Revista Móbile – edição nº 24

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MÓ BI L E #24 democracia Justiça espacial, direitos e participação
© MARIANA COSTA MAIA SILVEIRA

Sumário

4 Arquitetura e Urbanismo e a experiência democrática CATHERINE OTONDO

6 Arquitetura, Urbanismo e democracia: uma agenda para o Brasil NADIA SOMEKH

8 Direito à cidade: Mudanças de paradigmas necessárias à vida urbana CPUAT-CAU/SP E CATHIS-CAU/SP

14 Direito à paisagem VANESSA BELLO

18 Projetar o futuro e incluir memórias RAQUEL SCHENKMAN CONTIER

22 Grota do Bixiga e Coletivo Salve Saracura: preservação, identidade e cidadania CLAUDIA MUNIZ

26 Espaço público em disputa: novas formas de organização social em Ribeirão Preto INSTITUTO TERRITÓRIO EM REDE

30 Revisão e elaboração de planos diretores durante a pandemia da Covid-19: um ensaio sobre Goiânia LARA STIVAL GARROTE

34 Democracia, dissenso e espaço público HELOISA ALEXANDRE CIZESKI

40 Sobre os sentidos da participação: ‘gestão da vida’ ou ‘alternativa democrática’ RAFAEL GOFFINET DE ALMEIDA; FÁBIO LOPES DE SOUZA SANTOS

44 Cadê as transvyadas que estavam aqui? Costurando um panorama de pesquisa e extensão sobre o estudo dos corpos, sexualidades e afetividades dissidentes em Urbanismo e Arquitetura MATHEUSA SILVA NASCIMENTO; RODRIGO OLIVEIRA MATO GROSSO PEREIRA

50 Projetos urbanos para os centros populares: uma justiça espacial? BÁRBARA POZZA SCUDELLER

54 Lote urbanizado como alternativa habitacional LETÍCIA MIANNI DE ALMEIDA

58 Arquitetura parasitária CELSO APARECIDO SAMPAIO; OTÁVIO CAMPOS ARANTES; RAFAEL PARENTE

62 Direitos à participação e representação, termômetros da democracia COA- CAU/SP E VICE-PRESIDÊNCIA CAU/SP

66 A formação e as atribuições profissionais em arquitetura e urbanismo CEF-CAU SP

70 Uma agenda pela valorização profissional: pelo direito ao exercício ético e qualificado do(a) arquiteto(a) e urbanista CED-CAU/SP, CEP-CAU/SP, CF-CAU/SP E CDP-CAU/SP

78 Curtas CAU/SP

TAPUME:   Fotografias

AMANDA CAROLYNE DE SOUZA DIAS  capa e páginas 80 e terceira capa Fotografias MARIANA COSTA MAIA SILVEIRA segunda capa, páginas 12, 13, 37, 38, 39

¶ EM SUA 24ª EDIÇÃO, a revista Móbile convida à reflexão do tema Democracia, um assunto que pautou muitos debates nos últimos meses e que nunca se esgota, pois trata-se de um tema que atravessa nosso dia a dia de diversas formas, seja no campo profissional, seja enquanto cidadãos, grupos, coletivos e sociedade.

Seguimos com a Política Editorial de problematizar assuntos que estejam em permanente diálogo com os desafios que a sociedade e as cidades nos impõem. Profissionais de Arquitetura e Urbanismo possuem gran de responsabilidade e importante atuação nas pautas da garantia de direitos e da criação de espaços mais democráticos e inclusivos. Quando estamos atentos ao nosso papel social, percebemos que o exercício da democracia está no cotidiano da prática da profissão, como pauta necessária nos processos de criação dos diversos campos de atuação e suas diferentes escalas.

A Chamada Aberta de Trabalhos nos trouxe a diversi dade de abordagens que o tema nos coloca, a justiça social e espacial, a democratização das cidades, dos espaços e a participação da comunidade dão o tom do debate dessa edição. Destacamos o trabalho cri terioso do Conselho Editorial na seleção dos artigos, que, com o olhar da inclusão, da representatividade e da diversidade, refletiu uma revista que busca ser cada vez mais democrática, como produto e como processo.

Outro objetivo da Móbile é divulgar o trabalho do Conselho, tecendo um espaço de comunicação e per manente diálogo entre o CAU/SP, os profissionais e a sociedade como um todo. Nosso trabalho é um exer cício cotidiano de elaborar projetos e promover ações que contribuam no fortalecimento dessa ponte, seja a partir da orientação, aperfeiçoamento e da fiscalização, como também, através da valorização profissional na construção de uma cidade e de uma sociedade mais justa e democrática.

Seguimos contando com a participação de vocês na construção e divulgação da nossa Móbile! Cur tam, compartilhem, e para receber as próximas edi ções, não esqueçam de fazer o recadastramento aqui ↗ bit.ly/3JYXnKx

Boa leitura!

Comitê Editorial Executivo

PRESIDÊNCIA DO CAU/SP

CATHERINE OTONDO, Presidente POLIANA RISSO SILVA UEDA, Vice-presidente PRESIDÊNCIA DO CAU/BR

NADIA SOMEKH, Presidente DANIELA PAREJA GARCIA SARMENTO, 1ª Vice-presidente PATRÍCIA SILVA LUZ DE MACEDO, 2ª Vice-presidente

COMISSÃO ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO CAU/SP SAMIRA RODRIGUES DE ARAÚJO BATISTA, Coordenadora ELENA OLASZEK, Coordenadora Adjunta / AFONSO CELSO BUENO MONTEIRO / AMARILIS DA SILVEIRA PIZA DE OLIVEIRA / DELCIMAR MARQUES TEODOZIO / FERNANDO NETTO / PAULA FERNANDA FARIA RODRIGUES / ROSANA FERRARI / SANDRA APARECIDA RUFINO / PAULA RODRIGUES DE ANDRADE / CARMELA MEDERO ROCHA / LIGIA ROCHA RODRIGUES / FABIANA ZANQUETTA DE AZEVEDO / MARIA STELLA TEDESCO BERTASO / MARIA CRISTINA PINHEIRO MACHADO SANCHES / LUIZ FERNANDO GENTILE / GABRIELA GONÇALVES FRANCO / JULIANA BINOTTI PEREIRA SCARIATO / VANESSA PADIA DE SOUZA

EQUIPE DE COMUNICAÇÃO CAU/SP FERNANDA CORREA DA SILVA COSTA, Coordenadora de Comunicação EPAMINONDAS NETO, Analista de Comunicação ADRIANO BATISTA BARBOZA, A ssistente de Comunicação MARIA LEIDE ARCANJO LIMA SILVA, Assistente de Comunicação

EDITADO POR (AGÊNCIA DE COMUNICAÇÃO)

Projeto gráfico e diagramação: ALLES BLAU Impressão: COAN INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA Tiragem: 20 MIL EXEMPLARES Imagem da capa: AMANDA DIAS

REVISTA MÓBILE E-mail REVISTA.MOBILE@CAUSP.GOV.BR ISSN: 2448-3885

COMITÊ EDITORIAL EXECUTIVO

AFONSO CELSO BUENO MONTEIRO / AMANDA ROSIN DE OLIVEIRA / EDUARDO PIMENTEL PIZARRO / PAULA RODRIGUES DE ANDRADE / SAMIRA RODRIGUES DE ARAÚJO BATISTA

CONSELHO EDITORIAL DA EDIÇÃO Nº24

AFONSO CELSO BUENO MONTEIRO / AMANDA ROSIN DE OLIVEIRA / ANA PAULA PRETO RODRIGUES / CAMILA MORENO DE CAMARGO / DENISE ANTONUCCI / FERNANDA MENEGARI QUERIDO / MONICA ANTONIA VIANA / PAULA RODRIGUES DE ANDRADE /POLIANA RISSO SILVA UEDA / SAMIRA RODRIGUES DE ARAÚJO BATISTA / THAIS BORGES RODRIGUES / VANESSA GAYEGO BELLO FIGUEIREDO / VITOR CHINAGLIA JÚNIOR

PARECERISTAS DA EDIÇÃO Nº24

ANA BEATRIZ GOULART DE FARIA / ANDRÉ FROTA CONTRERAS FARACO / CAROLINA RIBEIRO SIMON / FERNANDO NETTO / GEISE BRIZOTTI PASQUOTTO / HÉLIO HIRAO / IRAJÁ GOUVEA / JOÃO CARLOS CORREIA / JULIANA BINOTTI PEREIRA SCARIATO / LAÍS SILVA AMORIM / LEDA MARIA LAMANNA FERRAZ ROSA VAN BODEGRAVEN / PAULA RAQUEL DA ROCHA JORGE / RENATA FRAGOSO CORADIN / ROSSELLA ROSSETO / STEFANIA DIMITROV / VERA SANTANA LUZ / WILTON FLÁVIO CAMOLEZE AUGUSTO

AUTORES SELECIONADOS DA CHAMADA ABERTA DE TRABALHOS DA EDIÇÃO Nº24

Textos: ANA LUISA MIRANDA E TATIANA DE SOUZA GASPAR / BÁRBARA POZZA SCUDELLER / CELSO APARECIDO SAMPAIO / CLAUDIA MUNIZ / HELOISA ALEXANDRE CIZESKI / LARA STIVAL GARROTE / LETÍCIA MIANNI DE ALMEIDA / MATHEUSA SILVA NASCIMENTO E RODRIGO OLIVEIRA MATO GROSSO PEREIRA / RAFAEL GOFFINET DE ALMEIDA E FÁBIO LOPES DE SOUZA SANTOS / CELSO APARECIDO SAMPAIO, OTÁVIO CAMPOS ARANTES E RAFAEL PARENTE

FOTOGRAFIAS AMANDA CAROLYNE DE SOUZA DIAS é de Minas Gerais. Faz graduação de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Estácio de Sá, onde pode achar respostas e criar mais perguntas. Seu maior objetivo é trazer uma arquitetura que inclua a maior diversidade de pessoas. Criadora do blog Voz da Cidade.

MARIANA COSTA MAIA SILVEIRA ou Mariana Cosmassi, é Arquiteta Urbanista e Fotógrafa. Formada pelo Centro Universitário São Judas Tadeu (2018) e Universidade Paulista, já teve experiências com áreas transdisciplinares, sempre unindo Fotografia e Arquitetura.

As opiniões publicadas nesta edição da revista Móbile refletem a visão de seus autores e não correspondem necessariamente à opinião do CAU/SP.

Expediente (Móbile 24)editorial
2 MÓBILE #24

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A INVOCAÇÃO DO TEMA DEMOCRACIA como eixo condutor da revista Móbile n° 24 se dá, de um lado, pela consolidação da prática de chamada pública de trabalhos, iniciada na edição 23, e, de outro, ao colocar “na mesa” um tema atual, urgente, e que provoca a reflexão sobre nossa função enquanto arquitetos e urbanistas na construção de processos sociais, além do papel desta instituição, o CAU/SP, como forma política de representação.

Para nós, que somos formados para projetar e desenhar o espaço da vida cotidiana, da casa à cidade, da esquina ao território, o exercício da democracia é diretamente relacionado ao exercício da profissão, afinal ambos exigem processos múltiplos e diversificados, sempre em busca do consenso – o projeto como tal – para um bem viver comum, equilibrado, digno e justo. Assim como a democracia, projetar não é uma ação que se finda em si mesma, trata-se de um processo em movimento, que se realiza também pelo seu próprio exercitar.

Cabe então refletir sobre o papel do CAU enquanto autarquia pública, nesta construção?

Sabemos que a função original dos conselhos de classe é zelar pelo exercício profissional, pelas boas práticas técnicas e éticas, em resguardo à sociedade. A partir disso, acreditamos que, nesta gestão do CAU/SP, o Conselho pode e deve ter uma atuação mais próxima, presente e articulada junto à sociedade na construção de seus espaços democráticos.

Para tanto, é necessário o planejamento e desenvolvimento de ações mais amplas e transversais com foco na diversidade e nas demandas dos arquitetos e urbanistas do século XXI, em um cenário de desi gualdades estruturais que impactam diretamente o exercício profissional e de cidadania nos espaços de trabalho; bem como na articulação institucional do CAU com outras entidades, exigindo que o Conselho repense o alcance de sua função social no mosaico da democracia, seja para o exercício da arquitetura, seja para a afirmação do seu papel junto à sociedade.

Os profissionais de Arquitetura e Urbanismo ainda enfrentam uma série de entraves e obstá culos técnicos, fiscais, financeiros, além da pouca visibilidade junto à sociedade. Os profissionais servidores públicos, por exemplo, raramente têm seu cargo registrado no CAU, o que dificulta a comprovação técnica de sua trajetória profissional, e sua representatividade junto ao Conselho.

Paradoxalmente, nas articulações institucionais realizadas pelo CAU/SP neste último ano, vemos uma aderência de agendas, e uma demanda pelos serviços de profissionais arquitetos e urbanistas, em várias escalas e frentes de trabalho.

Em reunião com a presidente da OAB/SP, Patrí cia Vanzolini, por exemplo, vimos a possibilidade de ampliar os campos de atuação fazendo cursos de capacitação, e a necessidade da Ordem de compor um corpo técnico de arquitetos que os

Arquitetura e Urbanismo e a experiência democrática

POR CATHERINE OTONDO
4 MÓBILE #24

assessorem para elaborar projetos de ocupação das suas diversas sedes. A mesma receptividade tivemos junto às Secretarias de Acessibilidade e Pessoas com Deficiência, Infraestrutura e Meio Ambiente, Urbanismo, Cultura, Finanças e Educação, em âmbitos municipal e estadual.

Tais costuras institucionais, além de criar pos sibilidades diretas de cooperação capazes de transformar efetivamente o cotidiano da prática profissional, inserem o CAU/SP em uma rede de agentes públicos e privados, o que de fato amplia e fortalece suas contribuições à construção dos processos democráticos e à melhoria das condições de vida em nossas cidades, notadamente em seus territórios mais vulneráveis.

Para conduzir e medir estas ações, elabora mos um planejamento estratégico, cuja própria elaboração constitui exercício democrático que surge a partir de um desejo comum e se desenvolve pela compreensão das diferenças, considerando resistências e disputas, e se estabelece como o resultado do entendimento e do consenso. O que se pretende é que tal prática, dentro de sua viabi lidade, torne-se uma marca do nosso Conselho, ou seja, que esta experiência fique impressa na forma (ou na máquina) política:

Um Conselho que pretende ser “POP”, como instituição popular, visível, acessível e comum;

Um Conselho que pretende ser (porque não) “SEXY”, como instituição atraente, para aqueles

que se amparam nele para trabalhar, bem como para aqueles que pretendem participar como seus representantes políticos;

Um Conselho que pretende estar na linha de frente da construção dos processos e dos espaços democráticos da nossa sociedade.

Para aqueles que ainda apoiam a dissolução dos conselhos de classe, o CAU, nestes pouco mais de 10 anos de vida, tem demonstrado por meio de suas atividades, as possiblidades de uma atuação direta e articulada, que cumpre suas obrigações junto à sociedade e ainda realiza através de seus programas e projetos estruturantes, tais como ATHIS, patrocínios e fomentos, ações que o próprio Estado não teve chance de implementar de modo efetivo, realizando uma ponte importante entre uma política pública, ou uma lei, e sua efetiva realização.

Os trabalhos que compõem a Móbile n°24 demonstram, na sua especificidade, esta realida de virtuosa.

Boa leitura! ✗

CATHERINE OTONDO, ARQUITETA E URBANISTA. DESDE 2017, LECIONA PROJETO NA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE. É SÓCIA DO ESCRITÓRIO DE ARQUITETURA BASE URBANA. PRESIDENTE DO CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO DE SÃO PAULO – CAU/SP - GESTÃO 2021-2023.

5 DEMOCRACIA

URBANOS DO BRASIL têm sido cada vez mais abordados pela imprensa e pelas redes sociais. No primeiro semestre dominaram as coberturas das tragédias de Franco da Rocha (SP), Petrópolis (RJ) e Grande Recife (PE), que causaram 379 mortes, causadas por fortes chuvas, desmoronamentos e inundações.

Estamos vivendo um desastre não só ambiental, mas da negli gência dos governos no processo predatório de urbanização. A população ocupou morros porque o custo da terra não permitiu uma localização apropriada. Neste contexto vale indagar de qual democracia estamos falando.

As injustiças sociais que marcam a construção de nossas cidades desde a colônia são abordadas na “Carta dos(as) Arquitetos(as) aos(às) Candidatos(as) nas Eleições de 2022”, lançada pelo CAU Brasil e pelo Colegiado das Entidades Nacionais de Arquitetos e Urbanistas (CEAU). É inegável que as desigualdades territoriais foram determinantes na propagação da pandemia da Covid-19. Além disso, as mudanças climáticas apontam a emergência de ações na crise ambiental.

Em todo Brasil, 8,7 milhões de pessoas vivem em áreas de risco, em 872 municípios, totalizando 2,5 milhões de moradias, segundo dados do IBGE cruzados com informações do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “Isso equivale à soma das populações de Salvador, Fortaleza e Belo Horizonte”, lembra o jornalista André Trigueiro, um dos nomes que tem se destacado na imprensa na abordagem de problemas urbanos. “Garantir moradia digna a essas pessoas nunca foi priori dade. Não vote em candidatos que ignoram essa realidade”, disse ele em seu perfil no Twitter.

Arquitetura, Urbanismo e democracia

Uma agenda para o Brasil

¶ OS PROBLEMAS
6 MÓBILE #24

A legislação urbanística de muitas cida des tem uma parte da culpa ao se moldar aos interesses do poder econômico. Em São Paulo, nos anos 1950, uma lei proibiu a cons trução de pequenos apartamentos no centro, elitizando a verticalização, e nos anos 1970, a regulação urbanística inviabilizou a produção de loteamentos para os mais pobres.

O mercado se satisfez com o “boom” da construção de imóveis para a classe média financiados pelo BNH enquanto o território da periferia foi sendo tecido com moradias precárias, que já somam 25 milhões no país, conforme a Fundação João Pinheiro.

O problema, contudo, está longe de ser de responsabilidade exclusiva dos municípios. A Carta aos Candidatos do CAU Brasil e das entidades, com 20 propostas, ressalta que a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacio nais e de saneamento básico são competências da União, Estados e Municípios, conforme a Constituição Federal de 1988, que assegura a moradia como um direito social.

Falta uma política nacional de habitação permanente. O “Minha Casa Minha Vida” poderia ter sido, mas virou programa de gover no, bem como seu sucessor “Casa Verde e Amarela”. Mais claramente pode-se dizer que a exclusão é a política, infelizmente histórica.

A negligência com planejamento e reali zação de obras de infraestrutura como dre nagem, saneamento e contenção de encos tas potencializa os problemas gerados pela ocupação e adensamento nas áreas de risco. Sem contar que o país faz descaso da pre venção de riscos. Dados da plataforma Siga Brasil, que monitora o Orçamento da União, revelam que o Ministério do Desenvolvimento destinará em 2022 cerca de 36% menos do que em 2021 em valor nominal (ou 46% se corrigido pela inflação) em Gestão de Riscos e Resposta e Desastres.

Será que conseguiremos atingir uma democracia urbana? Nós, arquitetos(as) e urbanistas, cremos que sim e queremos con tribuir para reverter o quadro atual. Somos formados(as) para proporcionar melhores con dições de vida para todos(as), e defendemos moradia digna para a população, a implanta ção de medidas que garantam a resiliência de nossas frágeis cidades e a valorização da dimensão ambiental no planejamento urbano e territorial. ✗

NADIA SOMEKH, PROFESSORA EMÉRITA DA FAU-MACKENZIE E PRESIDENTE DO CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO DO BRASIL (CAU BRASIL)GESTÃO 2021-2023. acesse a Carta aqui: ↗ bitlylinks.com/nkdVbdfbr
7 DEMOCRACIA

Direito à cidade

Mudanças de paradigmas necessárias à vida urbana com segurança, em cidades inclusivas, sustentáveis e resilientes

Encosta de morro em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, que foi atingida por fortes chuvas no final de janeiro. © ORLANDO JUNIOR/PREFEITURA DE FRANCO DA ROCHA POR MONICA ANTONIA VIANA, DANILA MARTINS DE ALENCAR BATTAUS E VERA LUCIA BLAT MIGLIORINI DA COMISSÃO DE PLANEJAMENTO URBANO, AMBIENTAL E TERRITORIAL E ASSISTÊNCIA TÉCNICA EM HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL – CPUAT E CATHIS-CAU/SP
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¶ NÃO É DE HOJE QUE SE DISCUTE o padrão da urbanização brasileira e seus impactos, sobretudo entre 1970 e 1990, quan do as relações entre capital industrial e pro dução da cidade foram responsáveis pelas composições morfológicas do espaço urbano, ditando regras da conformação do território, onde se combinam estruturas habitacionais e infraestruturas urbanas incompletas e desar ticuladas em um Brasil que se constituía pre dominantemente urbano (MARICATO, 1979; SANTOS, 1980; VILLAÇA, 1999). Deste pro cesso resultou os inumeráveis descompassos entre o processo de urbanização e o suporte físico-ambiental presentes, evidenciados pela sobreposição da fragilidade ambiental com a vulnerabilidade social na ocupação do espaço urbano (ANELLI, 2020).

Neste contexto torna-se cada vez mais urgente debater o papel do profissional arqui teto e urbanista, associado aos demais pro fissionais relacionados ao tema, entendendo a noção de “risco”, que cotidianamente se apresenta sob distintas faces junto aos ter ritórios populares - mas não só!

A gravidade desse quadro revela a urgência em se estabelecer novas chaves de legibili dade sobre as condições da desigualdade

urbana e social no Brasil, que possam iden tificar e qualificar, de diferentes formas, os riscos a que estão submetidos grande parcela da população no território em suas práticas relacionadas ao viver a e na cidade: riscos sociais, geológicos, ambientais, de remoção, físicos-territoriais, jurídicos, entre outros a fim de evitá-los.

RISCOS GEOLÓGICOS E

AMBIENTAIS: UM RECORTE

A ocorrência de grandes chuvas tem se inten sificado com as mudanças climáticas, gerando apreensão por parte do poder público e popu lação, em especial a parcela de menor renda que reside em áreas impróprias à ocupação urbana, passíveis de riscos geológicos.

As chuvas, associadas à ocupação irregular do solo urbano e à deficiência no sistema de saneamento e degradação ambiental, são protagonistas de recorrentes tragédias socioambientais, que produzem prejuízos nas cidades e efeitos devastadores para a vida de famílias residentes nas áreas sujeitas a alagamentos, enchentes e deslizamentos, que enfrentam a dor das perdas materiais e, principalmente, de vidas.

9 DEMOCRACIA

No entanto, por se caracterizar como problema histórico, recorrente e previsível, estas áreas deveriam ser monitoradas, fiscalizadas e objeto de um planejamento e gestão urba na-ambiental sustentável, que considere a integração de políticas públicas com PDUIs (Planos de Desenvolvimento Urbano Integrado), planos diretores, planos setoriais, de redução de risco e demais leis urbanísticas no contexto municipal e regional, conforme preveem os Estatutos da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001) e da Metrópole (Lei Federal 13.089/2015), e que, sobretudo, adotem a bacia hidrográfica como unidade de análise e planejamento territorial.

A desigualdade de acesso à moradia digna e ao solo urbanizado, dotado de infraestrutura urbana, bens e serviços urbanos, produziu, e continua produzindo, um imenso passivo socioambiental em nossas cidades, que foi ampliado com os impactos da crise gerada pela pandemia de Covid-19.

Apesar do avanço da tecnologia para pre venir, mitigar e eliminar riscos geológicos, a descontinuidade de investimentos e, por vezes, a omissão do poder público na aplicação de medidas eficazes têm sido fatores de agra vamento do risco e da vulnerabilidade social nas áreas críticas ocupadas. Isto requer que as autoridades competentes se organizem e priorizem recursos para os municípios e regiões atingidas, em especial para os terri tórios e população mais vulneráveis, de modo que tragédias como essas não se repitam.

DESAFIOS E PERSPECTIVAS

PROFISSIONAIS

Em termos mais propositivos, a importância das questões relacionadas ao meio ambiente global, em especial a agenda climática, tem demandado a elaboração de estratégias de intervenção urbana a partir de uma necessária mudança de paradigmas.

Os riscos que se atrelam às mudanças climáticas, no âmbito das cidades, corres pondem a uma série de eventos extremos, cuja frequência e intensidade dão pistas da urgência em se discutir, interdisciplinarmente, as mudanças climáticas como um problema urbano, sobretudo pelos impactos sobre a infraestrutura urbana: a qualidade e disponi bilidade da água, a qualidade e extensão da coleta e tratamento de esgoto, do sistema de drenagem, a disponibilidade de energia, a segurança habitacional, o funcionamento dos sistemas de mobilidade urbana, a produção de alimentos e a saúde humana.

O que se observa junto às áreas já requali ficadas é o descompasso entre o tempo dos processos de execução dos projetos e dos processos de (re)apropriação dos lugares, que conjuga o aprofundamento do quadro de desigualdade social no Brasil atrelado às crises econômica, política e sanitária recentes, e a urgência no estabelecimento de uma efetiva articulação entre os campos da política, do plano e do projeto.

De modo mais amplo, apesar da confluên cia entre um conjunto de ações e agendas importantes contemporâneas, as questões localizadas na articulação entre os níveis de concepção dos planos e dos programas que viabilizarão esta produção, dos agenciamentos em torno de sua operacionalização, e de sua implementação no território, apontam para formulações mais amplas com fortes nexos com o contexto globalizado de operacionali zação e financeirização de políticas públicas, pelo qual se iluminam formas mais complexas de inserção na cidade. ✗

MONICA ANTONIA VIANA, DANILA MARTINS DE ALENCAR BATTAUS E VERA LUCIA BLAT MIGLIORINI / COMISSÃO DE POLÍTICA URBANA, AMBIENTAL E TERRITORIAL - CPUAT E COMISSÃO DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA EM HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL - CATHIS

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REFERÊNCIAS

ANELLI, R. (2020). As cidades e o aquecimento global: desafios para o planejamento urbano, as engenharias e as ciências sociais e básicas. In: Journal of Urban Technology and Sustainability 3, p. 4-17.

MARICATO, E. (1979).

A produção capitalista da casa e da cidade no Brasil Industrial São Paulo: Alfa-ômega.

SANTOS, M. (1980).

A urbanização desigual Petrópolis: Vozes.

VILLAÇA, F. (1999). Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil In: DEÁK, SCHIFFER, S. (org.)

O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, p.169-243.

A desigualdade de acesso à moradia digna e ao solo urbanizado, dotado de infraestrutura urbana, bens e serviços urbanos, produziu, e continua produzindo, um imenso passivo socioambiental em nossas cidades, que foi ampliado com os impactos da crise gerada pela pandemia de Covid-19.

Vista de cima de Franco da Rocha/SP, inundada após fortes chuvas (30/01/2022). PREFEITURA DE FRANCO DA ROCHA
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TAPUME → MARIANA COSTA MAIA SILVEIRA → Habitats Invisíveis: Os cortiços da cidade de Santos 13 DEMOCRACIA

Direito à paisagem?

Orla da praia em Santos/SP. ©LEGUTH EDSON /WIKIMEDIA COMMONS
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¶ AFINAL, O QUE É PAISAGEM? Se é “tudo o que vemos” (Santos, 1999), então tudo é pai sagem. Mas será que é apenas o que vemos? Quais sentidos são mobilizados quando entramos na seara das percepções? Pode mos sentir, ouvir, cheirar, tatear e degustar a paisagem? Quem não se recorda do cheiro de terra molhada depois da chuva? Ou do gostinho do camarão ao som das ondas do mar? O cheiro de café com bolo na fazenda ou os sons frenéticos do vai-vem por entre os arranha-céus da Paulista?

Sim, a paisagem é multissensorial. Nos evoca significados diversos, lembranças, histórias, desejos... É um fenômeno cultural, um registro sensível das nossas interações. É uma teia de conexões dos seres com o meio. É ao mesmo tempo produto e processo desta interação “ser-meio”.

Muitas disciplinas conceituaram a paisa gem. Uma abordagem naturalista que historicamente forjou a noção de “paisagem natural”, corrente na filosofia clássica e na geografia física, vai cedendo a uma abordagem cultural reforçando a ideia da paisagem criada pelo homem, por ele percebida ou apropriada.

O campo da Arquitetura e Urbanismo acrescenta o ingrediente “projeto” – a pai sagem intencional. A geografia humana evi dencia a ação do homem com a natureza, a paisagem cultural (SAUER, 1925). A aborda gem ambiental joga luz sobre a importância da biodiversidade e ecossistemas. As artes retratam expressões interpretadas da paisa gem. A sociologia destaca seu valor público e democratizante. A antropologia acende os significados imateriais dos diversos grupos étnicos, sobretudo as culturas originárias, tradicionais e contra-hegemônicas.

A paisagem é, portanto, polissêmica, trans disciplinar, complexa, multi e interescalar. Pode ser algo que se percebe de fora, numa escala mais territorial, intelectual e/ou algo que se percebe de dentro, numa escala do lugar, dos sentidos.

E a paisagem é patrimônio cultural? Se o patrimônio cultural é tudo que porta ou evoca significados, memórias, historicidade... então a paisagem também pode ser patrimônio. Basta ser reconhecida como algo com forte significância cultural. Como a paisagem é uma teia, um sistema, não devemos fragmentá-la. Ela exige uma abordagem integrativa. Pode mos compreender seus elementos, mas a essência está na percepção de suas relações. Tudo na paisagem é dialógico (MORIN, 2007). Enquanto falamos sobre ela, ela fala sobre nós, sobre quem somos e como somos. Ela nos molda mais que nos emoldura.

No entanto, nossa razão (e nossas institui ções) costumam nos contrapor com perguntas demasiadamente objetivas. Será que nossas instituições estão preparadas para lidar com a paisagem-patrimônio? Será que a própria

A noção ocidental de paisagem funda menta-se numa abordagem renascentista ancorada na construção pictórica perspectiva que faz também da natureza (physis) um de seus elementos primordiais (CAUQUELIN, 2007). Daí o senso comum da paisagem como “panorama”, enfocando sua percepção visual com a presença indelével da natureza.

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sociedade está? Será que o valor econômi co que tem conduzido as decisões sobre quase tudo se importará com significados tão sensíveis?

Aí moram as reflexões sobre o direito à paisagem. O direito mais público e mais difuso de todos. O direito à fruição, à percepção, à conexão, à memória evocada pelas paisagens. O direito ao sol, ao vento, à floresta, ao brincar na praça, a passear no parque, ao banho de rio ou de mar, ao esporte no lago, o direito de ir e vir, o direito à morada, à salubridade, a manifestar-se, a festejar nas ruas, o direito à saudade, ao medo, a respirar sem fumaça...

Absolutamente tudo é direito à paisagem. Por isso, debate-se cada vez mais o direito à paisagem como um direito humano, ratifi cando-o entre os direitos fundamentais, junto aos conceitos jurídicos de meio ambiente, cultura, espaço e direito público subjetivo.

A Constituição de 1988, ancorada numa visão ambientalista, garante o desfrute ao meio ambiente equilibrado e o acesso igualitário aos recursos naturais. O Estatuto da Cidade, quando fala sobre as funções sociais, se aproxima do Direito de Paisagem conside rando a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, pai sagístico e arqueológico”(art.2).

Trata-se do interesse público, cuja proteção jurídica recai sobre os elementos de tutela ou representatividade, frente à ação do Estado. Nesse sentido mais pragmático, a paisagem a ser reconhecida deve ser declarada patrimônio cultural. Como o patrimônio tem se tornado cada vez mais um campo de disputas, a paisagem também o é. Saímos do direito ao sol na praia ou ao meu bairro como sempre foi (horizontal) para a disputa

Visão panorâmica do Parque do Ibirapuera na capital paulista. © WILFREDOR/WIKIMEDIA COMMONS
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pelo maior aproveitamento econômico – a verticalização. Esse é um debate sobre direi to à paisagem, mas também sobre direito à cidade, na medida em que adensar é tornar a cidade mais acessível.

Enfim, se a paisagem é esse “algo gosto so” que nos conecta, nos molda e nos evoca significados, precisamos reconhecer isso. Somente desta forma o direito à paisagem será menos conflito e mais convergência, será mais nosso bem comum! ✗

VANESSA GAYEGO BELLO FIGUEIREDO COORDENADORA DA COMISSÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL - CPC CAU/SP, PROFA. DRA. FAUPUCC, COORDENA O COMITÊ CIENTÍFICO NACIONAL DE PAISAGENS CULTURAIS E O NÚCLEO ESTADUAL SÃO PAULO DO ICOMOS – CONSELHO INTERNACIONAL DE MONUMENTOS E SÍTIOS.

REFERÊNCIAS

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1999.

SAUER, C.O. A morfologia da paisagem. In: Paisagem, Tempo e Cultura. CORRÊA, R.L.; ROSENDAHL, Z. (orgs.). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998 (1925).

17 DEMOCRACIA

Projetar o futuro e incluir memórias

POR RAQUEL SCHENKMAN CONTIER Vila Itororó, no bairro do Bexiga, São Paulo, 2022. © RAQUEL SCHENKMAN CONTIER
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“A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”

(LE GOFF. HISTÓRIA E MEMÓRIA . 2013, P.435)

“Devemos trabalhar para que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão”

(LE GOFF. HISTÓRIA E MEMÓRIA , 2013, P.437)

¶ EM TEXTO DE MARIA CÉLIA PAOLI, publi cado há 30 anos para o livro “O direito à memória: patrimônio histórico e cidada nia”, a socióloga aponta duas concepções comuns, e aparentemente contrastantes, na nossa relação com os objetos do pas sado. De um lado, há os que sustentam que esses objetos têm pouco significado, diante da necessidade de ruptura e imperativo do contemporâneo, da modernidade e do novo, no qual o passado deve ser superado e precisa ser transformado, substituído. De outro, há aqueles que se apegam totalmente ao passado, se fixando no sentimento da perda do antigo que era bom e que não retornará jamais.

Nem tudo deve ser destruído ou conservado. Em ambos os casos se trata de uma noção de história fechada, que estagna, que não elabora os significados desses objetos ou vestígios como referências, como parte da experiência coletiva ou da formação cultural e social. Nesse sentido ignoram a constru ção de um ato historiográfico, não realizam uma releitura dos fatos e acontecimentos e desconhecem o valor da memória social.

A memória é essencial para o aprendizado, para o conhecimento e confere sentido ao passado. A memória exerce uma atualização do passado e faz registro do presente para que permaneça como lembrança. É um lugar onde colocamos imagens e palavras. O ato de memória considera um comportamento narrativo, ou a comunicação a outro de uma informação, mesmo na ausência de um objeto ou de um acontecimento. Na memória, objetos e sujeitos se conectam. Um evoca o outro e produz no outro a relação com o mundo que se projeta e que se quer fazer lembrar.

A memória permite elaborar experiências e alcançar saberes e práticas. A ideia de direito à memória, por isso, é uma dimensão fun damental da cidadania, da identidade, da cultura. E o direito à memória pode ser enten dido como o direito de um povo, grupo ou indivíduo ter conhecimento e poder lembrar daquilo que lhe pertence, que lhe é relativo, seu patrimônio cultural.

E o que a noção de direito à memória tem a ver com a Arquitetura e Urbanismo? A profissão projeta o futuro, trabalha com o planejamento das cidades em contínua

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transformação, vislumbra com criatividade um mundo novo. Poderiam dizer que ao arquiteto e urbanista pouco importa o passado, pois seu material é moldar o agora e partir daqui para a frente. Mas, inevitavelmente, sua ação causa um efeito sobre a memória. E se não soubermos identificar o que estamos escolhendo fazer desaparecer ou transformar ao intervir num território, o que estamos mudando ou fazendo permanecer ao propor leis, planos ou projetos, não saberemos sobre quais grupos e usos sociais estamos interferindo. Sem nos perguntarmos o que determinado objeto ou lugar representa, quais memórias sustenta, e a serviço do que ou de quem estamos sendo requisitados como profissionais, nosso trabalho se esvazia de consciência ou sentido social.

A memória concede a imortalidade aos mortais, protege as artes e a história. São suportes da memória, festas e comemorações, monumentos e memoriais, prédios e paisagens, além de arquivos e museus, que guardam uma quantidade tal de memórias que nas sociedades modernas já não são possíveis de se guardar individualmente. Estas conhecidas formas de estabelecimento e institucionalização das memórias demandam outra ordem de processamento, como fichas, bancos de dados, e cada vez mais complexos sistemas de armazenamento virtual informatizados.

Gravar na pedra ou guardar na nuvem, no entanto, levam essas memórias à fronteira da história. A memória coletiva é, nesse sentido, instrumento de poder, e a perda de memória, ou o esquecimento, causa perturbações e preocupações nos grupos e na identidade coletiva. Há disputas pelo con trole e seleção das memórias na manutenção de recordações e tradições, quando não se pode e não se quer guardar tudo. Por isso a importância da democratização da memória social, que sustenta a história ao futuro.

Uma coisa ao menos é certa: ao reconhecer, pela memória, que o passado é diferente do presente, temos a certeza de que o futuro também será. ✗

RAQUEL F SCHENKMAN CONTIER É CONSELHEIRA SUPLENTE DO CAU/SP, ARQUITETA E URBANISTA NA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO PAULO; FOI DIRETORA DO DEPARTAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA CIDADE DE SÃO PAULO E PRESIDENTE DO CONPRESP ENTRE 2019 E 2020, QUANDO ELABOROU O INVENTÁRIO MEMÓRIA PAULISTANA, ESTABELECENDO O PROGRAMA DE PLACAS DE MEMÓRIA NA CIDADE.

Placa do Inventário Memória Paulistana, na praça da Liberdade, São Paulo. © RAQUEL SCHENKMAN CONTIER
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Visita à escavação do sítio arqueológico do parque Augusta, em São Paulo, 2020. © RAQUEL SCHENKMAN CONTIER
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Grota do Bixiga e

e POR CLAUDIA MUNIZ Roteiro de memória na Jornada do Patrimônio. © CLAUDIA MUNIZ, AGOSTO DE 2021.
Coletivo Salve Saracura: preservação, identidade
cidadania
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¶ QUANDO OS SUJEITOS SOCIAIS reco nhecem seu papel político e participam da seleção e das decisões acerca de bens e sítios culturais aos quais atribuem valores, estão exercendo cidadania e conquistando direitos à memória e à cidade. Cabe à coleti vidade, verdadeira guardiã do seu patrimônio, reconhecer os valores ancorados em suas memórias e experiências cotidianas e mobili zá-los na resistência contra a transformação descontrolada da cidade.

É nessa premissa que o Coletivo Salve Saracura se apoia. Fundado em 2019, é um grupo auto-organizado com foco nas questões ambiental e urbana da Grota do Bixiga, que está na Bela Vista, em São Paulo. Enquanto agente político, o coletivo tem como objetivos a mobilização da população para questões dessa natureza e a exigência (cobrança?) dos órgãos públicos do cumprimento das normas de preservação desse patrimônio natural e cultural de importância tanto local quanto municipal.

Nas reuniões do coletivo, a preocupação com a permanência da população aparece, sobretudo dos mais vulneráveis do ponto

de vista de condições de moradia, e daqueles que possuem laços de identidade com o lugar. A Grota do Bixiga ainda é um lugar onde famílias de renda média e baixa conseguem morar, trabalhar e socializar em uma área bem localizada na cidade. As memórias que sus tentam essas identidades têm relação com os rios Saracura e Saracura Grande, como mostra Adriana Terra:

“Uma dessas continuidades é a da ideia da existência e da força do rio, bem como o uso da palavra Saracura. Sobre a lembran ça do rio, mesmo que coberto pelo asfalto, sugere-se uma memória ligada à experiên cia de vida de muitos moradores que é passada adiante em nomes, letras de música, nas histórias contadas em família, e que constituem um imaginário persistente” (TERRA, 2021, p. 53).

Por isso, o grupo se mobiliza para identificar, registrar e proteger os elementos naturais da Grota, que têm relação com a cultura e as memórias desses sujeitos: pontos de aflora mento de água, cursos d’água, áreas verdes, encostas, pontos de mirante e fauna. Ele con seguiu um laudo do Instituto Geográfico e Cartográfico de São Paulo que confirmou afloramentos de água na área. O laudo apoiou parecer do Centro de Apoio à Execução, órgão ligado ao Ministério Público de São Paulo.

O Salve Saracura também se posiciona publicamente na defesa do instrumento oficial de preservação cultural, o tombamento da Bela Vista, de 2002. A Grota do Bixiga está demarcada como área envoltória devido à conformação geomorfológica, paisagem e elementos urbanos tombados. O grupo pro move ações que mostram a incompatibilidade entre a permanência das preexistências prote gidas pelo tombamento e as transformações urbanas pelas quais a área está passando.

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O pacto do tombamento da Bela Vista está em risco. Um dos motivos é a demarcação da Zona Eixo de Estruturação Urbana sobre a área envoltória da Grota. A ZEU foi demarcada na lei de zoneamento em função da passagem da Linha 6-Laranja do Metrô e da abertura de duas novas estações no bairro. Seus índices urbanísticos tornam os lotes atrativos para o mercado imobiliário, pois estimulam adensa mento construtivo e demográfico. Essa atração se fortalece devido à localização estratégica da Grota, que está próxima da Avenida Paulista. Novos empreendimentos estão surgindo como fruto desse processo. Em conjunto com as obras do Metrô, levantam preocupações de várias ordens: movimentações no subsolo em áreas próximas de nascentes, áreas ver des e vestígios arqueológicos; alteração na paisagem cultural, já que as torres se tornam barreiras à percepção visual das encostas; e

a de ordem social, pois as novas unidades têm alto valor imobiliário e não condizem com o perfil social majoritário. Grande parte das(os) moradoras(es) reside em sobrados, habitações coletivas ou apartamentos com valores menores aos praticados nas novas unidades.

As disputas são nítidas e tanto a população de menor poder aquisitivo quanto os patrimônios cultural e natural são os elos mais frágeis. Tais disputas passam pela interpretação da lei de tombamento: de um lado, a ausência de diretrizes claras para novos projetos nas áreas envoltórias abre espaço para que as empresas justifiquem as novas construções que, do ponto de vista urbano e arquitetônico, não estão de acordo com o conjunto histórico e com a paisagem cultural. De outro, o coletivo chama atenção para os considerandos da lei, que registram o espírito jurídico em prol da preservação da conformação geomorfológica e dos sujeitos sociais da Grota.

Em azul, os córregos (canalizados). Em amarelo, a Grota do Bixiga. Em laranja, os limites do distrito administrativo Bela Vista.

@ CLAUDIA MUNIZ, 2022.

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A atuação das(os) arquitetas(os) do grupo é crucial para isso e para as seguintes ações: levantamento e leitura de plantas históri cas, fotos aéreas e cartografia; produção de imagens técnicas que acompanham documentos jurídico-administrativos e atividades de educação patrimonial; aferição de pontos em que há supressão de vegetação e umidade abundante; conversas e denúncias junto aos representantes do poder público, sobretudo do Departamento do Patrimônio Histórico e do Metrô; participação em eventos acadêmicos com temáticas relacionadas, entre outras.

O Salve Saracura se estrutura como coletivo e agente político na luta pela preservação cultural, social e natural da Grota do Bixiga. Vale a pena finalizar com reflexões trazidas por Laurajane Smith (2006), que defende o seguinte entendimento de patrimônio: ao invés de ser monumento ou sítio dotado de valor intrínseco e reconhecido apenas por especialistas, patrimônio é processo ou performance intangível, em que se identificam democraticamente valores e significados culturais que dão sentido ao tempo presente. A visão do patrimônio como pro cesso é chave para se alcançar justiça, direitos e participação social na São Paulo em constante disputa. ✗

CLAUDIA MUNIZ. PROFESSORA NO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO NO CENTRO UNIVERSITÁRIO ARMANDO ALVARES PENTEADO (FAAP). DOUTORANDA E MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO PELA FAUUSP. ESPECIALIZAÇÃO COM O CURSO HABITAÇÃO E CIDADE, PELA ESCOLA DA CIDADE, E GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO PELA FAAP. INTEGRANTE DO COLETIVO SALVE SARACURA. CONSELHEIRA SUPLENTE DO CAU-SP DESDE 2021.

REFERÊNCIAS

SMITH, L. Uses of heritage. Nova York: Routledge, 2006.

TERRA, A. C. Entre centro e periferia: camadas, imaginários e a importância da rua na construção da identidade do Bexiga. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021.

Pontos de nascentes identificados pelo IGC-SP. © LUCIANA OLIVEIRA DA SILVA E ANTONIO AUGUSTO SANTOS. MAIO DE 2021. Reunião do coletivo. © FABIANA LUCENA. MAIO DE 2022.
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Espaço público em

POR INSTITUTO TERRITÓRIO EM REDE
disputa: novas formas de organização social em Ribeirão Preto
Foto aérea do Jardim Progresso (acima) e Quinta da Boa Vista B, localizados na zona sudoeste de Ribeirão Preto. Fonte fotográfica: Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, 2008. © INSTITUTO TERRITÓRIO EM REDE 26 MÓBILE #24

¶ NO NOSSO TEMPO, há urgência em for talecer e visibilizar resistências coletivas que desafiam o estado atual das coisas e tensionam a realidade. Ribeirão Preto, capi tal regional do interior paulista, apresenta significativas limitações no que se refere à democratização dos assuntos públicos, especialmente na produção do espaço e na formulação e revisão de legislações urba nísticas, que tanto impactam o cotidiano da população. A organização tardia da socieda de civil, a partir dos anos 1990, somada ao revezamento, no poder público, de famílias e grupos que defendem interesses privados, revelam um espaço público assimétrico onde as narrativas dissonantes aparecem apenas como ruídos e, a participação, como miragem.

No entanto, nos últimos anos, há que se ressaltar um evidente fortalecimento da socie dade civil do município, que passa a disputar o espaço público e a demonstrar a presença de novas formas de organização social. O recrudescimento dos territórios de pobreza e o aprofundamento da mercantilização do espaço urbano fortaleceram a organização da sociedade e, mais recentemente, algumas

ações indicam a formação de redes de cooperação entre movimentos sociais, ONGs, associações e coletivos que apontam para um importante movimento: desafiar a demo cracia formalizada em modelos desenhados para invisibilizar trajetórias urbanas populares.

Foi nesse movimento que se fundou o coletivo Território em Rede como um grupo interdisciplinar formado por arquitetos e urbanistas, geógrafos, historiadores e sociólogos, com interesse no entendimento crítico da produção do espaço urbano do município de Ribeirão Preto, na ampliação do direito à cidade e na democratização da compreensão das contradições desse território, desenvolvendo ações que buscam alargar as possibilidades de participação direta da população na for mulação e fiscalização das políticas públicas.

O Território em Rede iniciou sua atuação em agosto de 2020, por meio de redes sociais, produzindo conteúdos digitais que denunciam problemas urgentes, como o déficit habita cional, a inadequação domiciliar e ações de remoção em assentamentos precários de Ribeirão Preto em tempos de pandemia e de necessidade de isolamento social. Com pos tagens que fomentam interpretações críticas sobre a cidade, são abordadas questões con gruentes à produção urbana de Ribeirão Preto, tanto em perspectiva histórica como atual.

Mas, diante do agravamento da crise social, é preciso que os espaços oficiais sejam dis putados e a construção racionalizadora e economicista das cidades seja confrontada para além dos limites das redes sociais. Nessa perspectiva, o Território em Rede participou ativamente dos processos de revisão das Leis Complementares ao Plano Diretor de Ribeirão Preto, aprovado em 2018. Historicamente, esses espaços são ocupados por representan tes do mercado imobiliário e associações de classes dominantes, de forma que as legisla ções urbanísticas de Ribeirão Preto têm sido

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desenhadas para atender a esses interesses específicos, produzindo um espaço urbano contraditório e desigual.

Ao longo de 2021, o Território em Rede teve ampla participação nas audiências públicas para a revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de Ribeirão Preto e, por quatro vezes, encaminhou contribuições às minutas apresentadas pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. O primeiro docu mento, enviado em maio de 2021, destacou, especialmente, que diversos índices e temas propostos pelo executivo municipal na versão anterior da minuta, elaborada em abril de 2020, haviam sido alterados ou suprimi dos na versão apresentada em 2021, mesmo que propusessem condições urbanas mais favoráveis à ampliação do direito à cidade e melhor qualidade de vida à população. Até novembro de 2021, novas contribuições e questionamentos foram enviados pelo Ter ritório em Rede, direcionados, sobretudo, ao aprimoramento da aplicação dos instrumen tos do Estatuto da Cidade.

As propostas apresentadas pelo Cole tivo foram apenas parcialmente acolhidas. Como exemplo, ressalta-se a redução no prazo para aprovação dos Planos de Ação Regional (PARs), que são peças fundamentais para o planejamento da cidade, uma vez que balizam a legislação específica das Unidades de Pla nejamento Local (UPL) - porções do território para as quais serão estabelecidos diretrizes e incentivos. No entanto, importantes instru mentos de redistribuição da valorização da terra urbana se mantiveram flexibilizados no Projeto de Lei Complementar encaminhado à Câmara Municipal, como a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), que só será cobrada, de forma integral, dez anos após a publicação da Lei.

Buscando a ampliação dos seus campos de atuação e considerando imprescindível

que instrumentos de gestão democrática como as audiências públicas e os conselhos municipais sejam socialmente apropriados, em 2021 o Território em Rede foi oficialmente registrado e se tornou o “Instituto Território em Rede”, para permitir a participação de seus membros e representantes em importantes instâncias, como o Conselho Municipal de Urbanismo - COMUR, Conselho Municipal de Habitação - CMHAB e Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente - CONDEMA.

O Coletivo também foi uma das entidades realizadoras do livro “Urbanismo e Urbanização em Ribeirão Preto: história e desenvolvi mento”, publicado em maio de 2022 pela Uni versidade Federal de Brasília, como resultado de um seminário realizado em março 2020 e que terá sua segunda edição em setembro de 2022, quando debaterá o processo de expansão urbana e regularização fundiária no município, contrapondo as contradições e conveniências na produção desse espaço.

A recente atuação do Instituto Território em Rede, assim como de outros coletivos e organizações diversas da sociedade civil em Ribeirão Preto, representa a potência da ação popular em contra-arrestar o agir hegemônico e evidencia que, muitas vezes, o conflito é a democracia sendo exercida. ✗

INSTITUTO TERRITÓRIO EM REDE É UM COLETIVO INTERDISCIPLINAR QUE TEM COMO OBJETIVO AMPLIAR O DIREITO À CIDADE E DEMOCRATIZAR A COMPREENSÃO DO TERRITÓRIO E SUAS CONTRADIÇÕES, ALARGANDO, COM ISSO, AS POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO DIRETA DA POPULAÇÃO NA FORMULAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM RIBEIRÃO PRETO.

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Mapas relacionando o local de domicílio da população preta e parda de Ribeirão Preto e o rendimento médio mensal domiciliar por setor censitário em Ribeirão Preto. FONTE DOS DADOS: AGÊNCIA DE NOTÍCIAS, IBGE, 2017. @ INSTITUTO TERRITÓRIO EM REDE, 2020.

Conjuntos habitacionais Wilson Toni e Dr. Paulo Gomes Romeo. © MATEUS ZÁCCARO.

0-20% 20-40% 0 a 2 S.M. 2 a 3 S.M. 3 a 4 S.M. 4 a 5 S.M. 5 a 6 S.M. 6 a 7 S.M. 7 a 8 S.M. 8 a 9 S.M. 9 a 10 S.M. acima de 10 S.M. Sem informação (s.m.: salário mínimo) 40-60% 60-80% (percentual de negros e pardos)
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Revisão e elaboração de planos diretores durante a pandemia da Covid-19

Um ensaio sobre Goiânia/GO

POR LARA STIVAL GARROTE Ocupação no Setor Jardim Novo Mundo em Goiânia/GO. LARA STIVAL GARROTE, 2022
©

¶ NO DECORRER DE SUA HISTÓRIA, Goiânia teve um total de seis planos diretores, sendo o último aprovado recentemente em fevereiro de 2022 em um processo de revisão que ocorreu em meio ao cenário pandêmico causado pela Covid-19. Dentre as transformações que o novo Plano Diretor proporcionará em Goiânia, pode-se citar: a flexibilização de parâmetros urbanísticos em áreas extremamente aden sadas verticalmente; a ausência de ações em prol da moradia popular; a diminuição dos índices de áreas de preservação perma nente (APP); a possibilidade de construir em nascentes intermitentes; a falta de políticas urbanas efetivas em prol do patrimônio do Setor Central; por fim, a intensa expansão da área urbana sobre a área rural do município.

Em um primeiro momento, fica evidente o afastamento da participação popular de forma presencial, limitando o debate acerca do planejamento urbano por meio do olhar do cidadão urbano. Em vista desses fatores, o Ministério Público de Goiás (MPGO), em dezembro de 2021, pediu a suspensão do procedimento de revisão do Projeto de Lei Complementar 23/2019, referente ao Plano Diretor de Goiânia, que estava em tramitação na Câmara dos Vereadores, argumentando irregularidades no processo legislativo pre visto no Estatuto da Cidade, como a ausência do parecer geral do Conselho Municipal de Política Urbana (Compur), a baixa publicidade das audiências públicas e a pouca transpa rência do diagnóstico para população (Estado De Goiás, 2022).

A polêmica em torno do novo Plano Diretor também envolve a contratação do Instituto de Desenvolvimento Tecnológico do Cen tro-Oeste (ITCO) para prestar serviços de consultoria e assessoria técnica na análise do projeto de lei, uma vez que o relatório da empresa sugere a retirada de tratativas e pontos originalmente elaborados pela Secre taria Municipal de Planejamento e Habitação (Seplanh). Em nota, o CAU/GO manifestou a preocupação de como a Câmara recebeu e conduziu o projeto, especialmente em relação à responsabilidade técnica da empresa de consultoria contratada, à falta de clareza nas propostas e sua correlação com os mapas e à efetividade do instrumento de participação popular, tendo em vista a baixa divulgação das audiências públicas e a ausência de trans parência na condução do processo “a partir da formação de grupo de trabalho fechado (Decreto nº1.482 de 18 de fevereiro de 2021) que ignorou a solicitação de Associações de Moradores e entidades para que o debate fosse ampliado” (Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás - CAU/GO, 2022)1 .

Diante do contexto atual, encontra-se uma governança urbana condicionada cada vez mais ao empresariamento das cidades que, em maior ou menor grau, atua no “esvazia mento progressivo de todas as categorias do direito público” (DARDOT & LAVAL, 2016, p. 378) ou, por assim dizer, na hegemonia do direito privado. No que diz respeito às políti cas públicas urbanas, Alves (2018) constata que o Estado é, em grande medida, gestor e

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promotor da reprodução do capital por meio da produção do espaço urbano: ao definir localizações e áreas urbanas atrativas para aplicação do capital financeiro e, ao mesmo tempo em que flexibiliza legislações de uso e ocupação do solo, visa essencialmente a ampliação da base social para o processo de acumulação.

Em termos de legislações urbanísticas, o plano diretor é o principal instrumento pre visto na Constituição Federal , sendo regido pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10257/2001), o qual tem a função de orientar a política de desenvolvimento e expansão urbana e a capacidade de transformar a realidade das cidades. O instrumento é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, o que corresponde a 1.784 municípios brasilei

ros (IBGE, 2019), e as gestões municipais devem revisá-lo a cada dez anos. Entretanto, o poder público de cada cidade deve levar em consideração uma gestão democrática que, de acordo com a Constituição Cidadã e com o Estatuto da Cidade, deve garantir a efetiva participação e colaboração dos cidadãos no processo de revisão dos pla nos diretores.

O caso de Goiânia demonstra que a aprovação do novo Plano Diretor corrobora a ausência de um compromisso social efe tivo, um direito previsto por lei no Estatuto da Cidade, ferindo a própria Constituição Federal. O que se observa é a inclusão de grupos hegemônicos nos processos de tomada de decisão política e no planeja mento urbano, e a consequente exclusão de

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grupos historicamente menos favorecidos. Assim, Goiânia se conforma à dicotomia de estruturas exclusivas e excluídas, uma cidade espraiada com enorme quantidade de vazios urbanos em áreas dotadas de infraestrutura, de segregação socioespacial e desigualdade. Afinal, para quem é o novo Plano Diretor de Goiânia? ✗

LARA STIVAL GARROTE ARQUITETA E URBANISTA, MESTRANDA EM TEORIA E HISTÓRIA DA ARQUITETURA E DO URBANISMO PELO IAU-USP, PESQUISADORA DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO AMBIENTE URBANO CONTEMPORÂNEO (LEAUC) - EIXO DE PESQUISA CONFORMAÇÕES ESPACIAIS URBANAS. PÓS-GRADUADA EM HABITAÇÃO E CIDADE PELA ESCOLA DA CIDADE – SP (2021). MEMBRO DA ASSOCIAÇÃO DE PÓS-GRADUANDOS USP-SÃO CARLOS (GESTÃO 2022-2023).

REFERÊNCIAS

ALVES, M.R. Vertical urbanisms and the regulatory production of “urban volumes”. Urban Affair Association 2018 Meeting, Toronto, 2018.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

ESTADO DE GOIÁS. Ministério Público.  Mpgo Recomenda suspensão de audiências Públicas nesta Semana para debater alteração do Plano Diretor de Goiânia Disponível em: ↗ mpgo. mp.br/portal/noticia/mpgo-recomendasuspensao-de-audiencias-publicas-nestasemana-para-debater-alteracao-do-planodiretor-de-goiania. Acesso em: 22 jul. 2022.

Lei Complementar N° 349, de 04 de Março de 2022 (Município). “Dispõe sobre o Plano Diretor e o processo de planejamento urbano do município de Goiânia e dá outras providências.” Diário oficial, 2022. Goiânia.

1 A íntegra da nota disponibilizada pelo CAU-GO pode ser lida em: ↗ caugo.gov. br/o-cau-go-se-mantem-atento-aoandamento-do-plano-diretor-de-goiania/

Verticalização no Setor Jardim Goiás. @ LARA STIVAL GARROTE, 2022.
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Democracia, dissenso e espaço público

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¶ ATUALMENTE, EM MEIO ÀS CRISES que se desenrolam nos mais diversos setores da sociedade, crise econômica, política, social, ambiental, vivemos um cenário de constante instabilidade. Em especial no Brasil, com uma governança que não cumpre de forma mini mamente satisfatória suas funções e, ainda, atua como mais um vetor de desestabilização com suas ações contrárias aos interesses e bem-estar da população geral. Manchetes que denunciam uma “ameaça à democracia” se tor naram mais comuns recentemente. Discursos políticos que atacam os direitos constitucionais conquistados ao longo dos anos propagam ideais antidemocráticos e colocam em risco nossos direitos fundamentais. Evidências da fragilidade do regime democrático, não só no Brasil, mas também nos países que passam por um levante da extrema-direita, são aspectos característicos da crise política em que estamos mergulhados. Ainda estamos em um regime democrático?

Diante da situação atual, em que o próprio entendimento acerca da democracia é questionado, faz-se necessário refletir sobre os processos de conformação da sociedade contemporânea e revisitar os conceitos fundamentais de nossa construção social. Este ensaio pretende estabelecer algumas relações importantes entre democracia e espaço públi co, entendendo algumas das transformações sociais que contribuíram para a configuração do cenário atual, as expressões democráticas contemporâneas e quais os caminhos possí veis com vistas a um futuro mais equitativo.

Para Brash (2019), legitimidade e espaço público são precondições da democracia. A noção de legitimidade, por essência, dinâmica, múltipla e contestada, é a constante discussão sobre o que é ou não legítimo e é, sobretudo, a “pedra angular” da democracia. O espaço públi co, além de expressão física da democracia, já que é o espaço que possibilita o encontro dos cidadãos, evidencia outras preocupações democráticas para além de sua fisicalidade: questões como inclusão e diversidade, direito à cidade, acessibilidade, desigualdade social e econômica, questões que colocam em xeque quais são os grupos que têm ocupado espaço dentro da cidadania democrática e que acabam por definir as formas como a cidade é com preendida e vivida. Assim, o espaço público teria um duplo caráter, ao mesmo tempo que é veículo para reivindicação da legitimidade, servindo como meio para a legitimidade ser construída e desafiada, é também necessá rio que o próprio espaço seja legitimado em relação às noções de democracia.

A relação democracia - espaço público –legitimidade é enfatizada por Deutsche (1996 apud BRASH, 2019, p. 115, tradução nossa): “o que é reconhecido no espaço público é a legitimidade do debate sobre o que é legítimo e o que é ilegítimo”. Sendo assim, o que torna um espaço público democrático é seu papel

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enquanto local para conflitos entre projetos legitimadores, que estão em constante desacordo e disputa, possibilitando diálogo e choque de ideias divergentes que se encontram em um lugar comum. Mais temido, portanto, deveria ser a ausência do dissenso. Conceituações rígidas e excludentes sobre a legitimidade, como a noção de que o poder estatal serve um único papel legítimo, impulsionam populismos autoritários contemporâneos. Assim, para os autores Deutsche (1996) e Brash (2019), tentativas de unificação de processos distintos, buscando alcançar uma homogeneidade, e a resolução desses conflitos são o que ameaçam a democracia. A legitimidade democrática da divergência deve ser reconhecida e incorporada como um sinal positivo.

Na contramão da valorização do dissenso, vemos a configuração de uma sociedade que busca encontrar e estabelecer vínculos entre iguais ao passo que rejeita o diferente. Sennett (1989) aponta que um dos aspectos das transformações sociais e espaciais da contemporaneidade é a perda da civilidade. Para o autor, passamos por um processo de perda da capacidade de interação com outro de forma positiva, causado, principalmente, pelo medo crescente da intervisibilidade com estranhos. Assim, passamos a desaprender as formas e mecanismos de convívio e interação com aqueles que são estranhos, desconhecidos, imprevi síveis. A falta de capacidade de arranjar-se diante de um outro que é díspar se transforma em medo e aversão a este, gerando, então, uma repulsa ao diferente. Se a civilidade, enquanto pressuposto para exercício da democracia, não é exercida, nossa capacida de de configuração de espaços públicos é significativamente reduzida, logo, os espaços acabam por se tornar homogêneos e excludentes, colocando em questão a própria legitimidade destes.

Desse modo, evidencia-se a contraposição existente entre homogeneização e espaços democráticos. A supressão do dissenso e conflito como parte fundamental da constituição de espaços públicos democráticos são a grande ameaça à democracia. Incen tivar a pluralidade e o embate de ideias, num sentido contrário à pacificação e unificação do pensamento coletivo, reforçaria em si a essência da democracia.

Se visamos à construção de uma sociedade justa e equitativa, na qual parte-se do pressuposto da existência de diferentes realidades e de condições particulares a cada indivíduo e, ainda, em que visamos criar iguais possibilidades de acesso a todos, é essencial aceitar as diferenças de cada grupo e corpo social e também saber interagir e dialogar com essas especificidades. Portanto, faz-se fundamental reivindicar a existência de espaços

públicos que possibilitem o encontro entre os diferentes e, sobretudo, prezem pela presen ça constante e essencial da divergência de discursos e ideias. Assim poderemos asse gurar a manutenção da democracia enquanto meio possível para a construção conjunta de futuros mais dignos, equitativos e justos para todos. ✗

HELOISA ALEXANDRE CIZESKI É ARQUITETA E URBANISTA PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ (UEM), MESTRANDA EM TEORIA E HISTÓRIA DA ARQUITETURA E DO URBANISMO PELO IAU-USP, PESQUISADORA DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO AMBIENTE URBANO CONTEMPORÂNEO (LEAUC), ATUANTE NO EIXO DE PESQUISA CONFORMAÇÕES ESPACIAIS URBANAS. INTEGRANTE DA COMISSÃO DE CULTURA E EXTENSÃO DO IAU-USP, DA COMISSÃO ORGANIZADORA DO CICLO DE CINEMA E DEBATE URBANICIDADES, DO BRCIDADES NÚCLEO MARINGÁ, MEMBRO DA ASSOCIAÇÃO DE PÓS-GRADUANDOS USP-SÃO CARLOS (GESTÃO 2022-2023) E EDITORA DA REVISTA POSTO68

REFERÊNCIAS

BRASH, J. Public Space, Legitimacy and Democracy. In Urbanities, vol.09 supplement 02, p.111-118. International Urban Symposium, 2019.

DEUTSCHE, R. 1996. Evictions: Art and Spatial Politics. Cambridge, MA: MIT Press.

SENNET, R. O declínio do homem público: As tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araujo. 2ª. ed. São Paulo: Editora Schwarcz, 1989.

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TAPUME → MARIANA COSTA MAIA SILVEIRA → Habitats Invisíveis: Os cortiços da cidade de Santos 37 DEMOCRACIA
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COSTA MAIA SILVEIRA
TAPUME → MARIANA
→ Habitats Invisíveis: Os cortiços da cidade de Santos 39 DEMOCRACIA

Sobre os sentidos da participação: ‘gestão da vida’ ou ‘alternativa democrática’

POR RAFAEL GOFFINET DE ALMEIDA E FÁBIO LOPES DE SOUZA SANTOS
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¶ QUANDO DISCORRE SOBRE o “horizonte de expectativas decrescentes” em que vive mos, Paulo Arantes (2014) tem como um de seus principais argumentos o esvaziamen to do significado político da participação social, pelo menos enquanto horizonte de transformação alçado à vista de intelectuais, artistas e sociedade civil organizada desde os anos 1960. A certa altura, recorda o alerta de Ermínia Maricato em “Nunca fomos tão participativos” (2007 apud ARANTES, 2014, p. 430): “Nós batemos no teto. Nós batemos no teto da produção acadêmica. Nós batemos no teto dos movimentos sociais, nós batemos no teto das estruturas democráticas”. O que aparecia como limite das práticas participa tivas sob a chamada “Nova Cidadania”, que havia norteado a redemocratização do Brasil entre os anos 1980-90, era também um dos enunciados para a formação do que Arantes chamou de “tecnologias sociais de desmo bilizar mobilizando o corpo dos governados” (2014, p. 430). Pois, de fato, na primeira década deste século, vimos surgir um sem número de políticas sociais funcionando como dis positivos de “gestão da vida”, na acepção de Cibele Rizek, uma tecnologia de poder que naturaliza o empresariamento, inclusive entre populações dos chamados territórios da precariedade, despolitizando horizontes de vida na cidade (2011, p. 129).

Na tarefa a que Ermínia Maricato não se furtou, como sabemos, a de “reinventar a luta” (apud ARANTES, 2014, p. 431), propo mos recuperar o conceito de “confluência perversa” discutido por Evelina Dagnino em artigo de 2004. Nele, nos deparamos com a disputa político-cultural entre “projeto político democratizante” e “projeto neoliberal” que marcou o aprofundamento da democracia entre meados de 1980 e início dos anos 2000. Ao distinguir os significados políticos da par ticipação atribuídos por um e outro projeto, permite espiarmos tanto a centralidade que os processos participativos ocupam na expansão de certa racionalidade neoliberal, quanto os caminhos alternativos diante das urgências atualmente impostas pelo aprofundamento das desigualdades sociais agravadas pelo colapso ambiental.

Em primeiro lugar, Dagnino demonstra como a “autonomia da sociedade civil”, subjacente à luta dos movimentos populares urbanos, converteu-se na “ação conjunta com o Esta do” (2004, p. 100). Se o “questionamento do Estado como lugar e instrumento privilegiado das mudanças sociais”, como se referiu Eder Sader (1988, p. 33), desafiava a ordem social vigente (autoritária), no momento seguinte, a auto-organização da sociedade civil passou a ser canalizada pela “institucionalização da participação”. É nos novos espaços institu cionais da participação – como a pioneira política de Orçamento Participativo, em Porto Alegre, ou o FUNAPS-Comunitário, progra ma de mutirões autogeridos de produção de moradias, em São Paulo, ambos de 1989 – que Dagnino localizou a disputa político-cultural. A “participação junto ao Estado” deu cabo, por exemplo, ao fortalecimento de ONGs e entida des do Terceiro Setor, constituindo-se como os “interlocutores confiáveis” em detrimento de organizações populares que representariam a politização desta interlocução.

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A consequência mais dramática, expressão de Dagnino, recaiu sobre o próprio conceito de cidadania. A despolitização da luta por direitos, convertida em serviços oferecidos por meio de parcerias entre Terceiro Setor, agências internacionais de financiamento e o Estado, reorientou a política cultural dos movimentos sociais na direção de um hori zonte privatista e individualista. Eis o ponto crucial da análise de Dagnino, quando sintetiza a distinção ético-política posta em questão. De um lado, a estratégia político-cultural da “nova cidadania” representava o “projeto de uma nova sociabilidade” (2004, p. 105). Vale recordar, brevemente, como a forma do mutirão autogerido baseava-se na conscientização para a construção de um outro espaço social, com outra compreensão sobre as relações de trabalho e também das formas de morar e de vida em comunidade. Ou seja, “a participação efetiva dos cidadãos no poder” e a “afirmação e o reconhecimento de direitos” pressupu nha certa “prática de invenção de uma nova sociedade” (2004, p. 104). A conformação de uma “cidadania neoliberal”, por outro lado, rea lizava uma sedutora conexão entre cidadania e mercado, aproximando o acesso à moradia, educação, saúde, saneamento básico e a noção de uma vida digna na cidade ao terreno priva do da moral. Neste movimento, a emergência do voluntarismo e da filantropia espelham a redução do horizonte coletivo do “direito a ter direitos” em mera integração individual ao mercado. (2004, p. 105-106).

Parece urgente, portanto, desvencilhar mos dessa armadilha, procurando o que os discursos e práticas da participação podem representar como construção coletiva e uni versalista de direitos de uma outra cidade. A ponte para os atuais problemas da moradia, no momento em que à complexidade fundiária se associa a trágica realidade das catástrofes climáticas, ainda que mereçam ser aprofun

dadas, indica alguns novos horizontes para pensarmos seu enfrentamento. Ela recompõe o debate sobre o papel social da Arquitetura e Urbanismo no compasso da urgente reto mada do planejamento urbano e habitacional, sobretudo enquanto arena pública onde o desequilíbrio de forças entre coletividade e interesses privados deve ser combatido.

Nessa esteira, a atuação dos escritórios de assistência técnica despontaria como impor tante ferramenta para a configuração de um campo de inserção profissional que, próximo às demandas populares, se comprometesse com a construção de uma cidade mais justa e democrática. Uma lição que aprendemos das críticas à participação social, porém, exige um último alerta. Afinal, permanece o risco do engajamento com associações de mora dores e movimentos populares mascararem as razões estruturais que produzem o tecido urbano desigual e precário sob a aparên cia participativa das ações compensatórias, individualistas e imediatistas. A participa ção social como prática arquitetônica não deve perder de vista a constituição de uma ampla política pública de habitação, tarefa que recuperaria a dimensão do dissenso político, evitando as lógicas do pensamento único empresarial e da pacificação. ✗

RAFAEL GOFFINET DE ALMEIDA ARQUITETO E URBANISTA, MESTRE E DOUTORANDO NO IAU.USP-SÃO CARLOS, ONDE DESENVOLVE PESQUISAS ENTRE OS CAMPOS DA ARTE, CULTURA E CIDADE. TAMBÉM ATUA COMO DOCENTE NO CENTRO UNIVERSITÁRIO MOURA LACERDA-RIBEIRÃO PRETO.

FÁBIO LOPES DE SOUZA SANTOS PROFESSOR DOUTOR DO IAU.USP-SÃO CARLOS E MEMBRO PESQUISADOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS DAS ESPACIALIDADES CONTEMPORÂNEAS, ATUANDO ESPECIALMENTE NO CAMPO DE INTERLOCUÇÃO ENTRE ARTE, DESIGN, ARQUITETURA E CIDADE CONTEMPORÂNEA.

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REFERÊNCIAS

ARANTES, Paulo Fiori. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.

DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? Caracas: Faces, 2004, p. 95-110.

RIZEK, Cibele Saliba. Práticas culturais e ações sociais: novas formas de gestão da pobreza. XIV Encontro Nacional da ANPUR. Rio de Janeiro, 2011, p. 127-142.

SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. São Paulo: Paz e Terra, 1988.

Ocupação Em Busca de um Sonho, São Carlos-SP, 2018. FONTE: MARCEL FANTIN/MAITÁ-ATHIS
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Cadê as transvyadas que estavam aqui?

1 Ver “Xica Manicongo: a transgeneridade toma a palavra”. Disponível em: ↗ tinyurl.com/3myz2van.

Acesso em: 23 jul. 2022.

2 Ver “O diabo em forma de gente: (r)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação”.

Disponível em: ↗ tinyurl.com/3mp2k499

¶ A EXISTÊNCIA DE ESCRITOS tratando das territorializações de pessoas com corpos, afetividades e sexualidades dissidentes das vivenciadas por pessoas cis-hétero não é uma novidade. Desde a escrita naturalista da literatura encontrada em Bom Crioulo no final do século XIX por Adolpho Caminha, passando pelos textos jornalísticos das edições do Jornal Lampião da Esquina, Chana com Chana a partir da década de 1970, e chegando aos artigos científicos na contemporaneidade escritos por pesquisadoras das ciências humanas e sociais aplicadas como Jaqueline Gomes de Jesus1, Megg Rayara Gomes de Oliveira2, muitas são as formas de narrar vidas LGBTQIA+ na sociedade brasileira e sua organização política para a conquista de direitos civis por meio de coletivos e associações.

Esse acúmulo de reflexões tem sido benéfico a todas as áreas do conhecimento. Contudo, entre os anos de 2020 e 2021, ao desenvolver uma iniciação científica — voltada ao estudo das experiências de acolhimento habitacional para pessoas LGBTQIA+ expulsas de suas casas ou em situação de rua — nos deparamos com uma situação curiosa ao montar o estado da arte de nosso relatório: embora tivéssemos uma série de trabalhos dedicados a tratar de gênero e sexualidade no Brasil, a maioria deles eram da pedagogia, ciências sociais, psicologia, história e áreas afins.

Costurando um panorama de pesquisa e extensão sobre o estudo do corpos, sexualidades e afetividades dissidentes em Urbanismo e Arquitetura
POR MATHEUSA SILVA NASCIMENTO RODRIGO OLIVEIRA MATO GROSSO PEREIRA
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Diante disso, duas perguntas flutuavam sobre nossas cabeças: são poucos os escritos de urbanistas tratando sobre a cidade vivenciada pela população LGBTQIA+?

No intuito de responder a essa pergun ta realizamos um breve levantamento de trabalhos no âmbito da graduação e pós -graduação em Urbanismo e Arquitetura que tivessem como espinha dorsal de suas investigações os territórios ocupados por pessoas de sexualidades, afetividades e iden tidades de gênero dissidentes e as relações estabelecidas neles (festas, celebrações, habitação, organização política, etc.) com o objetivo de saber, quantitativa e qualita tivamente, como se dá a produção textual e elaboração acadêmica nesse tema. Para tanto, elaboramos alguns critérios na seleção dos trabalhos para que o estudo tivesse uma escala de abrangência territorial, temporal, e de formato, sendo eles:

O trabalho deveria tratar de casos de estudo locali zados no Brasil e estar publicado até o momento de construção desse texto;

Pelo menos uma das pessoas envolvidas na escrita do texto deveria ter formação em Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Territorial ou Urbanismo;

O trabalho deveria estar enquadrado nos possíveis formatos: artigo completo publicado em evento, site ou revista, monografia, dissertação de mestrado, tese de doutorado, livro ou capítulo de livro;

Estabelecido os critérios, mapeamos os trabalhos utilizan do as seguintes fontes de informação: base de currículos da Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), plataforma Google acadêmico pesquisando pelos termos “planejamento”, “urbanismo”, “direito à cidade” e “espaços LGBTQIA+”, e as páginas dos projetos Arquitetura bicha e Cidade Queer. O resultado pode ser observado no quadro abaixo:

Vamos à breve análise dos dados. Ao todo, foram encon trados 39 trabalhos escritos entre 2008 a 2022. Embora pareça, num primeiro olhar, um volume considerável de estudos, muitas das produções são escritas pelos mes mos autores, indicando a predominância de um grupo específico de pesquisadoras e pesquisadores sobre a temática à nível nacional. Quanto ao recorte temporal, observamos que 67% (ou 26 trabalhos) foram escritos nos últimos 04 anos, ou seja, o aumento de publicações sobre o tema é algo recente.

Já em relação ao recorte temático observamos duas tendências. A primeira é de que predominam os estudos sobre os espaços de sociabilidade de pessoas LGBTIQA+ no espaço urbano (bares, saunas, largos, praças, cinemas, etc.) e memória social, representando 69% do total de escritos (ou 27 trabalhos). Em seguida, com 25% (ou 9 trabalhos), estão os trabalhos que abordam violência doméstica, expulsão de pessoas LGBTIQA+ de seus lares, e experiências de acolhimento habitacional. Por fim, quanto ao formato do trabalho, observamos a predominância dos

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artigos completos publicados em revistas, anais e sites, 19 no total, seguidas de 09 monografias de conclusão de curso, 07 dissertações de mestrado, 02 teses de doutorado e dois capítulos de livro.

A natureza da publicação traz um dado interessante nas entrelinhas quanto ao perfil de quem está por detrás da escrita dos textos. Fazendo um cruzamento dos dados de publicação com o currículo Lattes disponível de cada autora e autor, identificamos que boa parte dos textos foram desdobramentos diretos de projetos de pesquisa em graduação (via iniciação científica) ou pós-graduação stricto sensu, sinalizando que os estudos partem de con dições materiais estabelecidas para além do ensino em sala da sala. Para ilustrar essa pontuação construímos o quadro a seguir:

De fato, dos 18 projetos encontrados entre os anos de 2003 e 2022, 12 tiveram envolvimento de pelo menos uma autora ou autor do quadro 01; são números desafiadores que nos auxiliam a juntar o “lé com cré” para compreender a concentração de textos em algumas e alguns autores desse quadro. A resposta é simples: aquelas e aqueles que conseguiram o suporte de um projeto de pesquisa ou iniciação científica publicaram mais; as/os que não conseguiram pararam em uma única publicação.

A temática LGBTQIA+ na Arquitetura e no Urbanismo não pode ser uma excepcionalidade, precisa ser uma prer rogativa. A Constituição Federal prevê em seu artigo 5° a igualdade de direitos perante todas as pessoas, brasileiras ou estrangeiras. Crimes de homotransfobia são, desde 2019, equiparáveis a crimes de racismo, estabelecidos pela lei n° 7.716/1989. De 2006 até o momento, foram homologadas pela Câmara de Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE), vinculado ao Ministério da Educação (MEC), três resoluções que dão as diretrizes do ensino em Arquitetura e Urbanismo no Brasil; na última aprovada em 2021, é previsto o campo do saber dos estudos sociais e econômicos. Diante do exposto, o que não faltam são parâmetros legais que possam nortear possíveis justificativas em projetos pedagógicos.

Num país como o Brasil, onde crimes contra a comunida de LGBTQIA+ são recorrentes, tratar deste tema de modo

a preparar futuros profissionais arquitetos e/ ou urbanistas se torna uma tarefa promissora e necessária. Sim, ainda são poucos os escritos de urbanistas tratando dos corpos, afetos e sexualidades dissidentes. Contudo, existem avanços em pleno andamento na graduação e na pós, projetos e textos os quais ainda não mencionamos. Garantir que o corpo estudantil consiga desenvolver iniciações científicas e projetos de extensão e dar vazão a esse deba te na sala de aula certamente potencializará mais escritos, consolidando pouco a pouco a discussão. ✗

MATHEUSA SILVA NASCIMENTO: TRAVESTI; É GRADUANDA EM URBANISMO PELA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA (UNEB). NESSA UNIVERSIDADE, COMPÕE O GRUPO DE PESQUISA E EXTENSÃO “DIREITO À CIDADE” (GPDAC), ENTRE OUTRAS ARTICULAÇÕES. POR FIM, COMPÕE ATUALMENTE O CORPO DIRETOR DA FEDERAÇÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES DE ARQUITETURA E URBANISMO DO BRASIL (FENEA).

RODRIGO OLIVEIRA MATO GROSSO PEREIRA HOMEM CIS GAY; É GRADUANDO EM URBANISMO PELA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA (UNEB), ONDE COMPÕE O GRUPO DE PESQUISA E EXTENSÃO “DIREITO À CIDADE” (GPDAC). REPRESENTA A FENEA NO FÓRUM DE ENTIDADES EM DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO (FEDPCB) - SEÇÃO BAHIA.

REFERÊNCIAS

GREEN, James N.; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa. (Orgs.). História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Editora Alameda, 2018. MOASSAB, Andréia; NAME, Leo. (Orgs.). Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo Foz do Iguaçu: EdUnila, 2020.

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QUADRO 01

Memória LGBT nas cidade do Rio de Janeiro e São Paulo, Mateus Atalla, 2022 ↗ tinyurl.com/2p8hsyxz,

Direito à cidade LGBTI+ A política do estar e aparecer em público, Gabriel Santiago Pedrotti, 2022 ↗ tinyurl.com/bdf7jrdx,

Casa 1, a site of LGBTQ memory in São Paulo, Brazil, Artur de Souza Duarte e Renato Cymbalista, 2022 ↗ tinyurl.com/4e7d2ryu

A praça é queer? Ocupações, sociabilidades e territorialidades da população LGBTQIA+ na área central de João Pessoa, Igor Vinícius Mendes de Araújo Neves e Marcela Dimenstein, 2021 ↗ tinyurl.com/3dusn65w

Drag queens em banheiros públicos coletivos e ruas de Foz do Iguaçu: cartografias de corpos dissidentes em lugares transientes, Mateus Garcia Spindula, Leo Name e Andréia Mossab, 2021 ↗ tinyurl.com/35t284rk

Ao encontro do corpo: teorias da performatividade para um debate diferencial sobre o espaço urbano, Rossana Brandão Tavares e Mariana Galacini Bonadio, 2021 ↗ tinyurl.com/5n6z5ycc

Um equipamento LGBTQ em rede: a Casa 1 e as alianças no Bixiga, São Paulo, Artur de Souza Duarte e Renato Cymbalista, 2021 ↗ tinyurl.com/4mj7rd6a

Enviadescer: a Casa 01 e a ancoragem LGBTQ no Bixiga, São Paulo, Artur de Souza Duarte, 2021 ↗ tinyurl.com/2p8n5e92

Gênero e sexualidade na teoria da arquitetura, Jaime Solares Carmona, 2021 ↗ tinyurl.com/3pmvy754

Corpos dissidentes, lares desviantes: gênero e sexualidade na configuração do lar, Fernanda Bueno Galloni, 2021 ↗ tinyurl.com/49x2z9rf

Perten(s)er: a experiência de assessoria técnica para uma casa de acolhimento LGBTQ+ e intervenção urbana, Pablo Sales de Rosa, 2021 ↗ tinyurl.com/avrw75vw

Cidade-incubada: apropriação do espaço urbano pela população travesti e transexual no município de Arapiraca, João Felipe Amorim Oliveira, 2021 ↗ tinyurl.com/43tthxaw

Queremos contar nossas histórias: o museu da diversidade sexual e caminhos para existências diversas, Neno Loschi, 2021 ↗ Não localizamos o link de acesso

Como projetar uma casa de acolhida LGBT?, Artur de Souza Duarte, 2020 ↗ tinyurl.com/mvu85chc

Memória LGBT nas cidade do Rio de Janeiro e São Paulo a partir do jornal Lampião da Esquina, Mateus Atalla, 2020 ↗ Não localizamos o link de acesso

Memória LGBTQIA+ Paulista, João Henrique Suzuki Antonelli, 2020 ↗ Não localizamos o link de acesso

A Casa 1 e a resistência à gentrificação em São Paulo, Artur de Souza Duarte e Renato Cymbalista, 2019 ↗ tinyurl.com/bddbbky9

Cartografias alternativas decoloniais: Gênero, sexualidade e espaços em universidade em área transfronteiriça, Leo Name e Oswaldo Francisco Freitez Carrillo, 2019 ↗ tinyurl.com/ywp4fnxs

Não só moradia: A Casa 1, suas estratégias espaciais, e o fortalecimento da vizinhança em diálogo com a militância LGBT, Artur de Souza Duarte e Renato Cymbalista, 2019 ↗ tinyurl.com/ycyjx9b4

Direito à cidade, território e territorialidade no centro de São Paulo (1988-2018), Maiara Sanches Leite, 2019 ↗ tinyurl.com/ysnsdkx6

Espaço Urbano e subversão pela existência corporificada queer em Uberlância/MG, Cassio Henrique Neves Mota, 2019 ↗ tinyurl.com/3k297xz9

A praça é queer? Ocupações, sociabilidades e territorialidades da população LGBTQIA+ na área central de João Pessoa, Igor Vinícius Mendes de Araújo Neves, 2019 ↗ tinyurl.com/mrxf5jzz

Casassa: a relevância de um centro de acolhimento para jovens LGBT marginalizados na cidade de Presidente Prudente-SP, Felipe Gasquez de Morais, Maria Gabriela Salvino Contre, Moisés Henrique dos Santos Leonel, Yeda Ruiz Maria, Victor Martins de Aguiar, 2018 ↗ tinyurl.com/w89bz5nd

Espaços de excitação: breve trajetória do pornô nas salas de cinema no Brasil, João Soares Pena, 2018 ↗ tinyurl.com/jczp83jd

As meninas entraram na casa pra ficar - Corpos, marcas e narrativas: história(s) e disputas da Casa Nem, Luiza Borges Ferraz Barbosa, 2018 ↗ tinyurl.com/2pb6rn7r

Relação preliminar de produções textuais de arquitetas/os/es e urbanistas que vão abordar sobre a população LGBTQIA+.
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Ligadonas na tomada do cool da madrugada: drag queens e a violência de gênero em sanitários de bares e casas noturnas de Foz do Iguaçu, Mateus Garcia Spindula, 2018 ↗ tinyurl.com/62fr995j

"Preta, pobre e puta": A segregação urbana da prostituição em Campinas, Diana Helena Ramos, 2015 ↗ tinyurl.com/2mkd63y8

Espaces d' excitation: cinémas pornos dans le centre de Salvador (Brésil), João Soares Pena, 2014 ↗ tinyurl.com/vam4am53

Cidade, cinema e práticas sexuais em Salvador: pistas para um urbanismo a contrapelo, João Soares Pena, 2013 ↗ tinyurl.com/4ay7atyc

Presença incômoda : corpos dissidentes na cidade modernista, Marcelo Augusto de Almeida Teixeira, 2013 ↗ tinyurl.com/2j9j43kp

Espaços de excitação: cines pornôs no centro de Salvador, João Soares Pena, 2013 ↗ tinyurl.com/2p9s77vk

Cidades-sensuais: práticas sexuais desviantes x renovação do espaço urbano, Eduardo Rocha Lima, 2012 ↗ tinyurl.com/57fz26nc

Cinemas pornôs no Centro Histórico de Salvador: uma questão de patrimônio, João Soares Pena, Laila Bouças, Yasmin Cerqueira e Eduardo Nunes, 2010 ↗ Não localizamos o link de acesso

Espaços de sociabilidade homossexual em Salvador: há um gueto gay?, Érico Silva do Nascimento, 2010 ↗ tinyurl.com/47abu7rh

Territórios LGBT em Salvador - usos do espaço, sociabilidade e violência, Érico Silva do Nascimento, Osvaldo Fernandez e Marco Antônio Matos Martins, 2010 ↗ tinyurl.com/2eve935n

Cinemas pornôs no Centro Histórico de Salvador, João Soares Pena, Laila Bouças, Yasmin Cerqueira e Eduardo Nunes, 2010 ↗ Não localizamos o link de acesso

Investigação sobre violência contra pessoas LGBT em seus territórios em Salvador: noções preliminares, Érico Silva do Nascimento, Marco Antônio Matos Martins e Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez, 2010 ↗ Não localizamos o link de acesso

Cinemas de rua: um panorama sobre os cines pornôs do Centro Histórico de Salvador, João Soares Pena, Laila Bouças, Yasmin Cerqueira e Eduardo Nunes, 2009 ↗ tinyurl.com/3ftk23vp

Mapeamento de território e circuitos homossexuais em Salvador: há um gueto gay?, Érico Silva do Nascimento, 2008 ↗ Não localizamos o link de acesso

FONTE: MATHEUSA SILVA NASCIMENTO E RODRIGO OLIVEIRA MATO GROSSO PEREIRA (2022).

QUADRO 02 Relação preliminar de projetos de pesquisa e extensão sobre a população LGBTQIA+ em Urbanismo e Arquitetura.
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A cidade como extensão da casa: espaços livres, vida cotidiana e questões de gênero e sexualidade em um conjunto habitacional de Maceió, Alagoas, Diana Helene Ramos (Professora orientadora), Iniciação científica, 2020, Universidade Federal do Alagoas (UFAL)

A cidade como extensão da casa: sistemas de espaços livres e vida cotidiana, Diana Helene Ramos (Professora orientadora) Projeto de pesquisa, 2019-Atual, Universidade Federal do Alagoas (UFAL)

Trans Habitar a cidade, Eduardo Rocha Lima (Professor coordenador), Projeto de extensão, 2021, Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Cartografia sexuada de Salvador, Eduardo Rocha Lima (Professor coordenador), Projeto de pesquisa e iniciação científica, 2018-Atual, Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Corpos, sexualidades, experiências urbanas, , Projeto de extensão, 2018,

Cartografias do arco-íris: homoafetividades e homofobias na área transfronteiriça de Foz do Iguaçu, Puero Iguazú e Ciudad Del Este, Leo Name (Professor coordenador), Iniciação científica, 2015-2016, Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA)

Cinema pornô no Centro Histórico de Salvador, João Soares Pena, Laila Bouças, Yasmin Cerqueira e Eduardo Nunes, Projeto de pesquisa, 2009-2010, Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Crimes Homofóbicos no Brasil: panorama e erradicação de assassinatos e violência contra GLBT, 2000-2007, Eduardo Rocha Lima, Érico Silva do Nascimento, Marco Antônio Matos Martins e Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez, , 2008-2011, Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Crimes Homofóbicos na Bahia, Eduardo Rocha Lima, Érico Silva do Nascimento, Marco Antônio Matos Martins e Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez, Projeto de pesquisa, 2008-2009, Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Mapeamento dos Territórios e Circuitos Homossexuais em Salvador, Érico Silva do Nascimento, Projeto de pesquisa, 2003-2006, Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

AIDS, gênero e desenvolvimento: uma contribuição do protagonismo juvenil para a redução da Vulnerabilidade Social relativa à desigualdade de gênero, cor/etnia e orientação sexual, Érico Silva

do Nascimento, Marco Antônio Matos Martins e Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez, Projeto de extensão, 2003-2008, Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

As casas de passagem LGBTQIA+ e a luta pelo direito à cidade decolonial, transgênero e sexualmente diverso, Lysie dos Reis Oliveira (Professora orientadora), Iniciação científica, 2020-2021, Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Ocupa Kaliça: Arquitetura, narrativas e direito à cidade para a população LGBTQIA+, Daniele Caron (Professora orientadora), Projeto de extensão, 2021-Atual, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Reforma arquitetônica e direito à moradia para a população LGBTQIA+ na ocupação Kaliça, Daniele Caron (Professora orientadora), Projeto de extensão, 2020-2021,

Transformações em territórios de sociabilidade LGBT: Revisitando o modelo de Collins sobre o Largo do Arouche em São Paulo, Paula Freire Santora (Professora orientadora), Iniciação científica, 2020-Atual, Universidade de São Paulo (USP)

Cidade, gênero e interseccionalidades, Juliane Bellot Rolemberg Lessa (Professora orientadora), Projeto de pesquisa, 2018-Atual, Universidade São Judas Tadeu (USJT)

Análise de espaços públicos de representatividade para a recuperação do direito à cidade da comunidade LGBTI+ no centro de Florianópolis, Lucas de Mello Reitz (Professor orientador), Projeto de pesquisa, 2019-2020, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Cidades inclusivas, Juliane Bellot Rolemberg Lessa (Professora orientadora), Projeto de extensão, 2020-Atual, Universidade São Judas Tadeu (USJT)

Guetos sexuais: uma aproximação entre a sexualidade e arquitetura, , Iniciação científica, 2019,

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Projetos urbanos para os centros populares

Uma justiça espacial? Trecho pedestrianizado da Rua Tenente Nicolau Maffei em Presidente Prudente/SP, 2019, oito anos após a execução do novo projeto para este calçadão popular da cidade. © BÁRBARA SCUDELLER (AUTORA)
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O PONTO DE VIRADA

O início do século XXI foi um ponto de virada para os segmentos populares no Brasil. Em parte, este ponto se deveu à implementação de políticas públicas de minimização das desi gualdades de renda. Implementadas em âmbito nacional, estas possibilitaram a população de baixa renda um padrão de consumo semelhan te ao das classes médias brasileiras. Por meio da criação de contas bancárias simplificadas, créditos consignados e cartões pré-aprovados, a população de baixa renda pôde adquirir produtos de maior valor agregado.

Nesse sentido, essa população foi inserida no consumo de massa. É claro que aqui não se faz referência a quem ainda vive abaixo da linha de pobreza, carentes de alimentação e moradia, e sim de um segmento populacional que já tinha acesso a estas condições básicas de subsistência – mas nada além disso. Foi este o cenário que as políticas públicas de minimiza ção das desigualdades fizeram avançar. Mesmo que de forma tardia, os segmentos populares passaram a consumir em larga escala.

As mudanças ocorridas não pararam por aí. Esses segmentos também foram inseridos na sociedade de consumidores. Ou seja, mais do que apenas compradores de produtos de maior valor agregado, as classes de baixa renda passaram a se ver – e a serem vistas –como classes com direito a ter direitos dentro desta sociedade.

Se partimos do pressuposto que o espaço urbano é um produto social, precisamos reco nhecer que as mudanças ocorridas na socie dade impactam diretamente a conformação das cidades. Logo, mais do que implicações socioeconômicas, a inserção dos segmentos populares no consumo de massa e na socieda de de consumidores trouxe também implica ções espaciais. E assim, somados aos fatores postos, essa população passou a vivenciar a possibilidade do consumo do espaço enquan to mercadoria em si. E foi exatamente neste ponto em que o direito à cidade começou a ser problematizado pelo consumo.

A aproximação entre o direito à cidade e o direito ao consumo não pode ser feita sem contradições. Se considerarmos a luta do direito à cidade como uma luta essencialmente anticapitalista, tal aproximação não se susten ta. Sob esta perspectiva, o pleno acesso aos espaços da cidade só se daria quando estes espaços deixassem de ser mercadoria, assim como as próprias necessidades dos seres humanos. O direito à cidade só poderia se dar em um contexto não capitalista, em que a terra e a vida urbana fossem de acesso de todos – e não de poucos.

Mas a inserção dos segmentos popula res na sociedade de consumo torna possível algumas aproximações. Antes das políticas de minimização das desigualdades de renda, não era dado aos segmentos populares a pos sibilidade de viverem os espaços da cidade como mercadoria. Se antes acessível apenas

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às classes médias e às elites sociais, agora essa possibilidade se estendeu à classe popular. As suas práticas de consumo passaram a ser vistas como novas práticas de lazer e sociabilidade na cidade. “Ir ao centro” deixou de significar apenas a compra de produtos, e passou a significar também um momento de desfrute dos espaços de consumo da cidade. Ou seja, a aproximação entre direito à cidade e direito ao consumo se dá pelas práticas da vida cotidiana.

AS QUESTÕES QUE FICAM

Ao mesmo tempo em que se estreitavam as relações entre o aumento do consumo popular e o desfrute do espaço enquanto mercado ria por estes segmentos sociais, começou a se observar o lançamento de novos projetos urbanos para estes espaços de consumo. O centro de cidades como Presidente Prudente/ SP, São Carlos/SP, Ribeirão Preto/SP e São José do Rio/SP e Londrina/PR foram alvo de novos projetos desde então.

Concebidos pelo poder público, a maioria dos projetos previstos para o centro destas cidades foi executada ao longo dos anos 2010, década em que os segmentos populares come çaram a vivenciar o consumo no e do espaço urbano. Esse processo de intervenções públi cas nas áreas centrais voltadas ao comércio popular foi observado com clareza, por exem plo, na cidade de Presidente Prudente1. Como caso de estudo, basicamente foram realizados projetos de atualização da infraestrutura física dos espaços públicos do centro, já deteriorados com o seu uso constante ao longo dos anos.

Sobre esses projetos, ficava a pergunta: a intenção do poder público era a de manter ou a de alterar o perfil popular destes cen tros? Ao que pôde ser levantado, o plano foi o de manter o seu perfil popular. Não houve intenção, declarada ou implícita, de expulsar os segmentos populares dessa área e nem foi

esse o resultado encontrado in loco. Nesse sentido, os projetos realizados mantiveram o perfil popular do centro, desejando consolidá-lo como o espaço do consumo popular, muito sob a justificativa de melhorar as condições de consumo dos seus frequentadores, tendo em vista o ponto de virada pelo qual esses segmentos passaram no início desse século.

Sobre isso, uma dúvida ainda permanece2: aparentemente inclusivas e democráticas, as intervenções urbanas nos espaços públicos do centro dessas cidades respondem a uma justiça espacial voltada aos segmentos populares ou, ao consolidarem o perfil popular desses centros, não estariam respondendo a uma outra lógica de segmentação socioespacial nas cidades? ✗

BÁRBARA POZZA SCUDELLER ARQUITETA E URBANISTA, MESTRE E DOUTORANDA EM TEORIA E HISTÓRIA DA ARQUITETURA E DO URBANISMO PELO IAU-USP, PESQUISADORA DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO AMBIENTE URBANO CONTEMPORÂNEO (LEAUC).

1 O caso de estudo sobre Presidente Prudente/SP foi trabalhado na dissertação de mestrado da autora, intitulada “Espaços públicos e consumo: os impactos das lógicas econômicas sob a produção do espaço urbano e suas implicações no “projeto de revitalização” da área central de Presidente Prudente/SP”, desenvolvida junto ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - IAU/USP.

2 As questões apresentadas no parágrafo conclusivo deste artigo serão trabalhadas na tese de doutoramento da autora, intitulada “O popular no centro: as repercussões dos novos projetos de intervenção nos centros consolidados de Presidente Prudente/SP e São Carlos/SP a partir dos anos 2010”, a ser desenvolvida junto ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - IAU/USP.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. GÓES, E.; CATALÃO, I.; MAGRINI, M.; FURINI, L.; CATELAN, M.; SPOSITO, M. Consumo, crédito e direito à cidade. Curitiba: Appris, 2019.

LEFEBVRE, H. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4º ed. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Primeira versão: 2006.

POCHMANN, M. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo, 2014.

52 MÓBILE #24
TAPUME → MARIANA COSTA MAIA SILVEIRA → Habitats Invisíveis: Os cortiços da cidade de Santos 53 DEMOCRACIA

Lote urbanizado como alternativa habitacional

Estrada do Areião - Vila Monte Sion, Suzano/SP. © WANDERLEY COSTA, SETEMBRO DE 2020
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¶ DESDE O GOLPE INSTITUCIONAL EM 2016, houve um desmonte na política habi tacional do país, consequentemente as pers pectivas de soluções de conflitos fundiários e da garantia do direito à moradia se restringem drasticamente. Sem o apoio do Estado, os governos municipais precisam apostar num investimento de tempo e soluções para os conflitos que permeiam as cidade para que assim se construam políticas públicas que efetivamente cumpram as expectativas de uma cidade justa e democrática.

O contexto deste trabalho é a cidade de Suzano, região metropolitana de São Paulo, que possui áreas de preservação permanente, áreas de proteção de mananciais e áreas de risco geotécnico e de inundação. Em 2019, a prefeitura municipal realizou um Plano Municipal de Drenagem e Manejo de Águas Plu viais, e neste estudo constatou-se áreas de risco ocupadas e onde havia necessidade de remoção das famílias ou obras de contenção e infraestrutura para a permanência delas no território. Ainda assim, algumas áreas, mesmo que depois de todo um investimento, não poderiam ser regularizadas por tratarem de áreas públicas ou APRM/APP.

O dilema do município é entender a con juntura de cada território e deliberar de forma justa com o sistema judiciário a melhor alter nativa a ser desenvolvida. Para que isso seja encaminhado com seriedade, é imprescindível a escuta dos moradores. Só com a partici pação popular é possível êxito nos projetos desenvolvidos ou em qualquer ação proposta.

Em Suzano, a alternativa encontrada pelo poder público para que a garantia ao direito à moradia seja efetivada conduziu-se pelo lote urbanizado. Uma alternativa habitacio nal antiga que já foi realizada em 2009 na cidade, a volta dessa solução é um meio de garantia não apenas da moradia digna, mas do sentimento de pertencimento no território e da sensação da posse de terra.

O lote urbanizado consiste em beneficiar ao munícipe não apenas um lote, com toda a infraestrutura de água, rede de esgotamento e energia elétrica, mas com a construção também de um embrião que é traduzido por um ambiente (dormitório/sala/cozinha) e uma unidade sanitária. Pode parecer pouco, diante do que se caracteriza uma moradia com as mínimas condições de habitabilidade, entre tanto a possibilidade da ampliação deste

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embrião é o que faz do lote urbanizado uma alternativa possível de ser replicada em larga escala. O munícipe em contrapartida tem o ônus ou bônus da construção final da resi dência, o que pode ser visto como positivo a partir do momento que essa família receberá assistência técnica gratuita (ATHIS) por pro fissionais de Arquitetura na elaboração da expansão de sua casa. A cidade de Suzano possui a Lei de ATHIS – Lei complementar n° 236/2014, que prevê a indicação dos téc nicos residentes no município por meio da Associação de Engenheiros, Arquitetos e Agrônomos de Suzano (AEAAS). A relação entre a Prefeitura, Associação e munícipes funciona de forma harmônica de maneira a contemplar o programa. A legislação está passando por uma revisão para se adequar às questões atuais, entretanto a divulgação da lei para a grande parte da população ainda se dá de forma medíocre.

Outra questão importante a ser discutida é que esse tipo de solução habitacional só funciona se a realocação das famílias seja no mesmo território, para que o sentimento de pertencimento prevaleça. É comum as famílias que saem das áreas de risco voltarem um tempo depois, já que os laços são cria dos e a cultura de vivência dessas famílias é consolidada. Para que isso não ocorra é necessária muita dedicação de uma equipe interdisciplinar, da participação popular e do interesse do agente público.

Em Suzano, existem dois grandes projetos de intervenção urbana que estão passando por um processo de estudo para a viabilidade. Um desses projetos se dá a partir da necessidade da realocação de famílias em área de risco, com o pressuposto da regularização fundiária de todo um bairro, que é caracterizado como REURB S (Regularização Fundiária Urbana Social de acordo com a Lei Federal 13.465/2017 e a Lei Complementar n° 337/2019). Sem a

solução habitacional para essas famílias, não será possível a conclusão do processo de regularização do bairro denominado Jardim Gardênia Azul Gleba II. Esse projeto foi instituí do como LIS (Loteamento de Interesse Social) e tem como escopo apenas o poder público e a população como agentes interessados e provenientes das ações; consequentemente, torna-se um projeto a longo prazo com recursos financeiros limitados e restritos.

O outro projeto, localizado na Vila Monte Sion, possui uma complexidade de atores maior por se tratar de uma área de risco geotécnico na faixa da União que é de concessão de uma empresa de ferrovia privada, ou seja, o enfrentamento das problemáticas e das alternativas é pensado e realizado pelo poder público, pelo poder privado e pela população local, diferenciando-se dos outros projetos por meio da agilidade nos processos e nas decisões, uma vez que o apoio financeiro é obtido pelo poder privado. Neste caso, o projeto está na fase de execução do projeto executivo e do firmamento de um convê nio entre as partes jurídicas, para que assim comece o trabalho técnico social no território garantindo a participação social nas escolhas e no andamento do projeto.

A única oportunidade de que a idealização de políticas públicas seja efetiva é de que o poder público entenda a realidade da popu lação, e só assim será possível a construção de cidades mais justas e democráticas. ✗

LETÍCIA MIANNI DE ALMEIDA ARQUITETA E URBANISTA. ESPECIALISTA EM GESTÃO DE PROJETOS. PÓSGRADUANDA EM URBANISMO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS PELO INSPER. ASSESSORA DE DIREÇÃO NA PREFEITURA MUNICIPAL DE SUZANO. CONSELHEIRA SUPLENTE NA CÂMARA TÉCNICA DE HABITAÇÃO DO CONDEMAT.

Primeira fase Segunda fase
Terceira fase 56 MÓBILE #24

REFERÊNCIAS

AFONSO, Miguel Reis. ALMEIDA, Letícia Mianni. Conflitos fundiários e a possibilidade de solução mediante a regularização fundiária. X Encontro De Pesquisa Empírica Em Direito, nov. 2021.

ROLNIK, Raquel. Territórios em Conflito. Três Estrelas, 2009.

ALFOSIN, Betânia de Moraes. Direito à moradia: instrumentos e experiência de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: IPPUR/FASE, 1997.

IBDU. Relatório 2019 – 2020 Panorama dos Conflitos Fundiários Urbanos no Brasil.

Estrada do Areião - Vila Monte Sion, Suzano/SP. © WANDERLEY COSTA, SETEMBRO DE 2020
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Arquitetura parasitária Café-Expo24h: Interior. ELABORAÇÃO DOS AUTORES POR CELSO APARECIDO SAMPAIO, OTÁVIO CAMPOS ARANTES E RAFAEL PARENTE, TRABALHO PREMIADO NO EDITAL DE BOAS PRÁTICAS EM EQUIDADE E DIVERSIDADE DO CAU/SP (008/2021)* 58 MÓBILE #24

¶ ESTE TRABALHO FOI ELABORADO como atividade acadêmica a partir do concurso internacional de estudantes de Arquitetura e Urbanismo “Arquitetura Parasitária: nem todos os parasitas são ruins”, organizado pelo Labora tório de Futuros Híbridos da UNI, com foco em projeto urbano para incentivar os estudantes a proporem soluções e tipologias para uma futura tendência na Arquitetura – a apropriação de estruturas existentes.

A implantação de um projeto rodoviarista na cidade de São Paulo permitiu a constru ção de grandes infraestruturas viárias como suporte para o deslocamento de pessoas e mercadorias. Espaços residuais tornaram-se o reflexo dessa urbanização desumanizada a partir de ações políticas equivocadas. Pode-se considerar grande parte dessa estrutura viária como monofuncional, ou seja, as vias acabaram sendo elementos “desarticuladores da escala local” (FRANCO,2005).

Uma das questões que, inicialmente, nos colocávamos era se essa arquitetura parasi tária poderia atuar como hospedeiro, ou seja, como solução para rearticular a escala local do pedestre e transformar essa condição em uma urbanidade mais humana. Assim, se a carência de espaços públicos na cidade e de grandes áreas livres no denso tecido urbano impossibilita a construção de novas estruturas, ela também abre a perspectiva de se trabalhar no preenchimento desses vazios com hospedeiros altruístas. Uma nova arquitetura condicionada a ser parasita, ou seja, arquitetura parasitária, definida como um edifício ligado a uma estrutura maior existente.

A premissa era escolher um contexto que desempenhasse papel de destaque na expe riência com uma construção parasita, onde pudéssemos resolver alguns problemas como: (i) a disponibilidade de implantação de uma arquitetura hospedeira; (ii) que permitisse o crescimento em torno de um elemento arqui

“Cotidiano”: Um breve respiro urbano. © OTAVIO CAMPOS
ARANTES E RAFAEL PARENTE 59 DEMOCRACIA

tetônico e de infraestrutura existente; e (iii) que servisse como agente de mudança social.

No processo de urbanização, espaços resi duais podem trazer poluição acústica, visual e ambiental à região, além de potencializar a violência. A cidade carece de espaços públicos e essas cicatrizes urbanas merecem ser anali sadas com mais atenção, uma vez que “fluxos dominantes” inevitavelmente produzem “fluxos residuais” (GUATELLI,2012).

Espaços e áreas encontrados debaixo de viadutos foram considerados como os mais urgentes e oportunos hospedeiros para o expe rimento de intervenção pelas já conhecidas questões de carência urbana e por fornecerem uma estrutura bruta e passiva por excelência.

O movimento constante de desabrigados para essas áreas, a demanda por espaço público na cidade e a especulação imobiliária hiper valorizando o centro e concentrando ainda mais sua infraestrutura vêm promovendo um processo de expulsão natural de moradores originais das áreas centrais da capital paulista.

O reconhecimento do viaduto estudado se deu por meio de incursão atenta ao território

e seu entorno, coleta de material iconográfico, mapeamento das atividades cotidianas do entor no e do transporte público disponível, identifi cação de resquícios urbanos como restos de construção, barracas, lixo etc. e um levantamento métrico das vias, calçadas e do viaduto.

Concebido em 1938, junto à Sinagoga e atual Museu Judaico de São Paulo, o Viaduto Martinho Prado é uma estrutura viária que privilegia a escala do carro, passando sobre uma via arterial de fundo de vale. Em estilo Art-Deco, o viaduto foi construído em concreto armado e é composto por arcos e pilares. Caracteriza-se por grandes vãos no interior da estrutura tornando-o muito atrativo e passível de uma intervenção parasi tária, que “podemos designar como arquitetura infraestrutural, ou seja, uma arquitetura não mais vista como objeto independente cenográfico, mas como sub-objeto (subjectile), uma estru tura de suporte e energia de potencialização do porvir.” (GUATELLI, 2008).

Ação para fins de moradia, a Ocupação Nove de Julho, localizada a poucos metros do viaduto hospedeiro, contribui para a mudança social de famílias de baixa renda desde 2016, por meio de

Contexto da intervenção. © OTAVIO CAMPOS ARANTES E RAFAEL PARENTE
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eventos culturais, oferta de opções de alimentação acessível para grupos de baixa renda e pequeno comércio no entorno, com sua horta e cozinha comunitárias. Os ocupantes representam a luta por moradia digna ligados ao Movimento Sem Teto do Centro (MSTC).

A proposta foi desenvolvida em função do território, procurando refletir esse lugar em transição, reflexo de sua condição, mais especificamente voltado para um público que cotidianamente se desloca do centro hipervalorizado à periferia mais distante da cidade. A Avenida Nove de Julho é uma via radial por onde, diariamente, circulam em média 30 (trinta) linhas de ônibus.

A intervenção parasitária engastada no viaduto Martinho Prado tem como objetivo garantir a transição de cotas, diminuir a vulnerabilidade local com iluminação pública adequada, garantir acessibilidade a cadeirantes e gestantes, entre outros públicos, e incorporar uma praça subutilizada ao projeto do Café-Expo, como anexo das atividades da Ocupação Nove de Julho, procurando torná-lo um agente de mudança social no “Cotidiano” – um simbiota para seu hospedeiro. “Força policial alguma consegue manter a civilidade onde o cumprimento normal e corriqueiro da lei foi rompido” (JACOBS, 2007). ✗

REFERÊNCIAS

FRANCO, Fernando de Mello. A construção do caminho: A estruturação da metrópole pela conformação técnica das várzeas e planícies fluviais da Bacia de São Paulo. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, 2005.

GUATELLI, Igor. Arquitetura dos entre-lugares: sobre a importância do trabalho conceitual. São Paulo: Senac, 2012.

GUATELLI, Igor. Condensadores Urbanos: Baixio Viaduto do Café, Academia Cora Garrido. São Paulo: MackPesquisa, 2008.

CAMANÑES GUILLÉN, Maria Isabel. Baixios de Viaduto: novos olhares. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2021.

JACOBS, J. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

UNI.XYZ. Disponível em: ↗ uni.xyz. Acesso em 20 out. de 2021.

* Universidade Presbiteriana Mackenzie: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, participação em concurso de projeto Parasitic Architecture organizado pela UNI, rede global de arquitetos, urbanistas e designers que se reúnem em torno de desafios contemporâneos, com mais de 200 mil membros registrados.

CELSO APARECIDO SAMPAIO, ARQUITETO E URBANISTA, DOUTOR EM ARQUITETURA E URBANISMO E PROFESSOR DA FAU-UPM / OTÁVIO CAMPOS ARANTES, ARQUITETO E URBANISTA, PÓS-GRADUANDO LATO SENSU UPM / RAFAEL PARENTE, ARQUITETO E URBANISTA
O hospedeiro, Viaduto Martinho Prado. © OTÁVIO CAMPOS ARANTES
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Direitos à participação e representação, termômetros da democracia

PELA COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO COA-CAU/SP E VICE-PRESIDÊNCIA CAU/SP Evento do projeto “CAU/SP no Território Paulista” em São José do Rio Preto. © ARQUIVO CAU/SP.
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¶ A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE civil organizada na gestão pública revela-se um verdadeiro termômetro da democracia.

No Brasil, entre 1930 e 1985, nos poucos e conturbados períodos democráticos, foram criados apenas cinco conselhos nacionais. Somente durante o processo de combate à ditadura, entre 1964 a 1985, em sua fase de mobilização das massas sociais, iniciou-se a participação popular nos processos decisórios de gestões crescentes de oposição, principalmente nos grandes centros urbanos.

Foi ao final do período de exceção, durante o debate da Cons tituinte, que se alcançou a institucionalização da presença da sociedade civil nas decisões do Poder Executivo. O resultado desta vitória foi a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, que deixou claro em seu artigo 29, inciso XII, em que estão dispostas as atribuições dos municípios, a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal” e explicitou a previsão da participação popular nos processos decisórios referentes às políticas de saúde, educação e assistência social.

Entre 1990 e 2009 foram aprovados 26 conselhos com o objetivo de ampliar a participação popular (Dados Ipea, 2010) e, atualmente, existe um total de 2.593 colegiados vinculados ao

governo em processos de gestão participativa, como mostra o levantamento do Ministério da Economia (2020). Destes, 11 relacionam-se à Infraestrutura das cidades.

Com a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição, por meio da Lei nº 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, foi introduzido um capítulo dedicado à gestão democrática da cidade, reunindo instrumentos de participação como órgãos colegiados de políticas urbanas, audiências públicas, conferências e também projetos de lei e planos de iniciativa popular.

Nesse contexto, criou-se o Sistema Nacio nal de Habitação de Interesse Social (SNHIS) em 2005 (Lei nº 11.124) que estabeleceu o processo participativo na elaboração do Plano Nacional de Habitação; na constituição de fundos nos diferentes níveis da federação controlados por conselhos com participação popular e; nas ações estabelecidas em Planos Locais de Habitação de Interesse Social.

Utilizando-se os Conselhos como ter mômetro da democracia, observa-se que essa temperatura tem baixado de maneira significativa em parte dos municípios, com cortes orçamentários nos fundos, ou mesmo a extinção de vários conselhos, repercutindo na capacidade da sociedade em intervir e fiscalizar políticas públicas. Soma-se a isto, a supressão do Conselho Nacional de Cidades - Concida des, órgão colegiado de caráter deliberativo e integrante do antigo Ministério das Cidades, hoje Ministério da Integração Regional.

A pressão da sociedade civil, realizada por anos em nossa democracia, permitiu que ainda se mantenham ativos muitos conselhos em todas as esferas federativas com a par ticipação paritária do governo e sociedade.

Em muitos municípios, em função da obriga toriedade por lei da consulta e deliberação dos Conselhos na formulação e implementação de

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políticas públicas, estes continuam ativos e organizados, ora com caráter consultivo ora deliberativo. Nas políticas setoriais urbanas isto também acontece, notadamente nas de desenvolvimento urbano, habitação, meio ambiente, patrimônio cultural e outras.

A garantia da existência destes espaços de gestão participativa e o fortalecimento de sua autonomia ocupa um importante lugar na agenda democrática. Torná-los potentes significa maiores chances de se construir cidades que atendam a todos, em toda a sua diversidade.

CONTRIBUIÇÕES DO CAU/SP À GESTÃO DEMOCRÁTICA

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, uma autarquia federal com sede e foro na cidade de São Paulo, tem por finalidade: orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de Arquitetura e Urbanismo, zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina dos arquitetos e urbanistas, bem como pugnar pelo aperfeiçoamento do exercício profissional. Ao cumprir sua missão, o CAU/SP reconhece que ela deve vir acompanhada de uma política de fomento à Arquitetura e Urbanismo como direito universal.

O desconhecimento da importância do arquiteto urbanista pela sociedade civil restringe sua atuação a nichos de trabalho, deixando descoberta de atendimento profissional uma ampla área de atuação relacionada a dimensões estruturantes da qualidade de vida urbana, que compreendem o planejamento, o projeto e a gestão das cidades.

Diante o cenário de fragilidade dos espaços democráticos na gestão pública e da falta de reconhecimento da importância da profissão, o CAU/SP decidiu construir uma política de promoção à representação institucional em órgãos colegiados, como são os conselhos municipais, a fim de ampliar a contribuição de arquitetos urbanistas nestes espaços consul tivos e decisórios; e de difundir a importância da Arquitetura e Urbanismo para a sociedade civil e os gestores públicos.

Desde o início de sua criação, o CAU/SP tem indicado representantes para compor conselhos participativos em diferentes municípios, entretanto, sem alcançar uma escala condizente com a dimensão do estado.

Como exposto na Figura 01, no início de 2021, o CAU/SP contava com cerca de 26 representantes concentrados em 14 municí pios, principalmente na capital e seu contorno. O restante do estado apresentava um cenário de carência evidente de representação.

Ao se construir a política de fomento, a Comissão de Organização e Administração do CAU/SP estabeleceu estratégias que possi bilitaram a ampliação da representação civil, do acesso à sociedade do conhecimento

Distribuição de representantes do CAU/SP em conselhos municipais antes da Política de Fomento de representação do CAU/SP (dezembro de 2020) e depois da Política (junho de 2022). FONTE: BANCO DE DADOS CAU/SP, 2020 - 2022.
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REPRESENTAÇÃO EM CONSELHOS MUNICIPAIS E CÂMARAS TÉCNICAS

Conselhos da Cidade

Conselhos da Acessibilidade e Mobilidade

Conselhos do Meio Ambiente

Conselho de Habitação

Conselho de Cultura e Patrimônio

FIESP/ ALESP

Parque Tecnológico

Conselho de Universidades

Conselho da Pessoa com Deficiência

Conselho do Esporte

Conselho de Obras e Edificações

técnico do profissional arquiteto urbanista e da distribuição territorial de sua contribuição.

Atualmente, após aprovação do plenário, o CAU/SP já apresenta um aumento de 134% no número total de representações, contando com 61 representantes distribuídos em con selhos de 30 municípios paulistas.

Com uma meta de 100 representações até o final de 2023, o Conselho objetiva, além de ampliar o número de representantes, expandir ainda mais seu território de contribuição.

O entendimento existente a respeito da representação do CAU/SP em órgãos cole giados abarca uma escala maior do que se compreende enquanto campo de atuação direta do arquiteto urbanista.

Como pode ser verificado na Figura 02, a atual política empregada pelo CAU/SP expan diu os espaços de contribuição dos profissio nais em conselhos de diferentes naturezas, tendo destaque sobretudo para Conselhos da Cidade e de Cultura e Patrimônio.

Mas há necessidade de arquitetos urba nistas em conselhos de saúde, de educação, assistência social e muitos outros, pois a qua lidade das ações direcionadas para cada uma destas frentes se relacionam diretamente com o espaço vivido, que corresponde ao objeto central de trabalho do arquiteto urbanista, e para o qual têm muito a contribuir.

Atuar em favor da democracia é parte da função social do arquiteto urbanista. Ampliar a compreensão coletiva de que o acesso à moradia digna e a um meio ambiente seguro e saudável é um direito de todos é uma missão que permeia o exercício da nossa profissão.

O olhar do CAU/SP à representação em órgãos participativos cumpre, portanto, um papel estratégico e urgente na defesa da Arquitetura e Urbanismo, da democracia e da cidade.✗ 2020 2022

FONTE: BANCO DE DADOS CAU/SP, 2020 - 2022. 6 16 3 2 2 2 1 1 1 1 1 11 3 3 5 5 6
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A formação e as atribuições profissionais em arquitetura e urbanismo ANA LÚCIA CERAVOLO E DENISE ANTONUCCI, COORDENADORA E COORDENADORA ADJUNTA DA COMISSÃO DE ENSINO E FORMAÇÃO CEF-CAU/SP 47% Fiscalizadas por Conselhos de classe 35% Não possui ingerência do Estado 18% Registro profissional no MTE CENÁRIO DAS PROFISSÕES REGULAMENTADAS NO BRASIL FONTE: MINISTÉRIO DO TRABALHO. DISPONIBILIZADA PELO SENADO BRASILEIRO. DISPONÍVEL EM ↗ TINYURL.COM/YJBJZF9B. 66 MÓBILE #24

¶ NO BRASIL, a profissão de arquiteto e urba nista é regulamentada por lei específica desde 1933, quando foi criado o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea). Atualmente, é regulada pela Lei nº 12.378, de 2010, que criou o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil - CAU/BR e os Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito Federal – CAU/UFs.

A prática profissional para todas as profis sões, regulamentadas ou não, é normatizada por lei, em termos gerais pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que define direitos e deveres dos trabalhadores, empregadores e sociedade. As profissões não regulamentadas são reconhecidas pela ordem jurídica, mas, não necessariamente exigem formação específica.

A regulamentação de uma profissão, segun do o Ministério do Trabalho, deve definir os requisitos relativos à qualificação profissional dos trabalhadores que exercerão a atividade, devendo haver condições para sua fiscalização. O objetivo principal é o de garantir a segurança da população.

Para compreender melhor a relação entre formação e atuação profissional é preciso, no país, para que o arquiteto e urbanista possa atuar: 1) diploma obtido em curso de gradua ção em Arquitetura e Urbanismo, realizado em instituição de ensino superior reconhecida pelo poder público; e 2) registro no Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/UF) no Estado em que residir.

Assim, caso o bacharel em Arquitetura e Urbanismo exerça qualquer atividade relacio nada na Lei 12.378/10 ou em outro normativo do CAU/BR, prestando serviços para o setor público ou privado, sem o registro profissional no Conselho, está praticando ilegalmente a profissão (Art. 7º, Lei 12.378/10).

Legalmente, portanto, a prática e a formação profissional estão dissociadas. Essa separação é formal, mas, não real se consideradas as atribui ções, competências e habilidades do arquiteto e urbanista, que advém da mesma fonte para a formação e para o exercício da profissão. Essa fonte, definida no artigo 3º, da Lei nº 12.378/ 2010, é as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), que dispõem sobre a formação do profissional, em que os núcleos de noções de fundamentação e de conhecimentos profissionais caracterizam a unidade de atuação profissional.

Nesse sentido, nos parece evidente que o diálogo entre a área de Educação e o CAU é essencial para que não existam dubiedades sobre a atividade profissional, uma vez que o documento que define essas atribuições é o mesmo, ou seja, as DCN, instituída pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, do Ministério da Educação. Esse documento é utilizado pelas IES para organi zação dos cursos e elaboração dos projetos pedagógicos e pelo CAU para definição das atribuições e os campos de atuação profissional.

É preciso com urgência, reconhecendo a autonomia universitária e a regulamentação

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específica do setor de educação e do exercício profissional, colocar fim à falsa dicotomia entre ensino e atuação, reconhecendo os pontos que devem ser tratados em comum acordo e que devem espelhar as necessidades da sociedade.

A formação do arquiteto e urbanista tem início na graduação e se estende por toda sua carreira. No entanto, todas as atribuições da profissão, com exceção à Engenharia de Segu rança do Trabalho, são adquiridas no momento que recebe o diploma. Exatamente por isso é fundamental que o CAU zele pela qualidade do ensino, garantindo à sociedade a prestação de serviços de qualidade.

Hoje, no Brasil, contudo, o cenário do ensino de Arquitetura e Urbanismo atingiu proporções não imaginadas em 2010, quando o CAU/BR e os CAU/UF foram criados. São cerca de 800 cursos presenciais e 200 na modalidade à distância (EaD), com cerca de 180 mil alunos matricula dos (INEP, Censo da Educação Superior, 2020)

Vale a pena comparar esse número com o número de arquitetos e urbanistas que atuam no país, no momento. Segundo dados do Sis tema de Inteligência Geográfica (Igeo, 2022), mantido pelo CAU/BR, são 213.639 arquitetos e urbanistas e cerca de 30.000 empresas de Arquitetura e Urbanismo. Um terço dos profis sionais, 65.181, atuam no Estado de São Paulo. Em aproximadamente cinco anos dobraremos o número de profissionais no Brasil.

Para compreender melhor o perfil profissional do arquiteto e urbanista, destaca-se que: mais de um quarto dos profissionais do Estado de São Paulo (28%) têm até 30 anos de idade e mais da metade (59%) têm menos de 40 anos.

A participação das mulheres é cada vez maior: hoje, representam 63% do total de profissionais, contra 37% de homens. Os estados que mais concentram arquitetos e urbanistas são: São Paulo (32,2% do total), Rio de Janeiro (11,6%), Rio Grande do Sul (8,9%), Minas Gerais (7,8%) e Paraná (6,4%).

De acordo com o Anuário de Arquitetura e Urbanismo 2019, publicado pelo CAU/BR, em 2018, os arquitetos e urbanistas brasileiros realizaram mais de 1,5 milhão de atividades apontadas por meio de Registro de Respon sabilidade Técnica (RRT), em um crescimento de 5,4% em relação ao ano anterior.

Os anos de pandemia foram de muita ins tabilidade para a construção civil. Apesar das quedas no Produto Interno Bruto (PIB) da cons trução civil e, consequentemente, nas demandas por novas construções, a formação generalista do arquiteto e urbanista tem permitido uma atuação desse profissional em campos de atividades que até então tinham uma menor representatividade.

Cremos que há demanda para os profissio nais que ingressarão no mercado de trabalho, desde que ocorram políticas claras para absor ção dessa mão de obra em diferentes setores públicos e privados.

Deve-se garantir que a atuação desses profis sionais chegue à população que mais necessita, por meio de órgão públicos, de assistência técnica e de outras formas de atuação, que não concentrem a atividade profissional em uma única camada da população, em centro urbanos e áreas metropolitanas.

Os números apontam para novos caminhos e alternativas para a atuação profissional de Arquitetura e Urbanismo. Outros campos de trabalho vêm se destacando pelo seu cresci mento: Engenharia de Segurança do Trabalho (22% de alta em 2018), Acessibilidade (18% de alta) e Meio Ambiente (14% de alta). Apesar de somarem poucas atividades se compara das ao total de trabalhos realizados no Brasil, são mercados em expansão para arquitetos e urbanistas.

Além disso, outros paradigmas se impõem no cenário nacional e internacional. Temas como a inclusão de minorias, de segmentos sociais em situação de vulnerabilidade, a questão ambiental

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DE ATUAÇÃO DE ARQUITETOS E URBANISTAS NOS ÚLTIMOS DOIS ANOS– 2020

Arquitetura de interiores

Arquitetura Urbanismo concepção

Arquitetura Urbanismo execução

Outra

Arquitetura Paisagística

Planejamento Urbano regional

Sistemas Construtivos e estruturais

Ensino

Instalações de Equipamentos Elétricos

Patrimônio Histórico

Topografia

Engenharia de Segurança do Trabalho

Geoprocessamento e Correlatos

Tecnologia e Resistência dos Materiais

e a forte pressão sobre os recursos naturais reforçam a importância do ensino e da formação técnica e do compromisso ético do arquiteto e urbanista. Nesse sentido, os cursos precisam enfrentar os desafios de oferecer conhecimen to técnico atualizado, formando profissionais envolvidos com a realidade do país.

É fundamental atualizar as DCN juntamente com o Ministério de Educação, envolvendo as IES, docentes e profissionais em amplo debate. Nessa discussão o CAU deve ter assento, expon do a realidade sobre o exercício profissional ético e responsável, tratando de coincidências com outras profissões – sombreamento - na atuação do arquiteto e urbanista.

Foi vislumbrando a necessidade de valorizar o ensino e a formação do arquiteto e urbanista que o Colegiado das Entidades Estaduais de Arquitetos e Urbanistas do CAU/SP (CEAU -CAU/SP): Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU/SP), Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abap), Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura (Abea), Asso ciação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (Asbea), Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (SASP) e a Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo (FENEA), elaborou a campanha que fortalece as relações entre a sociedade e os arquitetos e urbanistas, deixando claro as ações de nosso ofício e focando nas características da formação profissional ✗

ÁREA
FONTE: CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO, II CENSO DAS ARQUITETAS E ARQUITETOS E URBANISTAS DO BRASIL (2021) 62% 49% 45% 28% 17% 11% 11% 11% 6% 6% 4% 4% 4% 2%
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Uma agenda pela valorização

profissional: pelo direito ao exercício ético e qualificado do(a) arquiteto(a) e urbanista CAMILA MORENO DE CAMARGO, FERNANDA MENEGARI QUERIDO, ANGELA GOLIN, ANA PAULA PRETO RODRIGUES, MARIA TEREZA DINIZ REPRESENTANTES DAS COMISSÕES DE ÉTICA E DISCIPLINA, EXERCÍCIO PROFISSIONAL, FISCALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL – CED, CF, CEP E CDP-CAU/SP 70 MÓBILE #24

¶ VIVEMOS UM PERÍODO de transformações que engendram processos importantes de reestruturação produtiva e territo rial. Nas cidades, reconhecemos um padrão de desenvolvimento urbano que encobre e recobre o meio físico-ambiental de forma irresponsável, anunciando territórios segregados e desiguais do ponto de vista da distribuição dos serviços e das infraestruturas públicas, e da inconcretude da moradia digna e da cidade como direitos constitucionais.

Por outro lado, despertamos entusiasmados para a intersec cionalidade como traço da nossa sociedade, capaz de iluminar as discussões sobre gênero, raça, etarismo e decolonialidade como instrumento crítico de transformação encarnado na realidade social, bem como para ações insurgentes capazes de mobilizar esforços coletivos no sentido de construir lutas, alternativas e iniciativas que atravessam escalas de intervenção. Desse quadro híbrido e complexo é que se coloca a urgência em:

↗ reconhecer a diversidade de formatos e condições de trabalho dos profissionais da arquitetura e urbanismo;

↗ discutir a equidade e a ética profissional;

↗ assinalar as contradições da invisibilidade que pairam sobre os diferentes vieses da profissão;

↗ iluminar o papel do exercício de fiscalização;

↗ trabalhar as articulações basais entre a formação e prática profissional;

↗ identificar os desafios enfrentados pelos profissionais pela busca de melhores oportunidades, remuneração e reconhecimento perante a sociedade;

Esses aspectos, quando congregados, conformam uma determinada agenda de valorização profissional que promulga a função social do arquiteto e urbanista, ou seja, que revela o papel do profissional de arquitetura e urba nismo junto a sociedade.

DESENVOLVER COMPETÊNCIAS PARA O CRESCIMENTO

PROFISSIONAL

Contribuir para a valorização profissio nal parte de ampliar conhecimentos, elucidar competências e fortalecer práticas para avanço no mercado de trabalho. Os dados do 2º Censo dos Profissionais de Arquitetura e Urbanis mo do Brasil (CAU/BR, 2021) ajudam a traçar o perfil dos profissionais, no qual 20% das respostas, estão regis trados no estado de São Paulo. Com atuação no território paulista, 47% dos profissionais têm renda mensal indivi dual de até 3 salários-mínimos; 39% não contribuem para a previdência social e que possuem algum tipo de dependente financeiro (47%).

Embora significativa parcela tenha se declarado como “autônomo” (49%), 75% disseram não possuir pessoa jurí dica na área e 35% declararam ter a percepção da “ausência de acesso ao mercado de trabalho” como principal obstáculo ao exercício profissional. Além disso, muitos não conseguiram acessar as poucas vagas em univer sidades públicas e tiveram de realizar sua formação nos cursos particulares, seja com altos investimentos ou finan ciamentos.

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Valorização

Valorização Reconheciment o CED

Valorização

Sendo assim, a formação profissional provocada e discutida pela precarização do ensino das universidades, tanto de públicas quanto privadas, é assunto pertinente ao CAU/SP e ganha visi bilidade por meio da campanha de ensino realizada em parceria com o CEAU (Colegiado das Entidades Estaduais de Arquitetos e Urbanistas). A profissão exige formação técnico-profissional complexa, envolvendo alto grau de responsabilidade. O retorno desse investimento, entretanto, raramente é alcançado.

Como parte da valorização e profissionalização, é fundamental explorar a composição dos custos da prestação dos serviços que determinam sua precificação, de forma justa, coerente e que dê espaço à tomada de decisão pelo caráter técnico e não apenas pelo sentido mercadológico. Para tanto, os esforços se desdobram em compreender os componentes da precificação nas diversas áreas de atuação dos profissionais e trazer algo tangível ao processo de modernização da Tabela de Honorários, balizada pelo CAU/ BR, e que busca ser palpável, ágil, didática e intuitiva, de modo a contribuir com a capacitação dos profissionais.

EXERCÍCIO PROFISSIONAL E O

PAPEL SOCIAL DO ARQUITETO URBANISTA

É densa a bibliografia que discute a heterogeneidade territorial a partir dos portes e dinâmicas estabeleci das nas cidades paulistas, levando a pensar nas diferenças importantes de atuação dos profissionais na capital, no interior e no litoral do estado, que representam, respectivamente, 42,25%, 57,45%, 3,3%, segundo dados do CAU/ BR (IGEO, 2022).

Nesse enquadramento, é importante discutir a atuação de arquitetos e urba nistas na gestão pública, como uma frente diretamente relacionada com os processos de produção das cidades, pois é nublada a condição de trabalho desses profissionais como servidores públicos. E, segundo dados do CAU/SP, dos 645 municípios do estado, apenas 10 estão registradas no Conselho. Essa inscrição é isenta de custo e obrigatória, pois toda empresa ou órgão público que em sua função e promova o exercício de atividades de Arquitetura e Urbanismo deve ser registrado.

Por outro lado, discutir e contribuir com a valorização de profissionais que atuem em órgãos públicos, revelar o trabalho desenvolvido por arquite tos servidores, tem aderência a, pelo menos, duas frentes de contribuição: valorizar a arquitetura pública e fazer da Arquitetura e Urbanismo uma polí tica de Estado, bem como discutir sua remuneração e as formas de reconhe cimento e formalização desse nicho de atuação junto ao Conselho.

Além das funções primárias do Conselho em regulamentar, garantir e fomentar o exercício, cabe lembrar que

CDP Convênios Parcerias CPC CATHIS CF CRI A t u a ç oã lanoissfiorP GADM GTC CPUAT CEF CEP SGO GAB CED Diagrama do eixo de valorização profissional que é parte do Planejamento Estratégico 2021 - 2024
Fomento
Pres.
CEF
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Projeção sobre fachada do edifício sede do CAU/SP no Triângulo Histórico da capital. CRÉDITO: TONI BAPTISE/ COLETIVO COLETORES
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esbarramos no fato que nossa profissão ainda é pouco reconhecida pela sociedade e pelos próprios profissionais. Portanto, precisamos valorizar nossa profissão e seu exercício junto a sociedade, pois os profissionais desconhecem, de um modo geral, a possibilidade de atuação com a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS).

Cabe também refletir que o direito à arquitetura de qualidade indica a valorização do profissional a partir de seu acervo técni co. Essa ferramenta comprova as atividades já realizadas pelo profissional, não somente por um portfólio, mas pelo caráter da responsabilidade técnica assumida. Se devidamente feito, o acervo técnico abre portas ao exercício profissional em concorrências e licitações públicas, sendo um instrumento importante para compro var experiência e profissionalismo na produção de nossas cidades, em suas variadas escalas1

EXERCÍCIO ÉTICO E A AGENDA DE VALORIZAÇÃO PROFISSIONAL

O Código de Ética e Disciplina do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil reúne princípios, regras e recomendações que se traduzem em obrigações do arquiteto e urbanista para com a sociedade e a comunidade profissional. São duas as funções deontológicas, sendo a primeira de caráter educacional preventivo, relacionado à informação pública da dignidade da profissão. A segunda, de caráter coercitivo, reprime desacertos procedimen tais em reconhecimento dos impactos da atuação equivocada do profissional junto à sociedade, sobretudo, em suas interações com os processos de produção de cidades.

Considerando que a precarização e os arranjos de trabalho, por vezes, podem levar os profissionais a cometerem infração éticas, questiona-se: as infrações têm somente relação com falta de infor mação e conhecimento sobre as normas e regulações profissionais? Ou também o arquiteto e urbanista assume riscos relacionados à sua atuação, de uma perspectiva ética, como modo de se inserir e sobreviver economicamente no mercado de trabalho?

Com esses questionamentos e os recentes temas de denúncias e mídias sociais junto à comunidade profissional, iluminam-se ações que precisam ser compreendidas a partir de uma agenda de valorização profissional. Assim, a ação “Marketing Profissional em Redes Sociais” envolve, sobretudo, alertar e balizar arquitetos e urbanistas, de modo orientativo, em relação a práticas que podem gerar infrações como: contratos mal elaborados ou ausentes; precificações antecipadas e descoladas de um escopo de ser

viços conhecido; quebra de direitos autorais; e desrespeito a colegas que trabalham em coautoria ou cooperação em determinado trabalho.

Já a frente da “Reserva Técnica”, por sua vez, diz respeito ao recebimento de remunerações extracontratuais, sob qualquer forma, de fornecedores envolvidos no serviço prestado, sendo prática que infringe a ética profissional, justamente por encolher a dimensão técnica nas tomadas de decisões relacionadas ao projeto e execução de obra.

Para avançar, no entanto, é preciso reconhecer e discutir os novos arranjos e lógicas de atuação profissional, as formas de relacionamento entre lojistas/ fornecedores, profissionais e consu midores finais, que implicam na capi larização de diferentes interesses de agentes no processo de prestação de serviços em Arquitetura e Urbanismo.

Nesse sentido, ao debater tais estra tégias de atuação profissional damos corpo a agenda de valorização profissional que reflete a necessidade dos profissionais em obter complementos financeiros em um mercado que impõe precificações incompatíveis com a complexidade e a importância dos serviços da profissão2. Tal discussão reforça a necessidade de ação, visto que os dados do 2º Censo dos Profissionais de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR, 2021) para o Estado de São Paulo apontam que temos baixos rendimentos, ausência de plano previdenciário, muitas horas despendidas para trabalho, complementado pelo fato de 59% dos profissionais atuarem no campo de Arquitetura de Interiores, e 49% como profissional autônomo.

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Se devidamente feito, o acervo técnico abre portas ao exercício profissional em concorrências e licitações públicas, sendo um instrumento importante para comprovar experiência e profissionalismo na produção de nossas cidades em suas variadas escalas.

Campanha de Valorização Profissional atrelada ao Colegiado de Entidades de Arquitetos e Urbanistas – CEAU. FONTE: CAU/SP
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EXERCÍCIO DE FISCALIZAÇÃO E A GARANTIA AO DIREITO AO TRABALHO DO ARQUITETO E URBANISTA

Fiscalizar é um dos objetivos primários do Conselho e se demarca como uma atividade-fim, pois se apresenta como resposta às necessidades da sociedade, porém nem sempre devidamente reconhecida por ela. Além disso, é essencial para a classe, pois protege e zela pelos interesses do coletivo e assegura o exercício profissional de pessoas habilitadas e qualificadas para prestação de serviços, entretanto, é mal compreendida pela própria categoria

A partir das “Orientações para os Conselhos de Fiscalização das Atividades Profissionais” estipuladas pelo Tribunal de Contas da União, é papel intrínseco ao Conselho assegurar “o desenvol vimento sustentável de nosso país na medida em que assegura o adequado acompanhamento do exercício de atribuições previs tas em leis privativas de determinadas categorias”, pois cumpre o relevante papel de coibir que leigos exerçam ilegalmente a profissão regulamentada, assegurando dessa forma a proteção à sociedade.

Assim o profissional, ao se registrar no Conselho, está munido de seus direitos, bem como do cumprimento de seus deveres para o correto exercício de suas atividades, sendo de sua responsabilidade conhecer o Código de Ética e Disciplina do exercício profissional.

Para avançar, é fundamental não enxergar o exercício da fisca lização como um instrumento punitivo aos colegas, sendo, acima de tudo, uma forma de assegurar aos nossos bons profissionais espaço de trabalho. E, mesmo que o conselho não premie qualida de de trabalho, fiscalizar demonstra à sociedade que o exercício profissional de qualidade e executado dentro das normas revela a importância da contratação de profissionais habilitados e é, sem dúvida, uma forma de garantir a sociedade o direito à arquitetura.

À GUISA DE CONCLUSÃO QUE NORTEIA O PROJETO DE VALORIZAÇÃO PROFISSIONAL

Os tensionamentos e mediações cercam o campo profissional da Arquitetura e do Urbanismo e a atuação na cidade. Dessa mediação que se reconhece a função social, sobretudo, por meio do com promisso, para o qual o profissional é alçado pelas dimensões da formação, do desenvolvimento e do exercício profissional, a fim de prestar um serviço ético e que honre com sua responsabilidade junto a sociedade.

Nessa direção, levanta-se a hipótese de redefinição disciplinar, suge rindo que a formação e a atuação do arquiteto e urbanista devem se voltar para suas origens sociais e ampliar o debate pelo direito à arquitetura, e garantir aos cidadãos o direito à cida de. Esses aspectos convergem como um dever do profissional através do serviço prestado e, desde que ausente de incoerências, explicitam o exercício ético da profissão junto ao Conselho.

Por outro lado, considerando a mesma agenda de valorização profissio nal, é preciso também abrir diálogo e reconhecer as formas variadas de trabalho, os arranjos profissionais e as estratégias de inserção e atuação de arquitetos e urbanistas no mercado de trabalho, frente a um contexto de complexificação do quadro de desi gualdades sociais e de transformações no mundo do trabalho, traduzidos por faces distintas de precarização.

Portanto, ressalta-se a importância de ampliar e reforçar as frentes de atua ção dos arquitetos e urbanistas, nota damente concentradas em um campo muito recortado – o que contribui para um universo competitivo e de baixos rendimentos – em contradição com a diversidade de demandas apresen tadas pela cidade e pela sociedade, a exemplo das atividades pertinentes às ATHIS. Igualmente, é importante abrir diálogo franco e estruturar ações que partam do reconhecimento do perfil variado de profissionais, sobretudo considerando questões relacionadas a gênero, etnia, grupos etários e inser ção social.

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REFERÊNCIAS

CAU/BR. Código de Ética e Disciplina para Arquitetos e Urbanistas. Disponível em ↗ tinyurl.com/rx7hncfdAU/BR. Censo Profissional

OLIVEIRA, L. P. P. de.  A função social do arquiteto e urbanista diante da construção dos espaços públicos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional)Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. ↗ tinyurl.com/yke8vjnr

CAU/BR. Pesquisa CAU/BR revela perfil profissional dos arquitetos e urbanistas brasileiros. (20/98/2019) Disponível em ↗ tinyurl.com/575jn98a

NOTAS

1 Vide Lei de ATHIS n°11.888 de 24 de dezembro de 2008 disponível em: ↗ tinyurl.com/3k8v9aur

2 Criação da Comissão de Valorização ProfissionalReserva Técnica pela DPOSP Nº 0501-02/2022, disponível em ↗ tinyurl.com/mt5t26mn

Público do curso “Calculadora Social – Quanto vale o serviço de ATHIS?” realizado presencialmente na sede do CAU/SP, com contribuição das Comissões de Exercício Profissional, Desenvolvimento Profissional e ATHIS, em 05 de agosto de 2022. © FONTE: CAU/SP
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curtas

CONFIRA. O CAU/SP reafirma o compromisso em fortalecer a função social de arquitetos e urbanistas, o respeito à diversidade da profissão e dos profissionais; a Arquitetura e Urbanismo como política de estado e a gestão democrática, participativa e transparente que integra a prática e a formação. Para isso, uma série de atividades e materiais foram propostos, uma curadoria de conteúdos dedicados aos profissionais.

PATRIMÔNIO COMO POLÍTICA PÚBLICA Lançado em agosto, o Manual de Orientações às Políticas Municipais de Preservação do Patrimônio Cultural integra um dos projetos da CPC-CAU/SP voltados a auxiliar na orientação de políticas públicas bem-sucedidas e do exercício profissional correlato. Tem o objetivo de estimular as prefeituras a adequar e estruturar a política municipal de preservação cultural, considerando o ambiente natural e construído, a história da arquitetura, da urbanização, das paisagens locais e regionais e da cultura expressa pelas tradições, celebrações, formas de expressão, saberes e fazeres. O conteúdo está disponível para download. Acesse. ↗ bitlylinks.com/RuVvE2nlN

MINICURSOS Até novembro, o CAU/SP oferece uma série de minicursos para docentes e recém-formados, com esclarecimentos sobre responsabilidade técnica, registro profissional, anotação de curso e outros temas. Os minicursos serão ministrados pelos integrantes das Comissões de Ensino e Formação, de Exercício Profissional, além do Setor de Ensino e Formação do CAU/SP. Todas as capacitações estão disponíveis no canal do YouTube do CAU/SP. Assista. ↗ bitlylinks.com/NAR1-7Wws

NÓS PROJETAMOS O FUTURO. A campanha de valorização do ensino de Arquitetura e Urbanismo, concebida pelo CEAU-CAU/SP, recebeu apoios importantes. Diversos profissionais gravaram vídeos e participaram da série de podcasts, debatendo temas sobre as melhores práticas no ensino da profissão. Conheça a campanha, assista aos vídeos e escute a série de podcasts. ↗ bitlylinks.com/aLwJUSywA

TERRITÓRIO PAULISTA O CAU/SP organizou uma série de encontros que já passaram por seis escritórios regionais. Na agenda aconteceram capacitações sobre Athis, Patrimônio, debates sobre a lei do Microempreendedor Profissional e fomento de parcerias com prefeituras e associações. Para acompanhar a agenda dos próximos encontros e ver os registros desses eventos, acesse o site dedicado às ações do Conselho pelo território. Confira. ↗ bitlylinks.com/8sepJxqSn

ANUIDADES. A Gerência Financeira do CAU/SP elaborou um tutorial passo a passo para os profissionais que precisam negociar o pagamento de anuidades do Conselho atrasadas. O material é bastante didático e sintetiza em somente oito etapas todo o procedimento, que deve ser feito pelo Sistema de Comunicação e Informação do CAU (SICCAU). O débito poderá ser parcelado em 12 vezes. Fique atento. ↗ bitlylinks.com/mvPcnYxZK

FOMENTO. Entre os projetos de fomento do Conselho, alguns são direcionados a difusão de trabalhos editoriais voltados ao registro de boas práticas e trabalhos de profissionais que contribuíram para o avanço da profissão. Você pode realizar o download de alguns desses livros na página de publicações do site oficial. ↗ bit.ly/3xxr5RK

ATENDIMENTO No último ano, o CAU/SP investiu na melhoria e agilidade do atendimento às arquitetas, arquitetos e à sociedade em geral. Para esclarecer dúvidas, encaminhar denúncias ou estar mais próximo do Conselho, acesse nossos canais de atendimento. ↗ bitlylinks.com/t6qiJRBTS

Projeção na sede do CAU/SP. ©ARQUIVO
78 MÓBILE #24
TAPUME → AMANDA CAROLYNE DE SOUZA DIAS
Justiça espacial, direitos e participação #24 democracia MÓBILE revista do CAU/SP ISSN: 2448-3885

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