, de certa forma enfraquecidos por não possuírem mais a arma do saber, passam então a ocupar o lugar dos grandes métiers tradicionais. Esses novos trabalhadores passam a ser integralmente dependentes de um escritório, que fazia os cálculos, determinava as quantidades, o desenho da estrutura, etc. (assim como conhecemos hoje). Estando sob controle direto de decisões superiores, passam a trabalhar como máquinas primárias de simples execução, comandados por um detentor do conhecimento e da criação. Com isso, os trabalhadores da construção civil perderam a principal (e talvez única) arma que tinham de resistência contra o sistema.

Mesmo que, pouco a pouco, com a rápida disseminação do concreto e do ferro (e de outros materiais industrializados) na construção civil, esses novos trabalhadores viessem a adquirir novos saberes construtivos, este novo saber não é mais reconhecido como sendo, em parte, da autoria e da propriedade desses trabalhadores. São tidos e reconhecidos de propriedade exclusiva do sujeito técnico, que impõe seu desenho, sua técnica, sua sabedoria e sua decisão aos operários. Esse é o momento em que se instaura a superioridade abstrata do saber científico no âmbito da construção civil da qual fala Boaventura de Souza Santos (2019).

A partir disso é possível compreender que, apesar de ainda se conformar como uma manufatura, a construção civil, um dos setores de maior acumulação de riquezas das nações, encontrou meios de dominação social por via da privação do saber, da desvalorização dos saberes tradicionais e da alienação de seus trabalhadores ao separar o saber do fazer. (...) durante cinco séculos o capital se aprimorou em termos de técnicas de dominação no canteiro. De técnicas de dominação indiretas, porque, como não há máquinas, não há uma linha de montagem que force o ritmo de produção, que force a produção através de uma

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

ilusória objetividade técnica. Mas, ao contrário, como é só trabalho humano que conta na construção, as técnicas de dominação são sofisticadíssimas. O trabalho é primário, são as mãos e o saber que está na cabeça e na habilidade desses homens, mas as técnicas para vencer a resistência, para passar através desse saber são absolutamente enormes. (Ferro, 2021)

Sérgio Ferro finaliza sua aula dando diversos exemplos de experiências arquitetônicas realizadas por ele e seus colegas cuja intenção era a valorização do trabalho realizado pelo operário da construção civil, explorando o melhor das técnicas e dos materiais disponíveis, sejam eles o concreto, a pedra, o aço, ou o que fosse. Suas experiências mostram que a revisão da relação entre operário, técnica e técnicos se faz necessária nos canteiros de obras atuais. a construção pode ser de uma simplicidade extraordinária, reduzindo um monte de absurdos, de atitudes que estão escritas no cotidiano, no miúdo do canteiro. Para valorizar o trabalho, para conhecer o trabalho, para que ele possa realmente falar, o trabalho humano, para que ele possa cantar, o trabalho humano, ele tem que voltar para suas formas mais simples, mais elementares. (...) não há nenhuma invenção tecnológica nova aqui, todos esses materiais estavam disponíveis, nunca inventamos material diferente, (...) usar simplesmente esses materiais e a arquitetura de outra maneira, seguindo passo a passo, seria uma manufatura potencialmente transformada em que os trabalhadores têm a palavra e a decisão na mão, de novo. (Ferro, 2021)

III. A História dos três porquinhos - um imaginário criado Independente da classe, raça ou gênero, qualquer pessoa inserida na lógica ocidental que vivemos atualmente conhece a famosa fábula dos três porquinhos. Nessa antiga história de possível origem inglesa, três porquinhos saem para a vida adulta e precisam construir individualmente as suas casas. Cada um dos porquinhos opta por um método construtivo diferente que está intrinsicamente relacionado à sua personalidade mais ou menos preguiçosa. O resultado é uma casa de palha, uma de madeira e outra de tijolos e cimento. Abordadas, respectivamente, por um “lobo mau”, as casas de palha e de madeira são facilmente destruídas, enquanto a casa de tijolos resiste à ação do vilão. A moral que essa história tenta passar é a de que tudo o que é feito com esforço árduo tem melhor resultado.

O primeiro porquinho, que era o mais preguiçoso de todos, foi logo optando por construir uma casa rápida e que não necessitasse muito esforço. E construiu uma casa de palha, embora os seus irmãos lhe tenham dito que não era segura.

O segundo porquinho, que era menos preguiçoso que o primeiro mas que tampouco gostava de trabalhar, construiu uma casa de madeira, porque pensava que era mais prática e resistente.

O terceiro porquinho, o mais sensato de todos e mais trabalhador, preferiu construir uma casa de tijolos. Demorou mais para construí-la, mas depois de três dias de intenso trabalho a casa estava prontinha.40

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

40 Fonte: https://www. historiaparadormir.com.br/os-tresporquinhos/

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Esses trechos podem variar, de acordo com a fonte da história, quanto ao nível de detalhamento, mas sempre trazem os mesmos sentidos em relação aos termos destacados, atrelando as características dos sujeitos às escolhas construtivas de cada um. Enquanto as opções do “mais preguiçoso” e daquele que “tampouco gostava de trabalhar” resultaram na ausência de qualidade e estabilidade de suas moradias, a do “sensato” e “mais trabalhador” trouxe maior estabilidade à sua habitação, que resistiu firmemente às intempéries representadas pelo lobo mau na fábula.

Essa relação entre materiais construtivos naturais e orgânicos, de fácil acesso, com precariedade, baixa durabilidade e baixa qualidade, contraposta à relação de materiais construtivos industrializados com rigidez, estabilidade, qualidade e durabilidade, reflete exatamente o imaginário da sociedade brasileira da construção civil. “se assoprar e cair, é déficit”41

Contando essa história às nossas crianças, estamos reproduzindo uma desvalorização estrutural da arquitetura popular brasileira, ao passo que nossos ancestrais se utilizavam justamente de materiais provenientes da natureza em seu estado puro para construir suas moradias, sem que isso tivesse qualquer relação com a falta de disposição para o trabalho, nem tampouco resultasse em edificações desprovidas de qualidade ou durabilidade. A palha e a madeira são, aqui, a materialização da não-arquitetura.

A história dos três porquinhos ganhou notoriedade mundial após ter sido convertida em um curta metragem dos estúdios do Walt Disney e lançada nos cinemas dos EUA em 1933. Esse foi o ano no qual os cidadãos estadunidenses enfrentavam um dos piores momentos da crise desencadeada pela quebra da bolsa de Nova York, em 1929, quando cerca de 27% da mão de obra ativa norte-americana estava sem emprego.

Foi também o ano em que Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) assumiu a presidência do país com a proposta de retomada da economia tendo o Estado como grande promotor de desenvolvimento. Seu plano envolvia, dentre outras coisas, a reorganização dos sindicatos trabalhistas e a expansão do setor de construção civil para a contratação abundante de mão de obra. O entretenimento era uma forma de escape da situação de crise, e os filmes e quadrinhos eram opções que se popularizavam com facilidade visto o baixo custo da diversão. É sabido ainda que o presidente Roosevelt costumava estabelecer parcerias com a indústria do cinema para a produção de filmes que se tornavam peças publicitárias de interesse político. (Sorrilha, 2021)42 A história dos três porquinhos desencadeou sentimentos bem convenientes ao contexto político econômico quando do seu lançamento, de valorização do trabalho árduo e da construção civil. Não encontrei, no entanto, nenhuma fonte que comprovasse algum interesse político e econômico por trás do lançamento do curta metragem em questão.

Também não acredito que tenha sido lançado a fim de criar um desvalor popular das construções tradicionais. A questão que trago é a de que a disseminação, mesmo que despretensiosa, de entretenimento popular, tem poder e alcance imensuráveis de mol-

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41 Frase sarcástica comumente utilizada pela arquiteta Suzana Pasternak ao ministrar suas aulas sobre a questão habitacional brasileira na FAU-USP.

42 Marcos Sorrilha é professor assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista e possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) onde realizou também seu Mestrado e Doutorado.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

dagem de ideias e valores sobre as nossas vidas e podem influenciar, e até mesmo direcionar, as percepções de uma população sobre algo. Nesse caso, sobre as construções com métodos e materiais não industriais ou, em outras palavras, a “superioridade abstrata do conhecimento científico” citado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos (2019).

IV. Duas experiências de melhorias habitacionais para povoados tradicionais No percurso deste trabalho me deparei com algumas experiências governamentais que não são comumente citadas nas disciplinas que exploram a questão habitacional brasileira ministradas na FAUUSP, mas que me instigaram profundamente e que, portanto, merecem espaço nessa investigação a fim de auxiliar a construção do pensamento crítico sobre a desaculturação popular do nosso país. O contato com essas experiências se deu através de trocas realizadas entre participantes provenientes de todas as partes do Brasil, em um curso sobre assistência técnica rural43 do qual participei em 2021. a) O Programa de Melhorias Habitacionais para Controle da Doença de Chagas (MHCDC) O Programa de Melhorias Habitacionais para Controle da Doença de Chagas (MHCDC) da FUNASA44 destina-se às famílias de baixa renda que habitam em regiões onde a Doença de Chagas é endêmica e cujas residências propiciam a infestação pelo vetor, o barbeiro.

O programa prevê a realização de melhorias habitacionais em edificações cujo estado de conservação suporta as intervenções, ou novas construções em casos de moradias que não suportam estruturalmente as melhorias necessárias, exigindo, nesses casos, a demolição completa da edificação anterior.45

43 Curso oferecido pela Peabiru e pelo Canteiro Autogestionário do Assentamento Rural Rosa Luxemburgo através de edital de fomento do CAU-SP em 2021.

44 Fundação Nacional de Saúde.

45 Informações retiradas do documento: ELABORAÇÃO DE PROJETO DE MELHORIA HABITACIONAL PARA O CONTROLE DA DOENÇA DE CHAGAS (o mesmo documento possui uma versão datada de 2003 e outra de 2013, mas ambas são idênticas), disponível em http://www.funasa.gov.br/bibliotecaeletronica/publicacoes/engenhariade-saude-publica/-/asset_publisher/ ZM23z1KP6s6q/content/elaboracaode-projeto-de-melhoria-habitacionalpara-o-controle-da-doenca-dechagas?inheritRedirect=false, acesso em 12/novembro/2021.

FIGURA 12. Casas antes e depois das melhorias efetuadas.

Fonte: Fundação Nacional de Saúde

Nos casos de necessidade de reconstrução, o programa define que: O principal fator a ser observado na definição da área da casa a ser reconstruída deve ser o número de habitantes do domicílio, respeitando a cultura, a realidade local e o tamanho da residência existente.

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

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É de fundamental importância a participação dos moradores em todas as etapas do projeto, desde a sua concepção. (Fundação Nacional De Saúde, 2013, p. 15)

No entanto, apesar de constar por escrito no documento acima que o respeito à cultura e à realidade local é fator determinante de projeto, é apresentado logo em seguida um quadro dos parâmetros de definição do projeto arquitetônico da habitação com rígidas restrições de tamanho (consideram como área máxima permitida às famílias de até duas pessoas, 37m², e de até 7 pessoas, 55m²), além de uma clara delimitação dos materiais e das devidas técnicas construtivas que deverão ser empregadas.46 Para fechar com chave de ouro, disponibilizam ainda, como “sugestão”, pacotes de arquivos de projetos executivos completos para habitações de 1 a 4 quartos.

46 Minuciosamente detalhadas nos documentos oficiais de Especificações Técnicas para a construção de melhorias habitacionais para o controle da doença de Chagas (Ministério da Saúde, 2017)

Esta especificação e o projeto que a acompanha são apenas uma referência e uma contribuição da FUNASA com o objetivo de facilitar a execução da obra. (...)

A adoção de qualquer outro projeto é permitida porém, neste caso, a conveniada deverá apresentar um projeto específico para cada tamanho de casa, os quais estarão sujeitos às seguintes condições para que venham a ser aceitos pela FUNASA: - Só poderão ser utilizados materiais e serviços que estejam previstos na planilha orçamentária do projeto da casa modelo; - O projeto específico deverá atender a todos os requisitos, técnicos e funcionais, do projeto modelo; - O custo total da casa de forma alguma poderá ser maior que o da casa modelo com o mesmo número de quartos; (...) (Ministério da Saúde, 2017)

QUADRO DE PARÂMETROS PARA DEFINIÇÃO DO PROJETO ARQUITETÔNICO DA HABITAÇÃO No de habitantes

Área (m2) mínima

máxima

1—2

33

37

3—4

37

5—6 7 ou mais

No de quartos

Instalação Elétrica tomada

ponto de luz

1—2

4—8

4—5

45

2—3

5—9

5—6

45

50

2—3

5—9

5—6

50

55

3—4

6 — 10

6—7

Fonte: Elaboração de projeto de melhoria habitacional para o controle da doença de chagas (Ministério da Saúde, 2017)

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

O que se percebe pelos documentos oficiais do Programa é uma generalização do problema e uma padronização da resolução bem evidentes. Não foi encontrado nenhum indício de orientações para um projeto participativo, como se prevê em trecho já mencionado acima. Também não foi encontrado nenhum documento técnico mais detalhado sobre os casos em que a reforma é viável, seja a respeito dos parâmetros para se optar por essa modalidade ou dos processos de reparação das patologias. Ao contrário dos casos de reconstrução, as reformas, teoricamente, demandariam maior cuidado e liberdade com as escolhas projetuais de intervenção, que não poderiam se limitar aos materiais e técnicas construtivas convencionais. No entanto, não foi encontrado nenhum caso em que essa possibilidade tenha sido efetivada.

Um grande incômodo ainda é gerado ao notar com maior atenção a forma como o programa é reportado nos meios de comunicação, sempre exaltando a “erradicação das casas de taipa” ao invés da erradicação da doença de chagas. É preciso pontuar que a disseminação de vetores da doença em casas populares é decorrente da precariedade com a qual as habitações costumam ser executadas e não necessariamente da técnica da taipa ou de qualquer outra que empregue terra crua na sua concepção. A mesma técnica, com a mesma matéria-prima, quando empregada corretamente e com os devidos acabamentos, alcança o mesmo, ou maior, nível de salubridade que uma casa de alvenaria de tijolos industrializados. Sendo que esta última, se também for mal executada, poderá igualmente servir de abrigo para insetos vetores de doenças endêmicas.

FIGURA 13. Construção de casas no município de Muribeca, Sergipe, viabilizadas pelo programa MHCDC, em 2021 (Suest/SE). Fonte: Ministério da Saúde, 2021.

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

97

Tal identificação da taipa com precariedade e, principalmente, com a disseminação de doenças graves como a doença de Chagas é bem recorrente e consolidada no senso comum e pode ser bem conveniente para o estabelecimento de mercados da construção civil. Não é de se espantar que os próprios beneficiados do programa, ao receberem casas de alvenaria, comemorem o fim da “era da taipa”, pois talvez nunca nem mesmo tenham visto uma casa de taipa em boas condições. A casa de alvenaria, para essas pessoas, significa uma mudança de vida imensurável,47 e não há o que se questionar sobre isso.

Para o líder comunitário de Várzea da Onça, em Muribeca, Erisvaldo Ferreira, 30 anos, as casas de alvenaria são sonhos concretizados para as famílias. “Sou um líder comunitário daqui, da comunidade, e hoje vejo um sonho sendo realizado pela Funasa. Vejo a minha comunidade com muitas casas de taipa, que não têm banheiro, não têm saneamento básico, convivendo onde não tem estrutura para viver”, afirmou. (Ministério da Saúde, 2021)

47 Cabe fazer menção aqui à obra Casa de Alvenaria da escritora e poetisa Carolina Maria de Jesus, cujo título já denota a mudança social que se materializa no método construtivo da moradia. (Maria de Jesus, 1961)

Há de se perguntar, no entanto, se essas ações não contribuem para a desaculturação popular, ao passo que desconsideram qualquer outra possibilidade arquitetônica divergente da convencionalmente adotada nas produções habitacionais populares estatais. É indiscutível a urgente necessidade do controle da doença de Chagas via melhorias habitacionais, mas uma análise mais minuciosa dos modos como o programa tem sido implantado, dos resultados que tem obtido e das relações políticas e econômicas envolvidas no processo são assuntos de extrema pertinência para um trabalho futuro. b) Programa de Moradia Indígena do Governo do Estado de São Paulo A fim de promover o atendimento habitacional às aldeias indígenas do estado de São Paulo em terras detentoras de Título de Domínio, o Programa de Moradia Indígena foi formalizado pela Lei Estadual nº 11.025, de 28/12/2001, com implementação sob responsabilidade da CDHU e aplicação dos recursos a fundo perdido.

O Programa de Moradia Indígena prevê a substituição de habitação existente por unidade habitacional nova, em tipologias adequadas aos usos e hábitos culturais das comunidades indígenas. (Governo do Estado de São Paulo, 2012, p. 4)

O programa abrangeu uma população indígena total de 4.553 pessoas distribuídas pelas regiões do Vale do Ribeira, Litoral Norte, Litoral Sul, Grande São Paulo e Oeste Paulista, e, até o momento de publicação do documento, haviam sido entregues um total de 608 unidades habitacionais, com um valor empreendido de R$18.086.985,44, entre os anos de 2002 e 2012.

Quanto aos benefícios do programa, elencados em seu caderno oficial, consta o resgate dos valores históricos; o desenvolvimento da consciência cidadã; a preservação dos usos e costumes; a garantia aos índios do respeito a seus direitos fundamentais e

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

a sua cidadania; e a melhoria da qualidade de vida, segundo padrões e valores (...) na definição de projetos de desenvolvimento econômico adaptados à sua raiz cultural e à capacidade regional. (Governo do Estado de São Paulo, 2012, p. 5) No que se diz respeito às estratégias de preservação dos usos e costumes originais da raiz cultural dos povos contemplados e do resgate dos valores históricos por meio da reconstrução de seus habitats, consta, diversas vezes no caderno que a escolha tipológica das novas construções se deu através de decisão da própria comunidade em projeto participativo. Não encontrei, no entanto, nenhum detalhamento ou diretriz desse processo participativo nos documentos do programa e o capítulo destinado à descrição desse processo, intitulado “Escolha da Tipologia”, o descreve em apenas 6 linhas e de forma bastante genérica. Além disso, segundo o mesmo caderno, o programa e as tipologias habitacionais eram pré-selecionados pela própria CDHU e apresentados paras as comunidades posteriormente. O texto oficial não deixa claro o nível de liberdade de escolha dessas comunidades em relação às moradias que seriam adquiridas, pontuando apenas que seriam “compatíveis com a cultura indígena”. É importante ressaltar a ausência descritiva desse processo dito participativo porque, a partir das fichas catalogadas das habitações produzidas em cada aldeia, constatou-se uma similaridade muito mais próxima às habitações não-indígenas do que às habitações indígenas.

No trecho introdutório das aldeias da região do oeste paulista, por exemplo, onde as aldeias possuem a atividade agrícola como uma das formas de subsistência, o programa descreve a implementação de 192 unidades habitacionais com características arquitetônicas de casas caboclas “de moradia rural que reflete o modo de vida das comunidades integradas ao trabalho agrícola.” (Governo do Estado de São Paulo, 2012, p. 19)

FIGURA 14. Casas construídas pelo Programa na região do oeste paulista (foto: Fabio Knoll). Fonte: Programa de Moradia Indígena do Estado de São Paulo, p. 20.

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

99

Etnia

População

UHs

Área (m2)

Aldeia Jaguará

Guarani Mbya

130 (2010)

5

45,62

Aldeia Morro da Saudade/Pinheiros

Guarani Mbya

502 (1998)

110

57,87

Aldeia Ekeruá, Kopenoty, Nimuendaju e Tereguá/Avaí

Guarani Nhandeva e Terenas

584 (2004)

154

45,6

Aldeia Vanuíre/Arco-íris

Kaingang e Krenac

181 (1998)

59

52,14

Aldeia Icatu/Braúna

Kaingang e Terenas

104 (2010)

32

56,5

Aldeia Rio Silveira/São Sebastião

Guarani Mbya

320 (1998)

59

47,14 m2 (1 dorm) e 57,14 m2 (2 dorm)

Aldeia Boa Vista/Ubatuba

Guarani Mbya

246 (2010)

50

32

LITORAL NORTE

OESTE PAULISTA

MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

QUADRO DE TIPOLOGIAS ADOTADAS NO PROGRAMA DE MORADIA INDÍGENA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Fonte: elaboração própria a partir das fichas catalogadas no caderno oficial do programa.

100

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

Materiais

Programa

alvenaria e telha de barro

quartos e sala integrados, cozinha e banheiro

alvenaria e telha de barro

3 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

alvenaria e telha de barro

2 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

alvenaria e telha de barro

2 quartos, sala, cozinha, banheiro, varanda e área de serviço

alvenaria e telha de barro

2 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

vedação em madeira, banheiro em alvenaria de bloco de concreto, cobertura de piçava, pilares e esquadrias de madeira

quartos e sala integrados, cozinha e banheiro

alvenaria e telha de barro

2 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

101

LITORAL SUL

QUADRO DE TIPOLOGIAS ADOTADAS NO PROGRAMA DE MORADIA INDÍGENA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Aldeia Bananal/Peruíbe

Guarani Nhandeva

43 (2010)

15

53,35

Aldeia Rio Branco/Itanhaém

Guarani Mbya

70 (2010)

28

53,35

Aldeia Rio do Azeite/ Serra do Itatins-Itariri

Guarani Nhandeva

46 (2010)

12

53,35

Aldeia Capoeirão/ Serra do Itatins-Itariri

Guarani Nhandeva

27

12

52

Aldeia Guarani do Aguapeú/ Mongaguá

Guarani Nhandeva e Mbya

66

27

52,35

Fonte: elaboração própria a partir das fichas catalogadas no caderno oficial do programa.

102

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

alvenaria e telha de barro

2 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

alvenaria e telha de barro

3 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

alvenaria e telha de barro

2 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

alvenaria e telha de barro

2 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

alvenaria e telha de barro

3 quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

103

A partir da sistematização das fichas contidas no caderno do programa (Quadro de tipologias adotadas no Programa de Moradia Indígena do Estado de São Paulo), é possível perceber que das 563 unidades habitacionais detalhadas, apenas 59 (todas essas em uma única aldeia) foram construídas com materiais não convencionais à construção civil urbana, ou seja, alvenaria e telhas de barro. Isso significa que 90% da produção total de moradias indígenas foram construídas nos moldes da construção civil ocidental hegemônica, produzindo habitats mais semelhantes a uma zona rural do que a aldeias indígenas. Até mesmo as plantas arquitetônicas, que chegam a se repetir de forma idêntica em aldeias de etnias distintas, possuem elementos mais ilustrativos de residências da cultura ocidental do que da cultura indígena. É claro que resistência indígena na contemporaneidade sofre influências da cultura ocidental que são por vezes incorporadas às suas rotinas. No entanto, a completa descaracterização da cultura indígena presente em quase todos os projetos apresentados alerta para uma desaculturação desses povos tradicionais por meio da necessidade de melhorias habitacionais de suas moradias.

Assim, como no exemplo anterior do Programa de Controle da Doença de Chagas, somente a análise de estudos mais aprofundados acerca do Programa Estadual de Moradia Indígena poderá ampliar a compreensão sobre essas políticas de redução da vulnerabilidade de povos tradicionais. Por enquanto fica apenas o questionamento se os fins justificam mesmo os meios.

V. A questão do Patrimônio Um lugar importante a partir do qual é possível refletir sobre o desvalor popular é o campo do patrimônio. Segundo decreto de criação do SPHAN48 (1937), primeiro órgão de preservação patrimonial do país, o patrimônio histórico artístico nacional é designado como o “conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país, quer por sua vinculação a fatos memoráveis, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou histórico”.

48 Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Portanto, em teoria, tal conjunto deveria abranger tudo ou quase tudo que represente o passado cultural e histórico de um país. Essa representatividade acabaria por elevar o que fosse contemplado a nível de riqueza nacional, passando a ser respeitado e preservado como tal.

No entanto, não é assim que o patrimônio oficial de um país se conforma. Na verdade, a preservação cultural e o campo do patrimônio material e imaterial são inerentes à dimensão político-ideológica do tempo. É, portanto, um campo de tensões, as quais, porém, se procura ignorar ou subestimar, a partir de conceitos naturalizados de memória, identidade e pertencimento. (Pinheiro, 2017, p. 30) A partir do amplo estudo realizado pela professora Silvana Rubino (1994) acerca das origens, criação e trabalhos do SPHAN, é possível afirmar que o processo de demarca-

104

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

ção do que seria considerado de valor histórico ou não para o país foi profundamente marcado por interesses políticos e ideológicos. Essa imparcialidade na construção da memória nacional resultou em disparidades regionais, temporais e tipológicas profundas que, sem dúvida alguma, contribuíram e ainda contribuem para a desvalorização de parte significativa da nossa cultura popular.49 Em um país de grandes dimensões, o SPHAN desenvolveu suas atividades de modo marcadamente desigual. O conjunto dos bens tombados desenha um mapa de densidades discrepantes nas diversas regiões, períodos e tipos de bens, formando conjuntos fechados e finitos. (Rubino, 1994, p. 97)

Se no final do século XIX, houve uma associação clara, por parte das elites brasileiras, entre valores culturais europeus e as noções vigentes de modernidade e civilização, manifestadas nos costumes, nas artes, na moda, com destaque para a arquitetura, capaz de evocar/emular paisagens urbanas dignas das metrópoles europeias, com a pretensão de esquecer e obliterar o passado colonial, primitivo, retrógrado, tacanho, em nome do progresso (Pinheiro, 2017, p. 14), no século seguinte, o período de início oficial da construção da identidade brasileira elencou justamente o período colonial como base dessa identidade. Ficaram de fora desse modelo reduzido de país: as contribuições indígenas, as africanas e as imigrantes.

49 Mário de Andrade foi um dos poucos intelectuais que dedicou sua vida à pesquisa e exaltação da cultura popular brasileira. Por meio de viagens etnográficas a diversas regiões do Brasil, como a que foi realizada em 1927 para o Norte do país, o escritor buscou se aproximar da nossa essência popular, com atenção profunda ao indivíduo, à música popular e às paisagens com as quais se deparava, não deixando de evidenciar as formas de produção do espaço. Sua pesquisa e suas impressões foram documentadas por meio de fotografias e textos do escritor.

QUADRO DE DISTRIBUIÇÃO DOS TOMBAMENTOS DO SPHAN SEGUNDO O SÉCULO DO BEM TOMBADO Século

no

%

Sem data precisa

36

5,2

XVI

45

6,5

XVII

101

14,7

XVIII

377

54,7

XIX

124

18

XX

6

0,9

Século

689

Fonte: (RUBINO, 1994, p. 102)

Um dado bem impressionante da pesquisa de Rubino diz respeito à distribuição desproporcional dos tombamentos realizados pelo SPHAN pelos diversos estados do Brasil. A pesquisa revela que mais de 64% dos tombamentos estavam concentrados em apenas três Estados: Bahia, Minas Gerais (líder absoluto) e Rio de Janeiro; tendo sido o estado do Amazonas o último a entrar para o conjunto de bens que representassem a nação, título concedido a um teatro do ciclo da borracha apenas em 1966, quase trinta anos após a criação do órgão.

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

105

O conjunto eleito revela o desejo por um país passado, com quatro séculos de história extremamente católico, guardado por canhões, patriarcal, latifundiário, ordenado por intendências e casas de câmara e cadeia, e habitado por personagens ilustres, que caminham entre pontes e chafarizes. (Rubino, 1994, p. 98)

QUADRO DE DISTRIBUIÇÃO DOS TOMBAMENTOS DO SPHAN SEGUNDO O ESTADO DO BEM TOMBADO Estados da União

no

%

Alagoas

5

0,7

Amazonas

1

0,1

Amapá

1

0,1

Bahia

131

19,9

Ceará

3

0,4

Distrito Federal

1

0,1

Espírito Santo

11

1,6

Fernando de Noronha

1

0,1

Goiás

17

2,5

Maranhão

8

1,2

Minas Gerais

165

23,9

Mato Grosso

1

0,1

Pará

16

2,3

Paraíba

15

2,2

Pernambuco

56

8,1

Piauí

6

0,9

Paraná

8

1,2

Rio de Janeiro

140

20,3

Rio Grande do Norte

10

1,5

Rio Grande do Sul

13

1,2

Rondônia

1

0,1

Santa Catarina

8

1,2

São Paulo

41

6,0

Total

689

Fonte: (RUBINO, 1994, p. 102)

106

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

No entanto, a nossa história se inicia muito antes do ano de 1500, sendo a civilização brasileira e o nosso patrimônio arquitetônico frutos de um imenso repertório cultural miscigenado de infinitas origens. Como afirmou Rubino, O SPHAN elegeu um Brasil antepassado (...) ao delimitar claramente de quem “descendemos”. Não é um discurso da superioridade branca, lusitana e cristã conferido pela detração do outro e sim pela sua exclusão (...) (Rubino, 1994, p. 103)

É importante pontuar, no entanto, que em 2000 o Iphan estabeleceu procedimentos para a realização de Inventários Nacionais de Referências Culturais (INRC) que indica novas possibilidades para a estruturação de reconhecimentos de nosso patrimônio cultural. Dessa iniciativa, surgiu o projeto denominado “Mestres e Artífices da Construção Tradicional” que visa o inventário e registro dos saberes ligados à construção civil. A valorização oficial desses conhecimentos que resistem até hoje às ameaças da contemporaneidade tem importância inestimável tanto na manutenção dessas ricas culturas populares quanto na construção de uma identidade brasileira mais coerente, e a pouca ou nenhuma repercussão dada a essa iniciativa demonstra ainda mais o lugar que a cultura popular ocupa no campo do patrimônio brasileiro.

A demarcação de valor oficial a apenas parte da nossa cultura, baseada em aspectos ideológicos, políticos e econômicos, invisibiliza violentamente diversas outras riquezas, outras culturas, outras formas de habitar, outras formas de se construir, outras arquiteturas, outros brasis.50 Como o canto da Estação Primeira de Mangueira já nos alertou em 2019, Com versos que o livro apagou Desde 1500 Tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato51

50 Rubino (1994).

51 Trecho do Samba-Enredo de 2019 do GRES Estação Primeira de Mangueira.

* * *

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

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Três porquinhos brasileiros

Crianças, peço atenção: Para apresentar agora Três porquinhos brasileiros.

Cícero, o da viola Heitor, mestre da folia Prático, o engenheiro Que trabalha todo dia.

Cícero sabe ponteio , Baião e chula raiada Heitor é de Santos Reis Do samba, da marujada.

Prático não quer pandeiro: - Viola não dá dinheiro, Sanfona não dá morada.

Cícero fez uma casa Com a folha da palmeira Que dança ao vento da beira Do porto de Cabedelo.

Trançou-a com graça e zelo Que nem a mulher rendeira Trança as cordas do cabelo.

Heitor fez casinha simples De madeira à beira mar.

Na porta contra quebranto Arruda e patuá.

A pombinha do Divino A fé no Espírito Santo E a guia de Oxalá.

Prático prefere pedra Tijolo e argamassa Trabalha e não quer graça Folia, fandango, canto

108

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIA

Sem fole, sem acalanto Sem descanso no domingo Sem festa, sem dia santo.

Como estamos na floresta Aqui lobo mau não manda.

Quem grita na nossa banda Ameaçando a porcada É ela, a onça pintada Filha da jaguatirica Yauaretê da mata.

Acontece que a felina Escutou a barulheira Que o Prático fazia.

O martelo despertou A fome cruel da onça Que acordada decretou É hora da comilança!

Mas ouvindo a folia A fera gostou da moda E o Prático, aliviado, Deixou de virar presunto.

A onça mudou de assunto Dançou no baque virado Caiu no samba de roda Assim termina a história Dos porquinhos brasileiros.

Prático, o engenheiro Desistiu da martelada Só descansa, dá risada Faz padê, toca pandeiro Tá casado com a pintada.

(Simas, 2019)

CONSTRUÇÃO DO DESVALOR POPULAR

109

FIGURA 15. Edificação de pedra para reuniões comunitárias na Vila de Igatu, BA. Fonte: Autora.

PARTE III o avesso do mesmo lugar

BRASILEIRAS

De Oliveira, E. V. apud Weimer, 2005, p. 73

POPULARES

E TÉCNICAS

ARQUITETURAS

112

“A casa popular é um dos mais significativos e relevantes aspectos da humanização da paisagem, em que, na sua grande diversidade de tipos, afloram, com particular evidência, numerosos condicionamentos fundamentais – geográficos, econômicos, sociais, históricos e culturais – das respectivas áreas e dos grupos humanos que a constroem e a habitam.”

O AVESSO DO MESMO LUGAR

A fim de ampliar o pouco contato que temos com as arquiteturas populares brasileiras e validá-las como arquiteturas concretas, reais, possíveis e de alto valor técnico-construtivo, e não mais apenas como símbolos folclóricos e de “exotismo”, proponho um passeio por algumas típicas formas de habitar das camadas populares brasileiras.

Serão apresentadas, nessa incursão, culturas construtivas que se materializam na forma de casas de terra, casas de pedra, casas de madeira e casas indígenas.

Assim como apontou Guizzo (2019) na sua defesa da revalorização ancestral em prol da reativação dos nossos territórios, não há intenção alguma em defender uma identidade brasileira coesa nem tampouco em petrifica-lo ou retomar aos hábitos passados; o objetivo claro é demarcar a existência de muitos outros brasis e muitos povos singulares que nos ensinam, nos questionam e nos movem, (Guizzo, 2019, p. 17) e podem sim nos apontar outras possibilidades de viver e de morar.

Adianto, no entanto, que um maior aprofundamento dessas e outras culturas construtivas populares ficará a cargo de trabalhos futuros.

113

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

FIGURA 16. Residência do mestre adobeiro Altemar, no Vale do Pati, Bahia.

Fonte: Autora.

114

O AVESSO DO MESMO LUGAR

I. Casas de Terra Crua O barro pode ser empregado e trabalhado de diversas formas na construção do habitat. Largamente utilizado por todo o globo terrestre, ainda hoje cerca de 60% da população mundial vive em construções executadas com terra crua (UNESCO, 2014 apud Lins & De Santana, 2017). No Brasil, ela se constituiu no material de construção mais importante durante quatro quintos de toda nossa história pós-colonial. Por ser um material abundante e brando, a terra não requer altos investimentos para ser trabalhada, sendo as próprias mãos suficientes, o que explica o fato de ser, até os dias de hoje, muito utilizada por aqueles que não têm recursos financeiros para arcar com as despesas de materiais industrializados. (Weimer, 2005; Mesquita & Mota, 2017) Quase todas as culturas pré-coloniais da América se utilizavam da terra em suas construções. No Brasil, a construção com terra está presente desde o início da ocupação portuguesa, unindo costumes indígenas, costumes africanos e práticas de construção lusitana (Lins & De Santana, 2017). São inúmeras as técnicas construtivas que empregam a terra crua como material. No Brasil as mais populares são52: Taipa de mão (de sebe ou de sopapo) Também conhecida como pau-a-pique ou bambu-a-pique devido à trama que sustenta e recebe a massa de terra. A técnica consiste num engradado de peças de madeira (nos sentidos vertical e horizontal) preenchido com barro53 — que pode ou não estar misturado a algum outro material para aumentar sua capacidade de tração — molhado e amassado (com a pá, enxada ou os próprios pés) para desmanchar os torrões.

52 Outras técnicas construtivas que se utilizam da terra crua têm se difundido no movimento arquitetônico da Bioconstrução atualmente, como a Terra Ensacada e o COB, por exemplo.

53 Técnica popularmente conhecida como barrear ou embarrar a casa.

FIGURA 17. Barramento de casa de barro em Iuna – Lençóis. Fonte: Lins & De Santana, 2017.

FIGURA 18. Demonstração de tramas para pau-a-pique em curso de biocontrução do TIBA-RIO. Fonte: Autora.

Barramento de casa de barro em Iuna – Lençóis

com Sr. Biquinha foi possível acompanhar a execução de uma casa utilizando a técnica de enchimento de barro, para a Semana de Cultura, realizada pela Secretaria de Educação e Cultura. Vale a pena ressaltar o esforço da Prefeitura em incentivar a permanência da técnica, o que coaduna com os princípios estabelecidos pela Carta de Tlaxcala (México, 1982) que ressalta “o esforço para identificar, encorajar, manter em vigor e reforçar no espírito das comunidades o prestígio e o valor do uso de tais materiais e técnicas, justamente onde eles existem.”

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

ALVENARIAS, TIJOLINHOS E ADOBINHOS Segundo Sr. Nonô, mestre carpinteiro do Povoado do Outro Lado, município de Souto Soares, e conhecedor de várias técnicas tradicionais, o termo adobinho surgiu porque é menor que o adobe. No entanto, no Sítio em estudo foram identificadas outras

115

Taipa de pilão A técnica consiste em socar com um pilão a terra levemente umedecida entre dois tabuados laterais, que são amarrados entre si superior e inferiormente. Para que a massa seja uniforme, a terra deve ser colocada aos poucos e apiloada uniformemente. Pode ser executada manualmente ou mecanicamente.54

54 A empresa paulista Taipal, por exemplo, executa edificações em terra crua com a técnica da taipa mecanizada, atendendo, principalmente, um mercado imobiliário de alto padrão.

FIGURA 19. Mestre de obras no ofício da taipa mecanizada. Fonte: Autora.

FIGURA 20. Construção em taipa de pilão mecanizada. Fonte: Divulgação TAIPAL.

Adobe Os adobes são tijolos de terra crua moldados à mão ou em fôrmas de madeira – com ou sem fundo – a partir de uma massa maleável, geralmente com a terra retirada do próprio local da construção e acrescido de água. Após a modelagem os adobes são secos ao ar livre, na sombra. (Lins & De Santana, 2017) Raspando o adobe – Reginaldo Melo – Mestre Regi Distrito de Cachoeirinha – Wagner

Pedreiro Reginaldo Melo – Regi Distrito de Cachoeirinha – Wagner

FIGURA 21. Construção em adobes no Morro do Chapéu. Fonte: Lins & De Santana, 2017.

FIGURA 22. Forma para fabricação de adobes arredondados em Olaria do Mestre Aparecido – Palmeiras.

Fonte: Lins & De Santana, 2017.

Construção em adobes fixados com argamassa Morro do Chapéu

pontes sobre os rios. Não se pode deixar de falar do uso da madeira nas cercas de madeira, que limitam os lotes nas zonas rurais. Executadas em “paus”, ou seja, em galhos retirados das arvores e apenas limpos, são assentados verticalmente no solo e travados por duas ou mais varas horizontais. Às vezes os “paus” são trançados em torno desta vara ou simplesmente são assentados lado a lado e fixados nas varas.

A madeira também é utilizada na confecção das fôrmas para adobes e tijolos, e nos tachos e fôrmas para moldagem da rapadura.

116

Com a abundância de madeira nas matas, não havia dificuldade para conseguir a matéria-prima para o trabalho. Atualmente, já não é tão fácil a aquisição desta matéria-prima. As novas leis de proteção ao meio ambiente proíbem a extração da madeira e o material, antes abundante, agora passa a ser escasso, sendo necessário adquirir peças de madeira legalizada, em madeireiras, geralmente vinda de outras regiões do país, ou ainda os marceneiros e carpinteiros se veem obrigados a trabalhar

Forma para fabricação de adobinhos arredondados Olaria do Mestre Aparecido – Palmeiras

158

O AVESSO DO MESMO LUGAR

A maior vantagem de se construir com terra crua diz respeito ao conforto interior que o material proporciona. Suas paredes funcionam como um organismo vivo – quando respeitadas suas propriedades – que respira e equilibra os níveis de umidade e calor na edificação.

Tal organicidade a configura como um material renovável e de fácil reinserção no meio-ambiente. Por esse motivo, alguns cuidados são fundamentais, como um bom alicerce que afaste o início das paredes do solo,55 e uma boa cobertura com beirais prolongados para proteger as paredes em regiões onde as chuvas são abundantes.56 Se tomados, portanto, os cuidados necessários ao uso do material, tais construções podem durar milênios.57 O uso da terra crua também pode ser feito na forma de acabamentos, como reboco e pintura,58 essenciais para a manutenção e durabilidade das edificações de terra, podendo ser, entretanto, igualmente utilizados em qualquer outro tipo de edificação.

Apesar do forte estigma negativo por trás do uso da terra crua como material construtivo,59 os sérios problemas ambientais causados pela era industrial têm apontado uma necessidade de redescobrimento e estímulo do interesse pelas arquiteturas de barro.

Já pode ser observado, hoje, um grande movimento liderado por jovens arquitetos(as) em prol da retomada do uso do barro na construção, denominado Bioconstrução.60 Para além das comunidades carentes que continuam a utilizar essas técnicas para construção de suas casas, seja pela ausência de recursos para adquirir os produtos industrializados, seja pelo domínio deste conhecimento, herdado de seus antepassados (..) aprofundar o conhecimento sobre a arquitetura de terra é uma atitude contemporânea de especial relevância, pois atua em consonância com os princípios e preocupações do homem do século XXI, que se volta para a proteção e recuperação do patrimônio arquitetônico, preservação da natureza e na disponibilidade de um material de construção com reconhecida qualidade e potencialidade para a arquitetura. (Lins & De Santana, 2017, p. 119)

114

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

55 Paredes de terra construídas em contato direto com o solo podem, por capilaridade, receber umidade em excesso.

56 No Sertão, onde os períodos de estio são frequentes, o beiral tem um comprimento bem menor que na região litorânea. (Mesquita & Mota, 2017, p. 107) 57 Aldeias erguidas dois mil anos antes da pirâmide de Quéops ainda estão em bom estado de conservação na Núbia. (Weimer, 2005, p. 250) 58 A técnica marroquina do Tadelakt – que significa esfregar em árabe – possibilita ambientes completamente impermeáveis à base de cal (Leis et al., 2016). Essa técnica, ainda pouco conhecida no Brasil, tem sido uma alternativa aos Bioconstrutores como uma forma de aprimoramento das construções de terra.

59 Um bom exemplo desse estigma é o fato de que somente na publicação de 2010 sobre o déficit habitacional da FJP a categoria taipa foi considerada como passível de existir em condições de não precariedade. (Fundação João Pinheiro, 2013, p. 15) 60 Não confundir aqui Bioconstrução com Casas Ecológicas ou Sustentáveis, termos que têm sido amplamente difundidos no mercado imobiliário atual para vender o produto casa atrelado à ideia da sustentabilidade.

FIGURA 23. Produção de lajotas de barro no Povoado de Prata de Baixo – Seabra.

Fonte: Lins & De Santana, 2017.

FIGURA 24. Demonstração de acabamentos de terra crua em curso de biocontrução do TIBA-RIO. Fonte: Autora.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

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Nas páginas anteriores, FIGURA 25. Constraste entre parede de taipa de pilão úmida e seca.

Fonte: Autora.

FIGURA 26. Armazenamento de adobe na região do Vale do Pati. Fonte: Autora.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

FIGURA 27. Edifício de escritórios de 11m de altura em taipa de pilão (terre pisé) em plena zona central de Lyon (França), nos mostra como a terra crua pode ser tratada como qualquer outro material.

Fonte: Le Pisé. Disponível em: www.construction-pise.fr/Lyon-laconfluence-Rhone-393.

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

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FIGURA 28. detalhe das ruínas das casas de pedra na Vila de Igatu, município de Andaraí, Bahia. Fonte: Autora.

FIGURA 29. À direita, detalhe construtivo da Igreja de Pedras da Vila de Igatu.

Fonte: Autora.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

II. Casas de Pedra Apesar de pouquíssimo estudada no Brasil e de ser, por vezes, enunciada como material de pouca ou nenhuma expressividade na arquitetura brasileira, a pedra como material construtivo merece destaque nos estudos da nossa arquitetura popular. No Brasil, ela foi utilizada desde os primórdios da colonização na construção de sistemas defensivos, posteriormente na edificação de edifícios públicos e religiosos, e, quase que excepcionalmente, nas residências de famílias abastadas (Lins & De Santana, 2017, p. 107). O seu uso pelas camadas populares reflete a necessidade de se aproveitar dos recursos naturais, locais e disponíveis, para a concepção do habitat.

Algumas regiões, cuja formação geológica se destaca pela abundância do material, propiciaram o desenvolvimento de técnicas construtivas populares com elevado grau de qualidade arquitetônica e elevada capacidade de adequação ao meio de inserção.

Merecem destaque duas regiões onde o material é protagonista da concepção dos habitats: a região da Chapada Diamantina, no interior baiano, e a cidade de São Thomé das Letras, no interior mineiro. Os estudos dos Mestres Artífices de Pernambuco (Zerbetto & Torres, 2012) e de Santa Catarina (Pimenta, 2012), por sua vez, apontam a cantaria como técnica construtiva de expressividade nas regiões estudadas. Mesquita e Mota (2017) também identificaram o emprego da alvenaria de pedra em arquiteturas populares no estado de Pernambuco, no município de Triunfo, onde o material é trabalhado com a mesma desenvoltura empregada na alvenaria de tijolo.

Em face disso, percebe-se um equívoco de estudiosos do tema que consideram rara a utilização da pedra na arquitetura popular brasileira.61 Devido ao baixo interesse em estudar e documentar as nossas habitações populares, acredito que muitas comunidades espalhadas pelo país que tenham se utilizado da pedra natural na construção de suas moradas ainda permaneçam desconhecidas e podem estar sujeitas ao desaparecimento ocasionado em razão do processo de desaculturação popular em curso no país.

Dentre outras utilizações, a pedra como material construtivo pode ser empregada no calçamento de ruas, na construção de muros, na construção de edifícios em geral, como alicerce de edificações variadas e, ainda, em projetos paisagísticos. Nas técnicas

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

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mais recentes as pedras na alvenaria são empilhadas utilizando-se um aglomerante que tradicionalmente era o próprio barro (que podia ser acrescido, ou não, da cal). No entanto, o cimento já vem ocupando esse lugar desde sua disseminação no mercado da construção civil, mudança normalmente atribuída à facilidade de preparo e utilização do aglomerante industrializado. O empilhamento de pedras a seco, sem aglomerantes, está mais presente nas técnicas construtivas das gerações mais antigas.

61 “No contexto da arquitetura popular, (...) muito embora existam formas populares altamente representativas e de grandes qualidades plásticas realizadas em pedra, ela é um material relativamente raro.” (Weimer, 2005, p. 269)

As paredes sobem executando-se um jogo de arrumação das pedras mediante seleção, de modo a atingir o equilíbrio: as maiores são calçadas pelas menores e alternadamente. Por fieira, coloca-se no sentido transversal uma pedra das maiores a

FIGURA 30. Casa de pedra na Vila de Igatu, município de Andaraí, Bahia, da época do auge da mineração da região. Fonte: Autora.

Fonte: Acervo Iphan / Foto: Tempo Editorial

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FIGURA 31. Casa de pedra em São Tomé das Letras, Minhas Gerais Fonte: Castriota, 2012.

FIGURA 32. Casa de pedra no sul catarinense (foto: acervo Iphan).

Fonte: Pimenta, 2012.

O AVESSO DO MESMO LUGAR

fim de garantir a amarração. Elevada a parede, para a consecução de um melhor aspecto externo, as pedras são ligeiramente aparadas, com o emprego do martelo, em suas pontas mais pronunciadas (Mesquita & Mota, 2017, pp. 159-160). Os elementos de sustentação superior dos vãos, os peitoris e soleiras podem ser constituídos por pranchas de madeira ou por placas também em pedra natural. Atualmente o cimento também vem sendo muito utilizado na confecção de tais elementos.

As alvenarias de pedra proporcionam uma sensação térmica de frescor o ano inteiro, sendo uma excelente opção em regiões onde o calor é intenso. Quanto ao acabamento, podem ou não receber reboco e posterior pintura, tendo o reboco de barro sido muito utilizado na finalização das casas da região da Chapada Diamantina no século XX. Atualmente, na mesma região, é comum deixar as pedras à vista, aplicando-se a técnica do embrechamento, que consiste em preencher com pedregulhos os pequenos vãos que restam entre a acomodação de uma pedra e outra.

FIGURA 33. Antiga residência de pedra na Vila de Igatu, município de Andaraí, Bahia, da época do auge da mineração da região. Foi restaurada pelos mestres da Vila com apoio técnico e patrocínio, para abrigar o atual Museu de Igatu.

Fonte: Autora.

FIGURA 34. Encontro do embasamento de pedra com a alvenaria de uma residência na Vila de Igatu, município de Andaraí, Bahia. A casa conta também com revestimento da fachada em placas de pedra embrechadas.

Fonte: Autora.

FIGURA 35. Tocas ou Locas são um tipo de construção com pedras muito comum na região da Chapada Diamentinha, Bahia, na qual grutas naturais são fechadas com alvenaria de pedra seca.

Fonte: Lins & De Santana, 2017.

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

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CANTARIA

FIGURA 36. Acabamento de alvenaria de pedra com argamassa de cimento para vedar os vão resultantes dos encontros das pedras.

Fonte: Autora.

FIGURA 37. Detalhe do acabamento chamado de Embrechamento.

Fonte: Castriota, 2012.

FIGURA 38. À esquerda, detalhe arquitetônico de uma residência de pedra com a porta de entrada angulada pela espessura da alvenaria, na Vila de Igatu. Fonte: Autora.

FIGURA 39. À direita, ruína de antiga residência de pedras na Vila de Igatu, município de Andaraí, Bahia.

Fonte: Autora.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

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FIGURA 40. Detalhe da estrutura de uma cobertura feita com madeira no Vale do Pati, Bahia. Fonte: Autora.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

III. Casas de Madeira A madeira, como material construtivo, é amplamente disseminada por toda a extensão do Brasil e é empregada nas mais variadas etapas de uma construção: desde a conformação estrutural, às armações de telhados, até a concepção de ornamentos e mobiliários. A forma mais comum do seu emprego é a confecção de uma estrutura que serve de suporte para os mais diversos materiais de vedação. (Weimer, 2005) O uso da madeira na construção civil está diretamente relacionado às especificidades e características de cada espécie vegetal. De modo geral, as madeiras resistem bem aos esforços mecânicos de tração e de compressão, bem como ao choque, e são excelentes isolantes térmico e acústico. Devido à sua trabalhabilidade, permite a fácil execução de sambladuras62 e uso em locais com grandes extensões. No entanto, como material orgânico, também apresenta desvantagens, que podem ser controladas, como vulnerabilidade a agentes externos, durabilidade limitada e composição heterogênea. (Lins & De Santana, 2017, p. 122)

62 Junção de duas peças de madeira pelos ângulos.

FIGURA 41. Residência de madeira no sul catarinense. Fonte: Pimenta, 2012.

FIGURA 42. Na página seguinte, Interior de uma residência de madeira aparelhada. Fonte: Markun & Roizenblit, 2013b.

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

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Na arquitetura popular brasileira, a madeira aparece como protagonista na cena construtiva nas construções de enxaimel, com destaque para as comunidades do sul que receberam forte imigração germânica, e nas habitações palafíticas, amplamente disseminadas nas comunidades ribeirinhas do país.63 O Enxaimel A técnica do enxaimel se caracteriza por peças de madeiras colocadas nas posições Carpinteiro enxaimel horizontal, vertical e inclinada, formando um engradado (Centro Nacional de Folclore e 2004).do A estrutura seenxaimel conforma emaum sistema de encaixes elaboA Cultura relação Popular, entre a técnica carpinteiro com arquitetura rados de modo a resistir aos esforços de compressão, caracterizado local, atualmente, dá-se com a necessidade deste tipo de mão-de- pela sua rigidez conseguida por meio de escoras fixadas por malhetes simples nas extremidades das peças. (Weimer, 2005)

63 Apesar de sua forte expressividade na arquitetura popular brasileira, não está sendo considerado aqui o uso da madeira nas construções de pau-apique visto que esta técnica já foi abordada no âmbito das construções com terra crua.

enxaimel tinha importância na construção de casas novas, hoje em dia isso não acontece mais. Apenas um mestre encontrado madeiras, conforme o enxaimel. Na visão deste mestre diferenciado, que aprendeu estudando e não na prática, o enxaimel é a melhor representação com esta arquitetura. Percepção esta, ligada diretamente com sua visão mais crítica ao falso enxaimel, que o Poder Público tenta vender como identidade local. Cansado de ver a reprodução deste históricas originais, tenta reinserir no cenário local novas construções enxaimel, o que acontece muito esporadicamente.

FIGURA 43. Casa em enxaimel com fechamento de tijolos em Timbó, Santa Catarina. Fonte: Pimenta, 2012.

FIGURA 44. Detalhe do encontro da estrutura de madeira elevada do solo.

Fonte: Pimenta, 2012.

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FIGURA 45. Detalhe da estrutura de travamento de madeira para uma casa de enxaimel. Fonte: Pimenta, 2012.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

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A origem do seu uso na arquitetura popular brasileira se deu por duas vias: a primeira por Portugal e a segunda por imigrantes germânicos provenientes de diversos países. Ao contrário do que se pensa, o enxaimel pode ser encontrado por todo o país, apresentando forte incidência da sua forma lusitana no norte de Minas Gerais e no sul da Bahia. Já em sua forma centro-europeia, sua maior ocorrência se dá nas zonas de colonização alemã do sul do país.64 Estudos demonstraram a existência de uma grande variedade de tipos de estruturas e uma ainda maior variedade de formas de enchimento dos tramos. (Weimer, 2005)

64 Também se verifica o uso da técnica na serra fluminense, onde é conhecido como “normando”. (Weimer, 2005)

(...) técnicas milenares de construção em enxaimel ainda atestam, nos poucos exemplares que a “modernidade” e o cupim ainda não destruíram, a extrema racionalidade dessas estruturas. (Weimer, 2005, p. 33)

FIGURA 46. e FIGURA 47. Casas de Exaimel com fechamentos de taipa e de tijolos em Santa Catarina. Fonte: Pimenta, 2012.

No que tange à decadência do uso da madeira nesse contexto pelas camadas populares, segundo os relatos coletados pela série documental Habitar Habitat – Casa de apropriação ocorre em diversas outras cidades poderiam mais valorizadas Colono Alemão do SESC, com a saída gradual daque população da ser zona rural do sul do implantando um sistema rotas, porque, assim, teríamos a leitura e a moradores percepção país, cujas casas e móveisdeeram todos feitos em madeira pelos próprios real entre oocorreu ambiente e o modo comona esses espaços foram da região, umanatural, espécieas deintervenções “escambo desleal” baseado desaculturação das culturalmente apropriados. ser nestes termos algumas localidades, populações tradicionais queDevem são, até ospensados dias de hoje, atraídas pela falsa ideia do descomo a de Mulde em Timbó, Rio Sellin em Rio do Sul, em Rio Cerro e Nereu (casas valor de suas técnicas construtivas e artesanais. italianas de tijolo maciço e enxaimel alemão) em Jaraguá do Sul e o interior da Vila Itoupava emcoisa Blumenau, de diversas outras espalhadas nofortemente, sítio do Vale do menos, Itajaí. uma que vem além acontecendo, pras casas e pros utensílios, agora

porque gente vem étrabalhando município, essas coisas A presença doa enxaimel marcanteessa nos conscientização bairros rurais,nopelo menoscomo naqueles mais não eram valorizadas aqui mas eram valorizadas e vendidas a preço de ouro nas grandes cidades, principalmente Paulo, nos antiquários, muito muito caminhões que “estradas velhas”, que, emSão si mesmas, explicam por onde secomum deu aos colonização do vinham cheios de fórmica e propunham permuta para os agricultores, (...) e agricultores Médio e Alto Vale. Localidades como o Warnow em Indaial, o Rio Sellin os em Ibirama, que era negócio de ouro.

(Fala de Chaise Guzzatti, agrônoma, inos Markun & o Muldeachavam em Timbó seum comunicam por estradas rurais que atravessam vales, Roizenblit, 2013b, 37’53”) rodeadas de casas no estilo alemão ou italiano, muitas do início do século XX e É fundamental o colono reconhecer a identidade dele, e aquilo que foi desvalorizado precicom ossamorros ao fundo.

Asdecasas a maioria com& Roizenblit, enxaimel ser desmistificado.

(Fala Wilsonnessas Schmidt,localidades, fundador da Agreco, in Markun alemão2013b, ou de39’23”) tijolos maciços italiano, são algo rebuscadas e agradáveis, além de se harmonizarem com a paisagem rural.

Algumas dessas casas apresentam pinturas nas paredes internas, com padrões feitos a partir de moldes, outras contêm desenhos nas paredes externas feitos com os tijolos maciços mais e menos queimados. Nessas casas moram os “de origem”, ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS pobres.

Parece que este homem do interior, no decorrer das gerações, acaboclou-se, adquirindo os hábitos da população preexistente quando chegaram ao local. Andar

cachaça, dormir na rede são hábitos comuns, junto com tocar pistão ou acordeom,

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A Palafita A técnica construtiva popular conhecida como Palafita denomina edificações suspensas sobre pilotis de madeira acima das águas ou terrenos passíveis de períodos de alagamento e exercem extrema relação com o clima e modo de vida do local onde se inserem (Salgado, 2019, p. 23). Habitações palafíticas são encontradas por toda a extensão do Brasil, em áreas ribeirinhas e marinhas. No entanto, é na região amazônica que tal modo de habitar tem maior expressividade.

FIGURA 48. Casa palafítica na região amazônica (foto: Lucas Fehr).

Fonte: Marcondes et al., 2017.

Uma possível origem da técnica no território brasileiro foi dada por Weimer (2005) ao identificar a existência, em variados locais do Golfo da Guiné e do Benim – de onde imigraram grande número de pessoas rumo à Salvador – de povos que, há séculos, talvez milênios, vivem em aldeias construídas sobre palafitas.

FIGURA 49. Casa palafítica na região amazônica. Fonte: Markun & Roizenblit, 2013a.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

As primeiras ocorrências da técnica na região amazônica refletem uma adaptabilidade ao modo de vida transumante65 das primeiras populações pós-coloniais amazônicas. As construções sobre palafitas permitem a permanência das populações que habitam áreas alagadiças mesmo nas épocas de cheia.66 Essa forma de construir e habitar revela, em sua origem, uma estreita relação do indivíduo, nesse caso, amazônico, com a água e a floresta. (Markun & Roizenblit, 2013a) No entanto, a técnica das palafitas também tem sido uma alternativa construtiva, e de sobrevivência, para populações carentes em grandes centros urbanos.67 Diferentemente da palafita do ermo, do meio da floresta, à beira do rio e em pequenas comunidades, a palafita de um aglomerado urbano sofre todos os males da exclusão social, da precariedade habitacional e do descaso estatal que as populações vulneráveis estão submetidas. (Markun & Roizenblit, 2013a)

65 Deslocamento sazonal que intercala a permanência em determinado local entre seis meses na várzea e seis meses na terra firme de acordo 66 Outra solução comumente adotada na adaptação aos ciclos de cheias de rios são as casas flutuantes, construídas na forma de balsas ou de barcos, esse tipo de método não se restringe aos rios amazônicos, podendo ser encontrado nos mais variados rios navegáveis do país, até mesmo nos das regiões mais secas, como no Rio São Francisco no Nordeste. (Weimer, 2005) 67 É notória a comunidade conhecida como Alagados da ponta do Itapagipe, em Salvador, na Bahia; e, apesar de pouco se falar a respeito, também são encontradas palafitas nas periferias de grandes capitais não litorâneas a exemplo da Grande São Paulo.

FIGURA 50. Residência palafítica na região amazônica. Fonte: Markun & Roizenblit, 2013a.

FIGURA 51. Construção da estrutura de uma residência palafítica. Fonte: Markun & Roizenblit, 2013a.

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A falta de salubridade e a precariedade dessas áreas palafíticas urbanas acabam sendo usadas como justificativas para o discurso de depreciação e promoção da erradicação da técnica construtiva, por parte das autoridades governamentais, quando, na verdade, o problema é muito mais social e do âmbito do planejamento urbano.

Salgado (2019) mostrou, em seu estudo sobre a comunidade de Elesbão, no estado do Amapá, que a ocorrência das palafitas em assentamentos populares urbanos demonstra quanto o padrão de urbanização das nossas cidades tende a descaracterizar a paisagem, a favor de políticas públicas completamente alheias às peculiaridades do habitar palafítico (Salgado, 2019, p. 74). A alternativa que tem sido aplicada tem sido o “saneamento” das mesmas, ação que consiste em derrubar as casas e aterrar a área para o estabelecimento da população sobre o terreno seco (Weimer, 2005). Outras soluções, entretanto, poderiam ser cogitadas, principalmente nos casos em que a população possui vínculos culturais com a forma de morar palafítica.

Rapaz, eu acho tranquilo porque a gente dorme tranquilo, come o peixezinho fresco que pega né, planta a verdura, come a verdura fresca, não tem zuada, não tem esse negócio de poluição, pra mim é... eu não pretendo sair daqui não. (fala de um amazônico habitante de casa palafítica) (Markun & Roizenblit, 2013a)

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

FIGURA 52. Palafitas da Vila Elesbão, Amapá.

Fonte: Salgado, 2019.

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FIGURA 53. Maloca indígena.

Fonte: Markun & Roizenblit, 2013c.

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O AVESSO DO MESMO LUGAR

IV. CASAS INDÍGENAS Por motivos óbvios, não há aqui pretensão alguma de apresentar cada casa indígena nem, tampouco, tratar as culturas construtivas dos povos indígenas de modo singular. Se faz necessário, no entanto, marcar a existência – e porque não dizer a resistência – desses povos com os quais temos tanto a aprender.

Vivemos, nos dias atuais, um verdadeiro plano político de erradicação dos povos e das culturas indígenas. Em face disso, torna-se quase que imperativo lembrarmos que, ao contrário do que nos é até hoje ensinado nas escolas, com base nas determinações colonizadoras já enraizadas, são os povos indígenas os multisseculares donos das terras brasileiras e, portanto, os primeiros da tríade dos principais povos formadores da nossa identidade.

Nos primórdios da colonização, estudos de viajantes indicaram a existência de, ao menos, setenta culturas indígenas diferentes, ou, em termos arquitetônicos, mais de setenta tradições construtivas específicas (Weimer, 2005, p. 43). Só essa informação já explica a impossibilidade do tratamento singular dessas arquiteturas neste trabalho. Soma-se a isso, ainda, a precariedade de dados disponíveis, que transparece o rebaixamento das culturas indígenas à folclorização e ao “exótico”, sem o devido reconhecimento de seu valor técnico construtivo.

FIGURA 54. Interior de uma morada indígena de coabitação familiar.

Fonte: Markun & Roizenblit, 2013c.

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A maior característica dos habitats indígenas é a capacidade de adequação de suas formas e materiais às circunstâncias ambientais, que resulta em uma infinidade de possibilidades e arranjos construtivos, e em um modo de vida que respeita e se integra à natureza, e que entende o indivíduo como parte dependente desse todo. Diferentemente das culturas ocidentais, que usam sua sabedoria adquirida para mudar o meio e adequá-lo, impositivamente, às formas e modos de morar desejados, levando a uma renúncia física e espiritual da natureza.

A forma mais representativa e comum à grande parte das culturas indígenas brasileiras é o círculo. Essa noção circular é reproduzida em todos os aspectos da vida de seus indivíduos e se materializa na conformação de seus habitats.

Os Timbiras consideram o formato circular de suas aldeias como uma das expressões mais genuínas de sua cultura. Enquanto mantiverem a sua consciência étnica, não viverão em disposições não circulares, sabendo que o formato original de suas aldeias eram perfeitas para a sua organização social e cerimonial. (Van Lengen, 2013, p. 45)

FIGURA 55. Detalhe da amarração da cobertura de uma morada indígena com fibras naturais. Fonte: Markun & Roizenblit, 2013c.

FIGURA 56. Detalhe da amarração da cobertura de uma morada indígena com fibras naturais. Fonte: Markun & Roizenblit, 2013c.

Ao identificar a força e o encantamento dos círculos para essas populações a colonização missionária interferiu nas aldeias invadidas, impondo uma disposição linear de suas casas e a construção de uma capela ao fim (Van Lengen, 2013; Weimer, 2005). Mas mesmo vivendo em um sistema linear, um índio incumbido de desenhar graficamente sua aldeia provavelmente o fará por meio de um sistema circular. (Van Lengen, 2013, p. 35) Os círculos são, na realidade, a base da consciência cultural. Vida e morte, as estações, o crescimento das árvores... uma coisa é certa: tudo vai e volta. Como um índio norte-americano disse, a coisa mais difícil para ele foi trocar suas cabanas circulares por casas quadradas. (Van Lengen, 2013, p. 98)

Em termos tipológicos, as casas indígenas podem se conformar de modo unitário, quando toda a tribo vive sob um só teto; ou por meio de várias construções (Weimer, 2005). Em ambos os casos há um espaço central dedicado às cerimônias, festejos, danças e rituais. A importância na delimitação desse espaço, além de denotar valor às trocas comunitárias, evidencia um modo de viver em que não se marginaliza a energia dos corpos, ao contrário, a potencializa.68

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68 Guizzo (2019) compreende essa forma de transmutação de energia dos corpos como magia: momento de conexão com a alegria, com a expansão do corpo, com a música e com a brincadeira. (Guizzo, 2019, p. 173)

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FIGURA 57. Cobertura de uma moradia indígena. Fonte: Markun & Roizenblit, 2013c.

FIGURA 58. Estrutura da cobertura de uma morada indígena.

Fonte: Markun & Roizenblit, 2013c.

A morada indígena é concebida e compreendida por seus povos como um ser vivo. É ponto de união e de identidade, e por isso mantém uma relação estreita com o meio ambiente que a recebe. Na construção de uma maloca, uma moradia indígena, tudo tem uma razão de ser e de estar, desde os materiais, as disposições dos artefatos, as aberturas, etc. Tais significâncias variam conforme a cultura de cada tribo.

Assim como qualquer outro ser vivo, essas moradias respiram. As frestas das estruturas de vedação proporcionam a ventilação natural do seu interior garantindo conforto térmico e salubridade aos seus ocupantes. Já as coberturas possuem inclinações bem marcadas para assegurar a proteção contra a chuva e ainda são naturalmente impermeabilizadas pela fumaça proveniente do fogo do cozimento dos alimentos ou daquele que aquece a tribo nos dias frios. Essa mesma película impermeabilizante é responsável, ainda, por proteger a edificação do ataque de pragas e insetos. (Markun & Roizenblit, 2013c) É completamente errôneo, portanto, assumir que tais construções são aleatórias e se utilizam de materiais orgânicos e recursos naturais por falta de opção. Mais equivocada ainda é assumir que as moradias indígenas são mais simples, ou menos complexas que as não indígenas, ou ainda que não são dotadas de ciência.

Elas são, na verdade, representações, no seu mais alto grau, de arte, ciência e cultura. (Fala do arquiteto Almir de Oliveira in Markun & Roizenblit, 2013c)

A adaptabilidade das culturas indígenas às características climáticas não se restringe ao uso dos materiais, sendo percebida também na criação de mecanismos para adaptar uma mesma edificação às diferenças sazonais. Nas moradas dos índios Taulipang, por exemplo, quartos se transformavam em varandas e vice-versa de acordo com as mudanças das estações, simplesmente mudando painéis de parede de lugar. (Van Lengen, 2013, p. 51) (Weimer, 2005) Outro exemplo são as casas dos Cinta-larga, cuja estrutura em arcos, unidos em dupla por uma cumeeira, é tensionada por uma grande e pesada tora, que atua como um peso morto na edificação, garantindo a forma da estrutura, que se assemelha a uma catenária, e ainda assegura o seu equilíbrio mesmo diante de fortes ventos. Mais uma estratégia desses mesmos povos está na execução de painéis de folhas trançadas penduradas e alocadas nas paredes baixas, que se fecham contra os ventos externos, mas se abrem para garantir a troca do ar quente interno. (Van Lengen, 2013, pp. 70-71)

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FIGURA 59. Croquis das técnicas construtivas adotadas pela tribo dos Cinta-larga. Fonte: Van Lengen, 2013.

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FIGURA 60. Interior de uma morada indígena de coabitação familiar.

Fonte: Markun & Roizenblit, 2013c.

Apesar de raros, há estudos que indicam a importância das contribuições das moradas indígenas para as habitações e domesticidade populares pós-coloniais brasileiras.69 E, em consonância com as intenções de Van Lengen (2013), que se dedicou ao estudo dos povos indígenas amazônicos, acredito que se pudermos prestar atenção ao que esses povos que habitam as florestas têm a nos dizer sobre a concepção de suas moradas, talvez possamos aprender algo mais sobre como nos adaptar ao nosso próprio ecossistema, sem que para isso seja preciso destruir o meio ambiente e os nossos encantamentos como seres vivos.

69 Para maior aprofundamento, ver Weimer (2005).

FIGURA 61. À direita, cobertura em palha em edifição na cidade de Piatã, no interior baiano, possivelmente uma influência da cultura indígena (foto: Iêda Marques e Equipe Executora do INRCCD) Fonte: Lins & De Santana, 2017.

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Construir é viver Nem todas as pessoas têm a capacidade de construir uma casa; mas achamos que a maioria sabe aplicar e aperfeiçoar aquela série de regras e princípios transmitida de geração para geração.

José da Silva e Matto é um desses homens do povo que fabricou a sua casa num lugar bem afastado para escapar à monotonia e à pasmaceira das cidadezinhas. (...) José fabricou sua casa sem arquiteto, sem o auxílio daqueles escritórios técnicos que só sabem encher a cidade de “finos palacetes” em estilo português e mexicano. Êste arquiteto de quem falamos, este arquiteto sem compasso, régua T e tecnigrado; este homem simples e feliz trabalhou dias e dias escolhendo a boa madeira, a mais leve, a mais resistente, a mais útil. José sentiu o prazer da arquitetura, o gosto de planejar, de sistematizar sua vida embaixo de um teto: um dos mais nobres prazeres do homem. Conhecia, por tradição, a arte de construir e sua belíssima casa ali está, firme, espaçosa e agradável, no meio da natureza, em plena selva, no coração do Amazonas.

Aquele mundo exuberante que é o Amazonas tem na habitação de José um pequeno momento de ordem, de carinho e poesia humana, onde tão bem se compreende que construir é viver. É uma singela porém profunda lição para todos nós das cidades grandes, onde construir tornou-se mais uma forma de morrer do que uma forma de viver.

Villa, 1952, p. 3 apud Guizzo, 2019, p. 166

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FIGURA 62. Banco talhado no tronco de uma árvore seca por um autoconstrutor do Vale do Pati. Fonte: Autora.

PARTE IV aproximações

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APROXIMAÇÃO

Com o intuito de estabelecer uma aproximação genuína do indivíduo protagonista da produção arquitetônica popular brasileira e de responder à angústia que desaguou neste trabalho, me retirei de um lugar de razão e de detentora de proposições para assumir um lugar onde prevalece a escuta cuidadosa e afetiva. Tendo isso em vista, foi realizada uma aproximação física a contextos diversos nos quais a autoprodução de moradias relaciona-se diretamente com a cultura local e do indivíduo em questão. Infelizmente esse processo foi fortemente afetado pela necessidade de distanciamento físico que o momento atual de pandemia da COVID-19 requer.

Essa aproximação está seccionada em duas partes: a primeira diz respeito à duas comunidades tradicionais do interior da região da Chapada Diamantina, no estado da Bahia. E a segunda obteve como resultado o relato de 3 histórias de vidas e de casas no qual o individuo é o ponto de partida da escuta. É preciso, ressaltar, no entanto, que essa aproximação, não tem nenhum tipo de pretensão analítica ao passo que não se fundamenta metodologicamente no colhimento de dados quantitativos suficientes para que se estabeleça uma amostragem palpável. Tem única função expositiva de cenários e contextos distintos dos que nos são apresentados.

Inspirada por Bourdieu (2008), essa aproximação se deu como um exercício espiritual, visando a obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida.

(Bourdieu, 2008, p. 704)

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IGATU

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APROXIMAÇÃO

Igatu, que significa “água boa” em tupi guarani, é um distrito pertencente ao município de Andaraí (13.122 hab),70 localizado na região da Chapada Diamantina, no interior baiano. Atualmente com cerca de 494 habitantes, (Dos Santos, 2020, p. 1) o vilarejo já chegou a ter mais de dez mil habitantes (IPHAN, 2021) no auge de sua história econômica. O território foi primitivamente habitado ou visitado pelos índios Cariri e os Maracá, sendo resquícios daquela época os nomes indígenas de Andaraí e Igatu. Sua colonização ocorreu por volta de 1844, quando ali começaram a chegar os primeiros trabalhadores em busca de diamantes, provenientes de distritos diamantinos das Minas Gerais, dos garimpos auríferos de Rio das Contas e, ainda, fugitivos da seca que assolava o sertão.71 No apogeu do garimpo na região, Igatu possuiu um comércio efervescente, sendo local de passagem de tropas com grandes carregamentos de toda espécie de suprimentos e miudezas rumo ao norte da região. Chegou a possuir cinema, loja de produtos importados, perfumarias e usina de energia elétrica. Com a decadência da atividade mineradora, a população foi abandonando a cidade rumo, principalmente, às grandes capitais, em busca de oportunidades de trabalho.72 Atualmente, o vilarejo abriga as gerações provenientes das poucas famílias que resistiram à crise econômica e permaneceram no local, além de migrantes e imigrantes que se encantaram com o lugar.73 Em função das riquezas naturais e do patrimônio material e imaterial, os moradores tradicionais vivem principalmente do turismo, fomentado a partir da década de 1990, mas também do comércio e prestação de serviços locais.

70 Andaraí BA: População estimada 2021 (IBGE, 2021)

71 Fonte: Calendário em homenagem à Vila de Igatu produzido e publicado por Marcos Zacariades.

72 Ibidem.

73 No ano de 2020 foram contabilizados 166 moradores não nativos e 5 moradores estrangeiros, 34% e 1%, respectivamente, da população total no mesmo ano.

(Dos Santos, 2020, p. 6)

A escolha em tratar o vilarejo de Igatu no presente trabalho se deu após uma viagem despretensiosa a passeio em 2016, na qual acabei, por acaso, me estabelecendo na Vila por tempo suficiente para me apaixonar pelo sítio e me intrigar com sua produção arquitetônica. O fato é que o uso da pedra como matéria-prima para a construção civil se destaca na região central da Chapada Diamantina e, em especial, no vilarejo de Igatu, onde as características geológicas propiciaram o afloramento de pedras calcárias e areníticas, que contribuíram para o desenvolvimento da atividade garimpeira. (Lins & De Santana, 2017, p. 123)

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B

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1

ENTRADA DA VILA

100m

2

IGATU

A LEGENDA EDIFICAÇÕES PONTOS DE REFERÊNCIA AUTOCONSTRUTORES ENTREVISTADOS RUÍNAS MARCANTES 1 - ESCOLA 2 - PRAÇA 3 - IGREJA 4 - MUSEU DE IGATU 5 - RESTAURANTE DOS GARIMPEIROS 6 - MINA BREJO-VERRUGA

3

A - CANTEIRO DA OBRA DE LUIZ PAULO B - CASA DE LUCAS E MAYRA

4

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FIGURA 63. Igreja da ViIla de Igatu, construída inteiramente em pedra com argamassa de barro. Fonte: Autora.

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APROXIMAÇÃO

Por ser um material construtivo muito pouco encontrado e estudado no Brasil, a técnica de se construir com pedras é a característica arquitetônica marcante do vilarejo e é o que justifica o tombamento do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Igatu pelo Iphan (2000) e pelo Ipac74 (2002). O tombamento abrange desde muros, habitações e outras edificações de pedra, até a antiga Igreja da cidade, o cemitério, o calçamento da estrada que leva à Andaraí e ainda as dezenas de ruínas presentes na cidade e em seu entorno, tudo construído com as pedras da região.

Apesar da extração da pedra estar em processo de restrição por questões ambientais, este material de construção ainda é muito utilizado na região central da Chapada Diamantina, principalmente nas cidades de Andaraí e Mucugê. As técnicas construtivas são as mesmas praticadas desde os primeiros momentos da ocupação do território.

Observa-se, no entanto, algumas inovações, a exemplo do uso da pedra como revestimentos e embrechados.75 (Lins & De Santana, 2017, pp. 197-199) Porém, não é a questão do patrimônio que justifica o tratamento de Igatu neste trabalho, e sim o fato de que, após uma segunda visita realizada em 2018, pude perceber que as novas e inúmeras edificações que estão sendo erguidas na cidade têm utilizado técnicas construtivas e materiais convencionais (ou comerciais) em substituição à técnica tradicional popular de construção com pedras da região.

74 Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.

75 Técnica de encaixar pequenos filetes de pedra nos vãos resultantes do escalonamento das pedras maiores da alvenaria

FIGURA 64. e, FIGURA 65. alvenarias de tijolo cerâmico sobre embasamento de pedras.

Fonte: Autora.

Já em 2018 foi possível notar que diversas edificações novas estavam se utilizando da pedra em placas para cobrir os tijolos cerâmicos e revestir suas fachadas principais, o que faz com que as edificações pareçam, aos visitantes menos atentos, feitas inteiramente de pedras.

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FIGURA 66. Rua principal da Vila de Igatu. Fonte: Autora.

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APROXIMAÇÃO

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Foi tal percepção acerca das novas construções que me intrigou e me motivou a questionar meu anseio pela proteção dos saberes-construtivos populares brasileiros visando sua manutenção e aprimoramento. A dúvida maior era a seguinte: se em uma vila como Igatu, onde em qualquer terreno encontram-se pedras ideais para construção em abundância e onde ainda resistem os mestres detentores de tal saber-construir, os próprios moradores tradicionais optam por importar a matéria-prima e a mão-de-obra para suas habitações, para quem mais essas técnicas poderiam ter valor? Quais as razões para essas novas construções de Igatu não estarem sendo construídas mais com pedras? Seria o custo? O desaparecimento da mão-de-obra específica? Muitas suposições passaram por mim, e o que todas tinham em comum era que não me restavam dúvidas de que o abandono da técnica tradicional popular da região partia dos próprios moradores autoconstrutores. Cheguei a pensar que me restava apenas compreender os motivos e os anseios dessas novas gerações.

Então, em outubro de 2021 fiz minha terceira visita à Igatu com o objetivo de ouvir a população a respeito do tema: as histórias de planejamento, aprovação e construção das moradias recentes pela voz dos próprios autoconstutores; as histórias dos profissionais da construção civil, de como aprendem o ofício, quem trabalha com pedra e quem não trabalha, seus anseios e visões acerca da profissão na Vila; e ainda a opinião dos próprios moradores em geral sobre as antigas e as novas construções de Igatu.

Com a visita de campo foi possível desconstruir minha suposição de que a escolha construtiva era uma decisão de cunho intrinsecamente pessoal dos autoconstrutores. Há, na realidade, uma obrigatoriedade de aprovação de projetos arquitetônicos para qualquer nova construção na Vila por parte do Iphan. Para tal, a grande maioria dos habitantes recorrem a um profissional da região que se responsabiliza pela digitalização dos projetos (normalmente ideias e rascunhos dos próprios moradores) e pelo processo de aprovação no órgão de patrimônio.

Foram entrevistados autoconstrutores em etapas distintas de suas obras, pedreiros locais, habitantes comuns e ainda o profissional responsável pela grande maioria dos pedidos de regularização das obras dos moradores nativos junto ao Iphan. A informação mais importante das conversas e entrevistas realizadas em Igatu é a de que não houve nenhum(a) habitante originário(a) da própria região que não demonstrasse forte interesse em construir sua moradia de pedra e, de preferência, com as pedras do próprio terreno. todo mundo quer ter uma casa de pedra, né. Todo mundo. Porque ela não esquenta, você não tem problema com manutenção, (...) o fato da temperatura mesmo, nossa... sem contar a beleza né, você bota uma parede de bloco do lado de uma fortaleza dessa, você quer chutar a parede de bloco. (fala de Luis Paulo, um dos autoconstrutores entrevistados)

De todas as pessoas que conversei, houve apenas uma que externalizou achar “mais bonitinho” o interior das construções de tijolos cerâmicos. No entanto, essa pessoa

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APROXIMAÇÃO

é um morador recente da cidade e que não tem, portanto, nenhum vínculo ancestral com a cultura local. Ficou bem evidente e bem latente o desejo da população tradicional, herdeira das gerações do garimpo, em manter a cultura construtiva local e em preservar os conhecimentos dos seus antigos.76

76 Como costumam chamar seus ancestrais.

É claro que ocorreram, naturalmente, modificações nas técnicas tradicionais em comparação com as do princípio da formação da Vila. Era muito comum, por exemplo, a construção de muros imensos com pedras secas, sem nenhum tipo de argamassa.

Ou, quando se utilizavam de argamassa, esta era feita de uma mistura de terra crua com cal. Hoje o cimento já tem sido largamente utilizado para assentar os blocos das construções que se utilizam da pedra. Mesmo assim, foi possível comprovar que a escolha por materiais construtivos convencionais, como o tijolo cerâmico, que têm se disseminado pela cidade, passa por questões de limitações financeiras ou da própria legalização junto ao Iphan.

A questão financeira se justifica, primeiramente, porque as construções de pedra necessitam de cerca de duas vezes mais argamassa para subir uma parede do que as de tijolos cerâmicos, e sendo a argamassa feita de cimento atualmente, o alto gasto com o aglomerante inviabiliza grande parte das construções com pedra para quem não dispõe de muitos recursos financeiros. No entanto, uma outra questão que envolve a justificativa financeira está diretamente relacionada às restrições do órgão do patrimônio. Isso porque, segundo os relatos, há um tipo de proibição no uso das pedras locais, sejam elas extraídas de rochedos do próprio terreno ou mesmo pedras soltas provenientes das antigas ruínas. Com tal restrição, os moradores que optarem pelo uso de pedras deverão compulsoriamente importá-las de uma pedreira legalizada,77 o que encarece muito o custo da obra.

77 Informação fornecida pelo profissional que atua na legalização dos projetos de Igatu junto ao Iphan (sua identidade será preservada)

Além de proibir o uso de pedras locais, os relatos evidenciaram outras restrições por parte do órgão que dizem respeito à estética final das novas edificações. No entanto, com as inúmeras conversas foi possível perceber que há uma lacuna e um desencontro nas informações sobre o que realmente era permitido construir e o que era vetado pelo Iphan. Alguns disseram ser proibido construir sem pedra na vila, outros exatamente o oposto; uns, no entanto, afirmaram ser imprescindível ao menos o revestimento das fachadas em pedra, enquanto outros manifestaram que por nada desse mundo conseguiram aprovar tal revestimento.

Ao indagar ao profissional responsável pelas aprovações da produção autoconstruída da Vila sobre essa lacuna, ele explicou que os desencontros de informações existem justamente porque não há nenhum documento que estabeleça os critérios de aprovação, as restrições construtivas ou as indicações da forma adequada para se edificar na Vila. E que, além disso, a cada gestão os critérios parecem mudar. Segundo ele, houve um período, por exemplo, em que foi solicitado a execução de reboco em todas as casas da rua principal que estavam com as pedras aparentes:

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FIGURA 67. Pedras retiradas na limpeza do próprio terreno e que servião de matéria-prima para a obra.

Fonte: Autora.

FIGURA 68. Peças especiais de pedra provenientes de pedreiras para fins de acabamento. Fonte: Autora.

FIGURA 69. À direita, desenho de um dos autoconstrutores de Igatu mostrando, em croqui, o projeto de sua futura residência. Fonte: Autora.

E a seguir, FIGURA 70. [Re]expansão da Vila mostra uma edificação em tijolos cerâmicos destoando da paisagem em contraste com 3 ruínas de edificações de pedra completamente integradas com o seu entorno. Fonte: Autora.

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apesar de ter a característica de pedra, antigamente todas as casas eram rebocadas, por cima da pedra, com cal, com terra, areia (...) O que aconteceu, com o declínio do diamante, arrancaram todas as coisas, o que valia da casa, que era só porta, madeiramento e telhado (...) tomando chuva e sol, os rebocos foram caindo. Em outro momento toda e qualquer construção que se utilizasse de pedras era proibida e que agora, na nova gestão, já estão conseguindo aprovar o uso do revestimento de pedra nas fachadas. (relato do profissional que atua na Vila, 2021)

A justificativa para a proibição do uso das pedras locais no corpo da edificação está na tentativa do Órgão do Patrimônio em frear as demolições e consequente degradação das ruínas da cidade pelos próprios moradores que buscam pedras para construir suas moradias. Essa justificativa, no entanto, em nada me convence, primeiro pelo fato de que a região tem abundância suficiente do material e as pedras são comumente extraídas dos próprios terrenos.78 Segundo porque a cidade possui ruínas por todos os lados, principalmente de muros, mas também há casas praticamente inteiras ainda de pé, apenas sem os telhados.79 E essas ruínas estão se degradando naturalmente por estarem desprotegidas das intempéries e devido à falta de manutenção. Há, inclusive, diversos relatos de desmoronamentos de ruínas que têm colocado em risco a própria vida dos habitantes.

O interesse do órgão em preservar o patrimônio edificado da Vila, portanto, não se confirma, ao passo que não há ações claras de proteção dessas ruínas espalhadas pelo vilarejo contra as intempéries do tempo.80 Aliás, o que não falta em Igatu são moradores interessados em reformar, habitar e preservar tais ruínas.

No que diz respeito aos profissionais construtores da Vila, foi possível perceber que o ofício de pedreiro normalmente é iniciado como acréscimo de renda. Muitos dos pedreiros de Igatu têm mais de duas fontes de renda. No entanto, é preciso pontuar que houve uma notória percepção da preferência desses profissionais pelo ofício da pedra. Nem todos detém tal conhecimento, que geralmente é apreendido de uma geração para outra e por meio da observação dos detentores do saber. Mas há sempre um afeto explícito na forma de falar e descrever o trabalho com a pedra, como se fosse algo certamente mais natural e prazeroso. Por vezes citavam fulano ou ciclano que certamente tinham nascido para o ofício, cujo “dom” ficava explícito ao manusear e transformar com perfeição qualquer pedra de tocasse. Muitos desses abandonaram a Vila e o ofício em busca de melhores condições de vida.

78 Aqui não vou entrar no mérito da discussão de se é ecologicamente correto ou não a utilização do material desse modo, extraindo-o da região sem uma supervisão, ao passo que a problemática que me interessa mais nesse momento é a desaculturação popular. Mas aponto ser de extrema necessidade esse tipo de aprofundamento em trabalhos futuros.

79 Quando ocorreu o êxodo da Vila, os telhados e esquadrias das residências foram retirados e vendidos.

80 Com exceção daquelas que compõem o museu aberto da Vila, que recebem orientações de visitação e manutenção.

A partir de tais relatos, foi possível compreender que ainda perdura um forte interesse, mesmo nas novas gerações, em aprender o saber-construir popular da região, mas que, na maioria das vezes, esse interesse é atravessado pela necessidade de sobrevivência ou pela busca de melhores condições de vida. Entretanto, há um indivíduo detentor de importante saber no ofício da pedra que já corre sérios riscos de se perder em Igatu: é o caso do cortador de pedra. Esse é o trabalhador que detém conhecimento de extrema especificidade para se executar a extração adequada dos blocos, placas e lâminas de pedra de um rochedo que serão utilizados posteriormente nas construções. Por ser um trabalho muito minucioso e fisicamente exaustivo, há pouco interesse no aprendizado do ofício para fins profissionais, restando apenas três mestres cortadores de pedra na Vila e nenhum jovem aprendiz das novas gerações.

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APROXIMAÇÃO

Atualmente o que se vê e o que se relata é que só constroem de fato uma casa de pedra os habitantes que vêm de fora da região, em grande parte estrangeiros, por possuírem recursos financeiros suficientes para importar todo e qualquer material, na forma imposta pela legislação e pelo Iphan. Normalmente tais edificações têm importado inclusive a mão-de-obra de outros lugares, o que tem resultado na quase inexistência de demanda desse serviço para os pedreiros locais, que acabam desenvolvendo cada vez menos o ofício.81 O que pude assimilar a partir do ponto de vista dos moradores, sem buscar respostas do Iphan, visto que o intuito deste trabalho não é discutir a questão do patrimônio e sim a desaculturação popular em curso, é que em Igatu a técnica construtiva popular que se relaciona com a cultura, a história e a ancestralidade da vila está caindo em desuso e sendo substituída por técnicas e materiais construtivos convencionais mercadológicos,

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FIGURA 71. Cícero, um dos três últimos cortadores de pedra de Igatu.

Fonte: Autora.

81 Segundo Amarildo dos Santos, morador nativo e responsável pelos levantamentos censitários da cidade, em 2020 havia 180 casas com moradores em Igatu e 70 casas construídas por não nativos. (Dos Santos, 2020, p. 3)

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que não dialogam com a cultura local, com a história da população nem com o entorno bioclimático da região. É preciso pontuar, ainda, que a aplicação dessas técnicas mercadológicas, seja na utilização de blocos industrializados ao invés da pedra, seja na cerâmica esmaltada ao invés do cimento queimado, tem alcançado resultados qualitativos finais muito inferiores em relação aos casos em que uma técnica popular tradicional é executada. Paredes fora de prumo, muitas vezes sem revestimento externo, gambiarras nas aberturas e nas emendas das alvenarias, cerâmicas mal colocadas e mal recortadas, dentre inúmeras outras patologias foram identificadas.

Diversos fatores podem levar a esse resultado final pouco satisfatório, mas aquele que vale muito a pena trazer para a discussão por estabelecer um diálogo direto com a tese marxista do professor Sérgio Ferro (2021), apresentada anteriormente, é o de que no caso de Igatu, o trabalhador que constrói com a pedra possui um saber-fazer que é dele, ele conhece o material desde sua extração, como ele reage e como ele se comporta, ele detém esse saber, não é apenas sobre erguer paredes. Já os pedreiros das novas gerações que sabem construir com as técnicas e materiais importados, embora as paredes sejam de fato erguidas, há algo que falta ali, algo que diz respeito ao cuidado, ao trato da matéria, a um conhecimento muito mais profundo do que o simples garantir que as paredes permaneçam de pé.

Essas técnicas que têm assumido o lugar das tradicionais locais, entretanto, não são necessariamente as mais baratas, visto que quem consegue extrair as pedras dos próprios lotes reduz os custos da obra drasticamente; nem as mais fáceis de executar, já que o saber-construir com pedra ainda resiste e carrega forte carga afetiva por parte dos trabalhadores e autoconstrutores; nem tampouco as mais ansiadas pela população, visto que essa substituição não está ocorrendo por desejo nato dos moradores, muito pelo contrário, tem sido quase praticamente imposta pelas circunstâncias.

Conclui-se, com isso, que a desvalorização da arquitetura popular local no contexto de Igatu é violenta, pois fere não só a ancestralidade e a memória da população que se vê impossibilitada de construir como seus pais e avós, mas também as necessidades básicas dessas pessoas, que poderiam estar morando com o amplo conforto que a pedra pode oferecer frente às características climáticas da região.

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Síntese de duas das entrevistas coletadas82 Luíz Paulo Luiz Paulo (ou L.P., como é conhecido), tem 33 anos e está construindo sua casa do zero, o que ele próprio denomina como “o sonho”. Luiz é escalador da modalidade Boulder e escolheu aquele terreno por conter uma rocha natural perfeita para o esporte que servirá tanto para treino quanto para sua diversão e de seus amigos. Era grande o desejo de “colocar a pedra pra dentro”, diz ele, se referindo ao interior da residência. Luiz Paulo é ao mesmo tempo idealizador, gestor e construtor da sua residência. Ele mesmo planejou o layout, definiu a técnica, desenhou os primeiros rascunhos, gere a logística da obra e participa ativamente, junto aos demais construtores contratados, da construção da edificação. Ele é de uma geração que já não vivenciou o período do garimpo da região, mas, mesmo assim, não abriu mão de construir a casa de pedra, que, segundo ele, é a melhor forma possível de se construir: mantém a casa fresca, é bonita e não destoa nem agride a paisagem natural ao redor. Seu pai e seu tio, geração anterior à sua, foram os responsáveis por repassar o saber-construir com pedras para a geração de L.P., sendo seu primo, inclusive, o mestre responsável pela obra. No seu caso, a matéria-prima está sendo extraída do próprio terreno, na limpeza e no corte do local, pelo mestre Cícero, um dos três últimos cortadores de pedra da cidade. Porém, embora fosse sua intenção, nem todas as alvenarias da edificação poderão ser construídas integralmente de pedras devido ao alto gasto e valor do cimento. Ele lamenta essa realidade e reforça: “aqui só não constrói com pedra quem não pode pagar, vontade não falta”.

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82 Devido à homogeneidade e semelhança entre os relatos, foram escolhidas duas histórias para serem contadas com maior detalhamento.

FIGURA 72. O autoconstrutor Luiz Paulo em sua obra. Fonte: Autora.

E, a seguir, FIGURA 73. Canteiro de obras. Vale notar a completa integração entre edificação e entorno. Fonte: Autora.

Mayra e Lucas Diferentemente de Luis Paulo que ainda está no início de sua construção, Mayra e Lucas já moram há mais de um ano em sua morada autoconstruída, e por conta disso, o relato deles já apresenta maiores detalhes e impressões do processo e do resultado final.

Lucas é natural de Igatu, enquanto Mayra, de São Paulo. Ela tinha uma carreira consolidada no mercado financeiro, estava morando em Portugal quando descobriu Igatu, se apaixonou pela cidade, por Lucas, e por lá ficou. Hoje, 4 anos depois, a família cresceu com a chegada de Raul, de 2 anos.

FIGURA 74. Casa de Lucas e Mayra, evidenciando o contraste entre a alvenaria de tijolos cerâmicos e o acabamento da fachada principal em placas de pedra. Fonte: Autora.

Como praticamente a totalidade dos moradores da cidade que constroem suas casas, Mayra e Lucas foram os responsáveis pela idealização do projeto, gerência da obra e, vez ou outra, da própria construção. A planta final ficou com 60m² e foi digitalizada e assinada por uma profissional amiga da família, que regulamentou no Iphan a construção. É composta por uma sala de estar integrada com a cozinha, dois quartos, um banheiro e uma área de serviço externa. Dos desejos realizados com relação à edificação, o maior foi não ter colocado forro, para que a casa tivesse um pé direito alto, que ajudasse na circulação do ar e na manutenção de uma temperatura agradável na residência. Das frustrações, a mais dura foi justamente a impossibilidade de se

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construir as paredes com pedra. Eles foram informados pela profissional responsável pela aprovação do projeto que havia no Iphan uma norma recente proibindo o uso de pedras nas construções novas da região, seja na conformação das alvenarias ou mesmo no revestimento das fachadas. O casal chegou até a citar comparativamente os valores do milheiro das pedras com o dos blocos, para dizer que a construção sairia inclusive mais barata se pudesse ter sido construída com pedras. O desejo era tão grande que, quando estavam à procura de terreno, buscaram informações sobre a possibilidade de comprarem algum que possuísse ruínas das casas da época dos garimpos, a fim de aproveitar sua estrutura e restaurá-la como sua moradia. Foi quando descobriram que toda e qualquer ruína na região é protegida pelo órgão e não pode sofrer nenhum tipo de interferência. A descoberta gerou indignação, principalmente por acompanharem diariamente a degradação natural das ruínas praticamente abandonadas que poderiam estar sendo cuidadas e aproveitadas pela própria comunidade. Sendo assim, a construção foi executada com o alicerce de pedras e as alvenarias de tijolo cerâmico industrializado, rebocadas com reboco de cimento. O piso é inteiriço de cimento queimado, prática muito comum nas casas da região, com exceção do banheiro que recebeu revestimento cerâmico e laje de concreto. Após a finalização do processo de aprovação do projeto no Iphan, mesmo contra as regras citadas, eles decidiram revestir a fachada com placas de pedra, alegando não fazer o menor sentido nem ser coerente uma casa em Igatu não ser de pedra. A construção foi feita por pedreiros da região, por vezes contratados, mas na grande maioria em sistema de mutirão, em que amigos e parentes se dispunham a ajudar e o dia de trabalho virava uma grande festa. Esse momento é contado com muito carinho e afeto pela família, que, com isso, conseguiu economizar muito em mão de obra e em transporte de materiais. Todavia, nem tudo foi executado de acordo com o projeto ou com as preferências deles, tendo a parte do acabamento ficado bem longe do desejado, principalmente na área que recebeu o revestimento cerâmico.83 Apesar dos percalços, Mayra e Lucas falam de sua casa e vivem a sua casa com um afeto, um orgulho e uma paixão comoventes. “Fomos nós que construímos”, “a cama de Raul, foi Lucas que fez, assim como nosso armário”; “está vendo essa maçaneta da porta? Fui eu que coloquei aí, era um antigo puxador de uma cômoda”, “tudo aqui fomos nós que fizemos”, “os armários da cozinha, fomos nós, é tudo aberto porque nós gostamos assim, e fomos nós.” O nome disso é pertencimento. A casa de Lucas e Mayra pertence a eles, assim como eles a pertencem. Tudo nela diz respeito a eles, à vida deles, às conquistas diárias deles. Ainda não está finalizada, pois obedece à ordem da autoconstrução brasileira, seguindo o ritmo da possibilidade financeira da família. Eles contam os planos futuros: a construção de um puxadinho, a execução de um revestimento externo nas empenas laterais, rodapés, uma varanda no fundo... A construção da casa não finda, ela acompanha a vida da família. Essa casa não é um produto, ela não foi adquirida no mercado imobiliário. E, quando pergunto se teria sido mais fácil ter comprado uma casa pronta, eles rapidamente respondem: “não, porque aí não seria a nossa casa”.

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83 Como já mencionado anteriormente, é visível, na cidade, o péssimo acabamento final das obras que se utilizam de materiais e técnicas convencionais. As justificativas são variadas: os pedreiros locais não capricham quando a obra é para um morador local; o próprio regime de mutirão pode acarretar um acabamento ruim visto da quantidade de pessoas diferentes fazendo cada parte do serviço sem muita organização; o pouco conhecimento e domínio dos pedreiros sobre as técnicas convencionais, etc.

Mas é preciso reforçar que, nas mesmas condições de execução, as partes em pedra possuem acabamento impecável.

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FIGURA 75. Detalhes do mobiliário.

Fonte: Autora.

FIGURA 76. Lucas e o pequeno Raul.

Fonte: Autora.

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APROXIMAÇÃO

FIGURA 77. Mayra, autogestora de sua morada. Fonte: Autora.

FIGURA 78. Pequeno Raul transbordando vida no seu quarto encantado. Fonte: Autora.

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VALE DO PATI

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APROXIMAÇÃO

O Vale do Pati está localizado no interior do Estado da Bahia, no coração da Chapada Diamantina, e abriga hoje uma comunidade tradicional de 12 casas. A formação histórica dessa comunidade tem sua origem no ano de 1899, segundo histórias contadas pelos moradores mais antigos, quando pessoas chegaram na região em busca de terras mais férteis e úmidas para plantio de subsistência. Mais tarde, a região passou a ter forte significância econômica através do cultivo do café, chegando a abrigar mais de 330 famílias.84 O êxodo da grande maioria dessas famílias da região se deu devido à política nacional de erradicação de cafezais do começo da década de 1960, executada pelo GERCA – Grupo Executivo de Racionalização da Cafeicultura. O principal objetivo era conter a produção, para que com menos oferta, o produto que era tão importante para a balança comercial brasileira pudesse ser mais valorizado o que, consequentemente, geraria melhores resultados econômicos. (Marback, 2018, p. 47)

84 Segundo relato do(a) morador(a) 5; A mesma informação consta em MARBACK, H. F. 2018. Uma viagem exploratória pelo Vale Do Pati: Estudo sobre o acolhimento nos meios de hospedagem, p.45.

Segundo os relatos dos moradores, oficiais do governo chegavam com ordens de erradicação da produção em troca de indenização. O(a) morador(a) 5, neta de um dos mais antigos moradores do Vale, já falecido, conta que muitos moradores acabaram sendo enganados por intermediadores e contraindo dívidas com o Governo nesse período, tendo sido obrigados a vender suas terras “a preço de bananas”, conta ela.

Hoje, nos antigos campos dedicados à monocultura do café, já se regeneram a vegetação e espécies nativas da região. Já as famílias remanescentes vivem do turismo que ganhou destaque na região da Chapada Diamantina a partir da década de 1980.

(Marback, 2018, p. 48) O interesse em abordar o caso da Comunidade Tradicional do Vale do Pati se dá devido à resistência das famílias remanescentes, que já estão na 5ª geração, em permanecer habitando e existindo no local apesar das duras dificuldades de acesso ao Vale. As restrições de acesso, impostas pela própria geografia da região circundada por chapadões de cerca de 1500 m de altitude, influenciam diretamente no modo de morar e de construir dessas famílias, que acabam tendo que “se virar” com o que a natureza disponibiliza.

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IGREJINHA

GUINÉ

280

278 1439

SEU WILSON 281

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ESCOLA 392

SEU PEDRO

DONA LÉIA

1260

372

PREFEITURA 1530

DONA RAQUEL

282

JAILSON 284

MAGMA ESCO SEU EDUARDO

1364

CAPAOZINHO 1450

1561

1520

TAPIACANGA

1512

CAMPOS GERAIS 1412

0

OLA

FELIPE SEU MASSU JOIA

1456

ANDARAÍ

1222

LEGENDA

BAIXO PATI RIOS TRILHAS CASAS LIMITE DO VALE DO PATI PRINCIPAIS CACHOEIRAS MORROS

ELABORAÇÃO PRÓPRIA

FIGURA 79. Residência no Vale do Pati.

Foto: Autora.

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APROXIMAÇÃO

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A chegada no Vale do Pati pode ser feita via quatro acessos principais: (I) Vale do Capão (norte), (II) Andaraí (leste), (III) Guiné (oeste) e (IV) Mucugê (sul), a partir dos quais só é possível continuar a pé ou com animais. Cada acesso tem características e níveis de dificuldade específicos, em função das distâncias percorridas e da geografia. (Marback, 2018, p. 48) Os acessos possuem, em média, cerca de 20 km de trajeto até a primeira casa de apoio mais próxima. Os moradores utilizam mulas e burros para acessar a cidade mais próxima de sua residência quando precisam adquirir mantimentos, medicamentos ou qualquer outro insumo como, por exemplo, materiais de construção. O tempo do trajeto efetuado pelos moradores é, em média, de 3 horas e meia a 5 horas e meia.

A partir do estudo de campo realizado por mim no Vale do Pati foi possível coletar relatos significativos para a compreensão das práticas, relações e questões relativas ao modo de viver no Vale. Visando de preservar as identidades dos moradores, nenhum relato será identificado com o nome do(a) interlocutor(a).

As doze casas da Comunidade Tradicional do Vale do Pati são da D. Raquel Pereira; João Pereira; André Pereira; Lea Vieira; Agnaldo Pereira; João Calixto – Local conhecido como Igrejinha; Jailson Pereira – Local conhecido como Prefeitura; Edileuza Souza Pereira – Miraldo Pereira (Sr. Joia); Antonio Oliveira (Sr. Tonho) e Dagmar Oliveira; Victor, Domingos e Viviane Oliveira (Netos de Sr. Eduardo); Sr. Wilson e; D. Linda O enfoque da pesquisa de campo foi a observação e o registro fotográfico dos métodos construtivos das residências, com maior atenção para possíveis adaptações de materiais, técnicas, móveis, etc., e a escuta dos moradores e moradoras que compartilharam comigo um pouco sobre suas histórias, suas rotinas cotidianas, suas moradias, suas dificuldades e satisfações. Nenhum questionário foi aplicado, pelo contrário, todas as informações coletadas foram fruto de conversas informais e naturais nas quais eu fui apenas induzindo o interesse base da pesquisa: a produção das moradias da comunidade e sua relação com a vida de seus habitantes.

Segundo os relatos obtidos, as casas do Vale antigamente eram em sua totalidade construídas com a técnica do pau-a-pique, utilizando-se madeira e barro da região.

Muitas dessas casas ainda permanecem conservadas e habitadas. O(a) morador(a) 1 reside no Vale com a esposa e a filha, é bisneto de um dos primeiros moradores da região e atual dono da casa que foi herdada de seus pais. Ele conta que devido ao intenso regime de chuvas que a região possuía, era inviável construções com adobe, por isso os antigos optavam pelo pau-a-pique.

Conforme foi possível verificar em todas as casas visitadas e pelos relatos dos entrevistados, atualmente, no entanto, a principal forma de construção da comunidade é a autoconstrução com adobes. Todos os entrevistados (as) disseram saber produzir os tijolos com o barro da região, que é utilizado na sua forma pura sem misturas, apesar de que nem todos(as) dominam o ofício da construção. Geralmente, as construções

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são realizadas no sistema de mutirão com os vizinhos, no qual pode ser contratado algum ajudante de pedreiro ou mesmo um mestre de obras local que possui o domínio da técnica. Por todo o trajeto percorrido foi possível verificar estocagens de adobe nas propriedades.

FIGURA 80. Edificação em taipa de mão no Vale do Pati. Fonte: Autora.

FIGURA 81. Casa antiga marca a temporalidade evidenciada pelas diferentes formas de utilização do barro.

Fonte: Autora.

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FIGURA 82. e, FIGURA 83. Detalhe do acabamento de cimento sobre alvenaria de adobe.

Fonte: Autora.

Os contrastes entre as edificações mais recentes e as mais antigas demarcam bem a evolução temporal e cultural construtiva contada pelos patizeiros.85 As edificações mais antigas, aquelas de pau-a-pique, só são demolidas quando há risco de queda, do contrário, estão sempre passando pelas manutenções necessárias, normalmente apenas retoques de preenchimento das paredes. Os moradores fazem questão de pontuar esse aspecto para exaltar a alta qualidade das estruturas de madeira das casas antigas que permanecem bem conservadas, rígidas e firmes.

85 Como são chamados os nativos do Vale do Pati

Em geral, as novas construções são necessárias apenas para atender à demanda do turismo e aumentar o número de acomodações e banheiros para os visitantes. As casas antigas de pau-a-pique continuam sendo habitadas pelos locais que vez ou outra constroem extensões acoplados ou não à casa principal.

Dos materiais de construção que os moradores alegaram ser imprescindível trazer da cidade estão: cimento para reboco, telhas, em geral de fibrocimento, e esquadrias, apesar de alguns, como por exemplo o(a) morador(a) 1, fabricarem as próprias esquadrias. Alguns optam também por trazer algumas peças de revestimentos de cerâmica, mas apenas para os acabamentos dos banheiros. Estes apontaram uma enorme diferença depois da colocação dos revestimentos cerâmicos visto que, segundo eles, o cimento desgastava com muita facilidade.

Foi possível perceber que as casas mais antigas geralmente possuem telhados de telhas de barro, hoje a escolha das telhas de fibrocimento se dá devido à relação entre maior cobertura e menor peso para o transporte.

Uma questão interessante foi a constatação de que todas as casas visitadas executam o reboco de cimento, até mesmo nas construções de pau-a-pique. Os moradores em geral relacionam o cimento com a salubridade dos ambientes, ao passo que o revestimento impede a infestação de insetos nas paredes, com a maior durabilidade da edificação86 e ainda com a aparência “mais limpa” que as paredes revestidas proporcionam aos turistas. No entanto, foi possível constatar que na maioria das casas visitadas as partes posteriores das edificações, aquelas em que não há circulação de turistas, continuam sem revestimentos seja no pau-a-pique ou no adobe.

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86 Apesar dessa justificativa ser verdadeira, é preciso pontuar que ao rebocar uma parede de terra crua com cimento o reboco impede a principal característica das alvenarias de terra crua: a possibilidade de respiração delas, ou seja, a troca de umidade e a retenção de calor das mesmas. Características estas que proporcionam maior salubridade e conforto térmico para os ambientes. (Lins & De Santana, 2017)

APROXIMAÇÃO

Em 1985 foi criado o Parque Nacional da Chapada Diamantina (PNCD) que abrange o Vale do Pati, com o intuito de preservar os ecossistemas da Serra do Sincorá e conservar suas nascentes, com destaque para o principal rio baiano, o Paraguaçu. O parque atualmente é administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), uma autarquia criada em 2007 e vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. (Guia Chapada Diamantina, 2021)

FIGURA 84. Parede de taipa rebocada no plano principal e outra sem reboco nos fundos da edificação. Fonte: Autora.

Segundo os relatos dos moradores a administração do Parque “só proíbe” e “não ajuda em nada”. Isso porque desde a definição do Parque, os moradores do Vale do Pati são proibidos de iniciar qualquer nova construção na região. Tal determinação, no entanto, não tem conseguido impedir que os moradores construam novas acomodações e banheiros para a crescente demanda de turistas. Esse assunto causa desconforto pois, segundo eles, as novas construções são imprescindíveis para a subsistência das

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famílias, que vivem estritamente com a renda do turismo na região. Esse fator foi agravado com a chegada da pandemia do novo Coronavírus de 2020/21 ao passo que a maioria das casas precisou adequar suas acomodações às estratégias de distanciamento recomendadas e, para tal, a construção de novos banheiros foi indispensável.

O fator da proteção ambiental representado pela criação do PNCD tem grande importância na compreensão da arquitetura popular da região. Isso porque um aspecto que chamou muita minha atenção foi o do escoamento do esgoto (águas negras e cinzas) das moradias da comunidade. Nenhuma das casas visitadas possui uma rede ou um plano consistente de tratamento das águas negras ou cinzas. O escoamento ocorre da seguinte maneira: as águas cinzas são geralmente descartadas nos próprios quintais ao redor das casas, enquanto que as águas negras são descartadas em fossas cavadas no solo sem revestimento interno e com tampo de concreto. Como é possível perceber pelo mapa da comunidade, as casas estão integralmente alocadas nas margens dos rios que cortam o Vale. Sendo assim, a falta de planejamento do escoamento do esgoto das moradias pode afetar o solo e a rede hídrica da região. No entanto, indaguei todos os entrevistados(as) se em algum momento a administração do Parque ofereceu algum suporte técnico, capacitativo ou informativo a respeito do escoamento/tratamento do esgoto das moradias e a resposta foi integral e contundente: não.

Através dos relatos foi possível perceber que não houve até o momento nenhuma iniciativa da administração do Parque em ajudar a comunidade a destinar corretamente seus esgotos, a fim de proteger o meio-ambiente circundante. Também não houve nenhuma ação de capacitação ou mesmo informação sobre métodos construtivos adequados à região. Os moradores informaram apenas que há uma iniciativa de levar biodigestores para as moradias, prevista para este ano ainda, que partiu da Associação dos Moradores (criada em 1988), mas não souberam me dar maiores detalhes.

Em todas as entrevistas foi possível confirmar que o interesse dos moradores em permanecer no Vale está intrinsecamente relacionado com a continuidade dos legados dos seus antepassados principalmente no que diz respeito ao cuidado com a terra e com o modo de vida conectado à natureza. Em nenhum momento foi percebido algum interesse de fundo lucrativo ou especulativo nos nativos que, inclusive, deixaram evidente os anseios de que seus filhos venham a permanecer também no Pati.

Essa conexão ancestral com a região e o sentimento de pertencimento dos moradores completamente satisfeitos com suas moradias e modos de vida resulta no interesse de cuidado e preservação da terra, das nascentes e da biodiversidade do Vale pelos patizeiros.

Tal situação escancara um conflito de interesses que poderia ser evitado: por um lado a ordem proibitiva para novas construções no Parque se justifica pela preservação ambiental, por outro lado os moradores do Vale que detém a propriedade das terras há mais de cinco gerações precisam sobreviver e são, sem dúvida, os maiores interessados na preservação ambiental da região. As novas construções, sejam de acomoda-

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APROXIMAÇÃO

ções ou banheiros, não seriam uma ameaça à natureza local se pudessem ser executadas com suporte técnico adequado. O que se percebe é que por receio da proibição, que já é dada como certa, os moradores “se viram” como podem e com o que têm.

Apesar de ser um caso bem específico e pontual, onde as restrições da autoconstrução extrapolam a questão financeira, é importante que se compreenda que a permanência dessas famílias na região é uma escolha que transpassa as restrições impostas pelas dificuldades de acesso. E que se há uma parcela da população, mesmo que nesse caso seja numericamente irrisória, optando por tal modo de existência no mundo e por tal modo de habitar em nosso país, é de suma importância que consideremos esses modos de produção social de moradias como arquiteturas significativas a fim de buscar aprimoramentos das técnicas populares empregadas, aprendidas através de seus ancestrais, e com isso alcançar melhorias habitacionais viáveis para famílias como as da Comunidade do Vale do Pati.

ARQUITETURAS E TÉCNICAS POPULARES BRASILEIRAS

FIGURA 85. Ornamento feito de carcaça de animal em uma das propriedades.

Fonte: Autora.

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FIGURA 86. Viviane, neta de um dos mais antigos moradores do Vale.

Fonte: Autora.

FIGURA 87. Utensílios domésticos.

Fonte: Autora.

FIGURA 88. Altar de preces.

Fonte: Autora.

FIGURA 89. Fogão à lenha. Fonte: Autora.

FIGURA 90. Detalhe de solução construtiva para a abertura da folha da porta. Fonte: Autora.

FIGURA 91. Contraste entre a organicidade das paredes de taipa de mão (à direita) e a retitude de adobe (à esquerda). Fonte: Autora.

FIGURA 92. Ilustração de sua casa feita por uma das crianças do Vale na qual a cozinha foi ilustrada pela presença da chaminé do fogão à lenha.

Uma frigideira com ovos, e palmeiras compõem ainda o desenho.

Fonte: Autora.

FIGURA 93. Sr. João, 4ª geração da sua família a residir no Vale. Fonte: Autora.

FIGURA 94. Interior da Igrejinha, como é conhecida a capela do vale do Pati.

Fonte: Autora.

FIGURA 95. Fogão à lenha. Fonte: Autora.

FIGURA 96. Mestre adobeiro Altair.

Fonte: Autora.

FIGURA 97. Mestre construtor Sr. Albertino. Fonte: Autora.

FIGURA 98. e, FIGURA 99. Fogões à lenha nos quintais das propriedades. Fonte: Autora.

FIGURA 100. Casa de taipa de mão no Vale do Pati. Fonte: Autora.

FIGURA 101. Mestre Altair exibindo sua obra prima de adobe. Fonte: Autora.

FIGURA 102. Estrutura de madeira para futura edificação. Fonte: Autora.

FIGURA 103. Sistema de acionamento de álcool em gel, em adaptação à Covid-19, desenvolvido pelos próprios moradores.

Fonte: Autora.

FIGURA 104. Detalhe construtivo com a utilização de garrafas de vidro vazias.

Fonte: Autora.

FIGURA 105. Porta-janela, tipo de porta muito utilizada na região. Fonte: Autora.

FIGURA 106. e, FIGURA 107. Chuveiros ao ar livre.

Fonte: Autora.

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HISTÓRIAS DE GENTE E DE CASAS 201

P

aulistana de 34 anos, mora atualmente em Ilhabela em uma casa autogerida e autoconstruída. A história da Emilia e da sua família está intrinsicamente ligada à história das casas em que residiram.

Os caminhos percorridos pela vida e as escolhas tomadas sempre estiveram ligados, direta ou indiretamente, às suas moradias. E essas, por sua vez, deixaram marcas de afeto profundas, além de terem contribuído para quem se tornou hoje.

HABITANDO A CHACRINHA Emilia passou a infância junto aos pais e ao irmão em uma casa rural localizada em Araçoiaba da Serra, no interior do Estado de São Paulo. A casa até hoje é apelidada de “chacrinha” e é de onde vem as melhores lembranças dela. A forma afetiva com a qual Emilia se refere a esse período é muito sensível, “era uma chacrinha linda, uma casinha térrea, pequeniníssima, tinha um dormitório, uma sala, uma cozinha, um gramadão e uma piscininha pequeninha”. Os pais e os dois filhos dormiam no mesmo cômodo e esse fato é contado com muito carinho por Emilia, que explica que isso estreitou os laços de intimidade da família. Com o tempo, os pais foram reformando a chacrinha com a intenção de ampliá-la. A reforma foi toda pensada, planejada e gerida pelo pai com o auxílio do tio, que é um pedreiro experiente. Com a reforma, a chacrinha ganhou um segundo andar e 4 dormitórios amplos – sendo 2 suítes –, de modo que cada um tinha seu próprio quarto. Dessa reforma, o

que Emilia conseguiu transbordar na sua entrevista foi um grande pesar pela chegada do cimento que tomou conta dos gramadinhos da sua infância, transformando-os em um estacionamento de carros e em uma quadra cimentada; e pela transformação da escadinha que levava ao pomar em uma “piscina gigante e esquisitona (risos)”. Pai e filha, anos depois, revelaram considerar melhor a chacrinha antes das reformas realizadas.

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HABITANDO A CASA VERMELHINHA DE TETO AMARELO Mais tarde Emilia se muda para o Rio Grande do Sul, junto ao seu companheiro, para fazer faculdade. A família de Emilia como a grande maioria das famílias brasileiras, sempre teve como fio condutor o ideal da casa própria. Segundo ela, a lógica do pai era “vale tudo para não pagar aluguel”. Por isso, ao partir para o RS, sua família se mobilizou para a compra de um terreno e construção da primeira casa de Emilia Dessa vez, a construção recebeu apoio projetual do namorado – estudante de engenharia, que desenhou a planta de uma casa térrea –, mas a execução ficou a cargo de construtores contratados, sendo a obra gerida pela própria família.

Deixando de lado os imprevistos construtivos com os quais se depararam, pelo depoimento dela, eu tomei essa casa, “vermelhinha, do teto amarelo, janelas brancas e jardim”, como a segunda habitação que entrelaçaria com profundidade a sua vida, uma casa autogerida “cheia de magia”i, que abrigou todas as cores e sonhos de sua juventude.

A decisão de deixar o estado sulista, no entanto, não foi fundamentada por uma autoconsciência. De forma um pouco nebulosa, Emilia conta que juntos, ela e o companheiro, decidiram regressar. No entanto, explica que faltou clareza nessa decisão, visto que, pessoalmente, havia criado vínculos afetivos e que detinha um sentimento de pertencimento já profundo com a casa e o lugar.

MULHER, POLÍTICA, AUTOCONSTRUÇÃO E O TERRENO DA LINDA JAQUEIRA Do RS, Emilia retornou a São Paulo rumo a Ilhabela, em uma mudança que significou também uma redução do padrão social dos dois, tendo se descoberto grávida logo no primeiro ano.

No período do puerpério, o casal foi em busca da casa própria após receberem uma quantia financeira do pai de Emilia. Depois de muita procura, encontraram o terreno ideal e começaram os planos de construção da nova morada. Um lote de 300m² “com

i Palavra usada pela própria moradora ao se referir à casa em questão

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uma jaqueira linda enorme no meio”.

No entanto, o período que compreende a saída do RS, o estabelecimento em Ilhabela, a gravidez e a busca do terreno culminaram no desenvolvimento de um ambiente doméstico machista. As discussões acerca da nova casa e do projeto ideal para o terreno passaram a desviar dos anseios de Emilia. concentrada na manutenção do seu puerpério e esperando a construção de “um cantinho para ficar a vida inteira”, enquanto seu companheiro nutria ideias rentáveis para o local. O projeto tinha sido “encontrado” pronto na internet por ele, e os recursos financeiros estavam limitados. Ainda assim, a ideia da autoconstrução foi descartada pelo companheiro, que, segundo ela, demonstrava certa vaidade devido à sua origem social abastada. Somado a outros fatores pessoais, esse cenário acabou evoluindo e resultando na separação não amigável do casal.

Um tempo depois, pausado o projeto da casa nova, Emilia começou a se relacionar novamente, dessa vez com um jovem com ideias que fugiam da lógica de vida hegemônica. Foi esse segundo companheiro quem apresentou a ideia da permacultura e das ecovilas para Emilia e propôs a ela a retomada da obra da casa por via da autoconstrução e da bioconstrução.

Os dois, juntos, partiram então para o Tibá-Rio, a fim de se capacitarem para a construção da casa de Emilia com materiais mais econômicos e

buscando uma maior integração com o meio ambiente e com o modo de vida que ansiavam. Essa escolha não foi aleatória. Ela parte de uma gradual consciência política, social e ambiental dessa mulher. Pelo depoimento de Emilia ela parece assumir que caiu no Tibá de paraquedas, sem saber ao certo o que estava fazendo, influenciada pelo namorado. Foi exatamente esse o momento em que eu a conheci, e posso dizer que como a grande maioria das pessoas que se encontravam lá, Emilia estava buscando algo diferente do que conhecia, uma mudança, um caminho para o bem-estar seu e do seu filho, para o conforto e integração com a natureza, e que fosse financeiramente viável.

A ideia inicial era autoconstruir a nova casa utilizando a técnica do bambu-a-pique, tendo mais tarde optado pelo adobe, com a intenção de focar no isolamento acústico, incômodo recorrente na vizinhança.

No entanto, a construção na prática não saiu como o esperado. Nenhum dos dois possuía experiência prática na execução de edificações. Esse período escancarou para ela uma dura realidade da sociedade machista em que vivemos, em suas palavras: “a dificuldade também de ser uma mulher solteira construindo”, já que as mulheres são frequentemente colocadas como objetos sexuais dos homens envolvidos nessas atividades, fato que dificultou ainda mais o processo da autoconstrução de sua casa. Além

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disso, o orçamento foi fugindo do controle e outra vez se estabeleceu um ambiente machista, no qual o companheiro assumiu um papel autoritário de responsável pela obra e de detentor do conhecimento necessário para a execução da edificação sem, de fato, conseguir executá-la com a segurança esperada. Com o orçamento previsto estourado já na preparação do terreno e na execução da fundação, Emilia desistiu de dar continuidade, e o relacionamento desgastado pelos contratempos da autoconstrução findou junto com a obra.

Com um cansaço acumulado das falhas tentativas de materializar a casa dos sonhos do terreno da jaqueira bonita, Emilia cogitava a venda do terreno e a saída de Ilhabela, quando o tio Hugo, pedreiro, aceitou executar a casa, mas descartando o projeto da bioconstrução com o qual não possuía nenhuma familiaridade.

A CASA CANTEIRO OU A CASA DOS SONHOS POSSÍVEL Sozinha, com um filho pequeno, mas com o amparo da sua família, Emilia recomeçou do zero a construção da sua casa em Ilhabela. Esse processo se caracteriza como autoconstrução ao passo que foi seu tio Hugo quem a construiu, um familiar próximo, pedreiro experiente, mas sem formação técnica ou acadêmica na área da construção civil. A casa resulta de muito cansaço, de feridas pessoais

e de um esgotamento financeiro, mas também da persistência, da luta pela casa digna e pelo conforto doméstico. Portanto, aqui a considero como expressão da arquitetura popular, de quem está na luta diária pela sobrevivência no nosso país, enfrentando restrições financeiras, técnicas e sociais de ser uma mulher e mãe no Brasil.

A presença de dois tios em Ilhabela para a construção da casa reuniu a família materna e reforçou os laços afetivos. No entanto, a pandemia paralisou o andamento da obra que estava já com as paredes erguidas e com a laje feita. Esse período de caos sanitário foi um momento muito delicado na vida de Emilia, que passou por fortes contratempos pessoais. Em meio ao cenário de incertezas e vulnerabilidade física, emocional e financeira (ainda nesse período residindo em casa de aluguel), ela decidiu se mudar para o canteiro de obras, ocupando a parte mais acabada da edificação. Tomada tal decisão, foram necessários alguns ajustes prévios na obra para viabilizar essa estadia. Foi realizado então, em caráter de urgência, toda a parte de baixo da casa com os devidos acabamentos necessários para a mudança dela e do filho com a salubridade adequada. Estando literalmente alocada no canteiro de obras, Emilia retomou a construção com os pedreiros contratados e passou a acompanhar bem de perto o processo junto com o filho, o que caracterizou

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uma autogestão direta da construção, precisando lidar com imprevistos na obra, readequação do projeto original e manutenção dos gastos, que nesse momento estavam bem limitados.

Os pais dela, em um gesto de apoio para auxiliar no cuidado com o filho e com a obra, se mudaram para a casa canteiro, e os quatro passaram a viver em um mesmo cômodo, lembrança que remonta à infância de Emilia. quando dormiam ela, o irmão e os pais no mesmo quarto da chacrinha.

Tal circunstância outra vez estreita os laços afetivos e preenche de carinho o período em que habitaram o canteiro de obras.

A finalização da obra foi realizada, portanto, com o gerenciamento de Emilia e dos pais, sendo o pai bem ativo nas decisões da construção, e com a participação sempre atenta do pequeno Gabriel, seu filho, que aju-

dava nos desenhos dos projetos que eram pensados em concomitância com a obra e ainda nas atividades práticas de forma educativa. Os três, ela, o filho e o pai, tiveram que desenvolver uma escada alternativa para os dois sobrados, já que a execução da escada de concreto original do projeto não deu certo. A alternativa foi uma escada em madeira pensada e executada manualmente por seu pai, e que carrega uma imensurável carga afetiva por ela.

Emilia demonstra hoje uma completa satisfação com sua casa, que recebeu pintura de terra crua na área externa e na área interna as cores da sua paz, escolhidas a dedo. E só lamenta a retirada da jaqueira e a inexistência de uma laje na cobertura para ver as cachoeiras do entorno, desejo inicial que foi suprimido pelo projeto genérico.

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ele fez o telhado, aliás, com muita dor no meu coração, porque a laje tinha uma vista linda, pra cachoeira, e eu sempre quis aproveitar muito aquele lugar, mas não sabia como

PLANTA ORIGINAL PAV. SUPERIOR

PLANTA ORIGINAL PAV. TÉRREO

PLANTA PLANTAORIGINAL ORIGINAL PLANTA ORIGINAL PAV. PAV.SUPERIOR SUPERIOR PAV. SUPERIOR

PLANTA PLANTAORIGINAL ORIGINAL PLANTA ORIGINAL PAV. PAV.TÉRREO TÉRREO TÉRREO PAV.

PLANTA EXECUTADA PAV. SUPERIOR

PLANTA EXECUTADA PAV. TÉRREO PLANTA EXECUTADA PLANTAEXECUTADA EXECUTADA PLANTA PAV. TÉRREO PAV.TÉRREO TÉRREO PAV.

PLANTA EXECUTADA PLANTAEXECUTADA EXECUTADA PLANTA PAV. SUPERIOR PAV.SUPERIOR SUPERIOR PAV.

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FIGURA 108. Ao lado, cotidiano.

Fonte: Autora.

FIGURA 109. Plantas arquitetônicas.

Acima, projeto original. Abaixo, modificações efetuadas na execução.

Fonte: Autora.

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1m 1 1 1m mm

FIGURA 110. Fachada principal da residência, com escada de balanço suspensa e tinta de terra. Fonte: Autora.

FIGURA 111. , FIGURA 112. e, FIGURA 113. Escada artesanal de madeira, projetada pela família e executada pelo pai de Emilia em substituição à de cimento do projeto original. Fonte: Autora.

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FIGURA 114. Ornamento afetivo.

Fonte: Autora.

FIGURA 115. Detalhes construtivas: piso de cimento queimado cru e soleiras de azulejo hidráulico. Atenção para a cor da parede dos cômodos sociais que foi escolhida minuciosamente pela dona da casa “a mesma cor da escola do filho, me dava uma sensação de paz”.

Fonte: Autora.

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FIGURA 116. Detalhe do mobiliário do dormitório. Fonte: Autora.

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FIGURA 117. A forma (molde) de adobe da época em que tentaram bioconstruir a casa serve hoje como mesinha de cabeceira. Fonte: Autora.

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D

Fia tem 84 anos, é mineira do centro-oeste de Minas Gerais, nascida e criada na roça. Tem origem humilde e passou grande parte de sua vida na zona rural, habitando casas simples autoconstruídas pelo marido com os materiais que a própria natureza disponibilizava.

Sua história e a de sua casa atual enriquecem este trabalho porque expõem a realidade de quem carregou as marcas da vida simples e dura do campo para dentro da cidade. Essa mulher, que às vezes faz parecer que qualquer coisa lhe serve, pode ter dúvidas sobre o que quer, mas sabe bem o que não quer, e me alertou desde o início: deus me livre de viver em casa de barro de novo! (D. Fia, 2021)

Segundo ela, as casas em que viveu no campo não eram ruins, e a qualidade da edificação variava muito de morador para morador e do capricho que cada qual dedicava à sua morada. não era mal feita não, era bem assim arrumadinha. Por exemplo, dependia da pessoa né, se a pessoa era caprichoso... minha casa toda a vida foi arrumadinha.

a gente cuidava né. Fazia ela, depois rebocava... ficava tudo arrumadinho.

(D. Fia, 2021)

As casas, em sua maioria, eram feitas com a técnica do pau-a-pique, barreadas com barro grosso e depois recebiam acabamento com barro fino. O chão era de terra batida e recebia reboco de barro fino no acabamento. Ela conta que esse reboco tinha que ser refeito a cada ano para conservar o bom estado da edificação, fato que justifica sua atual satisfação com as casas que morou na cidade que, já que feitas de tijolos cerâmicos e pintadas com tinta industrializada não precisavam estar a todo ano recebendo manutenção.

D. Fia tem na sua essência um capricho difícil de achar igual, característica que herdou de sua mãe. Quem a conhece conta que suas casas sempre foram impecáveis, apesar da simplicidade. E as casas de roça não eram diferentes. Em seus relatos, ela a todo momento afirma que sempre conseguia deixar tudo “limpinho” e “arumadinho”. Para passar esse aspecto de casa limpa e arrumada ela conta que não abria mão de buscar a terra mais clara para o reboco, mesmo com a longa distância e o peso do barro carregado:

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como as casas de barro não eram pintadas né, eu arrumava umas terras brancas, por isso que eu fiquei ruim da coluna, porque eu tinha que carregar peso demais pra rebocar as casas. Os barros clarinhos era lá na beirada da tabatinga. Eu buscava aquelas baciadas pra rebocar a casa, pra casa ficar branquinha... bobagem... hoje estou aí pagando o preço com a coluna. (D. Fia, 2021)

Apesar de todo o capricho, ainda assim era um contexto de precariedade inevitável, tendo em vista a sua baixa condição social e financeira. A doença de chagas, por exemplo, fez duas vítimas fatais na família, e seu esposo, trabalhador rural desde criança, convive com a doença, que veio a se manifestar somente aos seus 70 anos de idade.

A decisão de partirem para a cidade veio da vontade de possibilitar aos filhos – que chegavam à idade de ir para a escola – um estudo melhor do que o oferecido na zona rural. Na cidade, moraram em inúmeras casas até que se estabeleceram, em 1969, na qual permanecem até hoje.

Já com sete filhos pequenos, conseguiram se dividir melhor nos dois quartos e meio que a casa nova possuía – o terceiro, segundo ela, era bem pequeno –, além da sala e da cozinha, sendo o banheiro um quartinho externo com uma fossa séptica e espaço para os banhos de balde. No fundo, havia ainda um barracão externo com fogão a lenha.

A primeira reforma só veio a acontecer 11 anos depois, viabilizada por dois dos filhos que já estavam trabalhando em São Paulo, tendo sido autogerida e, às vezes, até autoconstruída, pela família. Com ela, diminuíram o segundo quarto para ampliar o terceiro, construíram um quarto dormitório, fecharam o alpendre frontal da casa e passaram para a lateral, construíram uma cozinha integrada ao fim da edificação, e construíram também um banheiro interno, principal demanda da família.

Na segunda reforma, em 2013, também viabilizada pelos filhos, as mudanças visavam a obtenção de um quinto dormitório, a construção de mais dois banheiros e de uma área de serviço interna. Já nesse tempo só habitavam a casa D. Fia e seu esposo, visto que todos os filhos já estavam estabelecidos em suas próprias moradas. A ampliação da casa era, portanto, uma necessidade que sentiam nos momentos de reunião da família, que já está na quarta geração. No entanto, custou o preço da remoção de uma jabuticabeira adulta enorme que precisoui ceder seu espaço para os novos cômodos.

i O destaque aqui se faz importante visto que o terreno da casa é amplo e possibilitaria outras alternativas de ampliação sem a necessidade obrigatória de remoção da jabuticabeira. Mas não fica explícito se a família tinha ou não conhecimento de tal fato.

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Além disso, a reforma tinha também uma intenção estética de “modernizar” a a casa, que recebeu piso clarinho no lugar da ardósia escura, além de portas e janelas em vidro.

A terceira reforma foi na parte externa da casa, e surgiu da vontade dos filhos em proporcionar a casa “arrumadinha” e “limpinha” que D. Fia sempre ansiou. Para tal, o piso do quintal lateral à casa, que antes tinha partes de cimento e partes de grama, foi revestido com piso cerâmico; o portão, que antes era marrom e baixo, foi trocado por um branquinho e mais alto; o muro de divisa com a vizinha, que estava ameaçado de desabar, também foi refeito, recebendo iluminação de jardim; e, por fim, foi construído um fogão a lenha externo, para atender às necessidades pontuais dos(as) cozinheiros(as) da família.ii É preciso pontuar que a edificação ocupa apenas o primeiro terço do terreno, sendo os outros dois terços reservados para a horta do consumo familiar e para a criação de galinhas de seu esposo. Pode-se considerar que esses dois terços do fundo são os resquícios da cultura camponesa dos quais eles não abrem mão. No entanto, a “ceramização”iii do entorno

da casa a partir da terceira reforma evidenciou as dificuldades em se fundir os dois mundos: não há mais uma zona de transição entre barro e cerâmica esmaltada, e a terra dos sapatos é comumente depositada nas cerâmicas branquinhas, sobrecarregando a limpeza doméstica.

A quarta reforma já está sendo planejada e depois dela, sem dúvida, virão outras. A casa de D. Fia evolui paralelamente com a evolução financeiro-social da família. Eles não pensam mais em mudar de casa, essa já parece abrigar muita história e marcas de seus habitantes. Sua evolução é a materialização da ascensão social das novas gerações. Ela é luta e conquista diárias.

E, ao ser indagada se gostaria de morar em uma casa de barro de novo, D. Fia responde de prontidão:

ii A família relata que vez ou outra montavam um fogareiro improvisado no quintal para se cozinhar algum prato que não dispensava o uso da lenha. iii Aplicação de piso de cerâmica esmaltada.

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ah, das do jeito que eu morei eu não tenho vontade mais não, porque a gente tinha de cuidar né, era muito difícil rebocar aquilo. Então assim eu não tenho vontade não.

Como diz o fulano, eu não tenho vontade de voltar a ser pobre mais não. (risos).(D. Fia, 2021)

FIGURA 118. Estratégia para coleta de água da chuva. Fonte: Autora.

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FIGURA 119. Plantas arquitetônicas com as modificações proporcionadas pelas reformas ao longo do tempo.

Fonte: Autora.

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FIGURA 120. D. Fia no quintal reformado de sua morada.

Fonte: Autora.

FIGURA 121. Horta para consumo familiar. Fonte: Autora.

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FIGURA 122. Fogão à lenha construído na última reforma. Quase não é utilizado por não ter sido prevista uma cobertura para proteger do sol quente e da chuva.

Fonte: Autora.

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FIGURA 123. Ducha ao ar livre, refresco dos dias quentes e festa das(os) netas(os).

Fonte: Autora.

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FIGURA 124. Sr. José, esposo de D. Fia, se utilizando de uma enxada para retirar o excesso de barro das botinas. Fonte: Autora.

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Mauro é mineiro, nascido e criado no centro-oeste de Minas Gerais. De um total de sete, é o sexto filho de seus pais, que eram camponeses, nascidos e criados na roça. Foi a primeira geração de sua família que cresceu no perímetro urbano para poder estudar. Ainda assim, sua cidade de origem é bem pequena e interiorana, fazendo com que o meio rural fizesse parte constante da sua vida e da de sua família.

Como a grande maioria da sua geração, após a adolescência partiu para a capital paulista em busca de trabalho e de melhores condições de vida, onde conseguiu um “bom” emprego no ramo bancário que possibilitou se estabilizar financeiramente. No entanto, alguns anos depois, em meio a várias crises de saúde causadas, entre outros fatores, pelo stress da vida na cidade grande, decidiu voltar para o interior de Minas rumo a uma cidade de porte médio. Ele conta que, na época, ainda estavam pouco avançados os estudos sobre os danos que o stress podia causar em nossa saúde física e mental, e que foi um médico que o alertou e o aconselhou mudar seu modo de vida.

Em 1999 comprou um sítio próximo à sua cidade de origem visando um lugar para que seus pais pudessem usufruir.

Mais tarde, os planos mudaram e Mauro acabou se estabelecendo definitivamente no sítio que até hoje é a sua residência. Quando comprou o terreno, havia apenas uma edificação pequena, ou um barracão, em suas palavras. Era um cômodo único construído de tijolos cerâmicos e com laje de concreto.

De lá para cá, Mauro já realizou duas reformas nessa edificação. A primeira e maior, ainda no ano de 1999, ampliou o barracão para uma casa de seis cômodos: sala, quarto principal, quarto de visitas, banheiro, copa e cozinha, e um alpendre na parte frontal. A segunda reforma foi a ampliação do alpendre também para uma das laterais da casa.

A história de vida e da casa do Mauro interessa para este estudo ao passo que representa um modo de vida que sofreu forte desvalorização e abandono na segunda metade do século XX e que hoje

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tem apresentado indícios de uma revalorizaçãoi devido à baixa qualidade de vida que os centros urbanos brasileiros têm oferecido e à uma busca, ainda tímida, por uma reconexão com o meio-ambiente.

Frente a isso, a história de Mauro pode ajudar na compreensão das premissas que vêm guiando o desenvolvimento de habitats rurais, podendo ser, apesar de um caso isolado, bem representativo para a região na qual se insere. É importante que possamos conhecer como as escolhas e decisões desse morador, que nesse caso foi autogestor de sua morada, responderam aos seus anseios genuínos e às suas restrições financeiras e ainda, como se relacionaram com a sua origem sociocultural.

A primeira reforma efetuada na edificação original tinha certo caráter de urgência e limite de gastos estipulado. Foi finalizada em apenas 40 dias e custou bem abaixo do esperado para uma obra do mesmo porte graças à redução do preço de alguns serviços executados por conhecidos da região e ao reaproveitamento de i Revalorização que parte da procura da sociedade para encontrar saídas para os problemas originados do modo de vida da modernidade pós-fordista, como o stress, a agitação, a carência de solidariedade, a desigualdade social, e, além disso, os problemas de ordem ambiental (polução, contaminação sonora, trânsito, etc.), abrindo novas oportunidades para quem quiser morar e produzir no campo (Romero, 2012, p. 24 apud Rodriguez, 2016, p. 28).

materiais. A intenção era “uma casa rápida e funcional”.

Da ideia original pouca coisa não se concretizou. A mais relevante foi a mudança do cômodo que tinha sido pensado para ser a cozinha. Como o excelente cozinheiro que é, cada detalhe foi planejado para que se abrigasse um fogão a lenha. É o único cômodo que não recebeu laje de concreto para facilitar a dispersão da fumaça resultante da cocção. No entanto, mais tarde a ideia do fogão a lenha foi deixada para trás, porque, segundo ele, seria pouco utilizado: “quando vai cozinhar uma carne ou um doce faz muita diferença, e também no inverno que deixa a casa bem quentinha, mas de resto... a gente acaba fazendo no fogão mesmo”. Hoje o cômodo é utilizado como dispensa e depósito.

Um detalhe interessante quanto ao acabamento da edificação é a escolha do piso do alpendre, que foi deixado todo em cimento ao invés de colocar cerâmica como no restante da casa.

A justificativa foi a de criar um espaço de transição entre a terra vermelha e argilosa do entorno da residência e seu interior revestido de cerâmica. Com isso foi possível reduzir a quantidade de terra dentro de casa e ainda facilitar o trabalho doméstico de limpeza do alpendre.

Esse detalhe pode passar despercebido por um profissional arquiteto(a) que não possui familiaridade suficiente com o modo de vida rural, as

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atividades diárias e o cotidiano familiar nesse contexto.

Na segunda reforma, além da extensão do alpendre, também foi realizada uma segunda abertura de janela no quarto principal e na sala para melhorar a circulação do ar, através da ventilação cruzada.

O chuveirão é item indispensável para refrescar os corpos no calor.

Obedecendo a lógica da autoconstrução e da autogestão no contexto brasileiro, Mauro ainda nutre planos para a edificação principal. Ele já tem em mente uma nova reforma: a ideia é rearranjar os cômodos para aumentar a quantidade de quartos, possibilitando a recepção de visitas, e mudar o lugar da cozinha, sem que isso altere a estrutura da casa.

O que mais o incomoda hoje é o banheiro voltado para a cozinha. Com essa futura reforma pretende encontrar uma solução mais adequada. minha casa ficou mal dividida, tinha um espaço danado...tem hora que a gente é muito burro também, não pode sair fazendo as coisas da nossa cabeça, não.(Mauro, 2021)

O planejamento de uma morada rural, entretanto não se restringe à edificação residencial. Para quem habita e vive da roça, os espaços circundantes são essenciais na delimitação das atividades pastoris e também precisam ser pensados.

O terreno do sítio é bem extenso (34 hectares), no entanto, a casa ocupa apenas cerca de 130 m², sendo bem funcional e atendendo bem às suas necessidades básicas. Além da edificação principal, há ainda uma outra no curral, que serve de abrigo para seus animais.

A delimitação do curral fica bem à frente de sua casa, a pouco mais de 5 metros de distância, fator que já indica o porte pequeno do proprietário rural, cuja atividade laboral está intrinsecamente atrelada à sua rotina diária, e a proximidade com os seus animais se faz necessária para o controle autônomo dos mesmos.

Já o entorno imediato da edificação abriga uma agrofloresta com plantação de hortaliças, árvores frutíferas, plantas medicinais, etc. Tudo para o consumo próprio, autossustento e manutenção da fauna local, preocupação constante de Mauro, que conta sempre com muito orgulho sobre os variados “visitantes” selvagens que recebe em sua plantação.

A escolha de viver a vida sozinho no campo não foi fácil de ser tomada e trouxe consigo suas tantas dificuldades. No entanto, hoje seu habitar é viver “tranquilo, sem barulho, com comida que você mesmo produz, sem desgaste de stress... tem sol, céu...”. O que é, para ele, sinônimo de “conviver diretamente com a natureza, porque nós viemos da natureza”.

Das suas escolhas construtivas de Mauro é preciso nos atentar à utilização quase unânime de materiais industria-

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lizados e ainda à compra de cerca de 60 toneladas de terra, para aterro do terreno, se contrasta com a imensidão de terra disponível e de boa qualidade para construção. Apesar de estar há 22 km do centro urbano mais próximo, sendo 4km em estrada de terra, a justificativa é, ainda assim, a princípio, financeira. No entanto, uma leitura menos simplista pode ser feita sob a ótica da desaculturação popular.

Na região da roça de Mauro, onde antes só se construía com terra crua, hoje restam poucos resquícios desse modo de morar e o seu saber construir está praticamente extinto. O êxodo rural e a ascensão social das gerações camponesas modificaram completamente a forma de construir no campo. A chegada das lojas de materiais de construção possibilitou a concretagem da terra vermelha do cerrado mineiro a baixo custo e com velocidade atraente, principalmente para aqueles que sabiam de perto como podia ser precária a vida sem alternativas no campo.

Eu não posso dizer que usufruir da matéria-prima do sítio teria sido uma escolha melhor para Mauro e tantos outros como ele naquela região.

O que eu posso afirmar é que nunca lhe foi apresentada outra opção. A casa dos sonhos de seus pais era de bloco e revestimento cerâmico, e a sua também seria. Em nenhum momento, até hoje, recebeu qualquer orientação, governamental ou não, sobre

outras formas de se construir no campo, nem mesmo sobre as possibilidades de escoamento de seu esgoto, que hoje é feito por fossa séptica calçada nas laterais. Existem infinitas outras opções para se efetuar esse escoamento, que podem atender de forma variada às necessidades ímpares de cada família. No entanto, segundo ele, praticamente todas as casas da região se utilizam da fossa calçada, relatando já ter visto, inclusive, vizinhos contaminando a água do próprio consumo familiar devido à má execução do recurso.

As decisões nesse contexto podem ser entendidas mais como falta de escolhas do que escolhas de fato, ao passo que não são colocados e apresentados outros caminhos possíveis. Se manifesta em tais tendências construtivas, portanto, um distanciamento cultural enrustido e facilmente vendido. Frente a isso, é preciso criarmos, antes de qualquer coisa, frentes de estudos para o entendimento dos habitats rurais populares, e frentes de diálogo que alcancem outros Mauros, que buscam se conectar com a sua essência no âmbito rural e que valorizam um modo de vida que não é o da cidade.

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FIGURA 125. Plantas arquitetônicas com as modificações proporcionadas pelas reformas ao longo do tempo.

Fonte: Autora.

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1m

FIGURA 126. Vista da entrada da residência rural de Mauro.

Fonte: Autora.

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FIGURA 127. Vista dos fundos da residência e trecho da horta.

Fonte: Autora.

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FIGURA 128. Entrada para o interior da residência; alpendre com mobiliário de apoio para o trabalho cotidiano.

Fonte: Autora.

FIGURA 129. Vista interior da residência com certa penumbra no cômodo destinado à sala, mas bastante luz natural na cozinha. Fonte: Autora.

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FIGURA 130. Ducha ao ar livre, refresco dos dias quentes. Fonte: Autora.

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FIGURA 131. Fogão à lenha improvisado com tijolos no fundo do quintal. Fonte: Autora.

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FIGURA 132. Ferramentas do cultivo de abelhas alocadas no alpendre funcionam também como ornamento para a morada. Fonte: Autora.

FIGURA 133. Instrumento essencial nas residências rurais para facilitar a retirada do excesso de barro das botinas. Fonte: Autora.

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FIGURA 134. Peça essencial do cotidiano rural, os chapéus compõem também a decoração interior.

Fonte: Autora.

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FIGURA 135. Cafézin mineiro, item obrigatório em qualquer mesa mineira, em qualquer horário do dia.

Fonte: Autora.

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FIGURA 136. Ornamento de proteção inspirado nos estandartes das festas religiosas locais. Fonte: Autora.

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FIGURA 137. Tijolo cerâmico em foto na zona rural do oeste mineiro.

Fonte: Autora.

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Considerações finais: a validação das manifestações arquitetônicas populares como um caminho a ser trilhado

Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Guimarães Rosa (2001)

O fim desse primeiro passo em busca das nossas arquiteturas populares evidenciou que vivemos um violento processo de desaculturação. A forma como encaramos as arquiteturas populares, seja no âmbito governamental, seja no âmbito acadêmico, menospreza e invisibiliza sua potência.

Há décadas que nossa população tem sido tratada unicamente como números, sem que suas diversidades regionais, climáticas, históricas e culturais sejam consideradas para a elaboração de planos habitacionais. A análise da composição do déficit habitacional do país é bem clara no que tange à pluralidade da problemática. No entanto, as estratégias de enfrentamento da falta de moradia digna da nossa população vêm historicamente se ancorando e fortalecendo (a) a predeterminação do modo de morar do indivíduo brasileiro, apoiada na racionalização dos processos, sem considerar as especificidades de cada povo; (b) a mercantilização da casa própria, associada à produtividade lucrativa da indústria da construção civil, nos afunilando cada vez mais a satisfações pessoais padronizadas; e (c) a exclusão dos cidadãos dos processos de decisão referentes à produção do espaço urbano e de suas moradias, o que alimenta um papel clientelista da população, alienando-a de experienciar o encantamento do planejamento de sua morada. (Nascimento, 2015a) Contudo, esse modelo, submetido única e exclusivamente a uma lógica de produção que não se adere, e nem mesmo tangencia as práticas, ritmos, e economias das camadas populares (Rolnik, 2015), é apenas uma das inúmeras vias do processo de desaculturação do nosso povo. Tal segmento, que se fundamenta na ideia do desvalor e da folclorização de tudo que é encanto e cultura popular, vem resultando na padronização, na massificação e na unificação das estratégias construtivas do nosso habitat, fazendo parecer normal que um indivíduo nascido e criado dentro da cultura amazônica, por exemplo, tenda a buscar e ansiar o mesmo modo de construir, habitar e existir que o indivíduo de uma região completamente distinta da sua.

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Acho que reescreveria: Corriqueiramente, a noção de conforto tem sido confundida com decoração, ou seja, a parte externa de um cômodo ou de uma edificação; e ainda, por vezes, com comportamento, isto é, como os cômodos são usados. Todavia, decoração é primordialmente um produto temporal de uma época – moda – e sua longevidade é medida em anos ou, no máximo, em décadas. Já o comportamento social é mais duradouro, e é função de hábitos e costumes. Em todo caso, as noções culturais de conforto, por outro lado, têm uma vida que é medida em séculos. (Rybczynski, 1996, p. 223) E é essa noção de conforto cultural que estamos vendo ser apagada de nossas vidas, sem nos darmos conta.

As nossas manifestações arquitetônicas populares existem e são inúmeras. E, diferentemente do que costumamos acreditar, elas detêm um valor de uso inestimável e uma bagagem cultural fortemente ameaçada de desaparecimento. A democratização da arquitetura, no seu sentido mais humano, só será possível, portanto, na medida em que nossas camadas populares reconheçam sua importância e a potência de sua ancestralidade, tanto para a conquista da luta imediata pela moradia quanto para a luta por uma outra forma de existir no mundo a partir de novas relações com o outro e com o espaço construído.87 Para enfrentar o caos ambiental que estamos vivendo, agravado diariamente pelo atual modelo de produção convencional dos nossos espaços, que se utiliza indiscriminadamente de materiais de origem mineral e recursos naturais, ocasionando irreversíveis impactos ao meio ambiente que nos acolhe (Rodriguez, 2016), e ainda o caos psicológico que a nossa geração tem vivido (Han, 2017), é preciso confrontar a monocultura da ciência moderna. Como nos indicou Boaventura (2007), com o que ele intitula de ecologia dos saberes, que nada mais é do que reconhecer a pluralidade de formas de conhecimentos ditos não-científicos,88 é urgente a necessidade de explorar a multiplicidade da ciência e promover a interação e a interdependência entre os saberes científicos e outros saberes vulgarmente compreendidos como populares, folclóricos, mitológicos, etc.

87 Em consonância com o depoimento de Joviano Mayer, membro do movimento Brigadas Populares (Nascimento, 2015a, p. 119)

88 O que não significa, no entanto, que por serem ditos “não-científicos” não sejam dotados de ciência.

A ecologia de saberes assenta na ideia pragmática de que é necessária uma reavaliação das intervenções e relações concretas na sociedade e na natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam. Centra-se, pois, nas relações entre saberes, nas hierarquias que se geram entre eles. (...) No entanto, em vez de subscrever uma hierarquia única, universal e abstrata entre os saberes, estabelece hierarquias em conformidade com o contexto, à

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luz dos resultados concretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber. (...) As escolhas concretas das formas de conhecimento a privilegiar devem ser informadas pelo princípio da prudência, que no contexto da ecologia de saberes consiste em dar preferência às formas de conhecimento que garantam a maior participação possível dos grupos sociais envolvidos na concepção, execução, controle e fruição da intervenção. (De Sousa Santos, 2007, p. 90)

E como muito bem nos ensinou Guizzo sobre a responsabilidade ética do arquiteto e do urbanista, Não se pode esquecer que os espaços coproduzem os corpos, (...) as relações que constituem uma morada estão entrelaçadas aos corpos que a habitam. E esse entrelaçamento não cumpre somente uma função de abrigo. (Guizzo, 2019, p. 136)

Assim sendo, se faz imprescindível uma reavaliação do campo da arquitetura e do urbanismo no contexto brasileiro, que seja capaz de reconhecer nossa pluralidade regional e cultural, além de atuar no fortalecimento dos nossos valores, e não mais na sua sobreposição pelos dos nossos colonizadores. É preciso compreender, de uma vez por todas, que uma atenção ao passado não significa o mesmo que reproduzir seus modelos. Como tanto nos alertou Lina Bo Bardi, empenhada na defesa de uma civilização brasileira emergida da nossa própria cultura popular; ou como fez Hassan Fathy, arquiteto egípcio, que buscou reaver a autonomia de povoados tradicionais egípcios através de meios e saberes disponíveis no próprio território sem deixar de explorar meticulosamente o uso da técnica; e, ainda, como tem feito Diébédo Francis Kéré, materializando de modo primoroso a união entre ciência, cultura local e ancestralidade ao construir edifícios premiados para população vulnerável de seu país de origem, Burkina Faso, com os recursos materiais e humanos locais.

Como Mário de Andrade já afirmou, O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir. (Andrade, 1922)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Entrevista realizada no dia 21/04/2021 com o arquiteto e urbanista Marcelo Ferraz, aprendiz e amigo de Lina Bo Bardi em sua trajetória de valorização da cultura popular brasileira por meio da arquitetura

MARCELO: Me formei em 78, em 83/4 eu já estava trabalhando no SESC com a Lina, no SESC Pompeia, num projeto, e surgiu a ideia que foi da Lina e da Glaucia Amaral de fazer uma exposição. O SESC tava metade... tava inaugurado já, a parte da fábrica, já tinha acontecido algumas exposições ou cursos, mas uma exposição sobre o caipira, chamava “Caipiras, Capiaus: pau a pique”, você deve ter visto isso, e aí o projeto delas era então fazer uma leitura desse mundo caipira em duas regiões: no Sul de Minas e no Vale do Ribeira. Eu imediatamente como oriundo do Sul de Minas, quer dizer, fui criado ali até 17 anos, nasci ali, e conhecia muito esse mundo rural de certa maneira porque minha mãe era inspetora de escola rural, meu pai era professor de geografia e tal, então eu falei bom, eu quero trabalhar nisso aí. Então fui fazer a pesquisa, uma dupla para o Sul de Minas, uma dupla para o Vale do Ribeira, eu e o (Igor) fomos pro Sul de Minas para fazer uma coleta. Eu fui como fotógrafo, eu fotografava naquela época, gostava de fotografar, então fui documentando, fazendo as fotografias, e eu tinha os roteiros, os lugares eu tinha o mapa que me ajudava a saber... vamos pegar a Serra da Mantiqueira, ir por cima, do lado de Minas Gerais, que é uma encosta mais suave, mais habitada e tal, do que do lado de São Paulo, que são escapas e tem o Vale do Paraíba logo embaixo.

Então montei o roteiro, mas um roteiro não muito rígido, e a gente viajou durante 15 dias por esses lugares, e ia ficando, dormindo, e o (Igor) ia comprando coisas para a exposição, quer dizer uma coleção, coisas grandes, vinha o caminhão e tal, e foi uma volta com o objetivo nesse mundo que eu conhecia como frequentador criança... Montamos a exposição, a exposição teve um enorme sucesso, eu fiz uma pequena exposição fotográfica também junto com a exposição lá, e fiquei com esse material, depois fiz outras viagens, continuei voltando, fazendo outras fotos e tal, até que em 1991 resolvi fazer um livro... e aí a Lina disse “então faz um livro de fotografias e tal”, e uma outra pessoa que me incentivou muito a fazer foi o professor Agostinho da Silva, e nesse momento, em 86,7, eu vou pra Portugal, conheço uma pessoa importante, tenho a apresentação do meu livro, o professor Agostinho da Silva era um filósofo, e começo a rodar Portugal, começo a voltar todo ano, teve ano que fui 2 vezes, e fiquei muito amigo dele e comecei a visitar a arquitetura popular portuguesa. Fiquei fascinado. A Lina já tinha aqueles volumes do inquérito sobre arquitetura popular portuguesa que ela guardava com um carinho enorme, e adquiri em Portugal e entrei fundo nessa

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coisa e fiquei morrendo de inveja dos portugueses que haviam feito levantamento do seu patrimônio, da arquitetura popular, rural e não rural também, e achava que tinha que ser feito aquilo no Brasil de alguma maneira, que meu trabalho podia ser o comecinho daquilo, então tinha um sonho grande da gente levantar uma coisa muito sistemática, quase que uma coisa acadêmica, como eles fizeram em Portugal, levantaram um país. Só que lá é pequeninho, tinha uma equipe fantástica, Fernando Távora, (Távora), eles tinham uma equipe... Aí foi isso que me incentivou muito, eu vi várias publicações, comecei a colecionar livros de arquitetura de vários países, Europa, Oriente e tal, e entrei nessa viagem e acabei fazendo aquele livro. Esse livro que você está dizendo, foi um resumo que eu sofri pra fazer porque tudo que eu lia eu achava que era aquilo que eu ia fazer, aquilo outro que eu ia fazer, nossa esse cara já escreveu tudo que eu queria, então resolvi fazer um texto assim um pouco, quer dizer... hoje eu leio ele como pequeno e assim, mas que conta um pouco o texto curto que fala e as fotografias que são algumas boas outras não são boas, mas é um roteiro de olhar assim, mais pra uma coisa impressionista mesmo, de mostrar e foi lá tomar a lição do Euclides da Cunha, de Canudos, da coisa do homem é a terra, o homem é a luta, da terra o homem é a arquitetura, feito uma brincadeira ai, e virou um livro que fez um sucesso enorme, foram feitos 3000 exemplares, depois mais 3000 exemplares, agora tem uma edição nova né, que tá mais bem editada, não se você viu a nova, a nova está com mais qualidade, pelo Armando Guerra? Então o livro que eu achava que tinha que produzir pra academia, fazer mestrado, doutorado, e a vida me atropelou com projetos de trabalho, por um lado foi até bom porque podia ter sido uma dissertação de mestrado virou um livro mais popular assim, mais pra um público leigo até.

Mas pra mim o que eu tiro dessa história, quer dizer, foi importante, é olhar pra aquilo, até a Lina me fez muitas advertências, ela não chegou a ver o livro pronto, ela gravou um textinho dela uma semana antes de morrer, 10 dias antes de morrer, então ela viu as fotos – “vai ficar ótimo!” – a última conversa que tive com ela no dia que ela morreu, foi às 7 da noite, ela morreu meia noite, uma da manhã...

Ela ligou, falou: “olha vai ficar muito bom seu livro”. Foi uma conversa muito amena, ela sempre tem muitas críticas, e vai ficar muito bom – “não publica aquele trecho que eu falei isso, falei aquilo” – da gravação dela. Ela dizia que podia fazer

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que nem o professor Cândido, que era o professor Antônio Cândido, ela era uma pessoa muito refinada, então ela deu um... assim como uma última conversa e o livro ficou pronto em seguida e lançamos numa exposição de fotografias no MASP, e tal que foi muito bacana.

Mas a advertência que ela fazia que eu também fico preocupado que é olhar para esse tema com saudosismo, quer dizer, olhar para todas essas arquiteturas populares, vernaculares, essa questão toda, no mundo todo. Depois fui para Grécia, fiquei fascinado com as coisas que vi na Grécia, tinha ideia de que a Grécia era uma coisa de tursita, ou aquela coisa clássica, de ver a acrópole e toda aquela coisa da arquitetura clássica... Mas adorei os vilarejos, os lugares, assim como o Alentejo, assim como Portugal, vários lugares no norte de Portugal.

Então é mais olhar pra isso como solução de coisas, como se interage, como o homem pode interagir com seu entorno, com a natureza, mais agressiva, menos agressiva, com os materiais, como fazer com pouco, fazer muito, como lidar com o clima. Isso na Grécia são lições enormes, por que pintar de branco?

Porque a casa ser de parede grossa, coberta com madeira e terra? Então eu acho que o que falta, acho que eu falei aquele dia naquela conversa, que eu sinto que essa capacidade de olhar no entorno e ver essas soluções não pra copiar, pra adotar nos projetos da gente, nem pra fazer projeto de casa de pau a pique, que dura pouco, cai, não é resistente, não é nesse sentido da saudade, por isso que eu digo o tempo todo não tão bacana essa ideia de saudade, mas a capacidade de ler a geografia, ler o ambiente, ler a paisagem pra fazer arquitetura e eu acho que nos arquitetos precisamos ter isso hoje porque a vida humana nos deixa um pouco cegos dessa capacidade, assim, desse olhar. A gente está em SP não sabe se tá no alto, no baixo, se tem um vale aqui, porque os fios tão tamponados; você não percebe a topografia, não sabe o lado do vento, não sabe se a água da sua casa vem do sistema Cantareira ou vem da Billings. A gente perdeu isso. E pra arquiteto isso é fundamental, é a ferramenta de trabalho, então eu acho que o livro podia contribuir nesse sentido, não tá tão explícito, mas é isso que eu queria dizer com esse livro hoje, resumindo, né.

CECILIA: (...) Você acredita ser possível e viável a gente conseguir retomar alguma dessas técnicas, ou revalorizar algumas dessas técnicas, utilizando materiais que a gente possa tirar do entorno imediato para produzir uma habitação popular em pequena escala, principalmente, ou até mesmo em larga escala?

MARCELO: Bom, eu acho que sim, primeiro que todo material é bom, desde que... ele pode ser mal empregado, mas a gente não deve ter preconceito com os materiais, os materiais tão aí, e quando a gente pode lançar mão de materiais que tão próximos, que tão à nossa volta, sem dúvida... eu fiz agora várias coisas na Mantiqueira de pedra, tinha muita pedra no terreno, tava recolhendo pedra, era bom ti-

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rar pedra do meio da plantação, fazer as fundações de pedra, fiz uma capelinha de pedra, fiz vasos de casa, porque tava lá, simples, você faz um próprio ciclope com pedra, tem ferro, areia e pedra, e isso funciona, tinha lá. A gente fez agora aqui em Campinas uma casa que tem umas 3 paredes que são de taipa de pilão, quer dizer, o primeiro projeto aí meu saído da faculdade é um projeto totalmente em concreto, era pau na cabeça, aquela coisa... não que a gente não goste, a gente continuou usando concreto, a gente adora usar concreto, a gente defende o material, ainda é um material que permite fazer certas coisas que outros não permitem aqui no Brasil, por mais que ele seja combatido, de cimento e tal, o gasto de energia pra produzir cimento... mas ainda é nossa realidade e é um material fantástico. E agora a gente fez uma casa de taipa, com paredes grossas, então faz sentido num clima quente você combater o calor com a inércia dos materiais. Então tem toda uma coisa que você pode fazer. Isso podia ser melhor desenvolvido, agora... você tem que saber usar corretamente porque se não isso vai ser perecível, vai estragar, não vai aguentar. Saber que uma parede de taipa aguenta compressão, mas não aguenta tração, saber que ela não pode ficar em zona 1, nem encostar a unidade no solo, tem que ser protegida no topo, se não vai ser corroída pela chuva e tudo mais.

Então esses materiais todos podem ser utilizados. Tava vendo agora, ontem, um artigo sobre o Hassan Fathy, um arquiteto egípcio, um dos grandes arquitetos dos últimos tempos, já morreu, e trabalhou comunidades no Egito assim, com nada, com terra, fez uma arquitetura com terra fantástica e é um arquiteto com formação, com uma visão moderna, não é um arquiteto do passado, é um arquiteto da geração da Lina, então é importante olhar pra essas coisas. Pensar que o Alvar Aalto, um grande modernista, um arquiteto que usou uma tecnologia pioneira, ele associava nas soluções dele, se você vir a obra dele técnicas muito tradicionais e vernaculares da cultura finlandesa, nórdica, você vê uma porta dele na entrada do Concert Hall de Helsinki, enrolada com couro, com tirinhas de couro como são os trabalhos de couro lá na região central da Finlândia. Quer dizer, então não há conflito desde que você possa trazer aquele material ou aquela forma de construir pra uma leitura contemporânea, pra uma necessidade contemporânea e de um modo contemporâneo, de um modo atual. Eu acho melhor a gente não olhar com conflito, nem saudade, claro que pode ser desde que aquilo funcione, nós não vamos jamais abrir mão da alta tecnologia, se a gente faz um tijolo é porque não pode fazer com bloco, pré-moldados, grandes, que constrói rapidamente, monta uma casa em 1 dia, tem tudo isso... então a alta tecnologia tem que tá sempre em vista, não podemos abrir mão, agora é claro que se você não tem a tecnologia disponível você vai usar o que tem, ou vai associar certas coisas, mas eu acho que tem esse porém, não ter um olhar puro, com técnicas conflitantes, nem com saudade, senão você cai numa coisa saudosista. Tem muita gente, muitos arquitetos que embarcaram nessa questão, “ah agora vou construir com barro”, “vou construir assim”, “vou construir assado”, mas vira uma coisa folclórica, é um perigo. Você faz uma coisa folclórica, desconectada. Então o uso preciso do material, precisão do uso do material, concisão, a pertinência do uso do material é que tira fora desse risco, dessa zona perigosa do folclore, da folclorização, da questão romântica, certo.

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CECILIA: Você falou que seu interesse por essas arquiteturas veio de um contato com a Lina, dessa exposição que vocês ficaram encarregados de montar, principalmente.

Você se lembra de ter tido algum contato com o tema na sua graduação, que partisse de dentro da escola mesmo?

MARCELO: Não, eu tinha o oposto disso, a gente tinha... a FAU era muito forte no meu tempo, o projeto da FAU era mais forte na cabeça nossa do que na de vocês.

Vocês estão mais abertos, tal... A gente tinha uma coisa muito rígida, tinha que projetar sim, senão não era arquitetura, né, “assim não é arquitetura”, então tinha uma coisa muito mais rígida. A gente tinha contato com as aulas do, é importante lembrar, do Katinsky, do Rui Gama, que já morreu, Katinsky ainda não, tá velhinho mas tá aí, tá forte, sobre a história da técnica, a história da técnica com vista das tecnologias, dos moinhos, das moendas, da evolução... Quer dizer, quase que ligada à história da economia dos povos, mas através da técnica, da construção desses engenhos, artefatos, mas eu sempre sem olhar pra essa questão, mesmo quando a gente olhava pra Lucio Costa, era pouco, a gente não estudou na FAU, a gente olhava pra patrimônio histórico, isso era coisa de velharia, não era uma coisa... não era ligada à arquitetura popular, sempre à grande arquitetura colonial, às igrejas, às fazendas, tal. (...) Eu acho um problema porque era preciso mergulhar nesses lugares do Brasil. A gente pensa hoje, por que que não se olha pra isso? Porque na população brasileira hoje 85/86, sei lá quanto da população brasileira é urbana, vive em cidades. Ora, numa cidade de 3 mil habitantes como eu conheço algumas, a vida tem componente rural enorme, a ligação de quem mora nesses vilarejos, nessas cidadezinhas de mil habitantes, elas têm uma vida rural, tem a compreensão e um modo de relacionamento de uma vida rural, por acaso estão na cidade, mas eles tão o tempo todo trabalhando no campo, é uma relação. Também não falo isso com saudade, falo que ainda são os modos de vida e de relacionamento do mundo rural, da construção rural, que vigoram nesses lugares pequenos, e isso consequentemente na arquitetura também. Eu acho importante que a gente olhe. Seria muito importante que a gente levantasse essas arquiteturas, essas arquiteturas não são somente as ruais, as populares que vão resultar nas arquiteturas urbanas populares, aí vão falar “ah é favela, vamos ficar com saudade de favela”, favela tem soluções geniais, tem coisas importantes, é um momento de ruptura, é um momento que o cara sai, perde a referência que ele tinha e vem pra um lugar do qual ele não tem nenhuma referência, é um instinto de sobrevivência. Muitas vezes gera coisas interessantes, soluções construtivas, arquitetônicas, mas não é o comum. Mas é importante que a escola se debruce onde não tem arquitetura formalmente falando, nem tenha grande construção, isso é construção que a gente vê nas cidades, quando a gente vê essa questão agora da Covid, indo vacinar lá no Amazonas... Época de eleição sempre tem aquela reportagem “chegou a urna nos confins do Tocantis, Amazonas”, é pouca gente mas é importante, dali a gente pode tirar lições interessantes: navegar,

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como se locomover, como se deslocar, como construir... Ai você descobre que o barco é importante. Ninguém sabe, por exemplo, que o Brasil é o país que tem a maior variedade de embarcações do mundo, você imagina, claro, faz sentido com a costa desse tamanho, com a quantidade de rios. Então é o país mais rico em diversidade de embarcações. Olha isso! Daí já vale um tema, e é pra estudar, embarcação é tema de projeto, é arquitetura, fazer um barco é fazer arquitetura, então isso daria um tema fantástico.

CECILIA: Quanto à nomenclatura, o que você compreende como arquitetura vernacular e como arquitetura popular, podemos dizer que são a mesma coisa?

MARCELO: Eu acho que não são a mesma coisa. Acho que eu não sou um especialista, já li bastante sobre isso, tem até um texto da Cecilia Rodrigues dos Santos, professora do Mackenzie, arquiteta, ela tem um texto sobre o vernacular e acho que tá publicado, texto de alguns anos atrás, acho que é uma pessoa que foi mais fundo nesse assunto vernacular, ela questiona isso, vernacular não é necessariamente popular, só isso já diz que não é a mesma coisa. Eu prefiro arquitetura popular, prefiro porque o tema popular é mais aberto, cabe mais coisa e você não vai se restringir a uma definição rígida, como é a questão do vernáculo. O vernáculo entra na literatura, na linguagem, então eu prefiro, tanto é que eu chamei de arquitetura popular, e eu... no meu livro teve um momento que eu falei era arquitetura popular “na” Serra da Mantiqueira, não arquitetura popular “da” Serra da Mantiqueira, se fosse “da” teria que ter trazido todas, então “na” é alguma coisa encontrada ali, não é tudo, então eu acho popular é mais interessante.

CECILIA: Você conseguiria me dizer o que se enquadra em arquitetura popular?

MARCELO: Puxa vida, difícil essa pergunta. Primeiro, a gente tem que distinguir que arquitetura popular, a gente tem que ressaltar, não é necessariamente arquitetura só rural, o inquérito da arquitetura popular portuguesa, que eu acho que é a grande obra, a melhor que eu conheço sobre o tema, é um levantamento que vai no campo e na cidade. Cidades em Portugal são pequenas e tal, mas tem também coisas de Lisboa, do Porto, popular é a arquitetura feita com poucos meios e feita por não arquitetos, como se fosse a continuidade de uma tradição, sempre se renovando, modificando ao longo dos tempos, mas é uma continuidade histórica.

Nesse sentido eu acho que popular traz essa continuidade histórica, por isso que a gente tem que olhar hoje, se eu fosse viajar pra Mantiqueira eu teria que encarar coisa terríveis, mas que são reais, as janelas de ferro, aquelas coisas... mas que a gente tem que encarar, como é quem se saiu bem com isso e quem se saiu mal, mas são formas temporais que a gente traz no momento. Então acho que arquitetura popular é isso, é arquitetura anônima, sem arquiteto. Aí você vai me dizer que quase toda cidade é feita sem arquiteto, é verdade, é feita com o que a gente

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pode chamar de construção, mas também ficam as construtoras, tá tão dentro da economia de mercado... essa arquitetura popular muitas vezes, ou na maioria das vezes não está dentro da economia de mercado da construção. Eu não sei, eu não posso te dizer assim com precisão, com uma coisa mais profunda e séria sobre a definição, mas isso é... é igual a arte popular, por que isso é arte popular e a outra não é? Então você vai tendo todo esse embate.

CECILIA: O que você acha dessas construções que não são produzidas por arquitetos(as) formados academicamente, e que aqui eu chamo de arquiteturas populares, serem desconsideradas e invalidadas como arquitetura?

MARCELO: O mundo ideal seria o desaparecimento dos arquitetos. Por que precisa de arquiteto? Isso antigamente não precisava de arquiteto. A Grécia inteira é bem feita, as cidades pequenas... então eu acho que o objetivo é desaparecer o arquiteto. O dia em que a sociedade inteira tiver introjetado a capacidade de construir, capacidade múltipla do conhecimento, de visão do conhecimento distribuído sem divisão, em categorização, sem gavetas... vão poder construir coisas boas, com bom senso, alguns mais que outros. É como patrimônio histórico, por que que tem tombamento? Porque tem risco. Mas o ideal é que não precisasse tombar nada. Por que o Sesc Pompeia foi tombado? Não precisaria, o SESC tá bem, então é tranquilo, a figura, o artifício, o tombamento, é pra proteger alguma coisa que pode correr risco de desaparecer. Mas se você pensar bem, no futuro se a gente sonhar que as coisas evoluam, muitas vezes olhando pro Brasil de hoje em dia a gente acha que não vai pra frente como a gente achava até uns anos atrás, mas, pensando assim, o tombamento pode desaparecer, todo mundo vai saber – “olha, isso precisa ser preservado” – um consenso da sociedade. Se achar que tem que ser demolido, tem que desaparecer, é consenso. Essa pauta de consenso, de uma visão, também a arquitetura podia ser assim, feita por muitos e por todos sem... aliás, tem muita gente que só constrói, conheço muitos que constroem muito melhor, são grandes mestres de obras, são melhores que muitos arquitetos.

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CECILIA: O que você diria que nós, arquitetos(as) em formação podemos aprender com as arquiteturas populares? Como esse contato que você teve com o tema refletiu e/ou reflete na forma como você conduz seus processos projetuais?

MARCELO: Eu acho que o contato com isso é um despojamento, mas não um despojamento no sentido pobre da palavra, um despojamento de formulações que nós, que a nossa formação de arquiteto, a gente já carrega. A gente carrega preconceitos, carrega ideias prontas e “tem que ser assim”, “tem que ser assado”, quer dizer, quando você olha pra essas arquiteturas você vê que ali foi o embate do homem com o seu entorno, com a natureza, com o que ele tinha nas mãos, com os recursos, com a necessidade de fazer alguma coisa. Você vai ver isso nas sociedades indígenas, é fantástico, é o supra sumo, deveria ser assim a arquitetura. Lá você encontra o estado puro de criação. Quando o cabra faz uma maloca maravilhosa, sabe fazer a maloca, acompanha o pai, o avô, vai levando adiante essa técnica, sabe que tantos anos depois ela estraga tem que fazer outra, sabe fazer a fogueira, sabe... Então isso é o sonho da sociedade, essa volta né, pra andar descalço, pra jogar fora o carro, sei lá o que, o telefone, esse computador que a gente tá falando agora... Mas é esse despojamento, saber olhar pro essencial, pra essência das coisas, buscar o sentido de cada coisa, é que tá nessas arquiteturas e que nós já estamos contaminados por visões, por preconceitos e teorias e tudo mais. Então eu acho que isso é o que eu mais procuro tirar como lição, não tem separação entre o útil e o decorativo, utilitário e o decorativo, isso é design também. Aquelas casinhas, suporte de panelas, de garfos, são geniais, meu Deus, por que nunca pensei em fazer isso? Uma coisa que tá à mão, você trabalha as coisas que tão à sua volta, fundamental em uma cozinha, por que que eu tenho que esconder certas coisas e não mostrar? Eu acho que olhar pra esse mundo, pra si, tentando se despojar um pouco, talvez seja bom para os arquitetos.

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