ensaios para quase - vermelho

ensaios para quase camila nicรกcio

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ensaios para quase camila nicรกcio

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Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) NICÁCIO, Camila

Ensaios para quase / Camila Nicácio - Lorem Ipsum: Editora, 2019.

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1. Poesia brasileira I. Título 00-00000

Índice para catálogo sistemático 1. Poesia: Literatura brasileira 000.00

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para JanaĂ­na

Bagunça No organizador de calcinhas separadas por motivos tecidos e cores encontrei certa vez uma meia avulsa Perplexa eu me perguntei sobre o porquê daquela solidão.

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Ciranda Onde a filha perdoa A militante inflama A irmã acolhe E a tia transborda A professora planeja E a amante apenas se perfuma Às vezes porém tudo se imbrica tudo se embola E a mulher se ausenta deixando para trás de si seis personagens à procura de uma atriz.

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Flerte Para um flerte basta uma varanda e um interdito Na varanda os desejos fulguram e confundem os faróis dos automóveis Enquanto o interdito seduz como a fumaça em círculos de um cigarro adocicado.

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Rue Feutrier A doze horas de voo está Paris e meu passado irrevisitável Que eu visito mesmo assim E a cada ano Não por teimosia infantil Ou por ignorar o tempo majestoso Mas por essa esperança tola Que não se assume como esperança Nem se acha tão tola que não se possa exibir Entrevendo de uma calçada à outra os meus rastros de então.

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Foco cortazeano Se trinta centímetros bastam para que as coisas fiquem claras entre nós você deveria ter me dito É inútil que eu cole meu nariz no seu Mas quando você me olha sem se mover eu te sigo de perto como um ciclope indefeso Busco o perfume do seu hálito separando o marrom e o preto dos seus olhos Para que haja apenas as ambiguidades que elegermos.

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Na tela da TV

(para Toninho)

Eu acomodei vocĂŞ em fotografias As coloridas E as P&B Tenho-as para todo gosto Em que sorri e em que nĂŁo sorri Vestido de gala e para o carnaval Com barba e sem Careca e menos careca (um pouco) Velhas e velhas

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Vinte e sete anos e sua presença me acompanha por de cima da mobília Donde meu espanto (eu deveria dizer meu assombro) ao te perceber de relance na tela cheia A pele corada Vincos nas maçãs do rosto na contração de um sorriso Olhos fulgurantes como os de quem vive.

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Duas horas a mais Podem ser curtas O tempo preciso para a providência que se protelou Podem ser necessárias quando um pedido de perdão se atrasa e chega no último instante Podem ser duras Cruas Frias Podem mudar um destino bagunçando o ritmo de todas as esperas Podem ser banais horas mortas varanda esquecida modorra da tarde Mas naquele dia não foi assim.

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Velório no interior Incrível a excelência adquirida pelo tio Baleia para carregar caixão fechado Arma o peito dobra de leve os joelhos solta a respiração quase imperceptivelmente e vai com fidalguia como se o corpo morto valesse mais que a vida viva ou mesmamente A cada despedida da família – e como se avolumam! a idade ameaçando avançada – ele é ator principal para o ato derradeiro de terminar a existência e continuar o mistério.

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“Desatino” Você ouviu essa palavra como se fosse uma primeira vez Eu jamais tinha me detido nela antes do seu assombro Palavra: moldura a conteúdo variável O sexo inexato A emoção galopante.

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Telhas coloniais

(para Rosa Maria)

Naquele dia debruçadas na janela me intrigou seu comentário sobre os telhados brasileiros Bonitos sob a noite clara A vida é larga para tanta surpresa Pensei...

Sem desconfiar de que começávamos ali na extensão do acaso do álcool e da sorte mais venturosa uma história com eira beira e tribeira sem vontade de ponto final.

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Inominável Me ampara que cada coisa tenha seu nome E que os “solstícios” e as “elipses” não se confundam seja por praticidade ou ilustração Esse é o nosso fundamento dogmático e também nosso horror a vertigens Mas nessas horas agudas em que seus lábios se descolam e por trás sua mordida – forte como a de um cavalo – se desvela As línguas parecem cansadas do seu ofício antigo.

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Flashes

(para meu pai)

Hoje ouvi uma frase dura (Como se eu já pudesse suspeitar) Me caiu como uma sentença: “A memória não é uma máquina fotográfica...”

Ela reconstitui reelabora recria avança em grandes marés revolve sargaços recua com o poente Memórias verdadeiras Falsas memórias Verdadeiras memórias que eu invento Para me trair à vontade numa sequência de flashes em que você não está.

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Inventário para nomes de esmaltes Doce orgulho Beijo roubado Sereia Capadócia Me belisca (!)

Doce oceano Manjar de tapioca Nunca fui santa Chão de estrelas Marrom mutante Deixa beijar (...)

Os nomes sendo só nomes evocam performances criam narrativas de empréstimo Outro dia num arco reflexo simples sem titubeio escolhi: “Paixão intensa”.

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Domingo Consultei o calendário menstrual uma relativa paz anunciada por ali Pelo dia do mês as faturas já estão pagas e os credores sem interesse em ameaças Joana dorme em sua cama de criança grande o suficiente para os próximos cinco ou sete anos Nada urge No apartamento com luzes baixas e amareladas a sensação de estar ao abrigo de linchamentos e escrachos públicos chega a constranger nessa hora grave Mesmo o amor célebre em sobressaltar e confundir repousa saciado de banquetes Em um canto porém com rabo de olho a Existência me encara perplexa incompreendida E segue teimando em doer no seu existir.

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Pathos Quando eu soube que era esse o diagnóstico tive vontade de me dispersar pela cidade Me abstrair no abre-fecha dos semáforos Vagar por entre as gôndolas dos supermercados Ouvir o homem pregando na praça aberta me deter ali instantes rezar também Mas nada foi possível a prece a dispersão mesmo o instante Até que a febre consumptiva irreverenciosa deixasse de arder.

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Espetáculo da fé Naquele dia o Pai falou: escreve tua poesia e segue Evita pipoca às segundas A aguardente reserva ao Senhor das caças Não temas o breu o frio o silêncio nos orifícios das palavras E repara: na sua imperiosa existência elas também estão desamparadas.

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Isadora aprende a ler Vendo a menina soletrar sílaba por sílaba do para-casa E se angustiar à descoberta de que o “ch” não tinha (miseravelmente !) o mesmo som em “Zacharias” e em “crachá” Eu desejei tomar suas mãos pequeninas e confortá-la: Prepare-se, meu anjo, é nessa teia-emaranhado em que pulsamos...

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Sede Primeiro o toque leve dos lábios Estão molhados Tremulam entre a língua e a pele Depois os dentes Se armam Se alinham Encosta de marfim na extensão de incisivos e caninos Uns dirão dor Outros fúria O prazer à espreita se cala.

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Millésime Notas cítricas amadeiradas Nos primeiros movimentos se intensificam Tomam todo o corpo Enrubescem Dos lábios à língua Da língua ao palato Carvalhos e agrumes traduzem o sexo à moda de um vinho velho.

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Mise en scène (para mim) O figurino é o que deixo pronto na véspera Calça e camisa dispostas no espaldar da poltrona Aqueço a voz vibrando a língua apoiada nos dentes em escalas afinadas de dó ré mi Os braços vão ao longo do corpo E as mãos às vezes se cruzam nas costas deixando exposto o lugar onde normalmente se encontra o coração A cada manhã sai de casa uma atriz tomando de empréstimo a dor do mundo num corpo cansado de ser só seu.

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Lolita Ela sabe fazer cada gesto Círculos ritmados Lunares Grandes extensões de prazer Nada a intimida na sua geometria seu balanço inexato E em um movimento anguloso associa pernas ventre quadril pernas Para o salto final sem rede de segurança.

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Música brega De laboriosa definição a música brega cativa Caminho sonoro previsível?

Palavras que não escondem ao que vêm Amor paixão ruptura desejo loucura...

Onipresentes como um perfume barato?

Ou por que irmana a todos – e tão perfeitamente! – (sem que importe a cor da pele o ofício a distinção) nesse lugar insondável onde se vive o afeto como quem rifa um coração?

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Caderno de campo O olhar fixa na retina o instante fotográfico Captadas no intervalo entre mirada e piscadela percepção e criação se irmanam entre-pertencidas Os ouvidos ensaiam triagem Apuram-se Zum zum zum ao redor da lâmpada Gritos e aboio ao longe Chuva se armando Atonais sussurros Deito o-tudo-aquilo no meu diário E deixo entre as linhas e nas margens à direita espaços amarelados Glosas inteiras para o que você não deixou escapar.

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Atalho Sempre gostei de poemas curtos As frases se resolvem sem embaraço Palavra seguida de palavra Ou sozinhas Em staccato e rápida vertigem Talvez por medo Longas extensões solitárias Caminhos noturnos Estrada branca Ou mais simplesmente Por não saber o que fazer – livre – nesse jogo de armar.

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Sutilezas Que pena não haver mais o Itamar Assumpção! É lícito lamentá-lo quando se carece de uma palavra descomplexada e só se tem os próprios recursos Ser feliz é bem possível a lua cheia me reduz a pedacinhos Sem rancor eu lhe dedico esses versos que ele – sem dúvida – teria escrito para você.

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Segundo um escritor famoso

(para o meu pai, também)

Eu não me lembro Mas eu gostaria muito – mesmo tanto – de me lembrar Às vezes aperto os olhos vou franzindo a testa os lábios se armam sobre as gengivas como se pudessem espremer a memória fazê-la sair pelos orifícios nariz ouvidos boca Mas ela não vem Há apenas silêncio e sob ele – quiçá – interdições e uma certa alegria Não há vácuo contudo Se há esquecimento é porque há memória.

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O sal de você O seu gosto maior parece ser fazer graça Mais de uma vez disse que adorava me fazer rir A canção distorcida O trocadilho inusitado O recurso a mil personagens reais inventados no seu mundo de riquezas Nessa performance apenas não percebe que a cada riso arrancado de mim é um punhado de afeto que se instala querendo ficar.

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Na fila da loteria Por ora não se sabe se é pela conta de luz ou pelo próximo sorteio Mas desde a loteca a fila já dobra o quarteirão Muitas pessoas e tão várias Repare aquele homem ainda moço e já com o peso do mundo arqueando-lhe as costas A dona de casa mal teve tempo de realinhar os cabelos e rescende a cera incolor e feijão fresquinho Crianças se agitam ao lado da moça de branco (não deveria passar à frente dos demais ocupada na tarefa de educar os filhos dos outros?)

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Mas há os idosos e com eles nosso tesouro ancestral Antes que se os reduzam a empecilho para o equilíbrio das contas públicas À sua moda lá vão eles todos sem identidade que os defina vão pintados de moreno nessa comunidade improvisada de destino Os brasileiros e o brasil – país do futuro – na fila interminável da esperança.

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Romances Existem os monumentais Quinhentas páginas que impressionam e metem medo As tramas são intrincadas o amor sempre mais antigo do que é Existem os urbanos Se estendem da Penha ao Brás Embotam a poluição local entardecem sobre os telhados das fábricas Existem os paralelos de uma mão à outra graves Contra a gravidade Sem esperança de dia seguinte A menos que ele venha e surpreenda.

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Lado B Nos meus vinis a ordem das canções sempre me intrigou Por alguma arbitrariedade fora do meu alcance a calmaria sempre vinha antes do movimento dos barcos E o amor antes da jura secreta Por isso me interessa agora meu dedo médio no buraquinho do disco girando equilibrando investigando: no cara ou coroa qual será nosso lado B?

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Joana sai de férias Dias opacos e sem alaridos

As princesas estão em seus castelos sob o sono de um feitiço triste Não há rocas nem maçãs mas se enclausuram à espera de um chamado em língua estranha Nas aquarelas nada se move Nuvens são só nuvens E o amarelo se cansa de amarelar na solidão estática irremediável do vermelho intenso e sonhos de laranja purinho feito um suco coado Mesmo as bruxas travessas serelepes traquinas se entediam E tramam vinganças de fazer rir bruxosamente Pêlos nas palmas das mãos Chás de lesmas Percevejos na cama

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Entre geleias corridas cartas seladas e tantos adesivos um coração tambÊm espera batendo em suspenso feito bolinhas que quicam e quicam sem ter pra onde ir.

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Aritmética Como viver dessa maneira eu que não sou você e vejo apenas caos onde você vê coerência?

Quando você me ensina a subversão dos sentidos a magia da sua própria magia se encanta Mas só para mim conta: como querer que uma metade ao meio seja inteira metade?

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Flagra (para Ana Martins Marques) As silhuetas se confundiam ombros braços dos homens braços das poltronas mãos Da arena iluminada os atores comoviam sensibilidades diversas na sala escura Enquanto da terceira fila a moça escrevia às cegas em uma caderneta improvisada Antecâmara para outro espetáculo.

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À mercê Você não me impõe nada Fala apenas dos benefícios de longos galopes nua sobre um cavalo em disparada Eu não lhe nego nada Livre eu mesma para ir para ficar trânsito sôfrega à mercê da sua liberdade.

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Trânsito (para Júlia Vidal) Nasce de um jeito Vive de outro Como vai morrer?

Com medo – suponho Como cada um Mesmo os que dizem que não Narrativa humana na terra é geral e singular Donde ser inútil que me perguntes o que faz do homem, homem da mulher, mulher Vez que aqui estamos todos entre o desejo e a morte Em trânsito Travessia.

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Minas - São Paulo De repente a urgência se instala As coisas sérias decisivas no seu tamanho e elemento Não ditas guardadas em segredo Fluem Na intenção de mudar um destino E porque você não está aqui Porque eu não estou aí E não estamos as duas Em algum lugar perfeito qualquer O imperativo e as palavras não sossegam.

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Profissão de fé A mãe O pai A tia Uma outra tia Por que escolheram esse ofício impossível?

De onde sua confiança na transmissão quando tudo parece repetição e cansaço?

Sem que me tivessem prevenido Sem que os genes me cobrassem alguma lealdade Eu cumpro a sina até que o enigma se esclareça.

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Desmazelo Cutuca maltrata o descuidar-se de um amor e nada mais é tão grave Naquele dia você poderia por exemplo ter zombado das minhas calças curtas ou comido a fatia mais doce do abacaxi Mas não Do que retive do todo foi seu olhar de felino ferido Na pata direita para piorar meu desmazelo Dor sobre dor sem começo nem fim o novelo.

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Isadora aprende a ler ainda Meu afeto se mobiliza Não só porque a cena seja tão doce Os olhos da menina comendo as palavras cismados diante do maravilhamento de um mundo novo sem retorno que ali se lhe apresenta Mas é por saber que ela não sabe disso ainda e que se lê “ar-der” separando bem o “ar” e o “der” pensa apenas que a combinação poderia ser “der” e “ar” sem prejuízo de nada Pensa por exemplo que cada um daqueles pedaços são palavras também embora distintas do conjunto E pensa sobretudo no joelho ralado e no mertiolate por cima Mas não pensa no desejo na febre em você.

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O par de meias (para Antônios) O momento após o banho era de toda delicadeza A respiração faltava descompassada O corpo já muito magro se equilibrava como podia sobre as pernas titubeantes Ao lado da cama um balão de gás adornava a cena Devia ter o meu tamanho ou seguramente um palmo a mais que meu irmão Não parecia balão Nem tampouco inspirava ter gás respirável Na minha mente de criança restou um todo indissociado Peito arfante chumbo borrão E um afeto para sempre adiado em um par de meias que não se calçou.

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Voo Paris - Rio A história era assim Na película, a pele, os pêlos morenos entrelaçados em largos movimentos de vaivém ao ritmo do mar ao fundo Talvez por apreender as turbulências Talvez por não poder fazer diferente Fingi ser você e eu naquela praia sem nome em que nunca estivemos.

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Viagem pelo interior Começa cedo Termina tarde Corta vilarejos Circunda rios matas indústrias De dentro do ônibus refrigerado eu me contorço de frio em busca do pouco de sol disponível que ao gosto da estrada sinuosa bate ora do lado esquerdo ora do lado direito sem pressa de decisão Feito esse sentimento Sem eixo Sem centro Sem nada.

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Mano a mana Se você tivesse nascido no Benim e eu no Japão Só teria restado um plano da conexão Porém de outro modo sucedeu e não foi bem assim Foi pela palma foi pela mão a minha pra você a sua pra mim E quase juntos andamos pela primeira vez nesse momento sem talvez que te irmanou que me irmana até aqui Eu poderia ter sido Lúcia você, Carlos e tantos outros diversos de nós E no universo sereno e seu arbítrio algoz calhou de ser você você e eu, nós

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Nesse sangue lugar e tempo maior do que parece menor do que se crê merecer tempo exato que nos irmana que nos irmanou No dia em que você não houver no dia em que eu não estiver mais restaremos anônimos nesse afeto que se cantou Lilia para Toninho Bethania pra Caetano Cícero para Marina Antígona pra Policine Estaremos ali você que foi você eu que fui eu e a fortuna imensa que nos irmana que nos irmanou.

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Atlântico O mundo está mudado aqui em casa E é o mesmo trânsito das gentes Na minha casa o mundo passa aqui inteiro E o rio no meio partindo tudo alinhavando Eu pergunto à dama ao lado aonde vai dar a corrente se faz sombra àquela margem É a dama, minha, dame, nôtre É minha mãe na cozinha emocionada com o arroz queimando no fundo dando rapa e a melodia antiga que assovio.

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Casa loteada Armários ao meio três partes para você Para mim também três partes Número igual de gavetas para cada Armarinho quarto escritório E em um canto da sala Talheres e louça para uso compartilhado como o tédio o vinho mesmo o desejo.

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ChĂĄcara do Sol Ao redor de uma grande figueira ainda gravitam cĂŁes vira-latas e palavras raras Como uma mulher antiga.

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Cicatrizes Geralmente fronteiras que de marcam um antes e um depois as cicatrizes intrigam Ora serpenteiam no corpo se estendem pernas e braços onde se expõem altivas Ora se calam

guardam segredos escondidas

Quanta dor pode caber na delicada espessura?

No seu caso não se mostram tampouco se escondem Ocupadas em de um lado ora ora desse

comunicar ao outro do peito

a doçura o desassossego afeto.

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Sem paradeiro Pego a minha canoa e danço no teu círculo vibro nos teus trópicos Nada pode me deter Tenho virgem na minha lua sou sub equatoriana multi ultra desejos de paragem Te sigo, te ultrapasso conto fronteiras de chegança Passos teus na minha sombra caótica miragem mesmo esperança.

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José (para Ana Massa) Quando estou triste ele redobra comigo o carinho E sem que eu peça ainda por cima!

Pois não pediria Não quero nada!

Farta da ciranda sem fim desse dom e contra-dom Noutro dia compreendendo ao seu modo o meu desterro - palavra fora da sua órbita veio dar com a língua na minha bochecha Alheio à ciência das trocas à minha indiferença à falta de jeito daquele amor.

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Cometa A máquina é grande Daqui vejo a parte do meio A cauda parece um sem fim que não acompanhará a cabeça na curva mais angulosa A carcaça é dura Temível em suas linhas retangulares Gravíssima e sem charme Ao lado à frente dentro Vai o Senhor daquela Engenharia Um bicho da terra tão pequeno que não sobreviverá às ferragens À cor azul À passagem do próximo cometa.

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Camila Nicácio Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e autora do livro Courts-métrages, poèmes visuels (Éditions Thot, 2011).

Este livro foi cosposto por acomte em meridien e impresso pela grรกfica em offset sobre papel pรณlen bold da suzano papel e celulose para a editora tal em outubro de 2019.