Madeline Hunter - Os Libertinos 03 - Nobre & Poderoso

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NOBRE E PODEROSO MADELINE HUNTER

Suspeito do assassinato do irmão, Lancelot (Lance) Hemingford, duque de Aylesbury, não vê outra solução senão o anonimato. Desgostoso, o jovem troca a vida rebelde de Londres pela quietude do campo. Mas assim que surge uma oportunidade de limpar o seu nome, ele não hesita. A “única” coisa que tem a fazer é propor casamento à sobrinha de um vizinho... Tarefa fácil e potencialmente interessante, pois Lance não resiste ao desafio de seduzir uma donzela relutante. Marianne Radley, que depende do tio para sobreviver, vê-se agora encurralada. A jovem não tem outra alternativa que não a de aceitar a mão de Lance. Mas Marianne tem um plano: tenciona descobrir os segredos mais sórdidos do futuro marido e expô-los ao mundo. Este seria, de facto, um plano infalível. Mas para o levar a bom termo, ela terá de ser totalmente imune aos encantos de um duque devasso... e encantador. Depois de Uma Reputação Perigosa e Alto, Moreno & Provocador, Nobre & Poderoso vem completar a série Os Libertinos, uma trilogia plena de intriga e paixão.


CAPÍTULO 1

O mundo inteiro tremeu. Foi esse o primeiro pensamento de Lance quando lentamente a vigília lhe chegou: que todo o maldito planeta ressaltara pelo Universo. O violento movimento fez com que sentisse a cabeça prestes a explodir, e aguentar gerava-lhe uma exaustão tão profunda que ansiava regressar ao bem-aventurado esquecimento. Só que não conseguia, por causa do maldito movimento. Um pouco mais de consciência emergiu. Não fora o mundo inteiro, apenas a sua cama. No instante seguinte, a consciência do prazer abalroouo. Que diabo...? Forçou a abertura de um olho. Pele. Seios. Coxas roliças. Longas madeixas de cabelo loiro. No seu quadril estava sentada uma mulher, com as pernas de par em par. Tirara partido da sua ereção matinal. Uma vez que ele não começara, nem consentira, nada daquilo, a situação era o mais próximo da coação ao prazer que já havia experimentado. Quem diabo seria ela? Fechou os olhos e, por assim dizer, desfrutou. A mente dorida e anuviada tentava recordar onde se encontrava e como tinha ido ali parar. A última coisa de que se recordava com nitidez era de ter saído à pressa de Merrywood Manor no seu cavalo, dois dias a seguir ao Natal, depois de ter despachado os irmãos e respetivas mulheres de volta a Londres. Algo nele se rompeu assim que as carruagens se afastaram; cavalgou vigorosamente durante quilómetros, furioso com a sua situação impossível, até que, ao cair da noite, chegou a uma cidade mesmo do outro lado da fronteira com o Herefordshire. A mulher gemeu. Balançou-se sobre ele com mais ardor. Se sentisse força suficiente, Lance teria assumido o controlo, e talvez a cabeça não lhe martelasse assim. Poderia até pará-la, já que não estava, nem de longe, a ser tão bom como deveria. Ela terá notado que se agitou. Inclinou-se para a frente, continuando


os batimentos contra a anca dele. Beijou-o. Sabia a cerveja. Endireitou-se novamente. Cerveja. Já sabia quem era. Estivera numa taberna, onde uma jovem servia cerveja; tinha flirtado porque, para além de muita bebida, era para isso que cá andava. Ela terminou com um ruidoso gemido. Já o seu próprio clímax foi mais uma lamúria. A mulher não se mexeu. Soltou uma pequena risada e inclinou-se para lhe beijar o peito enquanto o acariciava. – Coitadinho. Todas estas pisaduras. Lutaste como um leão, lutaste. Três contra um é injusto, mas aguentaste-te, não foi? Cada beijo provocava-lhe um pequeno golpe na cabeça. Pisaduras. Não admirava que se sentisse arrasado. Só não conseguia lembrar-se de um único momento. Mesmo assim, o seu orgulho resplandeceu estupidamente ao saber que se havia aguentado. A boca dela comprimiu-lhe a parte inferior do peito. Foi então que outra pressão surgiu, num ponto junto ao ombro. A mente refletiu. A sensação era como se... – Para um homem que levou aquelas pancadas todas, não desiludiu. – A voz que proferia aquelas palavras soava mais profunda do que a da loira. Mais velha. Uma parte do cérebro pôs-se alerta. Analisou dolorosamente os últimos cinco minutos. Abriu os olhos para ver o que era o quê. A loira sorriu-lhe, de onde o queixo lhe repousava no torso. A partir do ombro, outro sorriso irradiava. Eram duas. Observou o ambiente em volta. As paredes exibiam o meio revestimento de madeira e o estuque rugoso tão comuns nas antigas estalagens. A cama mal daria para dois, quanto mais para três. E, no entanto, cá estavam eles. Prestou atenção ao seu corpo. Oh, sim, montes de golpes, era evidente. Esticou a mão direita. Os nós dos dedos não queriam endireitarse por completo. Maldição, devia ter sido uma senhora luta. A loira desceu e acariciou-o. Sorriu. – Se não me engano, estás outra vez pronto. – E principiou uma investida descendente de beijos.


– Não. – A voz de Lance soou estrangulada. A face doía-lhe. Ergueu a mão e tateou-a, com cuidado. As dores disseram-lhe que, se não fosse a barba, provavelmente pareceria meio-morto. – Não? – perguntou a voz mais velha, provocando. – Que cavalheiro que ele é, Joan. Não que há duas horas se tivesse percebido. Não vi ninguém desse tipo, Jamie. Jamie? Usara um nome fictício. Que arguto. Não conviria ao duque de Aylesbury estar ali, com duas mulheres. Não quando era suposto estar a viver a vida mais monótona, entediante e desanimadora alguma vez imaginada, para provar o quanto podia ser bom. Se de vez em quando fosse a Londres ou cavalgasse até ao Herefordshire para fingir, por umas horas – ou uns dias –, que a sua vida não se tornara tão intolerável, não o podiam culpar. Sentou-se, o que significava que ambas as mulheres precisavam de se mover. Gesticulou à loira para que saísse da frente, de forma a poder rodar as pernas para o lado de fora da cama. Pegou nas roupas. – Senhoras, preciso de partir. Agradeço-vos a companhia. Um estrépito de risadas saudou as palavras. – Oh, não, senhor, nós é que lhe agradecemos – disse a mulher mais velha. – Pena que ninguém vá acreditar em nós, quando contarmos. – Também, ele é muito cavalheiro. Ouviste? Senhoras, agradeço-vos a companhia. – A loira suspirou. – Tem de prometer-nos que vai voltar. Ele voltaria, se fizesse a mínima ideia de onde estava. Uma vez que não fazia, limitou-se a sorrir, o que lhe magoou a face. – Quanto vos devo? A mulher mais velha contraiu a cabeça contra o pescoço dele, enquanto lhe pressionava as costas com os seios. – Já pagou tudo o que devia. Não nos importamos com todos aqueles extras. Pois não, Joan? – De todo. Foi uma noite magnífica. Era deveras irritante ser o único que desconhecia a que diabo se referiam. Quando um homem é magnífico quer saborear a memória, caramba. Apressado, começou a vestir-se. Mesmo assim, elas não saíram.


Ignorou-as, e às pisaduras, e à mão com cãibras, e à forma como o cimo da cabeça carregava um peso de chumbo. Por fim vestido, fez uma vénia e deixou-as aos risinhos. Encontrou a saída descendo umas escadas, de encontro ao ofuscante sol de dezembro e ao ar frio corrosivamente revigorante. Ambos o fizeram gemer. Ao que tudo indicava, desfrutara de uma noite e tanto. Uma boa luta, uma boa pândega e boa luxúria – justamente o que desejava quando procurava sarilhos. Por norma, uma noite como esta confortá-lo-ia cerca de um mês. Exasperava-o não se lembrar de nada. Nem de uma única coisa.


CAPÍTULO 2

A flor reparara nele. Foi o que primeiro Lance pensou ter visto através dos ramos: uma flor desabrochada no cemitério, apesar do frio de janeiro. Impossível, como era evidente, a menos que alguém tivesse comprado numa estufa um bouquet para colocar na sepultura de Percy. Não conseguia imaginar ninguém a fazêlo. Depois de nove meses seria uma atitude muito tardia, desperdiçada num homem que não deixara um legado positivo. Não era uma flor, mas uma visão de igual modo encantadora, como veio a revelar-se. Uma mulher cavalgara até ali, num cavalo do mesmo cinzento manchado que os ramos áridos. O cavalo comia erva junto ao muro baixo que circundava o cemitério. Ela devia ter usado o muro para desmontar. Naquele momento examinava, sem emoção, a sepultura de Percy. Poderia estar a observar uma nova pintura. A tonalidade profundamente rosa do seu traje de equitação contrastava em absoluto com as árvores sombrias. Até as pedras cor de aço da capela pareciam concebidas para a tornar mais atrativa. O cabelo acobreado, matizado com ouro, chamava a atenção para os olhos de um azul intenso. Passara algum tempo desde que havia desfrutado da visão de uma bela fêmea em Merrywood Manor, que não fosse sua familiar. O sangue agitou-se-lhe; ele poderia ser um daqueles velhos carvalhos e a primavera tinha chegado. Nessa altura, ela já reparara nele. Ocultar-se no bosque iria fazê-lo passar por pateta. Deu uns passos em frente, para a orla da clareira. A mulher arqueou uma sobrancelha. O que quer que tenha visto nele não a impressionou muito. Lance percebeu as conclusões que ela tirou do mosquete e das lebres que transportava. Passou por cima do muro, pousando depois a arma e a caça no chão.


– Está a prestar homenagem? – perguntou, ao aproximar-se dela. Achou que o pequeno nariz arrebitado e a boca larga eram muito atraentes. Claro que, no seu estado de isolamento atual, provavelmente consideraria qualquer jovem apelativa: a abstinência tem esse efeito nos homens. Naquele momento, deixou-o a pensar que preferia pequenos narizes arrebitados a qualquer outro tipo. – Não conhecia pessoalmente nenhum deles. – Ela apontou para a monstruosa pirâmide. – Deve ter sido muito admirado, para lhe terem construído tal sepulcro. – Foi ele mesmo quem o construiu. Ou, pelo menos, começou-o e deixou fundos para a sua conclusão, caso morresse cedo. – Isto é, como os faraós do antigo Egito. Diz-se que aquelas pirâmides eram iniciadas logo que um homem se tornava rei, porque nenhum ousou confiar no sucessor para o fazer. Uma flor instruída, pelos vistos. Tinha o tipo de rosto que pareceria inexperiente, amigável e ameninado mesmo quando envelhecesse. Olhos brilhantes, grandes e gentis, faces cheias, covinhas... – É visita da casa? – Sabia que não, mas pretendia que a conversa continuasse. Ela abanou a cabeça. – Está perdida? – Não. Tinha curiosidade, apenas. Suponho que estou a invadir propriedade privada. – Dirigiu-lhe um sorriso matreiro. – Como o senhor? Apresentava-se uma ótima oportunidade para explicar quem era. Mas, se o fizesse, o mais certo era ela fugir. A sua reputação nunca fora do tipo que encoraja as boas raparigas a perder tempo, e no último ano até homens adultos o tratavam com precaução. O «duque perverso», assim veio a ser chamado, como desoladamente lhe contara o seu criado. Em suma, quase um ano a viver como um fidalgo rural monástico, preocupado apenas com o bem-estar dos vizinhos. Fora ideia do seu irmão Ives: que um estilo de vida correto e moral levaria as pessoas a pensar o melhor sobre ele. Ives tendia a ser demasiado otimista, no que se referia ao seu semelhante. – Não estou a invadir. Estou autorizado a estar aqui – disse. – É exigido pela minha posição. Não sou um caçador furtivo, se foi o que assumiu.


– Oh. – Ela corou. Lançou um olhar ao mosquete e às lebres. – Claro. Para quê ter terras de caça, se ninguém caça? O duque deve ter muitos batedores, sem dúvida. Admira-me é não ter visto nenhum hoje, antes disto. – Garantidamente, Aylesbury não necessita de um exército para encher a cozinha e os frascos de conservas dos caseiros. Aproximou-se dela devagar, observando-a tal como observava as presas quando caçava, à procura de sinais de que fugiria. Esperava que não. Esta simples troca de palavras fizera com que se divertisse mais do que em semanas. Meses. A seiva começava agora a fluir com intensidade. Fosse-lhe dada a mais pequena oportunidade, o mais ligeiro encorajamento, e naquele mesmo dia colheria uma bela flor. Encher-se-ia a bel-prazer do aroma do seu néctar. Morderia e lamberia a superfície aveludada das suas pétalas... Afastou tais considerações do pensamento. Não era, na verdade, um duque perverso. Bom, não com as filhas das boas famílias vizinhas. Não por norma, pelo menos. Porém, não conseguia recordar-se de algum dia a ter visto pelo condado. – Vive nalguma das propriedades vizinhas? Ela pensou antes de responder, o que ele achou peculiar. – Sim e não – respondeu. Ainda mais peculiar. – Estou de visita a um familiar – explicou. – Propôs-me que morasse em sua casa. Sou dependente dele, mas não sei se me agrada a ideia de ser tão dependente. – Parece ser um homem generoso. Talvez fizesse bem se o deixasse ajudá-la mais do que já ajudou. – Parece generoso, não parece? Mas uma vez que, por natureza, ele não é esse tipo de homem, estou desconfiada. – Corou e fez um pequeno gesto ondulante com a mão. – Tenho a certeza de que vai correr tudo bem... – Voltou a atenção, uma vez mais, para a colossal sepultura. – Não conte à família que alguém disse isto, mas não está bem esculpido, talvez devido à pressa na construção. A figura deste homem aqui tem um aspeto forçado e é quase deformada, pela forma como está retorcido. Tal como o carácter da pessoa cujo corpo repousava sob a estaca. – Esse é o problema dos marcadores de sepultura: pensa-se que não


é correto retirá-los mais tarde. Imagino que vá permanecer como o vê por gerações. – Talvez o novo duque deixe crescer hera sobre ele. A mulher caminhou por entre os outros marcadores. Ele seguiu-a, longe o bastante para não a alarmar, mas perto o suficiente para receber o aroma a água de rosas. Até cheirava como uma flor. Ele pensou se estaria mais quente dentro da pequena capela, e tentou lembrar-se se existiam alguns coxins com que se pudesse improvisar uma cama grosseira. Não que fosse tão perverso que seduzisse uma jovem empobrecida, aparentada com um dos seus vizinhos. E, mesmo que fosse assim tão perverso – o que metade de si colocava a hipótese de ser, e o seu todo desejava ardentemente ser –, nunca o faria numa capela, num chão de pedra frio. Mesmo enlouquecido pelo isolamento e pelo tédio, tinha alguns padrões. A copa de uma árvore abriu-se por cima do centro do cemitério. A mulher entrou num pequeno lago de luz solar que se formou por baixo. Os reflexos dourados no cabelo brilharam intensamente e os olhos tornaram sua a cor das violetas. Imaginou-a de cabelos soltos, caindo livres em volta dos ombros, descompostos por uma noite no leito. Ela observou a pedra da sepultura do seu pai, tão despretensiosa no estilo quanto a do irmão era arrojada. – Eu morei nesta zona – disse. – Há anos. Lembro-me deste duque. Era conhecido como um homem bom. – Era-o, de facto. – Um homem bom, mas não perfeito. Mesmo assim, não era mau. Não era retorcido nem perverso. – Quando é que viveu aqui? Não lhe ocorreu nenhuma imagem de uma rapariga parecida, mas ela não devia ter mais de vinte e dois anos, aproximadamente. Se por «há anos» se referia nem que fosse a cinco anos, ele não teria prestado atenção à rapariga que ela era quando habitou o mundo dele pela última vez. – Foi há muito tempo. Contudo, conheço algumas pessoas. – Então não se sentirá desconfortável se for às festas do condado. Deverá haver uma na próxima lua cheia. Por alguma razão, a afirmação atraiu toda a atenção dela para Lance. Examinou-o com desconfiança. O olhar fixo despendeu um bom bocado de tempo nas suas vestes.


O nariz elevou-se. As pálpebras desceram. As costas tornaram-se rígidas. – Creio que tem estado a induzir-me em erro, senhor. Não é um batedor de caça.

– Nunca disse que era um batedor. – Ofereceu-lhe um sorriso hesitante ao responder. – Permitiu-me que acreditasse que era. – Permiti-lhe concluir que não sou um caçador furtivo, o que não sou. Nunca falámos sobre a minha situação específica aqui. Seja como for, estou curioso. O que foi que me denunciou? – O casaco e as botas. À sombra a qualidade não era visível. Mas aqui, ao sol, consigo... – Consigo tão perto, quase disse. Ele estava perto; avançara disfarçadamente, de alguma forma, enquanto conversavam. Ela pôde então ver a boa lã dos casacos e o excelente acabamento das botas. O chapéu, com a copa baixa e plana, pouco tinha a recomendá-lo, e a barba indicava que não cedia a nenhuma moda, mas era mais alto do que um caçador do séquito de servidores do duque. – E depois a menção que fez às festas. Duvido que um batedor de caça as frequente ou pense nelas tão prontamente. E também porque o seu discurso é instruído. – Ela listou os sinais, alguns dos quais apenas naquele momento, enquanto o examinava, reunia. – Creio que sei quem é. Um pestanejar com humor assomou aos olhos dele. Eram escuros e intensos, mas não ameaçadores ou cruéis – pelo menos ela não pensava que fossem, ainda que a proximidade lhe causasse algum desconforto. Por isso não sentia medo, antes uma agitação nervosa, como se o passeio pudesse ter um resultado diferente do que esperara quando saiu, e este homem fosse a razão. Afinal, era um estranho e, não obstante os bons casacos, fora muito rápida a entrar em diálogo com ele. – Quem pensa que sou? – perguntou Lance. – O administrador. – O administrador. – Ele riu-se discretamente. – Primeiro um caçador furtivo, depois um caçador, agora um administrador. Estou a subir depressa


na sua estima. Se nos demorarmos mais dez minutos, vai proclamar-me o duque. – Ela desatou a rir e ele juntou-se-lhe. – Pareço um administrador? – Não, de todo. Daí o meu erro. Penso que o seu amo se encontra em Londres a armar as confusões que há muito tem reputação de apreciar, e que, sem ele por cá, o senhor desfruta de hábitos mais singelos na sua apresentação. Ele tateou o rosto. – Refere-se à barba? – Refiro. – Não lhe agrada? – Não, mas a minha opinião não tem importância. Presumo que, mal o duque regressar da cidade, se barbeará de imediato. – Se me barbear por minha conta, dançará comigo na próxima festa? O tom de voz dele possuía uma suavidade sedutora, mas não foi isso que a aturdiu. Algo que não conseguia nomear – uma corrente muito masculina – apanhou-a de surpresa. – Não se barbeie por minha causa, senhor. – Está a dizer que não dançará comigo em nenhuma circunstância ou que o fará ainda que eu não me barbeie? – Eu... hum... se formos devidamente apresentados, poderei dançar... Isto é... – Balbuciava como uma idiota. Parecia que ele se tinha aproximado ainda mais, apesar de não se ter movido. Olhou em volta. Ali estava ela, num cemitério, a falar com um desconhecido que à última da hora se havia revelado uma presença formidável. Era como se exercesse um poder que a impelia para mais intimidade e maior proximidade física. Ele podia ter tirado um manto sob o qual estivesse escondido o seu verdadeiro eu, e revelado a capacidade de hipnotizar como um mágico. Não era imune ao encantamento que ele lhe lançara. Deu por si a desejar que a convidasse para dançar na próxima festa. Ao mesmo tempo, não conseguia ignorar a sensação de perigo iminente. Este encontro fortuito tornara-se demasiado íntimo em pensamentos, se não mesmo em palavras. Recolhendo a saia, virou-se para o cavalo. – Tenho de ir. Ele arqueou-se e levantou a longa cauda que tornava o traje de equitação inconveniente para tudo, à exceção de montar. – Vou ajudá-la a subir para o cavalo.


– O muro servirá. Foi assim que desmontei, ali mesmo, onde o toco da árvore se eleva até metade da parede. Sou bastante ágil e a Calliope está muito bem treinada. – Se o cavalo se mexer, vai magoar-se. Além disso, vai parecer muito deselegante a subir primeiro para o toco, depois para o muro e depois para o cavalo. – Ninguém me vê, para se importar se pareço deselegante. – Eu vou ver. Se não fosse tão bonita, distanciar-me-ia e apreciaria o espetáculo. Prefiro, porém, ajudá-la a montar com alguma graciosidade. Não lhe ocorreu nenhuma forma de o dissuadir. De qualquer maneira, era certo que não lhe ia permitir mais do que auxiliá-la a subir para o toco da árvore e para o muro e a segurar o cavalo. Foi o que lhe explicou assim que chegaram a Calliope. Ele olhou-a como se tivesse acabado de falar em chinês. O coração batia-lhe com força. Ele dispôs com cuidado a cauda do traje sobre o braço dela. – Está pronta? – A voz dele provocava, como se estivessem prestes a fazer algo ousado. Aproximou-se, muito perto. Ela cheirava a couro e a algo picante. As mãos agarraram-na com firmeza pela cintura. Os pés elevaram-se do chão. Não a levantou num movimento rápido. Antes a ergueu como se não pesasse nada, devagar; tão devagar que por um longo período de tempo a face dela permaneceu junto à dele, que a olhou profundamente nos olhos; tão devagar que o seu corpo sentia o calor do corpo dele. Ficou sem fôlego. Logo depois estava sentada em cima de Calliope, embaraçada e intimidada. Ele olhou para cima. – Pensou que ia beijá-la? – Claro que não. Que disparate. Nem sequer sabe o meu nome. – Se acredita que um homem precisa de saber o nome de uma mulher antes de a beijar, é muito inocente. Demasiado inocente para falar com estranhos na floresta. – Entregou-lhe as rédeas, enquanto lhe cobria as mãos com as suas. Mãos quentes. Fortes e surpreendentemente macias. – Certificar-me-ei de que, muito em breve, somos apresentados de modo adequado, já que para si é importante.


Ele afastou-se, pegou no mosquete e nas lebres e desapareceu na floresta. Ela desejou ter ido embora primeiro, com um pontapĂŠ em Calliope e uma resposta inteligente. Em vez disso, ficara perante ele, espantada, como uma rapariga que nenhum homem antes tentou seduzir. O que era quase verdade.


CAPÍTULO 3

–As malas chegaram – disse a mãe de Marianne, assim que esta surgiu no terceiro piso de Trenfield Park. Marianne, a mãe e a prima Nora haviam apanhado em Calne uma carruagem até ali, mas a bagagem viera por comboio. Continha todos os seus bens materiais, à exceção dos que trouxeram com elas. – Foste andar a cavalo? – perguntou a mãe ao reparar no seu traje. – Sir Horace disse que quer que o acompanhes. Tornou isso bem claro, no jantar de ontem. – Também posso andar a cavalo sozinha. Espero que não pense que preciso da permissão ou da companhia dele. Seria ridículo para uma mulher da minha idade. Marianne sentiu emoções contraditórias ao ver as malas serem carregadas até ao quarto. Voltar ao Gloucestershire significava o regresso à casa de infância. Então porque é que não sentia mais alegria? Possivelmente porque já não era uma menina. Talvez porque não lhe parecia uma mudança em circunstâncias que prenunciassem passos em frente, mas antes de recuo. Para começar, ia afetar o seu emprego secreto; não sabia se aquela ocupação poderia ser transferida para um novo local e gostava de ganhar uns xelins que fossem só seus. A mãe entrou a seguir aos criados, enxotando-os depois de terem pousado as malas. – Finalmente, depois de cinco anos de empobrecimento, estamos de volta a onde pertencemos. – A voz da mãe anunciava a vitória, assim como a sua pessoa: envergava um dos melhores vestidos; um pequeno gorro de renda empoleirava-se no cimo dos caracóis escuros, de acordo com as últimas tendências, como convinha a uma senhora encarregada de uma grande casa de campo. – Não estávamos empobrecidas. Nem esta é outra vez a nossa casa –


lembrou-lhe Marianne. – Estamos aqui como convidadas e dependentes do tio Horace. – Melhor aqui do que naquele casebre em Cherhill. E apenas é a casa dele por um acidente do destino. Marianne não pensava que a morte do seu irmão Thomas, há sete anos, tivesse sido um acidente do destino, mas antes uma tragédia. Até aquela pequena referência lhe abriu um lugar nostálgico no coração. Ainda sentia a falta dele, e não por significar que Sir Horace havia recebido a herança depois da morte do pai. A mãe dirigiu um olho crítico ao recheio do quarto. – Direi a Sir Horace que precisas de cortinas novas. Ambas precisamos. E de vestidos. Será difícil frequentares festas e jantares com o que vem naquelas malas. Está tudo fora de moda. – Deu uma pequena pancada numa mala com o dedo do pé. – É mau que chegue teres andado a cavalo com esse traje. Já mal te serve. Espero que ninguém te tenha visto. Só o administrador de Merrywood Manor, um homem com olhos escuros e aura magnética. – Ninguém que tenha importância. Com a posição recentemente recuperada, o mais provável era que a mãe considerasse que um administrador estava abaixo delas, ainda que fosse instruído e responsável por toda uma propriedade. Marianne discordava da mãe com frequência. Manifestamente, nos últimos cerca de cinco anos das suas vidas. Ela gostava da bonita casa de Cherhill onde moraram durante esse tempo. Adorava as colinas ondulantes e ia ter saudades de ver, todas as manhãs, da janela da cozinha, o grande cavalo branco-giz na encosta. Lá ninguém as perturbava. O tio Horace deixava-as em paz. Mesmo depois de ter mandado Nora viver com elas, três anos antes, raramente perguntava como estavam. E quando, durante a visita surpresa que fez antes do Natal, explicou que contava que regressassem no ano novo, Marianne recebeu a ordem com desânimo. O tio Horace só aceitava a sua presença, e a da Mamã, para que continuassem a ocupar-se dos cuidados de Nora. Porém, agora teriam obrigações para com ele de novas maneiras. Era provável que lhes fizesse exigências, como os homens tendem a fazer. Poderia ser curioso quanto às atividades ou aos amigos de Marianne e impor regras a que ela não pensava ter de obedecer. Poderia até criar problemas com Nora, se não respeitasse a experiência de Marianne em lidar com ela.


Nora. – Antes de desfazer as malas, tenho de ir ver como a minha prima se está a sair. Foi uma mudança muito grande para ela; ontem na carruagem vinha bastante agitada. A mãe pareceu não a ouvir. Olhava lá para fora por uma das janelas. – Ele abandonou o jardim. Terei de corrigir isso, tal como muitas outras coisas. Bem, o que é que se pode esperar de um homem numa casa, sem uma mulher que organize tudo devidamente? O teu pai não teria feito melhor, se não se tivesse casado comigo. Sim, é bom que eu esteja de volta. – Depois de eu visitar a Nora, podemos dar um passeio pelo jardim e explica-me os seus planos. Desta vez a mãe ouviu. – Oh, a Nora... Sir Horace está lá em cima com ela, agora. – Ele prometeu não o fazer sem mim. Ainda ontem à noite combinámos... – Veio à tua procura, e até esperou, mas acabou por subir. Vinha acompanhado de costureiras; com certeza não poderiam estar à espera que voltasses de um passeio que ninguém sabia que ias dar. Marianne estava fora da porta antes de a mãe terminar. Recolheu a exagerada cauda do traje e subiu as escadas tão depressa quanto podia. Assim que se aproximou dos aposentos da prima ouviu uma discussão. A voz do tio Horace elevou-se e baixou. O choro de Nora continha as notas descontroladas que Marianne tão bem conhecia. Enquanto viveram em Cherhill, os episódios de emotividade delirante da prima tornaram-se raros. Por norma, Nora retirava-se para uma passividade silenciosa, quase inanimada, que Marianne considerava igualmente inquietante, ainda que menos perturbadora. Agora, pela segunda vez em dois dias, Nora parecia louca. – Não vou! – gritava. – Diz-lhes para se irem embora. Não vou tolerar isso, nem tolerá-las. Não preciso de vestidos novos, já que não vou sair. – O som de porcelana a partir-se em pedaços acentuava-lhe o discurso. – Maldição! – bradou Horace. – Ouve-me, filha, tu vais mesmo ter um novo guarda-roupa, e vais sair, e vais comportar-te como eu disser. Tenho planos para ti e não vou continuar a fazer-te as vontades. – A fúria de Horace fazia cada palavra soar alta e forte, como se a entoasse de um palco.


Marianne abriu a porta do quarto da prima. O tio virou-se bruscamente. – Graças a Deus. Onde diabo estavas tu? Nora correu para ela. Marianne abraçou-a e disse-lhe palavras tranquilizadoras, afagando-lhe a cabeça ao mesmo tempo. Reparou nos restos de um laço de cabelo azul e branco no chão. Sobre o ombro de Nora olhou para as duas costureiras encolhidas de medo. – Mande-as embora, tio. Com os dedos de ossos salientes, Horace alisou para trás o cabelo grisalho. Era um homem alto, com olhos de um azul vívido e maçãs do rosto encovadas na face magra e longa. Marianne sempre achara que Horace era parecido com o pai no seu último ano, quando estava a morrer. – Também não te vou deixar fazer-lhe as vontades. Já chega disso. Está na hora de ela ocupar o seu lugar no mundo. Nora encolheu-se mais. Marianne encarou fixamente o tio. – Mande-as embora e saia também – repetiu, com firmeza. – Ela não acalmará enquanto não saírem. O tio Horace praguejou, mas afugentou as mulheres para fora do quarto e saiu a seguir. – Põe-na sã e depois vem ter comigo à biblioteca – resmungou. Assim que ficaram sozinhas, o frenesim de Nora não tardou a esmorecer, até se tornar pouco mais do que respirações profundas. Marianne continuou a abraçá-la. Perscrutou o aposento e a irritação disparou em flecha. O tio Horace pusera a filha num lugar pequeno e sombrio, que as visitas nunca veriam, se Nora continuasse a ser um problema. Continha uma cama estreita e uma mesa e não possuía quarto de vestir. Junto a um guarda-vestidos encontrava-se uma mala aberta, que a criada deixara por desfazer quando Horace entrou. Nora soltou-se. Já calma, estranhamente calma, sentou-se junto a uma pequena janela, numa cadeira de madeira pouco confortável. Pálida de rosto e cabelo, com olhos grandes e franzina como uma cana, olhava lá para fora, para... para o quê? Talvez não olhasse para nada. Marianne acreditava que, na maior parte do tempo, a visão de Nora


se virava para dentro, para pensamentos e ideias que ela nunca partilhava. Contudo, talvez isso também não fosse verdade; talvez a mente da prima permanecesse quase sempre vazia, tal como a expressão permanecia. Não tinha sido sempre assim. Em tempos vibrante e inteligente, aos quinze anos recuperara de uma doença grave neste estado alterado. A febre fizera-lhe aquilo, explicou o médico. Ou talvez, naquele dia em que adoeceu depois de se perder durante uma tempestade, tivesse sido atingida por um relâmpago. Ou caído do cavalo. Independentemente da causa, o cérebro fora afetado. Nada mais poderia explicar esta sua mudança. Marianne andou às voltas pelo pequeno quarto. Instalar Nora ali era um insulto; era como se o tio Horace procurasse punir a filha por aquilo em que ela não podia influir. Forçá-las a regressar também fora egoísta e cruel. Ele não ficara preocupado, de todo, quando Marianne lhe explicou que não considerava sensato que Nora deixasse a pequena casa no Wiltshire. Colocou-se ao lado de Nora e afagou-lhe o cabelo claro. – Vou dizer ao teu pai que este quarto não serve. Tenho a certeza de que foi um erro. – Gosto de estar aqui. Tem um tamanho reconfortante. Não quero o meu quarto antigo. Não serei feliz lá. Nora podia, portanto, falar de forma mais clara e expressar pensamentos lógicos. Se, quando o fazia, os seus olhos não continuassem opacos, talvez nunca se percebesse que estava perturbada; também não se imaginaria que por vezes, e sem explicação, se tornava muito emotiva. Perigosamente emotiva. Durante o tempo em que viveu na pequena casa de campo, esses episódios deixaram de ocorrer. Porém, no dia anterior, enquanto atravessavam a zona rural adjacente em direção a esta casa, manifestarase uma crise. Marianne demorou meia hora a acalmá-la, tendo até ordenado ao cocheiro que adiasse a chegada até conseguir. – Assim sendo, mudar-me-ei para aqui contigo – disse. – Será como na casa de campo. Nós as duas a partilhar um quarto. Nora abanou a cabeça, o olhar inexpressivo ainda fixado nos terrenos em baixo. – Não te quero aqui. Não quero ninguém aqui. Tem apenas uma janela e uma porta, e é pequeno e simples. Gosto dele. Aqui sinto-me segura. Aqui posso esconder-me. Aqui posso ser esquecida. Nunca sairei e


posso enlouquecer tranquilamente aqui sem interferências. – Eu e a Mamã vamos passear pelo jardim, para ela poder fazer uma lista de tarefas para os jardineiros. Anda connosco – instigou Marianne. Nora abanou a cabeça. – Então vejo-te ao jantar. – Deu um beijo no cabelo de Nora. Mais uma vez, esta agitou a cabeça. Marianne começou a caminhar para a porta. – Ele tenciona casar-me. É por isso que quer que eu tenha um novo guarda-roupa – disse Nora. Marianne deteve-se e voltou-se para ela. – Tenho a certeza de que estás enganada. – Ainda agora disse coisas sobre pôr-me bonita. Sei o que ele está a planear e a pensar. – Virou a cabeça e fixou os olhos de Marianne. – Não me caso. Matar-me-ei antes. Marianne desejava poder encarar de ânimo leve aquela ameaça. Em vez disso, esta gerou um raio de pânico que lhe trespassou o coração. – Não digas essas coisas. Pensa em como eu sofreria. O olhar de Nora regressou à janela. – Eu penso. Se não fosse isso, já me teria matado.

Marianne fechou a porta da biblioteca depois de entrar. O tio andava de um lado para o outro junto à lareira, fingindo ler os títulos nas lombadas dos livros. Eram, na verdade, os livros do seu pai, escolhidos com cuidado e encadernados durante uma vida inteira. Horace herdara-os juntamente com tudo o resto que lhe pertencera. Como a herança estava vinculada, a morte prematura do irmão durante a guerra garantiu que ficava tudo para o irmão do pai, em vez de para o filho do pai. Horace voltou-se quando lhe ouviu os passos. Nora acalmara-se


melhor do que ele. Ainda cheio de cor, indicou-lhe um sofá com um gesto. Antes de se sentar numa cadeira próxima, deslocou-se até a uma licoreira e serviu-se de bebida. – Vai oferecer-me uma? – perguntou Marianne. Ele olhou-a, surpreendido. – Sempre me perguntei porque é que os homens, se necessitam de uma bebida para se revigorarem depois de um período de muita emoção ou antes de uma tarefa desagradável, não pensam que as mulheres também podem precisar – disse. – Não é socialmente aceitável, é essa a razão. Horace acomodou os longos membros na cadeira. A forma como o tio se sentava e se afundava para trás, com as nádegas descidas e os joelhos elevados, lembrava-lhe o irmão, que também era alto e magro. – Tenho de te contar uma coisa. – Fixou a bebida âmbar no copo. – Não é o tipo de coisa de que se fale a senhoras, mas não vejo alternativa. Sem estares a par de tudo, duvido que saibas como lidar com ela agora. – Que preâmbulo sinistro, tio. – Mais embaraçoso do que sinistro. Embaraçoso e exasperante, e diabos me levem se vou viver mais com isto. ouvir.

– Pela descrição, parece que ficarei bastante menos feliz depois de o

O tio levou o seu tempo a abordar o assunto. Deixou-a à espera enquanto bebia o conteúdo do copo. – O que sabes acerca da situação perigosa da Nora há três anos é verdade. Mas está incompleto. O cavalo regressou sozinho e ela apareceu com febre alta. Pode até ter sido atingida por um relâmpago. Contudo... – Engoliu o que restava no copo. – A sua condição não é apenas resultado da febre. – Que mais poderia influenciar tal condição? Horace deslocou-se na cadeira, como se esta já não lhe servisse. – Enquanto estava febril, a Nora falou sobre o que aconteceu. – Corou e desviou o olhar. – Nesse dia foi violada. Seduzida, talvez, mas usada. – Olhou de soslaio, um homem desesperado por escapar. – O médico disse que a saia tinha sangue, mas presumiu-se que quando caiu do cavalo... – Fungou. – A minha linda menina, a minha filha adorável, arruinada. A revelação horrorizou Marianne. Nora tinha na altura apenas quinze


anos, pouco mais. – Sabe se saiu para se encontrar com alguém? – Creio que o patife a perseguiu em segredo e a atraiu depois para longe de casa, pelos seus propósitos perversos. – Isso significaria que foi alguém de cá, tio. – Marianne desejava ter agora uma daquelas bebidas. – De certeza que está a laborar em erro. Quem teria coragem para tal coisa? – Alguém muito bem posicionado, para quem a minha filha representasse pouco mais do que uma criada de cozinha. Alguém conhecido durante anos por ser indiscriminado nas suas desonras e descontrolado nos seus excessos. Um homem sem moral e de pouca compaixão para com pessoas decentes. – O seu maxilar tornou-se firme. – Ela disse quem foi quando estava com febre. – Se assim é, porque é que não depôs contra ele? Ela era uma criança. – Quando ouvires o nome, saberás o motivo de eu não ter agido até agora, sobretudo com base na palavra de uma rapariga que não está bem da cabeça. – Fitou-a, de olhos semicerrados e olhar cortante. – Falou nele diversas vezes enquanto delirava e, quando o fazia, ficava agitada. Foi o Lord Lancelot Hemingford. Há pouco tempo melhorou a sua posição, claro. Graças à conveniente morte do irmão Percival, agora é conhecido como o duque de Aylesbury. Marianne levantou-se. Caminhou de um lado para o outro na tentativa de controlar as emoções. Queria praguejar, ou chorar. – Recuso-me até a acreditar que a posição lhe permita violentar uma rapariga e abandoná-la aos elementos, como fez. Por amor de Deus, o tio agora é um magistrado. Se não pode fazer justiça, quem poderá? – Tenciono fazer justiça, como dizes. Do único tipo que podemos ter, tendo em conta as circunstâncias, mas ainda assim adequado. – Fez-lhe sinal para voltar ao lugar sentado. Depois de Marianne o ter feito, o tio inclinou-se para a frente e disse confidencialmente: – Vou obrigá-lo a casarse com ela. Nora tinha então conjeturado bem a intenção do pai. – Ela não está em condições de se casar. Com certeza consegue ver isso. – Tolice. Quando o duque a pedir em casamento, será a velha Nora


outra vez. Que mulher não cede de imediato perante a perspetiva de se tornar duquesa? – Sinceramente, não será. Ela adivinhou o seu plano. Lá em cima, depois de o tio sair, disse-me que se mataria antes de se casar. – As pessoas dizem sempre coisas dessas quando querem levar a sua avante. – Tem coragem para arriscar que ela o faça? Se alguma mulher o fizer, é ela. – É por isso que estás aqui, Marianne. É por isso que a tua mãe já está a usar a minha casa como se fosse dela e a dar ordens aos criados. É por isso que voltarás a dançar nas festas e conhecerás um homem que te amparará por toda a tua vida. A menos que pretendas viver da insignificância que o meu irmão te deixou, tens de convencer a Nora a fazer o guarda-roupa e a sair de si mesma o suficiente para que eu possa ver fazer-se justiça. Ela é bonita, ainda que um pouco insegura. Logo que o duque a conheça, creio que não dirá que não ao meu plano. Presumindo que ela não está delirante, claro. Horace afundou-se outra vez na cadeira. A pose refletia descontração. Marianne levantou-se. – E se não for isso o que ela quer, tio? E se ela aceitar o guarda-roupa, e sair, e conhecer esse duque mas, quando o pedido for feito, não quiser? – O que ela quer não tem importância. Isto é uma questão de honra de família. Mordendo a língua e furiosa por o tio esperar que fosse cúmplice daquele esquema, Marianne avançou a passos largos para a porta. Enquanto isso, ouviu o tio Horace murmurar para si mesmo: – Não quiser? Era só o que faltava. Claro que vai querer ser a duquesa do seu sedutor, ou então está mesmo louca e restar-lhe-á o manicómio.


CAPÍTULO 4

Andar a cavalo com o tio Horace mostrava-se útil em muitos aspetos, constatou Marianne. Ainda que agora fosse um homem abastado, bajulava servilmente sempre que passavam por alguém de uma posição mais elevada. O tio apresentava-a a toda a gente e muitos lembravam-se da filha de Malcolm Radley. Horace insistia em cavalgar por Dutton, a aldeia perto de Trenfield Park, para que os vizinhos pudessem aproximar-se, tanto para se queixarem de alguma coisa como para dizer a mesma piada acerca da sua posição. Tenha um bom conjunto de malandros para as sessões de julgamento, sim? O papel que desempenhara na organização de uma milícia local durante a guerra resultou na ordenação como cavaleiro, o que por sua vez levou a que fosse nomeado juiz de paz. Horace adorava o estatuto, bem como presidir a julgamentos. Por vezes respondia, com algum detalhe, a perguntas sobre as sessões. Marianne nutria particular interesse pelos procedimentos legais locais e prestava muita atenção àquelas conversas. O tio parava para falar com outras pessoas sobre assuntos sociais que também lhe interessavam. Ela não aprovava as intrigas, mas ouvia-as sempre. Naquele dia, ajudaram-na a atualizar-se quanto à região. No fim, todas as conversas se desenvolviam na direção de um tema pelo qual se interessava de verdade; as respostas do tio às questões preocupavam-na. – E como está a sua filha, senhor? Veio de visita com Miss Radley? Voltou para casa? – A Nora está muito bem, obrigada. Muito bem mesmo. Estava um pouco cansada da viagem, mas conto que em breve venha andar a cavalo comigo. Estes anos de sossego fizeram-lhe imensamente bem e, alegra-me dizer, é de


novo a mesma Nora de antes.

Quando por fim deixaram a aldeia, cavalgando mais para ocidente, Marianne permaneceu em silêncio cerca de quinze minutos, mas depois não aguentou mais. – Porque é que diz às pessoas que a Nora está bem? Sabe que não está. – Se ela escolher estar bem, estará. É o que penso. – Está enganado. Será cruel persistir nesse seu plano, ou forçá-la a um nível de sociabilidade que vá além do que ela deseja. – É suposto eu aceitar o conselho de uma rapariga que mal passou a maioridade, depois de tantos anos a liderar homens e a conhecer as pessoas? Conto que a Nora se junte a nós, logo que tenha um conjunto de equitação decente. Se também vieres, ela ficará mais tranquila. – Não me importa como espera que a induza a fazer o que o tio pretende, sobretudo porque não acredito que seja o rumo certo para ela. – Espero apenas que lhe facilites o regresso ao comportamento normal, oferecendo-lhe a amiga que acabou por reconhecer em ti. Consegues que o faça sem a tua presença? Diz que sim e isso pode arranjarse. Tu e a tua mãe podem seguir o vosso caminho sem qualquer preocupação adicional com a minha filha. – Marianne estava prestes a argumentar quando algo à esquerda deles, do outro lado do campo, atraiu a atenção do tio. Horace contraiu os olhos sobre o vulto e um sorriso dissimulado irrompeu-lhe no rosto. – Queixaste-te do nosso ritmo lento quase toda a manhã – disse. – Bom, segue-me. – Bateu com o pé no cavalo para começar a galopar. Marianne incitou Calliope a segui-lo e precipitaram-se sobre o campo árido, investindo em direção ao homem a cavalo. Por muito que apreciasse a velocidade, Marianne não estava ansiosa pelo que poderia ser mais uma meia hora de tio Horace a ser servil com um dos seus superiores. O tio Horace tornara-se um novo-rico; o título de cavaleiro emproarao. Era óbvio que desejava largar os círculos atuais por outros bastante melhores. O homem de quem se aproximavam viu-os chegar. Imaginaria


Marianne que todo o corpo dele se afligia ante a perspetiva de estabelecer contacto com Horace? Era certo que mudara a forma como estava sentado no cavalo e que a postura fraquejara. Depois, sem grande demora, contevese e sentou-se direito outra vez. Trotou inclusivamente na direção deles, vindo ao seu encontro. Quando se aproximavam, Horace saudou-o. – Sua Graça, que coincidência. Sua Graça? O duque de Aylesbury? Desta vez, a ambição do tio Horace chegara demasiado alto. Marianne empalideceu com a ideia de conhecer o duque – quanto mais ficar de braços cruzados enquanto o tio se aproveitava dele, com o fim de promover o terrível esquema do casamento de Nora. – Uma coincidência que se tornou bastante frequente nos últimos tempos, para minha alegria – disse o duque, fazendo uma pausa subtil antes de alegria, o que envergonhou Marianne e a deixou a olhar para o cachaço do cavalo. – Permita-me que lhe apresente a minha sobrinha, Miss Radley – disse Horace. Agora era então obrigada a olhar para cima. Os olhos que encontraram os seus surpreenderam-na a ponto de ficar incapaz de falar. Escuros e intensos, já os tinha visto antes. No cemitério. O caçador furtivobatedor-administrador era, na verdade, o duque de Aylesbury. Mais embaraço fluiu, mas depressa lhe sucedeu a indignação. Ele podia ter-lhe dito. Com o que agora sabia sobre ele e Nora, não sentia vontade de ser apresentada. Não percebia o porquê de o tio Horace continuar a sorrir. – Vejo que a barba se foi, Sua Graça – disse Horace. – São os primeiros a ver-me desnudado. Mandei o meu criado particular realizar o feito esta manhã. – Influência do seu irmão? – Ives não tem conhecimento e ficará chocado quando me visitar. Foi uma razão mais convincente que me forçou a pôr de parte o calor e o conforto: uma senhora encantadora sugeriu que de outro modo não me permitiria que a beijasse. – Olhou diretamente para Marianne. – Presumo que pensou que eu nunca me barbearia. É o tipo de coisa que só a mulher mais pretensiosa esperaria mesmo de um homem. Não concorda, Miss Radley?


– Visto que Sua Graça não quereria beijar a mais pretensiosa das mulheres, aquela de quem fala ficará provavelmente espantada ao vê-lo assim. Marianne sentiu o rosto a ficar quente. Ele falava como se ela lhe tivesse prometido um beijo, caso se barbeasse. Não tinha, estava certa – não que se conseguisse lembrar bem do que lhe dissera nos últimos minutos do primeiro encontro. Esforçou-se para o fitar com a sua melhor expressão de indiferença. Foi então que viu um motivo para ele preferir a barba: uma cicatriz, fina e irregular, serpenteava-lhe pelo lado direito do rosto. Uma cicatriz antiga, pelo aspeto apagado e franzido do trajeto. Não lhe desfigurava por completo o rosto, que – tinha de admitir – era pelo contrário bonito, agora que o conseguia ver. Fazer a barba revelara-lhe o maxilar forte e os lábios cheios. Não era tipicamente belo, antes atraente, de uma forma bruta e sensual. Sem dúvida que muitas mulheres considerariam a sua atenção tentadora. E raparigas também. Raparigas como Nora era há três anos. – Espero que não esteja a planear casamento com a senhora que lhe exigiu que desistisse da barba. – Horace parecia demasiado interessado. Marianne tinha esperança de que o duque se declarasse apaixonado por alguém; talvez Nora fosse poupada ao esquema ridículo do pai. – O senhor só pode ser um homem honrado, Sir Horace. Falo de um beijo e ouve logo votos. – Presumi que, como a mencionou em frente da minha sobrinha, a senhora fosse alguém que considera para algo mais do que um beijo. Um brilho malicioso assomou aos olhos no duque. – Considero, Sir Horace. Queira Eros, quer dizer. O tio Horace agitou-se e corou. – Senhor, peço-vos que controleis as vossas insinuações na presença da minha sobrinha. – Ela parece menos chocada do que o senhor. Contudo, cavalguemos. Prometo comportar-me quando pararmos. – Virou o cavalo e usou o pingalim para o pôr a galope. Horace avançou depois. Marianne seguiu-se-lhe. Desejava que naquele dia o tio tivesse escolhido um caminho diferente.


O patife quase a havia mencionado como a mulher por quem se barbeara e quase anunciara intenções indignas. Considerá-la-ia tão fácil que pensava que não se ia importar? Talvez algumas mulheres arrulhassem e dessem risinhos se ele iniciasse a sedução de um modo tão notório e ousado, mas ela era feita de outra fibra. O facto de o duque pensar que alimentaria sequer a ideia de um beijo, depois do que acontecera a Nora, marcava-o como mau e sem consciência. Deveria saber quem era Nora e, agora que conhecia a relação entre elas, ter parado com aquela sedução pateta. Pararam na parte inferior de uma colina. – A paisagem vista dali de cima é impressionante – disse o duque. – Além da família poucos a viram, pois fica no interior profundo da propriedade e nenhuma estrada mapeada chega até lá. – Tomou a dianteira na subida. – Sentimo-nos honrados por nos convidar para partilhar desta vista privada – deixou passar o tio Horace. Marianne desejava bater-lhe. Ainda no dia anterior o tio estivera quase em lágrimas a descrever como este homem havia maltratado a filha, e agora rastejava como o pior sicofanta. – Cometerei uma indiscrição se perguntar como vão as coisas entre si e Lady Barnell, Sir Horace? – disse o duque por cima do ombro. O tio Horace deu uma gargalhada. – Gosto de pensar que a senhora não está desinteressada de todo na minha presença, por muito moderado que o interesse possa ainda ser. – Seja arrojado, Sir Horace. Nada mais resultará com uma viúva. – Obrigado pelo conselho, Sua Graça. Temo, contudo, que se eu fosse tão arrojado como alguns homens, a senhora já tivesse deixado o condado de vez. – Creio que se refere a mim. Discordo, mas não me cabe dar-lhe conselhos. Apenas posso desejar-lhe bem. Marianne impeliu Calliope, posicionando-se ao lado do tio. – Estão a falar da viúva do barão Barnell? Horace olhou de soslaio para ela, irritado.


– Estamos. – Elevou deveras as suas ambições, tio. – Relembro-te que detenho uma posição no condado, Marianne. – Considerando as opiniões da senhora sobre o assunto, apenas me pergunto se não estará a ser demasiado otimista. – Dá-me algumas semanas e garanto-te que as opiniões dela verão muitas melhorias. A paisagem do cimo da colina mostrou-se, de facto, impressionante. No cume, podia olhar-se para baixo e ver-se quintas e campos ao longo de vários quilómetros. Marianne fez todos os sons de apreciação, mas a mente permaneceu concentrada noutras coisas. Se o tio Horace fosse bem-sucedido a fazer a corte a Lady Barnell, a Mamã seria afastada de imediato; se, por seu lado, conseguisse casar Nora, não haveria necessidade, de todo, de ela e a mãe permanecerem naquela casa. Parecia que o tio Horace se esquecera de as informar de parte do plano: tencionava que a estadia delas em sua casa fosse razoavelmente curta. De nada serviria falar deste assunto à Mamã. O tio Horace estava fadado ao fracasso em ambos os pontos. Enquanto andasse atrás das viúvas dos pares, e com a elevada probabilidade de os planos absurdos para Nora não irem a lado nenhum, o mais provável era que o domínio da mãe sobre Trenfield durasse para sempre. – Gosta? A voz junto ao ombro sobressaltou-a. Enquanto o tio Horace andava pelo cume, admirando a paisagem, o duque movera o cavalo para junto do dela. Olhou-a nos olhos, desconcertando-a. – A vista é adorável. – Pergunto se gosta de me ver barbeado. – Parece menos rústico, isso é certo. – Não vou receber mais elogios do que esse? – Não precisa dos meus elogios. Presumo que possua uns óculos muito elegantes e possa avaliar o seu próprio aspeto, seja com barba ou sem


ela. Não podia dizer o que, de facto, pensava: que parecia muito mais bonito assim, com a estrutura óssea e o maxilar forte visíveis, mas também menos amigável. Mais ducal e austero. Ou talvez essa impressão resultasse de lhe conhecer a identidade. Seja como for, detetou nele um toque de arrogância; a expectativa de, enquanto duque, dever, pois, conseguir tudo o que queria, incluindo os elogios dela ao rosto barbeado. – Agora ficarei à espera daquela dança na próxima festa. – Vai sempre às festas locais? É muita amabilidade sua. – Não se engane quanto a isso, Miss Radley. Não sou amável. Pergunte a quem quiser e será essa a resposta. Pergunte ao seu tio. Quanto às festas, nunca vou. Esta, porém, promete ser mais agradável do que as outras. – Se raramente comparece, quando o fizer, o círculo à sua volta será denso. Dançar poderá revelar-se impossível. – Será muito menos denso do que pensa. – Pode ser que a minha prima Nora vá comigo. É filha do meu tio. Talvez a conheça. Nora Radley. – Não fui apresentado e o nome não me desperta qualquer memória. Lamento, se ela pensa que me deveria lembrar. Nos últimos anos passei pouco tempo aqui. Até ter recebido a herança, a minha residência preferencial era em Londres. Nem sequer se lembrava do nome dela. Marianne mordeu a língua para não o repreender sem mais demora. A censura, porém, ecoava-lhe na mente. Seu miserável. Brincou com a Nora, namoriscou-a e marcou um encontro quando ela mal tinha deixado a sala de aula. Ela saiu para se encontrar consigo e seduziu-a, deixando-a depois sozinha, a tentar encontrar o caminho de volta no meio de uma tempestade. – Lamentavelmente, ela poderá não ir. Há três anos foi apanhada por uma tempestade que a deixou de cama, com uma febre grave que lhe afetou o cérebro. O meu tio diz a toda a gente que ela está recuperada, mas na verdade não está. Pelo menos não totalmente. Marianne sondou-lhe novamente o rosto à procura de vergonha, mas apenas viu sinais de alguma compaixão. Pelo menos o duque conheceria a condição de Nora, quando o tio Horace tentasse arranjar o casamento. – Lamento sabê-lo. Talvez com tempo e descanso ela venha de facto a


recuperar por inteiro – disse ele. – Agora que já fomos devidamente apresentados, irei visitá-la e juntos levaremos a sua prima a dar um passeio de carruagem. Pode ser que ela goste. Seduziste-a, seu idiota. Arruinaste-a. Não vai querer estar a menos de um quilómetro de ti. – Ainda mal nos instalámos e há muito que fazer. Temo que os passeios de carruagem por lazer tenham de esperar um bom bocado por nós. – É raro as pessoas recusarem-me a companhia, Miss Radley. Mais comuns são aqueles que, como o seu tio, galopam pelos campos para se intrometer no meu dia e tentar cair nas minhas boas graças. Na realidade, quando eu a visitar, vai aceitar passear de carruagem comigo. O seu tio insistirá. Se ele deseja os contactos de Lady Barnell, ficará furioso se lhe negar a oportunidade de ter o meu. – Inclinou-se para a frente e afagou o pescoço de Calliope. – No que diz respeito a quanto prazer haverá nesse passeio de carruagem, só vai depender de si. Calliope aproximou-se, à espera de mais festas daquela mão bonita e masculina. Marianne debateu-se com as rédeas para impedir a égua de se chegar demasiado perto da montada do duque e quase a lançar para o seu colo. O tio Horace pôs o cavalo a trotar na direção deles. – Esplêndida vista, Sua Graça. Esplêndida. Admira-me que a sua família não tenha construído aqui. Se não uma mansão, então quintas para arrendar. – O meu irmão considerou a segunda hipótese, antes de morrer. Por sorte não foi assinado nenhum contrato. Quanto a eu próprio construir quintas para arrendar, o meu pai assombrar-me-ia se pensasse nisso duas vezes sequer. – Conduziu-os pela descida da colina, e depois indicou-lhes uma linha rudimentar que atravessava o campo. – Se a seguirem, voltarão ao sítio onde nos encontrámos. Tenho de me despedir. Vou encontrar-me com o meu administrador daqui a pouco. – Absolutamente, absolutamente – disse o tio Horace. – Foi esplêndido encontrá-lo hoje, Sua Graça. – Sentimo-nos honrados com a sua condescendência – acrescentou ela. O tio Horace podia ter esquecido o seu lugar, mas Marianne sabia qual era o dela; caberia a um deles relembrar a Sua Graça que, assim como alguém se comporta de certa forma com os superiores, deve comportar-se com os inferiores também.


– A honra foi minha, Miss Radley, visto que daqui resultou a sua apresentação. Falaremos em breve, Radley. – Muito em breve, Sua Graça. O duque virou o cavalo e galopou para longe. O tio Horace observavao, com um sorriso matreiro no rosto. – C’os diabos, aquilo correu bem. – Se lhe impinge muitas vezes a sua companhia, é um milagre ele não nos ter posto completamente de parte. – Ele não me vai pôr de parte. Vai tolerar a minha companhia. Permitiu que te apresentasse e fará o mesmo com a Nora. Tive o acordo dele há meses. – Então ele é mais amável do que parece. Horace agarrou firmemente no pingalim, transmitindo que tencionava despachar depressa aquele campo. – A amabilidade não é para aqui chamada. O duque sabe que tenho a vida dele nas minhas mãos.

– Posso levar o ferro de frisar a este topete, menina? Katy, a criada que lhe fora atribuída, colocou a questão com confiança. Tendo sido promovida a criada pessoal por necessidade, Katy queria mostrar as suas capacidades na costura, a vestir e a despir, e agora com o ferro de frisar. Marianne assentiu, já que, para além da teimosia, não havia outra razão para recusar. Na casa anterior partilhavam a velha Jane; porém, agora que a Mamã a escolhera como criada particular, ela e Nora precisavam de lidar com duas raparigas que não estavam devidamente treinadas. O verdadeiro motivo de Marianne para querer ser obstinada não tinha nada que ver com aquilo. Em cinco anos, nunca demorara tanto tempo a arranjar-se e irritava-a que lhe pedissem para o fazer. Imaginava que, de futuro, várias horas do seu dia seriam devotadas a estes aprumos. Ainda nessa mesma manhã a chegada da criada interferira com a escrita de uma carta importante, que continuava a aguardar conclusão no quarto de dormir.


– Gostou do passeio com o seu tio, ontem? – perguntou Katy, enquanto chamuscava uma madeixa de cabelo com o ferro. – Galopámos algumas vezes, o que foi melhor do que eu esperava. Visitámos a aldeia e conheci muitas pessoas. Fui apresentada ao duque de Aylesbury. – Ao duque? Oh, Deus! – Os olhos escuros e redondos de Katy arregalaram-se no reflexo no espelho. – De certeza que é uma honra, mas, se fosse eu, passava bem sem ela. – Com certeza não tens medo dele. – Dizem que ele é muito malvado, menina. E não só das maneiras habituais que os homens costumam ser malvados. – Katy baixou o tom de voz. – Diz-se que matou o irmão. O juiz deixou o assunto aberto este tempo todo. Nove meses. Os magistrados têm a certeza de que vão encontrar o suficiente para levar os lordes a fazer um julgamento. Se não fosse duque, a esta hora já estava enforcado. – Assassinou o irmão? O último duque? Parece-me difícil de acreditar. – Ele estava em casa quando tudo aconteceu. Veneno, dizem. O médico deu a entender o mesmo. Aquela família insiste em que foi uma doença do intestino, mas ninguém acredita. – Katy ergueu mais um fio de cabelo. – Eu ficaria longe dele, menina. Não que me caiba dar-lhe conselhos, claro. Era isto que o tio Horace queria dizer quando falou em ter a vida do duque nas mãos? Como juiz de paz do condado, Horace era responsável por investigar crimes e presidir a julgamentos. Mas se acreditava que Aylesbury era um assassino, porque é que falava de uma união com Nora? Marianne observou os caracóis a formarem-se na sua coroa. Com cada madeixa que se desenrolava, os verdadeiros planos e motivações do tio começavam a fazer sentido. Embora o tio Horace pudesse verdadeiramente acreditar que Aylesbury havia seduzido e arruinado Nora, não era a honra da família o que ele visava no seu esquema; eram as conexões e a subida de estatuto, tal como acontecia na perseguição a Lady Barnell. Sacrificaria ele a filha para promover a sua própria posição na sociedade? Pertencer ao círculo de um duque traria provavelmente todo o tipo de oportunidades e benefícios. Até o casamento com Lady Barnell se


tornaria alcançável, se uma das familiares de Horace desposasse um duque. As expectativas financeiras depois de tal aliança seriam, por si só, consideráveis. Iria confrontar o tio Horace com tudo isto. Dir-lhe-ia que depreendera as suas intenções e que não lhe iria permitir que usasse Nora assim. Se fosse chantageado para se casar, o duque dificilmente a trataria bem. A ganância do tio Horace não podia passar sem controlo. – Katy, há mais alguma história sobre o duque? Sabe-se se tirou partido de mulheres da aldeia, por exemplo? Lembro-me de que, já quando eu era pequena, ele gozava de má reputação. – Um depravado, é isso? Oh, ele também é malvado dessa forma, menina. Toda a gente sabe e o diz. Quanto a raparigas da aldeia, não posso dizer que tenha ouvido, mas era preciso uma muito valente para o acusar de tal. Pudera, o duque está cá tão raramente, isto é, à parte os últimos nove meses. Olhe, quando começou a morar na casa grande, alguns dos criados nem sabiam quem era, tão raras vezes os visitava. É por isso que parece tão suspeito estar lá na noite em que o irmão foi envenenado. De todas as noites em que podia ter vindo da cidade, porquê naquela, se é inocente? – Seria trágico que uma mera coincidência de domicílio causasse a ruína do nome de um homem, Katy. – O nome dele é o menos, não acha? Até os duques podem ser enforcados por matar; ainda que me tenham dito que, se forem, é com uma corda de seda. – Ele vive lá em isolamento? Para um homem com os gostos dele, isso faria da mansão uma prisão: faustosa, mas mesmo assim uma prisão. – Os irmãos visitam-no, e as mulheres. Também há muitas histórias sobre esses dois. Um deles acabou de se casar com uma mulher que tem um pai criminoso, diz-se. Esteve em Newgate durante meses, mas libertaram-no. Disseram que foi um engano. O que toda a gente pensa é que foi mais uma questão de o filho de um duque querer que fosse engano. Marianne guardou aquele bocado para ruminar mais tarde. – Não deve estar a desfrutar muito da herança, se apenas a família o visita, e de vez em quando. – Acho que ser rica chegava para me entreter. Seja como for, a vida dele aqui tem sido muito sossegada, até mais do que a do último duque, o irmão. Não há uma festa há anos. Até os eventos que antigamente se organizavam para os inquilinos e para o condado já nunca se fazem.


Lembro-me de ter ido a um, quando era pequena. Marianne também se lembrava. Na altura havia festivais de verão e todo o condado era convidado. Fora com o pai a um e ele falara com o velho duque e, pai do atual. Haviam conversado sobre ovelhas e cevada. – Então nada de interessante acontece naquela casa grande. Que pena. – Exceto um possível homicídio, o que era muito interessante. Katy terminou o último caracol e atravessou-o com a cauda do pente. Marianne olhou para o resultado. Parecia assimétrico e frisado. Pediria à velha Jane para explicar algumas coisas a Katy. – Agora veste-me, depressa. Tenho de terminar uma carta. Em seguida, preciso de visitar a minha prima e tenciono ir à aldeia. Depois de se vestir, deixou Katy e voltou à mesa de escrita. Ali terminou a carta que tinha começado. Era para o meio-irmão de Nora, Vincent, filho do primeiro casamento da mãe. Vincent era oficial da Marinha. Queria informá-lo da mudança de casa e também dar-lhe boas notícias quanto à saúde de Nora, embora não fizesse ideia de quando ele receberia a carta. Escrever a Vincent deixava-a sempre num estado de espírito agridoce. Em rapariga nutrira sentimentos por ele, ao vê-lo ficar mais velho e mais alto. Parecia que todos os meses as suas emoções se intensificavam. Era o único homem que algum dia amara. Insensatamente, criara expectativas. Sobretudo depois de o pai ter morrido, construiu sonhos em volta do irmão de Nora. Foi nessa altura que Vincent entrou na Marinha e se ausentou da sua vida, pelo que não percebeu de imediato que ele não pensava nela da mesma forma. Pelo menos nunca havia derramado aquelas emoções numa carta – ainda que, durante os primeiros meses depois de se mudar para o Wiltshire, se sentisse tentada a fazê-lo. Guardara os sonhos para si mesma. Graças a Deus por isso, porque, não tendo Vincent expressado sentimentos semelhantes, ela acordou gradualmente para a verdade e aceitou a realidade. Dobrou e selou a página, considerando como a enviar. Este era mais um dos problemas de se terem mudado. Durante os últimos cinco anos, as cartas de e para Vincent e outros podiam ir e vir sem que o tio Horace soubesse. Contudo, ele não gostava de Vincent e podia proibir a correspondência, quando dela tomasse conhecimento. Na esperança de que a visita à aldeia solucionasse o dilema, preparou


uma folha de papel em branco. Olhou-a com atenção. Ousaria tentar continuar esta outra correspondência que iniciara no Wiltshire? Se sim, definitivamente não poderia expedir as cartas a partir daquela casa, nem receber as respostas. Tinha de confiar que na aldeia encontraria uma loja que pudesse servir de caixa do correio, e contar com a discrição do proprietário. Mergulhou a caneta e começou a escrever. Para o Times de Londres...


CAPÍTULO 5

Times de Londres

...concluo assim os mais interessantes casos apresentados nas sessões do tribunal, no dia de S. Miguel, no Wiltshire.Por fim, o vosso correspondente encontrar-se-á a passar o inverno no Gloucestershire. Enquanto ainda aguarda a partida para aquela região, chegam-lhe às mãos notícias de novos acontecimentos sociais. O juiz de paz e cavaleiro de São Jorge, Sir Horace Radley, acolheu como visitas, na sua casa ali situada, a viúva de seu irmão, Malcolm Radley, e filha. A sua própria filha, que tem estado de visita prolongada à prima e tia, juntou-se-lhes. Os leitores poderão lembrar-se de que Mrs. Malcolm Radley recebeu Sir Horace no Wiltshire em dezembro, antes de este ter regressado à casa perto de Cheltenham para celebrar o Natal. Elijah Tewkberry

Lance bebia café na biblioteca de Merrywood Manor. Depois de reparar que havia correspondência no Times sobre o condado, e até sobre Miss Radley, pôs de lado o impressionante jornal e pegou, em vez dele, no pequeno panfleto que era publicado em Cheltenham todas as terças. Nunca o lera, mas naquele momento julgava-o quase interessante. Deteve-se no obituário de um vizinho idoso – que julgava ter falecido há anos – e na notícia de outro vizinho, que havia comprado uma nova carruagem de dois cavalos. Considerou os anúncios publicitários uma revelação, visto que nunca adquirira nada noutro local que não Londres. Por fim, virou-se para aquilo que realmente procurava: uma nota no verso da folha anunciava


uma festa dentro de duas semanas, para coincidir com a lua cheia. Lady Barnell, em sua casa, seria a anfitriã. Duas semanas pareciam muito tempo. Miss Radley poderia até ter ido embora, se declinasse o convite do tio para morar em sua casa. Não parecera feliz com aquela ideia. Estava Lance a pensar se iria a casa de Radley naquele dia ou no dia seguinte, quando um criado lhe anunciou a chegada de um visitante. Um minuto depois, o irmão Ives entrou a passos largos na biblioteca, olhou para ele e parou de súbito. Os olhos verdes aumentaram dramaticamente. Cobriu o coração com a mão e simulou um desfalecimento. – Poupa-me aos teatros de tribunal – disse Lance. – Estou mesmo paralisado. Passou tanto tempo desde que te vi decentemente barbeado, que mal te reconheci. O criado amarrou-te enquanto dormias e consumou o feito, a despeito da tua excentricidade? – Não era excêntrico, era prático. Para quê arriscares um corte, se ninguém te vai ver? – E agora, alguém vai ver-te? – A sobrancelha de Ives franziu-se. – Espero que não estejas a planear ir à cidade. – Poderei ir. – Lance não tinha tal intenção, mas as tentativas do irmão de dominar os seus movimentos já se haviam tornado entediantes há meses. Em vez de iniciar um dos seus discursos aborrecidos acerca de tal visita não ser desejável, com as suspeitas sobre a morte de Percy ainda a pairar, Ives simplesmente sentou-se e, ainda de botas calçadas, esticou as pernas. A satisfação sexual silenciava assim até o mais ruidoso leão. O casamento com Miss Belvoir produzira muitas mudanças em Ives, algumas das quais não haviam sido bem recebidas por Lance. Para começar, agora era mais difícil acicatá-lo. – Suponho que aqui te sintas muito aborrecido – disse Ives, expressando uma invulgar compreensão pelo infindável tédio de se levar uma vida rural. – Se quiseres, vai. Duvido que te metas em sarilhos, porque agora não está ninguém na cidade. – Se é esse o caso, ficarei aqui, onde pelo menos vejo algumas almas quando vou andar a cavalo. Ives mal o ouviu. O jornal captara-lhe a atenção. Inclinando a cabeça, leu o anúncio no verso. De repente alerta, lançou a Lance um olhar de curiosidade.


– Estarás tu tão entediado que planeias marcar presença nesta festa? Se sim, tens de avisar a senhora. Duvido que esteja à espera de receber um duque. – Obrigado pela lição de boas maneiras. Que faria eu sem ti, Ives? Com certeza andava por aí aos tropeções, a passar vergonhas. Aquilo atrapalhou Ives. Não muito, todavia. – Vais? – perguntou, batendo levemente no jornal. – Não percebo o teu interesse. – Acho estranho, só isso. Não foste a nenhuma desde que tinhas... – Fez uma pausa e calculou. – Dezassete. Depois da última, ficou bem claro que já não serias bem-vindo nas festas. – Dezasseis. Quanto aos infelizes acontecimentos dessa noite e à censura generalizada que se lhes seguiu, foi muito barulho por nada e, em minha defesa, eu era um rapaz. Na realidade, não havia defesa – o que não incomodou Lance na altura, nem incomodava neste momento; e o «muito barulho» fora em torno de algo merecedor da reprovação que caíra intensamente sobre ele. A sua má reputação ficara inscrita na lápide, no que dizia respeito àquele condado. – Seres um rapaz foi parte da graça. Ela não era uma rapariga, no fim de contas. E foi o facto de seres um rapaz que demoveu o marido de te desafiar para um duelo. Se estiveres presente nesta festa, de certeza que alguém relembrará a história, para diversão de todos e ruína de tudo o que a tua virtude recente construiu. Ives transformara-se outra vez em advogado. Todavia, tinha razão. Outras partes da história renasceriam, como o facto de ter sido Percy, aquele patife, a mandar o marido da senhora ir ao jardim. Este encontrou a mulher de gatas, com a saia subida até aos ombros, e um rapaz de dezasseis anos a desfrutar do prazer. – Se eu resolver ir, vou. Deixa o condado recomeçar os mexericos. A virtude é uma maçada terrível, em todo o caso, e já estou cansado de fingir ser outro que não eu. Aquelas palavras arrastaram por completo Ives para fora da sua calma marital. Sentou-se direito. Fixou o papel. O olhar intensificou-se. Quase se conseguia ouvir a mente a analisar e a esmiuçar tudo o que vira e ouvira nos últimos minutos.


– Quem é ela? – Lance decidiu terminar o café. – Quem quer que seja, não deves. – Não devo o quê? Ives olhou-o, furioso. – Tens de vir para Londres, quando eu regressar. – Quando será isso? – Um dia ou dois, não mais. – Vieste cá sem outra intenção que não visitar-me por um dia ou coisa assim? Que bom que tu és. Ambos sabiam que a palavra visitar era demasiado delicada. Lance estava numa espécie de prisão e Ives proclamara-se carcereiro. – Pensei que querias companhia. – Já ultrapassei isso há muito. As lebres e as galinhas fazem-me companhia que chegue. Os criados vão-me lembrando que ainda ando na Terra. Ives franziu o sobrolho. – Passou quase um ano desde que o Percy morreu. Vou chamar o juiz de instrução e dizer-lhe que está na hora de esclarecer de vez este absurdo. – Suspeito que o assunto permanece em aberto porque alguém o quer aberto. De qualquer maneira, não tens de te preocupar com isso. Já o fizeste que chegue por nós os dois. Ives, suavizado, recolheu-se nos seus pensamentos. Muito de repente, saltou para fora deles. – Muito bem, distrair-me assim, a fazer-me sentir mal por ti e a dispensar-me de qualquer obrigação futura. – Ainda bem que gostaste. – Não vai resultar. Pergunto outra vez: quem é ela? Gareth, o meio-irmão, a esta altura já teria desistido. Ives era deveras persistente, o que o havia ajudado a tornar-se um advogado de renome. A sua prontidão a atormentar pessoas revelara-se muito útil na sala de audiências.


– O que é que te faz supor que há alguém? – Barbeaste-te. – Apontou para o panfleto. – Planeias ir a esta festa. Os teus olhos têm um brilho que já não via há quase um ano. Estás em busca, mas não a caçar lebres, veados ou aves. Embora eu aposte que há uma galinha bonita em vias de ser depenada. Lance levantou-se. – Vou sair a cavalo. Preciso de visitar um dos inquilinos. Anda comigo, se quiseres. – Avançou a passos largos para a porta e Ives alcançou-o. – Para de franzir a testa, Ives. – Tenho um bom motivo para franzir. Se não me dizes quem é ela, é pior do que eu pensava. Muito pior. É o que a virtude impiedosa faz a um homem.

– Diz-se que a senhora saiu minutos depois do cavalheiro – confidenciou Mrs. Wigglesworth. – Na minha opinião, são demasiadas coincidências. – A ênfase em coincidências vertia insinuações. A Mamã olhou de soslaio para Marianne, para ver se a filha havia alcançado as implicações do mexerico. Marianne aparentava estar perplexa. Mrs. Wigglesworth não devia falar sobre tais assuntos em frente a uma rapariga solteira, mas Marianne acompanhava a mãe nas visitas para poder ouvir notícias interessantes como estas. O rosto arredondado de Mrs. Wigglesworth alongou-se, escandalizado com as próprias revelações. Mulher pequena e roliça, preferia as toucas generosas que lhe cobriam grande parte do cabelo grisalho. O vestido verde, ainda que interessante, expunha demasiado do abundante decote, e a cor fazia com que a pele branca parecesse macilenta, na opinião de Marianne. Se era assim que as costureiras locais influenciavam a moda no condado, teria de insistir com o tio Horace para que mandasse Nora fazer o novo guarda-roupa em Londres. – Os criados da estalagem contaram isto às pessoas? – perguntou a Mamã. – Que indiscrição da parte deles. – Não é todos os dias que tão notáveis figuras param na estalagem da aldeia, minha querida. Existe uma muito melhor mesmo à saída de Cheltenham. Não podemos culpar os criados por, na sua excitação,


revelarem demais, ainda que não o devessem ter feito. Marianne estava muito satisfeita por saber que os criados eram indiscretos. – Não compreendo o que significam essas coincidências – mentiu. – É muita excitação por nada, parece-me. Mrs. Wigglesworth dirigiu à Mamã um olhar eloquente, que esta devolveu. Ambas sorriram complacentemente a Marianne. – Talvez queiras ir ver o jardim – sugeriu-lhe a mãe. – Eu e Mrs. Wigglesworth poderemos então conversar sobre outras coisas insignificantes sem te aborrecer. Marianne tentou determinar se Mrs. Wigglesworth teria mais notícias interessantes para revelar. Decidiu que não. lojas.

– Creio que, em vez disso, vou dar um passeio pela aldeia e ver as – Irei de carruagem ao teu encontro – disse a Mamã.

Despedindo-se, Marianne escapou pela porta e apressou-se a descer o caminho para a aldeia. Uma vez chegada, lançou-se para o interior da livraria Howard’s. Desde a primeira vez que o vira, Marianne pensava que Mr. Howard não parecia muito um livreiro. Sempre os imaginara homens franzinos, com óculos, e solenes como precetores. Mr. Howard, por seu lado, erguia-se alto e corpulento, de face e modos cheios de cor, e possuía um cabelo ruivo selvagem, cujos caracóis ficavam em pé. Pelo aspeto, poderia ser o proprietário de uma taberna ou um criador de ovelhas. Cumprimentou-a calorosamente e de imediato abriu uma gaveta atrás do balcão. Entregou-lhe duas cartas e mostrou-lhe um grande sorriso. Marianne reparou que uma das cartas era de Vincent, o irmão de Nora. Quanto à outra, não lhe restava alternativa senão confiar na discrição de Mr. Howard, embora certamente houvesse limites para ela. – Não considera estranho que eu receba estas cartas, deste cavalheiro, sob este nome, Mr. Howard? – Estaria a mentir se lhe dissesse que não, mas considero estranhas muitas das cartas que trato, Miss Radley. Ficaria espantada com o quão estranhas algumas delas são. – Sorriu. – Poderá dizer-se que tratar de cartas estranhas é uma das atribuições do meu ofício.


Uma atribuição francamente lucrativa. Marianne pagava um xelim por mês por esta caixa de correio. Se outros dez, que fosse, também o fizessem, Mr. Howard ganharia uma boa soma pelo serviço. Marianne suspeitava que muito do seu rendimento provinha do tratamento de cartas estranhas; Mr. Howard não quereria comprometê-lo com indiscrições. – Não se deve preocupar com isso agora – disse ele. – Além de mim ninguém as vê, como lhe expliquei. Ninguém saberá. – É rara a pessoa que consegue saber de tantos segredos sem sentir vontade de os divulgar, mas sei que Mr. Howard é uma dessas pessoas. – É o que faço, menina. Tem alguma coisa para expedir hoje? Marianne abriu o seu saco de rede e entregou-lhe uma carta. Uma carta estranha. Retirou a moeda necessária para a enviar para Londres. Meteu depois a correspondência no saco e saiu, para que a mãe a encontrasse a deambular pelas lojas.


CAPÍTULO 6

Times de Londres

...Nos acontecimentos financeiros, Mr. Vickers de Gloucester irá vender no seu estabelecimento as estufas em miniatura construídas por ordem da Companhia Botânica do Brasil, que revelou que o plano de ter marinheiros a levar as ditas estufas, para reunir plantas raras e cuidá-las durante o transporte até Inglaterra, não teve sucesso. Parece que os marinheiros, que estavam satisfeitos com a remuneração, se mostraram relutantes perante a ideia de partilhar a sua porção de água fresca com as companheiras botânicas. Mr. Vickers venderá as pequenas caixas de vidro pelo preço de um xelim cada. No tocante aos ilustres do condado, o duque de Aylesbury, que ostentou durante meses pelagem facial suficiente para passar por um antigo filósofo ou um marinheiro naufragado, barbeou-se. A aparência daí resultante valeu-lhe ser confundido por, pelo menos, três residentes do condado, quando recentemente visitou Cheltenham. O vosso correspondente questiona-se se Sua Graça terá admitido que seria incapaz de persuadir homens suficientes a seguir os seus hirsutos desígnios, com o fim de iniciar uma nova tendência, ou se a barba haverá interferido com as suas normais atividades, em particular com a entusiástica caçada de belas aves, pela qual é famoso. Elijah Tewkberry, Gloucestershire

Lance simulava examinar os livros na biblioteca de Sir Horace. Sir Horace tentava preencher o vazio do tempo, tagarelando sobre assuntos do condado. Por fim, nenhum deles pôde ignorar que passara mais tempo do que o esperado. – Vim numa hora inconveniente. Voltarei noutro dia.


– Não, não, a sua visita não foi de todo inconveniente. Estou certo de que a minha sobrinha estará aqui em breve. Muito em breve. Creio que está agora iminente. Peço-vos que aguarde mais uns minutos. – Apontou o nariz na direção do criado que se encontrava de pé, junto à porta. – Comida e bebida para Sua Graça. Encarrega-te disso. – Não necessito de nada, como disse. – Então um pouco de conhaque. – Horace executou uma dança vagarosa até a uma mesa com decantadores. Lance estava prestes a objetar quando a porta se abriu. A cabeça de um criado inclinou-se até ao ouvido do colega que montava guarda; este serviçal avançou até Sir Horace e, sucessivamente, inclinou-se sobre o ouvido deste. – Elas regressaram – anunciou Sir Horace com alegria. O dedo rodopiou ao criado. – Pede a Mrs. e Miss Radley que se juntem imediatamente a nós. Lance olhou pela janela e avaliou a passagem do dia. Se, como planeara, convidasse Miss Radley para um passeio de carruagem, não teriam mais de uma ou duas horas antes do anoitecer. A referida menina não tardou a irromper pela biblioteca com uma expressão preocupada. Deteve-se, olhou em volta e suspirou de alívio. – Quando o criado disse imediatamente, pensei que talvez... a Nora... Acalmou-se e, ao mesmo tempo, juntou-se a ela outra mulher. Mais velha, não mais de quarenta anos e ainda muito bonita, esta tinha cabelo escuro, mas olhos de uma cor semelhante. Sir Horace apresentou-a como sendo a viúva do seu falecido irmão. Mrs. Radley executou uma vénia profunda. A filha fez o mesmo. Lance curvou-se. Sir Horace sorriu abertamente. – Que bom visitar-nos, Sua Graça. É uma honra para nós – disse Mrs. Radley. – Estava na estrada e pensei que a sua filha poderia consentir em dar um breve passeio comigo. Com a sua permissão, naturalmente. Será também bem-vinda, ou se preferir poderá mandar a empregada. – Mandar a empregada. Podia sempre perder de vista uma criada. Um olhar fulminante e a empregada desapareceria. Não que tivesse quaisquer intenções que exigissem tal tática.


Contudo, nunca se sabia. – A minha filha pode acompanhá-la – disse Sir Horace. – Certamente que a sua presença manterá tudo respeitável o suficiente. Lance gostou daquele suficiente. Sir Horace era capaz de contornar algumas regras, quando lhe convinha. – Ficarei feliz que se junte a nós, se estiver disposta. – Tio... – Miss Radley lançou um olhar de censura ao tio. Sir Horace fingiu não ver. – Vai lá acima buscá-la – instruiu ele. – Diz-lhe que penso que seria muito bom para a sua saúde ir apanhar ar fresco. Está há demasiado tempo dentro de casa. Contrariada mas sem alternativa, Miss Radley saiu. A mãe sentou-se numa cadeira e encetou tentativas de fazer conversa de ocasião. Lance ouviu pouco do que eles disseram. Passou demasiado tempo. Sir Horace desculpou-se, prometendo voltar. Em vez disso, dez minutos mais tarde, Miss Radley reapareceu com outra jovem, esta pouco mais do que uma menina. Muito pálida, com o cabelo quase incolor de tão loiro e de aparência infantil num vestido amarelo, mostrava uma expressão medrosa e olhos grandes. Parecia ter estado a chorar. – Vamos – disse Miss Radley. – Agora, se não se importa. – Virou então a prima e conduziu-a para fora da biblioteca. – Mas Sua Graça ainda não lhe foi apresentado – gritou a mãe a seguir. – Eu apresentá-lo-ei – chegou a resposta brusca, ecoando no vestíbulo. Lance seguiu-as. Quando as alcançou, Miss Radley e a prima estavam ao lado da carruagem. Miss Radley já não escondia o desagrado. Deixou a prima e puxou Lance para o lado. – A Nora não queria vir, como poderá imaginar. O meu tio não aceitava essa decisão, e tivemos uma cena enquanto ele a forçava a isto. Peço-lhe que o passeio seja rápido e, se ela escolher não falar, por favor seja generoso o suficiente para lho permitir.


– Evidentemente. Tranquilizada, Miss Radley levou-o até à rapariga e apresentou-os. Nora nunca olhou para ele, nem ao entrar na carruagem. Quando Lance se sentou em frente a elas, concluiu que Nora seria uma acompanhante ainda melhor do que uma criada. O olhar dela fixou-se na janela e Lance duvidava que tivesse ouvido alguma coisa do que dissera. Deu a Miss Radley uma manta de carruagem. – Talvez fiquem ambas mais confortáveis com isto. Marianne pegou na manta e colocou-a no colo da prima, e bem alto no peito. Segurou a mão de Nora na sua. – Preocupa-se com ela – disse Lance. – De todas as formas. – Uma chispa impiedosa surgiu-lhe nos olhos. – Nos últimos três anos não mudou muito de aspeto, não concorda? – Como disse antes, não posso sabê-lo. Lamento. – Lance ficou satisfeito por esta admissão de não ter memória de Nora não ter suscitado uma reação de desgosto na rapariga. Ela simplesmente continuou a análise minuciosa do campo por que passavam. O queixo e o maxilar de Miss Radley tornaram-se tensos. Parecia uma pessoa a engolir palavras que a sufocavam. – Talvez estivesse ébrio quando a conheceu. – Pode ter acontecido. – Era tempo de falar de outras coisas. – Saiu para fazer visitas? – Sim. A minha mãe tem muitos velhos amigos para ver. Morou cá muito tempo, antes de nos termos mudado. – Quando Sir Horace recebeu a herança? Marianne acenou com a cabeça. – O meu irmão, Thomas... – Eu conhecia o seu irmão. Fiquei desolado quando soube do falecimento. – Sendo os vínculos o que são, logo que o Thomas desapareceu foi tudo para o meu tio. Ele decidiu que seríamos mais felizes noutro lado qualquer. Deu-nos o usufruto de uma propriedade de família no Wiltshire,


por isso não lavou por completo as mãos do nosso sustento. – E agora chamou-vos de volta. – Lance olhou para Nora, que se mantinha alheada, não só da conversa como do próprio mundo. – Estávamos melhor naquela casa. – Marianne apertou a mão de Nora. – Ela estava, pelo menos. Creio que eu também. Agora estamos aqui e aproveitarei ao máximo. – Olhou pela janela. – Aonde vamos? – Pensei que podíamos ir ao lago. Não é longe. – Isso seria agradável. Já não vou lá há anos. Foi simpático da sua parte convidar-nos. – Espero que em troca seja simpática e me faça uma visita. Com a sua mãe, claro. – Estou certa de que estará demasiado ocupado para nos receber. – Prometo que receberei. Se vier dentro de um dia ou dois, poderá conhecer o meu irmão Ives. Veio de Londres para uma visita breve. Aquilo interessou-a. – A família dele também veio? – Deixou a mulher em Londres. Ela embarcou num curso de estudos intensivo, com intenção de ir para Pádua e frequentar lá a universidade. É um empreendimento ambicioso, ao qual se atirou com a total aprovação do meu irmão. – Muito, muito interessante. Parece ser uma mulher extraordinária. E se o seu irmão aprova, deve ser um homem igualmente extraordinário. O que está ela a estudar? Lance passou os quinze minutos seguintes a contar a Miss Radley tudo acerca de Ives e a nova noiva. Quando terminou, encontravam-se no lago. O limite da propriedade atravessava-o pelo meio. Durante décadas, ambos os proprietários haviam permitido que se nadasse ou andasse de barco, e no verão encontravam-se sempre pessoas por ali. Naquele dia invernoso, o lago estava deserto. – Vamos dar uma volta pela margem – disse Lance. Miss Radley olhou para a prima.


– É melhor eu ficar aqui. – A carruagem está quente e ela tem a manta. E o cocheiro ficará com a carruagem. Ela estará em segurança. Miss Radley voltou-se para a prima. – Nora, vou fazer uma pequena caminhada. Também queres vir? Nora abanou a cabeça. – Ficarei bem aqui, tal como o senhor disse. Superando a hesitação, Miss Radley permitiu que Lance lhe desse a mão para a ajudar a descer. Caminharam pela erva até à beira do lago. – Parecia maior quando eu era criança. – É sempre assim. Quando tinha quinze anos, percebi que o lago era pequeno o suficiente para poder atravessá-lo a nado com facilidade, ainda que em criança me parecesse um oceano. Vaguearam ao longo da margem. – Quando disse que me visitaria e reclamaria um passeio de carruagem, não pensei que fosse sua intenção fazê-lo – disse Marianne. – Como vê, a Nora não está grata pela oportunidade. – Lamento que ela tenha sido obrigada a juntar-se a nós. Eu teria ficado feliz só com a sua companhia. Um galanteio subtil não lhe surgia de modo natural. Já que ela nem sequer corou, devia ter sido de facto muito subtil. Marianne franziu a testa. – Está certo de que não a reconhece? – Muitíssimo certo. Contudo, parece acreditar que deveria. – Sim, acredito. – Miss Radley, se a sua prima diz que nos conhecemos, sem dúvida que sim. Serei honesto e admitirei que, mesmo que ela tenha afirmado que a cortejei, é provável que seja verdade. Confesso que não me lembro de todas as raparigas que conheci ou galanteei. – Sem dúvida irá também esquecer-me em breve.


– Não disse isso e não o deve pensar. Um sorriso passageiro ou lisonja não são bem o mesmo que visitar uma mulher. Marianne olhou para trás. O passeio levara-os para lá de uma curva que os afastava da vista da carruagem. – É melhor voltarmos. – Vamos andar um pouco de barco, a menos que esteja com muito frio. – Lance convenceu-a a seguir até um dos barcos a remos que repousavam ao longo da margem. Se algum dia uma mulher se sentiu no meio da ponte, foi ela. Todavia, seguiu-o e subiu para o barco. Lance pô-lo ao largo, saltou para o interior e sentou-se, agarrando os remos. Com algumas remadas estavam afastados da margem. Liberto dos ramos suspensos das árvores, o sol do fim de tarde banhou-os com o seu calor. Marianne desatou as fitas do chapéu, tirou-o e colocou-o no assento ao seu lado. – Este lugar é adorável. Tão tranquilo e silencioso. Quem me dera que a Nora tivesse vindo. Lance ergueu os remos e deixou o barco à deriva. – Estou feliz por isso não ter acontecido. Ela estava linda, inundada pelo dourado dos raios de sol e rodeada pelo azul profundo do lago. Em certas partes, o cabelo acobreado parecia incendiar-se, quando o sol fazia os fios brilhar. No entanto, a boca carnuda não sorria e os olhos azuis observavam-no com prudência. – Porque me visitou? Que esperava? – perguntou Marianne. Se fosse bom, o que nunca havia sido, responderia algo tranquilizador. Poderia até simular ficar ferido pelas evidentes desconfianças. Uma vez que era mau – perverso, até –, não se daria a esse trabalho. – Com certeza sabe. Pode ser inocente, mas não é ignorante.

Bom, uma resposta franca. De qualquer maneira, perguntara. Não podia ficar aborrecida por ele lhe ter respondido honestamente. Apesar


disso, ficou; este homem era tão pretensioso que presumiu que ela não se importaria com uma alusão tão despojada. Talvez guardasse as palavras mais delicadas para mulheres melhores do que ela. – Sou muito ignorante no que toca aos seus propósitos, de momento, neste barco. Lance fitou-a demoradamente. Marianne desejava que aquele olhar não a afetasse. Porém, ele não era o tipo de homem cuja atenção uma mulher pudesse ignorar, ou permanecer-lhe imune. Pelo menos não esta mulher. Marianne suspeitava de que a sua suscetibilidade tinha muito que ver com o facto de nunca antes ter recebido tal atenção por parte de um homem. Decoro mais falta de fortuna eram igual a nenhum interesse masculino – uma equação que aprendera depressa e com a qual já fizera as pazes. – A minha intenção é reclamar o beijo que me deve. – Não lhe devo beijo nenhum. – Prometeu-me um, se me barbeasse. – Não prometi. Revi esse encontro a fundo e apenas lhe disse que, se fôssemos apresentados e se se barbeasse, poderia dançar consigo. Não falei de nenhum beijo, nem sequer me pediu um. – Recordo-o de forma diferente. – A sua memória é imperfeita em muitos pontos, Sua Graça, pelo que não me surpreende que o seja neste. – Por favor, não me trate assim. Chame-me Aylesbury. – Lance sorriu. – Chamar-lhe-ei Marianne. – Não, senhor, não chamará. Não aceitarei tal familiaridade. – E eu não aceitarei a formalidade de a tratar por Miss Radley, sobretudo porque na carruagem está outra Miss Radley. – Inclinou-se para a frente. – Vou chamar-lhe bela flor, até que entenda ser aceitável mais intimidade. Seria mais sensato permitir-lhe que usasse o seu nome de batismo, em vez de suportar aquele tratamento afetuoso. Tentou, em vão, conceber uma recusa elegante para ambas. As palavras continuavam a misturar-se. A falta de experiência tornava-a absolutamente incapaz de controlar esta aproximação com algo que se assemelhasse a sofisticação. A posição de Lance, com os braços nos joelhos, aproximou-o muito


dela. Para seu espanto, ele estendeu-se e deu-lhe a mão. O calor daquele toque fluiu através da luva e subiu-lhe pelo braço. Depois expandiu-se, como se ele lhe aquecesse o sangue. Lance começou a despir-lhe a luva. Ela assistia, hipnotizada pela intimidade de um ato tão insignificante. Os dedos deslizavam-lhe pela pele enquanto, pouco a pouco, aliciavam a luva a descer. O lento e diabólico despir da mão fez com que as pontas dos dedos dele continuassem a tocarlhe ao de leve no braço. Marianne ficou sem fôlego e um calafrio correu-lhe do pescoço até ao estômago. – O que... o que está a fazer? Ele retirou por completo a luva e segurou-lhe a mão na sua, pele com pele. – Estou certo de que não me vai permitir que a beije na boca. Mas isto não é perigoso, nem escandaloso; se tivéssemos sido apresentados de forma diferente, tê-lo-ia feito mesmo à frente do seu tio. E, assim, curvou a cabeça sobre a mão de Marianne e beijou-lha. Só que não foi o tipo de beijo que um homem pode dar à mão de uma senhora ao ser-lhe apresentado; não foi um mero toque ligeiro nem um beijinho. Beijou-lhe a mão. Lentamente. Sedutoramente. Lance pairava de forma a que a respiração dele lhe aquecesse a pele. Arrepios dançavam-lhe pelo braço. Pressionou os lábios quentes e depois moveu-os, para que a sua boca a acariciasse. Marianne observava, estupefacta pela visão daquele ardor e pelo efeito que surtia nela. Uma vivacidade nova comoveu-lhe todos os sentidos; era como se o tempo tivesse abrandado, para permitir a Lance que a beijasse à vontade. Ele voltou-lhe a palma da mão para cima e beijou-a ainda mais. Sinais de excitação agitavam-se como um formigueiro no estômago, arrebatandoa; partes do corpo a que raras vezes prestara atenção fervilhavam de vida e de sensações. Docemente, ele mordiscou-lhe as pontas dos dedos. A tensão delicada de cada mordedura libertava deliciosas comoções que lhe subiam pelo braço. Por fim, trincou-lhe a almofada na base do polegar. Um prazer pecaminoso estendeu-se nas profundezas do seu ser. O calor dos lábios moveu-se para a pulsação no punho. A sensação disparou. Marianne estremeceu e afastou a mão.


Lance olhou-a. Não estava surpreendido. Não estava aborrecido. Limitava-se a esperar enquanto a observava. A mente de Marianne debatia-se para formar palavras para o repreender, mas a vergonha não permitia que se formassem. Já a censura a si mesma por autorizar tais confianças juntou-se-lhe sem esforço. Depois de a olhar profundamente nos olhos uma última vez, Lance pegou nos remos e recomeçou a remar. Tinha sido um olhar de entendido, bastante honesto a refletir o que vira: uma mulher que, considerando o que ele havia feito, não resistira a tempo. Assim que chegaram à margem, Marianne saiu com esforço do barco e dirigiu-se a passos largos para a carruagem. Repôs a luva na mão com dificuldade, já que também carregava o chapéu. Lance surgiu ao lado dela. – Pode repreender-me, se quiser. – E continuar a ser o bobo? Só vou ralhar até aqui: não vai voltar a fazer aquilo. Nem precisa de fazer mais visitas, uma vez que já teve o beijo que diz que lhe devia, e ainda que não lhe devesse nada desse género. – Penso que poderá estar certa quanto a isso. Agora que me lembro, creio que de facto era, como afirma, uma dança na próxima festa. – É insuportável e muito mau. Sei tudo sobre si. Já sabia quando era criança, mas verifico que agora é ainda pior. – Não me parece que pior seja uma característica. – Devo dizer perverso, como dizem todas as outras pessoas? – Tem o seu encanto, ao passo que mau é uma palavra tão usada que chega a ser desinteressante. É aplicada a todo o tipo de coisas banais. A comida está má. Ele teve um dia mau. Já perverso é sempre sobre uma pessoa, pelo menos, e muito mais preciso. Entre o seu embaraço e as provocações de Lance, quando chegaram à carruagem, Marianne sentia-se enervada e sem saber o que fazer. Apressou-se, para reivindicar o refúgio de ter Nora por perto. Porém, quando viu a janela da carruagem, todos os pensamentos sobre o duque se desvaneceram. Desatou a correr. Abriu a porta. O coração tornou-se chumbo e desmoronou.


– Ela não está aqui. A Nora desapareceu. Aylesbury aproximou-se com largas passadas e espreitou para o interior, chamando depois o cocheiro. – Para onde foi a senhora? O cocheiro circundou a carruagem e olhou para dentro. – Estive sempre aqui, Sua Graça. Exceto uns minutos ainda agora em que eu, hum... – Olhou para Marianne e corou. – Fiz uma visita àquele arbusto ali. – Apontou para o outro lado do caminho. Marianne correu para a margem do lago a fim de visualizar melhor o caminho. Rezou para ver a figura franzina de Nora, com o seu vestido amarelo, a deambular por ali. Mas o caminho mostrava-se vazio. Aylesbury juntou-se à busca, procurando tão diligentemente como ela. Marianne virou-se para o lago. O pavor gritou na sua mente. Avistavase amarelo na água, a algumas dezenas de metros da margem. Agarrou no braço do duque e apontou. – Veja. No lago. – Não saia daqui – comandou ele, sem hesitar. Chamou o cocheiro para que o acompanhasse e desataram a correr. Marianne também correu, maldizendo-se por não ter sido mais cuidadosa e lutando com as lágrimas que a cegavam. Aylesbury foi direto ao lago e nadou na direção do tecido amarelo que ondeava à tona da água. Mergulhou. Alguns instantes de agonia e nada aconteceu. A pior das sensações espalhou-se por Marianne, a de um sofrimento pendente demasiado profundo para aguentar. De súbito, a cabeça de Aylesbury emergiu. A de Nora também. Ele iniciou o caminho de regresso, arrastando consigo o corpo mole de Nora. A respiração de Marianne tornara-se ofegante, não de alívio mas de temor. Alcançou-os no exato momento em que Aylesbury e o cocheiro puxavam Nora para a margem. O vestido de musselina, agora transparente, expunha-lhe o corpo em toda a sua lívida magreza. Nora parecia morta. Não havia como fingir que não. Não se movia, não respirava. Uma serenidade fantasmagórica tomara-lhe o rosto. Marianne deixou-se cair sobre os joelhos e segurou Nora nos braços.


– Ela avisou-me. Nunca me perdoarei por não a ter vigiado melhor, sobretudo hoje, que foi obrigada a... – Olhou para Aylesbury. – Que negligente fui. Devia ter dito que não ao meu tio, discutido com ele. Devia ter ido embora, enfrentando a miséria extrema, em vez de permitir que ele a pusesse em risco desta forma. Aylesbury aproximou-se de Nora. – Ela não esteve muito tempo dentro de água. Virou Nora para o chão e pressionou-lhe as costas com firmeza. – Outra vez, senhor – disse o cocheiro, observando-o com olhos assustados. Aylesbury pressionou novamente. E outra vez. Desta última, a água saiu, abundante, da boca de Nora. Ele pressionou mais uma vez. Nora tossiu. Os ombros elevaram-se e tossiu ainda mais vezes. O alívio enfraqueceu Marianne. Abraçou a prima; o ar penetrava-a e a consciência regressava. Nora permanecia de face voltada para o chão, retornando à vida. – O que é que te passou pela cabeça, querida? – murmurou-lhe Marianne ao ouvido, ao mesmo tempo que gritava de fúria consigo mesma. – Perdoa-me por não saber o que a companhia dele te faria, ainda que por pouco tempo. Perdoa-me por não ter enfrentado o teu pai. Vou cuidar de ti. Se isso implicar sairmos as duas de casa, que assim seja. Aylesbury levantara-se para que Marianne pudesse tomar conta da prima. Depois baixou-se, virou Nora e levantou-a nos braços. Começou a dirigir-se para a carruagem, com o cocheiro e Marianne no seu encalço. Enrolaram-na no cobertor e Aylesbury deu ordens para seguirem para casa a toda a velocidade. Marianne abraçou Nora durante toda a viagem. Um criado robusto carregou Nora para dentro de casa. – Leve-a para os meus aposentos – disse Marianne. – Encontre o meu tio e peça-lhe que venha de imediato – ordenou a outro criado. Já no quarto, Marianne instruiu Katy para que despisse as roupas encharcadas de Nora e lhe vestisse uma das suas camisas de noite. Meteram-na na cama e acenderam a lareira. Nora parecia muito pequena. Pueril e indefesa. Nora abriu os olhos. Viu Marianne e estendeu-lhe a mão.


– Não ralhes. – Não te vou ralhar. Ainda que com Nora seca e a salvo, a sua fúria continuava a emergir. Fúria consigo mesma, por não ter sido mais cuidadosa, com o tio, por ser tão cruel, e com Aylesbury, por ter sido tão mau a vida inteira e nem se lembrar de todas as coisas perversas que havia feito. O tio Horace irrompeu pelo quarto e avançou a passos largos para a cama. Ver a filha desperta resultou num longo suspiro de alívio que deu ânimo a Marianne. Pelo menos, importara-se o suficiente para se preocupar. O tio acalmou-se. – Vê se ela se mantém quente – ordenou Horace a Katy. – Dá-lhe um pouco de xerez. Deve ajudar. Marianne tocou-lhe no braço. – Tio, gostava de falar consigo. – Dirigiu-se para a porta. No corredor, com a porta do quarto bem fechada, encarou o tio. – Aylesbury disse algo sobre o lago – segredou ele. – Não conseguiram impedir que isto acontecesse? – Ela não caiu ao lago; ela atirou-se ao lago. – Marianne falava modestamente, mas as palavras saíam-lhe bem articuladas e furiosas. – A Nora já tinha ameaçado. O tio exigiu-lhe que acompanhasse o duque neste passeio e aqui está o resultado. – Aylesbury está encharcado. Atirou-se ao lago atrás dela. O cocheiro disse que ele a salvou. – Aylesbury é a razão pela qual ela até fez isto. Vamos agora ficar-lhe gratos por ter estragado as suas bonitas roupas para a arrastar para fora? – Marianne virou-se sobre o calcanhar. – Ele ainda está cá? Ótimo. Vou dizer-lhe que é o responsável e que as ações de hoje não alteram nada. Vou fazê-lo saber o estrago que provocou há três anos e... O aperto firme do tio deteve-a a meio. – Não te atreverás. Não podes acusá-lo com base nos delírios febris de uma mulher. – Posso e vou.


– Não. Se o fizeres, direi que és tão louca como ela. – Estará tão preocupado com a amizade forçada com este homem, que arriscará sacrificar a sua própria filha em nome da ambição? Não pense que não percebo o que o motiva; não é a Nora, nem o bem-estar dela. – Como ousas falar-me assim? Vou... – Atirar-me para a rua? Força. Não sou desprovida de recursos nem de competências. – A voz de Marianne soou mais alto do que tencionava. Ouviu-se a si própria e impôs ao comportamento uma calma que não sentia no espírito. – Vai desistir do plano de a casar com ele, ou com quem quer que seja, até que e a menos que ela decida casar-se. Está a ouvir-me, tio? Se persistir nesta ideia, arranjarei forma de a tirar desta casa, nem que tenha de ir servir para a sustentar. Hoje a Nora tentou levar a ameaça a bom termo; se alguma vez tivemos prova de que não aceitará o casamento, é esta. Ao terminar, a expressão do tio Horace mudara de fúria para desgosto. – Não contarei que se case – disse ele, por fim. – Em contrapartida, tens de prometer que não vais lançar acusações a Aylesbury. Não se podem provar, e homens como ele têm um poder que tu não compreendes. A rápida capitulação surpreendeu-a. Talvez o facto de terem estado tão perto da tragédia tivesse acrescentado peso à sua intimação. – Vou descer e agradecer ao duque a ajuda de hoje – disse o tio Horace. – Transmitirei também a tua gratidão, em termos que duvido que, neste momento, pudesses expressar com sinceridade. Marianne voltou para junto de Nora enquanto o tio descia as escadas. Ele tinha razão. Depois dos acontecimentos daquele dia, gratidão era a última coisa que se sentia inclinada a demonstrar a Sua Graça.


CAPÍTULO 7

Times de Londres

...Para concluir a nossa carta, informaremos que Lord Ywain Hemingford, de Lincoln’s Inn Fields, Londres, chegou ao Gloucestershire para visitar o seu irmão, o duque de Aylesbury. Desconhece-se se a visita se deve a questões de negócios ou é estritamente familiar, mas os locais referiram que Lord Ywain não se encontra acompanhado de sua nova esposa, cujo pai, Hadrian Belvoir, teve domicílio na Prisão de Newgate durante o outono – um encarceramento agora reputado como um erro. Supõe-se que a sua mulher tenha permanecido em Londres para continuar os estudos com os professores particulares. Elijah Tewkberry, Gloucestershire

–Não há motivo para que vocês os dois também se entediem. Depois de terem entregado os cavalos ao rapaz da estrebaria, Lance concluiu a explicação sobre o motivo de os irmãos deverem partir. Que Ives se demorasse em Merrywood era bastante mau. Que Gareth tivesse chegado no dia anterior não augurava nada de bom. Significava que Ives lhe escrevera a convidá-lo a vir, na esperança de que pudesse arrancar a Lance aquilo que ele, mesmo atormentando-o, não conseguira ficar a saber. Ives queria saber quem ela era. A sua mente de advogado havia engendrado incalculáveis catástrofes, que estariam à espera se Lance fosse atrás de uma mulher no condado. A recusa de viajar até Londres com ele, dois dias antes, apenas solidificara a opinião de Ives de que algo estava em curso e requeria investigação. – Diz-me apenas aonde foste no outro dia e vou-me embora – disse


Ives. – Levaste a carruagem. Referia-se à ausência de Lance no dia em que visitou Miss Radley. – Já te disse que a carruagem me levou ao lago, para eu praticar um pouco de remo. Um homem não pode viver semanas a fio sem fazer exercício. – Vaguearam em direção à casa. – Se insistires em intrometer-te, convido-te para uns combates de boxe, a fim de libertar a minha irritação com as tuas perguntas e ao mesmo tempo exercitar-me mais. – Desenvolveste uma afeição pelo lago, nos últimos tempos? – perguntou Gareth. Sorria sempre que se intrometia, e naquele momento irradiava a sua expressão mais amável em direção a Lance. O notável encanto de Gareth valera-lhe as boas graças de muitas senhoras da sociedade antes do casamento, e servira-o igualmente bem com homens. Era provável – Lance admitia-o – que tivesse criado o laço que ele e Ives sentiam com Gareth, ainda que fosse um meio-irmão e um bastardo. – Não particularmente. Porque perguntas? – Hoje fomos vê-lo. Alterámos o nosso trajeto de propósito. – Estávamos a andar a cavalo. Uma volta aqui e ali. Não tínhamos destino, portanto não poderíamos ter alterado o nosso trajeto. Lance não se importaria de lhes contar o passeio com Miss Radley. Se Ives não se tivesse transformado em, bom, Ives, talvez tivesse contado. A visita ao lago naquele dia fora intencional, para conseguir dar uma vista de olhos à margem, perto do local onde Nora Radley quase se afogara. Não vira qualquer indício de que Nora pudesse ter caído. Não havia marcas na lama. Nenhuma confusão nas ervas nem nas silvas. A margem não era especialmente traiçoeira ali. Na verdade, tinha até um declive para a água, tornando fácil a entrada a andar. Teria sido o que ela fez? A consternação de Marianne assim o sugeria. Perturbava-o ter estado tão perto de ver alguém tão novo a acabar com a própria vida. Pensara muitas vezes sobre os indícios desde que, naquele dia, deixou Sir Horace. O terrível desfecho do passeio havia contribuído bastante para lhe afastar do pensamento a lenta sedução da mão de Miss Radley e a notória excitação desta. Entraram em casa pelas portas da biblioteca que davam para o


jardim. Assim que se encontraram no interior entrou também um criado, que entregou a Lance um cartão. Gareth esticou o pescoço para o ler. – Sir Horace. Interessante. Talvez venha informar-te de que o juiz vai finalmente resolver a questão da morte do Percy. Por algum motivo, Lance duvidava. Uma referência indireta a essa possibilidade, feita por Sir Horace no outono, ainda não havia produzido nada. Pouco mudara desde então. O mais provável era que Horace fosse usar o facto de Lance lhe ter salvado a filha como pretexto para se insinuar mais a uma amizade. – É melhor recebê-lo sozinho. – Com certeza – disse Ives. Ele e Gareth voltaram atrás e retiraram-se para o jardim. Ao ser anunciado, Sir Horace adotou uma pose intencional, de forma a que Lance pudesse examiná-lo e reparar no seu vestuário e postura. Um pé para a frente, costas direitas, nariz empinado, olhava com uma autoconfiança agressiva. O cabelo grisalho fora alisado para trás, o que conferia à face magra um aspeto ainda mais angular. Os olhos pareciam aberturas estreitas de clara presunção. Sir Horace apresentava-se como um homem que tenciona ver o seu valor reconhecido naquele dia. Lance não conseguia imaginar porquê. – Toma um conhaque, Sir Horace? – Lance dirigiu-se às licoreiras, pois sabia que absorveria, pelo menos, uma delas. – Obrigado, Sua Graça. Com os copos na mão e instalados nas cadeiras, de frente um para o outro, bebericaram. Depois, Sir Horace pousou o copo e colocou as mãos nos joelhos. – Vim tratar de um assunto muito importante, senhor. Não se trata de uma mera visita social. – Se tudo corresse bem, e como Gareth alvitrara, Horace estaria ali como juiz de paz, para o informar de que o inverno de nove meses da sua vida terminara. – Serei claro e rápido – disse Sir Horace, fitando Lance com um brilho inabalável. – Vim aconselhá-lo a casar-se com a minha sobrinha, Marianne Radley. Lance raramente se espantava. Naquele momento, a surpresa era tal


que questionou se Sir Horace teria enlouquecido. A estupefação depressa deu lugar à irritação. Havia sofrido bastante nos últimos nove meses, em parte devido à intransigência daquele homem. Nos últimos tempos, tolerara a sua companhia em cavalgadas em que desejava estar sozinho. Agora isto. Sir Horace fora longe demais. – Que amabilidade a sua, afligir-se com o meu contentamento doméstico, senhor. Horace encostou-se na cadeira. – Vejo que não lhe agrada a minha presunção. Recordo-lhe que não sou apenas um mero vizinho, abaixo de si na hierarquia. Sou um juiz de paz. – De que forma é isso relevante para o assunto em mãos? – Disponho de meios para o levar à forca, Sua Graça. Tenho prova bastante de que envenenou o seu irmão. Como a maioria dos homens, desejo aperfeiçoar-me, e é por isso que lhe ofereço este negócio: case-se com a minha sobrinha e não só guardarei esta prova para mim, como direi ao juiz de instrução para arquivar o processo. Lance conheceu um momento de alívio por Ives ter ido para o jardim. Ainda que, por norma, fosse de temperamento moderado, Ives era rápido a bater-se quando provocado; se fosse ele ali sentado, onde Lance agora se encontrava, Sir Horace ver-se-ia espancado em breve. Não que Lance recebesse a ameaça, e a arrogância com que Sir Horace a proferira, sem o rancor vir à superfície. – Espera que eu acredite que tem essa prova? – Se tem algum bom senso, acreditará. Há uma pessoa disposta a declarar sob juramento que, naquela noite, o viu junto à comida do seu irmão. Comida preparada num tabuleiro, para lhe ser levada aos aposentos privados. Viu-o ficar nervoso. Ele veio ter comigo primeiro e convenci-o a não contar a mais ninguém. Por agora. Se, contudo, ele entregar esta informação, não será preciso mais nada, como sabe. O senhor e o seu irmão não gostavam um do outro. Muita animosidade durante anos. Depois, com o falecimento dele, ficou com tudo isto. – A mão de Horace ondeou pela biblioteca, sugerindo tudo o que se encontrava para além. À medida que Lance ouvia, um vazio agreste espalhava-se a partir do seu interior. Ficara a conhecer bem aquela sensação nos últimos meses. Habitualmente emergia à noite, durante as suas horas mais sombrias, e


resistira por muito tempo a dar-lhe um nome. Receio ignóbil. Fatalidade iminente. Provocava a insidiosa tentação de entrar em pânico que todos os homens encurralados sentem. – Quem é a pessoa que afirma ter-me visto? Sir Horace riu-se. – Vamos dizer apenas que é alguém a quem posso deitar as mãos depressa, que falará, se eu lho pedir. – Maldição, quem quer que seja, está a mentir. Nem sequer jantei aqui, portanto não faço ideia de onde e quando o meu irmão jantou. – Já o disse, muitas vezes. – Sir Horace pegou no copo e bebeu um trago de conhaque. Parecia resoluto e satisfeito consigo mesmo. Protestos de inocência de nada serviriam a Lance. – Porquê a sua sobrinha? – Considera-a pelo menos medianamente apelativa, se a visitou. E a minha filha... – Olhou para baixo, para o copo. – A minha filha não se adequa, devido à sua doença. Lance levantou-se. Com as mãos nos bolsos para não sucumbir ao anseio de esmurrar Sir Horace, afastou-se. Não era necessário perguntar a razão de Sir Horace querer este casamento. Qualquer afinidade com um duque trazia vantagens. Quase sempre podia ser explorada para proveitos financeiros. A habilidade de Sir Horace a aproximar-se de um homem com influência iria, por seu turno, trazer-lhe influência. Outros procurariam cair-lhe nas boas graças e oferecer-lhe-iam parcerias. Com grande probabilidade, nos anos vindouros – se esse casamento acontecesse –, Sir Horace ia sentar-se ali muitas vezes, a pedir-lhe um ou outro favor que, em última análise, o enriqueceria, assim como aos novos amigos. – Vou acrescentar algum mel ao pote – disse Sir Horace. – Tenho uma influência considerável junto do juiz de instrução. Se concordar com o meu plano, não só não será enforcado como farei também com que seja ilibado da culpa. Pelo menos oficialmente. Ele alterará a sentença de «causas desconhecidas» para «causas naturais». Lance gostaria de ter rejeitado esta nova oferta, mas ela falou-lhe ao coração. As suspeitas sobre a sua pessoa haviam feito o tempo parar. Com


tal espada suspensa sobre a cabeça, nunca conseguiria ser verdadeiramente livre. No que dizia respeito ao «pelo menos oficialmente»: haveria sempre algum falatório, mas sem a exoneração oficial deste crime, as referências comuns nunca cessariam, por muito que levasse uma vida virtuosa. – Está a presumir que a senhora me aceitará. – Que mulher não aceitaria? Uma mulher obstinada. Uma mulher inteligente. – Se eu concordar com o plano, não permitirei que a coaja, como me está a coagir. Um parceiro em tal aliança já é mau que chegue. – Espero que veja que não é necessária qualquer coerção. Um grande número de mulheres fez triste figura por sua causa. O que é mais uma? – Sir Horace lançou um olhar com uma vincada faísca nos olhos. – Corteje-a, se preferir. Represente o pretendente perdido de amor. Seduza, se necessário. Deixo os pormenores ao cuidado da sua experiência. – E se ela se mostrar difícil? Não há nenhuma maneira de a obrigar a aceitar a proposta, quando for apresentada. Toda a minha experiência poderá ser em vão. Sir Horace riu entre dentes. – Possivelmente, possivelmente. Teremos esse problema em consideração quando ele surgir. Mas estou certo de que não surgirá. – O seu contentamento extinguiu-se. – Temos um bom acordo, Sua Graça? Era um negócio dos diabos – um que não seria de aceitar, se houvesse alternativa. – Preciso de pensar. Sir Horace levantou-se. – Pense no que quiser, mas não demore. O juiz de instrução tem andado inquieto nos últimos meses, e pode dar mau resultado deixá-lo entregue às suas próprias conclusões.

– Diabos me levem! – Ives resmungou a blasfémia pela terceira vez.


Ou era a quarta? Ele e Gareth estavam sentados com Lance no quarto de vestir deste. Uma garrafa de porto, com o conteúdo quase esvaziado, estava pousada na mesa. Copos salpicavam os aposentos. Lance mandara chamá-los quando se tornou claro que naquela noite não ia conseguir dormir. Estavam agora todos sentados, meio embriagados, a magicar sobre as notícias que Lance partilhara acerca da visita de Radley. – Não, diabos me levem, ao que parece, não importa o que eu faça – disse Lance. – Não têm conselhos? Perceções? Pedidos de ação? Não têm solução? As palavras puseram os irmãos vigilantes. – Que achas dela? – perguntou Gareth. – O que ele acha dela não importa – disse Ives. – Lance, não podes aceitar casar-te nestes termos. Ele está a fazer bluff. A mentir. – Ou alguém lhe está a mentir – disse Gareth. – Vamos supor que é a última. Não porque confie em Radley, mas porque ele parecia demasiado seguro de si mesmo. Se há de facto uma pessoa disposta a enforcar-me com base numa mentira, quem poderá ser? – Lance pegou na garrafa, serviu-se e passou-a. – Um criado desta casa, imagino, já que apenas eu e os criados estávamos aqui. Não há mais ninguém que possa afirmar ter visto alguma coisa. – Isso dificilmente ajuda – respondeu Gareth. – Deve haver cerca de quarenta. Como é que deslindarias quem é o miserável? – Na verdade, há perto de setenta – disse Lance. – Oitenta e sete, contando com os dos campos – corrigiu Ives. Que típico de Ives saber. – Apesar disso, nem todos os oitenta e sete teriam justificação para estar onde um jantar estivesse a ser preparado ou transportado – mencionou Gareth. Lance fez um sinal negativo com a mão. – Qualquer um poderia arranjar uma desculpa para explicar o motivo de me ter visto a praticar o ato vil. Estamos atolados com todos eles como possibilidades. – Mais reflexão silenciosa. – Vou empatar o Radley – disse


Lance. – Estou com a senhora e deixo-o pensar que a vou pedir em casamento. Enquanto ando atrás dela, descobrirei quem é esta testemunha. Afastou o copo para o lado e fechou os olhos. Estar com Miss Radley – Marianne – não seria difícil. De qualquer modo, já tencionava fazê-lo, para ocupar o tempo. Contudo, a ideia de lhe exigirem que a cortejasse não lhe agradava. Não agradaria a homem nenhum. Assim como nenhum homem, muito menos um duque, permitiria que pessoas como Sir Horace lhe ditassem a escolha de uma mulher com quem se casar. – Aí está um problema – disse Ives. – Se vais atrás da senhora de forma a conseguir algum tempo para encontrar esse mentiroso, vão criar-se expectativas. De Sir Horace. Da mãe e dos vizinhos. Dela. Se se prolongar por muito tempo, todos assumirão que está iminente um pedido de casamento. – Assegurarei que a senhora não me aceita. Vou organizar as coisas de maneira a que ela acabe tudo antes de chegarmos a um pedido. – Oh, claro. Farás simplesmente o que os duques fazem sempre para desencorajar as mulheres de quererem ser duquesas ricas e de incomparável posição. Devíamos ter pensado nisto, Gareth. – Ives levantou a cabeça. – Como é que os duques fazem isso, afinal? Escapou-se-me do pensamento. – Ela já não gosta muito de mim – disse Lance. – E depois do que aconteceu à prima no lago. – Olhou furioso para o porto, irritado por este lhe ter soltado a língua. O súbito franzir de testa de Ives assemelhou-se a um emergir de ravinas na sobrancelha. – Eu sabia que nos tinhas levado até lá por algum motivo. O que é que aconteceu à prima no lago? E porque é que estavas no lago com a prima? Ressentindo-se com cada palavra, Lance explicou o acidente de Nora e as suas suspeitas a respeito do que realmente acontecera. – Miss Radley disse certas coisas que também me levaram a pensar que não foi um acidente – concluiu. – Mas porquê? – perguntou Gareth. – Porque é que Miss Radley pensaria que isto foi um esforço da prima no sentido de se magoar a si mesma? Lance procurou na memória a confusão depois de terem retirado Nora do lago.


– Não foi claro, mas culpou-se a si mesma. E a mim. A minha chegada e o convite para o passeio de carruagem pareciam fazer parte. – Isso explica a razão de Sir Horace atirar para ti a Marianne Radley e não a filha. Estava a questionar-me sobre isso – disse Gareth. – O estado mental dela não permite o casamento, pelos vistos. Em particular, não permite o casamento contigo. – Eu nem sequer a conhecia antes do passeio de carruagem. – Mas ela conhecia-te, ou conhecia algo sobre ti. Sabe, se não mais, que és um duque. Todos sabiam o que o «mais» podia ser. Ser tido como um homicida não era o tipo de coisa que tranquilizasse uma rapariga, muito nova e muito assustada, que não está bem da cabeça. – Isso explica a ameaça e a chantagem de Radley. A filha tornou a sua perspetiva muito clara e ele não pode arriscar que ela o faça outra vez. Virouse então para a sobrinha – disse Gareth. – Nestas circunstâncias também não terá de te convencer a casares-te com uma louca. Poderias obstar a isso, especialmente com as tuas obrigações para com o título e a família. – Esta outra é a «ela»? – perguntou Ives, demonstrando não ter perdido uma só palavra do que Gareth disse. – Ela? – Gareth olhou com curiosidade para Ives e depois para Lance. – Quando cheguei, Lance dava sinais de um fascínio florescente. Imaginei que fosse esse o motivo de naquela tarde ter saído sem dizer palavra, e estava certo. Portanto, outra vez: a Marianne Radley é a «ela»? Maldição. – Admitirei que a conheci por acaso e que pensei que a sua companhia pudesse aliviar o tédio interminável dos meus dias. Ela não é, nem foi, de modo algum, um fascínio. – Vais então cortejá-la e garantir que não gosta de ti, de todo, antes de terminares – disse Ives. – E enquanto a cortejas e a acompanhas, descobres a testemunha mentirosa. Não é um grande plano, mas não me ocorre nenhum melhor. – Vou fazer outra coisa – disse Lance, a resolução a chegar-lhe com uma certeza que não sentira acerca de nada nos últimos nove meses. – Assegurarei que nunca mais sou vítima de esquemas como o do Radley, e que qualquer pateta que resolva fazê-lo não possa ameaçar-me com a


denúncia de um crime que eu não cometi. – Um relâmpago de cólera percorreu-o enquanto falava. Com as últimas palavras lançou violentamente o copo para a lareira. As chamas estremeceram ao consumir os vestígios da bebida. – Vou libertar-me das suspeitas odiosas que me perseguem como uma tempestade iminente, que não se afastará, independentemente do que eu faça. Vou ignorar o teu conselho, Ives, e parar de viver como o santo que nunca fui, para me tornar em vez disso um anjo vingador. Lance olhou fixamente para os irmãos, à espera que tentassem atenuar a tremenda fúria que o dominara. Tudo o que viu foi dois homens que o fitavam com preocupação e, Deus o ajudasse, compaixão. – Como é que vais fazer isso? – questionou Ives. Lance agarrou na garrafa, levantou-se e dirigiu-se para a cama. – Vou descobrir quem é que matou o Percy, caramba.


CAPÍTULO 8

Times de Londres

[...] Com o reconforto dos leitores relativamente à saúde de Lady Jersey, que continua a sua longa estadia em Cheltenham, e a descrição das melhorias projetadas para uma das bombas da estância termal, teremos agora de concluir as nossas notas no que concerne àquela cidade. Noutras notícias do condado, uma viúva de muito alta posição viu-se visitada por um homem de fortuna e nascimento meramente respeitáveis. A sociedade aguarda para ver se a senhora será persuadida de que o cavalheiro é merecedor da renúncia tanto à independência como ao controlo do seu considerável rendimento. Os jocosos locais acreditam ser improvável, a menos que o cavalheiro faça um pacto com o diabo, para que lhe dê nova juventude e, pelo menos, uma boa medida de graça. Elijah Tewkberry, Gloucestershire

Marianne despiu o vestido de seda. Da cor do gelo que cobre um lago, o toque de azul realçava-lhe os olhos. – Estará pronto para a prova final na segunda – disse Mrs. Makepeace. A filha, Mrs. Trumball, começou a ajudar Marianne com o vestido de musselina verde já fora de moda que vestira para vir às costureiras. O tio Horace oferecera gentilmente a confeção deste vestido para a festa da semana seguinte. A Mamã também teria um. O tio nem sequer levantara objeções quando Nora se recusou a aceitar um vestido para si própria. Talvez tivesse, de facto, desistido da ideia de a impelir para situações sociais. Estas visitas às costureiras em Dutton haviam-se tornado parte do dia a dia na semana anterior, quando a vida de Marianne já seguia a inevitável preferência por rotina e previsibilidade.


Passava habitualmente as manhãs com Nora; no fim de semana até a persuadira a descer ao jardim para observar os homens a reabilitar as plantações, de acordo com as instruções da Mamã. Acompanhava amiúde a Mamã nas visitas. Por norma passavam também pela aldeia, embora já tivessem apanhado duas vezes a carruagem de maior percurso até Cheltenham, para fazerem compras melhores e outros recados. A mãe condescendera em fazer uso das costureiras de Dutton devido à pressão do tempo, mas fê-las saber que, se de alguma forma os vestidos dali resultantes desapontassem, todas as futuras adições ao guarda-roupa seriam obtidas em Londres. Com tal prémio em suspenso, as costureiras encontraram os melhores materiais, como a adorável seda azul-gelo que Mrs. Makepeace dobrava agora com cuidado. Marianne saiu de trás da cortina para a pequena sala de estar da loja, a abotoar a peliça de lã cinzenta. – É muito mau da sua parte exigir que também refaçam quatro dos nossos outros vestidos, sem qualquer pagamento extra – disse à mãe, enquanto calçava as luvas. Atrás da cortina, as mulheres apressavam-se a arrumar o atelier para a senhora ilustre que faria uma prova a seguir. – Estão a cobrar demasiado por estes vestidos novos, por isso estou só a equilibrar as contas. Tens de estar alerta para isso, Marianne. Os comerciantes quererão que pagues mais, se pensarem que por trás de ti está a fortuna de Sir Horace. Marianne apertou o chapéu. – Acho que vou dar uma volta lá fora, enquanto lhe fazem a prova. – Não te demores. Não quero ter de esperar por ti. Prometendo regressar em breve, Marianne saiu da loja. Marchou até à livraria Howard’s, onde tratou dos seus assuntos. Antes de ir embora quebrou o selo de uma carta de Londres. O editor do Times escrevera a Elijah Tewkberry, informando-o de que a soma de cinco xelins havia sido depositada na conta bancária de Londres designada para todos os pagamentos. Lamentavelmente, acrescentara que algumas das cartas não eram adequadas para o Times. A carta respeitante à mulher e ao cavalheiro eloquente que arrendaram quarto na estalagem de Dutton fora rejeitada. Recomendava que Mr. Tewkberry expandisse o seu círculo de jornais, se


pretendesse vender tais mexericos. Até lhe fornecia o endereço de um folheto de bisbilhotices, afirmando que lhe tinham contado que pagavam com generosidade pela informação. Esperava, porém, que quaisquer notícias de verdadeira importância fossem oferecidas primeiro ao Times. Marianne nunca conheceria este editor, mas um dia expressar-lhe-ia a sua gratidão. Há dezoito meses, depois de ter estado presente no tribunal de Calne, redigira um relato pormenorizado de um julgamento de homicídio, completo, com diálogo dos procedimentos. Por capricho, enviou-o ao jornal. Presumindo que tal missiva enviada por uma mulher não cairia em boas graças, puxara da própria cabeça o nome de Elijah Tewkberry. Para seu assombro, quatro dias depois chegou uma letra bancária. Por ter sido emitida em nome de Mr. Tewkberry, não conseguiu fazer nada com ela. Já que naquela altura Vincent estava em Londres, escreveu-lhe a pedir que abrisse uma conta bancária em seu nome e no desse tal Elijah Tewkberry. Ele assim fez, não questionando uma única vez o motivo, ou sequer quem era aquele homem. Se Marianne acalentasse alguma réstia de esperança no que respeitava ao interesse de Vincent na sua vida privada, a absoluta indiferença pelas razões do seu invulgar pedido teria tornado a verdade muito clara. Depois disso recebia os depósitos do jornal naquela conta de Londres, e fazia com que o dinheiro fosse transferido para um banco em Calne. Mantinha assim a ilusão de que a correspondência era remetida por um homem. Este dinheiro que recebia pela correspondência tornara-se, de súbito, mais importante; não confiava que o tio Horace pusesse definitivamente de lado as intenções de usar Nora nalgum esquema de casamento. Se no futuro ele viesse a tomar tais providências, queria ter dinheiro para levar a bom termo a sua ameaça de tirar Nora de casa. Tal significava que Elijah Tewkberry precisava de corresponder-se com maior frequência. Tinha esperança de conseguir encontrar notícias respeitáveis suficientes para evitar abordar os folhetos de mexericos – mas, se chegasse a tal, teria de engolir o orgulho e fazê-lo. Acompanhar a mãe nas visitas fornecer-lhe-ia algumas. O tio Horace, ao que tudo indicava, seria outra fonte. Ainda na noite anterior descrevera um caso engraçado, ocorrido numa das sessões a que presidiu. Marianne tencionava começar a estar ela própria presente. Infelizmente, os delitos realmente interessantes só eram apresentados nas sessões trimestrais, e a última, no dia de S. Miguel, terminara antes de ela deixar o Wiltshire. Ponderou se teria tempo de caminhar até à estalagem Blackthorn, para falar com os criados e verificar se dispunham de alguma informação que pudesse apontar para algo útil. Travara conhecimento com duas criadas


tagarelas, ao passar por lá durante um passeio a cavalo. Era mais um aspeto que havia mudado desde o «acidente» de Nora no lago: o tio Horace já não requeria a sua companhia nos passeios. Mais ainda, parecia ter passado a encorajá-la a dar esses passeios sozinha. Decidindo que não ia ter tempo de andar até à estalagem e voltar, deambulou pela rua principal da aldeia, parando de vez em quando para ver as montras das lojas. Estava a espreitar para o estabelecimento de um alfaiate quando uma voz atrás de si lhe interferiu com os pensamentos. – É raro vê-lo aqui na aldeia, senhor – disse um homem em voz alta. – Por acaso, tenho desejado dar-lhe uma palavra. – Tenho tempo para duas palavras, Mr. Langreth. Lamento que tenha esperado para as partilhar. Fico sempre contente de conversar com um vizinho. Ao ouvir a voz de Aylesbury, Marianne ficou muito atenta, mas curvou-se para fingir que observava de perto um colete exposto na montra. – Conversa entre dois vizinhos é uma coisa; um bom entendimento é outra, Sua Graça. – Parece aborrecido, Mr. Langreth. – E estou, senhor, estou. Andei quase um ano atrás daquele ladrão matreiro do Jeremiah Stone e, quando finalmente o apanhei em flagrante, ele livrou-se em tribunal, por sua causa, quando deveria ter sido sujeito ao julgamento de um juiz. – Deve estar a referir-se àquelas lebres que foram encontradas na posse dele quando o deteve. Como os magistrados disseram, não havia informação suficiente para avaliar a culpa. Ou, pelo menos, é isso que o meu administrador diz. – É um caçador furtivo! Toda a gente sabe. Faz livre uso das minhas terras e das de todos os demais. Eu jurei informação como tal. – Então porque não foi ele condenado? – Foi outro homem quem falou. Marianne esforçou-se para o ver nos reflexos dos vidros, mas tudo o que conseguiu distinguir foi três cabeças escuras reunidas em três figuras masculinas altas. Outra silhueta, esta cerca de uma cabeça mais baixa e de cabelos brancos, apontou para Aylesbury. – Disseram que ele tinha de jurar, não eu, eis porquê. E ele não o fez, nem o administrador em seu lugar. Pode ser tão rico que se dá ao luxo de


conceder carta-branca aos caçadores furtivos, Sua Graça, mas os outros proprietários rurais não foram tão favorecidos pela Providência. – Mr. Langreth, lamento ter-lhe negado o que lhe é devido por Mr. Stone. Seja como for, todos nós conhecemos as circunstâncias: ele é pouco mais do que um rapaz, e toma conta do pai doente e de seis irmãos. Além disso, não há provas de que naquele dia tenha caçado furtivamente nas minhas terras. – Ele trazia as malditas lebres no maldito saco, juntamente com a maldita armadilha. Estava a atravessar o caminho entre as nossas propriedades, a sair da sua e a dirigir-se para a minha. Se isso não é prova de que andava a caçar, o que é? – Encontrá-lo nas terras de alguém com aquela armadilha ou aquelas lebres – disse a outra voz. – Claro que o meu irmão não juraria informação contra esse Mr. Stone. Não conseguiria provar que Mr. Stone apanhara de facto essas lebres na sua floresta. – Que diabo de coisa. Tenho-lhe pedido que ponha a sua gente atrás dele, e quando o apanho eu não conta aos olhos da lei! – Mr. Langreth, compreendo que pense que os seus direitos de propriedade foram violados por caçadores furtivos. Existem alguns que eu veria, com prazer, serem punidos – disse Aylesbury. – Todavia, o que o pequeno Mr. Stone possa levar da minha propriedade alimenta um pai enfermo e um grande número de crianças, e todos passariam fome se ele lhes fosse retirado. O silêncio saudou aquelas palavras. De seguida, as botas bateram em retirada. – Que diabo de coisa! – bradou Mr. Langreth para a aldeia em geral. – Surpreende-me que este Jeremiah Stone não tenha sido condenado – disse outra nova voz. – Naquela manhã, Sir Horace Radley acordou num estado de espírito generoso – disse Aylesbury. Marianne olhou discretamente por cima do ombro. Aylesbury encontrava-se com dois outros homens, não mais de cinco metros atrás dela. Todos pareciam aparentados, ainda que nenhum deles fosse muito parecido com qualquer um dos outros. Cabelo escuro, todos eles, e altos. Dos três, Aylesbury era talvez o menos tipicamente bonito, ainda que Marianne considerasse que a sua versão particular de bonito era a mais atraente.


Como se sentisse o olhar fugaz, ele voltou-se. Pelo reflexo da janela, viu-o virado para as suas costas, olhando para ela. – Miss Radley, é a menina? Fingiu surpresa ao vê-lo. Ele aproximou-se e olhou para a montra. – Está a considerar a compra de um colete de homem? Há mulheres que preferem tais coisas, mas não creio que vá pensar que um colete a favorece. Aylesbury reparara que Marianne estava na montra há algum tempo. – Estava a pensar que o meu tio precisa de um novo. – Parecia estúpido, mas foi o que conseguiu arranjar. – Devia aconselhá-lo a não o comprar aqui. Este indivíduo não corta bem. – Olhou na direção da rua. – O nosso encontro é uma feliz coincidência. Gostaria de a apresentar aos meus irmãos. Estão de visita por uma semana, ou coisa assim. – Marianne não podia recusar, e portanto deu por si a receber uma inspeção minuciosa por parte de Lord Ywain Hemingford e Mr. Gareth Fitzallen. O último era um homem belo, de sorriso cativante; o primeiro podia ser também bonito, mas com uma dureza subtil que o próprio sorriso não suavizava. – A sua mãe está consigo? – perguntou Aylesbury. – Está a concluir uns assuntos com a costureira. Devo ir ao seu encontro. – Caminharemos consigo. – Foi justamente o que Ayslesbury começou a fazer, pelo que Marianne também. Os irmãos seguiram-nos. – A sua prima encontra-se bem? – perguntou ele. – Está quase recuperada, obrigada. Creio que a provação daquele dia faz decididamente parte do passado. – Folgo em saber. Tenho andado preocupado com ela. Marianne começou a pensar bem de Aylesbury, até se ter lembrado de que, no passado, ele não se preocupara que a pobre Nora fosse encontrada na lama, depois de a chuva ter caído torrencialmente sobre ela durante horas. – Pelo menos desta vez não teve febre – não resistiu a dizer. Assim que se aproximavam das costureiras, a mãe veio à porta. Devia ter avistado a escolta pela janela, pois fingia olhar para todo o lado em busca de Marianne, fazendo aparato da sua busca. Simulou surpresa ao ver por perto a filha com três cavalheiros.


– Sua Graça! – A Mamã mergulhou numa vénia. – Marianne, para uma caminhada tão curta, reuniste um grupo de amigos impressionante. Aylesbury fez as apresentações. – Ainda não me visitou, Mrs. Radley. Contava que nesta altura já o tivesse feito. – Era minha intenção visitá-lo muito em breve, Sua Graça. Não era, Marianne? Agora já estamos bem instaladas, pelo que será uma honra visitá-lo. – Fico na expectativa. Mas não se demore, ou os meus irmãos poderão ter partido. Ficariam desapontados, uma vez que aqui têm pouca companhia, para além da minha. Marianne duvidava que qualquer um dos irmãos desejasse sentar-se numa sala de estar, enquanto Aylesbury encantava a sua mãe. Contudo, ambos sorriram, assentiram e juntaram-se a adular a Mamã para que os visitasse em breve. – Despedimo-nos agora – disse Aylesbury. – Lastimo que tenhamos assuntos a tratar. – Fez uma vénia a ambas e os três irmãos caminharam de volta até ao atelier do alfaiate. – Bom. Céus. – A Mamã deixou que, por fim, a sua comoção se manifestasse. – Quando me convidou para lhe fazer uma visita, no dia em que nos conhecemos, não pensei que ele tivesse mesmo essa intenção. Estas coisas dizem-se a toda a hora por delicadeza. Certamente não pensei que o pretendesse de facto e viesse agora repreender-me por descurá-lo. – Conhece o terceiro? Mr. Fitzallen? – O velho duque teve uma amante desde cedo e manteve-a até à morte; aquele homem é o resultado. – A Mamã virou-se em direção à costureira. – Se vamos visitar um duque, tenho de dizer a Mrs. Makepeace para melhorar aqueles conjuntos que elas estão a renovar, e para os acabar imediatamente. Vem também e escolhe um remate para o teu mantelete. Creio que faremos a visita não amanhã, mas depois de amanhã. Não queremos parecer demasiado ansiosas. Considerando a cintilação nos olhos da mãe, Marianne suspeitava que iriam parecer demasiado ansiosas ainda que esperassem uma semana.


– Agora vocês os dois têm de ficar. Ives, convida a tua mulher para se juntar a ti; ela pode estudar aqui, tanto como em Londres. – Lance fez a intimação enquanto desciam a rua. – Gareth, já que a Eva está grávida, não tem de vir. – Que atencioso da tua parte – disse Gareth. – Não vou pedi-lo à Padua por capricho teu, portanto ela também não vem – disse Ives. – Não é um capricho. Será muito mais fácil para mim inventar maneiras de ver Miss Radley se uma ou duas mulheres estiverem por perto. De outro modo, ficarei entregue às visitas monótonas na sala de estar de Sir Horace. Dificilmente conseguirei fazer bons progressos, dessa maneira. – Bons progressos em quê? – perguntou Ives. – Em ser tão mau que ela não me aceite. Gareth, quando nos visitarem, cuidarás da mãe. As mulheres mais velhas atraentes acham-te irresistível. Distrai-a, et cetera. – Não haverá nenhum et cetera. Sou um homem casado. Não vou namoriscar com Mrs. Radley para favorecer os teus progressos. – Pode ser que a partir de hoje não tenhas de te preocupar com a senhora ou com Sir Horace – disse Ives. Lance considerou improvável, mas estava disposto a tentar o que quer que fosse. A visita daquele dia à aldeia fora ideia de Gareth. Ao pequeno-almoço sugerira que, como parentes mais próximos de Percy, visitassem o juiz de instrução e expressassem a preocupação familiar. Insistiriam junto dele em que a questão relativa às circunstâncias da morte de Percy deixara toda a família numa espécie de limbo. Passaram pelas duas tabernas da aldeia; Lance pensou que qualquer uma delas seria um bom local para tal encontro. Viraram uma esquina e entraram antes num café. Thaddeus Peterson, o juiz de instrução, sendo uma espécie de indivíduo abstémio, preferia este estabelecimento aos outros. Filho de um proprietário local, aguardava a hora de herdar o património do pai. Thaddeus estava sentado num divã, a ler o Times e a beber o seu café. Um homem magro e claro, de cabelo encaracolado loiro, a face suave parecia tão insípida quanto Lance sabia ser a sua personalidade. Há muitos anos, ele e Peterson tinham sido amigos de infância. Depois Peterson tornou-se


um adulto que não se lembrava de como se divertir. – Peterson. Que bom acaso, encontrar-te aqui – disse Lance, assim que caíram sobre ele. Peterson olhou pasmado para cima, surpreendido com a legião de Hemingfords que pairava sobre o divã. – Venho cá todas as tardes, exceto às sextas, quando faço visitas. Saio às duas horas todos os dias, tomo café aqui e às quatro horas regresso. – Sim? Tinha-me esquecido de que é um lugar muito agradável. – Lance puxou uma cadeira. Ives sentou-se no braço do divã. Gareth apoiou as nádegas na beira de uma mesa. Todos sorriam a Thaddeus. Peterson olhou mais uma vez para o jornal antes de o pôr de lado. – Interromperam a minha reflexão sobre as notícias chegadas de Londres. – Bateu levemente no jornal. – Conhecem este Elijah Tewkberry, que serve como correspondente do jornal aqui no condado? – Nunca ouvi falar nele – disse Lance. – Sou mencionado numa das cartas – disse Ives. – Contudo, não me lembro de o ter conhecido. – Não faço ideia de quem seja – acrescentou Peterson. – Escreveu que passaria aqui o inverno. Não ouvi dizer que alguma família acolhesse semelhante visitante. – Nem toda a gente exibe as visitas pelas ruas de Cheltenham – disse Gareth. – Creio que também não fará ideia de quem eu sou e tenho visitado o condado muitas vezes, ao longo dos anos. Peterson observou-o pensativamente. – Confesso que não o reconheceria, ou sequer imaginaria quem é, a não ser por estar aqui com estes dois. Deve ser o filho ilegítimo do velho duque. – O Lance não queria incomodá-lo quando o vimos aqui, mas eu insisti – disse Gareth, ignorando o insulto com o que Lance pensou ser uma paciência admirável. – O assunto por resolver da morte do meu irmão mais velho pesa-me. A todos nós. Como juiz de instrução, pode seguramente decidir a favor de um lado ou de outro. A sua sentença de causas desconhecidas está de pé há nove meses. Peterson olhou de relance para Lance.


– Surpreende-me que me pressionem acerca deste assunto. Afinal, poderá ser decidido da única forma de que vocês não gostariam. – Não há provas de nenhum crime – disse Ives. – O médico... – O médico disse apenas que o conteúdo do estômago poderia indicar veneno. Poderia – disse Ives. – Se depois de nove meses não há provas de que tenha sido envenenado, é hora de enterrar o assunto, não lhe parece? Peterson cruzou os braços sobre o peito. Olhou sucessivamente para cada um deles, furioso. – Cumpro o meu dever como o entendo. Quando está em cima da mesa um possível homicídio, e além disso de um duque, não levanto os pratos em nome da conveniência. Ives parecia pronto a argumentar. Um gesto subtil de Gareth deteveo. Gareth saiu da mesa e sentou-se no divã, ao lado de Peterson. – Ninguém desejaria que fizesse algo contrário ao seu sentido de dever. Simplesmente expressámos a nossa frustração por a alma dele ainda não ter tido descanso. Peterson relaxou. – Agradeço-lhe por isso. Confesso que eu próprio sofro com alguma dessa frustração. – Eram amigos? Peterson hesitou. – Ele era bastante amável comigo, cumprimentava-me e conversávamos nos bailes e jantares. Visitou-me uma ou duas vezes, a propósito de um assunto relacionado com os meus deveres oficiais. – Olhou bruscamente para Lance. – Pelo menos não me insultou, nem me pôs de parte, nem virou o seu entendimento contra mim. – A mim parece-me amizade – disse Gareth. – Sabíamos que outras pessoas do condado faziam luto por ele, como nós, ainda que não soubéssemos todos os seus nomes. Peterson acenou com a cabeça. Gareth levantou-se.


– Deixemos Mr. Peterson entregue às revelações de Mr. Tewkberry. São quase quatro horas e deseja com certeza terminar o seu café em paz. Ives não gostou, mas seguiu Gareth e Lance para fora do café. De volta à rua principal, Gareth parou e voltou-se para Lance. – Ele odeia-te. Porquê? – É possível que tenha ficado ofendido quando deixei de ser amigo dele. Sabes como é. Tens um conhecimento de infância com alguém, com quem às vezes brincavas aos cavaleiros na floresta, mas depois cresces e percebes que aquele rapaz se tornou um homem muito enfadonho, e como tal deixas de o procurar – gesticulou na direção do café. – Serias amigo dele agora? – Peterson falou como se tu não tivesses apenas deixado de falar com ele; deu a entender que o insultaste. – Admito que, em alturas em que estava embriagado, possa tê-lo arreliado uma vez ou duas, quando ainda éramos muito novos. Foi há muito tempo e já me esqueci. – Ele não se esqueceu. – Gareth continuou a andar. – Também insultaste os juízes? Isto é tudo pessoal e uma forma de te castigar pelos teus feitos passados? Dirigiram-se a uma das tabernas. Durante uma cerveja, Gareth voltou a levantar a questão. – Reconheço que, se naquela noite tivesse sido o Ives a estar lá em casa, talvez não se passasse nem um dia de suspeitas, quanto mais nove meses – disse Lance. – Assumi desde o início que isto é, em certa medida, pessoal; uma vingança pelo meu comportamento passado, mas não por parte de Peterson. – Ele está a falar do outro juiz de paz – disse Ives a Gareth. – Não Radley. Mr. Gregory. Gareth engoliu um resmungo. – Então, não só o juiz de instrução como um dos magistrados. Também o insultaste? – Podes dizer que sim. – Ives reprimiu um sorriso rasgado. – Que fizeste? Lance nunca pedira desculpa pelo seu comportamento, mas naquele


momento sentia algum desgosto. – Seduzi a mulher dele – murmurou. – Desculpa? Estavas a falar para dentro do copo e não ouvi bem. Disseste que seduziste a mulher desse homem? – Seduziu, sim, e não de forma discreta. – Ives, que era sempre discreto, proferiu as últimas palavras num tom de censura. – Ele casou-se com uma mulher nova, demasiado nova para ele, e levou-a a Londres para a exibir. Em minha defesa, não fui atrás dela, mas uma coisa levou à outra... – Portanto, não seduziste apenas a mulher dele, seduziste a noiva dele. Gareth parecia escandalizado. Lance pensou que era preciso muito descaramento, considerando que o que estava em causa era a sedução da mulher do próximo. O irmão bastardo fora conhecido por isso. – Com Gregory a afiar o machado, Radley a chantagear-te e Peterson amuado com uma desconsideração antiga, não vais encontrar misericórdia aqui. Eu tinha esperança... Bom, é seguro dizer-se que nada menos do que o sucesso do teu plano para encontrar o verdadeiro assassino te vai ilibar da culpa – disse Gareth. – Eis a razão de ser exatamente isso que pretendo fazer. – A questão é – disse Ives – : e se estivemos sempre certos e ele não foi assassinado? Como será? Olharam uns para os outros. Deixe-se para um advogado mostrar o abismo no caminho para a salvação.


CAPÍTULO 9

–Alisa o mantelete. Endireita o chapéu. As instruções da Mamã chegavam-lhe num sussurro rápido, depois de terem saído da carruagem. Não apenas uma carruagem qualquer. Não era o cabriolé guardado na casa das carruagens, nem sequer o tílburi – Marianne poderia ter conduzido qualquer um deles. Ao ouvir o pedido de uma carruagem, e tendo sabido da intenção de visitar Aylesbury, o tio Horace insistiu para que usassem a caleche, mandando um criado para as acompanhar, assim como o condutor. Ambos os empregados vestiam librés antigos que Marianne já não via desde criança. Alisou o mantelete cor de safira. Mrs. Makepeace acrescentara-lhe pele a toda a volta. Um pompom novo em safira vivo adornava-lhe o chapéu. Por baixo do mantelete, o vestido de peliça de uma boa lã em castanhoamarelado exibia um remate bordado recente, com um desenho preto intrincado. O objetivo daquele remate era aumentar o comprimento do vestido, em virtude de Marianne ter crescido três centímetros durante o tempo que haviam passado no exílio. O corpete fora também alargado três centímetros, para acomodar o crescimento noutra área. O traje de carruagem verde da Mamã exibia agora um debrum de tecido escocês e botões dourados novos. Ao sair de casa, Marianne duvidou que até Aylesbury fosse capaz de dizer que ambas vestiam roupas transformadas. Mrs. Makepeace deixara-as orgulhosas. Naquele momento, com o olhar a alcançar Merrywood Manor, a autoconfiança de Marianne vacilou. A sua casa de família era grande, mas esta mansão continuava sem parar, em todas as direções. Atrás do que via, existia provavelmente o dobro. Esta casa faria qualquer pessoa sentir-se pequena, a menos que se tivesse nascido em berço de ouro, para começar.


A mãe murmurou durante todo o caminho até à porta. – Isto vai restabelecer-nos como mais nada o fará. E ele insistiu que o visitássemos para nos poder receber! Atrevo-me a dizer que te verás com alguns bons partidos atrás de ti, quando se tornar conhecido que um duque te recebe, assim como à tua família. – Não me importava de ter um pretendente. – Mais do que um, espero. E não apenas uns pretendentes quaisquer. Tenho andado a criar uma lista de solteiros desejáveis do condado, à medida que faço as minhas visitas e ouço falar neles. Nesse aspeto, muito mudou em cinco anos, incluindo o avanço da tua idade. Mesmo assim, estou otimista. Apresentaram os cartões ao mordomo, que as encaminhou para um pequeno aposento de receção e se retirou. Pouco depois regressou e conduziu-as à sala de estar. – Não fiques de boca aberta como uma campónia – avisou a mãe ao entrarem na sala. Foi tudo o que Marianne conseguiu fazer para obedecer, ao ver a opulência do interior. Centenas de pessoas caberiam na imensa sala de estar, e os muitos sofás e cadeiras teriam lugar para a maior parte delas. O teto planava por cima, repleto de ornamentos minuciosos, e numa parede alinhavam-se janelas largas. Aquelas janelas não eram compostas de pequenos painéis de vidro, ao estilo normal, mas de painéis vastos, sem qualquer caixilho. Dizia-se que os palácios dos reis tinham janelas assim. Duas das maiores carpetes que Marianne já vira adornavam o chão. Os pés afundavam-se na profundidade daquela em que se encontrava. Todos os tecidos do aposento proclamavam a riqueza do proprietário. Era provável que só os cortinados custassem mais do que o rendimento anual do tio Horace. – Mostra-te digna. Estamos mais do que apresentáveis. – A mãe não soava tão confiante quanto as suas palavras. – Acho que mesmo que nos vestíssemos de pele de marta e da renda mais requintada, poderíamos não estar apresentáveis que chegue – murmurou Marianne de volta. Avançaram devagar pelo aposento, absorvendo tudo. Abriu-se depois outro par de portas e o duque entrou com os irmãos. Saudações. Vénias e reverências por todo o lado. Algumas adulações


moderadas por parte de Mr. Fitzallen, a acompanhar o sorriso mais fascinante. O chá chegou e todos se sentaram a bebê-lo. – Os cavalheiros estarão presentes na próxima festa? – perguntou a Mamã, após alguma conversa sobre assuntos do dia a dia. – Lamentavelmente não ficarei tanto tempo – respondeu Mr. Fitzallen. – Faltam apenas alguns dias – disse o duque, como se a partida do irmão fosse novidade para ele. – Alguns dias a mais. – Voltou a atenção para Marianne e para a mãe. – Amanhã voltarei para junto da minha mulher. O meu irmão não compreende que uma mulher grávida pode ficar ansiosa, se for abandonada por muito tempo. – Meu Deus, sim – disse a Mamã. – Que contente deve estar. – A mulher de Ives não é tão sobrecarregada. Desde que continue a queimar as pestanas, não sentirá a falta dele; assim sendo, ele ficará – disse Aylesbury. – Iremos juntos, Ives. Há algum tempo que nenhum de nós vai a uma festa destas. Ives era, ao que tudo indicava, o nome de família de Lord Ywain. – No caso do meu irmão, a razão pela qual não tem frequentado eventos do condado, em todos estes anos, é a melhor das razões, como estou certo que é do seu conhecimento, Mrs. Radley – disse Ives. – Contudo, se ainda estiver em Merrywood, acompanhá-lo-ei a essa festa, no caso de ele próprio se atrever a ir. A Mamã reagiu com atrapalhação à alusão tocante ao hiato. Depois deve ter compreendido, porque a face ficou frouxa, os olhos dilataram-se e espalhou-se um rubor. Marianne estava em pulgas para pedir esclarecimentos adicionais. Teria de importunar a mãe mais tarde. – Gostariam de ver o jardim? – perguntou o duque. – Gareth, acompanhemos as senhoras pelo caminho da galeria. O Gareth é um reputado perito em arte, Miss Radley. Consegue falar durante uma hora sobre qualquer uma das nossas pinturas; prometo, contudo, que não lhe permitirei que as aborreça demasiado. – A minha mãe gosta muito de jardins. Está atualmente a renovar o de casa do meu tio. – Tem de me contar tudo sobre isso, Mrs. Radley – disse Mr. Fitzallen à Mamã, oferecendo-lhe a mão para a ajudar a levantar-se.


A Mamã parecia demasiado deslumbrada para se mover. Que mulher não estaria, com a atenção de um homem tão bonito a jorrar sobre ela? Mr. Fitzallen não namoriscara, nem tivera a mais pequena atitude para provocar aquela reação. Era simplesmente um homem belo como o demónio, com um sorriso que deixava a Mamã sem fôlego. Ela recompôs-se e aceitou a companhia para fora da sala de estar. Lord Ywain andou sem destino atrás deles. Aylesbury posicionou-se ao lado de Marianne. – Estou contente por ter vindo visitar-me – disse ele. – Não imagino porquê. Os três devem ter coisas melhores para fazer do que receber-nos. – Não muitas. Ficaria surpreendida com o quanto este lugar é rotineiro. Depressa se torna muito maçador. Marianne não ficava surpreendida. O ócio era produto do privilégio, mas uma dose interminável dele podia ser opressiva. Essa era uma das razões pelas quais sentia tanta satisfação por tomar conta de Nora: dera-lhe à vida um propósito que, de outra forma, seria difícil de encontrar. – Foi por isso que viveu tanto tempo em Londres? – Deambulavam pela longa galeria de pinturas. Mais à frente, Mr. Fitzallen parava ocasionalmente para mostrar algo à mãe. O olhar admirado da Mamã tendia a gravitar para o rosto do homem, não para a tela sob discussão. – Em parte. Será possivelmente um terço da razão. – E os outros dois terços? A Mamã e Mr. Fitzallen haviam parado outra vez. O duque deteve-se também e olhou para ela. – Quando o meu irmão Percy recebeu a herança, esta casa deixou de ser um lar para mim. E também não o era para o Ives. Tínhamos muitos atritos, eu e o Percy, e quando ele se tornou duque, a falta de simpatia mútua exacerbou-se. – Quando se fez lorde tornou-se arrogante com vocês? Penso que provavelmente é um homem raro aquele que não sucumbe às tentações do poder, mesmo em relação a elementos da família. – Que perspicaz que é. Conhece bem a natureza humana, para alguém tão jovem. Prosseguiram, devagar. Mais devagar do que Mr. Fitzallen, mais à


frente. A distância da Mamã alongava-se a cada passo. Marianne olhava para as pinturas ao passar, mas não tinha tempo para examinar de facto nenhuma delas. – Podia tornar esta casa menos aborrecida – disse. – Quem sabe, receber amigos de Londres, convidar vizinhos para jantar, por vezes. Seria até possível abrir os jardins da propriedade ao condado, por um dia, como o seu pai costumava fazer. Talvez, com algum tempo, se tornasse novamente um lar, um lar de que gostasse. – Marianne tentou acelerar a trajetória, em vão. Os passos de Aylesbury permaneciam terrivelmente vagarosos. No fim da galeria, Mr. Fitzallen abriu uma porta, falando com a Mamã durante todo o tempo. – Talvez experimente isso. Nós vamos planear uma feira para o condado, na primavera. Pode dar-me uma ajuda. Nós? – Eu... Seguramente há aqui alguém... Sem sequer olhar para trás, a Mamã seguiu o acompanhante para o exterior da galeria. Aylesbury parou outra vez. – É costume ser a senhora da casa a coordenar os criados em tais acontecimentos, e não tenho uma. Que sei eu sobre o tipo de comida a servir ou sobre as decorações? O seu aconselhamento será essencial. Não queremos que ninguém diga mais tarde que foi um evento fraco. Marianne mantinha um olho na galeria, onde Ives ainda se demorava, a estudar uma pintura. – Estou certa de que conhece senhoras mais aptas para a tarefa do que eu. Nunca geri o governo de uma casa nem fui responsável por receber. – Gesticulou largamente pela galeria. – A minha mãe, contudo... – Tenho a certeza de que seria bem-sucedida, em todos os sentidos. Sei ver quando uma pessoa tem bom gosto. – Aylesbury segurou-lhe a mão na sua. – Ambos ficaríamos satisfeitos e honrados, se me oferecesse a sua ajuda neste assunto. Marianne desviou o olhar para a mão, depois para ele e por fim para a figura distante e distraída de Ives. Que negligente da parte da mãe deixála assim. Com um dedo no queixo dela, o duque chamou-lhe o olhar de volta


para ele. Olhou-a profundamente nos olhos. Um ligeiro pânico avolumou-se no peito de Marianne. Não conseguia desviar o olhar. – Tenho a sua concordância, bela flor? – perguntou ele. Concordância para quê? Oh, sim, ajudar com aquele evento do condado. – Creio que sim. – Fico muito contente. Um sorriso. Subtil. Diabólico, confiante e perigoso. Marianne parecia rodeada de névoa. A galeria mal conseguia penetrar-lhe na consciência. Havia dado um passo em frente ou flutuara? Movia-se, isso era certo, à medida que o duque a puxava para ele, com suavidade, enquanto recuava, devagar, na direção da parede. Já não conseguia ver a galeria, nem que quisesse, porque uma enorme estátua lhe bloqueava a visão. Sentiu um ardor no rosto, quando as mãos de Aylesbury, em concha, lhe seguraram a cabeça. A mente de Marianne só assimilou o que ele estava a fazer tarde demais. Quando percebeu qual era a intenção, já os lábios dele haviam tocado os seus. Quem diria que ser indecoroso podia ser tão delicado? Quem imaginaria que o duque perverso beijava com tal doçura? Lance tentou-a a condescender, como se tocasse as partes que dentro dela desejavam ser beijadas, porque sabia onde se encontravam. Fez amor com a sua boca, como no barco fizera com a mão. Era o primeiro beijo verdadeiro que dava e os lábios dele nos seus provocavam-lhe uma sensação de uma perfeição absoluta. Maravilhosa. Os efeitos que teve em si foram também uma revelação. Uma coisa tão pequena, um beijo; e no entanto fascinava-a e subjugava-a. Um prazer excitante envolvia-a de tal modo que lhe derrotava a consciência, quando esta tardiamente surgia. Eu não devia, mas... Lance beijou-a mais intensamente. Tenho de parar isto de uma vez. Só que não quero... Atraiu-a para um abraço. Isto é escandaloso, e contudo...


Os beijos dele tornaram-se mais ardentes, menos suaves. As mãos acariciaram-lhe as costas e a anca, causando palpitações pecaminosas que nunca experimentara ou imaginara sequer poder sentir. Eu não posso, não devo, eu... A língua dele estimulou os seus lábios a abrirem-se; iniciou uma dança lenta dentro da boca de Marianne, chocando-a e hipnotizando-a ao mesmo tempo. – Lance, vou sair para o jardim. Porque é que não concedes algum tempo a Miss Radley, para que o veja também? Tenho a certeza de que, a esta hora, a arte já terá começado a entediá-la. – A voz de Ives atravessouse na eufórica desorientação de Marianne. Ele não parecia estar distante, de todo. Aylesbury parou de a beijar, mas durante uns instantes não a largou. Lançou-lhe depois um olhar como ela nunca antes vira nos olhos de um homem e afastou-a. – Já que insistes, Ives. De qualquer maneira, descobrimos coisas novas acerca desta velha estátua grega. Toda a postura parece diferente vista deste ângulo. Não concorda, Miss Radley? – Saiu na direção do longo hall da galeria. Marianne respirou profundamente para se recompor e saiu também. – Muito diferente. Muito menos apático e mais angular. – Forçou-se a não tocar no chapéu, para ver se aqueles beijos o haviam entortado. Ives encontrava-se a cinco metros. Sorriu ao irmão e depois a Marianne. Deu meia-volta e afastou-se. Marianne sentiu-se ela mesma outra vez. O suficiente para continuar a percorrer a galeria. A admiração com o seu próprio comportamento apagava-lhe a maior parte dos pensamentos. Exceto um. Ela tinha sido má, e o duque ainda pior, mas... ser beijada por ele fora glorioso.

– Que senhoras tão agradáveis. – Gareth deu a sua opinião sobre a visita enquanto estavam sentados lá fora no terraço, contemplando o pôr do Sol debaixo das copas das árvores da floresta.


– Mrs. Radley parecia cativada por ti – disse Ives. – Tanto que não reparou na falta da filha. – Deu conta mesmo antes de Miss Radley aparecer, vinda da casa. As pinturas fizeram Miss Radley perder tempo na galeria, Lance? Se ela gosta de arte, talvez possa dar-se bem com a Eva – disse Gareth. – Ela não estava a admirar as obras de arte, estava com o Lance. – Ives deu uma fumada profunda no charuto. – Ainda bem que interferi. Mais dois minutos e... – Terminou com um longo olhar furioso a Lance. Não ia dar explicações a Ives, especialmente a Ives na sua faceta mais beata. Além disso, naquele momento não conseguia sequer explicar-se a si mesmo. Planeara um beijo roubado, não mais. Um pedaço menor de indecência. Supusera que Marianne ficaria chocada, assustada; iria estabelecer o alicerce para garantir que ela o achava mau demais para ser considerado. Em vez disso, ela permitira. Aquela aceitação ofegante fora combustível para o seu próprio calor. Onde estavam e quem eram deixou de ter importância. Ainda bem que Ives interferiu, de facto. – Como expliquei, estávamos a apreciar as diferentes perspetivas da estátua. Pelo lado, parte traseira e frente. – Pelos sons que ouvi, não estavam a estudar o traseiro do deus grego. Nunca me tinha apercebido de que a acústica na galeria fosse tão boa. Gareth riu-se. – Queres dizer que estava a acontecer um certo et cetera, Ives? – Apenas o de tipo mais moderado – disse Lance. – Bom, tendo cumprido o meu dever hoje, e tendo-te concedido a privacidade para chocar Miss Radley... – Ela não me pareceu chocada – murmurou Ives. – ...tendo-te proporcionado essa privacidade, farei a minha partida de manhã – disse Gareth. – Tens de ficar até depois da festa. Quem distrairá a mãe nessa noite, se tu não estiveres a espalhar o teu charme?


– O Ives. Eu tenho de ir embora. – O Ives não o vai fazer – disse o próprio. – Terás de recorrer ao teu talento para encantar senhoras e arranjares-te sozinho, Lance. Acompanhar-te-ei à festa, para poder impedir-te de dar uma sova em alguém quando fores injuriado, como é certo que serás. Todavia, não vou distrair Mrs. Radley por nenhum meio, muito menos pelo charme. – Vocês os dois tornaram-se muito menos úteis desde que se casaram. E também muito sérios. Espero, se algum dia me casar, não perder o meu sentido de aventura e diversão, como vocês perderam. – Se não tens cuidado, vais casar-te muito em breve. – Ives apagou o charuto, enfatizando cada palavra com um pequeno batimento. – Amedrontar Miss Radley ao ponto de recusar a proposta de um duque pode ser mais difícil do que imaginas. – Ou requerer um comportamento e umas revelações muito ofensivos – disse Gareth. – Consigo arranjar ambos, se necessário. – Claro que consegues – disse Gareth. – É o Ives quem duvida do teu plano, não eu.

Ao regressar a casa da visita ao duque, Marianne foi à procura de Nora. A culpa, tanto como o amor, levaram-na aos aposentos da prima. Fora indigno permitir a Aylesbury que a beijasse. A falta de resistência tinha sido vergonhosa, e não ia fingir que a inexperiência a desculpava. Mas não se arrepender tanto quanto deveria, nem de longe, refletia-se bastante pior no seu carácter do que o ato em si. Era suposto sentir-se mortificada, não apenas devido a ter comprometido a sua própria virtude, mas também porque aquele beijo fora muitíssimo desleal para com Nora. Para sua surpresa, Nora não se encontrava nos seus aposentos. Uma brisa fresca entrava pela janela. Uma janela aberta! O pânico irrompeu-lhe pelo coração. Precipitou-se para a janela e obrigou-se a olhar para o solo em baixo, aterrorizada por poder ver ali o corpo destroçado da prima. O alívio emanou quando a vista não lhe mostrou nada do género. Nora estava no terraço, mas com o olhar fixo nos jardins. Subitamente começou


a andar, direta às plantações. Marianne desceu com pressa para o terraço. Não conseguia, contudo, ver Nora dali. O jardim era demasiado convencional para ocultar com facilidade uma pessoa. Para onde poderia ter ido a prima? Num canto remoto do jardim, a porta de uma estufa abriu-se e Nora saiu, carregando um vaso com uma planta. Um homem permanecia na soleira da estufa, a observar Nora a afastar-se. Viu que Marianne reparara nele e avançou até ao terraço, seguindo Nora. – Olha o que Mr. Llewellyn me deu, Marianne. – Nora admirava a pequena planta. Ao mostrá-la, os lábios curvaram-se para cima nas extremidades. Marianne olhou-a, espantada. Em três anos – tinha a certeza – , era a primeira vez que via a prima sorrir. – Vou arranjar um lugar no meu quarto para a pôr. – Nora levou o vaso para dentro de casa. O homem avançou devagar. Era um indivíduo grande, com cabelo escuro e bastante jovem. Os olhos afáveis e a facilidade de movimento pareciam em desacordo com o seu tamanho. – Ela tem passado muito tempo aqui sentada, Miss Radley. Pareceume rude ignorá-la. Espero não ter sido pouco apropriado, por às vezes lhe falar. – Não, de todo. Ela respondeu? Ele sorriu com ternura. – Um pouco, não muito. Creio que acha a jardinagem interessante. Ontem disse-lhe que se quisesse um pedaço para si mesma, no quarto, havia vasos para dar. Hoje, quando vim para a estufa, ela apareceu e pediu-me um. – Agradeço-lhe a amabilidade. Ela não é... quer dizer, ela é... – Como descrever Nora? – Compreendo. Tive uma tia assim. Perdida em si mesma. – Ele caminhou até às escadas do terraço. – É melhor voltar para aqueles vasos. Bom dia para si. Marianne virou-se para voltar para casa e viu a Mamã nas portas francesas, dizendo algo com os lábios através do vidro. Marianne abanou a cabeça e apontou para as orelhas indicando que não a conseguia ouvir. Com


uma expressão exasperada, a Mamã saiu para se juntar a ela. – Temos de falar. – Temos, de facto. Acabou de acontecer a coisa mais extraordinária: vi a Nora sorrir. – Oh, que disparate, a Nora, a Nora, sempre a Nora. Temos assuntos mais importantes para discutir. Anda comigo. – A Mamã liderou o caminho até a um banco encostado ao muro, que lhes concedia alguma privacidade. – Temos de planear como é que divulgamos a nossa visita de hoje. Fazemos com que seja conhecida antes da festa ou esperamos até essa noite? O duque não deixará de nos reconhecer lá. Deus, pode até pedir-te para dançar. – Acho que não poderei ir. – Porquê sempre não? Não me digas que é por quereres fazer companhia à tua prima. Tenho um ataque, se o fizeres. Marianne desejava que a mãe soubesse tudo sobre o duque. Desejava não ter prometido ao tio Horace que manteria aquela história em segredo. – Ele hoje beijou-me, Mamã. A mãe fez má cara e recuou. – Quem? Aquele jardineiro que vi a falar contigo? Vou mandar desped... – O duque beijou-me. Aylesbury. A boca da mãe caiu e assim permaneceu, por uma contagem até dez. – Onde? Quando? – Na galeria, depois de a mãe e Mr. Fitzallen saírem. – Marianne cobriu o rosto com as mãos. – Tenho a certeza de que o outro irmão também sabe. Ainda estava lá, na galeria. Acredito que tenha imaginado o que aconteceu. A face da mãe enrubesceu profundamente. Segurou a mão de Marianne na sua; com a outra pressionou o corpete, sobre o coração. Parecia prestes a desfalecer. – Isto é ultrajante. – Sim. Não me perdoo por não ver...


– Infame e audacioso. – Muito audacioso. Estou tão embaraçada... – Tal comportamento não é para ser perdoado. – Lamento muito, Mamã... A mãe comprimiu-lhe a mão. Ergueu a cabeça. De repente mostravase mais calma e muito pensativa. – Mais uma vez, ele é um duque. – O que é que isso tem que ver com o que quer que seja? Tanto quanto sei, ele é propenso a tais comportamentos, ultrajantes e audaciosos. – Ser um duque não o desculpa, claro. Contudo, faz alguma diferença. – Não vejo como. A mãe virou-se para ela e deu-lhe as duas mãos. – Suponhamos que ele dança contigo na festa. Isso só tornará os bons partidos ainda mais interessados. Se o partido certo acabar por propor casamento, verás esse beijo insignificante na galeria sob outra perspetiva. Não fora um beijo insignificante, mas não achou que fosse sensato explicar essa parte à mãe. Nem deveria também referir que esse não fora o primeiro beijo de qualquer tipo. E, definitivamente, não ia admitir que havia desfrutado de ambos os exemplos do mau comportamento de Aylesbury. A Mamã levantou-se. – Vamos deixar que o interesse dele seja visto na festa. Não comentaremos a nossa visita a Merrywood antes disso, portanto toda a conversa será nessa noite. E tu certamente irás, Marianne. – Caminhou em direção à casa. – Ele vai pensar que o estou a encorajar. Que acolho os seus avanços. – Oh, filha, não sejas pateta. Tenho de ser franca? Se ele resolver entreter-se contigo por um breve período de tempo, vale a pena tolerar uns beijos. Ele é um duque.


Marianne encontrou Nora no quarto, a deitar pequenas porções de água dentro do vaso. – Mr. Llewellyn disse que a planta deve receber luz indireta. Achas que queria dizer para a pôr num sítio como este aqui? – Suponho que sim. Aí é luminoso, mas o sol que chega através da janela não vai escaldá-la. Nora fez um laço em volta do vaso. Sentou-se na cadeira de madeira e observou-o. – Se este não morrer, pode ser que eu receba outro. A conversa com a Mamã desanimara Marianne. Tal como o tio, a mãe parecia estar disposta a permitir ao duque comportamentos que nunca aceitaria se vindos de outros, tudo na esperança de elevar a sua posição na comunidade. Possivelmente, a Mamã pensava que nem só a filha teria hipótese de atrair um bom partido, se um duque dançasse com ela; talvez pensasse que ela própria também. Era um pensamento desprezível, mas podia porventura não estar errado. O maior problema com o plano da Mamã, excetuando os riscos para a reputação da filha, era que significava ser desleal, da pior forma, para com Nora. Marianne decidiu abordar o assunto com a pessoa que devia ser considerada antes de tudo o resto. – Eu e a Mamã fizemos uma visita hoje – disse. Nora olhou, quase interessada. – Visitámos o duque de Aylesbury. Ele recebeu-nos. Lembraste, veio cá na semana passada. – Lembro-me. Marianne aguardou por mais uma reação. Mas não houve qualquer manifestação. – Ele pode visitar-nos outra vez, Nora. – Gostas dele? – Não sei. Tu gostas?


Nora encolheu os ombros. – É um homem como todos os homens. São por natureza brutos, exceto o Vincent. Não quero saber de nenhum deles, seja como for. Que estranho. – O teu pai pensa que podes ter um motivo para não gostar nada do duque. Ele pensa... – Marianne procurou a forma mais branda de o dizer. – Pensa que há anos tiveste uma paixoneta por ele e que depois de... namoriscar contigo, deixou de te dar atenção. – Susteve a respiração, fortalecendo-se. Nora acariciou algumas folhas da sua planta. – O papá é muito estúpido, às vezes. Não o devemos culpar por isso. É a maneira de ser dele. Estaria o tio Horace errado? Parecera muito convicto, mas Nora mostrava-se indiferente. Marianne andou em frente e arqueou-se para abraçar Nora. Desviou a cabeça para olhar a prima nos olhos. – Então não te importas que eu dance com o duque na festa? – Não me cabe a mim importar, pois não? Sentindo-se melhor, mas também confusa, Marianne dirigiu-se para a porta. – Marianne – disse Nora. – Sim? Nora virou o vaso para conseguir ter uma visão diferente da planta. – Se quiseres dança, mas tem cuidado, querida prima. Ele é um homem muito perverso.



CAPÍTULO 10

Ao editor do Times de Londres, do Gloucestershire: As recentes sessões do tribunal local continuam a ser debatidas no condado. De primeiro e continuado interesse é o caso de Mr. Jeremiah Stone, que foi absolvido de caça furtiva. A informação foi prestada por Mr. Langreth, que deteve Mr. Stone no caminho que separa a sua propriedade da do duque de Aylesbury. Mr. Langreth ficou admirado quando o duque recusou prestar informação também. Visto que Mr. Stone, ao que tudo indica, se encontrava a abandonar as terras do duque quando foi apanhado, e ainda não se servira da caça das terras de Mr. Langreth, os magistrados ficaram sem queixa do proprietário da caça em posse de Mr. Stone.Mr. Langreth foi ouvido a repreender o duque na aldeia, duas semanas mais tarde. Em resposta, o duque declarou que nunca deporia informação contra Mr. Stone. A opinião entre os proprietários locais é de que o duque dera permissão aos caçadores furtivos para roubarem à vontade. Todavia, uma análise cuidadosa da discussão não suporta tal acusação, no entendimento do vosso correspondente. Elijah Tewkberry, Gloucestershire O vestido deslizou pelo saiote como uma queda de água. A sensação luxuosa do tecido transportou Marianne para outro mundo. – Oh, menina. Está tão adorável – disse Katy. – Por favor sente-se, para eu poder fixar-lhe isto em volta do pescoço. A sua mãe disse que deve usá-lo e que eu não posso aceitar contestações. Katy prendeu o colar. Feito de uma elegante filigrana de prata, conseguia realçar o vestido e acrescentar um pouco de brilho, sem deixar de ser discreto. O espelho refletia uma pessoa que Marianne nunca antes vira. O cabelo ruivo escuro exibia mais caracóis do que era normal, graças ao ferro de frisar. A pele pálida mostrava algum rubor, graças a um pouco de pintura. O pescoço parecia mais longo do que era habitual, sem dúvida devido ao decote baixo do vestido. Não parecia uma rapariga, admitia. Quando vestida e arranjada


assim, a maturidade fazia-se ver, de uma forma que o vestuário mais casual não revelava tão prontamente. Para Marianne, a sua aparência cristalisara na altura da mudança para Cherhill, quando tinha dezassete anos. Porém, naquele momento percebia o quanto havia mudado. Já não era uma rapariga. A maior parte das mulheres da sua idade já eram casadas e mães. Naquela noite pareceria ser o que era: uma mulher madura e solteira, já com um braço e uma perna na prateleira. Sob essa perspetiva, talvez o comportamento de Aylesbury não tivesse sido tão mau quanto afirmava. Com ela, pelo menos; o episódio com Nora era outra questão. Pegando na pochete e no agasalho, dirigiu-se para o quarto da mãe. A velha Jane terminou de torcer umas madeixas, e trouxe depois o xaile de seda da Mamã. – Esta noite está adorável, Mamã. Notou que o reflexo da Mamã já não parecia muito diferente do seu. Aos trinta e nove anos, a mãe ainda não se qualificava como velha ou sequer de meia-idade. Talvez viesse mesmo a receber propostas de casamento, se os homens pensassem que um duque favorecia a família. – Obrigada. Tu também estás adorável. – Levantou-se. – Vamos. O teu tio já mandou dizer que a carruagem está pronta há algum tempo.

– Informaste Lady Barnell de que vais? Ives colocou a questão quando, na noite de luar, se dirigiam para casa da senhora. – Escrevi-lhe uma pequena carta há uns dias, a dizer que ambos estaríamos presentes. – Espero que esta noite o Sutton não se encontre lá. – Quem é o Sutton? – O homem cuja mulher possuíste no jardim, quando tinhas dezasseis anos. – Oh, sim. Esse Sutton.


Pobre Ives, sentir-se obrigado a cobrir a retaguarda do irmão malcomportado. E os lados. Dissera que ia à festa para evitar uma luta, se alguém lançasse afrontas; Lance sabia que era provável que a pessoa a dar o primeiro soco fosse o próprio Ives. Aquela volatilidade era a principal fraqueza do irmão, talvez a única que realmente importava. Fora isso, os deuses haviam-lhe sorrido: dos três, era ele o mais alto e, com grande probabilidade, o mais forte, ainda que nessas áreas o pai lhes tivesse deixado a todos legado bastante. O irmão menos abençoado havia sido Percy, o primogénito. Na altura em que todos chegaram à idade em que os rapazes ou crescem ou não crescem, tornou-se óbvio que, de todos, Percy seria o que cresceria menos. Parecia-se com a mãe, nesse aspeto e noutros que não o favoreciam. Ives e Gareth eram belos como o pecado e Lance gostava de pensar que, pelo menos, ia-se safando por ali, mas Percy... bom, o rosto de Percy era vulgar e desinteressante. Até a fealdade absoluta teria sido preferível a tão completa falta de distinção. Ele sabia-o. Percy ressentira-se com toda a dádiva que qualquer um deles exibia. Pensar-se-ia que ser o herdeiro, com perspetivas de se tornar rico como Creso, fosse uma compensação, mas Percival não conseguia suportar não ter recebido mais do que os outros em tudo. – Que se passa? – perguntou Ives. – Nada. Porque perguntas? – Estás a acariciar o rosto. A cicatriz. É algo que só fazes quando estás absorto em pensamentos sobre... Lance parou o ato instintivo, melindrado com o facto de Ives ter reparado naquele padrão. – Se hoje, em qualquer momento, alguém perguntar onde estou, responde que fui para a sala de jogo. – E se não te encontrarem lá? – Assumirão que saí para o salão de baile. – Tens de ter cuidado. Se a senhora não tiver presença de espírito para se defender, como aconteceu na galeria, tu próprio deverás estabelecer limites. Ocorreu-me que ela possa ser cúmplice de Sir Horace e ter todo o gosto em apanhar-te na armadilha. Não seria a primeira vez que se fazia uma tentativa dessas com um nobre.


– Não creio que ela esteja a par da visita de Sir Horace. Não o posso provar, mas não acredito que seja cúmplice. A carruagem parou. Algumas pessoas ainda gotejavam para o interior da casa. Ives saltou para fora e Lance seguiu-se. – Caso tenhas razão, digo outra vez que deves ter cuidado. Será uma situação dos diabos se fores apanhado com ela numa situação comprometedora. Contas que te rejeite, mas se isso acontecer ela não te poderá rejeitar. anos.

– Não te preocupes. Aprendi algumas coisas desde que tinha dezasseis

– Gosto tanto de ver jovens a dançar. Não gosta, Marianne? – Mrs. Wigglesworth colocou a questão enquanto se abanava com o leque. Estavam sentadas numas cadeiras encostadas a uma das paredes do salão de baile de Lady Barnell. Naquela noite, Mrs. Wigglesworth envergava um vestido cor de vinho. Exibia, a meio caminho da saia, uma curva infeliz de renda escura, que lhe acentuava a figura rechonchuda. Duas longas plumas no toucado, por sua vez, curvavam-se para baixo de ambos os lados da cabeça. O resultado era que Mrs. Wigglesworth, que no melhor dos dias tendia a ser uma combinação de círculos, naquela noite parecia de facto deveras redonda. Outras mulheres estavam sentadas junto a elas ao longo da parede. Toda uma linha de cadeiras e bancos prolongava-se em ambas as direções a partir dos lugares principais, ao centro. Outras matronas encontravam-se ali sentadas, assim como uma ou duas raparigas sem par. Este era também o lugar das que ainda não se tinham casado, mulheres jovens como a própria Marianne. Apenas concordara em ocupar um lugar na linha, porque Mrs. Wigglesworth gostava de bisbilhotar. Na última meia hora, diversos bocados e réstias de notícias sociais haviam fluído para os ouvidos de Marianne, enquanto o condado passava por elas. Agora que a fonte havia secado, Marianne tentava arranjar uma forma de se despedir. Mrs. Wigglesworth desviou-se para uma palavra mais privada atrás do leque. – Não desespere, minha querida. Eu disse a Mr. Thaddeus Peterson


para esta noite cumprir o dever e lhe pedir uma dança, assim como a outras que passaram a idade. Como solteiro, tem essa obrigação. Peterson. Como é que conhecia aquele nome? – Que atencioso da sua parte. Espero que não tenha tido de o ameaçar, de alguma forma, antes de ele concordar com tão abominável tarefa. – Não expressou entusiasmo, admito, mas como cavalheiro que é, não foi necessário chegar às ameaças. Quem sabe, pode até desenvolver sentimentos por si, se a menina se sair bem. Podia ser pior. Ele é herdeiro do pai, ainda que o património são seja grande. E, claro, é o juiz de instrução, o que reflete o respeito de que goza no condado. Evidentemente, o juiz de instrução. Elijah Tewkberry fizera questão de lhe conhecer o nome. – Pode indicá-lo? Mrs. Wigglesworth olhou com atenção para a multidão, apontando de seguida para a esquerda com um dedo coberto de joias. – Ali, com o seu tio. O homem mais baixo, com caracóis loiros curtos. Pode não ser impressionante, mas irá receber duas mil libras por ano. Mr. Peterson e o tio Horace pareciam estar em profunda conversação sobre um assunto sério. Marianne decidiu aguardar até que Peterson lhe pedisse para dançar, caso isso viesse a acontecer. A mãe aproximou-se. A Mamã não era pessoa de se sentar numas cadeiras contra a parede. Não naquela noite, de todas as noites. Contudo, Marianne sabia que a ausência de um certo duque a aborrecia. – Lady Barnell está furiosa – comunicou. – Imagino que sim – disse Mrs. Wigglesworth. – Disse a toda a gente que Aylesbury viria. Meio condado não acreditou, mas todo o condado compareceu para ver se ele aparecia. A multidão é impressionante, se bem que desconfortável. Será uma humilhação, se ele agora não vier. – Mrs. Wigglesworth não parecia solidária com a situação difícil de Lady Barnell. – Os duques regem-se pelos seus próprios relógios – respondeu a Mamã. – Estou certa de que chegarão em breve. – Durante quinze anos, ele não se dignou a sociabilizar com nenhum dos vizinhos. Não vejo motivo para o fazer agora, com toda a gente ainda a questionar-se sobre a morte prematura do irmão.


– Por favor, isso é um mexerico tão antigo – disse a Mamã. – Se não surge com algo melhor, vai perder a sua reputação como a mais conhecida maldizente do Gloucestershire. Os olhos de Mrs. Wigglesworth estreitaram-se. – Está a defendê-lo? Esta agora, isso é interessante. Espero que a saudação que ele lhe dirigiu na aldeia, juntamente com os irmãos, não lhe tenha dado a volta à cabeça. Essa informação flamejou e morreu depressa, de tão sem interesse que era. Toda a gente sabe que, ao contrário do irmão mais velho, esses três não têm amigos no condado, muito menos a senhora. O sorriso perigosamente.

da

Mamã

dispersou-se.

Os

olhos

iluminaram-se

– Farei com que saiba que... – Mamã, gostaria de falar com Lady Barnell, se se juntar a mim. Quero agradecer e felicitá-la por esta noite. Arrastando o olhar para longe de Mrs. Wigglesworth, a Mamã acompanhou-a. Caminharam as duas por entre a multidão, em busca de Lady Barnell. – Graças a Deus que não contámos a ninguém sobre a visita a Merrywood – disse a Mamã. – Se esta noite Aylesbury não vier, talvez nunca o façamos. – O que queria Mrs. Wigglesworth dizer com só o irmão mais velho ter amigos aqui? – Está apenas a falar, que é tudo o que sabe fazer. Contudo, talvez se referisse ao modo como o último duque, Percival, condescendia em receber os vizinhos e em visitar alguns deles, e pelo menos os reconhecia. Vivia de facto aqui, ao contrário dos outros, que até raramente visitavam. – Era apreciado, então. – As pessoas agora falam bem dele. Claro que, como não estive cá durante grande parte do seu tempo como duque, não sei muito mais do que isto. – Lá está Lady Barnell. Penso que não se importará que lhe interrompamos a conversa. O tio Horace posicionara-se de forma a que a senhora em causa tivesse de suportar a sua atenção. Mais corpulenta do que a Mamã, mas trajada com um vestido requintado – sem dúvida encomendado em Londres


–, Lady Barnell erguia os olhos para o tio Horace com uma expressão de branda delicadeza. O tio Horace devia pensar que o que quer que estivesse a dizer era espirituoso, porque se ria das próprias palavras. A senhora mal sorria. – Sir Horace, estou certa de que não se importa que nos juntemos – declarou a Mamã. Posicionou-se astuciosamente entre Horace e Lady Barnell e puxou Marianne para junto dela. Tornaram-se uma parede para a qual o tio olhava com atenção. – A minha filha desejava dar-lhe uma palavra, mas temia que falarlhe a sós fosse uma imposição – disse a Mamã. Marianne começou a lisonjear a anfitriã sobre as decorações, a música, a comida. Lady Barnell havia-se superado a si mesma, sem dúvida. Alguns diriam até que exagerara. A festa era mais um baile do que uma reunião do condado. – Zeus. A exclamação do tio Horace interrompeu Marianne precisamente quando estava a terminar. Olhou para o tio por cima do ombro e depois na direção do seu olhar. Atrás de Lady Barnell tinham-se aberto as portas duplas que davam para o patamar das escadas. Dois homens encontravam-se no exterior. Um criado avançou. – O Mais Alto, Nobre e Poderoso Príncipe, Sua Graça, Lancelot, Duque de Aylesbury, e Lord Ywain Hemingford – anunciou. Não anunciara a chegada de mais ninguém. Lady Barnell fechou os olhos e recompôs-se. Com uma expressão de pura felicidade, virou-se para o elevado convidado. A Mamã irradiou um sorriso satisfeito para Marianne. O aposento silenciou-se e todos os olhos se voltaram para o duque. Marianne escapou de junto da mãe e procurou a obscuridade na multidão. Ninguém perdeu os cumprimentos de Aylesbury e do irmão a Mrs. Radley, depois de falarem com Lady Barnell. A Mamã aceitou a atenção como uma rainha que aceita a de um cortesão. Terminado o momento de teatro, os convidados regressaram às conversas. Os músicos continuaram a tocar. O tableau vivant dentro da sala de baile caiu.


Justamente quando Marianne seguia em direção às portas do terraço para desaparecer, Mrs. Wigglesworth surgiu com Mr. Peterson a reboque. Fez as apresentações. Mr. Peterson convidou Marianne para dançar. Tudo no homem a fazia querer bocejar. A expressão dele mostrava-se incapaz de animação. A forma como as pálpebras se conservavam a meia haste dava a impressão de que estava a fazer o que podia para se manter acordado. Incapaz de declinar educadamente mas lamentando não ter conseguido chegar às portas superiores do terraço, Marianne acompanhou Mr. Peterson até à linha que se formava para a dança. – Mrs. Wigglesworth contou-me que a sua família é muito conhecida nesta zona – disse Marianne. – Estamos aqui há gerações. Eu conhecia o seu pai, embora fosse com o meu pai que ele mantinha amizade. A dança começou. – O senhor não é também o juiz de instrução? – perguntou ela, assim que se voltaram a juntar. – Sou, de facto. Há três anos. – Mais passos de dança. – Deve ser uma posição angustiante. – Por vezes. É também muito interessante e requer um pensamento cuidadoso. Passou algum tempo até Marianne conseguir falar com ele outra vez. – Ouvi algumas pessoas a mencionar que a morte do último duque ainda o absorve. Que perturbador que deve ser, depois de todo este tempo, continuar incapaz de determinar o carácter justo de uma decisão. Mr. Peterson não respondeu. Quando a acompanhou-a de volta ao lugar onde a encontrara.

dança

terminou,

– Tem um interesse particular pela função dos juízes de instrução, Miss Radley? Poucas pessoas têm. – Penso que deve ser fascinante. Espero que não me considere mórbida por dizê-lo. – Eu próprio não sou mórbido, por isso nunca pensaria tal a seu respeito. A morte chega a todos nós. Como o nascimento e o casamento,


envolve documentos. Eu limito-me a assegurar que os documentos legais são exatos. – Tal como um pároco. Ele quase sorriu. – Sim, é uma boa perspetiva. – Pode ser que, de vez em quando, nas festas e outros eventos, me delicie com os seus casos mais interessantes. Como esse do último duque. Já meio alerta, ele aproximou-se e disse-lhe numa voz enfatuada: – Terei muito gosto. Na verdade, nesse assunto em particular, vou confidenciar-lhe que poderá haver uma resolução muito em breve. – Levou um dedo aos lábios pálidos. Marianne fez o mesmo gesto e anuiu. – Asseguro-lhe que sou muito discreta, senhor. – Miss Radley, não fazia ideia de que era tão agradável; teria pedido que fôssemos apresentados há dias. Aceita a minha companhia até à sala de jantar, para comer ou beber alguma coisa? Elijah Tewkberry teria ficado exultante por aceitar aquela companhia, e pela consequente meia hora de conversa. Miss Radley, todavia, não queria de todo ir. – Ouvi dizer que há um bolo ótimo – aliciou Mr. Peterson. – Ela não quer bolo, Peterson – interrompeu uma voz. – Prometeu-me uma dança e eu estou neste momento a reclamá-la. Aylesbury agigantou-se junto ao ombro de Mr. Peterson. Sem mais palavras, o duque estendeu a mão para acompanhar Marianne de volta à dança. – Ainda bem que estava naquele canto a espiá-la – disse, enquanto esperavam pelos outros para tomaram os seus lugares. – Peterson é mau para a saúde, de tanta falta de vitalidade. – Ninguém o pode acusar do mesmo, Sua Graça. – Aylesbury. Já lhe disse. Não acredita em mim? – Reparei que o seu resgate me privou da oportunidade de declinar


esta honra, Aylesbury. – Se desejasse mesmo declinar teria encontrado uma maneira, ainda que significasse comer bolo com um homem muito menos interessante do que eu. Marianne tentou fingir que não notou a atenção que colheram quando se juntaram à linha. Porém, para evitar os olhos apontados à sua pessoa, precisava de olhar para o duque. Ele, por outro lado, sorria para a esquerda e para a direita, para quem quer que visse a olhar. Enquanto dançavam, Aylesbury perguntou por Nora. Elogiou o vestido de Marianne. Exprimiu admiração pela impressionante presença da mãe. A dança acabou depressa e ele acompanhou-a de volta ao lugar. Peterson fora embora. Nem o duque parou naquele ponto; com a mão de Marianne ainda a descansar na sua continuou a andar, direto às portas de acesso ao alpendre superior. A dança de ambos deixara de interessar às pessoas assim que a começaram. Marianne acreditava que poucos olhos os viram sair. Nem o alpendre estava deserto: duas mulheres conversavam numa ponta e, não muito longe da porta, três homens desfrutavam dos charutos. – Podia ter-me perguntado se eu queria apanhar ar – disse ela. – E arriscar-me a que entendesse não precisar? Não é assim que faço as coisas. Posicionaram-se junto de um candeeiro. Este difundia uma luz âmbar sobre o rosto de Aylesbury; um rosto belo, extraordinariamente belo, mas a cicatriz parecia mais chocante e profunda naquele súbito claro-escuro. Ele reparou que Marianne a observava. Delicadamente, tocou-lhe com as pontas dos dedos. – Acha-a repugnante? – Não, de todo. – Algumas pessoas acham. – Não pode ser ignorada, mas quando se repara nela, não significa que se esteja repugnado. – Durante muitos anos, quando era mais novo, era o que via nos olhos dos outros.


– E agora? – Aprendi a estar-me nas tintas para o que as pessoas pensam. – Então porque é que me perguntou o que eu acho? Ele sorriu. – Não é suposto ser mais inteligente do que um duque quando fala com ele. Não é de bom-tom. – Já que se está nas tintas para o que pensam sobre a sua pessoa, não se ofenderá por eu dizer que não me interessa que seja um duque. – Demasiado inteligente, agora. – Então vou deixá-lo e regressar ao meu lugar junto à parede reservada às solteironas. Virou-se para ir embora. Ele deu um passo em frente e deteve-a, agarrando-lhe o braço. – Não vá. Se ficar, conto-lhe como fiquei com esta cicatriz. Quase ninguém sabe. Marianne olhou para a mão com que ele lhe tocava e de seguida para o local onde as mulheres conversavam. Tinham ido embora, assim como os homens. Estavam sozinhos no terraço. – Disse a toda a gente para entrar? – Ouviu-me dizer? – Ele olhou em volta. – Talvez estivessem com frio. Ou, quem sabe, preferissem pôr-se a boa distância de mim. Ou desejassem dar-me alguma privacidade consigo. Não parece justo, pois não? Privar todo o condado do terraço, porque o duque está a usá-lo. Vamos solucionar isso. – Curvou o dedo, fazendo-lhe sinal para o seguir. Com o sentido de prudência em alerta máximo, Marianne seguiu-o até umas escadas que conduziam ao terraço inferior. – Não sou tão pateta que vá para ali consigo. Preocupo-me com o que pensam de mim, e está a brincar com a minha reputação. – Ali estaremos à vista clara de todos, mas fora do alcance da audição. Atrevo-me a dizer que outros se aventurarão a descer, se nós o fizermos. Marianne olhou para cima e depois para baixo. O terraço superior era uma varanda de pouca profundidade com vista para a maior e mais baixa.


Ainda que apenas a lua cheia iluminasse o terraço, qualquer pessoa poderia vê-los. Engolindo as desconfianças, Marianne arriscou-se a descer. Ele levou-a até ao muro do terraço perto do jardim, a parte mais visível a partir de cima. – Vai então contar-me agora o segredo dessa cicatriz? É de um duelo? Aylesbury não parecia inclinado a falar. Marianne olhava-o com ousadia, desafiando-o a voltar atrás na promessa. Ele estava reclinado contra a parede, com o braço e o ombro a descansar no topo. – Desde que regressou, o que ouviu dizer sobre o meu irmão? – Que não era tão mau como o senhor, e talvez fosse até bom. Aylesbury riu-se. – Não iria tão longe ao ponto de o condenar à bondade. Ele conseguia ser muito descuidado, por vezes. – Tocou na bochecha. – Fez isto, por exemplo. – Estavam a treinar com espadas? – O Percy deixou de ser concorrência séria em esgrima quando eu tinha doze anos. Não, isto foi um jogo que deu para o torto. Dois rapazes que não se preparavam para boa coisa. Eu amadureci antes dele e comecei a exibir pelos no queixo e no rosto. Só alguns, mas os suficientes para o irritar. – Imagino que ele não tenha gostado nada de ter um irmão mais novo a tornar-se homem mais cedo. – Um dia, quando estávamos juntos, a divertirmo-nos pela primeira vez desde que havia memória (eu e ele começáramos a evitar-nos um ao outro muito tempo antes), encontrámo-nos no quarto de um criado, onde não devíamos estar. O Percy gostava de bisbilhotar as pessoas. Ali estávamos, então, e abrimos a caixa dos materiais de barbear daquele homem. A navalha da barba fascinou o meu irmão. Sugeriu uma brincadeira em que ele era o criado e me barbeava aqueles pelos. Marianne percebeu, de repente, onde a história iria terminar. Ergueu a mão. – Por favor. Não descreva. Semelhante acidente deve ter sido horrível. – Foi muito intenso. Sangue por todo o lado. Cambaleei dali para fora


aos gritos, cego. Foi necessário um cirurgião para suturar, e quase morri com uma infeção antes de terminar. – Que terrível para si. Para ambos. O seu irmão deve ter sentido uma culpa terrível. Aylesbury olhou para ela. – Culpa como nunca viu. Chorou até a minha mãe insistir para que nunca mais tocássemos do assunto. Pobre Percy. Todo aquele pesar. Todas aquelas desculpas. Suplicando o perdão do meu pai. Que rapaz tão desgostoso. – É compreensível que não se sentisse mal por ele. – Conhecia-o muito bem, melhor do que o meu pai ou a minha mãe alguma vez o conheceram. Não encontrei culpa nem pesar nos olhos dele, quando olhava para mim sem ninguém a ver. À medida que fui revivendo aquela tarde, ao longo dos anos, percebi que fez de propósito. Quando estávamos sozinhos, olhava para o meu rosto, olhava para a cicatriz, e sorria. – Seguramente interpretou mal. Aylesbury endireitou-se. – Não interpretei mal nada, bela flor. Posso ser mau, mas o Percy era maligno. Ele não estava a brincar. O pedido de Marianne para ouvir a história da cicatriz mudara-o. Alterara a sua presença. Entristecera-o. – Essa palavra é forte. – Uma palavra que também evitei usar durante muito tempo. Em rapaz, pensava somente que ele era maldoso. Era o herdeiro e adorava usar esse estatuto de todas as formas que podia. Para conseguir o que queria. Para nos separar da nossa mãe, exigindo-lhe toda a atenção. Quando cresci, percebi que ele me odiava, e ao Ives também, embora o Ives fosse novo o suficiente para escapar ao pior. – Porque o odiaria? Como disse, era ele o herdeiro. – Era mais pequeno do que nós. Saía à mãe nisso, e na debilidade, e mesmo nas características... que não o embelezavam. Não se parecia com o nosso pai, como nós. Na altura em que eu tinha dez anos, já o conseguia bater em qualquer desporto ou jogo físico. Quando me empenhava, conseguia vencê-lo também no trabalho escolar. Começou então a vingar-se


em nós. Sabe, houve muitos acidentes como aquele com a navalha. E o Percy estava sempre envolvido. Marianne desejava não ter encorajado aquele tema. O ambiente entre eles tornara-se sério. E íntimo, também. A escuridão de Aylesbury e a comiseração de Marianne encontraram-se no espaço entre eles, cada uma tentando absorver a outra. Ele olhou para o terraço superior. – Agora terá de partilhar um dos seus segredos. – Não tenho segredos. – Tinha um mas, se revelasse a correspondência, cometeria um suicídio social. Ninguém poderia jamais saber de Elijah Tewkberry. – Toda a gente tem coisas que não quer admitir. Faltas, pecados ou mágoas. – Olhou para ela e sorriu. – Desejos privados ou planos proibidos. Marianne abanou a cabeça, mas cada uma das palavras de Aylesbury lhe provocava as emoções e os pensamentos mais íntimos. Ele estava certo, toda a gente guardava segredos no coração. – Então terei de adivinhar. – Inclinou a cabeça e examinou-a. – Penso que no seu coração há muitas razões para preferir estar na casa de campo do que voltar para cá. Não lhe nego a bondade de estar preocupada com o bem-estar da sua prima. Contudo, acho que acabou por gostar da sua falta de expectativas. – Que disparate. Quem é que prefere não ter expectativas? – Falo das que os outros depositam nos seus ombros. Pessoas como a sua mãe. Como eles. – Fez um gesto na direção da porta da sala de baile. – Casamento, por exemplo. A minha suposição é de que no Wiltshire não havia festas e bailes onde se sentasse na parede reservada às solteironas. Nem os homens como Mr. Peterson ousavam liberdades, pensando durante o tempo todo que não lhes serve, porque não tem fortuna. Marianne sentiu o rosto a ficar quente. E a cabeça. – Obrigada por expor a minha situação com tamanha precisão. Sem a sua ajuda, eu poderia ter deixado escapar as totais implicações. Ele tocou-lhe a face esquerda com a mão direita. Ninguém no terraço superior veria. – Magoei-a. Posso ser descuidado dessa forma.


– Não. É justo. – Marianne virou a cabeça o suficiente para afastar os dedos dele. – Depois do modo como o pressionei, não me posso queixar se tentar deixar a minha alma a descoberto. – Penso também que há uma memória que conforta o seu coração – disse ele, sereno. – Uma paixoneta de quando era mais nova, por um homem que não podia ter. Independentemente do sofrimento, está contente por não ter sido privada dessa emoção. É melhor ter amado e perdido do que... – Marianne recusou-se a reagir. Seria amaldiçoada antes de lhe permitir saber que acertara duas vezes. – Também penso... – Não terminou? Ficará a dever-me mais segredos, se despejar as suas opiniões. – Creio que aprecia também o lugar para onde o destino lhe levou a vida. Deve ter ficado a conhecer as vantagens da independência, enquanto esteve fora. Pode não gostar de se sentar entre as solteironas, com toda a sociedade a prestar-lhe atenção e a apiedar-se, mas se isso significar manter essa liberdade, vai sentar-se. Marianne tinha já pronta uma repreensão para pôr fim ao assunto, assim que ele acabasse aquela intrusão adicional na sua vida privada. Não conseguiu articulá-la; ficou apenas a olhá-lo, espantada e comovida, por Aylesbury ter inferido tanto com tão pouco conhecimento sobre a sua pessoa. Ele aproximou-se e segurou-lhe a mão – as mãos não visíveis a partir da varanda. – Também penso, não, sei... que secretamente gosta que eu seja mau, bela flor. Desfruta dos meus beijos roubados mais do que é suposto. O prazer enfeitiça-a. Estava tão próximo que Marianne teve de inclinar a cabeça para trás para lhe ver o rosto. A expressão dele difundia uma excitação que dançava por todo o seu ser. As intenções mostravam-se nos seus olhos. Ela olhou para a varanda acima. Não se avistava nem uma pessoa. Porém, não podia ter a certeza de terem completa privacidade. Não se atrevia a permitir outro daqueles beijos roubados. Aylesbury moveu-se, mantendo firmemente na sua a mão dela. Puxou-a e aliciou-a ao mesmo tempo, levando-a em direção à extremidade do muro, onde o edifício encobria o luar e gerava uma mancha negra de sombra. Marianne acompanhou-o com prazer. Nunca poderia dizer que não. Tropeçava atrás dele. Era a surpresa e não a resistência o que a tornava trémula.


Ele puxou-a com força e Marianne caiu de encontro à robustez do corpo dele, no seu vasto abraço. Não conseguia ver nada mas sentia tudo: a força dos braços e do peito, a lã delicada dos casacos e por fim a palma da mão quente, segurando-lhe o rosto. Marianne permitiu-o porque ele estava certo: o prazer enfeitiçava-a. Arriscado. Tão perigoso. Não se importava. Fechou os olhos e aceitou o quanto essa excitação há pouco descoberta a incitava. As sensações produziam-lhe vivacidade no corpo, e na mente uma euforia ofuscante. Os beijos na boca, no pescoço e no corpo exigiam a rendição de todos os seus sentidos ao comando dele. Marianne queria. Ignorava os receios que em silêncio a censuravam. As mudanças no seu corpo eram por demais esplêndidas para serem rejeitadas. Se aquilo acabasse, choraria. Mais movimento. Mais escadas. Sem que os beijos parassem, ele servia-lhe de guia, segurando-a pela mão para que não caísse. O aroma a terra e a névoa. Pedras debaixo dos sapatos e depois erva. Fragmentos de luar e em seguida mais sombras, profundas e ocultas. O agasalho ficou preso num arbusto, fazendo-os parar. Ele libertou o tecido do ramo; depois recolheu-a nos braços e carregou-a ao longo dos últimos metros. Marianne observou as alturas, onde as árvores infrutíferas davam lugar às pedras. Pedras encurvadas. Levantou a cabeça e olhou em volta. Encontravam-se num pequeno abrigo de jardim, redondo, de cúpula abobadada. Um círculo de colunas uniformemente espaçadas emoldurava retângulos de bosque iluminado pelo luar. Um pouco de bom senso regressou. Os receios falaram mais alto. Perigoso. Imprudente. Desastroso. – Está determinado a provar o quanto pode ser mau, não está? – A voz dela soava distante e etérea, como o pensamento havia sido. Aylesbury parou e olhou para baixo, para ela. – Sim. Sentou-se num banco e puxou-a para o colo. Beijou-a outra vez. A consciência de Marianne mostrava-se incapaz de competir com o prazer doce que fluía pelo seu ser, elevando-se como uma maré que sobe. E quando estava submersa, flutuando de ânsia e felicidade, ele revelou o quanto tencionava ser mau.


Lance presumira que Miss Radley se assustaria com facilidade. Uns beijos agressivos e uns abraços, a uma distância perigosa da festa, deveriam ser suficientes. Mas ela não reagiu com medo, pelo contrário; antes lhe permitiu a desfaçatez e cumpriu a observação que ele fizera, de que o prazer a enfeitiçava. Não se tratara senão de um estratagema, que não teria tido importância; mas Lance perdera de vista o «porquê» e o «onde» da situação, e até mesmo a razão para o «quem». Culpava a inocência de Marianne, assim como a sua ignorância. Ambas o cativavam. Garantir que ela estava absolutamente enfeitiçada tornou-se então o objetivo. Despiu-lhe o agasalho enquanto a beijava. Ela não deu conta da falta. Fez descer a boca até à pele macia e exposta do decote. Marianne inclinou a cabeça para trás. Ele parou e olhou para o rosto dela, sob o luar; olhos fechados, lábios entreabertos, tornara-se uma imagem de êxtase sensual. Beijou-lhe novamente a pele, e depois um pouco mais abaixo. Enquanto encostava o rosto ao seu corpo aveludado, tocava-lhe os seios com a mão. Marianne não se atemorizou, nem gritou. O único som que saía daqueles lábios era um ah, parte de um súbito encher de pulmões. Um pouco surpreendido e muito contente, não se sentiu desencorajado por aquele ah. Tinha de parar. Ela era uma inocente. E no entanto... era claro que seria preciso muito mais para chocar Miss Radley. Acariciou-lhe o peito. O corpo dela dobrou-se e a profunda excitação estremeceu através daquele movimento. Beijou-lhe a curva do pescoço à medida que a sua mão a percorria. Inalou-lhe o aroma. Na sua mente formavam-se imagens; imagens eróticas de Marianne despida e à espera, convidando-o a ser tão mau quanto conseguisse conceber. O seu próprio fogo crepitou até o queimar. Procurou-lhe o mamilo através das roupas. No seu íntimo, maldizia a prova palpável de que ela usava corpete. Descobriu a elevação endurecida pela forma como uns gemidos suaves se sobrepunham à respiração acelerada, quando as carícias lhe passavam por cima. O último pensamento lúcido antes de o fogo lhe toldar a mente foi que o plano era ganhar tempo com o tio, através da sedução de Marianne.


Comportamento indecoroso em excesso e ela poderia recusar a atenção cedo demais. O pensamento desapareceu no meio das chamas, antes de ele ter metade dos fechos do vestido desapertados. Quando Marianne percebeu como a mão dele trabalhara, parou o beijo e espreitou sobre o ombro, perplexa. – O que...? – Não quero arruinar a adorável seda do vestido. – Ele beijou-lhe o lado do pescoço. – Não penso... – Ótimo. Não pense. – Provocou-lhe sem piedade o peito. Ela perdeu interesse na outra mão. O vestido desapertou-se. Aylesbury fez a mão escorregar por baixo do decote solto do corpete. Malditos corpetes. Pelo menos este atava à frente. Impaciente e mais excitado do que se sentira em anos, forçou uma folga no cimo das fitas com o dedo. Conseguiu o bastante para lhe permitir acariciar a verdadeira suavidade do peito. – Oh. – Marianne olhou para baixo, boquiaberta, para a mão metida debaixo do topo do corpete. Ele acariciou o cume hirto. Ela fechou os olhos. – Ohh. Lance ia certificar-se de que haveria muitos mais ohhs melódicos. Ia despi-la como deve ser, deitá-la numa cama, e empenhar muito tempo e cuidado a ensinar-lhe como o corpo a podia transportar até outro mundo, um mundo onde poderia saborear a eternidade. Ele... Só que não. Não havia ali uma cama, apenas terra húmida e pedra dura. Não podia demorar-se, porque estavam numa festa. E também não a podia despir mais. A realidade não o arrefeceu. Dir-se-ia até que o desejo se tornou mais forte. Selvagem. Desejava-a, maldição. E ela também o desejava. Convencido e seguro, dentro das verdades acessíveis a um juízo transtornado pela luxúria, procurou uma carícia da sua nova amante, como recompensa pelas que oferecera. Pegou na mão já em repouso entre eles e na coxa de Marianne e moveu-a uns centímetros, até ao seu colo.


Se a tivesse atirado para um banho de água gelada, ela não teria reagido com mais vigor. Num segundo estava no seu colo, a ser agradada a ponto de gemer; no seguinte estava em pé – um ponto de exclamação humano – a olhar para ele. De boca aberta e a respirar profundamente, Marianne permaneceu assim durante uns instantes; refletia confusão no olhar, como se ainda estivesse a processar o que acabara de acontecer. Aylesbury estendeu-lhe a mão. – Perdoe-me. Encantou-me a ponto de me esquecer de mim mesmo. Tentou persuadi-la a voltar. Se aquilo acabasse naquele momento, com ele naquele estado... Todo o seu ser uivou só com a ideia. Recomposta, Marianne puxou a mão para longe da dele. Os olhos estreitaram-se perigosamente. Deu um passo em frente, balançou e acertoulhe em cheio com o punho no rosto. Inferno. Maldição. Era tudo o que Aylesbury conseguia fazer para não uivar mesmo, de dores. Porquê, aquela grandessíssima... Levantou-se abruptamente e afastou-se, para que ela não lhe notasse o espanto, nem a irritação. Olhou para o jardim enquanto procurava controlar a fúria. Nenhum deles fez um único som, durante uns momentos. – Eu estou... Eu provavelmente não devia ter feito isto – disse ela, por fim. – Estava tão surpreendida que... Ele voltou-se e viu-a a encolher os ombros, abalada. – É mais forte do que parece, bela flor. Quem imaginaria que conseguia dar um soco destes? – Não foi próprio de uma senhora, pois não? – Nunca antes vi uma senhora a fazê-lo, por isso presumo que não. – Obrigada por não me ter esmurrado também. Teria sido justo, se o fizesse. – Começou a compor o desalinho. Puxou o corpete mais para cima e olhou para verificar como parecia sobre o espartilho. – Os cavalheiros não esmurram senhoras; apenas os canalhas o fazem.


Marianne parou de se inquietar com o vestuário, mas fez um gesto nessa direção. – Terá de admitir que tive motivo. – Admitirei que esperei demais. Quanto a isso – gesticulou para o vestido –, não ouvi queixas. – Também não pediu permissão. – Estava demasiado atarefada a gemer de prazer para falar. Os olhos dela estreitaram-se outra vez. Aylesbury não se importou. O rosto doía-lhe, caramba, e ela mais que tinha desejado. A única parte boa deste desfecho do encontro era que um murro na cara obscurecia outras aflições que, de outro modo, ele estaria a sofrer. Pelo menos Marianne não negara nada; se tivesse declarado que lutara bravamente pela virtude, teria perdido todo o respeito por ela. Assim sendo, naquele momento apenas lamentava ter sido tão impaciente. Um pouco mais de subtileza da sua parte e quem sabe ao que poderia ter levado. Um pensamento desprezível, aquele. Mas honesto, sem dúvida. Marianne tocou as costas para tentar arranjar o vestido. – Pode agora deixar-me, para regressar sozinha? – Uma nota amarga tilintou-lhe na voz. – Claro que não. – Que diabo de coisa para se dizer. Queria que ela o achasse mau, malévolo, não um patife grosseiro. – Traçaremos um plano com todo o cuidado, de forma a que ninguém saiba que esteve aqui. Pôs-se à frente de Marianne, virou-a e apertou o vestido. Conduziu-a até às colunas, para poder vê-la ao luar. O toucado não se mostrava negativamente influenciado pela última meia hora. O corpete não revelava a sua intromissão no aperto dos laços do espartilho. Levantou o agasalho e colocou-lho sobre os braços. – Acredite em mim, nada na sua aparência levaria alguém a pensar que esteve comigo. – A menos que saibam que é muito experiente nestas coisas. Suponho que haja algumas mulheres, muito mais enfeitiçadas do que eu estava, que se vão embora igualmente bem arranjadas. – Tem razão. Esse é um dos meus talentos que Deus me ofereceu.


Consigo extasiar uma mulher sem que depois tenha sequer uma madeixa de cabelo fora do sítio. Pelo olhar que lhe dirigiu, presumiu que ele estava a ser sincero. – Como é que volto a entrar ali com a minha reputação intacta? – Irei acompanhá-la até ao jardim aberto e entrará sozinha. Mais tarde arranjarei forma de entrar. Se a sua mãe perguntar onde esteve, diga-lhe que veio em busca de privacidade cá para fora, ao ar fresco, para pensar nas propostas que Mr. Peterson lhe fez. Iniciaram a caminhada pelo carreiro através das pequenas matas. – Mr. Peterson não fez propostas, sejam elas o que forem. – Sejam elas o que forem, de facto. Não as reconheceria se as ouvisse. Eu quase imprimi um cartaz a anunciar as minhas e mesmo assim continuo a surpreendê-la. – Não acredito que Peterson seja mau como o senhor. – Todos os homens podem ser maus, bela flor. E sê-lo-ão, se lhes for dada oportunidade. Mas tem razão, não é tão mau como eu. Eu sou muito melhor nisso do que os do género do entediante Thaddeus Peterson. Caminharam um pouco mais. – Está a ser um pouco insolente – disse ela. – Parece irritado. – Perdoe-me. Alguém me esmurrou e fui inibido de me defender. Além disso, o prazer interrompido faz isso a um homem: deixa-o irritado. Não sabia? Nenhuma resposta. Bolas, ela não sabia. O limite das matas surgiu-lhes no campo de visão. O jardim aberto, com a madeira de bucho e os carreiros, estendia-se até ao terraço. – Vá primeiro. Certificar-me-ei de que entra em segurança, fico a observá-la daqui – disse. Marianne encarou-o e tocou-lhe a face que tinha esmurrado. Depois, com toda a suavidade, as pontas dos dedos voltearam sobre a outra face e sobre a cicatriz. Retirou a mão.


– O que teria acontecido se eu não... tivesse parado? Tê-la-ia inclinado sobre aquele parapeito de pedra, levantado a saia e tê-la-ia possuído. – Suponho que depressa recuperaríamos o bom senso – gesticulou ele para o jardim. – Agora vá. Não desaparecemos tanto tempo quanto é provável que pense, mas foi o suficiente para a nossa falta ser notada.


CAPÍTULO 11

No dia seguinte, enquanto se lavava, Marianne fez uma pausa. A água no lavatório exibia os vestígios dos tons de pintura que usara no rosto e nos lábios. Deitara-se depressa depois de regressar da festa, e dispensara Katy logo que despira o vestido. Já absorta nos pensamentos que fariam com que o sono tardasse a chegar, a lavagem foi distraída e incompleta. Olhou fixamente para o espelho. O cabelo, ainda meio para cima, não fora bem escovado. Pouco a pouco desatou o vestido de andar por casa, até conseguir ver os seios – os mesmos seios que há tão pouco tempo o duque acariciara. Pensar nisso naquele momento fazia com que os mamilos se tornassem tensos, como se o quarto de vestir não tivesse um fogo confortável a aquecer o pequeno espaço. Eles – não, ela – fora descuidada e imprudente. O duque não arriscara nada. O que era mais uma mancha na sua reputação, se o mundo o descobrisse com Miss Radley em desalinho, sozinhos onde não deviam estar? O diálogo no terraço repetia-se na mente de Marianne. A sinceridade de Aylesbury acerca de Percy despertara-lhe a solidariedade. Ao que parecia, não existira amor entre eles. O tom com que ele falara durante a descrição do irmão, com um toque de azedume e muito sarcasmo, deixou-a a perguntar-se se Aylesbury teria usado aquele veneno. Tentou expulsar a ideia do pensamento. Estava apenas a tentar retratá-lo ainda pior do que era, com o propósito de reclamar algum direito à indignação. A intimidade que as revelações geraram poderia tê-la enfraquecido, mas o duque não se impusera; ignorante, curiosa e demasiado ciente da sua idade avançada, Marianne permitira tudo, até lhe ter batido. E desfrutou de cada um daqueles momentos deliciosos. Não haveria mais tentações, Graças a Deus. Estava certa de que tê-lo esmurrado no rosto acabara com qualquer interesse que ele tivesse em


brincar com ela. Devia estar feliz por isso, aliviada. Em vez disso, sentia-se um pouco triste. Acabou de lavar-se. Estava prestes a aceitar que Katy a ajudasse com o vestido, quando uma voz feminina chamou por ela. Katy paralisou. Marianne deu uma vista de olhos. – Desculpe-me, menina. Vou ver quem é. Não é a sua mãe, tenho a certeza. – Parecia... – Sim, menina. Se bem que tenho a certeza de que é um dos criados. – Tirando o facto de que nenhum dos criados a trataria por Marianne. Um momento mais tarde, Katy estava de regresso, mal escondendo a surpresa. Nora vinha no seu encalço. – Tinha de te encontrar – disse Nora. – Olha, chegou uma carta do Vincent. Os olhos de Nora continham centelhas que Marianne não via há três anos. Nem mesmo quando Vincent fizera a última visita a Cherhill, há nove meses, Nora reagiu assim. Parecia feliz. Marianne fez sinal a Katy para que saísse. Conduziu Nora até um pequeno canapé e desceu-a, sentando-a ao seu lado. – O que diz ele? – O barco está em Southampton. Irá a Londres e depois vem cá. – A expressão de Nora abateu-se. – O papá não o receberá. Vai viajar estes quilómetros todos e, no fim de contas, não o poderei ver. A aversão do tio Horace a Vincent tinha uma origem compreensível. Quando se casou com a mãe de Vincent, a senhora revelou alguma arte nos esforços para ser dado ao filho do primeiro casamento um lugar na herança de Horace. Depois de Horace receber a herança do pai de Marianne, a adulação tornou-se insistente. A solução do tio foi puxar uns cordelinhos para Vincent entrar na força naval, de forma a que saísse de casa e da sua vida. Por momentos, a perceção de que veria Vincent trouxe-lhe à memória as emoções de menina. Apercebeu-se depois da verdadeira razão para a excitação que sentia. Ele era um velho amigo. Um amigo agora seria bom. Talvez vê-lo lhe lembrasse de que, fosse qual fosse a sua fortuna, não nascera para ser o brinquedo de um duque.


– Talvez haja uma solução – disse Marianne. – Se poderei ou não organizar o que tenho em mente, será contigo. – Diz-me o que é. Quero tanto vê-lo. Marianne abraçou Nora. – Se ele não pode vir aqui, talvez nós possamos ir até ele. A Londres. Tenho a certeza de que consigo juntar-vos, se formos até lá. Nora não sorriu da forma que Marianne esperava. Em vez disso, a expressão tornou-se parada e os olhos velaram-se, como se uma série de finos véus de seda incolor descessem sobre eles, um a um. – O papá também não o receberá lá. – Deixa que eu me preocupe com isso, sim? Vens para Londres comigo? A Mamã também vem, tenho a certeza. – E o papá? – Dir-lhe-ei que vamos comprar aquele novo guarda-roupa em que ele insiste. Se vier, não quererá ficar muito tempo; poucos dos seus amigos estão lá no inverno. – Continuou a analisar Nora, para perceber se o plano lhe suscitava interesse, indiferença ou algo pior. Durante bastante tempo, Nora limitou-se a olhar fixamente para a carta que tinha nas mãos. – Terei de sair – disse. – Para ir às costureiras e assim. A esperança transbordou de Marianne. Nora não havia rejeitado a ideia. – Sim. E possivelmente ao parque, para te encontrares com o Vincent. Exceto isso, não terás de fazer nada que não queiras. – Se prometeres que não vou ter de falar com ninguém a não ser o Vincent, ou fazer visitas ou conhecer estranhos... Se ficares comigo, eu vou. Marianne abraçou-a e beijou-lhe a face. – Dá-me a carta. Escreverei ao Vincent a dizer-lhe o que estamos a esboçar, depois de falar com o teu pai.


– Tornou-se uma pisadura impressionante. – Ives deu a opinião enquanto ele e Lance percorriam a cavalo as quintas da propriedade, depois de uma hora de caça às aves. Lance tocou a face esquerda. Naquela manhã, a visão no espelho não fora bonita. Uma cicatriz num dos lados do rosto e uma descoloração do tamanho de um pequeno punho no outro. – Tens de ver para onde vais – continuou Ives. – Serás a piada do condado se se espalhar que foste contra a aresta de uma porta, distraído por uma mulher bonita. – Ninguém viu. – Não, ninguém viu. O que é estranho, já que se deu quando te encontravas na sala das cartas. Ou então na sala de fumo. Usei tantas desculpas para a tua ausência que não posso saber onde estavas, nessa altura. Assim decorrera toda a manhã: Ives a sondar informação e Lance a fazer de conta que não o ouvia. – Hoje estás muito reservado – disse Ives. – Por vezes um homem gosta mais dos seus próprios pensamentos do que da curiosidade implacável de um companheiro, independentemente da astúcia com que essa curiosidade está disfarçada. – Então agora achas-me demasiado curioso. – Acho. Ives riu-se. – Tal como eu pensava. A tua estratégia ontem à noite não funcionou, de todo. Perseguiste-a, mas ela esquivou-se e evitou-te, e não ficou nada chocada porque não chegaste a apanhá-la sozinha. – Bolas, és demasiado inteligente para mim, Ives. Tinha esperança de manter em segredo o meu absoluto insucesso, mas essa tua mente perspicaz levou a melhor outra vez. – Bateu com o pé no cavalo para galopar e dirigiuse, através de um campo, até uma pequena casa de campo isolada. Ao aproximar-se, abrandou para passo. Ives alinhou-se ao seu lado. Um rapaz de cerca de doze anos apareceu vindo da casa. Era alto e magro, como são os rapazes quando estão a crescer depressa. A camisa mal lhe cobria o tórax e as mangas terminavam dez centímetros acima dos pulsos. Acenou-lhes, espreitando por entre o cabelo cor de palha demasiado


longo e a necessitar de ser lavado. Uma mulher surgiu à porta da casa, segurando nos braços uma criança. Lance chegou, desprendeu duas das aves que ele e Ives haviam caçado e entregou-as ao rapaz. Este agradeceu, mas Lance já tinha virado o cavalo antes de as palavras terminarem. – Esta não é a quinta do James Badger? – perguntou Ives. Lance acenou afirmativamente. – Morreu no verão passado. James Badger fora inquilino desde que eles eram miúdos. Ives olhou por cima do ombro. – Ele não se casou...? – Sim. Ives olhou novamente. – Aquele rapaz. É teu? – Não. – De qualquer forma, é generoso da tua parte deixá-los ficar. A esta hora, o Percy já teria mandado o administrador pô-los daqui para fora. O administrador, um homem que sabia do seu ofício de gestão de terras, queria muito despejar a família de Badger. Explicara como tudo aquilo funcionava, como se Lance fosse demasiado estúpido para perceber que as receitas de uma propriedade derivam das rendas, e que estas serão mais fracas se existirem arrendatários que não conseguem pagar pelas terras que cultivam. – A paróquia ajuda – disse, não fosse Ives considerá-lo estúpido também. – Conto que algum homem bem constituído queira casar-se com a bonita segunda mulher de Badger antes da primavera. – E se não quiser? – Direi ao criado da estrebaria para treinar o rapaz. Pode ter-me agradecido, no entanto os olhos dele não estavam em mim nem nas aves, mas antes no cavalo. Dirigiu-se para a estrada, descendo-a depois até um grupo de casas,


todas em círculo. Outras ponteavam a paisagem em volta. Todos esses arrendatários cultivavam quintas, mas há gerações um duque concentrara ali todas as casas, próximas umas das outras, como se brincasse à construção de uma pequena aldeia que nunca se chegaria a desenvolver. Deixou aves em todas as portas, deixando-as cair da sela à medida que passava com Ives. Começaram depois a circundar de volta à estrada. Ives parou. Olhou fixamente, através de um campo, para uma casa que distava das restantes uns bons quinhentos metros. Esta mostrava necessidade de reparações no telhado. – Devias pôr alguém ali, ou demoli-la. – Penso que sim, devia. Provavelmente, é o que vou fazer. – Um dia, iria queimá-la. Não estava certo do motivo de ainda não o ter feito. – Estás a preservá-la para o caso de seres acusado, para servir como testemunho do verdadeiro carácter dele? Disseste uma vez que acreditas que contenha provas dos seus pecados. Se sim, devo dizer-te que não fará diferença. Os tribunais não aceitam como desculpa para um homicídio que a pessoa assassinada seja merecedora da morte. – És mesmo advogado. Já que eu não sou, nunca me ocorreu que pudesse ser visto como desculpa para o homicídio. – Então porquê? – Bolas, hoje estás uma praga. – Suspirou, mas fez-se a mesma pergunta. Porquê? – Suponho que para me lembrar, no caso de um sentimentalismo fraternal alguma vez levar a melhor. – Bateu com o pé no cavalo para se pôr a galope, evitando ter de simular paciência com o irmão. Entregaram os cavalos aos moços da estrebaria junto a casa. – Amanhã regresso à cidade – disse Ives enquanto entravam em casa. – Terás de arranjar maneira de chocar Miss Radley sem a minha ajuda. – Lance encaminhou-se para a biblioteca e para o conhaque. – A não ser, claro, que já tenhas arranjado. – As palavras de Ives seguiam-no alguns passos atrás. – Primeiro sugeres que falhei redondamente, agora dizes que tive sucesso rápido. – Ocorreu-me que a tua pisadura pudesse ser o resultado de uma luta. Talvez unilateral. Parece que alguém te deu um soco; só que, sendo esse o caso, não foi um grande soco. Inicialmente descartei a hipótese, mas


o teu humor de hoje faz-me reconsiderá-la. – Lance serviu o conhaque. Ives inclinou a cabeça para um lado e outro, examinando a pisadura. – Ela não suavizou o soco, pelo que parece. Caramba, quem me dera ter estado lá. Imagino a tua surpresa. – Se partilhares a tua teoria ridícula com alguém, garantirei que a tua cara fica bem pior do que a minha está agora. A rir-se, Ives afastou-se, virando-se depois para ir embora. – Não direi a ninguém. Exceto à Padua. E talvez ao Gareth. Isso significa que a Eva também saberá, pelo que as irmãs Neville poderão eventualmente ouvir a história. E a irmã e a prima da Eva, e... A porta fechou-se atrás dele, enquanto a lista continuava.


CAPÍTULO 12

Nora apoiou a cabeça nas mãos e suspirou. – Quando disseste que comunicaríamos ao papá que vínhamos a Londres comprar o novo guarda-roupa, não pensei que fôssemos mesmo fazê-lo. – Esperavas que mentisse? – Marianne folheou mais uma estampa de moda, que mostrava um vestido de corte simples. Bonito, pensou, e também prático. Pousou-a no pequeno monte onde guardava os modelos de que gostava. – Não propriamente mentir, só... – Nora fez um gesto para as estampas. Pusera de lado apenas duas, e mesmo essas por insistência de Marianne. – Será um desperdício, pelo menos por mim. Nunca vestirei nada disto. Mais uma referência a como não tencionava mudar nunca o seu estado de retiro da sociedade. Marianne esperara que a solicitude de Nora em ir a Londres significasse que o tio Horace fora sagaz ao levá-la de volta para Trenfield Park. Embora Nora parecesse mais normal nos últimos dias, a sua visão da vida não se alterara, de todo. Marianne questionou-se se conseguiria convencer Vincent a ajudá-la a encorajar Nora. Ele dissera na carta que esperava chegar à cidade naquele dia. Teria de haver uma boa dose de subterfúgios, assim que chegasse. O tio Horace viajara até à cidade com elas, para intervir no arrendamento da casa onde ficariam por quinze dias, e provavelmente também para vigiar as contas com cuidado. Aquela que tinha em mente tornar as contas dignas da preocupação do tio Horace tocou os ombros de Marianne. A Mamã aproximou-se e folheou o pequeno monte de estampas. – Este é muito juvenil para ti. Estoutro é demasiado simples. Não


estás a comprar o guarda-roupa para uma governanta, filha. Já vi que vou ter de intervir na tua indumentária, tanto como na minha. – É a primeira vez que faço isto. A Mamã beijou-lhe a cabeça. – Daí que agora devas aproveitar ao máximo. Durante cinco anos vivemos em privação, mas a nossa sorte está em ascensão. Tens de estar no teu melhor. Uma progressão na vida social não significava que a sorte tivesse melhorado, do ponto de vista de Marianne. Era disparatado a Mamã esperar que, se se apresentassem de forma elegante, algum homem com fortuna própria perdesse a cabeça e se oferecesse à mão de uma mulher de pouco rendimento. Pelo aspeto do monte de estampas da mãe, ela acalentava grandes expectativas de que tal oferta pudesse vir a surgir. A Mamã puxou para a frente as estampas de um traje de carruagem e de um vestido de baile. – Tens de ter ambos. E o adorno na peliça tem de ser de pele de marta. – O tio Horace terá uma apoplexia se lhe apresentar a conta de uma peça de vestuário guarnecida com pele de marta. – Que disparate. Ele ficou encantado por teres proposto esta visita à cidade. Disse-me expressamente para garantir que, ao contrário do que é teu hábito, não te privas de nada. – Tenho a certeza de que ele não pensou que compraríamos luxos, como pele de marta. Agora vá ajudar a Nora, por favor. Eu não tenho experiência nestas coisas, mas ela está completamente perdida. Do outro lado da mesa, Nora fitava uma estampa, a mesma que repousava à sua frente há dez minutos. A Mamã contornou a mesa e sentou-se junto a Nora. Numa voz suave e aduladora, encorajou-a a considerar uma estampa diferente. Marianne voltou às suas próprias decisões. O traje de carruagem que a mãe indicara era, de facto, muito bonito. Quem sabe, se não escolhesse o adorno de pele de marta...


Era raro um duque visitar alguém – muito menos uma mulher – e não ser recebido. Mas foi o que aconteceu quando Lance, decidindo que a pisadura já quase não era visível, cavalgou até à casa de Radley. Queria que a visita tornasse claro a uma certa jovem que, embora a última partida tivesse acabado em empate, ele ainda não tinha terminado. Quando o informaram de que Miss Radley não se encontrava em casa, olhou fixamente para o criado, desconcertando-o. Como se atrevia este rapazola, e aquela mulher, a usar com a sua pessoa esta desculpa tão velha? Ele não era um agricultor local em busca de importunar as senhoras por meia hora; era um duque, caramba. Toda a gente está em casa para um duque. O rapaz apressou-se a clarificar que Miss Radley não estava de facto em casa – toda a família viajara para Londres. Partira subitamente. Fugira. Em termos práticos, escondera-se. Ele deveria ter retomado de imediato a perseguição e tê-la visitado na manhã a seguir à festa, mesmo que tal significasse enfrentá-la ainda com a sua marca no rosto. Dois dias mais tarde, Lance entrou na casa de Londres sem cerimónia nem aviso prévio, o que lançou o pessoal doméstico num pânico de atividade frenética. Ele notou, mas ignorou tudo, em particular o tom ferido e espantado do mordomo acerca da chegada imprevista. Atirando o chapéu e a sobrecasaca a um criado, caminhou a passos largos até à biblioteca, serviu-se de whisky e sentou-se a uma mesa. Quinze minutos mais tarde entregou três cartas ao mordomo, a serem distribuídas de imediato. Chamou depois uma carruagem e saiu para praticar esgrima, a fim de fazer algum exercício. Uma hora na prática com florete e as respostas às cartas começaram a chegar ao Angelo’s, de acordo com as instruções dadas aos destinatários. A primeira, do advogado da família, prometia procurar de imediato a informação requerida, e obtê-la seguramente até ao final do dia. A segunda apresentou-se na qualidade de dois visitantes: Gareth e Ives apareceram justamente quando Lance estava a vestir o colete. Ives levantou o florete que se encontrava encostado numa mesa próxima. – A praticar com o Henry?


– É o que se faz aqui. – Teres-nos chamado aqui não augura nada de bom. Nem o teu comportamento. Pareces maldisposto, Lance. – Maldição, sim, estou maldisposto. Cavalguei muito durante toda a viagem, só parei quando o cavalo pedia. – Então perdeste a carta que te enviei ontem; nela recomendava-te que não viesses. – Tê-la-ia ignorado, se a tivesse lido. Esta é uma situação que um homem não pode deixar inacabada. Diabos me levem se vou dar também a outra face. Achou aquele um comentário espirituoso e irónico. Nenhum dos irmãos parecia divertido; continuavam, em vez disso, a deslocar o peso de uma perna para a outra, a tentar parecer normais quando, pelo contrário, exalavam preocupação. – Zeus, não declarámos guerra à França outra vez – disse. – É um problema menor que depressa será solucionado. Preciso somente de uma pequena ajuda para o tratar. O rosto de Ives adotou a sua expressão mais irritante, a de advogado. – Pede ao Gareth. Eu não o faço. No que diz respeito a esta situação, já fui teu padrinho demasiadas vezes. Que típico de Ives pensar que uma noite a mentir sobre o verdadeiro paradeiro de um irmão equivalia a apoiá-lo num duelo, por lhe servir de padrinho e organizar o encontro. – Espero que não estejas a declinar com base num aborrecido sentido de fair play. – Em parte, sim. O preço é demasiado elevado. Ponderei isto a fundo, Lance, e não te vou ajudar. – Ter-te-ás esquecido assim tão depressa de que usaste a minha casa para seduzir Miss Belvoir, há apenas uns meses? Não fiz eu de teu padrinho durante todo esse tempo, quando a senhora não tinha a mínima hipótese? Dei-te algum sermão sobre equidade? Ives enrubesceu, mas continuou resoluto. A expressão de Gareth também não pressagiava que lhe chegasse ajuda daquele lado. – Ambos me estão a magoar profundamente. Preciso de uma coisa


simples. Um jantar nem vos dará trabalho, já que os criados tratarão de tudo. E embora possam considerar que a minha busca por Miss Radley não é tão própria de um cavalheiro quanto vocês, modelos de decoro, gostariam, a alternativa é... – Um jantar? – interrompeu Gareth. – Ela veio à cidade e preciso que um de vocês a convide, e à mãe, para... – Oh, maldição. Ele não sabe, Gareth – disse Ives. – Ele não viu. Ele não ouviu... Lance levantou uma mão, parando-o. – Viu o quê? Gareth voltou-se para Ives. – Trouxeste-o? Ives levou a mão ao bolso. – Não deves ter andado a ler o Times nos últimos dias, Lance. – Dei uma olhadela às notícias de política. – Bom, isto estava no jornal há dois dias. – Ives passou-lhe para a mão um recorte de jornal. – Promete que te manterás calmo, não atacarás nem farás nada irrefletido.

Para o editor do Times de Londres, do Gloucestershire:

A pequena nobreza e os fidalgos rurais do condado desfrutaram de uma encantadora festa organizada pela mais graciosa Lady Barnell. Esta fez uso da sua própria casa, em vez dos salões de festas de Cheltenham, abrindo aos vizinhos o impressionante salão de baile. Entre os convidados surpresa contavam-se Mr. C. B. Codrington e senhora, que se instalaram em aposentos arrendados em Cheltenham, para passar também a semana. De salientar que o duque de Aylesbury fez uma aparição – a primeira numa festa local desde


há muitos anos, segundo os convidados. Lady Barnell recebeu-o muito calorosamente, e ele pareceu bastante à vontade, apesar da longa demora em obter uma decisão com respeito aos factos que envolvem a morte do último duque. Contudo, o juiz de instrução local confidenciou a vários convidados que previa alterar em breve a sua sentença de «causas desconhecidas» para outra causa, pelo que possivelmente Sua Graça sentiu-se livre para dançar de um modo que lhe é negado há já quase dez meses. Noutras notícias do condado, Mr. Harold Fikes de Gloucester vendeu o terreno na cidade de que é proprietário a um industrial que tem em mente uma fábrica para a produção de...

Lance deixou cair o olhar para o nome do correspondente, atirando depois o jornal para o chão. – Quem diabo é este Tewkberry? Ives encolheu os ombros. – Não me foi apresentado nem indicado em casa de Lady Barnell. Esperar-se-ia que um homem que envia notícias do condado ao Times fosse mais conhecido. – É provável que nem sequer estivesse na festa. Se calhar reúne as notícias através das bisbilhotices – disse Gareth. – Pode não ter noção de como isto agitou as águas outra vez. Lance olhou para ele. – Agitou as águas? – Vamos beber uma cerveja – sugeriu Gareth. – Nessa altura explicaremos. Lance caminhou para a porta, fingindo não ver o esgar de Gareth na direção de Ives. Instalado numa mesa da taberna, fez descer a cerveja antes de reler a diabólica correspondência do jornal. Os irmãos conversavam sobre um certo cavalo em certa corrida, como se os três se tivessem encontrado para passar umas horas a tagarelar. – Como é que as águas foram agitadas? – perguntou, interrompendo a descrição de Gareth da linhagem do cavalo. – Ah, sim, isso – disse Gareth. – A cidade tem estado muito silenciosa. Não há muito de que falar no inverno. – Gesticulou para o jornal. – E agora,


aqui está. – Foi-lhe dada uma nova vida – disse Ives. – Para onde quer que se vá, ouve-se outra vez especulação. Os nossos amigos tentam mostrar-se superiores, mas claro... – Eles estão mais do que dispostos a partilhar connosco as coisas terríveis que os outros dizem – terminou Gareth friamente. – Por outras palavras, é como estar em abril passado outra vez. Dentro de uma semana, o correio terá espalhado as suspeitas caluniosas por toda a parte – disse Lance. Desejava não se importar. Não obstante a sua fanfarronice dos últimos nove meses, havia sentido as chicotadas do escândalo mais do que pensara ser capaz. Talvez porque não era uma espécie mediana de mexerico, mas antes discussões sobre se tinha assassinado um homem. E não só um homem qualquer, mas o seu próprio irmão. Era um pecado especialmente imperdoável. Muito pior do que na juventude ter o cio de um veado, ou agora menosprezar a decência. Não amara Percy; nem gostara sequer de Percy, e nenhum deles lamentava a sua morte. Mas matar o próprio irmão... Saber que toda a gente pensava que poderia ser capaz de algo assim ensombrava-lhe o mundo mais do que esperava. Essa nuvem não encobria apenas o sol. Obscurecia as emoções. Entorpecia-lhe a energia vital. Queria – não, precisava de – escapar à morte lenta e insidiosa do espírito, de que sofria. Havia por isso questionado o mordomo sobre os criados, e interrogado a governanta acerca de quem fizera o quê com as refeições, desde o início da confeção até à entrega nos aposentos. Nenhum deles se mostrara surpreendido com as perguntas. Possivelmente até questionavam a razão de ainda ninguém ter feito perguntas sobre o assunto. Ia começar tudo de novo. No momento nem se importava de não saber quem teria sido, ou quem poderia estar a alimentar Radley com mentiras. O vento fresco que soprara sobre as velas do barco do escândalo esgotara-lhe a capacidade para continuar sequer a questionar. – Vou apenas manter-me firme, como tenho vindo a fazer. Ainda que seja claro que isto nunca vai passar, Ives. Estavas demasiado otimista quanto ao teu semelhante, quando pensaste que passaria. – Já que tens razão, desgosta-me dizer-te que, de facto, é tão mau como na primavera. Dois homens atravessaram a fronteira da especulação para a calúnia. Publicamente. Uma vez que vieste à cidade, vais ouvir falar disto muito em breve.


Lance interiorizou as palavras enquanto pedia mais cerveja. Não admirava que os dois irmãos se tivessem apressado a ir juntos ao Angelo’s. Presumiram que tivesse acorrido à cidade porque ficara a saber das difamações do seu nome. Ives pensara que pretendia que um deles servisse como um verdadeiro padrinho, depois de lançar os desafios. Devia fazê-lo, claro. Não podia deixar passar. E no entanto... aquela lassidão sombria instalara-se-lhe outra vez na alma. Conhecia-lhe o peso demasiado bem; carregara-o dentro de si por muito tempo. Só recentemente se dissipara, concedendo-lhe alguma alegria: desde o dia em que vislumbrara uma bela flor no cemitério, agora que pensava nisso. – Não me digam os nomes deles. Suponho que ambos estivessem embriagados. A menos que um deles seja estúpido o suficiente para falar assim na minha presença, fingirei não saber dos insultos à minha honra. Ives pareceu surpreendido. Gareth não. Como bastardo, Gareth sabia tudo sobre afastar-se de insultos. Se não tivesse aprendido a fazê-lo, teria andado a bater-se em duelos uma vez por mês durante os últimos quinze anos. Um homem aproximou-se então da mesa. Executou uma reverência e presenteou Lance com uma carta, rodando depois sobre os calcanhares e retirando-se. Lance quebrou o selo e leu as duas frases. O advogado fora muito expedito a descobrir onde, em Londres, Horace Radley e a família estavam temporariamente domiciliados. Imaginou Marianne, abandonada ao prazer no jardim. Sentiu de novo o punho dela a atingir-lhe a face. O impulso de rir rasgou por entre a lassidão, como um raio de sol através da luz cinzenta do inverno. Guardou a carta no bolso. – Bom, qual de vocês vai ser o anfitrião do tal jantar?


CAPÍTULO 13

–É tudo demasiado dispendioso – sussurrou Marianne à mãe. Procuravam tecidos para o guarda-roupa numa loja apadrinhada pela nata da sociedade. As peças criavam uma experiência sensorial de cor, textura e toque luxuosos. Outras mulheres faziam o mesmo que elas. Uma senhora, que parecia acompanhada por uma modista, separava todos os tecidos que lhe despertavam interesse e colocava-os numa enorme pilha no balcão. – Deixa-te disso – disse a Mamã. – Nem mais uma palavra. Não é natural continuares a queixar-te do preço, quando não serás tu a pagar a conta. – Estou a imaginar a cena quando as contas chegarem ao tio. – Oh, tolice. A mulher dele sabia como gastar, melhor do que a maioria. Atrevo-me a dizer que Sir Horace está à espera que façamos o mesmo. Se não estiver... – A Mamã encolheu os ombros, para expressar a sua indiferença. Fitou depois a pilha sobre o balcão. – Que mal-educada. Aquela mulher está a reservar o melhor para ela. Não fará uso de tudo, mas quer garantir que mais ninguém considera nenhum daqueles tecidos até ela ter decidido. Marianne continuou a examinar os tecidos, tentando evitar fazer o mesmo que a mulher mal-educada. Muito do que via iria para a sua própria pilha privada, se conseguisse reunir a coragem necessária para ter uma. Até então entregara apenas duas peças aos funcionários. Tentava restringir as escolhas, para não ter de permanecer ali toda a tarde. – Marianne. – A mãe pronunciou o seu nome num murmúrio marcado com premência. – Olha quem acabou de entrar na loja. Olha.


Marianne não olhou. A mãe chamava-lhe sistematicamente a atenção para ilustres, para que pudessem ambas abrir a boca de espanto. O facto de a mãe reconhecer tantos deles remetia para o tempo em que o pai era vivo, quando o casal gozava a temporada em Londres. Continuou a análise minuciosa dos produtos da loja, mas gradualmente tomou consciência de um silêncio que descia sobre as clientes. O funcionário que a acompanhava deixou-a e desapareceu. Não demorou muito até não se ouvir um único som, à exceção de botas a andar pelo chão de madeira e depois a parar. A mão da mãe aproximou-se do braço de Marianne como uma garra de águia. – Tens de te virar – sibilou. Marianne voltou-se para a mãe, que olhava para a loja com um sorriso aberto. Exasperada, virou-se para ver o que é que pusera a mãe com aquela expressão. Aylesbury estava a cerca de três metros, observando-a. Vénias, reverências, saudações, boas-vindas. Marianne cumpriu os rituais, o olhar firmado na face do duque durante todo esse tempo. Os vestígios de uma nódoa negra mostravam-se num pequeno padrão de amarelos e púrpuras. Aylesbury percebeu no que Marianne estava a reparar. O sorriso dele, assim lhe pareceu, adquiriu um carácter perigoso. As outras clientes fingiam tratar das suas vidas, mas os olhares permaneciam sobre ele. – O que tem aí? – perguntou, juntando-se a Marianne no balcão. Tateou a lã verde que ela havia escolhido e a seda crua cor de rosa. A mãe pairava em volta do ombro de Marianne. – Bonito. Todavia, creio que precisa... – Ele olhou para as prateleiras, contraindo os olhos. Apontou. – Aquilo, ali. A cor violeta. Dois funcionários apareceram do nada. Um deles esticou-se para agarrar o tecido. – É transparente, feito da melhor seda tecida – disse o outro. – Necessitará de uma camada por baixo, naturalmente. Ou da mesma cor – estalou os dedos e apontou para o colega, para que fosse buscar outra peça – ou, se a senhora for aventureira, de uma cor diferente. Veja como joga com a luz quando incide sobre este azul. Cada movimento transformará as cores.


– Mais um estalido, e outra peça apareceu. – Penso que ficaria melhor sem nada por baixo – disse o duque. – Só camadas disto. Talvez atado com um cordão dourado. – Quer dizer à la sauvage? – perguntou a mãe. – Oh, Deus, isso já não se usa, Sua Graça. Passaram-se anos desde que as mulheres se vestiam assim, e mesmo na altura era escandaloso para muitos. – Verdade. As memórias da minha juventude levam a melhor. Uma camada inferior, tem de ser. Desde que seja da mesma cor. Não concorda, Mrs. Radley? – Absolutamente, Sua Graça. Marianne voltou às suas próprias escolhas. Ninguém lhe perguntara que camada inferior ela queria. A mãe afastou-se para fazer as suas compras, mas Marianne pensou que toda a atenção estaria numa qualquer conversação com Aylesbury. O duque avançou despercebidamente para junto de Marianne. – O que faz aqui? – sussurrou ela, sem virar a cabeça. – Os homens não vêm a lojas destas. Os duques não vêm, com certeza. – Devíamos vir. É um deleite para os olhos. Quanto à razão de eu estar neste lugar: fui ao seu endereço de Londres e disseram-me que se encontrava aqui. Audacioso da parte dos criados terem-no partilhado. Era provável que o duque os tivesse intimidado. Não conseguia imaginar nenhum dos criados temporários, ou sequer Katy ou a velha Jane, a recusar a informação, caso ele a solicitasse. – Vai ficar muito entediado. A minha mãe e eu ainda temos de escolher tecido para vários conjuntos. – Eu ajudo. São aquelas as estampas de moda? – Estendeu-se para alcançar as folhas que Marianne tinha trazido e que se encontravam pousadas no balcão. O empregado obsequiou-o, entregando-lhas. Toda a gente na loja os observava, mas fingia não o fazer. Marianne tentava mostrar-se indiferente, mas ter Aylesbury a inspecionar-lhe o novo guarda-roupa mortificava-a. Ele estudava cada estampa com cuidado. Não conseguia perceber porquê. – Estes não são um mau começo – disse ele. – Ainda que este vestido de jantar pareça um pouco antiquado para si. Todos estes folhos no pescoço


não favorecem. Diga à modista para os eliminar, se é que não o fez já. Assim se ocupou ele durante a meia hora seguinte. O funcionário concordou com todos os conselhos oferecidos por Sua Graça. Mais decidido do que Marianne, trabalhou com habilidade no guarda-roupa, fazendo-a escolher isto ou aquilo, ambos com a devida aprovação da sua pessoa, quando ela não conseguia optar por um sozinha. – Parece que terminámos. – Aylesbury pousou firmemente as estampas e com um gesto vago mandou o empregado embora. – Agora está livre para se juntar a mim durante a tarde. Vou ao parque. No inverno tem uma beleza frugal, mas inegável. A Mamã surgiu ao seu lado. – Que generoso da sua parte, Sua Graça. Tem também a minha gratidão por a encorajar a não ridicularizar as escolhas de tecido. Agora as modistas podem começar a trabalhar. Temi que, com as opiniões inconstantes da Marianne sobre o assunto, os vestidos novos não ficassem prontos nem em seis meses. Lance riu-se com delicadeza; a mãe de forma mais vigorosa. – É uma oferta muito generosa, Sua Graça – disse Marianne. – Contudo, prometi passar a tarde com a minha prima. Não ouso desapontála. – Marianne retraiu-se quando, de súbito, uma dor lhe disparou no pé. A Mamã pisara-a, de forma impercetível. – Terei então de encontrar consolo em proporcionar a ambas um regresso a cavalo até casa. O meu coche está lá fora. – A carruagem do meu tio... – Uma dor aguda atravessou-lhe o lado. Lançou um olhar furioso à mãe, que era toda inocência e olhava apenas para o duque. – Ficaremos tão agradecidas, Sua Graça – disse a Mamã. – Permitame dar uma palavra ao proprietário sobre o envio do tecido à nossa costureira. A Mamã tornou-a uma palavra privada. Juntou-se depois a Marianne e desfilaram para fora da loja com o duque a segui-las. – Não precisava de me golpear com tanta força – murmurou Marianne. – Estavas prestes a recusar um passeio no coche de um duque. A carruagem de Sir Horace voltará sem nós – sussurrou a Mamã. – Pelo caminho, deves recordar-te de que prometeste estar com a Nora amanhã à


tarde. – Não, porque é hoje. A Mamã olhou para Aylesbury por cima do ombro e sorriu. Inclinou depois a cabeça para perto de Marianne. – Ouve-me, filha. Ele seguiu-te até aqui. Até Londres. Estou certa de que sim. Não sejas demasiado orgulhosa, ou ele poderá perder todo o interesse em ti. – Não quero o interesse dele. Como as coisas estão, se alguém na loja o reconheceu, posso ser tema de mexericos. – Mexericos do melhor tipo. Já expliquei tudo isso. – Mamã, ele esteve ali e ajudou a escolher o meu guarda-roupa. Se tivesse visto aquilo a acontecer, o que pensava? O que é que imagina que Mrs. Wigglesworth pensaria, e confidenciaria a todas as pessoas que conhece? A expressão da mãe cedeu. – Não pensaria... – Sim, pensaria. O coche de Aylesbury era grande, elegante e ostentava o brasão na porta. Marianne desejava que ele não tivesse trazido aquele; toda a gente ficaria a saber quem é que perdera tempo a ver tecidos com Miss Radley. O duque ajudou-as a entrar pessoalmente. A Mamã quase dava risadinhas ao acomodar-se no elegante assento de veludo, ao lado de Marianne. Quaisquer preocupações com a reputação da filha haviam desaparecido. Para surpresa de ambas e alívio de Marianne, o duque não as acompanhou. – Deixo-as ao vosso caminho – disse ele através da janela. – Uma vez que estou privado de companhia, irei eu próprio fazer compras, em vez de visitar o parque. Marianne começou a agradecer-lhe, mas ele já se tinha ido embora. – Conduziste isto sem qualquer arte, filha. Podíamos ter sido vistas a passear no parque com um duque. Em vez disso, seremos levadas a casa como simples bagagem. – A Mamã fungou. – Estou muito dececionada.


Muito.

Nora contorcia as mãos juntas no colo, à medida que a carruagem se aproximava de Hyde Park. – Estou tão entusiasmada. Espero que ele seja pontual, porque não consigo esperar. A carruagem chegara a casa delas pouco depois de o coche do duque ter feito a entrega da bagagem. Marianne demorou-se no primeiro nível para a poder intercetar. O cocheiro fez apenas um aceno com a cabeça quando ela explicou que queria sair outra vez em breve. Percebeu que o mais provável era que ele a levasse, a qualquer hora, ao sítio que quisesse. Possivelmente não sentia qualquer obrigação de relatar acontecimentos acerca dos quais pensasse que Sir Horace devia ter conhecimento. Tendo uma vida bastante monótona, tudo o que queria era ir a um parque. Encontravam-se então a entrar num, atravessando um grande portão. – Vês, não está aqui quase ninguém – disse a Nora, apontando para fora da janela. – É cedo para o grupo da moda passear, e para muitas pessoas está demasiado frio para sequer dar uma volta. – Não muitas, mas estão algumas pessoas. Tenho mesmo de sair e andar? – Se queres ver o Vincent, sim. A carruagem parou pouco depois de entrarem no portão. O cocheiro abriu a porta e pousou as escadas. Nora observou a porta aberta por longos instantes. Marianne começou a preocupar-se que a prima não saísse, que nem mesmo o adorado irmão a conseguisse atrair a andar por entre a sociedade. Depois Nora contraiu o rosto e precipitou-se para a porta, quase caindo antes de o cocheiro conseguir agarrá-la e ajudá-la a descer. Marianne seguiu-se e juntas caminharam placidamente pela vereda em direção ao lugar onde Vincent escrevera que ia esperar. Aylesbury estava certo. O parque no inverno possuía uma beleza


especial. Nuvens prateadas silenciavam as cores e criavam uma paleta de cinzentos, castanhos e verdes mais escuros. Gostaria ele, de facto, daquela beleza ou fora só uma desculpa para solicitar a sua companhia, como a Mamã pensava? As outras conclusões da mãe fluíram-lhe pela mente. Aylesbury seguira-a? Tinha realmente interesse, ainda que temporário? A atenção dele elevaria o seu valor, tanto quanto a Mamã pensava? Achava difícil de acreditar. Os homens não são estúpidos. Quando estivesse tudo dito e feito, ela continuaria a ser uma mulher solteirona, com tão poucos rendimentos que inspirava dó. De súbito, Nora libertou-se e começou a correr. Marianne olhou em frente e percebeu porquê: alto, loiro e elegante no seu uniforme naval, Vincent saudava-as mais adiante. Nora correu, abriu muito os braços e atirou-se para ele com alegria. O contentamento preencheu também Marianne, e não apenas por ver a prima tão feliz.

– Quanto tempo ficarás em Londres? Marianne fez a pergunta enquanto Nora se aconchegava no abraço de Vincent. Sobre a cabeça dela, Vincent olhou para Marianne. – Apenas dois dias. Houve uma mudança de planos no meu barco. Foi até uma sorte conseguir sair. Nora não parecia ouvir. Vincent soltou-se dos braços dela e afastou-a um pouco. – Estás ainda mais bonita, Nora. Não achava que fosse possível. Ela estava bonita, naquele momento. Vigilante, feliz e cheia de vida. Marianne rezava para que, dentro de três dias, restasse pelo menos uma pequena fração daquela energia. – O papá não sabe que viemos – disse Nora. – Esgueirámo-nos, e vamos esgueirar-nos outra vez. A Marianne organizou tudo. Foi muito astuta. – Eu fui astuta? Foste tu quem arranjou maneira de os criados intercetarem as cartas do Vincent, assim que chegámos à cidade.


Nora sorriu. – Acho que fui astuta, não fui? – Nora deu o braço ao irmão e caminharam os três juntos. – Tive de concordar em comprar um guardaroupa novo para podermos vir para Londres. Pelo menos a Marianne também vai receber um, e por isso acho que consigo aguentar. Vincent riu-se. – Aguentar um novo guarda-roupa? Que pérola tem o teu pai em ti, que não lhe custas milhares por ano em vestuário. – Olhou para Marianne. – Tu também estás ainda mais encantadora, Marianne. Disse-o com sinceridade, talvez. Contudo, faltava algo na maneira como Vincent a olhava. Oh, ela viu gratidão, por cuidar de Nora. E apreço pela sua personalidade. Sempre vira todas essas coisas boas nos olhos de Vincent. O que nunca viu foi amor, nem sequer fascínio; nunca vislumbrou uma centelha de intimidade que fosse, além da proximidade que mantinham devido à irmã. Mesmo nesse momento, em que a elogiava, nada nele insinuava o interesse de um homem por uma mulher. Lembrou-se de como antes isso a afetava de modo tão profundo, de como chorara, também, por ele nunca lhe ter mostrado qualquer afeto especial. Já não chorava nem sonhava. Tudo parara há três anos, quando Nora mudou. Vincent combinou visitá-las no Wiltshire tão breve quanto pudesse, e chorou depois de passar uma hora sozinho com a irmã e o seu olhar vazio e sem vida. Marianne confortou-o, assistiu ao seu sofrimento e à sua revolta. O que não viu, nem mesmo ao abraçá-lo enquanto chorava, foi um homem que pensasse nela como mais do que a única hipótese que Nora tinha de conseguir a ajuda que ele, como a carreira ditava, não lhe podia dar. Vincent olhava-a agora com calorosa afeição, mas nada mais. Foi, porém, o suficiente para lhe acelerar o coração. Para lhe trazer alguma alegria. Ainda o suficiente para ela desejar muito que as coisas tivessem sido diferentes. É melhor ter amado e perdido... – Tenho jardinado – contou-lhe Nora. – Tens mesmo? A sujar-te na terra e assim? – Não sejas tonto. Isso nunca poderia ser. Jardino no meu quarto. Tenho lá uns vasos com plantas dentro. Tomo conta delas.


– Parece ser um bom passatempo. Pode ser que um dia tenhas uma daquelas estufas só para as tuas plantas, ou convenças o teu pai a acrescentar um jardim de inverno à casa. Nora ponderou. – Pergunto-me se o papá concordaria. O mais provável é que não. Está zangado comigo porque eu não me quero casar. Vincent quase parou de andar. A expressão turvou-se. Olhou com ar trocista para Marianne. – Desistiu da ideia – garantiu ela. – Estava louco? – Diria que estava demasiado otimista. Creio que a Nora o convenceu a abandonar a ideia. Pelo menos por agora. – Não queria prometer que o tio Horace tinha desistido definitivamente da ideia. Pelo que sabia, logo que a tentativa de suicídio de Nora passasse à história, o pai poderia animar-se outra vez para lhe fazer um bom casamento. – O papá está apaixonado – disse Nora. – Creio que esperava que eu me casasse bem o suficiente para o elevar para a senhora que ele quer. A observação espantou Marianne. Para alguém que parecia alheada do mundo, Nora depreendera muito. – Isso é verdade? – perguntou Vincent a Marianne. – Penso que está razoavelmente próximo. Nem sempre compreendo os motivos do meu tio para fazer o que faz. – Não estás sozinha. Nunca percebi aquele homem. – Se nos fizeres uma visita, talvez eu consiga convencê-lo a receberte. Seria melhor se a relação com a tua irmã não fosse uma questão de subterfúgios. Vincent olhou para Nora e depois para Marianne. – A última vez que os visitei, ele não queria permitir que eu a visse, apesar da doença. Se não a tivesse mandado para Cherhill, para morar com vocês... – O seu maxilar tornou-se tenso. – Só o fez para seu próprio bem, mas acabou por ser bom. Ela tem-te, Marianne; não imaginas o conforto que me dá saber que ela ainda te tem. Continuou a deambular enquanto Vincent relatava os lugares por


onde o navio havia passado. Deliciou a irmã com as descrições de pessoas e de terras desconhecidas. Marianne escutava, mas os pensamentos habitavam as últimas palavras que Vincent lhe dirigira. Ele pressupunha que Marianne iria estar sempre ali para Nora. Pensava que nunca se casaria, nunca seria confrontada com a escolha entre os cuidados da prima e a vida com um homem. Não tinha nenhuma razão para acreditar que seria assim, mas acreditava. Para Vincent, ela não estava quase na prateleira; já estava lá presa há muitos anos, pela idade e pela falta de fortuna.

No dia seguinte, Vincent organizou um passeio no rio. Como oficial da Marinha, encontrar uma veículo que flutuasse era muito fácil. Conseguiu um barco de recreio de luxo, que parecia uma barca enfeitada para uma festa. Viajaram nele rio acima, até Vauxhall Gardens. – Quero ir contigo quando voltares para o navio – disse Nora, a meio da explicação de Vincent sobre o fogo de artifício organizado no parque em algumas noites de verão. – Posso vestir-me de rapaz e ser tua criada. Vincent riu-se. – Isso é que era bom. E se fosses descoberta? – Imagino que me mandassem para casa. – Mandariam, de facto. Sozinha. Eu não te poderia acompanhar na viagem de regresso. Nora contraiu os lábios. – Podíamos certificar-nos bem de que eu não era descoberta, não podíamos? Vincent percebeu que ela falava a sério. – Querida, isso não se faz. Podes imaginar porquê. Por vezes, em navios muito grandes, a mulher do capitão acompanha-o, se a viagem for uma das longas. Mais ninguém tem esse privilégio. – O teu capitão leva a mulher? Talvez eu possa ser criada dela. De certeza que não é servida por um rapaz.


Vincent olhou para Marianne desamparadamente. – Nora, estás triste apenas porque o teu irmão nos deixará hoje. Não queres mesmo ir, pois não? Quem tomaria conta das plantas no teu quarto, então? Eu não terei tempo para isso. Os olhos de Nora obscureceram-se. – Se um dia te tornares capitão podes levar a tua irmã, em vez de uma mulher? Vincent hesitou na resposta. Marianne supôs que significava que talvez pudesse levar. Só que não queria, ou quereria? – Espero um dia ter uma mulher, Nora. Não a poderia deixar para trás e em vez dela levar uma irmã. Ela não ia gostar. – Quando? Quando é que vais ter uma mulher? Continuo à espera, mas tu nunca tens – disse Nora. – Uma vez prometeste que quando te casasses me levarias de casa do papá, para viver contigo. Lembras-te? A boa memória de Nora inquietou Vincent. – Suponho que me casarei quando conhecer a mulher certa. É frequente isso demorar muito tempo. – Muito, muito tempo, parece. – Nora mordiscou o lábio, a pensar. – Acho que devias casar-te com a Marianne. Seria perfeita, e é muito bonita. Assim poderíamos morar todos juntos. Ele não se riu. Marianne sorriu-lhe. Em vez disso, ele olhou-a, desorientado, com uma expressão que assumia que ela entendia tanto quanto ele o humor de tal ideia. Esperava que Marianne saltasse para a conversa e dissesse a Nora que a sugestão era demasiado estranha para ser admitida. Marianne não disse nada. Limitou-se a esperar que Vincent conseguisse escapar. A expressão dele caiu. Parecia distante, embaraçado. – Não creio que Marianne pense em mim como um potencial marido, Nora. Há demasiado tempo que somos como irmãos. Além disso, ela pode arranjar muito melhor. Nora pouco reagiu. Alguns minutos depois, falou como se não houvesse passado tempo nenhum.


– Acho que é verdade, ela pode arranjar melhor. Afinal, dançou com um duque. Com um perverso duque Hemingford. Com o novo duque de Aylesbury. Foi a vez de Vincent aguardar, com admiração no olhar. Marianne gostou bastante da sua expressão atónita. – Não dês muita importância a essa dança, Nora – disse. – Ele estava apenas a ser cortês, uma vez que nos tínhamos conhecido. Embora a Mamã insista que assim o valor de uma mulher sobe, duvido que seja verdade. – Olhou para a margem do rio. – O que é que está ali, Vincent, com o jardim grande? Vincent voltou às explicações sobre os lugares. Contudo, ao longo do resto do dia, Marianne iria encontrá-lo a olhá-la de um modo diferente do que olhara até então.

Nessa noite, ao jantar, o tio Horace anunciou que regressaria a casa pela manhã, mas que as senhoras deviam permanecer toda a quinzena em Londres, de forma a conseguirem fazer algumas provas. – Que amável, papá, e que generoso. – A reação de Nora apanhou o tio Horace de surpresa. Ela nunca falava às refeições, e muito menos com ele. Marianne verificava que o tempo passado com Vincent dera frutos maravilhosos. Nora continuava animada e conversadora. Não se punha a olhar pela janela. Parecia bastante normal, naquela noite. – Obrigado, filha. Fico feliz por te ver satisfeita. Pode ser que um dia, quando estiveres preparada, sejas tu a satisfazer-me. Marianne desejou estar perto o suficiente para lhe bater com o pé debaixo da mesa. Será que não conseguia aceitar a gratidão da filha e, em consequência, ficar contente por Nora mostrar melhorias? Tal como previa, a vaga referência aos planos para Nora remeteu-a de volta ao silêncio. – Que pena que tem de partir, Sir Horace – disse a Mamã com os olhos a cintilar, com o brilho que costumavam ter quando ela estava prestes a explodir, por algo delicioso demais para guardar para si mesma. – Esperava que estivesse cá, para podermos partilhar consigo o que soubermos quando


formos jantar com Aylesbury. Marianne olhou para a mãe. O tio Horace também. Nora continuava a jantar. – Quando ocorrerá o ilustre evento? – perguntou Horace. – Dentro de três dias. Recebi hoje o convite. Por mensageiro, nada menos. Será um jantar informal. Os irmãos estarão presentes, assim como as mulheres. E a Marianne e eu. – A Mamã disse a última parte com ar de triunfo. – A mulher de Lord Ywain será a anfitriã, mas assegurou-me, numa carta privada escrita pela sua própria mão... uma boa mão, de resto... que o próprio duque trará o coche até aqui e nos acompanhará pessoalmente. O garfo do tio Horace parara a meio caminho da boca ao ouvir a ladainha de condescendência aristocrática. Pousou o utensílio. – Parece-me então que terei de ficar. – Não é necessário. O convite foi para mim e para a minha filha. – Não obstante, tenho de ficar. Para saber tudo, como disse. – Posso escrever-lhe. – Seria rude não receber o duque quando as visitar. – Não creio que ele tencione sentar-se e conversar. – Eu vou ficar. A Mamã encolheu os ombros. – Como desejar. Claro, os nossos vestidos novos não vão estar prontos a tempo deste jantar. Teremos de comprar algumas peças para atualizar os nossos velhos conjuntos. Sei que não se importa. Tenho a certeza de que quer que o deixemos orgulhoso e não pareçamos mulheres de uma família sem meios. Os olhos do tio Horace estreitaram-se sobre a Mamã. Marianne quase conseguia ouvir as coisas grosseiras que ele estava a pensar e os cálculos que fazia. Lá vão mais cinquenta libras, no mínimo. A Mamã cerrou o olhar com o dele, desafiando-o a objetar. Sabia que o tinha encurralado. Ele também. – Esforce-se apenas por não se exceder – resmungou ele. – Quero também ver que dois terços foram empregues na rapariga, e não em si.


Marianne presumiu que fosse ela a «rapariga». Que generoso. Que divertido. Que estranho. Voltou à sua refeição, a pensar num cobiçado e dispendioso toucado que até então negara a si mesma.


CAPÍTULO 14

–Por favor, não insistas nisto. Lance ignorou o pedido enquanto saltava para fora do coche. Se não soubesse que era Gareth e não Ives quem estava consigo, as palavras, por si só, ter-lho-iam dito. Ives não teria incluído o Por favor. – É necessário. É a única forma de lidar com essa bisbilhotice malformada. Encaminhou-se para a sala de jogo que tão bem conhecia. Gareth alcançou-o. – É só que, na última primavera, foi neste sítio que Ives bateu num homem para proteger o teu nome. Aqui há bebida a mais e bom senso a menos. Porque não desafiá-lo antes no teu clube? Já o fizera. A experiência não fora agradável. Ninguém lhe havia dito palavra mas, para onde quer que fosse, passava por um zumbir de sussurros, tal como um marinheiro podia ser forçado a passar um desafio. Crente convicto de que a dor devia ser suportada toda de uma vez, em vez de se sofrer mil pequenos cortes, decidiu que naquela noite arriscaria umas estocadas de espada, antes de ir buscar Marianne e a mãe. Esperançosamente, os mais estúpidos dos homens ainda não estariam embriagados e manteriam a distância. Infelizmente, não era para ser. Mal entrou no vestíbulo, um grupo de homens na mesa de faraó reparou nele. Observaram-no, rindo, picando-se uns aos outros e boquejando de maneiras que, pouco depois, os fizeram rir às gargalhadas. – Por favor, não vás lá – disse Gareth ao seu lado. – Claro que não. E agora porque é que não vais pedir-lhes para não


virem para perto de mim? – Ocupou o seu lugar na roleta. Os outros acalmaram, e não por respeito à sua posição. Como se não fosse já mau o suficiente, perdia consecutivamente. No espaço de um quarto de hora perdera quinhentas libras. – Terminaste? – perguntou Gareth. Recuou um pouco, meio de lado. Lance supôs que aquela posição visava intercetar qualquer pessoa que pretendesse arranjar sarilhos. Lamentavelmente, o sarilho veio do outro lado, e não era do tipo que ambos esperavam. – Aylesbury. – A voz forte soou humilde e séria. Lance não olhou, mas continuou a fitar a roleta e as apostas. – Carlsworth. Estranho vê-lo aqui. – O barão Carlsworth acalentava ambições políticas, do tipo que não melhora por se ser avistado em salões de jogo democráticos. Muito menos em tempos em que a democracia não é popular junto daqueles que exercem o poder. – Vim acompanhar um sobrinho a pedido do pai, para vigiar a bolsa da família. – Carlsworth condescendeu a fazer uma aposta em nome próprio. Uma muito pequena. – Ainda não conhece o meu irmão. – Continuando a jogar, Aylesbury fez as apresentações. Carlsworth, um homem rígido por natureza, tornouse ainda mais rígido. – Gostaria de lhe dar uma palavra, Aylesbury. Em privado. – Não vejo porquê. Seria a primeira palavra desse tipo que algum dia tivemos. Se pretende queixar-se dos meus votos nas leis imbecis que foram aprovadas em dezembro, assevero-lhe que já homens melhores falaram de mim por causa do assunto. Poucos lordes haviam gostado do seu voto e do seu discurso, o único que fizera no Parlamento até ao momento. Aquele projeto de lei representava a única vez em que desejara ter vivido uma vida melhor. A sua oposição teria tido mais peso, se fosse o caso. – É do seu interesse, garanto-lhe. – Carlsworth murmurou-lhe as palavras ao ouvido, como uma amante. Lance empurrou Carlsworth. – Oh, raios partam, está bem. Gareth, fica atento aos meus ganhos.


– Não há ganhos. Não, não havia. Perdera mais umas centenas. Afastou-se a passos largos, gesticulando a Carlsworth para que o seguisse. Encontrou um canto isolado. Não desgostava de Carlsworth. Simplesmente nunca reparara muito nele. Mas agora sim. Magro, débil e mediano de altura, Carlsworth apresentava como traço fisionómico mais notável uma testa muito grande, que se agigantava sobre os olhos demasiado pequenos para a carregar. Visto que o cabelo ruivo começara a formar entradas, aquela testa tornava-se maior de mês para mês. – Quero que saiba que lhe falo como amigo – disse Carlsworth. – Espero que pense em mim nessa qualidade. Arrisco-me a aborrecer homens importantes ao contar-lhe o que estou prestes a revelar. – Ele queria algo. Lance estava mais ou menos à espera de em seguida ouvir a chantagem. – Soube, e por favor não me peça para lhe dizer por quem, que as discussões recentes sobre a morte do seu irmão trouxeram de novo o assunto à atenção do primeiro-ministro e de outras pessoas de elevada posição. – Diz-se que o rei está no leito de morte e eles preocupam-se comigo? Seria melhor ocuparem-se a planear a transição para um novo monarca. – Ao que parece, preocupam-se com a perceção do assunto, não consigo. Aylesbury não gostou da forma como Carlsworth proferiu aquelas palavras. Tão seriamente. Tão confidencialmente. – Continue. – Liverpool pediu a Eldon para considerar nomear um mordomo-mor. Uma densidade instalou-se no peito de Lance. Lord Eldon era o mais alto magistrado judicial. Presidia à Câmara dos Lordes. Se fosse nomeado um mordomo-mor, seria para o julgamento de um dos pares. Muito provavelmente Eldon ficaria com o cargo, também, pela duração. – Continue. – Ele, Liverpool, pensa que a morte de um nobre não deve ficar tanto tempo por resolver. Nem, considerando as disposições lá fora, no continente, deve pensar-se que um nobre escapa ao julgamento em virtude da sua classe. – Carlsworth esboçou um ar de desculpa e pesar, como se desejasse não carregar notícias tão infelizes.


– Porque é que me está a contar isto? Carlsworth perturbou-se. – Pensei que devia saber. Logo que o rei morra, isto é, pouco depois, poderá ser dado algum passo. O que é que queres em troca por me avisar? Não teve de perguntar. Como tantas pessoas, Carlsworth desejava ter um duque como amigo. Como uma conexão. Ou, neste caso, talvez no bolso, não fosse ele apanhar um resfriado que só um lenço ducal poderia aliviar. – A sua consideração não será esquecida. – E com essa, Lance dirigiuse de novo para a mesa da roleta. – Ganhaste alguma coisa? – perguntou a Gareth. – Não vou jogar com o teu dinheiro. – Podias ter jogado com o teu. – Apanhou o que restava na mesa. – Agora tenho uma família. Não jogo. – Já não fazes muitas coisas. Como é que aguentas? Gareth sorriu como um homem que tem um segredo que não deseja partilhar. Lance dirigiu-se à porta e ao coche. A disposição agradável que o acompanhara ao sair de casa naquela noite abandonava-o a cada passo. Não sabia o que o desanimava mais – que o alto magistrado pudesse começar a defender um julgamento na Câmara dos Lordes, ou que Gareth Fitzallen, infame sensualista e praga de maridos aristocratas por toda a parte, tivesse sido completamente domesticado.

Lance estava sentado na biblioteca da casa arrendada de Radley, a pensar que não se importaria de se embriagar. Sir Horace encontrava-se sentado com ele. Aguardavam a descida das senhoras, depois de as senhoras completarem tudo o que as senhoras fazem para se arranjar. – Amanhã regressarei a Gloucester – disse Radley. – Para trocar impressões com Peterson?


Radley pareceu chocado. – O que quer dizer? – Segundo um tal Mr. Tewkberry, o juiz de instrução pensa que a questão relativa à morte do meu irmão ficará resolvida em breve. – Quem diabo é esse Tewkberry, isso gostava eu de saber. – Não mais do que eu gostaria. Radley tentou um sorriso pacificador. – Asseguro-lhe que, se Peterson tem tal intenção, não me informou. – Afirmou que conseguiria influenciá-lo; já que ele parece pensar que há desenvolvimentos em marcha, simplesmente me questionei se o senhor fez o que disse. – Veja bem, sou um homem de palavra. – Olhou para a porta para se certificar de que estava fechada e de que ninguém estava prestes a entrar. – Confesso que desejava que tivesse dado à minha sobrinha mais atenção do que uma dança naquela festa. Contudo, quando soube deste jantar... Não sou um homem impaciente e parece que os assuntos estão a progredir satisfatoriamente. – Pode não ser impaciente, mas os outros são. Quanto a esse Tewkberry, deveria rezar para eu nunca me cruzar com ele. – Depois de ter deixado Gareth em casa para seguir para o jantar, passara o tempo a pormenorizar mentalmente as afrontas que vingaria no desordeiro, assim que o encontrasse. – A conversa vai acalmar. Acalma sempre. E uma vez resolvidas as coisas com a minha sobrinha... Nessa altura, a porta abriu-se. As senhoras entraram. Mrs. Radley não poderia ser descrita como nada senão atraente. Naquele dia tivera muito cuidado com o vestido e a aparência, em especial num xaile de seda estampado que lhe caía ricamente dos ombros aos joelhos, sobre um vestido cor de pergaminho. Entrou primeiro, ofuscando a filha. Uma vez dentro do aposento encostou-se para o lado, de modo algo teatral, para revelar Marianne. Nem mesmo o humor de Lance pôde vencer a sua reação ao vê-la. Estava encantadora no mesmo vestido azul-gelo que vestira para a festa, agora melhorado com efeitos prateados. Um agasalho fino caía-lhe


fluidamente pelos braços, numa cor que variava entre o cinzento e o azul quando se movia. Todo o seu ser aqueceu. Uma excitação fervilhou, ameaçando converter-se em algo mais. Aylesbury avançou e ofereceu um braço a cada uma das senhoras.

Dois filhos do velho duque haviam desposado mulheres muito interessantes. Marianne imaginou que, em algumas salas de estar, fossem usadas outras palavras para as descrever. A mulher de Mr. Fitzallen, Eva, notoriamente grávida, recusou todas as tentativas de a tratar como uma decoração frágil ou, pior, como uma inválida. À parte os efeitos óbvios na silhueta, nunca se imaginaria que a gravidez já estava avançada. O marido mencionou que Eva pintava, e haviam mesmo visitado Itália para que pudesse estudar com um artista famoso. Ainda tinha aulas, apesar da sua condição. A mulher de Lord Ywain poderia ser considerada estranha em todos os sentidos, embora fosse mais do que evidente que o marido a adorava. Uma mulher muito alta, não parecia considerar que a sua estatura invulgar pudesse ser julgada pouco atraente. Na verdade, a menos que Marianne não tivesse visto corretamente, naquela noite estava mais alta do que era normal. Marianne reparou que nos sapatos se destacavam pequenos tacões. Antes do jantar, a Mamã comentou o nome de batismo de Padua e recebeu uma breve explicação de como os pais se haviam conhecido e apaixonado naquela cidade, na altura em que a mãe frequentava a universidade. – Ela pretende fazer o mesmo – disse Aylesbury, associando-se à conversa ao passar. – Convenceu o meu irmão de que é uma ideia esplêndida, não convenceu, Padua? – Na verdade, o seu irmão insistiu para que fôssemos e que neste inverno eu me dedicasse a preparar-me para os meus estudos. – Os olhos escuros e brilhantes não vacilaram sob o olhar do duque. – Até exigiu que fosse parte do nosso acordo de casamento. Concluir que não gostavam um do outro seria dar demasiada importância a tão breve interação. Mesmo assim, Marianne detetou entre eles umas tréguas frágeis, como se recentemente tivesse havido uma


desavença. Aylesbury prosseguiu. Padua abanou a cabeça. – Às vezes é como uma criança – disse. – Pensa que vou levar o Ives para o fim do mundo e que nunca mais disporá do irmão. – «Dispor» é uma maneira dura de o dizer – afirmou Eva. – É? O duque continua a meter-se em lutas e o Ives continua a ir tirálo de lá. Ou a tentar. – Eles são companheiros, tanto como irmãos. O Aylesbury vai sentir a falta dele, é tudo. Não o admitirá, mas é essa a origem de qualquer desagrado em relação aos seus planos. Padua começou a dizer algo, olhou para Marianne e pensou melhor. – Vê como somos informais, Miss Radley? Discutimos na frente de novos amigos, de tão à-vontade que estamos na companhia uns dos outros. – Penso que é admirável. É raro conhecer tantas pessoas novas e vêlas agir de forma tão natural à minha frente. Creio até que um pouco de discussão espelha calor e cuidado. Nesse momento, uma gargalhada melódica arrastou-se até elas. Todas olharam para a origem. A Mamã estava sentada com Mr. Fitzallen e ele faziaa resplandecer de deleite. Eva lançou um olhar de soslaio a Padua. Ambas reprimiram um sorriso. Marianne sentiu o rosto a corar. Eva reparou. – Por favor, não fique embaraçada. O Gareth encanta as senhoras sem querer e elas reagem da forma normal. Eu reagi, não haja dúvida. – Na altura, eu não era íntima de nenhum dos dois, mas penso que é seguro que qualquer encantamento que ele lhe fez, Eva, foi com certeza intencional – disse Padua. A Mamã entregara-se a uma história. Mr. Fitzallen escutava-a com atenção, como poucos homens algum dia fizeram a uma mulher. Marianne supôs que fosse parte do seu charme. Ele realmente escutava. Desceram para jantar. Padua, com misericórdia, pôs a Mamã no fundo da mesa, longe de Marianne. Desgraçadamente, deu por si sentada ao lado de Aylesbury.


– Tem uma família fascinante – disse ela. – Refere-se às mulheres dos meus irmãos? A minha mãe não teria aprovado nenhuma delas. O meu pai também teria levantado objeções. Eram as duas muito pobres. Desadequadas de todo, mas Eros estava ocupado e cá estamos nós. – Também se opôs? Ambas as uniões são recentes e já era duque; eu diria que a sua opinião também era importante. – Qualquer dia falo-lhe sobre o casamento dos meus pais. Muito adequado, sem dúvida. Ninguém manifestou discordância. Na verdade, envolveram-se intrigas para o arranjar. A existência do Gareth é a demonstração do quão bem resultou. Não, não me opus. Ambos me teriam ignorado e até rompido comigo, se me opusesse. – Estavam demasiado apaixonados para ouvir ou para se importarem, quer dizer. – Ambos estavam certamente lascivos. Se havia amor também, eu não o reconheceria. Eva, sentada à esquerda de Marianne, inclinou-se para a frente. – Está a bisbilhotar a meu respeito, Aylesbury? – Explicava a Miss Radley como a Eva e o Gareth estavam tão enfeitiçados pela paixão que nenhum dos dois se dignava a ouvir o mais pequeno defeito sobre o outro – fingiu sussurrar a Marianne. – Ainda estão enfeitiçados, a propósito. Fiquei surpreendido quando soube, parece que o facto de uma mulher estar grávida não interfere com... – Aylesbury! – Eva olhou, furiosa. – Miss Radley é uma convidada, não um amigo que embriagou. Que irá ela pensar de nós, se falar dessas coisas neste jantar? – Pensará que sou grosseiro e mau, suponho. As minhas desculpas, Miss Radley. E desculpas também a si, Eva. – Serviu-se de mais vinho, deu um gole e olhou para Eva. – Não disse, ao conhecê-la esta noite, que viu Miss Radley no parque, no outro dia? Eva franziu a testa, perplexa. – Não... – Estou certo de que a ouvi a contar a Padua. Estava no parque a apanhar ar e reparou nesta mulher atraente com uma rapariga loira e um cavalheiro formoso. Um oficial, creio que disse.


– Oh. Sim. – Eva esboçou um sorriso malandro. – É verdade. Marianne teve de dar crédito a Eva. Ela era leal o suficiente para dizer uma mentira, quando encurralada pelo duque. – Quem era ele? – perguntou Aylesbury a Marianne. – O oficial. Era óbvio que sabia do encontro com Vincent. Se sabia, e Eva não tinha visto, significava que ele vira. Tê-la-ia seguido? Com que objetivo? Quanto à questão impertinente... – É um velho amigo. Veio passar uns dias à cidade. – Foi por isso que veio à cidade? Para o ver? Eva voltou a atenção e a conversa para Ives, do seu outro lado. Marianne manteve uma expressão calma, mas a curiosidade indiscreta de Aylesbury aborrecia-a. – Não vejo em que medida os meus amigos têm interesse para a sua pessoa, senhor, e muito menos serem causa de tão persistente curiosidade. – Os seus amigos não, mas os seus amantes sim. Se vou seduzir uma mulher, prefiro que ela não esteja apaixonada por outro homem. Isso é deveras complicado. – Não se preocupe. Não haverá quaisquer complicações, uma vez que não existirá sedução. Um sorriso pausado. Um olhar ardente. – Sabe que isso não é verdade, bela flor. E assim virou a atenção para Gareth, sentado do outro lado da mesa.

Ver Marianne banira a melancolia que a revelação de Carlsworth havia induzido. Contudo, à medida que a noite avançava, aquela indolência infiltrava-se de novo, como um nevoeiro, no espírito de Lance. Húmido e cinzento, silenciava-lhe as perceções e a atenção aos outros. Só estar sentado junto a Marianne impedia que o avassalasse por completo. Depois do jantar, enquanto ele e os irmãos partilhavam um porto, antes de se juntarem às senhoras, Ives fez menção à saúde do monarca.


– O fim está próximo, é o que chega de Windsor – declarou Ives. – Dizse que em dezembro delirou durante cinquenta e oito horas sem parar, e depois caiu na doença atual. – Está há muito tempo num tormento – disse Gareth. – Morrer poderá ser uma bênção. Julgo que Prinny irá ser um bom rei. Ninguém emitiu opinião. Lance presumiu que Ives não queria pronunciar-se, já que gozava da proteção do príncipe. Nunca é prudente criticar tais patronos, nem mesmo dentro da privacidade da família. – Quanto tempo? – perguntou Lance. – Depois de o rei morrer, quanto tempo demorará o funcionamento do Governo a voltar ao normal? Ives encolheu os ombros. – Passou tanto tempo desde que ocorreu uma transição, que duvido que alguém saiba. Eu esperaria uma demora de pelo menos um mês antes de se ver algo normal outra vez, e talvez um ano até Prinny ser coroado. Os assuntos mais importantes têm de ser tratados, claro. Imagino que muitos sejam protelados, para que ninguém pareça tão ocupado que possa levar a crer que o príncipe não está enlutado. Um mês. Não era muito. Provavelmente, não o tempo suficiente para descobrir a verdade sobre Percy. Fizera tão poucos progressos, até então. Os irmãos levantaram-se e iniciaram o caminho para a sala de estar. Lance seguiu depois. O porto apenas havia aumentado o nevoeiro; queria assentar em todo o seu ser, tal como acontecia nas ruas de Londres à noite. Na sala de estar, Marianne e as outras senhoras estavam sentadas. O diálogo soava alegre e todas pareciam felizes. Os irmãos juntaram-se a elas e Ives e Gareth arrancaram gargalhadas e sorrisos a Marianne e às outras. Lance posicionou-se fora do grupo, a observar. O seu olhar pousava principalmente em Marianne. Invejava-lhe o espírito brilhante e admirava o seu autodomínio. Até como segundo filho de um duque, as mulheres haviam rastejado à sua volta; ela não, nem agora que detinha o título. Aylesbury respeitava-o. Gostava dela. Na sua disposição apagada e a enfrentar uma possível humilhação – ou pior –, o acordo proposto por Sir Horace não parecia de modo nenhum tão insolente. Podia sair-se pior. Marianne não era adequada, mas quem era ele para se preocupar com isso? Era tão pobre como as mulheres dos irmãos, mas isso era o menos. Afinal, ele era rico.


Era provável que a mãe o assombrasse e que mesmo o descanso do pai pudesse ser perturbado. E Percy – bom, conseguia ouvir o que Percy rosnaria de dentro daquele mausoléu repelente. A hipótese de até na morte exasperar Percy tornou a ideia mais apelativa. Gostava da companhia de Marianne. Desejava-a e ela poderia resolver um problema muito grande. De momento, não conseguia encontrar muito para se convencer a si mesmo de que a ideia era imprudente. – O que acha, Aylesbury? – Era Eva, a tentar atraí-lo para a conversa e para fora de si mesmo. Era algo que Eva fazia muito; por vezes pressentialhe os estados de espírito. A forma como naquele momento olhava para ele afirmava que era o caso. – Acerca do rumor de que uma certa condessa já encomendou o vestido para a coroação – explicou. – É prático ou mórbido? – Prático. Desumanamente prático. – Caminhou até Marianne. – Se não se importam, gostaria de falar com Miss Radley por uns instantes. Com a permissão da mãe, como é evidente. – Eu... Isto é... Suponho que sim. – Mrs. Radley balbuciou a sua admiração. – Se contentar Sua Graça, não me importo, se forem uns instantes muito breves. – Obrigado. – Aylesbury ofereceu a mão a Marianne e ajudou-a a levantar-se. O rosa alastrou-lhe pelas faces, mas deixou que Lance a conduzisse para fora da sala de estar.

Todos os observaram a sair. O silêncio reinava. Marianne viu muita curiosidade na família do duque à medida que ele a levava. Quanto à reação dela a esta demonstração de predileção, «confusão» designava apenas parte. A última vez que estivera a sós com Lance não tinha acabado bem. Os vestígios da nódoa negra ainda eram visíveis no rosto dele. Além disso, Aylesbury estivera circunspecto toda a noite. Quase melancólico. Não falara muito. Na melhor das hipóteses observava, e por vezes Marianne pensava que o seu pensamento não estava de todo com eles. Talvez devesse ter medo, mas não tinha; antes se misturavam, numa amálgama, prudência, ansiedade e excitação. A expectativa também a provocava, afetando-lhe cada batimento rápido do pulso. Iria ele beijá-la outra vez? Iria ela permitir? Depois da declaração de Aylesbury sobre a sedução, ao jantar, não devia. No entanto... grande parte dela esperava que


ele pelo menos tentasse. O seu corpo começava a reagir como se já tivesse tentado. Desta vez não se esconderam num jardim. Lance levou-a para a biblioteca, sentou-se num sofá e puxou-a para junto de si. Em seguida beijou-a. Marianne desfrutou um minuto do vigor especial que ele lhe despertava e saboreou as sensações que se multiplicavam quando a abraçava. Depois, com mais arrependimento do que devia sentir, fez pressão no peito dele, levantou-se e sentou-se numa cadeira que só concedia espaço para uma pessoa. Durante longos minutos teve de sofrer a sua silenciosa atenção. Lance observava-a como se avaliasse a sua capacidade de lhe resistir por muito tempo. Tocou na face. Não na que tinha a cicatriz. – Deixou-me com uma pisadura má. – Devo pedir desculpa? Se não me tivesse escandalizado, tenho a certeza de que nunca o teria feito. – Dar prazer angustia-a muito mais do que recebê-lo, pela minha experiência. A afirmação direta dos factos que rodeavam aquele encontro envergonhou-a. – Está a ser rude outra vez. – Estou a ser honesto, mas porque estou curioso. Um dia há de casarse. Tenciona só sentir prazer nessa altura? A questão deixou-a sem palavras. Porém, de repente gostava mais dele. Falara como se assumisse que um dia ela ia casar-se. Mais ninguém o fazia. Nem mesmo ela própria. – Isso é diferente. – Só esperava que o rosto não estivesse tão corado quanto o sentia. Que conversa para se ter com um duque, na biblioteca de um dos irmãos. – Ele ainda está em Londres? O seu bom amigo, digo. O oficial. – Uma questão ousada atrás da outra. Pediu para falar comigo em privado porque sabia que em breve ia despejar essa impertinência e não se quis impor aos outros?


– Só quero saber se ele ainda está em Londres. – É tudo? – E se é, de facto, apenas um bom amigo. Marianne suspirou, vencida pela insistência no assunto. Que lhe importava que ele soubesse? – Já partiu. O navio dele zarpará dentro de pouco tempo de Southampton. Desconfio que não o verei por muitos meses. Lance acenou com a cabeça, distraidamente. Embrenhado em pensamentos, estava sentado a bater com as pontas dos dedos de uma mão no joelho. – Não pode ser. – Pôs-se em pé, aproximou-se dela e levantou-a para a abraçar. Marianne realmente não podia permitir. Era preciso acabar com a forma como Aylesbury brincava com ela e desenganá-lo de qualquer ideia de... Olhou-o nos olhos e o pensamento interrompeu-se e desapareceu. Sabia-lhe muito bem estar nos braços dele. Era maravilhoso. Marianne aquecia de todas as maneiras. Os seus seios tornaram-se sensíveis à pressão do peito dele. Lembrou-se da mão de Lance no seu corpo. Fechou os olhos para o beijo que ia chegar. – Abra os olhos, Marianne. Não vou beijá-la. Ainda não. Ela abriu-os. Parecia tão sério, tão pensativo, tão... sombrio. O olhar dele trespassou-a, como se procurasse algo. – Decidi propor – disse ele. – Propor o quê? – Casamento. Estou a pedir-lhe que se case comigo. Que coisa espantosa tinha ele dito. – Porquê? – Não é assim que é suposto responder. – É a única resposta que tenho. Afinal, é um duque. Pode casar-se


com qualquer pessoa. E embora tenhamos uma espécie de pequena amizade, nenhum de nós está apaixonado pelo outro; assim, a menos que haja uma boa razão, tenho de colocar a hipótese de estar a brincar comigo de uma forma diferente, mais cruel. – Não sou assim tão mau, nem tão cruel. Quanto ao porquê... – Marianne esperou. Ele não parecia ter resposta. – A menina diverte-me – disse Aylesbury, provando que tinha pelo menos um motivo. – Compreendo. – E vamos dar-nos bastante bem, também. – As suas exigências não são muito altas, se «bastante bem» o satisfaz. – E, além disso, desejo-a. Uma vez que não se importa com os meus avanços, creio que nos daremos bem também nesse campo. Marianne encostou-se aos braços que a abraçavam, um pouco para trás, de forma a conseguir ver-lhe claramente o rosto. – Não quero parecer ingrata. Tal proposta está para além dos sonhos de uma mulher como eu. Contudo, espero que consiga compreender que acho um pouco... estranho tê-la recebido. – Agora sou estranho? Esta tinha-lhe ocorrido. – Não o senhor. Esta oferta. Esta noite bebeu mais do que é notório? – Não estou embriagado. Não vou acordar amanhã a amaldiçoar os meus impulsos, se é isso que teme. Devo dizer que a sua completa falta de entusiasmo é ofensiva, Marianne. É suposto que esteja perto de desmaiar de excitação, não a interrogar-me sobre o meu estado de espírito e a exigir uma lista de razões. – Perdoe-me. É que é tudo tão... – Estranho. – Pelo menos singular. Difícil de compreender. – Um duque acabou de pedir a sua mão em casamento. Viverá no luxo e terá precedência sobre quase todas as mulheres da sociedade. Consegue compreender isso? – Oh, sim. Valorizei imediatamente essa parte.


– Penso que também valorizou esta. – Puxou-a para mais perto e beijou-a. Marianne não teve qualquer dificuldade em compreender a paixão que ele oferecia. Esta fluía pelo seu ser, incitando o desejo especial que ele sabia comandar. Todo o seu corpo se rendia àquele beijo, e aguardava com impaciência as carícias que lhe intensificariam a excitação até uma necessidade febril. Lance não a desiludiu. As mãos moveram-se sobre o seu corpo, pela anca, pelas costas e até pelas coxas. As carícias faziam com que se sentisse despida, de tão completamente que lhe seguiam as formas. O calor constante das mãos penetrava a seda do vestido. Tão doce. Tão estimulante. Os sentidos cediam com prazer e o coração suplicava por mais. A mente, porém, recusava-se a colaborar. Fragmentos de pensamentos percorriam-na, tão incómodos que não os conseguia ignorar. Todos os outros porquês: a sua falta de fortuna; o pouco conhecimento que tinham um do outro; Nora. Acumulando todo o bom senso e força que conseguiu reunir, interrompeu o beijo. – Pare. Por favor. Os outros... Lance obedeceu. Puxou-a para si. Com a orelha no peito dele, Marianne procurou a compostura. – Então, estamos combinados? – perguntou ele. Ela ouvia-lhe o coração. Batia depressa, mas não tão depressa como o dela. Mesmo na paixão, ele poderia provavelmente arranjar melhor. – Não, não estamos combinados. Desculpe. – Marianne endireitou-se e olhou para ele. – Tenho de pensar antes de lhe dar uma resposta. Com certeza não vai querer que eu seja irrefletida. – Sem dúvida que deve pensar. Fale com a sua mãe; aconselhe-se com ela. E com o seu tio, se quiser. Ou com qualquer outra pessoa. A sua aceitação fará de mim um homem feliz, mas apenas se me quiser como marido. Que bom que ele o disse. E que sorriso afável lhe dirigiu, para reassegurar que não se sentia insultado com a sua demora. Mas claro que era provável que se sentisse.


Virou-a no seu braço e encaminhou-a até à porta. Aí, o abraço desapareceu e voltaram para a sala de estar. No resto da noite, o duque foi um homem diferente. Gracejou com os irmãos. Respondeu com espírito a coisas que Eva e Padua disseram. Riu-se. Comportou-se como um homem que tinha completado com sucesso uma obrigação que lhe pesava. Marianne tinha de admitir que ele possuía motivos para estar confiante quanto ao desfecho. Ela procuraria o conselho da Mamã, mas sabia, e Aylesbury sabia, o que qualquer mãe diria: Ele é um duque, Marianne. Um duque.


CAPÍTULO 15

AMamã levantou as mãos no ar e olhou para os céus, para que lhe dessem paciência. – Estás louca? Serás tão presunçosa que pensas que vais arranjar melhor? Se existir melhor sequer! Tão petulante que preferes a humildade e a pobreza a ser elevada e viver em incalculável riqueza? Marianne contara por fim à mãe acerca da proposta. Em parte desejava os seus conselhos, mas até certo ponto queria apenas impedir que a Mamã perguntasse o que se havia passado quando Aylesbury a apanhou sozinha. Dizer que a mãe estava horrorizada por ela ter repelido o duque era um eufemismo. Se dependesse da Mamã, marchariam de imediato até casa de Aylesbury para que Marianne aceitasse, grata e contritamente, rezando para que ele não usasse a relutância contra ela. – Não sou petulante, muito obrigada. Apenas precisei de pensar em algumas coisas. – Já acabaste de pensar? Já pensaste dois dias, filha. Um homem como este não reage bem a rejeições, muito menos a uma que se prolonga. Certamente não de mulheres como tu, que deviam estar a dançar, e não a ponderar o que quer que te faz mostrar esse semblante. Não podia explicar-lhe de que forma aquele casamento trairia Nora e iria deixá-la sozinha e vulnerável. A Mamã nunca aceitaria tal desculpa. Nem poderia explicar que tinha dúvidas acerca do carácter de Aylesbury. Não só por causa da história do tio Horace a respeito da doença de Nora; havia aquela questão do irmão. Parecia que em Londres toda a gente falava sobre isso. Até as costureiras o haviam comentado entre si. Aylesbury admitira não gostar de Percy, de todo, e ter ficado ressentido com a cicatriz e outras coisas. Teria sido preciso muito para que fizesse algo


violento, num acesso de cólera? O coração de Marianne insurgira-se contra acreditar que assim fora, mas nos últimos dois dias considerou muito a questão. Tinha visto o melhor lado dele, possivelmente. Se fossem casados, existiriam outras facetas que considerasse menos atraentes? – Encheste a cabeça com sonhos de um casamento por amor? – perguntou a Mamã. – Se sim, devo lembrar-te de que não é dessa forma que se decidem os casamentos entre as melhores pessoas. – Nós não somos as «melhores pessoas». A mãe casou-se por amor. E se não for um casamento por amor, faz ainda menos sentido. Porque é que um duque, um duque, quereria casar-se comigo, Mamã? Não acha inacreditável? A Mamã olhou para ela com alguma compreensão. – Oh, querida. Fui negligente na tua educação. Lamento tanto, minha querida. Agora ouve-me, enquanto falo de assuntos indelicados: alguns homens, não o teu pai, minha querida, mas muitos outros, não se casam tanto por amor como por... como dizê-lo?... desejo de partilhar o leito com uma mulher em particular. Marianne teve vontade de rir. Com esforço conseguiu não o fazer. – Mamã, há algo em Aylesbury que a faça pensar que a experiência dele em camas e mulheres não é vasta? Atrevo-me a dizer que ele já teve, e continuará a ter, mulheres muito mais bonitas do que eu. Sugerir que me pediu em casamento porque não resiste a levar-me para a cama... – Por favor, filha, não tens de ser ordinária. – Desculpe. Contudo, essa ideia é tão inacreditável como qualquer uma das outras explicações. Nesse preciso momento chegou um criado, para dizer que Sir Horace gostaria de falar às senhoras no escritório. Marianne e a mãe subiram as escadas ao seu encontro. O tio Horace não deixara a cidade no dia a seguir ao jantar, como planeara. Marianne supôs que a mãe o tivesse informado acerca do inesperado, e inapropriado, pedido para lhe falar a sós. O tio Horace ficara à espera para saber o que tinha acontecido, enquanto a Mamã tentava adulá-lo. Logo que entraram no escritório, Marianne soube que o tio decidira


não esperar mais. – Tenho sido paciente. – Estava sentado atrás de uma secretária, como se conduzisse ali negócios ou estudos. Só que a secretária, nesta casa arrendada, estava despida e com as prateleiras vazias. – Agora quero que me contes o que o duque te disse quando ficaram a sós. Em circunstâncias normais, só se pede privacidade com uma menina solteira pela mais séria das razões, Marianne. Ela contou-lhe. A cada uma das suas palavras, uma nova centelha de satisfação surgia nos olhos do tio; ele continuava a olhar para a Mamã com uma expressão pitoresca e perplexa, como se lhe perguntasse: Acredita nisto? Se calhar o duque enlouqueceu, mas com sorte faremos o casamento antes que se note. – Presumo que aceitaste – disse, quando Marianne terminou. – Vejo que ele deve ter querido manter segredo durante uns dias, enquanto arranja maneira de anunciar, e informar o pessoal do rei antes que se torne do conhecimento geral. Os duques não se casam sem mais nem menos, claro. – A Mamã olhou de soslaio para Marianne, que por sua vez olhava pela janela. – Aceitaste, naturalmente. – O tio Horace afirmou-o como algo certo, mas uma entoação infeliz tornou-o quase uma questão; uma questão que pairava, em suspenso, no escritório. Emoções fortes começaram a carregar o ar. – Diz-lhe – pediu a Mamã. – Não aceitei, tio. Respondi que precisava de pensar. As faces dele afundaram-se. Os olhos dilataram-se. A pele pálida começou a ruborizar-se. – Pensar? – ressoou o tio. – Disseste a um duque que querias pensar se ele é merecedor de se casar contigo ou não? – Sir Horace – começou a Mamã num tom apaziguador. – Deixe-nos – comandou Horace. – Saia. Falarei com a minha sobrinha a sós e vou certificar-me de que chegamos a um acordo. A Mamã saiu. O tio Horace pôs-se em pé. Respirou profundamente e fechou os olhos. – Vê o que fizeste, sua ingrata miserável. Estou às portas da morte. – Repetiu a respiração profunda, de propósito. Parecia acalmar-se. Olhou para ela. – Vais casar-te com ele. Isto é, se ele ainda quiser. Casar-te-ás com ele e trarás prestígio para a tua família.


– A Nora... – Se não te casares com o duque, mando-a embora; portanto, não te sacrifiques por ela. E se não te casares, tu e a tua mãe estarão mortas para mim. Não esperem nada de mim, nem um xelim. Não serás uma duquesa, serás uma pedinte. O tio Horace tinha essa intenção. Marianne sabia que sim. Na sua fúria insensível, ele não exagerara. Marianne levantou-se, para não se sentir tão pequena diante dele. – Ele aproveitou-se da sua filha – respondeu, em desespero. – Arruinou-a, como o tio disse. Como pode querer agora estar ligado a ele de forma tão próxima? – Porque é tudo o que posso ter. Há muitas formas de se pagar pelos pecados. – Sou sua sobrinha. Filha do seu irmão. Aylesbury pode ser um assassino. Quer que me case com ele, se há uma hipótese de tal ser verdade? O tio Horace pensou durante cerca de dez segundos. – Não se sabe o que aconteceu naquela noite. Não te vou despojar desta oportunidade baseando-me em questões em aberto. – Mas eu não estou certa de querer casar-me com ele. As sobrancelhas de Horace uniram-se sobre os olhos. – Então permite-me que te diga de forma diferente: não te vou autorizar a despojar-nos desta oportunidade. Falo por mim, pela tua mãe, pela minha filha e por todas as gerações que estão para vir. Arranja a certeza, depressa. Vou escrever-lhe a pedir que nos visite esta noite. Nessa altura dás-lhe a resposta. O tio virou-lhe as costas. À beira das lágrimas, Marianne correu para fora do escritório, em direção ao seu quarto. A mãe aguardava-a ali, e não era para a consolar.

Os filhos dos duques não esperam ser repelidos quando pedem uma mulher em casamento. Os próprios duques seguramente não o esperam. Por conseguinte, Aylesbury acumulara uma boa dose de irritação – justificada,


na sua opinião –, ao tempo em que recebeu o recado de Radley, pedindo-lhe que o visitasse nessa noite. Ele foi, pouco convencido de que, quando lá chegasse, Marianne fosse aceitar a sua proposta. Visto que não gostava de se sentir inseguro acerca de, basicamente, nada, muito menos daquele assunto, até ao momento em que ali chegou o seu humor não melhorara. Toda a família, até mesmo Nora, o aguardava na sala de estar. Depois das saudações, Sir Horace sorriu abertamente. – A minha sobrinha tem algo para lhe dizer. Não é assim, Marianne? Lance não tinha a mínima intenção de fazer isto com público a assistir. Já que Marianne não sorria, não havia garantias de como ia correr. – Deixem-nos. Falarei com ela a sós. Surpreendido com a demissão sumária, Sir Horace conduziu os outros para fora da sala de estar. Lance fechou as portas atrás deles. Sem dúvida que, do outro lado, Sir Horace e Mrs. Radley não se afastariam. Voltou para junto de Marianne. Sentou-se e pegou-lhe na mão. – Ele bateu-lhe? Só então Marianne sorriu. Finalmente. – Sou velha demais para que me batam. O tio não ousaria, de qualquer forma. – Então ele sabe com que força consegue dar um soco? Marianne até deu uma pequena gargalhada. Olhou depois para a mão, aconchegada entre as dele. – Foi amável da sua parte fazer uma pequena piada. Ajudou. É sempre amável? Atendendo às circunstâncias, era uma questão razoável. – Não. Tentarei ser, mas não posso fazer promessas. – O meu tio planeia tirar partido de si, se nos casarmos. Não considera isso um incómodo? – Toda a minha vida as pessoas fizeram isso. Sou perito em não oferecer qualquer proveito sem que tenha escolhido oferecê-lo.


Marianne acenou com a cabeça. – Importa-se que continue a ver a minha prima Nora? – Porque haveria de me importar? – Ela dirigiu-lhe um olhar estranho. – Tem mais questões, Marianne? – Quero que me conte precisamente o quanto tem sido mau. Acho estranho que toda a gente saiba coisas que eu desconheço. – Desde, talvez, os quinze anos, por vezes... não, muitas vezes... tenho-me envolvido em sarilhos, com frequência situações de minha única responsabilidade. Lutas. Duelos. Esse tipo de coisa. – Embriaguez? – Isso também, por vezes. – Cópula indiscriminada? – Corou com a pergunta, como não seria de admirar. – Indiscriminada é talvez uma palavra muito forte. – Lance procurou uma palavra melhor, mas deu por si atrapalhado. – Alguma vez matou um homem em duelo? – Não. – Aquilo parecia-se demasiado como ser levado a uma confissão. – Prevê continuar a envolver-se nesse tipo de situações, de futuro? – Não posso prometer que não me envolverei. Parece estar na minha natureza. Tem mais perguntas? – Só uma. Perdoe-me, mas tenho de a fazer. – Está antecipadamente perdoada, o que quer que seja. Marianne evitou o olhar de Lance durante algum tempo. Depois, a determinação aflorou-lhe aos olhos. – Matou o seu irmão? Lance esperava que ela não precisasse de perguntar. O que era, com toda a probabilidade, uma expectativa irrealista. O conhecimento que tinham um do outro era breve e superficial. – Não.


Marianne acreditou, ao que parecia. A expressão aliviou-se e o sol entrou-lhe na disposição e no olhar. – Então aceito a sua proposta, se ainda se mantiver. Casar-me-ei consigo. Lance levantou-se e inclinou-se sobre ela. Segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a. – Direi ao seu tio e à sua mãe para entrarem e vamos contar-lhes. Organizaremos também o casamento. Se não se importar, preferia que fosse em breve. Caminhou em direção às portas. – O nome dele é Vincent – disse Marianne, falando nas costas de Lance. – O oficial. O meu velho amigo. É irmão da Nora, do primeiro casamento da mãe. Era de facto um velho amigo, então. Ela não precisava de dar explicações a respeito de Vincent naquele momento, mas Lance ficou contente que o tivesse feito. O ciúme era uma emoção nova para ele, e não tinha sido poupado à sua tortura insidiosa desde que a vira no parque com aquele oficial da Marinha loiro. – Tem de apresentar-mo, um dia destes. – Avançou depois, abrindo a porta abruptamente. Mrs. Radley e Sir Horace quase lhe caíram nos braços, quando as orelhas perderam o apoio ao qual haviam estado encostadas.

Ao deixar a casa de Radley, Lance não sentia vontade de regressar à sua. Assim, dirigiu-se para uma casa diferente. – Que bom que ainda não te retiraste – disse, quando entrou na biblioteca. – Ainda são dez da noite – respondeu Gareth. – Sim, bem, em parte pelo teu casamento e tal... – Lance lançou-se para uma cadeira estofada. – A Eva está por aí? – Retirou-se. A sua condição requer descanso. – Gareth levantou-se e dirigiu-se até às licoreiras. Voltou com dois copos. – Whisky, graças a Deus – afirmou Lance depois de um trago. – Estava


prestes a pedir-te que não me desses xerez nem outro disparate doce qualquer. – Supus que whisky seria apropriado. – Sentou-se de novo. Lance olhou para os livros de contas e para a correspondência que desarrumavam o chão, junto da cadeira de Gareth. – Interrompi-te. – O que te agradeço. Se esta é uma simples visita, estou contente por ter a tua companhia. Se é algo mais, sinto-me lisonjeado. Lance olhou para o copo. – Acabou de acontecer a coisa mais estranha e pensei que devia partilhá-la com alguém. Fiquei noivo de Miss Radley. Gareth apenas sorriu, de modo angélico. – Agora estou duplamente lisonjeado. – É só isso que tens a dizer? Nenhuma exclamação de choque? Nenhum olhar de desaprovação escondido? – Ela parece uma boa mulher. Porque havia de ficar chocado? Quanto à aprovação, sou a última pessoa de cuja aprovação necessitas. Lance relaxou na cadeira. – Sabia que reagirias assim. É por isso que estou aqui. Se tivesse ido ter com o Ives, ele ter-me-ia maçado com uma longa explicação sobre como isto é desnecessário, como faríamos isto ou aquilo para resolver a situação, como apenas tenho de ser paciente, et cetera, et cetera. – Deu um longo gole na bebida. – Sempre disse que o Ives sabe falar com os melhores deles. Gareth não era homem de preencher silêncios com tagarelice. Deixaram-se estar sentados, a beber, num sossego sociável. Por fim, Gareth falou. – Há alguma razão em particular para concluíres que não podes ser paciente? Porque é que desististe do teu plano? Contou a Gareth a revelação de Carlsworth. – Investiguei a verdade sobre a morte do Percy, mas não posso estar à espera de descobrir algo suficientemente depressa. Preciso de chamar o


Radley ao acordo, é a minha opinião. A expressão de Gareth refletia agora preocupação. – Não ousariam dar um passo para te julgar. Não se faz um julgamento com base em provas tão pouco sólidas. – Porque sou um duque? Duvido até que a maioria dos pares me veja sequer dessa forma. Nem me tornei querido para eles, pois não? Não, se eles forem por esse caminho e o mentiroso do informador for encontrado – concebeu a hipótese, como já vinha a fazer há alguns dias –, não escolherei ser o protagonista do teatro público que se gerará. Não vou arriscar. Além do mais, quero resolver isto. Os efeitos na minha mente não são saudáveis. – Não vou tentar convencer-te a pensar melhor, Lance. Espero, porém, que nutras verdadeiro afeto por Miss Radley. Estás a escolher passar uma vida inteira com ela. – Gosto do que conheço dela. Quanto a passar a vida, a tua existência é prova de que para um homem, e em especial para um duque, essa exigência não é um fardo sem alívio, se é que chega sequer a ser um fardo. – Claro. Uma vez que sou feliz por ter tido mais juízo no meu casamento do que o pai teve no dele, presumi que também tivesses desejado melhor, é tudo. Desejara? Não se conseguia lembrar de criar quaisquer expectativas. Como a maioria dos duques, o pai casara-se com a filha adequada de um semelhante adequado, uma rapariga que lhe foi recomendada pelos pais. Era assim que as coisas aconteciam na altura. Que ainda aconteciam no presente. Se o dia a dia do casamento cedo se mostrasse impossível, se o pouco afeto que existia morresse em poucos anos, se a noiva do pai se revelasse vazia, egoísta e desagradável... também não era pouco habitual. – Não criei expectativas, de todo. Não antes de ter tomado posse da herança, e certamente desde então também não. Miss Radley servir-me-á bem o suficiente. Gareth levantou o copo. – Felicito-te então pelo teu noivado, Lance, e espero que o destino te surpreenda com mais do que «o suficiente».


CAPÍTULO 16

Marianne permanecia em pé, completamente quieta, enquanto os criados lhe apertavam o vestido de casamento. A Mamã fora sem demora à modista, para exigir que o melhor do novo guarda-roupa fosse terminado em dois dias. Ao ouvir dizer que algumas peças de vestuário seriam usadas no casamento de um duque no fim de semana, a modista ocupou todas as suas costureiras com as tarefas. O vestido, macio, rendado e rico à vista e ao toque, todo decorado com fitas e bordados, fluía-lhe agora pelo corpo. – Pareces uma princesa – disse Nora da sua cadeira, no quarto de vestir. A boa vontade de Nora para participar neste ritual tocou Marianne. Contudo, a prima havia recusado estar presente na cerimónia e também não expressara verdadeira felicidade com o noivado. Para dizer a verdade, não comentara nada, de todo. Uma vez que Marianne temia que as notícias remetessem Nora para um dos seus períodos turbulentos, aquela aceitação inexpressiva tranquilizou-a. Pelo menos encontrava-se ali. Porém, servia como um aviso de que aquele casamento se iniciaria sob mais do que uma nuvem. Embora Marianne já não sentisse que, pela sua relação com Aylesbury, traía Nora, a história entre os dois nunca se afastava muito do seu pensamento. Estava sentada no toucador, para que pudessem ser dados os toques finais no cabelo e se prendesse o toucado. No reflexo do espelho, viu a Mamã a entrar no quarto de vestir, resplandecente no seu próprio conjunto. A mãe aproximou-se para lhe inspecionar o cabelo e entregou-lhe uma pequena caixa. – Acabou de chegar por um mensageiro. É de Aylesbury.


A caixa continha um belo e dispendioso colar. Elos de ouro trabalhados com cuidado formavam uma corrente na qual pendia um requintado diamante, num engaste sóbrio em forma de corda. Por baixo da pedra estava preso um cartão.

Um diamante de primeira água, para uma mulher que iguala a sua claridade, pureza e valor. Aylesbury A Mamã elogiou a sua beleza e custo. Nora mal olhou para ele. – E um cartão também tão amoroso – disse a Mamã. – Pensar que estiveste inclinada a rejeitar a proposta. Marianne esperava um dia esquecer a discussão que tivera com a Mamã depois de deixar o tio Horace. No final, estavam ambas em lágrimas. Miséria extrema, é o que enfrentaremos. Não duvides que ele nos expulsa, filha. Farias isso à tua mãe? – Se ela não quer casar-se com ele, não deveria ter de o fazer. – Nora exprimiu a opinião numa voz branda e abafada. – Os homens são, por natureza, tão brutos e cruéis que é um prodígio que alguma mulher deseje casar-se. Exceto o Vincent, claro. Ele não é assim. A Mamã virou-se para ela. – Sabes muito sobre tudo isso, Nora. Devias guardar as tuas opiniões ignorantes para ti mesma. Nora foi assim arrastada da sua teoria particular. – Sei mais do que imagina. Acho que a tia e o papá forçaram a Marianne a casar-se pelo dinheiro. Olhe para ela. Parece apavorada, não feliz. E bem pode estar, sendo forçada a entregar-se a tal homem perverso. – Uma faísca de pânico assomou aos olhos de Nora. A faísca que muitas vezes prenunciava uma das suas crises. – Não estou apavorada, querida – mentiu Marianne. A verdade era que temia vomitar. – É normal uma noiva estar nervosa, não é, Mamã? – É, de facto. Nora, agora dá-nos um minuto. Quero falar com a minha filha a sós. As criadas não precisaram da instrução. Saíram com Nora e fecharam a porta. A Mamã apertou o colar, fazendo depois uma vistoria ao aspeto de


Marianne. – Perfeita. Linda. Nenhuma filha da alta sociedade te superaria. – Está a exagerar. – Marianne sentia-se bonita, contudo. Vestidos dispendiosos e que assentam na perfeição fazem isso às mulheres. O diamante que pendia debaixo do queixo também não lhe causava dano. – Agora, antes de descermos para o coche, tenho de explicar-te algumas coisas, no que diz respeito ao teu comportamento como mulher. Marianne não conseguiu conter uma gargalhada. – Não sou uma menina. Não ficarei escandalizada quanto ao leito conjugal. – Francamente, filha. Pensar que eu falaria em voz alta de tais coisas! Ia explicar-te como gerir o teu dinheiro para alfinetes e como adular Aylesbury para lhe arrancar mais fundos. – Ah. – Marianne levantou-se, dispôs a faixa de seda que lhe serviria de agasalho e levantou a bolsa de seda e renda. – Aí está algo que preciso de aprender. Poderá partilhar os seus consideráveis conhecimentos de perita enquanto seguimos para St. George.

*

O casamento revelou-se menos discreto do que o planeado. A palavra havia-se espalhado. Ainda antes de Marianne ocupar o seu lugar na cerimónia, a nave de St. George já se enchera de espectadores, além dos convidados. A torrente de pessoas aliciava os transeuntes curiosos a entrarem também. Mesmo à frente, após terem procurado o lugar com melhores vistas, três homens observavam e escrevinhavam, tal como Marianne fazia quando estava presente em eventos na qualidade de Elijah Tewkberry. Assumiu que fossem de jornais ou de panfletos de escândalos. Aylesbury ocupou o lugar ao seu lado e, subitamente, a multidão já não a distraía. O pároco aproximou-se com as suas vestes. O pânico abaloulhe o âmago, como uma corda de harpa que, dedilhada, soa uma nota alta. Por cima do ombro olhou para a multidão, para a mãe e para o tio Horace. E para a porta, Deus a ajudasse, para verificar se poderia lançar-se


porta fora antes de alguém a apanhar. – Não olhe para eles. Ignore-os. – A voz de Aylesbury aproximou-se, baixa e tranquilizadora. – São todos meros observadores. Só nós os dois importamos. Não parecia nervoso nem de todo preocupado, e definitivamente não dava sinais de querer pôr-se em fuga. Sem dúvida que se fortalecera da maneira autorizada aos homens, com um trago rápido de bebidas espirituosas. Não era nada justo que essa consolação fosse negada às mulheres. A cerimónia iniciou-se e, para surpresa de Marianne, tornou-se de facto apenas deles. Esqueceu-se da família e dos curiosos, e até daqueles homens que escreviam mesmo atrás dela. Contudo, também não ouviu muito da cerimónia. Um aturdimento acometeu-a, como uma nuvem cintilante. Intensificava-lhe a perceção de todas as coisas erradas: da textura das vestes do pároco e do timbre da sua voz; das pedras nas paredes da igreja e do pó que dançava na luz que fluía das janelas; de Aylesbury ao seu lado, da sua altura e força e, principalmente, da sua presença absoluta. Ele arrebatava-a de todas as maneiras. Apesar disso, enquanto permaneceram lado a lado na confusão e disseram as palavras que os uniram, encontrou algum alento por ele estar ali. A força de Lance amparava, bem como dominava. Marianne queria acreditar que era assim que ele desejava que fosse, para a ajudar. Depois a cerimónia terminou e ele beijou-a. A névoa brilhante desapareceu, deixando-a em frente a uma multidão de estranhos a ser beijada por um duque que, inacreditavelmente, era seu marido.

– Pelo menos Tewkberry não estava aqui – murmurou Ives enquanto saíam. A cabeça de Marianne foi rápida a mover-se na direção de Ives. – Tewkberry? – Um correspondente do Times no Gloucestershire – explicou Lance. – Uma das cartas dele provocou rebuliço aqui na cidade a meu respeito, apenas isso.


Ela franziu o sobrolho. – Que tipo de rebuliço? Que encantador. A nova mulherzinha já demonstrava lealdade a favor do marido. – Recomeçaram os mexericos acerca da morte do meu irmão. Não se preocupe. A mãe apareceu para a abraçar. Sir Horace aproveitou a oportunidade para atrair a atenção de Lance e lançar-lhe um grande piscar de olho. Lance entendeu que, com o suborno já pago, Sir Horace completaria o acordo. O almoço do casamento durou horas, prolongando-se por grande parte da tarde. Lance desfrutou da companhia mais do que guardava na memória. Quando não estava a conversar com ninguém, observava Marianne. A pose dela impressionava-o. Pensou que estava encantadora e feliz que chegue. Iria de facto servir-lhe bem o suficiente. Feliz o suficiente. Bem o suficiente. Eram esses os alicerces deste casamento. Supunha que fosse o que a maior parte dos casais possuía. Se «o suficiente» chegava para ele era algo que ficava por apurar. No momento não se sentia inclinado a pensar sobre isso. Sobretudo porque a desejava. Não apenas o suficiente, mas muito.

Marianne deu por si a pensar que gostaria que a mãe lhe tivesse dado outros conselhos, além de como gastar a fortuna de Aylesbury. Depois de o almoço terminar, perto da hora do jantar, retirou-se. A governanta levou-a para cima e proporcionou-lhe uma visita pela sua nova casa. Os aposentos da duquesa eram compostos por cinco quartos. Além de um para a cama e outro de vestir, existia uma sala de estar privada, uma sala de visitas e um quarto inteiro só para o guarda-roupa. As malas já haviam sido entregues e aguardavam a sua presença. O governo da casa providenciara uma criada, mas Marianne planeava mandar vir Katy, se permanecessem por muito tempo na cidade. A governanta comportara-se com um respeito inabalável. Todos os criados a tratavam como... como uma duquesa, percebeu. Porque era isso que ela era. Só que não se sentia como tal. Tinha a sensação de estar deslocada e perdida naqueles aposentos, e apavorada – sim, Nora estava


certa naquela palavra – com a noite de núpcias. – Deseja descansar enquanto lhe desfazemos as malas, Sua Graça? – Um dos criados colocou a questão quando Marianne começava a virar para baixo a colcha da enorme cama. Era suposto que descansasse? Não fazia ideia. Quando visse outra vez a Mamã, tencionava repreendê-la por ter descuidado a explicação de todos os rituais. Ajudaram-na a despir o vestido e a entrar na cama. Olhou para cima, para a cortina do dossel de seda tufado. Do quarto de vestir contíguo chegava-lhe o som das criadas a tratar-lhe do guarda-roupa. Seria suposto ficar ali deitada até ser noite e Aylesbury se juntar a ela? Poderiam faltar ainda algumas horas. Exasperada, levantou-se da cama e encaminhou-se para a porta do quarto de vestir. – Já desembalaram o vestido de musselina amarela? Aquele com as mangas compridas? Quero vesti-lo agora. As criadas encontraram-no e uma delas vestiu-lho. Calçou uns sapatos e saiu dos aposentos para explorar a casa. Pela expressão das criadas supôs que tal era inesperado, mas precisava de fazer alguma coisa ou enlouqueceria. Era uma casa imensa. Tinha duas salas de estar, uma muito grande e outra nem tanto, e uma biblioteca que engolia a pequena casa de campo de Cherhill diversas vezes. Marianne achou as salas públicas antiquadas nas decorações, todas repletas de dourados e tecidos pesados. A refeição do casamento fora servida numa sala de jantar de tamanho satisfatório. Descobriu que não era a única quando encontrou a sala de jantar oficial. Nunca vira uma mesa tão grande. Nem sequer sabia que existiam mesas assim. – O que acha? Girou na direção da voz. Aylesbury encontrava-se junto à porta. Misterioso, bonito e atentamente interessado, observava-a. Naquele instante, a realidade do dia fendeu por entre a teatralidade festiva gerada pela renda, pela seda e pela cerimónia. Nem mesmo proferir os votos tornara a mudança na sua vida tão brutalmente real. Casada. Dele. Para sempre.


O que tinha ela feito? – É muito grande – balbuciou. – Poderia ser um salão de baile. – O salão de baile é bastante maior. – Lance olhou em volta. – Haverá jantares que encherão esta mesa. Ou é suposto que haja. Marianne tentou imaginar-se como anfitriã de um jantar ali. – Intimida-a, Marianne? – Sinto-me mais intrusa agora do que naquele dia em que nos conhecemos, em que realmente entrei sem autorização. – Lá chegará. Não duvido disso. Não me teria casado consigo se o questionasse. No início será estranho, mas depois já não será. – Deambularam pelo enorme aposento. – Se tem perguntas, pode fazê-las. – Sabe como ser uma duquesa? – Mal sei como ser um duque. Posso, contudo, arranjar-lhe alguém que saiba. Marianne acalmou-se, pela forma como Lance a tranquilizou. Talvez não ficasse zangado com ela, nas primeiras vezes em que se enganasse e fizesse fraca figura. Porquê? A palavra andava de novo à sua volta enquanto percorria a casa. Seria bom se fosse tão presunçosa que não soubesse que tinha de haver um porquê, e dos bons, para dar por si como senhora desta mansão. Lance puxou-a para os seus braços e beijou-a, como se respondesse à questão. Antes de a paixão lhe turvar a mente, impuseram-se duas verdades: primeiro, que o desejo, embora forte, não era a razão; e segundo, que este não era o dia ideal para procurar a verdadeira resposta. Com o braço a mantê-la próxima, Lance encaminhou-a para a grande escadaria. – Diga às criadas que pretende deitar-se. Daqui a pouco junto-me a si. O crepúsculo chegara cedo e, ao que tudo indicava, o fim das cerimónias daquele dia também. Lance beijou-a novamente e depois largoua. Marianne subiu as escadas, sem coragem de olhar para trás.


*

As criadas deixaram-na sozinha, na cama, com uma camisa de noite com mais renda do que a necessária para cinco vestidos. A modista, ao ouvir falar do casamento, mostrara à Mamã esta peça pronta a usar. Très jolie, dissera, ao desdobrar o vestido como se fosse feito de ouro. Très elegante. Também très transparente, sendo feito da mais fina cambraia. As suas filas e folhos de renda não estavam colocadas onde se preferiria, se o objetivo fosse o recato. A Mamã não devia ter reparado. Marianne manteve o olhar na porta do quarto de vestir. Ele viria dali. Uma criada indicara-lhe a porta, no extremo dessa divisão, que dava acesso aos aposentos de Sua Graça. E vice-versa. Os nervos estavam a levá-la perto da náusea. Sentia-se ridícula, naquela cama, as costas apoiadas em almofadas, à espera de ser desflorada. Por certo havia uma forma melhor de... De repente, Aylesbury estava no seu quarto. Afinal não aparecera do quarto de vestir, mas da entrada por onde o quarto se ligava à sala de estar. A iluminação do pequeno candeeiro colocado perto daquela porta inundou-lhe o vulto alto. Vestia um longo robe. Marianne não lhe vislumbrou no pescoço o topo de uma camisa de noite. – Parece surpreendida. Estava à espera de outra pessoa? – perguntou. – Pensei... – Apontou para o quarto de vestir, já que a voz não cooperava. Ele aproximou-se. – Não uso os aposentos do duque. – Porquê? Lance começou a desabotoar o robe. – Feche os olhos, se for suscetível de ficar chocada. – Não sou uma criança. – Claro que não. Perdoe-me, se a ofendi. A cada botão que Lance manejava, o robe cedia mais. Ficou exposto o peito despido, depois todo o torso, depois... Ela fechou os olhos. Seria sofisticada noutro dia.


A roupa de cama moveu-se. Um peso refreou o colchão. Marianne abriu um pouco um olho e viu-o deitado de costas a seu lado, a olhar para os tecidos, com o lençol subido até à cintura. Lance virou-se e levantou um braço. – Não tenho experiência a fazer isto com inocentes. Deve avisar-me se a magoar. Quando magoar, se magoar. Marianne acenou com a cabeça, em silêncio. Os nervos já não a atormentavam. Agora era o pânico completo. – Acho que deve beijar-me – disse. – Ou... – Ou? – Ou poderei não manter cá dentro o almoço do casamento. – Nunca tive um convite tão invulgar, Marianne. – Pensei que devia alertá-lo. Ele deu-lhe um beijo longo e doce. – Melhor? Marianne fez sinal que sim. Sensações diferentes da náusea assumiram o controlo. Ousou tocar-lhe na pele do ombro; depois, fez deslizar os dedos pelas costas. Desceu mais um pouco. Era verdade, ele estava despido. Totalmente. Lance beijou-a outra vez. O corpo não se importou. O prazer agitavase num turbilhão dentro dela, como um pequeno demónio rejubilante que acendia fogos por onde passava. Ele olhou para a sua camisa de noite. Após algum estudo, encontrou um botão oculto debaixo de uma camada de renda, junto ao pescoço. Desapertou-o e seguiu para o próximo. Marianne observava aquela mão masculina, morena e experiente, a fazer o que provavelmente fizera muitas vezes antes. Lance olhou para ela. A mão deteve-se. – Importa-se? – Não sei. Tenho de admitir que é... – Excitante. Sensual e palpitante e...


Ele parou e começou a beijá-la enquanto lhe acariciava todo o corpo. O tecido fino do vestido não interferia com a sensação de ser reclamada por aquela mão. A forma como Lance a tocava levava-a ao delírio que havia experimentado no jardim. Mais um beijo. Profundo, invasivo, indecoroso. Ao mesmo tempo, as carícias avançaram pelo flanco e depois para os seios. O prazer intenso venceu a timidez. O seu corpo estivera à espera todo o dia, talvez desde aquela noite no jardim. Ele não tinha experiência com inocentes, como disse, mas acumulava muita experiência com mulheres. Até Marianne podia dizer que sim, pela forma como sabia exatamente como a enlouquecer. Quando o toque dele se tornou rápido e focado nos cumes endurecidos dos seus seios, foi trespassada por setas e mais setas de vibrações intensas. Excitavam-na suave e profundamente, despertando ardentes desejos eróticos que se tornavam cada vez mais intensos. Nessa altura, Lance moveu a mão para o meio dos seios, deixando-a repousar ali. Marianne quase chorou quando ele parou. Abriu os olhos e viu-o a olhar para ela. A paixão fixava-lhe o maxilar e a boca; acrescentavalhe novas profundidades aos olhos. A mão brincava com um dos botões. – Importa-se? – Desta vez não soava tão cuidadoso. Nem o parecia. Marianne abanou a cabeça. Diria que sim a tudo o que significasse que ele não ia parar. A ponta do dedo de Lance voltou ao topo do seu seio. Ele provocou-o, devagar. – Desaperte. Estou extasiado. Marianne desabotoou desajeitadamente os botões, um a um, até não conseguir encontrar mais nenhum. Durante todo esse tempo, ele estimulava-a, vendo o efeito que provocava nela. Lance passou o dedo pela pequena abertura por entre os lados do vestido, onde a pele fora exposta. – Mostre-me como é bela. Percebeu o que ele queria dizer. No mundo muito pequeno em que ambos agora habitavam, juntos, simplesmente sentia o propósito dele. Abriu o vestido, que caiu para cada um dos lados do corpo, revelando


os seios... e mais. O ar fresco do quarto tocava-a ao de leve, excitando-a mais ainda. Os seios elevavam-se, firmes e densos, os mamilos duros, desvendando o quanto o desejo a emocionava. Lance sabia, claro. Marianne não teria segredos para este homem, não neste campo. Intencionalmente, passou-lhe os dedos pelos mamilos, ao de leve, uma e outra vez, tocando-os de forma muitíssimo suave, até Marianne lutar para não gemer. Mais um beijo, controlado mas fervoroso. A boca desceu até aos seios para os beijar. Depois, Lance usou a língua para continuar o que os dedos estavam a fazer. Marianne perdeu toda a pretensão de controlo. Mal conseguia aguentar o desejo intenso do prazer exigente e necessitado que fervilhava dentro dela. A vergonha tornou-se algo que pertencia a um mundo que abandonara, na sua ânsia desvairada. Com alguns movimentos hábeis, Lance despiu-a por completo. dEnvolveu-a num abraço, o que fez com que Marianne sentisse a pele dele contra a sua. Comoções atrás de maravilhosas comoções roubavam-lhe a respiração, quando aquelas mãos percorriam livremente todo o seu corpo. Despojou-a do pudor que lhe restava. Cada cedência de privacidade tecia um casulo mais denso de um prazer arrebatado. Lá dentro, Marianne experimentava uma intimidade que a assombrava. Nem mesmo a sua púbis escapou ao toque dominador de Lance. Ali, uma carícia levou-a a contorcer-se. Com uma perna estendida sobre a coxa esquerda de Marianne e o joelho a pressionar-lhe a coxa direita, Lance impedia-a de juntar as pernas, como ela tentara, para se libertar da sensação nítida e insistente que ele lhe impunha. A angústia do descontentamento penetrou-a, como se todo o seu ser chorasse por algo que não podia ter. Em vez de a aliviar, ele tornou tudo pior. Maravilhosamente pior, até Marianne gritar a sua frustração. A boca de Lance provocava-a e saboreavalhe os seios, até ela soltar gemidos altos, com a tensão que a torturava. Com a outra mão, ele explorava-lhe a púbis, e mais fundo. As carícias contra a carne húmida e palpitante remeteram-na para um delírio onde nada existia nela, à exceção de um anseio agudo e avassalador de encontrar libertação para a tortura daquele desejo cada vez mais intenso. Lance pôs-se em cima dela que, no seu desespero, lhe arranhou as costas. Uma corpulência estreitou-a e logo entrou nela. A princípio foi maravilhoso. Depois doeu.


– Agora – conseguiu Marianne dizer, depois de um arquejo. Doeu mais. Tanto que a ânsia e o prazer se tornaram uma sombra da dor que a dilacerava. – Agora. – Tocou o ombro de Lance. – Disse-me para avisar se me doesse e quando o faço ignora-me. Ele ergueu-se o suficiente para a encarar. – Pensei que estava a dizer que estava pronta. – Não me pediu para lhe dizer isso, pois não? Ele baixou a cabeça e beijou-lhe a face. – Pelo menos o pior já passou. Acho. – Acha? – Tenho a certeza. Quase. Marianne teria de admitir que já não sentia verdadeira dor, apenas uma abundância que o seu corpo não queria acomodar e um estado dorido puro. Conseguia ver e sentir a rédea apertada que ele pusera em si mesmo. – É melhor terminar – disse. – Não me importo de esperar. Isto é... agradável. Por outras palavras, ele não sentia dor. Que bom que um deles estava a desfrutar. – Não, não. Vá em frente. Eu não me importo. – É tão corajosa. Ele moveu-se dentro dela. Não de forma dolorosa mas... não conseguia dar nome ao que Lance lhe fazia. Sentia-se demasiado dorida para ter prazer, mas o corpo respondia de formas que sugeriam que, noutra altura, poderia ser muito bom. Todavia, os efeitos no seu espírito espantavam-na. Este ato renovava a dura consciência da realidade que experimentou quando Lance a encontrou na sala de jantar. Dele. Para sempre. Não podia negar que ele lhe controlava o corpo, a mente e boa parte da alma desde o primeiro beijo da noite. Pressentia o quanto ele se esforçava para evitar magoá-la, e imaginava o poder que teria quando já não carregasse essa preocupação. A paixão dele chamou-a, para que não ficasse separada dela. Beijos no pescoço, nos ombros e nos seios reavivaram-lhe parte da euforia. O prazer permitia que o seu corpo o aceitasse melhor, tornando a abundância mais bem-vinda. No


momento da conclusão, quando o prazer final o fez estremecer e a ânsia o deixou quase vulnerável, Marianne vivenciou a mais peculiar reação: alegria. Lance deitou-se depois de costas. A paixão e a intimidade deram lugar ao mundo, e aos tecidos sobre a cama, e à realidade do homem ao seu lado. – Porque é que não usa os aposentos do duque? – perguntou, numa voz suave. A noite parecia pedir tons suaves. – Porque ele viveu lá. – Levantou-se e pegou no robe. Pelo canto do olho, Marianne observou aquele corpo a mover-se. Esguio e musculoso, os músculos endureciam à medida que vestia as roupas, cobrindo-se aos olhos dela. Lance virou-se e olhou para ela. Marianne aguardou que falasse, se era essa a intenção. Uma vez que ele não falou, ela avançou. – Não é sempre assim, pois não? – Não vou voltar a magoá-la desta maneira. – Não quis dizer... Não é sempre tão cortês e cuidadoso, pois não? Não devo esperar que seja, ou devo? Ele aproximou-se e percorreu-lhe o rosto com a ponta dos dedos. – Não. De seguida saiu. Não precisava de perguntar. Sentira o poder nele, tal como sentia quando montava um cavalo que é forçado a trotar quando quer galopar. Ocorreram-lhe as palavras de Nora, sobre os homens serem bestiais e brutos e cruéis. Lembrar-se de Nora tingiu-lhe o humor de tristezas e inquietações. Devia ter sido horrível enfrentar esta noite com ignorância, e só ter conhecido dor e medo. Talvez o choque nunca passasse.

Lance regressou aos seus aposentos, com a consciência de não se ter saído muito bem naquele ritual. Devia ter-se aconselhado junto de um dos irmãos. De Gareth,


provavelmente. Eva era, sem dúvida, virgem quando o conheceu; quanto a Padua, Lance tinha razoável certeza de que, quando encontrou Ives, já não o era. Pelo menos não brutalizara Marianne, apesar do irreprimível desejo de a possuir depressa e com força. Não perdera de vista quem ela era, nem o que ela era. Podia não lhe ter proporcionado muito contentamento, mas, à exceção daquele infeliz momento de mal-entendido – um equívoco da sua parte, mas, admitia, que acolheu porque estava preso ao controlo pela mais fina das amarras – acreditava que não fora muito mau para ela. Não, as suas falhas haviam sido mais sociais do que físicas. Deveria tê-la seduzido e adulado, agradado e provocado. Deveria, quem sabe, ter feito de conta que a amava. Ela não fora educada para ser mulher de um nobre e parte de um jogo político e dinástico. Provavelmente esperava mais do que satisfação carnal, no mínimo. Não que lhe tivesse proporcionado isso também. Naquele momento, incapaz de considerar dormir, saiu dos aposentos e caminhou de volta ao quarto de Marianne. Em vez de entrar, deixou-se ficar num outro quarto próximo do dela. Depois da morte do pai não ia muito ali. No último ano, não fora de todo. Se visitava Londres, era para esquecer o fantasma que ali habitara, não para o entreter. O luar difuso que se lançava para dentro da sala de estar não permitia mais do que a revelação de formas escuras, mas Lance conhecia cada objeto e onde se encontrava. As garrafas de cristal na mesa junto à parede; os livros, tão raramente lidos, na caixa próxima; o sofá e as cadeiras. O odor de Percy ainda impregnava a divisão, como se o espaço não fosse arejado desde a última vez em que ele visitou a cidade. Não matara o irmão, mas, Deus o perdoasse, definitivamente não lamentava o seu falecimento. O alívio profano que sentira ao saber da sua morte tivera curta duração. Como se por castigo pela sua falta de luto, o destino garantiu que Percy não seria esquecido com tanta rapidez. Arranjara então um casamento, num esforço para banir aquela sombra opressiva. Como Percy devia estar a rir-se. Pelo menos casara-se com Marianne; poderia ter sido com alguém tão maligno como o próprio Percy. Saiu do aposento. Ao passar pela porta da duquesa, pensou em Marianne lá dentro. De certeza que a família a havia pressionado muito para aceitar a proposta. Radley devia ter ameaçado expulsá-la, caso recusasse. Tinha-a deixado a pensar que poderia vir a enfrentar violência na cama de casal, ou muito pior do que havia conhecido naquela noite. Gareth,


famoso pelo charme com as senhoras, bem como pela habilidade, ficaria horrorizado com ele naquela noite, por muitas razões. Raios partam, fora um imbecil. Comprimiu o trinco e voltou atrás, até ao quarto de dormir. Marianne tornara a vestir a camisa de noite, toda abotoada e com as fitas apertadas até ao pescoço. Parecia dormir debaixo do dossel. Marianne abriu os olhos. Lance não conseguia ver-lhe bem a expressão, mas imaginou o que ela terá suposto. – Parece muito pequena aí, Marianne. Ela levantou-se, apoiando-se nos cotovelos, e olhou para a cama. – Não sou muito pequena. A cama é que é enorme. – Também parece muito sozinha. Teria limpado o sono do olho, ou uma lágrima? – Mais estranha do que sozinha. Uma forasteira. E mais diferente do que esperava, de muitas maneiras. Isto faz algum sentido? – Compreendo perfeitamente. – Deviam avisar-nos de que o casamento tem esse efeito. É injusto que não sejamos mais bem preparados. Lance deitou-se ao seu lado. – Presumi que queria que me fosse embora, mas ficarei aqui um pouco, se não se importa. Talvez assim não se sinta tão forasteira. – A voz de Gareth segredava-lhe ao ouvido. Repetiu com prontidão o irmão bastardo. – Não se preocupe. Esta noite não vou aproveitar-me de si outra vez. Agora durma. O corpo de Marianne relaxou. Bocejou e aconchegou-se mais debaixo das roupas de cama. – É melhor cobrir-se. De outro modo, ficará constipado. Lance elevou-se, puxou os cobertores e retirou-se para debaixo deles. Marianne virou-se e chegou o lençol e a colcha mais para cima, aconchegando-os ao corpo dele. Ninguém lhe fazia isso desde que era pequeno.


Virou-se depois para o outro lado. Começou a adormecer. Talvez se sentisse melhor. Lance olhava para as costas, que se moviam com a respiração que se aprofundava. Deu por si a sorrir. Mesmo quando estava inconsciente, ela conseguia alegrar-lhe o humor.


CAPÍTULO 17

AMamã, Nora e o tio Horace fizeram-lhes uma visita no dia seguinte, já de saída da cidade. Regressariam ao Gloucestershire, a carruagem carregada de baús com os novos guarda-roupas. Na sala de estar, tagarelaram durante cerca de quinze minutos, fingindo não ter ideia do que ocorrera naquela casa na noite anterior. Marianne e Aylesbury acompanharam-nos até à saída. O marido e o tio trocaram algumas palavras em privado antes de o tio Horace subir e se sentar ao lado do cocheiro. Aylesbury decidira não deixar Londres por enquanto, o que agradou a Marianne. Pretendia ver as atrações que ainda não tivera tempo de visitar. À tarde andaram a cavalo no parque e depois passaram por algumas lojas. Se Marianne se demorasse a olhar para algo, ele comprava. Depressa se tornou proprietária de uma invejável coleção de luvas de pelica, uma caixa de cristal gravada, um toucado que orgulharia qualquer princesa, dois novos chapéus e um regalo de arminho. No dia seguinte, Aylesbury levou-a ao palácio e à velha catedral de St. James, e à noite foram ao teatro. O duque de Aylesbury possuía um iate, com uma pequena tripulação a postos, e no dia que se seguiu vestiram roupas quentes e navegaram pelo Tamisa em direção ao mar. No quarto dia Eva escreveu-lhes, pedindo-lhes que os visitassem. Tinha uma convidada vinda de Coventry, explicava na carta, e gostaria que Marianne a conhecesse. Poderiam ela e Aylesbury interromper a recente felicidade conjugal para lhes fazer uma visita breve? – A convidada é a mãe do Gareth, Mrs. Johnson – explicou Lance enquanto tomavam o pequeno-almoço na sala da manhã. – Foi amante do meu pai durante décadas. Começaram a relação quando eu era muito pequeno.


– Sei que é comum, mas a sua mãe não deve ter gostado. – Não creio que se importasse muito. Eles não eram um bom par. Até essa altura ela já lhe dera três filhos. Pouco tinham que fazer um com o outro, depois de o Ives ter nascido. – Aylesbury falava distraidamente enquanto via a correspondência. – Anos mais tarde, não muito antes de morrer, o pai disse-me que faltava lealdade à mãe, de muitas maneiras. Não podia confiar nela, e depressa passou também a não gostar dela. – Não acha difícil ouvir isso da sua mãe? Aylesbury pôs uma carta para o lado. – Um pouco, mas não muito mais do que isso. O Percy era o favorito da mãe, claro. Ela ficava com pouco tempo para mim. Eu era o suplente, não o herdeiro. Era triste que o afirmasse com tão pouca emoção, como se fosse normal existir tal distância. Que família infeliz devia ter sido. Era espantoso não ter crescido com malformações de carácter. E daí talvez tivesse. A reputação de que gozava no condado dava nota de sarilhos e insubordinação quando era novo. E também em tempos mais recentes. – É raro Mrs. Johnson vir à cidade – disse. – Presumo que a visita tenha que ver com a aproximação do nascimento do neto. Vamos visitá-los. Gostaria de a ver. Nessa tarde, Marianne vestiu-se com aquelas a que chamava as suas «roupas de duquesa». Quando desceu, Aylesbury apreciou o vestido de lã verde-claro. – Está adorável. – É parte do excesso que a Mamã infligiu com agrado na carteira do tio Horace. Tenho a certeza de que ele está contente por se ver livre do sustento de pelo menos uma de nós. – Em breve terá de visitar as costureiras outra vez – disse, quando se sentaram no coche. – Encontre algumas em quem confie. Precisa de um vestido para ser apresentada à corte, e é provável que haja uma coroação ainda antes de o ano terminar. – Está a ordenar-me que gaste uma fortuna em vestidos novos? Que trabalho excessivo, o que me pede! Lance pegou-lhe na mão e beijou-lha.


– Trabalhe os seus estratagemas com habilidade e provavelmente poderá desfrutar do trabalho como quiser. Esse beijo lembrou-lhe o primeiro que ele lhe havia dado, no pequeno barco, antes de Nora... impediu o pensamento de percorrer aquela tarde. Voltando ao presente, suspeitava que aquele beijo significava que Lance voltaria ao seu quarto nessa noite. Não o fizera desde a noite de núpcias.

Eva entrara de repente naquele estádio da gravidez em que a mulher parece desconfortável. Estava sentada na sala de estar com uma senhora mais velha, de aparência impressionante. Os olhos e cabelos escuros de Mrs. Johnson, bem como o rosto angular, caracterizavam-na como atraente, mais do que como bonita. Em certos traços, o filho Gareth parecia-se muito com ela. Se se fosse crítico, dir-se-ia que as semelhanças o valorizavam para além da beleza, ao passo que a ela lhe conferiam um aspeto vagamente austero. Apesar disso, Marianne não podia negar que Mrs. Johnson parecia muito interessante. E bastante característica, também. Era fácil perceber a razão de a jovem Mrs. Johnson ter sido do agrado do velho duque. Eva apresentou-as, acrescentando, no caso de Aylesbury se ter esquecido de explicar, que Mrs. Johnson era a mãe de Gareth. – Se se sente perfeitamente confusa, foi dado ao meu filho um apelido que reflete o facto de ser filho bastardo de um pai nobre – disse Mrs. Johnson. – Eu também não nasci Amanda Johnson. Tive um breve casamento não consumado com o capitão Johnson; assim, o duque não se envolveu com alguém que fosse oficialmente inocente. – Como pode ver, a minha mãe não faz cerimónias no que respeita à sua própria história – disse Gareth, divertido. – Seria a pior hipocrisia – respondeu a mãe. – Planeia ficar até a criança nascer? – questionou Marianne. – Pedi-lhe que ficasse – declarou Eva. – Ela recusou. Creio que pensa que iria estorvar. Não é, Amanda? Mrs. Johnson adotou uma expressão serena. – Se sei alguma coisa é que não é bom haver duas senhoras numa casa. Pensa que não iria intrometer-me ou impor as minhas opiniões, Eva. Na verdade, é provável que o fizesse.


– Os seus conselhos seriam bem-vindos. – Seriam? – Mrs. Johnson levantou-se, caminhou até um escabelo, trouxe-o consigo e pousou-o. – Então levante os pés, como já lhe disse duas vezes. Eva olhou para Marianne, conteve um sorriso e respeitosamente apoiou os pés. Logo de seguida retirou-os. – Prometo usá-lo logo que voltar. Quero levar a Marianne ao jardim, para lhe mostrar uma coisa. – Levantou-se, pegou na mão de Marianne e instigou-a a segui-la. – Vista a peliça de lã – disse Mrs. Johnson depois dela. – E os botins. Esses sapatos são pouco mais do que chinelos. Eva ignorou os dois conselhos. Pegou numa capa e num agasalho antes de saírem para o exterior. – Menti quando disse que tinha algo para lhe mostrar – afirmou Eva quando passavam pelo terraço. – O Gareth quer que a mãe e Aylesbury falem. A conversa poderá ser mais aberta se nós não estivermos presentes. – Aylesbury disse que a conhece desde sempre. Iria querer que tivessem privacidade. – Mais importante ainda é ela conhecer a casa de Merrywood desde sempre. O pai foi lá mordomo, e ela manteve o contacto com alguns dos criados. Durante todo esse tempo foi amante do duque. Vivia perto de Merrywood, em Cheltenham. Se o Lance está determinado a saber o que de facto aconteceu ao irmão, faz bem em começar por falar com ela. Lance estava determinado em saber? Andava a investigar? Marianne tentou não mostrar surpresa ao ouvi-lo. – Agora, falemos de si. – Eva sorriu maliciosamente e passou o braço pelo de Marianne. – O que acha de ser casada?

– Passou muito tempo, Lance. – Mrs. Johnson tirou-lhe as medidas. – Não te importas que ainda te trate assim, pois não? Sua Graça parece-me demasiado formal para alguém que repreendi quando era criança, e Aylesbury... bom, para mim, haverá apenas um Aylesbury.


Lance sentou-se ao lado dela. – Não me importo. Está tudo bem consigo em Coventry? Precisa de alguma coisa? O pai cuidara bem de Mrs. Johnson, de formas que Percy não pôde tocar. No entanto, os tempos eram difíceis e agora podia não ser suficiente. – Isso é uma oferta para melhorar a minha situação, se eu pedir? É generoso da tua parte. O Percy teria ficado feliz por me ver a passar fome. – Eu não sou o Percy. – Não. Nunca foste. Eras um menino mau... e ainda és, por aquilo que ouço... mas sempre preferi a tua desobediência honesta à submissão falsa e dissimulada dele. Contigo sabia-se em que pé se estava; com o Percy, sentia-se necessidade de proteger as próprias costas. Dificilmente se encontraria uma descrição da personalidade de Percy enquanto jovem mais sucinta e exata. Mrs. Johnson não parecia esperar que viesse alguém em defesa de Percy. – Mãe, o Lance está a investigar os factos da noite em que o Percy morreu – disse Gareth. – Pensei que a mãe pudesse ter alguma ideia de quem, entre o pessoal da casa, pode ser tido como desleal, e talvez seja até o tipo de pessoa capaz de mentir, pelo preço certo. – Penso que, se vamos falar sobre isto, também ajudaria saber se estava lá alguém que odiasse o Percy – disse Lance. – Se ele foi mesmo envenenado, alguém teve de o fazer. Mrs. Johnson franziu a testa enquanto ponderava. – Quanto à primeira questão, não posso ajudar. Todas as pessoas têm um preço, quando alguém se empenha nisso. Não para cometer um assassínio ou traição, talvez, mas para uma mentira... No teu lugar assumiria que todos eles têm esse potencial. – O que Mrs. Johnson disse era provavelmente verdade, mas não uma boa notícia. – Todavia, podes falar com o Stuart. É o velho criado. O inútil. Agora são-lhe dadas funções triviais e muitas vezes põe-se sentado à porta. Está lá desde sempre e conhece-os a todos pessoalmente. – Obrigado. É uma informação útil. – Quanto à segunda pergunta: o Stuart escreveu-me e contou que o criado particular do Percy, Mr. Payne, se reformou. Deviam falar com ele. Serviu o Percy durante anos. Ele saberá se o Percy foi cruel em especial com


alguém, ou se algum criado tomou alguma ação ou palavra como uma ofensa séria. – Mr. Payne não teria avançado e dito alguma coisa, se suspeitasse de alguém? – perguntou Gareth. – Presumes que ele é leal ao amo mesmo agora, que já não está ao serviço e o amo morreu – disse Lance. – A tua mãe tem razão. O Payne poderá saber algo que não quis partilhar com os juízes. Talvez também não tenha lamentado muito a morte do Percy. – Então temos de falar com ele. Onde está? – Foi-se embora antes de eu sequer dar conta. A aposentação foi parte do testamento do Percy. Não faço ideia de para onde foi. Talvez um dos outros criados saiba. – Kent – disse Mrs. Johnson. – Foi viver com a filha para o Kent. O Stuart escreveu-me e contou-me. – Levantou as mãos. – Além disso, não creio que vos possa ser muito útil. – Foi uma grande ajuda – disse Lance. – Tem a certeza de que não precisa de nada? – Um novo par – disse Gareth. – Um dos cavalos da mãe está coxo. – Gareth, francamente. – Mãe, francamente – imitou ele. – É um bocado tarde para ficar embaraçada com os presentes de um duque de Aylesbury. Mrs. Johnson refletiu sobre aquilo. – Ele tem razão. – Tem, de facto – respondeu Lance. – Branco – disse ela. – Sempre desejei um par branco puro para a minha carruagem.

No regresso a casa, Lance parecia preocupado. Permaneceu nesse estado durante todo o jantar. Só depois de terminada a refeição saiu dos seus pensamentos. Olhou para Marianne de forma estranha, como se questionasse o que ainda fazia ela ali.


– Mrs. Johnson é uma senhora encantadora – disse Marianne, para que não ficassem simplesmente a olhar um para o outro num silêncio embaraçoso. – Muito franca, também. – Imagino que tenha sido um dos seus atrativos. A minha mãe, sabe, nunca dizia o que pensava nem pensava no que dizia. – Sobre que falaram? Os velhos tempos? – A Eva não lhe disse? Ele apanhara-a na sua primeira tentativa de dissimular. – Disse algo sobre investigar a morte do seu irmão. – O Gareth deduziu que a mãe pudesse ajudar. Foi sobre isso que conversámos. – Depois deste tempo todo, pensa descobrir o que realmente aconteceu? Porquê agora, e não há nove meses? – Há nove meses, ou mesmo há seis ou quatro, eu acreditava que a esta hora tudo isto faria parte do passado. O juiz de instrução cairia em si e aceitaria a morte do Percy como natural. Contudo, não só isso não aconteceu, como nos últimos tempos se tornaram conhecidas algumas coisas que, por fim, me fizeram ter consciência de que não posso esperar que esta história faça parte do passado, a menos que encontre uma maneira de a pôr lá. – Que tipo de coisas? Lance contemplou a questão como se esta fosse muito mais complexa do que Marianne pensava. – Uma coisa tão pequena que até parecerá ridículo, mas criou-me novas dificuldades. Foi publicada no Times uma carta de um dos correspondentes. Relatava a minha presença na festa e fazia uma referência indireta ao facto de ainda ter a espada a pender-me sobre a cabeça. O autor, um tal Mr. Tewkberry, terá pensado sem dúvida que a carta era benigna, mas fez ressuscitar todos os mexericos e a especulação aqui na cidade. Nada na forma como falou sugeria que conhecia a identidade de Tewkberry. Marianne sentiu-se nauseada. Não podia acreditar que lhe causara problemas ao escrever aquela carta. Não, não era verdade. Estava agora a dissimular consigo mesma. Escrevera a carta depois de ele ter ido demasiado longe no jardim; escreveraa com Nora no pensamento. Sabia que repetir o que o juiz dissera sobre os


novos desenvolvimentos poderia ser interpretado de duas formas. Não quisera causar-lhe grandes sarilhos, mas não se importara muito de poder causar alguns. Claro que, nessa altura, não fazia ideia de que acabaria casada com ele. – Pode ser que desta vez morra depressa. Já toda a gente se divertiu com isso, e não vai manter outra vez as pessoas interessadas por muito tempo. – Em circunstâncias normais, concordaria. Porém, uns membros do Governo que não me têm afeição estão agora interessados no assunto, como nunca antes estiveram. – Segurou na mão de Marianne. – Não é caso para se preocupar, pode parar de franzir a testa. O pior que vai acontecer é eu ser publicamente envergonhado, e mesmo isso será difícil de conseguir com um duque. – Como é que o envergonhariam? Lance encolheu os ombros, como se isso não lhe fizesse diferença, mas os olhos continham profundidades que a levaram a questionar se, na verdade, não faria toda a diferença. – Num julgamento na Câmara dos Lordes – respondeu. – Não acredito que os outros pares o permitam, quando não há provas. Ser publicamente envergonhado não fazia justiça ao tipo de humilhação que Lance descrevia. Marianne não acreditava que homem algum ficasse indiferente a tal perspetiva. Nem mesmo um duque. O espanto deu lugar a mais curiosidade. Era evidente que haver provas faria toda a diferença em qualquer julgamento. Mas, se não havia, porque andava ele a investigar? Veria mais perigo do que declarava? Mais um pensamento resvalou para os outros: ele pedira-a em casamento pouco depois de ter chegado à cidade. Uma coincidência? Ou estariam os dois relacionados? Lance comprimiu a mão que segurava, chamando-lhe a atenção. Os olhos já não continham profundezas sombrias, antes luminosas. – Está recuperada? – Recuperada? Oh. Sim, estou... bem recuperada. – Então venha comigo. – Levantou-se ainda a segurar a mão de Marianne. Conduziu-a para fora da sala de jantar, subindo depois as


escadas. Uma criada aguardava nos aposentos da duquesa, para a auxiliar quando se fosse deitar. Aylesbury entrou com Marianne a reboque e, com um gesto vago, fez a criada apressar-se a sair. Ele virou-se e puxou-a para a abraçar. Beijos e carícias fizeram-na submergir num avassalador acesso de prazer. Nem se apercebeu de que o vestido estava desapertado, até as mangas lhe descaírem nos ombros. Olhou de soslaio para um dos ombros. Aylesbury aproveitou a oportunidade para fazer as mangas descer mais um pouco. – Faz isso com aprumo – disse ela. – Imagino que a prática o tenha ajudado a desenvolver a habilidade. – Muita habilidade. – Lance suavizou a forma como a agarrava, para que todo o corpete pudesse descer. De seguida todo o vestido, até lhe cair aos pés. – Tenho as minhas preferências. Espartilhos pequenos como este, com esta renda na frente, por exemplo. – Os dedos dele trabalhavam com destreza a desapertar a peça de vestuário. – A minha criada podia ter feito isto. – Só se eu estivesse preparado para esperar mais uns momentos. – Ele não revelava impaciência, mas o espartilho abandonava o corpo de Marianne a uma velocidade alarmante. – Foi bom da sua parte. Permitir-me... recuperar. – Devia esperar até ser de manhã, antes de concluir que sou bom. – Um beijo profundo distraiu-a de pensar muito naquele aviso velado, mas não do camiseiro que se deixou ir, juntando-se ao vestido. As mãos dele movimentaram-se pelo corpo despido de Marianne, excitando-a, chamando-a. Ela vibrava com aquele toque possessivo. A sua própria vulnerabilidade excitava-a. Os seios tornavam-se densos e um desejo malicioso deleitava-a onde havia «recuperado». Quando Lance a fez recuar e a encarou, estava demasiado imersa no prazer para sentir vergonha. Olhou, também, para a pele pálida do seu corpo e para os mamilos escuros e firmes. Ainda tinha as meias calçadas. Pensou se seria suposto ser ela a descalçá-las. Ele começou a desatar o lenço do pescoço. – Entre na cama, Marianne.


Obedeceu, subindo para o enorme leito, afastando para o lado as roupas da cama. Ficou deitada enquanto ele se despia. O olhar de Lance não a abandonou. Marianne virou a cabeça quando ele despiu as roupas inferiores. – Não pode ser assim, Marianne. – Com um vislumbre, viu-o em pé junto a si. – Vou mostrar-lhe como receber prazer e também como o dar. Não quero que tenha vontade, mas sinta demasiada vergonha para participar. Por isso, olhe para mim. Àquele tom de comando, Marianne voltou a cabeça. Ele estava despido, à mera distância de um braço. Era esguio e musculoso. O peito dele prendia-lhe quase toda a atenção. Os ombros e os braços, de linhas duras e tensas, espelhavam atividade física. Lance esperou e ela sabia porquê. Por fim, baixou o olhar para ver a ereção. Não era tão estranho como esperava. – É por sua causa – disse ele. – É o meu desejo por si – procurou a mão de Marianne e pô-la no testemunho daquele desejo. A sensação ao tocar também não era como imaginara. Movera-se debaixo do seu toque. Aumentara, a menos que estivesse enganada. Passeou os dedos a todo o comprimento, fascinada pela reação que provocava. – O Lance gosta disto – disse ela. – Foi por isso que no jardim... – Sim. Marianne olhou para Lance, mas prosseguiu com o toque suave. – E se eu tivesse deixado? – Tê-la-ia arrebatado. – Então ainda bem que o esmurrei. – Um não dito com firmeza teria sido suficiente. – Fez-lhe um gesto para que se movesse e juntou-se a ela na cama. – Vai arrebatar-me agora? – Não é essa a minha intenção. – Mas não tem a certeza? Lance falou por entre os beijos que lhe dava no pescoço.


– Pensei esperar umas semanas por um verdadeiro arrebatamento, mas nestas coisas nunca se sabe. – Avisa-me quando tiver isso em mente? – Duvido. Marianne questionava se ser arrebatada incluiria a maneira deliciosa como ele agora lhe acariciava o peito, e aquele fervor de enlouquecer que a dominava. Lance tecia um manto sensual sobre o leito e depressa ela sentiu a ânsia: o prazer fazia-a implorar ainda mais prazer. Toda a sua essência aproveitava, pedia e esperava por mais. A boca de Lance aproximou-se de um seio. Os dedos brincaram com o outro. A combinação de sensações fazia com que a mente de Marianne chorasse por toda aquela beleza e pelos impulsos que se geravam. Abdicou de qualquer pretensão de autodomínio. Apesar do atordoado sentido de tempo e de espaço, encontrou uma réstia de lucidez e mexeu o braço para poder tocá-lo outra vez, para partilhar o prazer. Para participar. Esse gesto mudou a paixão mais do que esperava. Uma nova tensão penetrou Lance. Os beijos tornaram-se frenéticos e impacientes. Vagamente, Marianne tomou consciência de que ambos exprimiam a sua excitação sexual naquele fervor, tanto ela como ele. Ele tocou-a mais abaixo, primeiro com cuidado, depois um pouco menos. Toda a sua consciência desceu também, até que a urgência que ali palpitava lhe dominou o corpo e a mente. – Agora – arquejou, quando, na sua angústia, lhe ocorreu a lição aprendida na última vez. – Ainda não. – Com toques habilidosos e implacáveis, Lance levou-a mais longe no esquecimento da sua ânsia. Marianne não conseguia aguentar. Pensou que morreria. Soltou a frustração dolorosa arranhando o ombro de Lance. – Permita a libertação que o seu corpo deseja, Marianne. Tem de permitir. Aquilo não fazia sentido. Depois fez. Algo nela compreendeu. Deu um passo sem saber se podia. A tensão que a torturava despedaçou-se numa libertação gloriosa de prazer intenso e satisfação. O deslumbramento separou-a de tudo o resto, até da consciência de


Lance. Mesmo quando ele se deitou por cima dela e entrou, mesmo enquanto preenchia os braços com a força dele, Marianne habitava o assombro, pois dentro de si rodopiavam ondas de perfeição. Ainda não recuperara, mas, muito devagar, o mundo interferiu. Lance estava totalmente dentro dela e olhava-a. – O que foi aquilo? – Pestanejou de forma vigorosa, à medida que a realidade se reafirmava. – O nome científico é orgasmo. Talvez seja aquilo a que chamam felicidade conjugal. – Felicidade é uma boa palavra. Mas não creio que seja a isto que se referem as mulheres quando dizem essa palavra. – Provavelmente não, já que muitas mulheres nunca o sentiram. – Lance desceu na cama e dobrou-lhe os joelhos. Encaixou um deles sobre a sua anca. Marianne fez o mesmo com o outro. O resto também não foi como da última vez. Lance não se conteve tanto. Marianne não recuperara por completo, mas não se importava com a sensação dos impulsos dele. O corpo acomodava-os à sua maneira. A excitação renascera. Senti-lo provocava-a, anunciava que poderia conhecer novamente aquela felicidade, se ele se mantivesse assim por muito tempo. O fim dele chegou forte, para ambos. Não tão bondoso. Não tão atencioso. Marianne sentiu que a tensão se rompeu, e percecionou que a libertação o atingiu com estrondo. Nada fez para interferir na forma como Lance se derramou. E mesmo depois de ter saído de cima dela, Marianne não lhe falou; antes se deixou flutuar na invulgar intimidade que sentia com ele. Por fim, Lance mexeu-se e beijou-a. – Não percebo porque é que disse que eu deveria esperar até ser de manhã antes de dizer que é bom – murmurou Marianne. – Não fez nada que me chocasse, a não ser no melhor sentido. Sentiu o sorriso de Lance comprimido na sua face. – Ainda não é de manhã.

Foi um milagre não a ter possuído ali mesmo, em cima da mesa. O


jantar consistira em duas horas de fome que a comida não conseguia satisfazer. Era tudo o que podia fazer para prestar atenção à conversa. Tinham passado meses desde que desejara tanto uma mulher. Anos. Naquele momento, estava deitado com Marianne nos seus braços. Desfrutava também disso mais do que era normal. Talvez este casamento insensato viesse até a ser agradável, pelo menos durante algum tempo. Nunca se podia ter a certeza, nas primeiras semanas ou meses. O prazer recente tinha o poder de obscurecer a verdade acerca de um casamento, tal como a experiência do pai demonstrara. Por ora, o contentamento reinava. Com ela e consigo mesmo. Pelo menos, mostrara-lhe o quanto o prazer podia ser agradável. Não a deixara outra vez incompleta. – Como aprendeu a fazer aquilo? – perguntou Marianne, sempre curiosa. Lance não se importava, mas a curiosidade de Marianne tinha potencial para, a certa altura, se tornar um problema. Não era do tipo normal. Ela possuía o infeliz talento de ver distintamente as questões a partir de todos os ângulos. As perguntas que fazia podiam ser inconvenientes e demasiado incisivas. – Na minha juventude, o meu pai mandou-me a um bordel muito elegante. Lá, as mulheres mais velhas tinham tendência para treinar os rapazes inexperientes em certos aspetos. Creio que acreditavam ser o seu dever para com as futuras esposas explicar que aquela felicidade devia ser partilhada por ambas as partes. Ou talvez quisessem o pagamento em mais do que moedas. – Se o seu pai não o tivesse mandado lá, algum dia teria sabido? Lance encolheu os ombros. – Os homens não discutem muito se as mulheres conhecem ou não o contentamento na cama. A conversa é bastante mais grosseira do que isso. – Imagino que sim. Duvidava que Marianne pudesse sequer aproximar-se de o imaginar. Ainda bem. Ergueu-se apoiando-se no braço e olhou para baixo, para Marianne. Ela não se tapara muito; o corpo macio parecia belo na cintilação dos dois candeeiros deixados pela criada. Lance acalmou a mão percorrendo-lhe a suavidade da pele, fria e sedosa.


Marianne olhou para ele com uma vivacidade irreverente no olhar. – Quais são as suas intenções, senhor? Lance respondeu pondo-lhe a mão na púbis, e acariciando-a com mais intensidade dentro da abertura. Marianne surpreendeu-se com a intensidade imediata. As pálpebras desceram e os lábios abriram-se. Ele levou-a devagar, atraindo-a de volta à paixão desprotegida que havia demonstrado. Viu-a fletir-se perante as convulsões que a reclamavam, até deixar para trás toda a intenção de controlar o efeito que ele tinha nela. Provavelmente, naquele momento permitir-lhe-ia qualquer coisa, mas Lance não seria assim tão mau. Marianne tocou-o também, procurando dar-lhe prazer. Isso seduziuo. Lance conteve os impulsos e concedeu, ainda que, no seu pensamento, já estivesse dentro dela. – Um dia farei assim com a minha boca, Marianne. Fez deslizar o dedo pelos lábios dela, atormentando-a depois com pequenas penetrações. Marianne pestanejou várias vezes e olhou para Lance. Confusa. Curiosa. Ele provocou-a até ao ponto em que o discernimento a abandonou outra vez. Não conseguia esperar mais. Nem desejava esperar. Encostou uma almofada e virou Marianne; ela abraçou o colchão e as nádegas elevaramse. Mostrou-se mais confusa, até que Lance se ajoelhou atrás dela e a estimulou novamente com a mão. Ela deitou uma face na cama e observouo pelo canto do outro olho. A posição erótica de Marianne levou-o ao limite do seu controlo. Acariciou-lhe toda a parte inferior. Redonda. Suave. À espera. À medida que Marianne se oferecia, a parte inferior das costas descia ainda mais. Lance esperou até que ela gemesse e o prazer a arrebatasse. Penetrou-a devagar, refreando a paixão enquanto desfrutava da sensação de a possuir. Mas a fúria erótica cresceu depressa e pouco depois uivava dentro dele. Investiu então com força, até o prazer explodir e o lançar para um lugar de pura sensação.

Desfaleceu ao lado de Marianne, com o braço possessivamente


colocado atrás das costas dela. As respirações profundas coincidiam e encontravam-se no espaço entre as cabeças na almofada. Pouco a pouco, Lance acalmou e parecia estar a deixar-se ir para o sono. Em vez disso, o braço moveu-se e uma carícia percorreu as costas de Marianne e subiu ao cume da sua parte inferior, seguindo depois para onde a sua carne escondida ainda pulsava. Um toque levou-a de volta à elevação da paixão. Agarrou os lençóis debaixo das mãos. Fechou os olhos e deixou acontecer. Antes de terminar quase chorou. Ao acabar, gritou. Nem mesmo nessa altura Lance parou; antes libertou ecos de êxtase que estremeceram dentro dela. Em seguida, ele adormeceu. Marianne perguntou-se se tencionaria ficar naquela cama. Talvez tivesse pensado em fazê-lo outra vez, de uma maneira diferente. Não se importava da presença dele ao seu lado. Considerava-a aconchegante e íntima. Naquele momento não conseguia adormecer, mas deixou-se ficar ali deitada, com Lance a abraçá-la. Os seus pensamentos passearam-se, sonolentos, pelos acontecimentos do dia. Ocorreu-lhe a revelação de Eva, de que Aylesbury andava a investigar a morte do irmão. Depois de todo aquele tempo... Precisamente quando decidira casar-se... Depois de todo aquele tempo... Justamente quando o Governo mostrou renovado interesse... Depois de todo aquele tempo... Mesmo quando finalmente se casou. Uma mulher inapropriada sem fortuna nem posição, que ele não amava... Depois de todo aquele tempo... Devia ter adormecido porque, de repente, um abalo despertou-a. Encontrou Aylesbury sentado na cama, a esfregar os olhos. Ao longe, um batimento ressoou; uma voz gritou. De seguida parou, mas instantes depois recomeçaram as batidas, mesmo à sua porta. Aylesbury levantou-se e, ainda despido, abriu a porta. Marianne agarrou o lençol e cobriu-se. O criado de Lance encontrava-se ali, de costas voltadas para a entrada, para não ver o interior. – Meu senhor, está um homem lá em baixo, um mensageiro de Windsor. – Estendeu a mão atrás das costas. Uma flanela da Índia baloiçava, suspensa. Aylesbury vestiu rapidamente a flanela e dirigiu-se para o exterior enquanto a abotoava. O criado conseguiu fechar a porta sem virar a cabeça. Dez minutos mais tarde, Aylesbury regressou. Parecia preocupado.


– O que se passa? – perguntou Marianne. – Uma mensagem privada de cortesia, enviada de Windsor devido à minha posição. O rei morreu esta noite, às oito e meia. Pouco depois de ele ter terminado de falar, o grande sino da catedral de St. Paul começou a tocar.


CAPÍTULO 18

–Permaneceremos na cidade até ao funeral do rei. – Aylesbury explicava os planos a Marianne, dois dias mais tarde, ao jantar. – No dia 15 ficará em câmara ardente e será enterrado no dia a seguir. É preciso pressionar a sua costureira para que prepare os trajes apropriados. Como minha duquesa, irá ter elevada precedência no cortejo. Marianne parecia muito preocupada. Muito mais do que Lance esperava, depois da noite que acabavam de partilhar. Podia estar a enumerar os deveres que lhe competiam, mas metade do seu pensamento via-a selvagem e despida, elevando-se sobre ele enquanto, delirante, o montava. Aquela imagem de Marianne não o abandonara todo o dia. Lance estava a gostar daquele tempo de casal na cidade e não lamentava que tivessem de ficar. Todavia, continuava à espera de notícias de Gloucestershire. Aguardava em particular uma carta de Sir Horace, informando-o de que o juiz de instrução havia por fim pronunciado um veredito quanto à morte de Percy, classificando-a como devida a causas naturais. Se tal correspondência não chegasse até ao dia seguinte, escreveria a Sir Horace a indagar sobre a delonga. Marianne já não comia. Apenas olhava, distraída, para o prato e para o copo de vinho. – Que se passa? – perguntou Lance. – Vestir um traje adequado poderá não ser o bastante para me fazer passar na inspeção. Não tenho a menor ideia do que é suposto fazer. Fala num cortejo, mas nunca vi nenhum. E como saberei sequer o que é um traje adequado? – Vou arranjar alguém que lhe explique tudo, como prometi, e que a ajude com o vestido. Na coroação que se seguirá, vestirá também um traje de Estado tradicional. Vou mandar que lhos mostrem, para se ir


habituando. – Estendeu-se para lhe segurar a mão. – Não fique tão sorumbática, bela flor. Não é a situação ideal para conhecer os seus pares, mas não podemos evitar. Irá deslumbrá-los a todos. Como lhe saíam com facilidade aquelas adulações. Lance não era um homem dado a tais coisas, e como tal ficou impressionado consigo mesmo. Apercebeu-se de que era importante para ele que Marianne não se preocupasse tanto. Desejava mesmo tranquilizá-la. Uma centelha de humor assomou aos olhos de Marianne. – Duvido que vá deslumbrar. Não creio que vá ter olhos pousados em mim. Sabe de mais alguma coisa sobre a cerimónia? – Apenas o que os jornais reportam. – Lance voltou à sua refeição. O que era mentira. Conhecia todos os detalhes. Em particular sabia que alguns duques transportariam o caixão. O seu nome não constava da lista. Havia muitas explicações para o facto. O título fora-lhe concedido recentemente; o rei não era seu amigo, nem tinha sequer uma idade aproximada. Contudo, não lhe escapou que, enquanto os servos reais e os oficiais do Governo faziam os seus preparativos, ao duque de Aylesbury não havia sido atribuído qualquer papel. Visto que não existiam muitos duques, e ainda menos elementos da família real, a desconsideração parecia deliberada. Podia ter que ver com a revelação que Carlsworth partilhara com ele. O mais provável era que tivesse. De facto, estava-se nas tintas para se dispunha de lugar na cerimónia, mas era importantíssimo saber se a ideia de o julgar conquistara apoiantes. – Agora é o Aylesbury quem parece preocupado – disse Marianne. – Atrevo-me a dizer que aquilo que o preocupa é mais do que trajes e protocolo. – Talvez seja só isso. No fim de contas, será a minha primeira cerimónia como duque. Marianne riu-se e apertou-lhe a mão. – Acredito conhecê-lo o suficiente para saber que tais coisas não o fazem franzir a testa. Irá fazê-lo como já o fez cem vezes. Creio que há algo mais a perturbá-lo. Mesmo assim, não irei intrometer-me. Lance queria poder contar-lhe. Estranho que o desejasse, mas era


verdade. Só que, se contasse, ela poderia perceber que tinha a resposta para o grande porquê? sobre o pedido de casamento. Nunca quis que Marianne soubesse acerca do acordo com o tio. E não saberia, se tivesse uma palavra a dizer. A refeição ainda não terminara, mas Lance levantou-se e puxou-a pela mão. – Os dias pesam bastante com as conversas sobre o rei, o funeral e o seu passado. Aonde quer que se vá, é o que se ouve. Não sou imune à melancolia lá longe no reino. As noites, todavia... são sobre a vida, o prazer, o presente. Venha deitar-se comigo. Lá não verá más caras. – O senhor também não, se usar as suas melhores habilidades. Com um braço sobre os seus ombros, conduziu-a para fora da sala de jantar. – Quais são as minhas melhores habilidades? – Não sabe? Não consegue adivinhar? – Por acaso, ainda não experimentou aquelas que considero ser as minhas melhores habilidades. Estou confuso, portanto. Nas escadas, Marianne libertou-se do abraço de Lance. – Permita-me que vá preparar-me, mas venha ter comigo depressa. – Começou a subir as escadas, mas depois parou e olhou para trás. – Todas as suas habilidades me proporcionam muito prazer, Aylesbury. Mas penso que, independentemente do que venha a acontecer, para mim a melhor parte será sempre quando me deixa abraçá-lo naquela paz que vem depois. Sou antiquada, eu sei. Continuou depois a subir, deixando-o admirado e inesperadamente comovido.

O rei estava morto. A proclamação do próximo rei fora atrasada um dia, porque a 30 de janeiro assinalava-se o aniversário da execução de Charles II. No dia seguinte, Lance recebeu uma carta enviada pelo administrador de Merrywood. Leu-a, meteu-a no bolso e saiu de casa para um passeio matinal com Ives e Gareth.


– A cidade está a encher-se – comunicou Ives. Nem mesmo na época alta vemos tamanha coleção de pares. Os coches estão a provocar um congestionamento na Strand. – Daqui a duas semanas, vão todos congestionar a estrada para Windsor – afirmou Lance. – Presumo que o nosso novo rei esteja perturbado com o falecimento do pai. – É o que consta – confirmou Ives. – Adoeceu de repente. Uma doença dos pulmões. Está muito mal, segundo ouvi dizer. Tão mal que alguns temem que possa haver um duplo funeral. Considerando que Ives mantinha uma amizade com o novo rei, presumia-se que tivesse ouvido bem quando lhe chegaram as notícias sobre Prinny. Continuaram a fazer andar as montadas a um ritmo tranquilo. Todas as pessoas que seguiam a cavalo pelo parque faziam o mesmo. Andar a galope pareceria demasiado rejubilante, à luz dos últimos acontecimentos. Naquele momento, a diversão em público seria tomada como um insulto à Coroa. – Ele é um homem robusto, ainda que seja mais corpulento do que saudável – disse Gareth sobre o novo rei. – Vai recuperar. Lance não sabia se, no silêncio que se seguiu, os irmãos estariam a dizer uma oração. A sua mente calculava. Faltavam duas semanas para o funeral. Até lá, ninguém pensaria em mais nada. Seguia-se depois mais uma quinzena, pelo menos, enquanto se processavam os trâmites da transição. Teria mais ou menos um mês para resolver o problema, de forma a que, quando a vida começasse a regressar à normalidade, ninguém se preocupasse com ele. – A tua noiva está assoberbada com os preparativos da primeira cerimónia pública da corte? Deve ser uma ideia intimidante para ela – disse Gareth. – Hoje está na costureira, com Lady Kniveton como conselheira. A viscondessa aceitou orientá-la durante os preparativos e explicar-lhe aonde deve ir e o que deve fazer. Gareth olhou-o, surpreendido. Ives riu-se. – Uma estranha escolha de conselheira – disse Ives. – Ficou muito feliz. Encantada. Aceitou a incumbência com muito entusiasmo.


Ives deu uma gargalhada, o que atraiu alguns olhares reprovadores no parque. Incluindo o de Gareth. – Limitaste a tua lista de possíveis conselheiras às antigas amantes de Gareth ou consideraste outras? – questionou Ives. – Ela não foi verdadeiramente minha amante – murmurou Gareth. – Foi um fascínio breve. – Da tua parte. – Não limitei as minhas escolhas às conquistas do nosso irmão, na falta de uma palavra mais precisa – disse Lance. – Simplesmente percebi que existia maior probabilidade de uma delas concordar, nestes tempos tão agitados e penosos. Gareth não gostou daquilo, de todo. – Se deste a entender a Lady Kniveton que eu estaria ao serviço dela enquanto faz o aconselhamento, dou-te uma sova. – Não dei a entender nada. – Lance sorriu. – Não poderei, contudo, ser considerado responsável por quaisquer esperanças que a senhora possa ter. – Se ela espera um pouco de atenção, podes seguramente dar-lha – disse Ives. – Pelo Lance. Pela sua duquesa. Pela família. Por Inglaterra, por Zeus! – O diabo é que vou dar. – Falas como se tivesses de fazer um grande esforço para cativar as senhoras – disse Lance. – É algo que te ocorre de uma forma tão natural como respirar. Ninguém espera que te comprometas, ou ao teu amor pela Eva. Todavia, se Lady Kniveton ficar rabugenta, o facto de sorrires uma ou duas vezes na sua companhia poderá ajudar. Elogiar um bocado. Et cetera, et cetera... – Já te disse várias vezes que não haverá nenhum «et cetera». Nem vou estar na companhia dela. – Ele fica muito melindrado quando mencionamos o seu passado, não fica? – perguntou Lance a Ives. – Oh, como caem os poderosos quando dominados por uma mulher. – Deixa que essa seja uma lição para ti, Lance, não vá o prazer conjugal fazer com que abandones o bom senso. Se o homem não for cuidadoso, a mulher torna-o romântico e senil – repreendeu Ives.


– Queres dizer que devo seguir antes o teu exemplo. Permanecer sob o meu comando, tanto quanto sob o da minha mulher. – Pois claro. Avançavam a passo pesado ao longo do caminho. Lance olhou para Ives, mesmo a tempo de ver Gareth a fazer o mesmo. Gareth sorriu discretamente, abanando a cabeça, espantado. Ives olhava em frente, convicto, na sua ilusão, de que o casamento não o mudara em nada.

Lance depressa se destacou dos irmãos, direcionando o cavalo para sudoeste, através do Middlesex. Logo que os subúrbios de Londres ficaram para trás, parou e retirou do bolso a carta que o administrador lhe enviara. Continha um endereço e algumas orientações. Meia hora mais tarde, conduzia o cavalo por um caminho rural que subia até uma pequena casa de campo rodeada por um jardim. Uma mulher jovem e uma menina estavam sentadas debaixo de uma árvore, atrás da casa, entre os arbustos. A menina viu-o, disse algo à mulher e correu para dentro de casa. No momento em que Lance alcançou a porta, esta já se abrira. Ali, um homem pequeno, careca e com óculos vestia o casaco. – Sua Graça! Quando a minha neta disse que se aproximava um senhor, nunca imaginei que fosse Sua Graça! – Mr. Payne. É ótimo encontrá-lo tão bem. Payne olhou para trás, sorrindo depois com timidez. – Sua Graça gostaria de entrar? Lance não queria impor-se da forma como a visita de um duque inevitavelmente se imporia. – O dia está ameno. Se puder dispensar-me alguns minutos, podemos conversar cá fora. – Tempo é o que hoje em dia não me falta. Payne fechou a porta. Juntos, seguiram a pé de volta pelo caminho.


– Foi negligente da minha parte não ter ido vê-lo antes de deixar Merrywood – disse Lance. – Deveria tê-lo feito, para lhe agradecer o longo serviço à família. – Não dei atenção a isso, Sua Graça. Foram tempos confusos. – Soube que está a viver aqui com a sua filha. – Ela foi generosa o suficiente para me receber. O marido é agricultor. A minha situação satisfaz-me. O ar é fresco e os vizinhos são honestos. E agora faço um pouco de jardinagem. Tenho talento para isso. Quem diria? Do alto do caminho, conseguiam avistar de novo os jardins. A menina voltara para junto da mãe. – Fico feliz por saber que está contente. – Obrigado, Sua Graça. – No entanto, não vim apenas por isso. – Não pensei que tivesse vindo. Imaginei que fosse perguntar por ele. – Payne parecia brando, resignado, até. – Com certeza conheceu-o melhor do que qualquer outra pessoa. Não lhe estou a pedir que seja desleal... – Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém me perguntaria por ele. Em parte pela maneira como morreu... tenho pensado muito sobre a lealdade e sobre o que lhe devo. Ele legou-me uma boa soma, não legou? Mais do que eu esperava. – Payne fez uma expressão de consternação. – Decidi não a ver como um suborno, Sua Graça. Quando um homem aceita um suborno, está a fechar um negócio, não é? – Um negócio nítido, com duas partes em acordo. – É como o vejo. Lance sancionou aquela conclusão para se sentar durante uns momentos, antes de abordar a questão. – Eu e os meus irmãos acreditamos que ele morreu de modo natural. Contudo, decidi verificar se a suspeita de morte não natural tem, em teoria, alguma credibilidade. Agora terei de ser mais desleal com ele do que o Payne algum dia conseguirá ser, ao perguntar-lhe se está a par de alguma razão pela qual alguém quisesse fazer isso. – Matá-lo, quer dizer. Assassiná-lo. Com certeza que sim.


Lance ficou admirado não só com a admissão, como também com o modo sério e absoluto com que Payne falou. – Ele foi cruel com algum dos criados de Merrywood? Consigo? O olhar de Payne tornou-se duro. Olhou Lance nos olhos. – Um homem mata outro pela crueldade? Não. Será que o mata sequer por um ignóbil ato de crueldade? Sua Graça matou-o por causa dessa cicatriz? Oh, sim, eu sei disso. Ele contou-me, aquele grande... Payne controlou-se. Tirou um lenço de bolso e enxugou a testa. – Perdoe-me, Sua Graça. Perdi a cabeça. Fui inconveniente. – Foi? Penso que não. Payne recompôs-se. – Um homem não mata com tanta facilidade por causa de insultos a si mesmo, mas aqueles que poderiam ter matado haveriam de ter boas razões para o fazer. O que quero dizer é que um homem pode ser levado ao homicídio para proteger aqueles que lhe são queridos. Nessas circunstâncias, um homem não dado à violência pode muito bem alimentar ideias dessas. Lance não respondeu. Payne ou confiaria ou não. Diabos o levassem se ia atormentar o homem com este tema. Ocorreu-lhe que deveria ter trazido Ives, para quem atormentar testemunhas era uma profissão. Payne parou de andar e olhou para trás, para a casa. – Havia uma parte dele que ninguém via, exceto eu e aqueles janotas que arranjou para andarem com ele pelo campo. Sua Graça sabe do que estou a falar. – Olhou de novo para a cicatriz. – Ele tinha um gosto por meninas, por exemplo. Meninas doces, de famílias de agricultores e tal. Eu já sabia quando ele ia à caça, por assim dizer. Nessas alturas ficava com uma expressão... – Payne suspirou pesadamente e abanou a cabeça. – Perdoe-me, mas ele não era um bom homem e essa é que é a verdade. Também era traiçoeiro. Fingido. Daquele tipo que o abraça como a um amigo, de maneira a, pelas costas, lhe enterrar o punhal nas costelas – falou como se se tivesse libertado de algo que necessitava de dizer há muitos anos. – O administrador deu-me o nome de três criados que estavam lá naquela noite, e que entretanto deixaram Merrywood. Cooper, Young e Sharp. Conheceu-os? – perguntou Lance. – Conhecia-os o suficiente para acreditar que perde o seu tempo com


eles. O Cooper era um homem tímido. O Young contactava pouco com Sua Graça, visto que a sua posição não envolvia servir o duque. O Sharp era um criado. Não pode haver homem mais sereno. – Consegue lembrar-se de mais alguém que eu deva considerar? – Lamento, não tenho nenhum nome para Sua Graça. E não tenho certeza de que lho daria, mesmo que o tivesse. Compreende? Aylesbury compreendia. Era melhor que a suspeita caísse sobre um duque do que sobre um criado qualquer, que fosse dar com o pescoço num nó sem provas suficientes. – Tenho mais uma questão. Ocorre-lhe alguém que pudesse ser recetivo a um suborno? Quem cometeria perjúrio por dinheiro? – Teria de ser um grande suborno, de alguém que pudesse garantir que nunca viria a lume, não é? Não posso dizer que conheça tal homem. – Espero que me escreva, se mais tarde se lembrar de algum nome. – Anda alguém a mentir sobre aquela noite? Arrojado, se me pergunta. Não me parece que haja preço alto o suficiente para a maioria dos homens se enredar em tal. Quem sabe aonde poderá levar e quem poderá zangar-se o suficiente para ripostar. – Quem, de facto. Caminharam de volta até à casa de campo. Despediu-se de Payne, montou o cavalo e cavalgou de volta à cidade, com as revelações de Payne a ecoarem-lhe no pensamento.

Aylesbury fechara-se em si mesmo. Marianne não o achava melancólico, ainda que se pudesse interpretar a sua distração dessa forma; mais propriamente, pressentia nele pensamentos carregados. Voltara ensimesmado daquele passeio pelo campo. Mesmo enquanto Marianne relatava as atividades com Lady Kniveton, e que a senhora continuava a perguntar por Gareth, expressando o tempo todo a sua confiança quanto ao cortejo que aconteceria dentro de dois dias, apenas metade da mente de Aylesbury, na melhor das hipóteses, a ouvia. Aquele estado de espírito afetou-lhes também a paixão. Tê-la-ia procurado na esperança de que o prazer pudesse ofuscar aquilo que lhe


pesava? Marianne pensou que sim, por momentos. Mais tarde, quando lhe repousava nos braços, com o ouvido encostado ao peito dele e envolvida no seu calor reconfortante, percebeu que os pensamentos o chamavam outra vez. – Depois do funeral voltaremos para Merrywood – disse ele. – Devo pedir às criadas que façam as malas? Ou passaremos aqui antes? – Diga-lhes que façam as malas. Não creio que fiquemos muito tempo, mas não sei. Marianne voltou-se para poder ver-lhe o rosto. Passou as pontas dos dedos pela linha firme da boca de Lance. – Está distante. Quase perdido de mim. Abraça-me, mas na verdade não está aqui. Ele sorriu, como que para lhe provar que estava enganada. Ergueu a cabeça e beijou-a. – Hoje soube de algo que não me surpreendeu tanto quanto deveria ter surpreendido. Estou a tentar convencer-me de que não fui deliberadamente cego. – Tenho a certeza de que não foi. – Eu não tenho essa certeza. De todo. – E quando voltarmos a Merrywood, terá? – Possivelmente. Marianne aconchegou-se outra vez para trás. – Ficarei feliz por voltar. Tenho saudades da minha mãe e da Nora. Penso que posso até ter algumas saudades do tio Horace. A mão de Lance vagueou-lhe pelas costas, para cima e para baixo. – Recebeu notícias dele? – Notícias? Ele não me escreve. Deixa isso para a minha mãe. – Mas encontra-se bem? Não está doente, ou sobrecarregado com deveres?


– A minha mãe não disse que estava. Porque pergunta? – Escrevi-lhe há dois dias e não recebi resposta. Aylesbury escrevera ao tio Horace? Possivelmente era uma gentileza, para demonstrar que a conexão que os unia era agora familiar. Nesse caso, o tio Horace devia ter ficado encantado. – Surpreende-me que não tenha respondido. Talvez esteja doente. – Estou certa de que iremos encontrá-lo atarefado, mas fora isso em boa forma. Marianne deixou-se levar, aconchegada no contentamento que experimentava quando ficavam assim deitados, juntos. Por vezes achava que ele também o apreciava. Não por algo que tivesse sido dito ou feito; simplesmente porque a sua alma reagia como se soubesse que aquela outra alma a abraçava.


CAPÍTULO 19

Lance entrou em Merrywood com uma pequena lista de afazeres, a cumprir o mais depressa possível. Abominava um deles; quanto ao outro, esperava que mudasse tudo. Marianne ficou aliviada com o fim do funeral de Estado. Apresentarase muito bonita, apesar do traje de luto, e a todos os níveis correta. Lance teria de encontrar uma maneira de agradecer a Lady Kniveton, pois duvidava de que ela considerasse que a sua gratidão era suficiente. Dedicara-se a ensinar Marianne com uma esperança em mente: a de que veria Gareth, e que este ficaria tão dominado pelo desejo que deixaria a nova mulher. Tal não aconteceu, evidentemente. Lance pensou se umas pérolas apaziguariam eventuais sentimentos feridos. Saiu dos seus aposentos em Merrywood e caminhou até àqueles que era suposto usar, os do duque. Entrou e olhou em volta. Nada havia mudado desde que o irmão morrera ali. Payne partira antes de ser ordenada a arrumação dos pertences de Percy – nem Lance se lembrou de emitir tal ordem; sem ela, ninguém fizera nada, exceto o pó. O espaço, ainda mais do que o apartamento da cidade, estava impregnado da presença de Percy. Tinha sido aquela a sua verdadeira casa, o seu covil. Combatendo a aversão pelas recordações da vida e da morte do irmão, Lance olhou em redor. Abriu o guarda-fatos do quarto de vestir e as gavetas da secretária. Examinou com cuidado o diário de Percy e folheou as cartas recebidas no seu último dia. Nem sabia bem o que esperava encontrar. Não indícios claros de quem o assassinara, se é que alguém o tinha feito; antes colocava a hipótese de algumas das marcas dos delitos do irmão poderem, pelo menos, fornecer uma ou outra possibilidade quanto a quem eventualmente teria um motivo.


Quando terminou, permaneceu no meio da sala de estar, aceitando o fracasso. Não ia encontrar uma solução rápida, como esperara que acontecesse. Nenhuma carta incriminatória nem confidência escrita. Restavam-lhe duas semanas para resolver a questão e Merrywood não continha nada que fosse esclarecedor. Os seus pensamentos desfizeram-se. Apercebeu-se de que não estava sozinho. Virou-se. Marianne encontrava-se na entrada da sala de estar, observando-o. Ela desviou a atenção para o próprio aposento. – Imaginava que fosse grandioso. Mais ducal. – O meu pai não era dado à grandiosidade. – Pelo marcador de sepultura que tem, presumo que não fosse. – Ela entrou devagar e pôs a cabeça dentro do quarto de dormir. – Fala como se o seu irmão lhe tivesse feito poucas alterações depois de receber a herança. Talvez o Percy pensasse que viver como o pai viveu o pudesse tornar mais parecido com ele. Era uma perspetiva interessante. Lance nunca atribuíra a um sentimento deste género a preferência de Percy por deixar as propriedades tal como se encontravam. – Nunca me ocorrera que o Percy se sentisse inadequado para a herança. – Ele desfigurou-o, não foi? Parece o ato de um rapaz que pensava que o irmão mais novo era mais adequado para desempenhar o papel de duque do que ele. Marianne entrou discretamente no quarto de dormir para ver melhor. E depois no quarto de vestir. – Em qualquer parte destes aposentos, quase nada me diz algo sobre ele. Imagino que seja isso que acontece com homens deste tipo; os criados mantêm-lhes a vida tão organizada que acabam por deixar para trás muito pouco de si mesmos. Lance vagueava na esteira de Marianne, ouvindo as suas observações. Ela observava com bastante mais clareza do que ele. As suas reações aos locais que visitaram na cidade e ao longo do rio haviam sido semelhantes. Marianne instruía-o e impressionava-o, ao fazer com que olhasse para o que lhe era familiar sob um novo prisma.


– O que estava a fazer aqui? – Levantou e virou o correio do último dia de vida de Percy, e o que chegara nos dias que se seguiram à sua morte. – Procurava informação sobre a morte dele? – Tinha esperança de encontrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso... – Gesticulou em volta e encolheu os ombros. Marianne voltou ao quarto de dormir. – Os seus aposentos são assim tão incaracterísticos? Os do seu pai eram, quando vivia aqui? Considero esta total falta de objetos pessoais cada vez mais peculiar e assustadora. – Quando o meu pai cá vivia, havia muitos desses pertences. Até levei, como recordação, uma pequena estátua que ele comprou. E existiam outras coisas. Os livros favoritos, pedaços da sua vida desde que era pequeno... – Parece, contudo, que o seu irmão era um vazio. Ou então nunca se sentiu confortável aqui. – Marianne regressou à sala de estar e à entrada. – Não era minha intenção intrometer-me. Vim à sua procura para lhe dizer que a Mamã escreveu a convidar-nos para nos juntarmos a eles amanhã ao jantar. Importa-se que aceitemos? Poderei ir sozinha, se preferir não... – Iremos os dois. Marianne honrou-o com aquele sorriso que conseguia iluminar o mundo. Voltou para trás e abraçou-o. – Obrigada. Sei que deve recear que eles o aborreçam. Prometo que me certificarei de que a minha mãe não o fará. – Não temo nada desse género. – Então é melhor do que eu, porque receio precisamente isso. – Marianne voltou para a porta e saiu. O convite para jantar garantia que a segunda tarefa da lista de Lance seria concretizada em breve. Contente por isso, voltou a dispensar atenção aos aposentos. Marianne tinha razão. Havia ali pouco de Percy. Nada, na verdade. Este podia ter sido o seu lar, mas não fora de todo o seu covil. O que significava que esse se localizava noutra parte qualquer. Estava quase certo de que sabia onde o encontrar.


Nora não se juntou a eles para jantar. A Mamã mostrou-se satisfeita por ela ter permanecido no quarto e, num sussurro, prometeu contar a Marianne o motivo, logo que se encontrassem a sós. O jantar decorreu bastante bem. A Mamã fez muitas perguntas sobre o funeral e o papel de Marianne. O tio Horace interrogou Lance acerca de como esta situação deveras invulgar iria ser acomodada pelo Governo. No geral, a refeição foi agradável, ainda que um tanto formal para um encontro familiar. A parte agradável alterou-se quando Marianne e a Mamã deixaram os cavalheiros e se dirigiram para a sala de estar. – A tua prima tem manifestado um interesse doentio em todos os procedimentos relativos à morte do rei – informou a Mamã, assim que se sentaram. – Está sempre agarrada aos jornais. Fala em demasia sobre o assunto. As notícias ampliaram um elemento mórbido da sua personalidade que é muitíssimo desconcertante. – Irei vê-la antes de me ir embora. Vou encorajá-la a ser menos mórbida. – Francamente não tenho tempo para a amimar como tu fazias, filha. A minha vida agora é demasiado ocupada. Recebo visitas quase todos os dias, exceto naqueles em que retribuo as visitas. Olha, até Lady Barnell nos fez uma visita na semana passada. Estou próxima do esgotamento, digo-te. – Lamento que o meu casamento a tenha posto em tal pressão. Se soubéssemos, não me teria casado, de forma alguma. O olhar da mãe afiou-se com o sarcasmo. – Estás infeliz por ter seguido o meu conselho? Não querias ser uma duquesa e ter elevada precedência no cortejo em Windsor? – Não estou infeliz, mas o meu contentamento não se deve às coisas que a mãe enumera. A Mamã não deixou escapar as implicações da afirmação nem, como Marianne temia, o rubor que sentia a aquecer-lhe a face. – Isso são boas notícias, filha. A minha única preocupação era que ele se revelasse um bruto quando estivessem a sós. Ainda que, se teve tantas conquistas como se consta, tem de saber o que faz, a esse respeito. – Vamos falar de outras coisas. Há boas bisbilhotices na região? O tio


Horace deliciou-a magistrados?

com

acontecimentos

engraçados

do

tribunal

de

A Mamã contou-lhe uma história cómica sobre um dos delitos menores trazidos aos magistrados durante as sessões. Era mesmo o tipo de história por que Elijah Tewkberry era conhecido por recontar bem. Durante todo o tempo, porém, Marianne pressentia que a mãe estava a engolir um outro mexerico e que estivera toda a noite a escondê-lo. – Ainda não me contaste os mexericos da aldeia. De certeza que na minha ausência transpirou algo digno de ser segredado. A mãe assumiu um dedicado interesse pelos botões da manga. – Nada de especial. – É evidente que, mais tarde ou mais cedo, vou ouvir o que quer que seja que está a abster-se de partilhar. A mãe arranjou os caracóis em volta do toucado. – Não estou a abster-me de partilhar nada. – Então sou toda ouvidos. Um profundo rubor elevou-se desde o peito da mãe até ao decote. – É claro que vais ouvir, é verdade. Talvez seja melhor que seja por mim. – Repousou a mão na de Marianne. – Corre um rumor sobre o teu casamento. Um rumor vil e calunioso. – Espero que não se assuma que ele me engravidou. Mas se sim, o tempo encarregar-se-á de refutar. – Quem me dera que fosse isso. Sinceramente. Marianne, há quem diga, e deixa-me dizer-te que são pessoas horríveis que eu nunca receberia, se ouvisse os seus nomes, que Aylesbury se casou contigo para que o teu tio não avançasse com um relatório de magistrado a pedir o julgamento. Falo daquele assunto da morte do último duque e da conversa fiada acerca do carácter de Aylesbury que daí resultou. Marianne pensou que o coração ia parar de bater, de tão chocada que ficou com a notícia. Pior ainda era como dava voz a algo que ela própria tentara a muito custo não questionar. – Quem lhe contou isso? Não é o tipo de assunto de que se fale abertamente.


– Mrs. Wigglesworth, claro. Aquela velhota metediça nunca ouviu uma palavra maldosa sobre ninguém sem ficar ansiosa por repeti-la. Como podes imaginar, gozou da revelação que me fez. Oh, quase chorava por se sentir tão mal, dizia ela, mas aquela raça explode se não puder espalhar estas notícias por toda a parte. – Eu e a mãe ouvimo-la vezes que chegue. Suponho que não posso guardar-lhe rancor, se agora tiver o que tantas vezes estive disposta a dar. – Isto é diferente. Muito diferente. Este mexerico não tem qualquer credibilidade. Foi completamente inventado por umas mentes malevolentes. Só espero que Mr. Tewkberry não ouça nada disto. Há três dias que vivo em pânico com essa possibilidade. Leio o Times com nervosismo e continuarei a fazê-lo durante um ano. – Eu não teria tanto receio. Mr. Tewkberry não se corresponde com o Times há mais de quinze dias. – Só porque tem estado doente. – Tem estado doente? – Segundo Mrs. Wigglesworth, foi atacado por uma febre alta, mas já está a convalescer. – Mrs. Wigglesworth conhece-o? – Pessoalmente, não. Conhece, porém, uma mulher cujo irmão alega tê-lo encontrado. Mr. Tewkberry arrendou um apartamento em Cheltenham, enquanto tomava as águas da estância termal. O seu inimigo é a gota. – A Mamã apertou as mãos. – Oh, filha, estou consumida de preocupação. E se ele ouve falar disto e o partilha? Até consigo imaginar também como vai fazer: nenhum nome, só o suficiente para que toda a gente saiba que és tu. Marianne bateu ao de leve na mão da mãe. – Não creio que Mr. Tewkberry seja tão imprudente que vá bater-se com um duque. Não deixe que este rumor a angustie. Um despropósito destes é para os tolos. Mesmo enquanto confortava a mãe, a própria Marianne sentia-se muito consternada. Há vários dias que a coincidência temporal tentava chamar-lhe a atenção. Não podia negar que este rumor perdurava porque dava uma explicação bastante plausível para o seu casamento. – Falemos de coisas melhores. Conte-me a reação de Mrs. Wigglesworth e das outras ao seu novo guarda-roupa.


Desfrutar da descrição da inveja das outras mulheres afastou a preocupação da cabeça da Mamã. Passou o resto do tempo em que estiveram a sós a regozijar-se.

– O porto é aceitável? – perguntou Sir Horace depois de ambos terem dado um gole. – Mais do que aceitável. É ainda melhor do que o que tenho em Merrywood. Sir Horace sorriu abertamente. – Trouxe-o da cidade. Queria ter algo excecional para, quando os amigos me visitam, brindar ao casamento da minha sobrinha. – Tem então desfrutado das atenções. Fico contente. É tão raro os duques serem úteis ao próximo. Folgo em saber que lhe trouxe algum proveito. Sir Horace deu uma gargalhada, mas o som decaiu numa morte lenta assim que ele encontrou o olhar de Lance. Tossiu um pouco, forçando depois um sorriso tímido. – Recebi a sua carta. – Presumi que sim. A falta de resposta não me agradou. O tom de Sir Horace tornou-se suplicante. – A situação complicou-se. Juro que falei com Peterson. Pouco depois do meu regresso fui encontrar-me com ele. «Veja», disse-lhe, «nove meses é muito tempo. Está na hora de finalizar isto; não tem prova de nada, exceto de causas naturais. Termine o processo». Foram estas as minhas palavras exatas. E, por Zeus, ele concordou. – E no entanto, cá estamos nós, sem um veredito final do juiz de instrução. Sir Horace voltou a tossir. – De facto, de facto. Na verdade, dois dias mais tarde, Peterson envioume uma carta. Emitir o veredito tão depressa, logo a seguir ao seu casamento com a minha sobrinha, pareceria mal, escreveu ele. Haviam-se levantado rumores de um quid pro... quid quoe quid...


– Quid pro quo. É aquilo que foi acordado. Quer dizer, eu faço isto e o senhor faz aquilo. – De facto, de facto. De qualquer forma, ele empatou-me. – Então vá falar com ele outra vez e faça com que o desempate. A minha parte do nosso quid pro quo não pode ser anulada, pelo que terá de cumprir o seu lado. Radley coçou o rosto profundamente carregado com a mão ossuda. – O que se passa é o seguinte: têm corrido boatos sobre isto. Especulase que o seu casamento dependeu da minha desistência no que se refere à morte do seu irmão. Peterson seguramente ouviu o rumor. Lance notou que a sua paciência estava a minguar de forma rápida. – Achava que não ia haver especulação? Era inevitável. Todavia, como par, não poderei nunca ser-lhe presente nas suas vestes de magistrado. Não é como se me tivesse casado com uma parente de Peterson. – Ele tem princípios. – Arranje uma maneira de ele se dispor a fazê-lo. Disse-me que conseguia. Até me disse que, de qualquer forma, Peterson já estava inclinado para aí. – Sim. De facto, de facto. Mas penso que mais alguém se envolveu. Não estou certo, mas acredito que sim... Ele mencionou algo sobre pessoas mais acima se interessarem pelas suas deliberações. Recebeu uma espécie de carta. A irritação com Radley deu lugar a um forte interesse na sua revelação. – Conte-me exatamente o que ele lhe disse. Foi de algum oficial do Governo? – Creio que sim. Alguém em Whitehall. Não imagino que interesse poderá haver num caso vago aqui neste condado. – Os olhos de Radley iluminaram-se. – Pode ser que essa carta o mande resolver o assunto depressa, porque o reino não se pode dar ao luxo de ter um dos seus duques debaixo de tal nuvem. Talvez ele o resolva, e tudo terminará sem que eu tenha de o pressionar. Improvável. Ao que parecia, porém, a carta não fora enviada pelo alto magistrado nem por um dos seus. Lance começou a enumerar os outros membros do Governo que poderiam guardar-lhe rancor.


Em primeiro lugar na lista encontrava-se o visconde Sidmouth, o ministro da Administração Interna. O assunto do outono passado com Ives e Padua provavelmente deixara Sidmouth sedento de vingança, pela humilhação sofrida durante o desfecho do episódio. Não exercia qualquer autoridade sobre os procedimentos legais no Gloucestershire, mas os homens que gozam de poder desenfreado ignoram com frequência tais detalhes. Amaldiçoou-se por não se ter lembrado mais cedo de que Sidmouth poderia estar a tirar partido da situação. Quem sabe teria até feito chegar aos ouvidos do primeiro-ministro a ideia de um julgamento. Ajudou a humilhar-me. Agora ajudarei a humilhá-lo. – Lamento muito – disse Radley, tentando sorrir. – Farei o que estiver ao meu alcance, como é evidente. Estava certo de poder influenciar o juiz de instrução, mas não o controlo. Lance mal conseguia conter a ira; ela abundava dentro de si, uma fúria perigosa que ansiava pela libertação. Levantou-se. – Aquela testemunha que alega ter é uma parte do quid pro quo que controla. Se é um homem de palavra, não permitirá que essa pessoa repita as mentiras perante Peterson, ou seja quem for. Radley teve o descaramento de ficar ofendido com a insinuação. – Está a sugerir que não sou um homem de palavra? – Neste momento, a questão está em aberto. Radley levantou-se. – Como ousa, senhor? Eu agi de boa-fé. – O diabo é que agiu. Agiu no seu próprio interesse. Não no meu, nem no da Marianne. – Terei de insistir que retire o que disse, senhor! – Retirarei quando o senhor concluir o que prometeu. Se não o fizer, questionarei a sua honra publicamente e poderá desafiar-me para um duelo ou arcar com as consequências. – Lance avançou até se encontrar a escassos centímetros do corpo alto e magro de Radley. – Maldição, agora quase desejo que se chegue a um duelo. Radley fitava-o, com uma expressão de choque. Lance dirigiu-se para a porta.


– Estarei na carruagem. Mande a sua sobrinha ter comigo.


CAPÍTULO 20

Marianne ficou ressentida com a forma como o tio Horace a mandou embora. Aylesbury está à tua espera lá fora. Resolveu ir já embora. Gostou ainda menos da forma indelicada como Aylesbury terminara a visita. Nem sequer tivera tempo para ver Nora. O desagrado seguiu-a até à carruagem e ao interior da mesma; porém, uma vez sentada do lado oposto a Aylesbury, dissipou-se de imediato. Nunca o vira assim. Os candeeiros no pórtico esculpiam-lhe o rosto com sombras e retoques duros. Os olhos fulminavam. O olhar perfurava-a. Ela poderia perfeitamente ser um ladrão que tentara roubar-lhe a carteira. – Teve uma discussão com o tio Horace? – Partilhámos um excelente vinho do porto enquanto discutíamos diversos assuntos. O que não era o mesmo que afirmar que não houvera qualquer discussão. Talvez o tio tivesse partilhado o rumor que a mãe lhe relatara. Isso explicaria o seu humor sombrio. A forma como Lance a encarava faziaa questionar se, de alguma forma, ele a culpava pelo falatório maldoso. Afinal, o seu próprio espírito esmorecera com a notícia. Um homem, e ainda por cima um duque, toleraria muito pior mexericos desses. Regressaram a Merrywood em silêncio. Quando chegaram, Marianne sentia-se como se estivesse sentada ao lado de um estranho; um estranho com uma veia denteada e perigosa, como a cicatriz que tinha no rosto. Depois de breves boas-noites, Marianne retirou-se para os seus aposentos. Aylesbury dirigiu-se para a biblioteca. Katy ajudou-a a despir-se. Sentou-se no toucador para Katy lhe pentear o cabelo. Desviou o olhar do espelho. Cada vez que se vislumbrava a si mesma, um pensamento parecia repetir-se na sua mente, um


pensamento que desejava evitar: E se não for só um rumor? E se for esse o motivo? A ideia adoecia-lhe o coração. Não era tão pueril que estivesse à espera que o amor florescesse entre eles, mas havia começado a pensar que talvez aquele casamento pudesse ser um casamento decente, com intimidade, pelo menos, e humor e alegria. Esse otimismo não podia sobreviver no seu reflexo, onde a verdade pretendia fazer-se valer. Se foi essa a razão pela qual se casou contigo, não significas nada para ele. Uma conveniência, na melhor das hipóteses. Uma mulher comprada com a honra dele, no seu pior. De súbito, Katy parou de escovar. O ar no quarto de vestir tornou-se de imediato mais pesado. Marianne não precisava de olhar para saber que Aylesbury entrara. Trouxera com ele a escuridão. Katy pousou a escova no toucador e saiu. O robe de Aylesbury surgiu atrás de Marianne no reflexo do espelho. As mãos dele deslizaram-lhe pelos ombros e em volta do pescoço, numa carícia peculiar. Marianne forçou-se a falar. – Está descontente com alguma coisa. – Muito descontente. – Fiz algo para causar esse descontentamento? – Não. E, no entanto, está na mesma do centro da questão. – O meu tio falou-lhe do boato que se espalhou em relação ao nosso casamento, não falou? – Sim, falou. De qualquer forma, eu teria sabido em breve. Marianne virou-se e olhou para ele. – É verdade, não é? Casou-se comigo para que o meu tio afastasse as suspeitas sobre a morte do seu irmão. – Lance limitou-se a olhá-la. Então, já tinha a resposta; sabia, simplesmente sabia. Desejava ao mesmo tempo chorar e desculpar-se. Em vez disso, manteve, a grande custo, a compostura. – Claro que teria de haver uma boa razão. Eu sabia que sim. E se está tão aborrecido, terei de concluir que algo no plano correu mal. Umas bisbilhotices não seriam suficientes para justificar o que aconteceu depois do jantar. – Não só é curiosa como também inteligente, bela flor. Acredito que


ignorava a trama do seu tio, mas nunca saberei, como é evidente. – Claro que ignorava. Indigna-me que pense o contrário. Ele sorriu, mas não de forma benevolente. – Está indignada? Não sabe o que é a verdadeira indignação. Imagine a minha. A Marianne é a minha duquesa e minha mulher devido a um negócio que correu mal. Quando muito, o que vou ter é o melhor que nada. Recebi pouco proveito seguro, além de poder usá-la. – Lance pegou-lhe na mão e fez com que se levantasse. – Estou disposto a tirar o máximo proveito da minha situação. Consegue compreender isso? Marianne percebeu o que Lance queria dizer. Um tremor agitou-se dentro dela. O medo, sem dúvida, mas também a excitação disfarçou aquela reação. A sensualidade dele tornara-se palpável; a forma como a olhava exprimia o desinteresse por um amor cortês. Parecia tão mau como todos diziam que era. O perigo que emanava dele não devia estimulá-la, mas estimulava. Mas não tanto que não se preocupasse. Lance apercebeu-se. – Não vou magoá-la. Se o autorizar a si mesma, vai até sentir grande prazer. Marianne anuiu. O discurso tornara-se impossível. Lance afundou-se no divã do quarto de vestir. Marianne deixou-se ficar de pé, em frente a ele. – Abra essa coisa espumosa que tem vestida. Quero relembrar-me do que recebi em troca da minha imprudência. Marianne desceu os olhos para a veste. Puxou as extremidades de quatro fitas para desatar os laços. Os dedos estremeciam-lhe ao procurar os botões ocultos por baixo das camadas de renda. Olhou para Lance uma vez, mas a atenção dele aterrorizou-a de tal modo que não voltou a olhar. Os lados do vestido de casa caíram, deixando-lhe a nudez visível. – Mais. Alargou a distância entre os lados, exibindo os seios e a púbis. – Dispa-o.


Obedeceu. A renda caiu-lhe aos pés e ficou despida. Ele deixou-a ficar assim. Sentiu-se embaraçada, vulnerável. Permitirlhe que a olhasse dessa maneira encheu o ambiente dos aposentos de um erotismo perfeito. Apesar do nervosismo, uma excitação maliciosa começou a urdir a sua insistente atração. Lance levantou-se. O robe planou para o chão. – Olhe para mim – ordenou. – Não a quero tímida. Já lhe disse. Marianne forçou-se a olhá-lo. Estava tão despido como ela. Ereto. Esculpido. Implacável. Não me vai magoar. Ele não é assim. E prometeu-me. Se bem que muito tinha mudado desde essa promessa, e Aylesbury parecia bravio o suficiente para Marianne poder ser demasiado crédula. No entanto, uma pequena parte de si – a parte essencial –, considerava aquela disposição dominadora apaixonante e a sua própria vulnerabilidade quase deliciosa. Lance aproximou-se dela, tão perto que os seios o tocaram e a excitação dele tocou-a. Sentiu-se pequena, bem como indefesa. Não era suposto gostar da sensação, mas... – Beije-me. Teve de se pôr em bicos dos pés para conseguir. Para se equilibrar, agarrou-o. Sentia os ombros vigorosos debaixo das pontas dos dedos. Comprimiu os lábios contra os dele. – Beije-me como eu a beijo, Marianne. Sentindo-se mais disparatada do que ousada, deixou que a sua língua lhe invadisse a boca. Teve de segurar-lhe a cabeça para que funcionasse. Ficou assim ainda mais próxima daquele corpo, até lhe captar o calor. O braço dele rodeou-lhe a cintura, deixando-a ainda mais perto. Marianne não estava sequer certa de estar a beijá-lo bem, mas pelo menos ele não a corrigiu. O abraço elevava-a de tal forma que os dedos dos pés mal tocavam o chão. Lance assumiu o controlo e a sua incursão mostrou-se bastante mais agressiva do que a dela – o que, aliado à energia exagerada que o corpo dele continha, dava a Marianne uma vaga ideia de como ia ser. Ele libertou-a. Deu-lhe a mão e conduziu-a até à cama. – Sente-se.


– Vai ser assim a noite inteira? Com os seus comandos e a minha obediência? Aylesbury olhou-a como um rei olharia para uma rebelde audaciosa. – Sim. Marianne sentou-se. Ele posicionou-se em frente. – Beije-me outra vez. Ela olhou para cima. Não podia beijá-lo, a menos que ele se curvasse. Mas não se curvou; ficou apenas a olhá-la. Marianne encarava o torso diante do seu rosto. Experimentando, inclinou-se para a frente e beijou-o. O sabor de Lance fascinava-a. A pele macia que lhe cobria o corpo forte. Um toque salgado. Apimentado, talvez. Beijou-o outra vez. E outra ainda. O gesto deixou de ser uma novidade estranha. Segurou-o pelas ancas e beijou-o mais, usando toda a boca e aventurando por fim a língua ao longo das costelas. Lance aproximou-se mais, por entre as pernas de Marianne, até a ereção lhe provocar os seios. As mãos também o faziam, estendendo-se por baixo dos braços de Marianne para lhe acariciar os mamilos, até ela se esquecer do seu humor, daquilo que o motivara e da forma como começara. Depois lembrou-a outra vez. Pousou-lhe uma das mãos sobre a coroa. Subtil e inequivocamente, pressionou-lhe a cabeça e encorajou-a a beijá-lo mais abaixo. Marianne percebeu o que ele queria. Já muito excitada e antecipando a felicidade que estaria para chegar, sentiu mais a ignorância do que o choque. Com a ponta dos dedos, tocou-lhe toda a extensão do membro e ousou beijá-lo na ponta. Lance não pediu mais nem sequer esperou. Em vez disso, empurroua para baixo e Marianne caiu de costas na cama. – A Marianne primeiro. – Ele ajoelhou-se. Ela observava, aturdida; observava e sentia a mão dele a reclamar-lhe a paixão. Deliberadamente, impiedosamente, aliciava-lhe mais e mais a excitação. E quando já toda ela era gemidos e loucura, a cabeça de Lance mergulhou e novas sensações a tomaram de assalto. Demasiado intensas para aguentar, levaram os olhos a fechar-se e o pensamento a contrair-se, até não reconhecer senão desejo e prazer erótico. Carícias pecaminosas provocaram-na até ter vontade de gritar. Depois gritou, quando a libertação explodiu dentro dela.


Emergiu da letargia e viu-o ali outra vez. Com o maxilar firme, os olhos contraídos e um furor intenso, Lance estendeu-lhe a mão e puxou-a de novo para cima. A Marianne primeiro. As palavras repetiam-se na mente dela. Sabia do que Lance estava à espera. Segurou-lhe a ereção e desceu a cabeça. Lance disse-lhe o que fazer. As palavras chegavam-lhe através do aturdimento em que ainda flutuava. Gostava de como ele reagia, de como o torturava, como tantas vezes ele a torturava a ela. Pressentiu que o furor se tornava mais tenso dentro dele e, para variar, que o prazer dele estava sob o seu comando. Algo em Lance mudou. Estalou. Deu por si deitada de costas de novo. Ele levantou-lhe os joelhos até às suas ancas e entrou nela com força, com um só impulso poderoso. Retirou-se e entrou outra vez. E outra. De cada vez fechava os olhos, como que para conter ou saborear o que aquilo o fazia sentir. Fê-lo cinco vezes; depois retirou-se, estendeu-se para ela e virou-a. Com as mãos a segurar-lhe com força as ancas, elevando-as bem alto, continuou as investidas, furiosa e fortemente, até que, depois de longos momentos, uma libertação violenta o chamou.

Lance prostrou-se na cama, exausto e saciado. Não estava, porém, satisfeito. Não estava em paz. Durante bastante tempo, Marianne não se mexeu. Permaneceu como Lance a deixara, com a parte inferior do corpo levantada, numa pose que, mesmo naquele momento, continuava a ser erótica para ele. Rolou depois para cima das costas e levantou-se, para que as pernas não baloiçassem. O movimento provocou-lhe um esgar. Que diabo. – Magoei-a. Ela fechou os olhos. – Nem por isso. Embora eu tenha pensado que poderia chegar ao fundo da minha garganta, se continuasse. Caramba. – Não era minha intenção. – Creio que era. Penso que queria usar a mulher que recebeu num mau acordo, e a cortesia que fosse para o diabo. Pelo menos agora sei o que


significa ser arrebatada. Lance devia sentir-se culpado. Só que não sentia. Não o suficiente, de modo nenhum. Marianne abriu os olhos e olhou para ele. – Penso que gosto de ser arrebatada. – É bom saber que sim. Muito bom saber. Um alívio, tinha de admitir. – Não sempre, claro. Se é essa a sua intenção, encontrar-me-á sem disposição. Ainda sei esmurrar, quando tenho de o fazer. Lance não fazia ideia de qual era a sua intenção. Ainda não superara por completo a raiva gerada pela descoberta de ter sido enganado por Horace Radley. Virou-se também de costas e aguardou que o corpo voltasse a encherse de energia. – O que se passou entre si e o meu tio? – perguntou Marianne. – Creio que tenho o direito de saber. Conquistei esse direito. Lance contou-lhe, porque ela tinha de facto o direito de saber. Marianne escutou sem comentar. – Deduzi parte. Não acerca dessa testemunha que ele diz ter. O resto, sim. Suspeitei disso durante muito tempo. Era o único «porquê» que fazia algum sentido. Lance pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios. – Se eu não tivesse gostado de si, se não sentisse afeto por si, não a teria pedido em casamento. Foi muito fácil para mim fazê-lo, compreende? – Demasiado fácil. Marianne conquistara o direito de saber também aquilo. – Obrigada pelas palavras. – Soltou devagar a mão da dele. – Agora importa-se de sair? Foi um dia longo e uma noite surpreendente. Gostaria de dormir. – Claro. – Ele levantou-se da cama, recuperou o robe no quarto de vestir e saiu. O caos ainda se agitava dentro dele, mas não como antes. Pelo menos a ira carregada diminuíra. Claro que sim. Libertara-se da sua intensidade grosseira, virando-a


contra Marianne. Ela não era culpada disso, mas tratara-a como se fosse. Era a primeira vez que ela lhe pedia que saísse. Lance desconfiava que, no futuro, ia pedir-lho muitas vezes. Para mim, a melhor parte será sempre quando me deixa abraçá-lo na paz que vem depois. Isso acabara naquela noite, talvez para sempre.

*

Na manhã seguinte, pouco depois do amanhecer, Marianne mandou preparar um banho. De seguida vestiu-se e desceu. Pediu que Calliope fosse selada. Logo que se encontrou instalada na montada, cavalgou direta para casa do tio e entrou intempestivamente, quando este ainda tomava o pequeno-almoço. A mãe também estava ali sentada. E Nora. Todos olharam para ela. A boca da Mamã abriu-se. Marianne não tinha interesse em ninguém, exceto no único homem da mesa. – Gostaria de falar consigo, tio. Na biblioteca, se não se importa. Horace encostou-se para trás na cadeira. Os olhos mostravam o brilho frio que ele gostava de exibir nas sessões do tribunal. – Talvez me importe. Marianne agarrou as costas de uma cadeira para evitar vomitar ali e naquele momento. – Ouça-me bem, senhor. Se pretende ter alguma hipótese de no futuro ser recebido por mim, se não deseja que eu repudie publicamente a nossa relação, estará na biblioteca dentro de três minutos. Virou-se e saiu a passos largos do aposento, em direção à biblioteca. Dois minutos depois, o tio Horace chegou. Esticou-se até ao máximo da sua altura e agitou os longos braços com uma indignação dramática. – Como te atreves a entrar nesta casa e a falar-me naqueles modos à frente da minha filha?


– Como se atreve a negociar a minha vida em prol dos seus próprios objetivos? Como se atreve a coagir um homem a casar-se, ameaçando-lhe o bom nome e mesmo a vida? – Ele contou-te? Foi corajoso da parte dele. E estúpido também. Seria melhor se não soubesses. Assumi que ele teria mais delicadeza do que esfregar-te as circunstâncias no nariz. – Depois do vosso encontro de ontem à noite não havia razão para Aylesbury fingir, nem para prolongar a delicadeza que teve até agora. O tio afundou-se numa cadeira estofada e olhou-a furiosamente por cima dos joelhos elevados. – És uma duquesa, não és? Que queixas poderás tu ter? Que te importam as negociações que levaram ao pedido de casamento? – Pensa que o estatuto e as joias podem substituir a felicidade? Desculpe, foi uma pergunta estúpida. Claro que pensa. É melhor acabar o que começou, tio, ou não terá ganhado nada com a sua esperteza. Ele deu tantas gargalhadas e tão fortes que os olhos lacrimejavam. – És uma provinciana ignorante, Marianne. Não sabes de nada. Eu já ganhei com o casamento. E continuarei a ganhar, mesmo que vocês nunca mais me falem. – Desceu a mão até ao joelho, com força, e de súbito parou de rir. – Fui indemnizado pelo insulto a mim e à minha filha. Finalmente. E serei ainda mais, uma e outra vez, nos próximos anos. Desfruta das tuas joias e das tuas sedas, Marianne. Tira o máximo proveito, como eu tirarei. Fiz-te um grande favor. Marianne não conseguia controlar a fúria. O tio falava do seu casamento como se não fosse mais do que um estratagema astuto, com ela como cúmplice; falava como se, possuindo luxos e amigos bem nascidos, pudesse suportar e até desfrutar de uma vida inteira ligada a outra pessoa. Não era importante para ele que aquela maquinação implicasse que o marido a visse, na melhor das hipóteses, como um mau negócio. – Disse-lhe que tem uma testemunha, tio. Quem é a testemunha? – Isso é só para eu saber. – Essa testemunha é fidedigna? – Qualquer pessoa que declare sob juramento, como este homem jurará, é suficientemente fidedigna, quando se trata de homicídio. – Pode ser apenas um homem ressentido contra Aylesbury. Um


homem disposto a mentir. Já considerou essa hipótese? O tio contraiu os lábios. – Claro que sim. Acontece que sei que esta pessoa não tem qualquer animosidade contra o duque. Antes pelo contrário. É por isso que se prestará a fechar a boca, se eu lho exigir. – Apesar disso contou-lhe. Sem dúvida que, quando o fez, o considerou um bom homem; uma pessoa que o poderia aconselhar honradamente. – O teu tom não me agrada. – Terá de me desculpar. Acho que há algo que não deixarei de pensar sempre que olhar para si. – O que poderá ser? – Conspirou para casar Aylesbury com Nora, e depois comigo, acreditando que ele é um assassino. Que tipo de homem faria isso a alguém da família? Horace encarava-a, com o rosto a ruborizar-se. Estendeu o corpo e pôs-se em pé, dirigindo-se de seguida para a porta. Antes de sair, virou-se novamente para ela; um sorriso agressivo formou-se devagar. – Pensa o que quiseres, mas eu disse que tenho uma testemunha que prestaria declarações. Nunca disse que acreditava que ele cometeu de facto o crime.


CAPÍTULO 21

Naquele dia, algo no ar prenunciava neve. Mesmo assim, Lance saiu a cavalo, e não foi para caçar; antes conduziu o cavalo para um local que andava a evitar há já vários meses. Aproximou-se de uma casa de campo desabitada, uma das poucas que se encontravam fora da pequena aldeola que um duque anterior organizara. Era essa a casa que o administrador o pressionara para arrendar a um inquilino; a que Ives sugerira que demolisse, se não a quisesse, para que não fosse ocupada por vagabundos e larápios. Tinha ido ali uma vez antes. Descobrira-a ao ajudar Gareth e Ives a encontrar umas pinturas desaparecidas, pouco depois de Percy morrer; não ficara por muito tempo. Assim que entrou de novo, soube que o irmão mais velho havia utilizado a casa. Não só viu provas disso como o sentiu, com tanta certeza como se o fantasma de Percy morasse ali e a intrusão o tivesse acordado. Era então aquele – e não os aposentos em Merrywood – o covil do último duque. Amarrou o cavalo e arrombou a porta, hesitando depois. A última vez que ali estivera não olhara muito, nem se demorara, porque sabia, simplesmente sabia, que poderia descobrir algo que preferia não conhecer. Contudo, a ignorância deixara de ser um luxo de que podia usufruir. Entrou. Um arrepio percorreu-o. A casa ficara durante muito tempo sem o calor de uma lareira. As janelas eram viradas a norte, pelo que recebia pouca luz do sol. Apesar disso, não conseguia esmorecer a sensação de que mais uma vez Percy se ofendera com a intrusão. Os sinais de uso permaneciam; nada fora mudado. A cama ainda revelava muita utilização e a borda de uma mancha, que já vislumbrara da última vez. Puxou a roupa de cama para trás. A mancha mostrou-se por


completo. Parecia ser sangue. Uma fileira de garrafas alinhava-se sobre a armação da lareira. Vinho, bebidas brancas, xerez e porto. Três estavam vazias. As de xerez e de porto ainda continham líquido. Imaginou o irmão ali, talvez com os amigos. Oh, sim, Percy tinha amigos, gente nova daquele condado e de outros próximos. Provavelmente trouxera-os aqui para beber. Lance olhou para a cama. E para outras coisas. Iniciou uma investigação metódica do local. Junto à lareira encontrava-se um guarda-fatos. Era estranho dispor de um na sala de estar. Abriu-o, encontrando um sortido de armas. Não apenas espadas, mosquetes e pistolas; também um chicote de pastor e uma vergasta do tipo usado para castigar os rapazes na escola. Amontoada por baixo das armas, encontravase uma pilha de lenços de pescoço usados e sujos. Levantou um deles; nunca adornara um pescoço. As extremidades davam sinais de ter sido apertadas entre si. Uma cómoda alta quase preenchia a parede em frente à lareira. Abriu as gavetas, uma a uma, e esvaziou-as. Roupas. Vestuário de mulher. Duas combinações, que mostravam sujidade. Um espartilho com os cordões cortados, como se uma faca os tivesse trespassado quando ainda estavam apertados. Meias. Muitas meias. Depois de acabar permaneceu no aposento. Desejava poder evitar a conclusão que se formava, mas sabia que não podia. No fim de contas já suspeitava, mesmo antes de descobrir que Percy utilizava esta casa. Em criança, o irmão possuía um carácter cruel, vil – a sua própria cicatriz demonstrava-o; era evidente que não se libertara dessas características. Deu meia-volta e saiu do edifício. Lançou-se para cima do cavalo e galopou a alta velocidade. Na sua mente, repetiam-se vezes sem fim duas questões, seguindo o ritmo do bater dos cascos do cavalo. Quem saberia? E quem teria o irmão magoado?

Marianne não conseguia arranjar coragem para regressar a casa. Sentou-se no jardim, debaixo de uma árvore infrutífera, embrulhada num velho capote que vestira durante anos no Wiltshire. Dentro de casa havia manteletes de pelo e requintadas peliças de lã que os seus dedos adoravam afagar. Em vez deles escolhera este capote. Assentava-lhe bem. O seu lugar era dentro dele. Aylesbury não se encontrava quando Marianne voltou de casa do tio, mas acabava de chegar. Ela ouviu os rapazes da estrebaria a levar o cavalo


para a cavalariça. Faltava-lhe a coragem para o encarar. Não por causa da última noite. Simplesmente não sabia o que lhe dizer, ou como prosseguir com o casamento, sabendo o que agora sabia. Sentiu-se tola, imbecil. Havia mentido a si própria, afirmando que este matrimónio poderia ser mais do que a mera união estranha que era. Imaginara a intimidade que pensava que partilhavam. O otimismo desnorteara-lhe o bom senso. O sol do entardecer trouxe algum calor ao assento, mas duraria pouco. Não podia ficar ali fora para sempre. Apesar disso, não se mexeu. Uma figura surgiu no terraço. Semicerrou os olhos de encontro à luz viva e baixa do sol, para ver quem era. Aylesbury, ao lado da balaustrada do terraço, imóvel. Segurava um copo na mão. Uma bebida forte, supôs. Parecia absorto em pensamentos. Talvez se conservasse distraído e não reparasse nela. A sorte recusava-se a sorrir-lhe, até neste pequeno nada: Aylesbury caminhou até às escadas, atravessando depois o jardim na sua direção. Sem a cumprimentar, sentou-se ao lado dela, encostou a cabeça ao tronco da árvore que se encontrava atrás e fechou os olhos. Não estava, porém, verdadeiramente tranquilo. Marianne detetou a escuridão e o caos. Ambos jorravam para fora dele, ainda mais do que no dia anterior. – Aconteceu alguma coisa? – perguntou, sobretudo porque o silêncio se tornara estranho, mas também porque se preocupava com Lance. Não sabia porquê. Ele era um duque. Um homem no topo do mundo, mesmo quando enfrentava a adversidade. Um homem tão confiante e senhor de si mesmo que inspirava os outros a procurar refúgio nele, ou com ele, mas não para ele. Aylesbury não respondeu. Não parecia ter ouvido. Marianne deixou-o entregue aos pensamentos dele e recolheu-se nos seus, os mesmos que a haviam ocupado na hora anterior. Questionou novamente se, enquanto duque, ele poderia pôr fim ao casamento por ter sido ludibriado. Se pudesse, talvez fosse melhor fazê-lo. – Hoje descobri algo – inopinadamente, Lance falou. – Algo que já devia saber. Ou ter imaginado. Ou pelo menos ter tido a coragem de descobrir mais cedo. – Pelo seu tom, não foi agradável. Lance sorriu e, para surpresa de Marianne, deu-lhe a mão. No


entanto, não abriu os olhos; o rosto ainda se inclinava para o sol poente. – Nada agradável, bela flor. Longe disso. Se ele fosse infeliz, não teria por que a procurar. Ela seria apenas uma fonte de mais infelicidade. – Há uma casa que o meu irmão usava para os seus próprios propósitos. Era ali que se satisfazia de formas que, em casa, não podia. Penso que... não, esse é o cobarde que há em mim, ou o homem que tenta poupar o nome da sua família... tenho a certeza de que ele levava para lá mulheres; meninas, por vezes, pelo tamanho de algumas roupas que encontrei. Creio também que os gostos dele não eram do tipo normal. – Fez uma pausa. – Vi sinais de violência. Não me parece que agisse sempre sozinho. – O cérebro de Marianne ia juntando racionalmente todas as palavras, mas o coração percebeu de imediato. Por breves momentos, tornou-se difícil respirar, como se os pulmões tivessem parado de funcionar. Quando a mente compreendeu tudo, um pensamento, um só pensamento, gritou silenciosamente dentro dela: Nora. – Tenho estado a pensar há quanto tempo teria ele este hábito – disse Aylesbury. – Tentei a muito custo acreditar que nenhum dos meus pais sabia. Contudo... – Encolheu os ombros. – Não o teriam impedido? – A minha mãe tinha desculpas prontas para ele. – Tocou a cicatriz. – Para isto. Para a vez em que tentou matar o Gareth. Oh, sim, tentou. Nem o Ives nem eu duvidamos da história do Gareth. Quanto ao meu pai... acredito que soubesse quem era o Percy, ainda que arranjasse formas de nunca saber as piores partes. Tal como eu, provavelmente fazia vista grossa sempre que podia. Nora. – O que vai fazer? Lance abriu enfim os olhos. Virou a cabeça e mirou-a nos olhos. – Irei aprender a viver com a suspeita de que, se tivesse estado alerta, poderia ter poupado muito sofrimento a alguém. Nora. – Acerca dele, quero dizer. Acerca do que descobriu. – Nada. Ele está morto. Infelizmente, poderá ter havido bem mais do que uma pessoa a desejar-lhe a morte. Aquelas mulheres e raparigas tinham


família, não tinham? – Olhou para a casa. – Pergunto-me se será muito difícil entrar ali à noite, com o objetivo de envenenar a comida de um duque. – Talvez deva descobrir. Lance fechou outra vez os olhos. – Talvez deva. nela.

Ele ainda lhe dava a mão. Marianne ficou emocionada por ter confiado Observou-lhe o perfil e o subtil semblante carregado que mostrava. Toucou-lhe a face, inclinando-se depois na direção dele para a beijar.

– Penso que se está a culpar a si mesmo. Não deve fazê-lo. Desde que cresceram, o Percy tinha pouco que ver consigo, e o Lance com ele. Nem o poderia ter impedido. Ele era o herdeiro de um duque, e depois tornou-se duque, e acreditava não ter de responder perante ninguém, e muito menos perante si. Lance encostou a testa à dela e pôs os braços em volta dos seus ombros. Permaneceu assim um momento e depois levantou a cabeça. O semblante carregado desaparecera. Parecia ter voltado a si. – Tem talento para iluminar a minha vida, bela flor. Sempre teve. – Levantou-se. – Acho que já esteve aqui fora um bom pedaço. O seu nariz está frio. Venha para dentro. Partilharam um jantar tranquilo e de seguida leram junto à lareira, na biblioteca. Durante todo o tempo, a mente de Marianne analisava as conversas do dia, primeiro de um lado, depois do outro. Tinha a certeza quanto a Nora. No dia seguinte saberia ao certo. Espreitando por cima do livro, olhou para Aylesbury. Parecia estar perdido no que quer que estivesse a ler. Dilatou-se-lhe no peito uma comoção. Escondera uma parte de si mesma dos sentimentos que ele lhe inspirava. Sempre que esses sentimentos queriam levá-la demasiado longe, pensava em Nora. Essa barreira sucumbia agora como o muro de palha que sempre fora. O seu coração já não tinha sequer essa defesa. O casamento estava assente sobre os piores enganos e jogos. Duvidava que a breve intimidade que haviam conhecido pudesse renascer ou desenvolver-se. Amá-lo seria um erro e não ofereceria senão dor. E no entanto... O coração não entende tais pragmatismos, concluiu; volta-se para o


amor, se lhe for dada a mais pequena hipótese. Não poderia continuar a negar que fora precisamente isso o que o seu fizera.

– Tu outra vez. – O tio Horace murmurou a sua repulsa depois de se ter voltado para ver quem trouxera um cavalo para junto do seu. – Sim, eu outra vez – disse Marianne. – Foi acidental encontrá-lo a andar a cavalo. Temia ter de lhe perguntar quando estivéssemos em casa, o que poderia ser estranho. – Perguntar-me o quê? – Queria que me contasse exatamente o que a Nora lhe disse quando esteve doente, que o fez culpar Aylesbury pelo estado dela. Horace gesticulou, como se a empurrasse para longe. – Prefiro não falar sobre isso. – Terei de insistir para que fale. Já não confio na sua opinião, nem nesta questão nem em nenhuma outra. Conte-me, para que eu possa tirar as minhas próprias conclusões. Ele parou o cavalo e suspirou profundamente. – A Nora estava a delirar de febre. A dizer disparates, na sua maioria. Por vezes sentava-me junto a ela. Uma noite, entre as resmunguices, começou a suplicar. A implorar a alguém que parasse. – Olhou para o outro lado, fechando depois os olhos. – Hemingford, murmurava. Hemingford. Bom, foi bastante claro. – A mim não me parece claro o bastante. – Eram três filhos. O primeiro era o duque, Percival. Na altura não era conhecido como Hemingford, mas como Aylesbury, bem respeitado e um bom homem. O terceiro era um advogado íntegro em Londres, sobre quem nunca recaíra má reputação. Bom, não até àquele assunto da mulher com quem se casou e do respetivo pai. O do meio, ao tempo Sir Lancelot Hemingford, era um patife sedutor, conhecido em toda a parte como um homem sem escrúpulos no que respeitava a mulheres. Agora está claro que chegue? – Nunca ninguém se referiu a um duque pelo nome de família? É por esse nome que, antes de herdarem, são conhecidos por familiares e vizinhos.


É também esse o nome que a Nora deve ter ouvido chamar-lhe durante quase toda a vida. Na verdade, creio que o ouvi referir-se ao atual duque como Hemingford, tio. – Amigos de infância podem ainda dirigir-se a um par como se dirigiam há anos. Amigos com quem se divertem. Irmãos. A mãe. Mais ninguém o trataria assim. – Ela era uma menina. Dificilmente estaria em condições de fazer cerimónia em relação a formas de tratamento. Horace olhou para a sela. Depois para o campo. E depois para Marianne. – Terminaste? Nesse caso, vou continuar o meu passeio. Ela virou Calliope para não haver despedidas. O tio afastou-se a galopar numa direção e Marianne na outra.

Nora correu e estendeu os braços em volta de Marianne. – Estou tão contente por teres vindo. A tua mãe disse que tiveste de sair cedo do jantar. Fiquei tão triste por não te ver. – Puxou Marianne na direção da janela. – Olha para as minhas amigas. Agora tenho muitas. A coleção de plantas crescera. Uma dúzia de pequenos vasos formavam um círculo numa mesa agora colocada perto da janela. – Não falas com elas, pois não? – Claro que falo. Acho que as ajuda a crescer melhor. – Fez festas nas folhas de uma das plantas. – Mr. Llewellyn disse que esta pode florir antes de o inverno acabar, se eu a mantiver quente. Pergunto-me de que cor irá ser a flor. Marianne admirou as plantas. Observou a prima, notando-lhe uma boa cor e constatando que já não parecia tão inexpressiva. Talvez o ótimo fosse inimigo do bom, no que respeitava a Nora. Mais uma vez, talvez a verdade os ajudasse a todos, Nora incluída. Hesitante e pouco segura quanto à sensatez dos seus atos, encorajou Nora a sentar-se ao seu lado na cama. – Quero perguntar-te uma coisa. Espero que tentes responder-me,


ainda que seja difícil. Nora passou o braço em volta das costas de Marianne. Marianne fez o mesmo, ficando assim as duas sentadas lado a lado num meio abraço. – Pergunta o que quiseres. Não me importo. Não tenho segredos. – É sobre o dia em que te encontraram na tempestade. Nora deteve-se. – Oh. Isso. – Onde tinhas estado? Penso que antes te encontraste com alguém. Talvez um pretendente. Nora abanou a cabeça. – Não me encontrei com nenhum pretendente. – Um homem que te elogiou? Alguém que te atraiu para um encontro amoroso? – Não. – Talvez o tenhas então encontrado por acaso, enquanto andavas a cavalo. – Não. – A voz retinia com aquela nota agitada que não augurava nada de bom. – Quem foi, Nora? Diz-me quem foi e o que aconteceu. – Ninguém. Não aconteceu nada. – Nora tentou soltar-se do abraço. Uma turbulência tomou-lhe o olhar. – No caminho para cá, naquele primeiro dia, ficaste muito sensível e assustadiça quando passámos pela propriedade do duque de Aylesbury. Lembras-te? Estávamos muito perto das casas de quinta que os inquilinos usam. Durante a tua febre, suplicaste a alguém que parasse de te magoar. O teu pai ouviu, uma noite. Chamaste-lhe... – Para. Para! – Nora arrebatou-se para se soltar de Marianne. Saltou da cama e caminhou com largas passadas em volta do quarto, como um animal enjaulado, tapando os ouvidos. Marianne foi ao encontro dela. Forçou-lhe as mãos para que Nora a ouvisse.


– O que aconteceu nesse dia, Nora? Guardas isso bem no fundo de ti mesma, mas sei que te lembras muito bem. Nora libertou as mãos e começou a bater no rosto e nos ombros de Marianne. As lágrimas turvavam-lhe os olhos, caindo-lhe depois pelas faces. – Não quero. Não quero! – Correu para o toucador, a chorar tanto que gemia. Puxou o espelho. Este caiu no chão e despedaçou-se. Marianne afastou-a dos fragmentos e deu-lhe um abraço forte. – Estou aqui, querida. Estou aqui. Mas agora conta-me. Não gosto de te angustiar, mas está na hora de contares a alguém. Não podes viver assim, com tal horror dentro de ti. Nora gritou e gemeu ao mesmo tempo. Marianne levou-a até à cama e sentou-se com ela num abraço apertado. E, pelo meio do choro e dos gritos, uma história foi saindo em bocados e pedaços. Uma história terrível, de Nora se deparar com Hemingford enquanto andava a cavalo, e cavalgar com ele, lisonjeada por ter sequer reparado nela. De ser atraída para uma casa de campo, onde ele dizia ter de levar algo a um inquilino. De depressa ser tirada do cavalo por outro homem e arrastada para o interior; de ser controlada enquanto eles e um outro a magoavam e lhe rasgavam o vestido e a combinação; de lhe baterem quando mordia um deles. De ser abandonada ali sozinha, quando tudo terminou, e tentar chegar a casa debaixo de um aguaceiro. A meio, o frenesim quebrou-se. Depois disso apenas chorava, terminando a horrível memória entre goles de ar. Durante todo esse tempo Marianne apoiou-a e chorou também, ao imaginar a frágil Nora tão maltratada e assustada. Ficaram depois sentadas enquanto Nora se acalmava. Só nessa altura Marianne falou. – Foi o irmão que agora é o duque? Foi esse filho Hemingford? Nora abanou a cabeça. – O outro. O mais baixo. O mais velho. Observavam-se uns aos outros a fazê-lo. Não paravam de falar, de se rir enquanto ele... como se fosse uma corrida de cavalos. «Agora enlouquecido, Hemingford», «Acho que estás a aproximar-te da meta, Hemingford». Para eles era uma brincadeira. Gozavam comigo enquanto eu lhes implorava que parassem. – Tapou os olhos com as mãos. – Sinto-me tão envergonhada. Receei tanto que alguém soubesse disto. O que iria pensar? Na altura ele era o duque. O duque. –


Enterrou o rosto no ombro de Marianne e chorou outra vez. Marianne segurou-a e acalmou-a. Ficou com Nora durante horas, mesmo depois de as lágrimas terem parado. Rezava para que a sua insistência tivesse ajudado Nora e que não lhe provocasse mais danos. Seria um preço demasiado alto a pagar para confirmar a suspeita de que o tio se vingara do irmão errado. Havia mais uma coisa a fazer. Depois poderia deixar Aylesbury viver a vida como o seu legado exigia.

– Ultimamente tem andado muito a cavalo. – Lance serviu mais vinho no copo de Marianne e no seu. – Gosto do ar frio. Faz bem à pele. – Ela olhou na direção de um terceiro copo pousado na mesa. – O seu irmão deve concordar, tendo em conta que saiu logo a seguir ao jantar para dar um passeio, estando uma noite de temperatura gélida. Ives chegara nesse dia, a pedido de Lance. O passeio daquela noite não era em vão. – Ele veio na carruagem. Isso deixa-o sempre ansioso por fazer exercício. – Compreendo. Naquela noite, Marianne estava encantadora. Em honra da companhia de Ives, usara um dos seus vestidos de duquesa, como lhes chamava. O tom verde-claro favorecia-a. A luz da vela realçava os matizes mais rubros do cabelo acobreado. Nos últimos dias, Lance desfrutara da companhia de Marianne, quando esta o honrava com a sua presença. A amizade entre eles tornarase intermitente, partilhada em momentos avulsos e refeições. Ela entretinha-o com histórias da aldeia e gracejos leves; a seguir ele sentia-se sempre mais calmo e feliz. No entanto, não houvera mais nada. Nem paixão, nem prazer. Parte do pensamento de Lance estava sempre ocupado com o tempo que se esgotava e com a urgência de Peterson emitir um veredito. – Tenho algo para lhe contar – disse ela. – Suponho que devia guardar segredo, mas decidi que tem de saber. – Lance não gostou do franzido que


lhe cerrava a sobrancelha, nem do modo como a sua disposição se tornou preocupada. Conseguia perceber que Marianne estava a ganhar coragem, ao dedilhar uma das colheres por usar colocadas em frente a ela. – Acredito que não me culpará, nem descarregará em mim a sua ira – acrescentou Marianne serenamente. Que diabo. Essa era mais uma razão pela qual não havia visitado a cama dela. Marianne não o recriminara pelo que tinha acontecido. Não pelos atos e não pelo arrebatamento, pelo menos. Contudo, o como e o porquê do que acontecera importavam. Foi pela forma como a tratou que ela soube o que lhe ia no pensamento. Não tinha defesa. Nem desculpa. Gostava de ter. Até declarar embriaguez seria uma ajuda. Só que estava completamente sóbrio. Sóbrio e a arder de desejo e furioso. – Prometo que não o farei. Marianne deixou a afirmação assentar ali um momento. – Tenho de explicar o motivo de o meu tio ter feito o que fez. – Em seguida, falou muito mais, sobre a prima e a sua doença, e como fora violada no dia em que a encontraram na tempestade. – Enquanto esteve doente, Nora mencionou o nome do homem que o tio Horace pensou ser o sedutor: Hemingford. Ele disse-me que era o senhor. – Juro que não era. – Não, não era; foi Percy. E não se tratou de uma sedução, mas de um ato violento. Ele não estava sozinho, além disso. Quando me falou sobre ele, suspeitei de imediato. Fiz com que a Nora me contasse. Ela não queria. E não entrou no lago por sua causa, mas porque a simples ideia de vir a sofrer outra vez aquilo com algum homem, num casamento qualquer, a revoltou. – As revelações de Marianne puseram-no entorpecido. Doente. – Ontem escrevi ao meu tio. A esta hora já sabe a verdade. Andava a vingar-se desde que o seu irmão morreu. Encorajou as suspeitas sobre a sua pessoa. – Marianne baixou o olhar. O rosto ruborizou-se. – Até eu fui parte disso, claro. Ele pretendia o relacionamento para poder tirar partido de si. Mas essa parte já sabe. – A sua prima. Tendo-lhe contado, irá ela... Isto vai ajudá-la? – Tenho-a visitado todos os dias desde então. É para onde vou quando saio a cavalo. Penso que vejo algumas melhorias. Talvez falar sobre o assunto tenha servido como purga. – Se o facto de mencionar o nome dele publicamente a ajudar, ela que


o faça, Marianne. Não lhe pedirei que proteja o nome do Percy. Não de algo tão criminoso. Marianne fungou e limpou os olhos. – Obrigada. Não acredito, contudo, que ela ou o meu tio sejam capazes de ser tão corajosos, sejam quais forem as suas garantias. Ecoaram passos de botas, vindos na direção da sala de jantar. Ives apareceu à entrada da porta. Atraiu a atenção de Lance e foi-se embora. Marianne reparou. – Vou retirar-me, para que possam falar com privacidade. Lance levantou-se e ofereceu-lhe a mão. – Fique. Por favor. Estamos nisto juntos e tem direito a ouvir tudo. Ela deu-lhe a mão.

*

– A esta hora, há apenas uma forma de entrar, que é pela cozinha. – Ives deu-lhes a informação na biblioteca. Encontrava-se sentado numa cadeira de braços funda, com as botas enlameadas apoiadas num escabelo. Marianne e Lance estavam juntos, sentados num sofá. – Tentei todas as portas. – Presumo que a cozinha ainda esteja muito movimentada – disse ela. Ives viera de Londres para investigar o acesso à casa durante o entardecer e a noite. Fora de facto cavalgar, mas andou em volta para se aproximar da casa, tal como um criminoso faria. – Muito movimentada, como tem estado pelo menos desde as três da tarde, segundo o mordomo – disse Lance. – Portanto, teve de ser alguém de cá. Se é que foi de todo alguém. Marianne reparou que eles continuavam a acrescentar esta última parte. Ambos esperavam descobrir que Percy morrera de causas naturais. Já ela desistira dessa hipótese depois de ouvir a história de Nora.


Nenhum homem faz uma coisa assim apenas uma vez. Pelo condado fora, e talvez em condados vizinhos, havia pais que podiam saber sobre o último duque. As próprias vítimas poderiam procurar vingança. O veneno era uma arma fácil que não requeria força, apenas secretismo. Deus a perdoasse, mas respirava de alívio por saber que Nora nem sequer estivera no condado na noite em que o último duque morreu. – Eu disse que havia apenas uma forma de entrar, além de passar pelo criado na porta da frente – repetiu Ives. – Não disse que acreditava ser impossível entrar. O movimento na cozinha não encoraja vigilância nessa entrada. Os criados entram e saem. As provisões são entregues pelos empregados dos comerciantes. Alguém poderia entrar sub-repticiamente. Uma vez cá dentro, há lugares onde se pode esconder até o caminho para as escadas ficar livre. – Tentaste entrar por esse lado? – perguntou Lance. – Tentei. Fui visto de imediato. – Não é um empregado de comerciante nem um criado – disse Marianne. – É conhecido aqui e, se posso dizê-lo, uma presença proeminente em qualquer aposento. Claro que reparariam em si. Mas num homem vestido com roupas simples ou com traje de criado, talvez não. – Infelizmente, mesmo se aceitarmos que era possível, não estamos mais perto de saber quem foi. – Nem precisamos – disse Marianne a Lance. – Compreendo o desejo de saber a verdade. Contudo, tudo o que realmente precisa é de assegurar que ninguém lhe aponta oficialmente o dedo. – Isso foi o que assumimos durante os últimos nove meses – disse Ives. – E cá estamos nós, com o seu tio a acenar-nos com a possibilidade de revelar uma testemunha que oferecerá prova suficiente para que o dedo seja apontado. – Não acredito que ele agora vá fazer isso. Não depois do que lhe contei na sala de jantar, Aylesbury. Ives olhou para Lance, com perplexidade. – A trama complicou-se e eu não sei? – Provavelmente, a Marianne tem razão. É inverosímil que o Radley apresente essa testemunha. – Mas a testemunha poderá apresentar-se a si mesma. Arriscamo-nos


a deixar nas mãos do destino e a não ter pronta uma resposta que o desminta? – Consegue ver a dificuldade da questão, Marianne. Marianne conseguia. Contudo... – Traio o meu tio ao dizer isto: pensei bastante sobre o assunto e não estou convencida de que ele tenha uma testemunha que viu alguma coisa. Silêncio. – Mais uma vez, arriscamos? – perguntou Ives. – E ele, empunharia uma ameaça oca? Poria muito em risco, nesse caso. – Não penso que a ameaça seja oca – disse Lance. – Naquele dia, faloume com uma segurança arrogante. Tinha-me bem encurralado e sabia disso. – Não digo que não haja uma testemunha – declarou Marianne. – O que digo é que, quem quer que seja, poderá na verdade não ter visto nada. Vamos reconhecer que o carácter do meu tio não é o melhor; e também que ele possuía razões para o encurralar, ou pensava que sim. Não poderia ter arranjado alguém que, sendo necessário, fosse uma falsa testemunha? – Poderia – respondeu Lance. – Contudo, prefiro não ficar a questionar-me para sempre se é esse o caso e se a pessoa vai testemunhar, ainda que sem o encorajamento do seu tio. – Não creio que o faça – disse Marianne. – É mais otimista do que eu quanto à natureza humana – respondeu Ives. – Lamento dizer que já o vi acontecer, motivado por rancor ou ira, com consequências desastrosas. – Não acredito que ele o faça – repetiu Marianne – porque não me parece que fosse essa a sua ideia. Julgo que foi o meu tio quem o coagiu a entrar nesse papel. – Tal como me coagiu a mim. – Penso que sei quem possa ser. Marianne verificou que Ives queria argumentar. Aylesbury levantou uma mão, detendo-o. – Se ela acha que sabe, há uma boa hipótese de realmente saber. Quem tem em mente, Marianne? – Será bastante fácil descobrir se estou ou não errada. Se estiver certa, tem de prometer-me não o recriminar.


Lance anuiu. – Quem? – Jeremiah Stone.

Ives retirou-se primeiro, depois de terem esboçado planos. Pouco depois, Marianne e Lance foram para cima. Subiram as escadas juntos. – Tem boa memória – disse ele. – Já quase me tinha esquecido de que o seu tio libertou o Stone quando o Langreth prestou declarações acerca de o ter apanhado naquele dia. – Essa generosidade é comum no meu tio, nas suas funções de magistrado? – Claro que não. Mesmo sem o meu testemunho, ou sem o do meu administrador, em circunstâncias normais Mr. Stone teria sido condenado. – Daí eu ter pensado que poderia ser ele. Só pode coagir um homem se tiver uma ameaça ao seu bem-estar. Ou algo que ele queira. Sabe disso melhor do que ninguém. – Como caçador furtivo, o Stone teria uma explicação plausível para o facto de estar na propriedade e até perto da casa. No entanto, admitiria têla invadido? – É um crime muito menos sério do que caçar furtivamente. E o meu tio presidiria à sessão à qual ele seria levado, se alguém se desse a esse trabalho. Alcançaram o piso onde se encontravam os aposentos de Marianne. Ela olhou para o corredor. – Devia tomar posse dos aposentos do duque. Peça aos criados que os esvaziem. Traga trabalhadores para mudar a tinta e o papel, e compre uma cama nova. Parece-me que nunca aceitou de facto o título; poder-se-á até pensar que não o desejava. – Talvez não desejasse. E o que aconteceu desde então também não me entusiasmou nada para o papel. Todavia, se alterar os aposentos, como sugere, se trouxer esses trabalhadores, considerarei declará-los como meus. – Deu um breve beijo na face de Marianne e foi-se embora. Ela permaneceu na porta, observando-o.


Cerca de dez metros à frente, Lance parou, virando-se depois para trás. Devia ter notado a falta de sons vinda da porta. – Passa-se alguma coisa? – Sabe que sim. – Lamento, Marianne. Os meus pensamentos agora nunca estão em paz. Pediu-me que não descarregasse em si a minha ira, o que neste momento não lhe posso prometer. – Decidi que prefiro ter metade do seu pensamento e toda a sua ira do que nada, Aylesbury. Contudo, compreendo se o que soube acerca das maquinações do meu tio o fez não me desejar. – Não a desejar? – Lance voltou para trás, na direção de Marianne. – É isso que pensa? – Nas presentes circunstâncias, é compreensível. Fui parte de um ardil; um ardil assente em equívocos e em maus motivos. Com a mão em concha, Lance tocou-lhe um dos lados do rosto. – Não sabia o que ele estava a fazer. – Sabia que tinha de haver um motivo. Devia ter descoberto o que era. O polegar de Lance serpenteou-lhe devagar pela face, até lhe chegar aos lábios. Afagou-os e eles vibraram. – Muito de repente, não me sinto compelido a explicar a sua inocência no esquema de Horace Radley. Estou mais interessado na decisão que acabou de partilhar comigo. Está a falar a sério? Tem a certeza? Marianne confirmou, ainda que não estivesse mesmo certa. O coração estremecia-lhe, fazendo com que se lembrasse do preço a pagar, no presente e no futuro. Mas queria conhecer o melhor que o prazer podia ser, ainda que Lance não se juntasse a ela no pleno potencial da intimidade. Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a. Marianne ainda sentia a ausência de parte dele e a agitação dos seus pensamentos. Desejava acalmá-los, se pudesse. Ficaria feliz ainda que ele só conhecesse um momento de paz. Chegou-se para trás e desceu o trinco da porta. Numa lenta dança de passos passaram à sala de estar de Marianne e depois à cama. Lance esforçava-se para não levar nenhuma daquela ira para o leito e


para trazer tudo de si. Marianne sentia o esforço que o espírito dele fazia. Tocava-a com todo o cuidado, dando-lhe prazer devagar e não lhe permitindo que fizesse mais do que recebê-lo. Marianne deixou-o fazer o que pretendia, ainda que ansiasse por ser ela a cuidar dele. Queria aliviá-lo e distraí-lo daqueles pensamentos difíceis e da disposição sombria. Tentou absorver tudo aquilo para dentro de si mesma, pela forma como o abraçava e lhe abria o coração para o que quer que ele estivesse disposto a partilhar. Não foi como da última vez, de todo. Mesmo no fim, os beijos e as carícias importavam mais do que a libertação. Para ela, pelo menos. Talvez para ele também. Será que Marianne imaginava que o último beijo que ele lhe dera antes de adormecer fora um beijo de gratidão? Abraçou-o toda a noite, enquanto dormia e ao acordar. Manteve-o próximo, para que soubesse que ela estava ali, e para que o coração pudesse entregar-se ao amor por tanto tempo quanto possível.


CAPÍTULO 22

O casaco escarlate foi aumentando até se ver o cavaleiro. – Pedi-te para lhe dizeres que não precisava de vir – disse Lance. – E foi o que expliquei na minha carta. Parece que, de qualquer maneira, ele veio – disse Ives. Encontravam-se no pórtico de Merrywood, vestidos para andar a cavalo, enquanto esperavam pelas montadas. Gareth galopou entrada acima, refreando depois o cavalo. A sorrir, fê-lo andar em frente. – Isso que vejo aí são pistolas? Só duas, Lance? – Acredito que serão suficientes, se é que virão de todo a ser necessárias. O objetivo é conversar. – Então ainda bem que vim. Se necessitares de um tiro para encorajar uma conversa, atingir-lhe-ei o chapéu, enquanto tu podes mandar-lhe a cabeça pelo ar. – Pelo menos não vou balear-lhe o traseiro, como aqui o Ives. Ives fungou com desdém. – As pistolas são armas cobardes. Prefiro espadas; conseguiria cortarlhe uma madeixa de cabelo, se fosse preciso. – Para isso, ele teria de estar muito perto. Esperas que fique parado enquanto vamos até ele e lhe fazes um corte de cabelo? – perguntou Gareth, desmontando do cavalo. – Não, ele vai arremessar-lhe um código e forçá-lo a render-se à


distância – disse Lance. – O que estás aqui a fazer, Gareth? Não devias estar com a tua mulher, à espera do glorioso acontecimento? – Ainda faltam meses, Lance. Ela não pede a minha presença constante. Não contes à tua mulher que te disse isto, não vá dar-se o caso de ela ter outras ideias para quando estiveres no meu lugar. Lance não fazia ideia de que presença esses acontecimentos requeriam ou quando. Embora ter um herdeiro fosse o objetivo de se casar, ainda não havia considerado essa eventualidade. Até há poucas noites. Ocorrera-lhe de súbito que, com todo o et cetera que se passava, ele e Marianne poderiam ter um filho em breve. Gostava de poder dizer que a ideia o fazia feliz. Em vez disso, aterrorizava-o. Até homens bons por vezes caminhavam tropegamente pela paternidade. E, como explicava muitas vezes a Marianne, ele nem sequer era bom. Um rapaz das cavalariças contornou a casa. Posicionou-se fora do alcance da voz do pequeno grupo. Permaneceu ali, parecendo nervoso. – O que se passa, rapaz? Porque é que os cavalos estão a demorar tanto? – Os outros mandaram-me dizer que os dois cavalos já estavam prontos quando chegou o pedido atrasado de um terceiro. A égua já está quase selada e daqui a pouco estarão todos aqui. – Não precisamos de um terceiro. Vê, ele já tem cavalo, e nós somos só dois. Deve ter havido algum mal-entendido. – A senhora pediu o terceiro, senhor. Ainda há pouco. Lance mandou o rapaz embora. Os queixos dos irmãos deslocavamse, ao tentarem não esboçar sorrisos sarcásticos. – Ela não vem, como é evidente – disse, em resposta aos sorrisos que se expandiam. – Claro que não – disse Gareth, soltando depois um riso abafado. – Que diabo, não o permitirei. – Não te ponhas todo duque connosco. Nós fomos convidados – disse Ives. – Não haverá necessidade de me pôr duque. Explicar-lhe-ei que não vem e ponto final.


– Claro – disse outra vez Gareth, acenando com a cabeça sabiamente. – Talvez queiras apanhá-la lá dentro e explicar-lhe a situação. – Porquê? Ives abanou a cabeça, incrédulo. – Caramba, és mesmo inexperiente. Explica-lhe, Gareth. Gareth pousou a mão no ombro de Lance. – Poderá ser do teu interesse não a aborrecer por emitires ordens à nossa frente, sobretudo daquelas que ela provavelmente não acolherá bem. As mulheres não ficam contentes quando se veem envolvidas numa cena, mesmo que a audiência seja composta por amigos. – Especialmente em frente a amigos – disse Ives. – Que caramba. – Lance voltou-se para a porta. – A Marianne não é obstinada como a tua mulher, Ives, nem rainha de tudo o que inspeciona, como a tua, Gareth. É razoável e obsequiosa. Contudo, explicar-lhe-ei lá dentro e sairei de imediato, depois de chegarmos a um rápido e bom entendimento. Lance entrou no vestíbulo justamente quando Marianne descia as escadas, vestida com um dos trajes de equitação que a mãe extraíra a Radley. De uma bonita cor safira, com enfeites militares, complementavalhe tanto a forma como a cor. A primeira qualidade fascinava-o e, à medida que ela descia as escadas, ia imaginando o traje a ficar para trás, até chegar despida ao último degrau. Marianne calçou as luvas e segurou com firmeza o pingalim. – Estou pronta. Podemos ir. Disse que geralmente os caçadores furtivos fazem o trabalho pela manhã, e já são quase nove horas. – Marianne, não vem connosco. – Claro que vou. Não os atrasarei. Posso andar a cavalo como o melhor de vocês. – Monta magnificamente, mas mesmo assim não vem. Marianne olhou para ele com um brilho rebelde no olhar. – A ideia foi minha. Quero estar lá. Preciso de ouvir o que ele diz, especialmente se estiver certa.


Tanto para acomodar. – Sabia que eu não ia permiti-lo. Se pensasse que sim, ter-me-ia perguntado ou tê-lo-ia mencionado antes disto. Ontem à noite, quando eu lhe confidenciei o nosso plano, por exemplo. – Ontem à noite eu estava preocupada com outras coisas, ou já se esqueceu? Como se ele se esquecesse. A menção trouxe-lhe memórias e nenhuma delas o fortaleceu. Lance fez um gesto com a mão, para indicar o carácter definitivo. – Proíbo-o. Ele estará armado. Pode ser perigoso. Vamos andar pelo campo a cavalo, por florestas e silvados. Não é lugar para si. Marianne aproximou-se. Aproximou-se muito. O suficiente para fazer com que os criados que se encontravam no vestíbulo e nos espaços contíguos desaparecessem, numa fuga em passos rápidos. Olhou para Lance com aqueles olhos de fêmea que imploram. E seduzem. – Quero muito fazer isto. É injusto que tente negar-mo. Manter-me-ei bem atrás e não me porei em perigo. Ele pode estar armado, mas, pela forma como o descreveu, duvido que algum dia tenha apontado o mosquete a alguém. Lance gostou daquela parte do «tente negar-mo». Mesmo a rogar, ela deixava claro que podia liderar uma rebelião. Caramba, ficava contente por não estar lá fora. Ives já estaria a rir-se à gargalhada. – Não. – Tentou parecer firme, mas soou como se não tivesse conseguido. O pénis levantara-se para a saudar, o que lhe afetou a voz. Marianne amuou. – Tem a certeza? – Ah... sim. Marianne fez deslizar a mão por baixo do casaco dele e lançou-lhe um olhar muito diferente. – Muita, muita certeza? Uma boa parte da mente de Lance perguntava-se quão tarde caçariam


os caçadores furtivos, e se poderia dizer a Gareth e a Ives para esperarem meia hora, enquanto arrastava Marianne para o andar superior. O que quer que o olhar de Marianne lhe tenha visto nos olhos não foi a vitória dele. Ela elevou-se nos dedos dos pés, beijou-lhe os lábios e encostou os seios ao seu corpo. – Eu sabia que ia ser razoável. Virou-se e encaminhou-se para a porta. Já descera metade das escadas quando Lance alcançou o pórtico. Gareth e Ives permaneciam como sentinelas de cada um dos lados dos degraus e Marianne caminhava a passo de marcha entre eles. Ambos viraram os olhos para ele. Marianne aceitou a ajuda do rapaz da estrebaria a montar Calliope. Lance juntou-se aos irmãos. – Ela manter-se-á bastante atrás – disse. – Ah, bom. – Ives não fez nada para atenuar a inflexão sarcástica. – Fico contente por teres chegado àquele bom entendimento com ela. – É provável que o Stone nunca tenha disparado a arma de fogo contra uma pessoa. Apenas contra caça e aves – acrescentou Lance. – Verdade, verdade – disse Gareth. – E a Marianne monta muito bem. Não deve atrasar-nos, de todo. – Lance entendeu que seria uma boa altura para os encaminhar até aos cavalos. Ives montou. Gareth também. Marianne andou a passo com o cavalo. Eles esperaram. Lance olhou para o seu cavalo. E para a sela. Rangendo os dentes, içou-se, descendo-se em seguida, com muito cuidado. Viraram os cavalos e começaram a levá-los dali. Lance alinhou-se. Havia, decidiu, poucas maneiras piores de começar o dia do que montar uma sela com uma ereção. Ficaria na expectativa de exigir uma vingança adequada, mas pensar nisso naquele momento só o tornaria pior.


Mr. Stone viu-os quando ainda estava a duzentos metros. Voltou-se e correu para as profundezas da floresta. Aylesbury liderou a perseguição. Marianne posicionou-se à retaguarda, como prometera. Mr. Stone era demasiado esperto para permanecer no caminho; assim que eles recuperaram metade da distância, lançou-se como uma seta para dentro do matagal. Para surpresa de Marianne, Aylesbury não perseguiu a presa. Em vez disso, gesticulou-lhes para que o seguissem e galopou com mais velocidade. Na confusão que se seguiu, pareceu a Marianne que o caminho seguia uma rota sinuosa por entre as árvores. Saltaram três troncos caídos e um riacho largo. Ramos a baixa altitude quebraram-se sobre ela. Recolheu-se sobre o pescoço de Calliope e esperou o melhor. Um ramo apanhou-lhe o chapéu novo. Marianne olhou para trás e viu a aba cor de safira a baloiçar sobre o caminho. De súbito, a floresta abriu-se e encontravam-se num campo. Uma ruela serpenteava a uma curta distância mais à frente. Aylesbury levantou a mão, liderou-os ao longo da orla da floresta e depois parou. Marianne levantou a cabeça e escutou. Ouvia sons, como um animal a aproximar-se pela floresta, ainda a uma certa distância mas cada vez mais próximo. Colocou-se ao lado de Aylesbury. – É ele? – Espero que sim. Se não for, dentro de alguns dias estaremos a fazer isto de novo. – Lance lançou-lhe um olhar proibitivo. – Sem a Marianne. – Como é que sabia que ele viria nesta direção? – Brinquei nestas florestas durante anos. Conheço-as melhor do que ele; e ele conhece-as muito bem. A direção que tomou aponta para aquela vereda ali, que não se situa na minha propriedade. Claro. Mr. Stone acreditava que andavam atrás dele por caçar furtivamente. Desejaria sair o mais depressa possível das terras do duque. Os sons aproximavam-se. Em seguida um corpo sacudiu-se, libertando-se do matagal, e precipitou-se através do campo. Eles perseguiram-no. Mr. Stone olhava para trás, apavorado por ver que se aproximavam. Quase alcançou a vereda antes de o apanharem. Ives e Gareth rodearam-no para que não conseguisse correr mais. Aylesbury olhou para o caçador. Marianne notou que Mr. Stone


parecia ser pouco mais do que um adolescente. Não teria mais de vinte anos. Inclinou a cabeça de cabelo cor de palha, desanimado. Numa mão segurava o mosquete. Na outra estavam penduradas duas lebres. Aylesbury desmontou e caminhou até ele. Pegou no mosquete e atirou-o a Gareth. – Voltar aqui depois de ter sido apanhado tão recentemente foi audacioso da sua parte, Stone. Mr. Stone mirava o chão, com uma expressão miserável. – O Radley prometeu libertá-lo outra vez, no caso de lhe ser apresentado, se lhe fizesse aquele favor que ele queria? Stone olhou para cima, horrorizado. Fitou os outros com os olhos cheios de desespero. Depois afundou-se no chão, cruzou os braços sobre os joelhos e chorou.

– Não posso acreditar que o deixaste ficar com as lebres – disse Ives. Estavam quase em casa quando alguém falou. Ives parecera prestes a explodir durante todo o caminho e por fim explodiu. – Ele admite estar preparado para mentir e dizer que te viu a envenenar a comida, e tu dás-lhe a caça roubada. – O que é que lhe ia fazer? Não posso comer tanto estufado de lebre. – Não é essa a questão. Ele rouba impunemente e tu deixas. Encorajalo. Depois tomas conhecimento de que estava disposto a indicar-te como assassino, falsamente, e dás-lhe uma recompensa. A sociedade não prospera com tais generosidades, Lance. O Estado de direito é corrompido quando fechas demasiado os olhos. – Penso que foi um gesto simpático – disse Marianne, emocionada. A história de Mr. Stone ser coagido e tentado pelo seu tio deixara-a perto das lágrimas. – E Mr. Stone mostrou-se muito arrependido; não se pode culpar um homem por aceitar uma alternativa ao degredo, ou pior. Foi um pacto com o diabo, mas não por sua culpa. Lance estendeu-se para lhe afagar a mão. Ela via o melhor nas pessoas. A verdade era que, embora caçasse furtivamente para alimentar a família, Jeremiah Stone era por natureza um ladrão. Contudo, uma vez que ela queria ser compreensiva, não lhe ia explicar isso.


Marianne parecia desalinhada da perseguição e ruborizada pelo frio. Caíam-lhe sobre o rosto madeixas de cabelo. Uma dragona do traje estava suspensa, rasgada por um ramo. Perdera o pequeno chapéu atrevido. Lance pensou que ela parecia bonita e fresca. Ives olhou para o céu, exasperado pela incapacidade de verem o quadro geral. – Ele disse-nos o que eu queria saber – afirmou Lance, antes que o advogado começasse novamente com as suas lições. – É seguro dizer-se que, com três testemunhas da confissão, agora não tentará fazê-lo, aconteça o que acontecer. Nem teria feito, uma vez que o Radley viu o erro dos seus planos. – Pelo menos agora sabes – disse Gareth. – Não terás de questionar quem é a testemunha ou se avançará com a sua história. Sabia, graças a Marianne. Se, naquele dia, ela não tivesse escutado por acaso a discussão com Langreth enquanto olhava para a montra, se não se lembrasse do que ouvira acerca do julgamento de Mr. Stone e da invulgar generosidade do tio, se não houvesse juntado tudo desta forma – como era o método de trabalho da sua mente –, talvez nunca tivesse sabido. Quanto ao uso de Mr. Stone por Radley, poderiam tratar disso mais tarde. Não seria por causa do que Radley pensara que Lance tinha feito a Nora que o ia desculpar. Sabia que Marianne pensava o mesmo. Entregaram os cavalos no pórtico. Lance tomou a dianteira para entrar. – É cedo, mas diria que isto pede um brinde de celebração. Dirigiu-se à biblioteca. Marianne encaminhou-se para as escadas. – Aonde vai? – perguntou ele. – Para cima. – O diabo é que vai. Se andou a cavalo com os maus, também pode beber com eles. Estendeu-lhe a mão. Depois de uma breve hesitação, ela aproximouse e segurou-a. Ives atirou-se para cima de um sofá na biblioteca. Gareth encostouse a uma mesa. Marianne sentou-se numa cadeira de madeira.


– Nada para mim – disse ela. – Não gosto de ratafia. Lance transportava um copo. – Não é ratafia. Hoje não a insultaria com isso. Marianne espreitou para dentro do copo. – O que é? – Whisky. O melhor que a Escócia sabe fazer. Entregou copos também aos irmãos. Marianne continuava a espreitar para dentro do copo. – Sempre tive curiosidade quanto ao sabor e ao fascínio dos homens por essa bebida. Suponho que um pouco não me fará mal. Gareth levantou o copo. – Mais uns detalhes e acabou. Ives ergueu o seu. – À vida que conhecias, Lance, e que agora voltarás a ter. Deram longos goles na bebida. Antes de se juntar a eles, Lance levantou também o copo a Marianne. Ela observou e depois, com coragem, deu um gole também. Por instantes permaneceu serena; depois os efeitos do whisky bateram-lhe. Os olhos dilataram-se. A face ficou vermelha. Tossiu muito e inalou como se quisesse apagar uma chama. Com a mão na boca, levantou-se. – Agora vou deixá-los, para que possam discutir esses detalhes enquanto celebram – disse. – Não me atrevo a ficar para mais brindes destes. Poderão matar-me. – Lance acompanhou-a à porta. Ali, ela inclinou-se para ele. – Prometa que esta noite virá ter comigo – sussurrou. E depois saiu.

Eles celebraram. Marianne não desceu para jantar, mas pediu que lho levassem. Por vezes chegavam-lhe risos, vindos de baixo. Os irmãos estavam a desfrutar da libertação de Aylesbury da prisão a que estivera confinado


durante quase um ano. Marianne vira a diferença nele, logo que Jeremiah Stone terminou a história. Amava o homem que já conhecia, mas suspeitava que o verdadeiro Lancelot Hemingford a estontearia. Mesmo quando cavalgavam de volta a casa, a plenitude do espírito de Lance, agora liberto em toda a sua independência arrogante e autoconfiante, quase a avassalara. À medida que galopavam, a sua aura espalhava-se assumindo uma postura que desafiava qualquer um a interferir com ele, ou a opor-se ao seu comportamento, ou a negar-lhe o que lhe era devido. O homem no cavalo junto ao dela transformara-se num homem que apenas encontrara algumas vezes antes, a maior parte delas durante a paixão que partilhavam. Mas tudo isso estivera sempre com ele, só que ofuscado por sombras e perdido por vezes na escuridão. Fora este Lancelot a fonte da sua excitação. A sua alma conhecera-o o tempo todo, e ela vibrara sempre com as possibilidades maliciosas que ele lhe oferecia, sem sequer dizer palavra. Esperava que os irmãos tratassem também dos pormenores. Como confrontar o tio devia ter prioridade na lista. Solicitações ao juiz de instrução deveriam vir em segundo. Acreditava que no espaço de alguns dias tudo estaria resolvido. Teria de contar à Mamã para a informar, logo que chegasse um veredito de Mr. Peterson. Ao cair da noite, fez alguns arranjos no quarto de vestir e depois mandou Katy embora. Sentou-se na escrivaninha e redigiu umas cartas. Selou-as, mas não as preparou para o envio por correio. Em vez disso, guardou-as na gaveta. Depois, com o coração tão cheio de emoção que mal conseguia respirar, esperou que o seu amante viesse até ela.

Lance entrou nos aposentos de Marianne cheio de alegria. O que o esperava lá dentro alterava-lhe o humor. Os pensamentos sobre a vitória do dia e o regresso da vida ao normal voaram-lhe da mente quando a viu. Marianne estava deitada na cama, já despida. Acendera a lareira para se manter quente, e o clarão cor de âmbar movia-se sobre a sua pele quando as chamas dançavam. O cabelo acobreado espalhava-se pelas almofadas. Os seios mostravam que já estava excitada. Levantou então um braço, criando uma linha erótica e sinuosa desde


os ombros até aos dedos dos pés. – Oh, Deus. Já está despido. Eu não quis ter de esperar – disse ela. O sangue de Lance já estava quente com o que acontecera durante o dia. As palavras de Marianne deram-lhe ainda mais calor. Foi para a cama. – Está embriagado? – perguntou ela. – Nem meio. – Isso é bom. Não o queria embriagado. Lance abandonou o robe. – Parece ter uma lista do que não quer. Existe outra com o que quer? Marianne ajoelhou-se e voltou-se para ele. Os braços rodearam-lhe o pescoço. – Sim. Quero tudo. – Tudo pode demorar muito tempo. – Então é uma sorte que as noites de inverno sejam longas. Ela beijou-lhe o peito, devagar e com cuidado. As mãos percorriamlhe o corpo com suaves carícias. Ele estendeu-se para a abraçar, mas ela desviou-se. – Não. Deixe-me... – Beijou-o na boca, usando poderosamente a língua. – Quero fazer isto. – Puxou-lhe a mão com doçura, convidando-o para cima da cama. Pressionou-lhe os ombros até ele se deitar, pôs-se a cavalo nele e desceu a cabeça para o beijar outra vez. O desejo ardente de Lance rebelava-se contra o papel passivo em que Marianne o colocou. O prazer doce e fervoroso que ela lhe dava induzia-o à submissão. Ela beijava-o e tocava-o como se saboreasse a sensação dele. De tudo. O corpo de Lance aceitava a abundância da dádiva. A sua consciência concentrava-se em cada ardor e estremecimento que ela criava. A excitação de Marianne revelava-se. Ela expressava o contínuo crescendo com a boca e as mãos. Depressa exigiu mais; inclinou-se para a frente, posicionando os seios junto à boca de Lance. Ele provocava-a com a língua e com a boca. Em pouco tempo, Marianne gemia e balançava-se de um modo suave, atormentando-lhe o pénis com a vulva. Ela oscilou para trás, sobre os calcanhares, e o pénis ocultou-se


naquele calor húmido. Com a expressão magnificamente transformada pelo prazer, Marianne acariciou-lhe o corpo, inclinando-se para a frente, mais para baixo, para lhe beijar o peito e o torso. Depois moveu-se ainda mais para baixo, abrindo-lhe de par em par as coxas para poder acariciar-lhe e beijar-lhe a ereção. Já perdido para lá da razão, do pensamento ou de qualquer consciência que não a visão erótica da mão e da boca de Marianne, louco por antecipação e com desejos demasiado selvagens para serem domados, Lance esperou, com uma ordem e uma súplica por mais a gritarem-lhe na cabeça. Marianne virou o corpo; as suas costas encararam-no enquanto ela buscava um ponto de apoio melhor. A sua boca cercou-o. Ele fechou os olhos e submeteu-se àquela tortura, satisfeito por, entre tudo o que Marianne afirmara desejar, ela ter começado por aqui. Rangeu os dentes e deixou-se levar pelo prazer, cada vez mais alto, forçando-se a controlar-se para que durasse. Ela não terminou daquela forma, nem ele desejava. Com movimentos rápidos rodou e ficou de frente para ele; desceu, e a estreita passagem substituiu a boca. Então sim, aceitou o prazer, com movimentos delicados ou vigorosos, rápidos ou lentos, como escolhesse. Lance observou-a até nenhum deles poder esperar mais. Segurou-a firmemente, agarrando-lhe os quadris, e libertou a ferocidade que ela lhe incitara no corpo e na alma.

Nessa noite Marianne não dormiu. Não houve tempo. Quando falara de tudo, Lance interpretara-a à letra. Três vezes, depois quatro, exploraram jogos eróticos, a última das quais com ela junto à lareira, de braços e pernas afastados, os braços abertos e a agarrar a cornija, e o corpo curvado para ele. Entre cada uma das vezes, enquanto se abraçavam, repousando, Marianne memorizava tanto quanto podia do que estava a acontecer. As sensações, o corpo dele, o êxtase – criava novas memórias para poder manter aquela noite viva para sempre. Saboreou o amor a preenchê-la toda a noite; este mudara o prazer, tornando-o melhor. Extraíra mais intensidade da intimidade, ao embrulhá-la em emoções mais ditosas do que qualquer libertação física poderia, só por si, expressar. Agarrava-se até à dor pungente por trás de tudo, a florescente nostalgia crescente e o perigo do sofrimento.


Acreditava que, por vezes, ele se juntava a ela em algo daquilo. Não sabia dizer. Porém, Lance estava com Marianne de maneira diferente. No prazer e na felicidade. Naquela noite, tinha-lhe trazido tudo de si mesmo. Não havia sombras a oprimir-lhe o espírito, nem cólera a torná-lo perigoso. Depois do inicial jogo de controlo de Marianne, toda a sua alma assumiu o comando e ela vibrou com o modo como a tratou, ora com domínio, ora com cuidado. Quando a mais ténue luz se revelou nas janelas, Marianne virou-se nos seus braços e ficou de frente para ele; a respiração fez-lhe cócegas no rosto. Ele estivera a dormir, mas despertou com os movimentos dela. Ao mexer-se, puxou-a mais para ele. Marianne beijou-lhe a face e depois os ombros, com um coração tão cheio que não o conseguia conter. As pálpebras de Lance levantaram-se. – É sua intenção matar-me de prazer esta noite, Marianne? – Não procuro impor-me outra vez. Penso que experimentámos tudo. Ele sorriu. – Dificilmente, mas talvez seja o suficiente, por agora. Marianne examinou-lhe o rosto com cuidado. A boca, a cicatriz e os olhos escuros que a observavam. – O que vai fazer hoje? – Vamos resolver alguns daqueles pormenores. Sem a Marianne, no caso de estar a pensar vir connosco. – Não penso fazê-lo. No entanto, ficarei contente quando vir tudo terminado. – Eu já estou contente, porque na minha mente está terminado. E, caramba, sabe bem. Ela riu-se e deu-lhe um beijo no peito. – Eu sei. – É assim tão óbvio? – Oh, sim. – Beijou-o outra vez. – Provavelmente está a planear armar confusão. Ele riu-se.


– Como é que sabia? – É essa a sua natureza, não é? Lance agarrou-a e, a brincar, atirou-a sobre as costas. Uma alegria diferente tomou conta dele. Afinal, por enquanto não fora suficiente.


CAPÍTULO 23

No dia seguinte, Lance, Ives e Gareth visitaram Thaddeus Peterson enquanto este tomava o seu café. Lance deixou que fosse Ives a falar. Ives usou um tom de voz muitíssimo razoável; um tom que encantava e persuadia, que até lisonjeava e dissimulava. Quando terminou, o rosto de Peterson havia-se transformado em pedra. Lance supôs que as diversas utilizações por parte de Ives das palavras difamação e libelo tinham algo que ver com a expressão de Peterson. Ives não ameaçara nem acusara; meramente havia expressado uma profunda compreensão pelas dificuldades das funções de Peterson e pelas vulnerabilidades que lhe criaria se ele, por inação ou falso julgamento, sujasse o nome de um homem bom. Depois do encontro, os irmãos escolheram galopar até Cheltenham por algumas horas. Lance regressou a casa com boa disposição. Assim que Radley pressionasse Peterson de forma mais direta – e depois da carta que Lance enviara a Radley naquela manhã, uma pressão forte deveria ser exercida muito em breve –, a morte de Percy seria julgada como atribuída a causas naturais. Arrebatado por um raro entusiasmo, foi à procura de Marianne para poder partilhar a alegria com ela novamente. Dentro de poucos dias regressariam a Londres. Havia ainda muitas coisas lá que queria mostrarlhe. Ela devia também pensar no guarda-roupa para a coroação. Marianne deixara os aposentos; quando Lance perguntou aonde fora, a criada apenas encolheu os ombros. Lá em baixo, tomou conhecimento de que mais uma vez visitara a prima, desta feita no coche. Enquanto o mordomo lhe explicava isto, um criado que se encontrava perto começou a parecer terrivelmente culpado e nervoso com alguma coisa. Lance chamouo. – Há algo sobre a visita da senhora que eu deva saber? – perguntou.


– Ela partiu pouco depois de Sua Graça – disse o criado. Uma inequívoca nota defensiva soou-lhe na voz. – Pediu o coche e saiu de imediato. – Então porque é que quase parece que molhaste as cuecas, rapaz? O criado limpou o nariz. Lançou o olhar para a esquerda e para a direita, como se procurasse um caminho por onde escapar. – Ela deu-me uma ordem, deu. – Qual foi? se.

– A ordem foi essa. Não contar a ninguém sobre... – O rapaz deteve-

– Agora ordeno-te que me contes o que ela te ordenou que não contasses – disse Lance. – Quando há dois comandos deste tipo, eu venço. – Sim, Sua Graça. – Conta-lhe – disse asperamente o mordomo. – Ela levou uma mala, Sua Graça. E, pelo que ouvi, também não é provável que o coche regresse hoje. Irá levá-la a algum lugar, depois de visitar a família. O rosto do mordomo ficou vermelho. – Sabias disto e não me informaste? – Ela ordenou-me que ficasse em silêncio – desculpou-se ele. Lance afastou-se, subindo de novo as escadas, enquanto os dois altercavam. Não queria perceber o que acabara de ouvir, mas percebia. Muito bem. Ela havia partido. Fora embora. Depois de uma noite em que sentira a essência dela dentro de si, tocando a sua própria essência, ela tinha-o abandonado. Regressou aos aposentos de Marianne. Não se conseguia encontrar Katy, a criada, em lado nenhum. Claro que não. Também não queria trair a sua senhora. No quarto de vestir, encontrou apenas as roupas de duquesa, nenhuma das outras. Na sala de estar, apoiada na escrivaninha, viu a carta com Aylesbury escrito em letras grandes. Abriu-a.


Meu querido Lancelot, Como nos dirigimos a um homem que é duque e também marido? Não assim, suponho. Contudo, ao iniciar esta carta, escrever Aylesbury pareceu-me demasiado formal, especialmente esta manhã. Não estou a redigir um documento de Estado, pois não?Creio que sabe a razão de eu ter partido. Não por algo que tenha dito ou feito. Não porque me falte afeto por si. Antes porque foi terrivelmente usado pelo meu tio, para todos os efeitos chantageado para se casar, e isso está errado.Ontem, Ives brindou a ter a sua vida de volta, aquela que está destinado a viver. Eu não sou parte dessa vida. Nunca poderei ser, na verdade. Desejo também que tenha todo o seu legado, e filhos de uma mulher cujo estatuto seja digno de si e deles. A verdade é que, se não fosse o esquema do meu tio, nunca se teria casado comigo.Foi defraudado por ele. Com certeza Ives conseguirá encontrar uma forma de argumentar que o casamento foi também uma fraude. Não se preocupe com a reputação do meu tio, nem com a minha, enquanto vai atrás da sua liberdade. Sou uma pessoa insignificante no seu mundo, e daqui a cinco anos nenhuma dessas pessoas se lembrará sequer do meu nome.Estou certa de que o verei outra vez. Ficarei na expectativa e, até lá, estimarei muitas memórias. Marianne Radley Era uma carta sensata, bem pensada e racional. Qualquer pessoa que conhecesse a situação deles concordaria com tudo o que ela escreveu. Marianne assumiu que ele ia ficar grato pela compreensão, e contente por ela ser tão digna e generosa. Tomou como garantido que ele também desejava isto. Pensou que Lance ficaria feliz. Em vez disso, Lance sentia-se furioso e ferido, de uma forma muito mais profunda do que algum dia pensou ser possível.


CAPÍTULO 24

Ao editor do Times de Londres, de Cheltenham, Gloucestershire: O recente veredito final do juiz de instrução, respeitante à causa da morte do último duque de Aylesbury, terá sem dúvida sido referido no vosso jornal. Escrevo, todavia, com pormenores que provavelmente não chegariam a Londres por outro meio.Mr. Thaddeus Peterson fez alguns comentários verbais depois de emitir a sua decisão, palavras que não chegaram ao documento oficial. Expressou um sentido pesar pelo tempo que dispensou a deliberar sobre o assunto, e arrependimentos adicionais por quaisquer suspeitas infundadas e infamantes que a sua demora possa ter infligido a pessoas inocentes. Embora tenha em parte culpado a carta inicial do médico pela sua longa reflexão, admitiu ter sido talvez demasiado diligente, quando na verdade não existia qualquer prova senão de uma morte natural.Fez depois o mais inesperado comunicado, para o efeito, que tinha emitido o veredito à luz de todas as provas, e que não foi de forma alguma influenciado por indivíduos nem do condado nem de fora dele, e que se qualquer estranho interferisse com este assunto do condado, se sentiria obrigado a ser aberto quanto a uma carta que lhe foi enviada, que na verdade procurava interferir em detrimento da boa e oportuna justiça.Todos os cidadãos do condado discutem esta última parte dos acontecimentos do dia, e muita especulação se espalhou sobre quem ousaria tal interferência, em que sentido e por que razão. A crença geral é de que, a certo ponto, a política levantou a sua cabeça quente e irracional, com o juiz de instrução a ser pressionado para agir, num sentido ou no outro.Tendo havido pelo menos uma vítima inocente que sofreu muitas suspeitas infundadas, há aqueles que aconselharam a que a conversa simplesmente cessasse e que se deixasse o último duque descansar em paz, para que este muito lesado particular não decida agora vir limpar o nome dos vestígios de devaneios difamatórios à moda antiga, no campo da honra.Com isto concluo a minha última carta enviada do Gloucestershire, terminando em breve a minha visita; as águas do spa de Cheltenham fizeram maravilhas pela minha saúde, muito mais do que ouvi algum dia terem feito pelo nosso recentemente desaparecido e muito amado monarca. Elijah Tewkberry, Gloucestershire


Ives atirou o jornal para o lado depois de ter lido a carta. – Ele escreve bem. Se algum dia conhecer este homem, irei felicitá-lo e agradecer-lhe. – Está provavelmente a tentar emendar-se por aquela carta que agitou as águas outra vez – murmurou Lance. – Todavia, talvez agora não peça a cabeça dele num prato. – Gostei da ameaça subtil no final – disse Gareth. – Foi bom da parte dele referir aquele conselho, se é verdade que tal conselho se espalhou. Fará com que as pessoas pensem duas vezes. – Conto que ainda tenhamos de bater a um ou dois – disse Lance. Estava sentado a jogar umas mãos de vingt-et-un no seu salão de jogo preferido. Ives e Gareth, desacostumados de o autorizar a saídas na cidade sem amas, seguiam, por hábito, no seu encalço. Era a sua primeira visita a Londres desde o desfecho d’O Mistério de Percival, como tinha vindo a designá-lo para si mesmo; a primeira desde que Marianne partira, há dez dias – não que estivesse a contar. Os três últimos dias haviam sido, de facto, passados a tentar retomar a vida antiga. Estava a chegar à conclusão de que esta já não se lhe adequava. Todas as manhãs vestia um dos seus casacos e saía, tentando ignorar o facto de as mangas serem demasiado curtas e os ombros muito apertados. Ives observava-o a manusear as cartas de onde estava sentado, ao seu lado, de costas para a mesa. – Não pareces estar a divertir-te muito. – Que disparate. Se vocês não estivessem aqui, eu andaria a incendiar a cidade. – Ele ainda está rabugento – disse Ives a Gareth. – Intratável. – Pergunto-me porque será – disse Gareth. – Vocês os dois estão a entediar-me, eis porquê. Ives suspirou dramaticamente. – Porque é que não admites que tens saudades dela? Aliás, porque é que não a vais buscar? Ela é tua mulher, caramba.


– Ela escolheu afastar-se durante algum tempo. Podemos culpá-la, depois de saber a verdade sobre o nosso casamento? Tem o orgulho ferido e precisa de se retirar enquanto... faz o que quer que seja que as mulheres fazem quando têm o orgulho ferido. Quanto a ir buscá-la, ou ter saudades dela, estás enganado. Ao contrário de vocês, no dia do casamento não fui cosido ao lado da minha mulher, nem ela ao meu. O que era mentira. Sentia falta dela. Fora-lhe impingida apenas para que se tornasse acostumado ao seu brilho, ao seu sorriso, à sua paixão. Nem acreditava que Marianne pretendesse apenas afastar-se durante algum tempo, ainda que mentisse a si próprio também acerca disso. Arranjava maneira de se distrair, até ficar sozinho à noite. Nessa altura, os pensamentos e as memórias inquietavam-no: acerca de Marianne, de coisas ditas e feitas, de Percy e das revelações das últimas semanas. No dia seguinte procuraria escapar a tudo outra vez. Esgrimira com Ives e combatera com Gareth. Galopara a alta velocidade em todas as direções. Visitara um prostíbulo durante cinco minutos, apenas para sair repugnado. Até se embriagara tremendamente com velhos amigos na noite anterior. Um erro, isso. Ao regressar a casa, sentindo-lhe imenso a falta e estando demasiado ébrio para ter alguma dignidade, cambaleara até à cama de Marianne e ali ficara a dormir, como se algum pedaço dela pudesse estar com ele. Foi lá que, para sua eterna vergonha, os criados o encontraram de manhã. Ela arruinara-o. Tornara-o inapto para a vida que ele conhecia. Era a causa de as malditas mangas estarem demasiado curtas. Pior, transformouo num idiota sentimental e depois abandonou-o. – Não há nada de errado em sentires a falta dela. – Gareth usou uma voz tranquilizadora, como se usaria com uma criança. – É muito normal. – Para mim, não. – Só porque nunca amaste antes. Em circunstâncias normais, se um homem o acusasse de tal, tornaria bem claro que esse homem laborava em erro. Desta vez limitou-se a pegar numa outra carta porque, ao que tudo indicava, Gareth podia ter razão. Essa possibilidade não o reconfortou. O amor deixava os homens imbecis. Estar já num estado adiantado dessa metamorfose era prova bastante de que talvez Gareth tivesse razão. – O Peterson teve notícias de Whitehall desde que saiu a sentença? –


perguntou Ives, mudando intencionalmente de assunto. – Saberias melhor do que eu – respondeu Lance. – Não sou eu quem é amigo do novo rei. – Perguntei sobre isso, muito discretamente. – O teu nome é discrição. É por isso que és tão útil. – Uma vez que sou tão discreto, não tenho liberdade para dizer o que soube, o que lamento. Tenho razões para acreditar que a atenção desmedida que todo o assunto granjeou foi obra de um só homem, que se retirou da corrida. – Deves referir-te ao Sidmouth. – Lance olhou por cima das cartas para ver a surpresa de Ives. – Ele é o único que tem contas para ajustar. Além disso, é uma víbora. – Não sei porque é que passo dias a investigar e descobrir informação em teu nome se já a tens – disse Ives. – De futuro, poderás poupar-me à cortesia de me dizer que descobriste tudo? – Já que insistes. Mas gostas tanto de investigar que te prestarei um mau serviço. Ives e Gareth mudaram a conversa para o leilão de um cavalo, tópico que entediou Lance. Tirando o facto de Marianne gostar de andar a cavalo, o que fez com que começasse a pensar nela. Continuou a jogar, com a mente a vaguear pelas memórias. As imagens e pensamentos soltos começaram a incentivá-lo. De súbito, ao receber uma carta que dava à mão atual exatamente vinte e um, vários de entre eles alinharam-se numa nova direção. Pediu uma nova mão. – Ele foi assassinado, a propósito. Ives e Gareth pararam de falar. Sentiu-os a olhar para ele. – O que é que te faz dizer isso? – perguntou Gareth. – Sobretudo o facto de ele merecer ser assassinado. Confia em mim, merecia mesmo. – Soltou as cartas e voltou-se para eles. Ives estendeu-se e agarrou-lhe o braço. Inclinou-se na direção dele. – Deixa esse assunto morrer, Lance. Não interessa o que pensas que sabes, deixa-o em paz.


Ives parecia tão sério e zeloso. Tão preocupado e, como sempre, tão leal. – Claro, Ives. Certificar-me-ei de seguir o teu conselho nisto.

*

Uma pequena camada de neve mostrava-se no lado à sombra da casa, vestígio de uma tempestade de inverno que rebentara na noite anterior. Lance conduziu o cavalo até à porta, desmontou e bateu levemente nos painéis de madeira. Uma menina abriu a porta. Quinze, talvez dezasseis anos, era uma jovem encantadora com cabelo dourado e grandes olhos castanhos. – Sua Graça! – A voz de um homem ressoou atrás dela. Lance olhou além da rapariga, para o ponto por onde Mr. Payne entrara na sala de estar, vindo de um aposento do outro lado. Firmando melhor os óculos no nariz, Payne aproximou-se. – Agora vai ter com a tua mãe – disse ele à menina. – Diz-lhe que tenho uma visita e que não quero ser incomodado. A rapariga fugiu. Payne convidou Lance a entrar. – Está demasiado frio para conversar lá fora, Sua Graça. Faz-me doer os ossos. Acolhedora e familiar, a casa de campo ofertava cadeiras confortáveis junto à lareira. Lance e Payne sentaram-se nelas. Antes, Payne vasculhou no aparador e apresentou uma garrafa antiga. Ofereceu o xerez aromático que esta continha. Lance aceitou, por educação e para encorajar Payne a beber também; talvez desse modo não se importasse muito com a conversa que estava para começar. – O assunto da morte do meu irmão está finalmente resolvido – disse. – Morte por causas naturais. – Li que assim foi. O juiz demorou muito tempo a decidir a verdade.


– Bom, vamos lá ver, ele decidiu a verdade oficial, não a verdade real. Creio que sabe disso. – A expressão de Payne tornou-se estoica. Fixou as chamas brandas que tocavam ao de leve a lenha em frente a ele. – Entendi o que queria dizer naquele dia, quando afirmou que Percy não era um homem bom. Sei dos piores pecados, pelo menos, e exatamente onde o gosto por meninas encantadoras o levou. Descobri provas e sei de um caso em particular. Se uma das vítimas, ou um membro da família, procurou justiça, não me sinto inclinado a criticar. Payne tentou manter a compostura, mas os lábios estremeceram e as pálpebras baixaram. – Tem alguém em mente, Sua Graça? – Como me disse, Percy fixou em testamento uma quantia invulgarmente elevada a seu favor. Estaria ele, talvez, não a comprar o seu silêncio, mas a indemnizá-lo por um crime? – É ousado da sua parte, Sua Graça. Ousado, mas possivelmente verdadeiro. Não foi nada que ele me tenha explicado, nem contado. – Qual foi o crime? – Se lhe contar, vai pensar que fui eu que o assassinei. Não fui. Contudo, gostava de ter sido. Pensei nisso durante muito tempo. – Abanou a cabeça. – Estive perto. – Lance não disse nada. O olhar de Payne tornouse duro. Olhou Lance nos olhos. – Há dois anos, a minha filha e a minha neta visitaram-me. Estavam de férias em Cheltenham, mas foram até Merrywood para visitar os jardins. Ele viu-as. Conheceu-as. Convidou-as a regressarem. Que lisonjeado me senti, ao princípio. – Inalou profundamente. – Elas voltaram num dia em que ele tinha tarefas para mim, e por isso estiveram a aproveitar os jardins enquanto esperavam. Ele apanhou a menina sozinha. Quando me apercebi do interesse dele por ela, mandei-as logo embora, mas... não a tempo, soube mais tarde. Amaldiçoei-me por têla posto no caminho do mal. Fui um tolo, por pensar que o meu longo serviço teria algum significado para tal canalha. Então maquinei para o matar. – E, no entanto, não o matou. – Não fui capaz. Mesmo na minha ira, não fui. Nem isso teria mudado alguma coisa para ela. Mesmo assim, lamentei não ter tido essa força moral. – Não foi capaz, mas é possível que outra pessoa tenha sido. Payne levantou-se e foi até à lareira. Passou um bom bocado a acrescentar lenha e a movê-la em volta com o atiçador. Quando voltou para as cadeiras, parecia resoluto.


– Se soubesse quem foi, tencionaria vê-lo enforcado, Sua Graça? – Duvido que haja sequer alguma prova. Quero saber para poder deixar para trás o último ano, só isso. – Então aguarde aqui. Já volto. – Payne saiu da sala de estar. Regressou pouco depois com um pequeno papel castanho dobrado na mão. Pôs-se de novo à vontade na cadeira, retraindo-se à medida que os ossos encontravam a nova posição. – Naquela noite entregaram um presente – disse. – Uma garrafa de vinho. Um vinho muito raro, de França. Foi enviada por um velho amigo, alguém que ele conhecia desde a juventude. Estavam zangados e esse homem queria tentar fazer as pazes. Quando ele adoeceu, fiquei com a impressão de que talvez aquele vinho estivesse... estragado. – Envenenado, quer dizer. – Ou isso. Não há como ter a certeza. Talvez não, mas agora ambos a tinham. – O que aconteceu a essa garrafa? Não foi levada pelo médico para ser de alguma forma analisada? Payne corou. – Livrei-me dela. Garanto-lhe que a garrafa se foi para sempre, Sua Graça. Porque, se o vinho tivesse sido estragado, eu não queria que aquela pessoa fosse enforcada, quando me tinha dado a única justiça que eu conheceria. – Lembra-se de quem a enviou? – Sim. Tenho rezado por ele todas as noites, tenho. Orações de agradecimento, se me permite. Espero que tenha sido envenenado. Espero que alguém tenha tido a coragem que eu não tive, compreende? Lance compreendia, muito bem. – Vai dar-me o nome dele? – A garrafa tinha uma segunda etiqueta esquisita. Uma etiqueta com uma nota escrita à mão. Muito privada que era essa nota. Molhei-a. Está pior por isso, mas ainda se consegue ler. – Entregou-lhe o papel enrugado e dobrado. – Pode querer pensar antes de ver o que está dentro. Ele não era um homem bom, mas era seu irmão. A família é o mais importante, como dizem. Talvez seja melhor acreditar no que o juiz disse.


Lance meteu o papel no casaco. – Prometo-lhe que vou ponderar bem.


CAPÍTULO 25

John Potter, esguio, seco e com trinta anos, levantou-se para falar por si mesmo. Os magistrados recostaram-se para ouvir a história. – Ela é uma víbora – disse. – Nenhum homem deveria ter de viver com uma mulher assim. Se tivessem uma destas, vender-se-iam como escravos para lhe escapar. Um dos magistrados inclinou-se para a frente. – Mr. Potter, tentou ou não tentou vender a sua mulher no mercado, na semana passada, e não a si mesmo? Essa é a única questão a que tem de responder. – Estava só a explicar que foi por uma boa causa. Estava a defenderme. Se ela bebe um bocado, começa a gritar e a praguejar e... e... e a usar o nome de Deus em vão. – Desanuviou-se, quando um novo pensamento o iluminou. – Ela estava certa de que ia condenar a minha alma ao inferno. Um homem tem direito a salvar a alma, não tem? – Não tentando vender a mulher por cinco xelins. Aqui em Inglaterra não fazemos isso. – Ouvi dizer que sim. Fazemos. Soube de um ferreiro no Yorkshire que o fez. Toda a gente sabe que é possível – protestou Potter. – Então esse ferreiro também deveria ter sido apresentado a tribunal. Portanto, tentou vendê-la, correto? – Por assim dizer. Continuou desta maneira ainda durante bastantes minutos. Felizmente para Mr. Potter, não tivera sucesso a tentar vender a mulher. Quem sabe por compaixão pelo que enfrentaria quando chegasse a casa, os magistrados multaram-no apenas em um xelim e mandaram-no embora.


Marianne apressou-se a sair e escreveu a lápis no papel que trouxera. Este era mesmo o tipo de ação engraçada sobre o qual os compradores do Times gostavam de ler. Elijah Tewkberry já arranjara o suficiente para terminar a sua carta. Trataria disso logo que regressasse a casa. O início da carta esperava-a lá, na escrivaninha da sala de estar. Parou na mercearia para comprar provisões, antes de se dirigir para o limite da povoação. Os amigos acenavam-lhe e saudavam-na quando passava. Ninguém a questionava sobre as razões que a haviam levado a fixar ali residência novamente. Todas essas perguntas já lhe tinham sido feitas, muitas vezes. A história que contara, que viera de visita para fechar a casa, serviria por ora. Quando Aylesbury arranjasse uma maneira de sair do casamento, simplesmente admitiria a verdade perante todos, que o duque obtivera a anulação. Não acreditava que alguém por ali fosse considerar estranho, sobretudo se por vezes os homens vendiam as mulheres no mercado. O que achavam estranho era que, desde logo, o duque se tivesse casado com ela. Não era o que toda a gente achava? Aylesbury. Tentava não pensar nele. Dedicara-se outra vez à correspondência para ocupar os dias e a mente, e talvez não chorar demasiado. Ajudou um pouco. À noite, porém, sofria muito. O seu coração não parava de se despedaçar. Ele escrevera-lhe duas cartas. Uma delas recebera-a três dias depois de ter chegado. Volte. Foi tudo o que disse. Marianne respondera de forma mais completa, dizendo-lhe que ele perceberia que estava certa, e que lamentava se o seu ato lhe tinha ferido o orgulho. A outra chegou uns dias mais tarde. Quase tão conciso, escreveu que iria a Londres. Venha comigo. Ainda não dera resposta a essa carta. Imaginou-o em Londres, desfrutando da vida que nascera para levar. Perguntava-se que história teria ele forjado sobre a sua ausência. Não para a família; provavelmente contara-lhes a verdade. A Ives, pelo menos, teria contado, para que este pudesse começar a procurar a melhor saída. Questionava se todos eles se sentiam secretamente felizes por ela ter tomado essa decisão. Suspeitava que os irmãos sim, uma vez que conheciam grande parte da história por trás do casamento. Esforçou-se para afastar da mente todos aqueles pensamentos. Seria a sua eterna luta, e por agora conseguia-o compondo mentalmente o resto da carta, enquanto regressava a casa, na periferia da aldeia. Entrou na casa de campo absorta em pensamentos sobre o assunto. Tirara já o capote e desapertara o chapéu quando reparou que algo estava


errado. Alterado. Um calafrio percorreu-lhe a coluna. Não estava sozinha em casa. A sala de estar estava vazia. Contudo, ouvia alguns sons. Movimentos subtis. Pegou num atiçador que se encontrava apoiado junto à lareira. Como se atraída por um íman, caminhou suavemente em direção à cozinha, na parte de trás da construção. Agarrando com firmeza o atiçador, como uma espada, entrou. Um esplêndido, maravilhoso afluxo de emoção arrebatou-a. Pagaria por isto, oh, pagaria, mas não conseguia resistir a render-se à felicidade. Aylesbury estava sentado na mesa de trabalho. Servira-se de queijo e pão. Olhou em volta e depois outra vez para o queijo que cortava. – Não percebo porque é que se deu ao trabalho de arranjar uma arma quando é tão boa com os punhos, Marianne. – Gesticulou para outra cadeira. – Junte-se a mim. Posso cortar queijo para dois, tanto como para um. Marianne pousou o atiçador. – Teve sorte em eu não o ter usado logo que vi o meu intruso. – Teve sorte em não a ter atirado para o divã e tê-la possuído, assim que entrou pela porta. Ela aceitou o queijo e mastigou. Lance parecia muito elegante, embora tivesse começado a deixar crescer a barba outra vez. A barba por fazer sombreava-lhe o rosto. Marianne achou que o fazia parecer um pirata ou um salteador de estrada. – Porque é que está aqui? – perguntou ela. – Vim para a levar para casa. – Agora é esta a minha casa. – Na verdade, é minha. Foi-lhe dada por Radley, a seu pedido, como parte do acordo de casamento, mas como seu marido tenho o usufruto dela, enquanto formos casados. – O que, se tem o mínimo de bom senso, e se o Ives é tão bom como diz, não será por muito tempo. Lance cruzou os braços sobre o peito. O olhar atravessou-a. – Devia ter seguido as minhas inclinações e simplesmente tê-la atirado


para cima do divã e resolvido isto da maneira mais fácil. – Nem sequer precisa de mim para isso. Arranjou-se bastante bem antes de se casar. – Posso não precisar de si para isso, mas desejo-a para isso. Ora bem, ficaremos aqui esta noite e alugaremos uma carruagem para de manhã fazermos a viagem de regresso. O coração de Marianne ansiava por concordar. Vê-lo quase a levara às lágrimas. – Porquê? – Porque a Marianne é a minha mulher. Ela abanou a cabeça. – Devido às piores razões. – Foi tão usada como eu no esquema do seu tio. – Eu tornei-me duquesa. O senhor tornou-se a vítima. – Teve de esboçar um sorriso pela expressão carrancuda dele. – Porquê? Lance descruzou os braços e descansou-os sobre a mesa. O desconforto emanava dele. – Será embaraçoso ir à coroação sem si. Tem também de começar a preparar-se para isso. Ouvi dizer que as melhores costureiras já estão a receber encomendas. Se não agir depressa, vai ficar com os restos. Ela abanou a cabeça. – Porquê? Lance levantou-se e andou até à janela, olhou para fora e virou-se abruptamente. – Deve-me um herdeiro, eis porquê. Um marido tem direitos e uma mulher tem deveres e... – O Ives aconselhou-o a dizer isso? Se sim, teria sido melhor consultar-se com o Gareth. – Que diabo, não é essa a verdade – murmurou. Regressou à cadeira.


– Porquê? – perguntou ela, com tanta seriedade quanto conseguia ter. Lance resmungou, exasperado. – A Marianne e os seus porquês infernais. – Quero saber se há uma boa razão, além do seu orgulho passageiro. – Claro que há. Não cavalgo durante horas sem uma boa razão. – Na verdade, por vezes cavalga. Contudo, sentir-me-ia honrada se partilhasse comigo a boa razão, porque não consigo pensar em nenhuma que possa ter. Lance parecia um homem submetido a uma luta profunda. A uma tortura. Estendeu-se através da mesa e segurou-lhe na mão. – Aqui está: sinto a sua falta. Muito. E não pergunte outra vez porquê. Eu vou dizer-lhe. Só... dê-me um momento. – Marianne esperou, saboreando a mão na sua, memorizando-lhe a força e o calor. Deus a ajudasse, como o amava. – Sinto falta da sua companhia – disse ele. – E do seu sorriso. Definitivamente, do seu sorriso... – Lance ponderou um pouco mais. – É muito inexperiente a fazer isto, não é? – Caramba, sim. Oh, e sinto falta do seu corpo despido contra o meu. Debaixo do meu. Sobre o meu. Implorando pelo meu. Ele dissera aquilo com facilidade que chegue. Não houve qualquer luta naquele porquê. Talvez fosse essa a única razão pela qual ele estava ali, ainda que, seguramente, soubesse onde encontrar melhor. Marianne, contudo, não sabia. Seria o suficiente para tornar um casamento razoável? Um casamento iniciado em tal engano, e por razões que poderiam, a breve trecho, gerar ressentimentos? Não acreditava que fosse. E no entanto ali estava ele, desejando-a, e ela sem força de espírito para reprimir o coração. Levantou-se com a mão dele ainda na sua. – Venha comigo. Lance seguiu-a pelas escadas acima. A casa não tinha luxos. Não havia quartos de vestir nem cortinados dispendiosos. Poderia habitar em tal casa um agricultor próspero, com a mulher e os filhos e, quem sabe, uma criada para cozinhar e limpar.


Marianne levou-o até ao quarto, com a colcha e as almofadas brancas. Despiram-se um ao outro entre beijos. No início doces e tímidos, aqueles beijos remontaram ao passado recente da noite de núpcias, em que Lance tentara ter cuidado com a sua inocência para não a chocar. Não demorou muito. A cada contacto físico, a excitação de Marianne crescia. Quando as últimas roupas caíram no chão, a tempestade bramiu dentro dela. Os abraços e as carícias tornaram-se febris e impacientes. Caíram sobre a cama, entrelaçados e ávidos por mais. Lance tentou fazê-lo amoroso e lento, mas não era um homem brando e nem todo o comedimento poderia torná-lo assim. Nem Marianne queria; puxou-o e abraçou-o bem junto a si. – Agora – sussurrou ela. – Agora. De braços estendidos e ombros elevados, Lance entrou nela devagar. Tão devagar que a respiração de Marianne se suspendeu, porque a fascinava senti-lo. Durante bastante tempo, enquanto ele entrava e se retirava, o amor de Marianne deleitava-se com o mais comovente prazer. A ânsia dele distendeu-se contra as amarras e depois libertou-se. Marianne não se importava. Queria do mesmo modo essa parte, este homem a revelar-lhe o seu desejo e a comandar também o dela. Uniram-se na libertação. A dele explodiu violentamente. A dela não. Melhor do que uma onda, rompeu em fortes ondulações que se sucediam, levando prazer e amor a cada uma das suas partes.

A luz do sol tardia afluía pela janela e banhava o corpo de Marianne. Descansava nos braços dele, extenuada e com uma respiração profunda. Lance cingiu-a a si e inalou-lhe o perfume. Aquilo estava certo. Era assim que devia ser. Com certeza ela tinha de ver isso. O nariz de Lance comprimiu-se contra a sua cabeça, a boca junto ao ouvido. – Tem de vir para casa comigo. Merrywood, Londres, aqui... onde preferir. Mas comigo. – As pontas dos dedos de Marianne acarinharam-lhe o braço vagamente. Não respondeu. – Está sempre a perguntar porquê, bela flor. Eis porquê. – Ele moveu a mão até lhe cobrir e segurar o peito. – E eis


porquê. – Beijou-lhe o ombro. – Mas a maior razão é porque é minha, e eu sou seu, e pelo que conhecemos e partilhamos neste momento, na paz que fica depois. Marianne virou a cabeça e olhou para ele. Os olhos velaram-se. – Teria sido mais fácil, creio, tudo isto, incluindo os próximos anos, se eu não tivesse acabado por me apaixonar por si, Aylesbury. Consegue compreender isso? Há uma dor diferente num casamento como o nosso quando uma das pessoas ama. Ele fez desaparecer com um beijo uma lágrima na têmpora de Marianne. – Chame-me Lance, por favor. Não há duque, nem título, quando me declara o seu amor, Marianne. Ela conseguiu esboçar um sorriso contrafeito. – Lance, então. – Creio que compreendo. No entanto, pode haver uma felicidade perfeita se ambos amarem. – Ele beijou-a e descobriu que naquele momento não seria difícil de dizer. De todo. – Ilumina a minha vida, bela flor. Roubou o meu coração. Tem de voltar, para podermos amar-nos um ao outro, a nossa vida toda. Marianne limpou os olhos. – Sim, tenho. – Abraçou-o junto ao pescoço e aproximou-o. – Sim. – Deu uma gargalhada admirada e alegre. – Sim. Lance abraçou-a naquela perfeição durante muito tempo. Por fim, quando o crepúsculo reclamou o dia, lembrou-se de uma última coisa que precisava de dizer. – Marianne. – Sim? – Mr. Tewkberry tem de parar de escrever aquelas cartas. A que está pousada na sua escrivaninha tem de ser a última.


EPÍLOGO

Marianne preocupara-se mais com a festa do que precisava. No dia marcado, já visitara tantas vezes a cozinha que se tornara cansativa, e a governanta já respondia aos chamamentos com uma paciência forçada. Não conseguia evitar. Podia ser só uma pequena festa para a família, mas servia como o seu debute enquanto anfitriã. Nem se trataria de uma festa trivial; mais propriamente, seria celebração, boas-vindas e despedida, tudo numa só. Para a tornar ainda mais importante, Nora aceitara vir e Lance insistira para que Vincent, que se encontrava de visita à cidade por uns dias, fosse também convidado. O último mês passara depressa e serenamente, um idílio de amor e intimidade. Tinham sido apenas Lance e Marianne, juntos. Isso acabaria em breve, pois o dever chamava-os. Com início para breve, teriam de ser duque e duquesa no palco mundial. Marianne aguardava os convidados na sala de estar, vestida com a mais recente das suas roupas de duquesa – desenhada especialmente para este tipo de jantares e feita de seda de uma cor invulgar, próxima da do cobre novo. Um colar de ouro trabalhado, com um grande topázio único pendente, realçava-lhe a cor. Fora um presente de Lance, uma surpresa escondida por entre os lençóis na noite anterior. Nora e a Mamã foram as primeiras a chegar. Nora melhorara muito nas últimas semanas. Marianne duvidara que algum dia fosse testemunhar a participação da prima num jantar. E ali estava ela, parecendo etérea no vestido do verde mais pálido, e o cabelo loiro encaracolado e preso em cima. Assim parecia mais velha, e já não uma criança assustada. A Mamã agarrou a mão de Marianne e puxou-a para um divã. – Tenho de te contar antes que os outros cheguem.


– Ela tem um pretendente – disse Nora. – Nora! Era para eu revelar, não tu. Nora ignorou-a. – Um homem tem feito visitas. Um Mr. Stafford. É irmão de alguém importante. Suponho que isso o torne importante também. – É primo de um visconde, não apenas de alguém importante – disse a Mamã. – Tem sido muito atencioso, filha. Penso que talvez... bom, veremos. – Veremos, sim. – Marianne estava satisfeita por ver que o seu casamento beneficiara a mãe. Entre isso e o regozijo do tio Radley por ser regularmente recebido por Lady Barnell, a ligação a Aylesbury estava a dar os frutos esperados por qualquer família judiciosa. – Esse vestido é adorável, Mamã. É novo? – Obrigada. Sim, é. – Parece muito dispendioso. – E é. – Vejo que continua a ajudar o tio Horace a gastar a herança do papá, e a enviar-lhe as contas. – Claro que sim. Todos temos obrigações, e agora a minha é extorquir Sir Horace com toda a energia. – Se ela se casar com ele, vou ficar sozinha com o papá – disse Nora, desviando a conversa de volta ao pretendente da Mamã. – Nessa altura, irei simplesmente viver para o jardim. Faço com que ele me construa lá uma pequena casa. Então poderemos nunca mais ter de nos ver um ao outro. – Se isso acontecer, vens viver comigo – disse Marianne. – Já falei com Aylesbury sobre o assunto. O humor de Nora tornou-se mais leve e ela voltou a atenção para os encontros na sala de estar. A família de Aylesbury tinha chegado. Eva transportava a enorme gravidez tão bem quanto se podia esperar. Gareth insistia em afofar umas almofadas para a apoiar. Padua, deslumbrante num vestido cor de porcelana céladon, ria-se de algo que Ives dissera quando passaram a entrada. Aylesbury seguiu-os.


– Os teus planos para a próxima semana estão feitos? – perguntou a Ives. – Bilhetes comprados e dormitórios assegurados. Navegaremos até ao porto de Génova e prosseguiremos a partir de lá. Aylesbury lançou um olhar sobre o torso de Padua. – Não seria mais sensato adiar essa viagem para depois de a criança nascer? Ives riu-se. – Isso adiaria por muito tempo, Lance. Acabámos de saber da bênção. – Devem ser tomadas especiais cautelas. – Simplesmente não quer que ele vá – disse Padua. – Porque é que não admite? Sabe que os médicos em Itália são iguais aos de cá, se tal for necessário. – Avançou uns passos e deu um beijo na face de Lance. – Prometo tomar bem conta dele e deixá-lo voltar. Não será para sempre. Além disso, a Marianne tem sobre ela um brilho que sugere que em breve poderá ter o seu próprio anúncio. A Mamã ouviu Padua. Voltou uns olhos arregalados e interrogativos para Marianne. – Parece que sim – sussurrou Marianne. – Em breve saberei ao certo. – Enquanto ele estiver cheio de alegria com as notícias, não deixes de lhe pedir mais joias – murmurou a mãe em resposta. Um guincho interrompeu qualquer conselho adicional sobre a matéria. Nora saltou, correu e lançou os braços em volta de um homem alto e loiro que acabava de ser trazido à entrada. Alto, bonito e vestido com o uniforme naval, Vincent assimilou os convidados com o olhar. Nora dançava em volta dele, feliz. Marianne levantou-se para fazer as apresentações. Imaginava ela que Lance o examinava com mais atenção, enquanto lhe dava as boas-vindas ao grupo? Seria um reflexo de ciúme o que via naqueles olhos escuros? Tomou a dianteira a descer para o jantar, apreciando bastante a ideia de ser.


Depois do jantar, Ives e Gareth retiraram-se da sala de jantar, após meia hora de porto e conversa. Lance pediu a Vincent para ficar. Questionou Vincent sobre a missão e o navio, e também sobre os planos para a próxima viagem. Serviu mais vinho e tirou-lhe as medidas. Vincent respondia com entusiasmo. O manifesto amor pelo serviço naval acrescentava os seus próprios pontos altos à conversa, mas Lance reconheceu um homem com esperança de que a simpatia de um duque pudesse abrir-lhe possibilidades de carreira. – A sua irmã está muito melhor – afirmou Lance, por fim. – A Marianne tem grandes esperanças de que continue assim, e de que a Nora volte a ser o que era. As atenções de Vincent transferiram-se de si próprio para Nora. – Nunca poderei agradecer o suficiente à Marianne. Eu não poderia estar aqui, e sem ela... – Bebeu mais vinho. – A Nora tem um amigo. Um jardineiro. Vi-os juntos quando visitámos a mãe da Marianne, na semana passada. – Um jardineiro? Isso é bom. Ela precisa de amigos. – Para viver uma vida plena, poderá também necessitar de um bom homem. Um que a compreenda e que não exija mais do que ela pode oferecer. Fiz perguntas e ele pode ser esse homem. Não estou certo de que seja apenas um amigo. Creio ter testemunhado um beijo roubado na estufa. Evidentemente, com o vidro tão distorcido... – Encolheu os ombros. – Levantaria objeções se Nora desenvolvesse uma afeição por este jardineiro? Como irmão, tem uma palavra a dizer. Vincent franziu a testa à pergunta. Lance não o censurava. Nora não nascera para se casar com um operário. Depois Vincent sorriu firmemente, sobretudo para si mesmo. Olhou Lance nos olhos. – É hipócrita da minha parte ser exigente, quando a minha primeira afeição foi por um jardineiro. No silêncio que se seguiu, Vincent esperou uma reação. Lance não lhe deu nenhuma. Não se importava com as preferências dos homens. Vincent não seria, de maneira nenhuma, o primeiro oficial a tê-las. – A Marianne sabe? – Duvido até que tenha consciência de tal... Não sabe. Quis contar-


lhe, há muito tempo, e várias vezes desde então. – Suponho que sim. Bom, quanto à sua irmã e ao jardineiro, se os afetos se desenvolverem, trarei o homem para Merrywood e garantir-lhe-ei um futuro estável. Vou apoiá-lo no que quer que decida fazer da vida. Não precisa de se preocupar com ela. – Agradeço-lhe por isso. – Vincent olhou para a porta. – Não estarão a sentir a nossa falta? – Provavelmente. Contudo, antes de nos juntarmos a eles, tenho algo para si. – Lance foi ao casaco e retirou um papel. Pousou-o em frente a Vincent. – O criado tirou-o da garrafa e guardou-o. Tem sorte que tenha também subtraído e destruído a garrafa. Vincent olhou para o papel durante bastante tempo. Depois pegou nele e segurou-o contra a chama de uma vela. Começou a arder. – Se ele tivesse deixado a garrafa, não teriam encontrado nada. Viajei por toda a parte, Sua Graça. Há culturas com remédios e ervas que nunca vimos. Há xamãs que preparam todo o tipo de poções desconhecidas dos nossos farmacêuticos. Com uma expressão firme e nem remotamente arrependida, Vincent deixou cair no copo os restos do papel em chamas. – Ela contou-me que tinha sido violada, quando fui visitá-la ao Wiltshire, pouco depois de adoecer. Mal conseguia falar do que aconteceu, e mal o compreendia ela mesma, mas conseguiu o suficiente para o condenar. Sabe, eu conhecia o seu irmão. Conhecia-o demasiado bem. Melhor do que algum dia o conheci a si, ou a Lord Ywain. Visitava a minha mãe nas férias da escola, e também mais tarde. Via-o com os amigos e sabia o que ia dentro dele. Ele adivinhou também o que ia dentro de mim. – Confrontou-o? – Logo que pude ir ao Gloucestershire, encontrei-o e desafiei-o para um duelo. Ele riu-se. Depois descreveu como me quebraria e arruinaria, se eu pronunciasse uma só palavra da minha acusação. Sabia que ele podia fazê-lo. Comecei então a traçar outros planos. – Gesticulou para as cinzas no copo. – Se leu a nota, viu como eu estava desgostoso. No ano anterior, ele interferira com uma promoção, apenas para garantir que eu não me esquecia do seu poder. Naquela nota eu rastejava, suplicando-lhe perdão, para que ele parasse de agir contra mim, e dizendo que não falaria mais do assunto que nos separava. Ofereci o vinho como um presente de conciliação. Escolhi um de qualidade excecional. Convenci o château a acrescentar este outro rótulo com a minha carta, para que ele não quisesse bebê-la com


companhia, a menos que fosse a dos seus cúmplices. Imaginei-o a abrir a garrafa e a brindar à minha humilhação. – Foi uma longa conspiração, a que tramou. – Tem-se tempo para pensar nos pormenores quando se está fora, no mar. Não poderia tocar-lhe de nenhuma outra forma, Sua Graça. Nem através da lei. Nem sequer por mexericos. Ele era seu irmão, e por isso não espero que compreenda ou me perdoe, mas, na minha perspetiva, fiz o que era o meu dever. – Sabe quem eram esses cúmplices? – Lamento não saber. Talvez, com o tempo, a minha irmã se lembre. Lance sabia que devia sentir-se pior quanto a isto do que realmente se sentia. Zangado. Vingativo, até. Era suposto a família ser o mais importante, como dissera Mr. Payne. Só que, quando olhava para Vincent, o que realmente via era o olhar inerte de Nora, durante aquele primeiro passeio de carruagem. – Não há provas. Mais importante ainda, a minha mulher gosta de si – disse, levantando-se. – Vamos ter com os outros.

Marianne viu Lance e Vincent a entrarem na sala de estar. Haviam passado um bom pedaço de tempo juntos. Pareciam cordiais quando se aproximaram e se juntaram aos demais. Avançou até Lance. – Gosta dele? – Acenou com a cabeça para onde Vincent conversava com Eva. – Muito. – Fico muito contente. Espero que possam tornar-se amigos. – Quanto a isso, não sei. No fim de contas, ele é concorrência, e fico ciumento no que se relaciona consigo. – Sabe que não tem nem nunca terá concorrência, Lance. Com todo o amor que tenho por si no coração, não há espaço sequer para o mais insignificante flirt com outro homem.


– Isso é bom de ouvir, querida. Vou fazer com que o cumpra, para sempre. – Além disso, ele provavelmente já partiu corações por todo o mundo. – Sem dúvida. Marianne manteve-se próxima, e como tal sentia-lhe o calor. Lançou um olhar sobre os convidados. – Julgo que correu bem, não acha? – Esplendorosamente, embora ontem o mordomo tenha implorado misericórdia e resgate do seu domínio. Será uma grande anfitriã, em muitas mais festas. – Nenhuma tão importante como esta. Veja, estão todos aqui. Todas as pessoas que são importantes para mim, juntas, num só lugar. A minha família. Ele beijou-lhe a face. – Importantes para nós os dois, Marianne. Mas agora venha comigo. Escaparam para fora do aposento. Segurando-lhe na mão, Lance levou-a pelas escadas acima. – Não me parece que as anfitriãs se retirem antes de os convidados irem embora – disse Marianne. – Tenho a certeza de que ainda não acabou. – A família não se importará. Nem nos estamos a retirar. Daqui a pouco estaremos de volta. Para surpresa de Marianne, ele não a levou aos aposentos da duquesa, nem sequer aos dele. Em vez disso dirigiu-se para a porta a seguir à dela, a que conduzia aos aposentos do duque. Marianne passara as semanas anteriores a esvaziar aqueles aposentos de tudo. Até as paredes haviam sido despidas. Nada de Percy, ou de qualquer duque precedente, sobrevivera. Procurara depois a ajuda de um arquiteto para reconstruir e redecorar. Só fora concluído há três dias. Aylesbury andava às voltas, a inspecionar os resultados. Ela seguiu-o até ter terminado a excursão pelo quarto de dormir. – Gosta? – perguntou. – Pensa que poderá usá-los todos, um dia?


Lance olhava para um pormenor e para outro, acenando com a cabeça. – Acredito que sim. O seu sentido estético satisfaz-me. Gosto dos toques góticos. – Fico muito contente. Não me ajudou, de todo, e pensei que ia fazer tudo mal. – Não me parece que algum dia vá fazer tudo mal, querida. – Fez pressão no colchão, testando-o. Olhou outra vez para Marianne. – Na verdade, penso que vou começar a usar os aposentos de imediato. – Agora está a ser malicioso. Isso pode esperar umas horas. – Olhou para o vestido de jantar e depois gesticulou, para o fazer pensar no fraco sentido de oportunidade do capricho. Lance puxou-a para os seus braços. – Se eu algum dia deixar de ser malicioso, espero que mande alguém alvejar-me. – Beijou-a profundamente e acariciou-a das maneiras que sabia que depressa a deixariam sem defesa. Marianne debateu-se, mas apenas por uns instantes. Os convidados não se importariam de esperar. Provavelmente, muitos deles iriam imaginar o que estava a acontecer. Marianne abraçou-o e permitiu-lhe possuir o seu corpo e o seu coração. Lance conseguiu fazer tudo sem que uma madeixa de cabelo ficasse desmanchada, e sem que qualquer um deles se despisse. Quando Marianne largou a coluna da cama e se levantou, a saia caiu em pregas perfeitas. Um passeio pelo jardim tê-la-ia desarranjado mais. Ele olhou para o leito. – Esta noite dormiremos aqui, para que os aposentos e eu cheguemos a um bom acordo quanto a quem está autorizado e que fantasmas não estão. Além disso, quero que o meu herdeiro cresça acostumado à casa dele. – O seu herdeiro? – Ouvi-a falar sobre o nosso filho. Compreendo que as mulheres partilhem tais coisas entre si porque, bom, são mulheres. Mas fiquei magoado por não ter me ter feito também a confidência. – Não quis dar-lhe muitas esperanças e depois desapontá-lo. – Não poderia nunca desapontar-me, querida.


– É só que ainda não sei. – Eu sei. Tenho a certeza. Marianne olhou-o nos olhos. Ele tinha a certeza. De repente, ela também. Lançou os braços em volta dele. – Tenho tido tanta vontade de lhe contar, nesta última semana. Está feliz? – Que pergunta para me fazer. – Lance segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a delicadamente. – Mesmo sem estas notícias sou o mais feliz dos homens, Marianne. Isto apenas torna as nossas vidas mais perfeitas. Diria que me faz amá-la mais, mas tal não é possível. No entanto, traz-me grande alegria. Já consigo imaginar o nosso filho. Educá-lo-ei para que seja honrado, forte e bom. Marianne levantou a sobrancelha. – Bom? Lance sorriu e beijou-lhe o nariz. – Bem, se calhar não muito bom. Não queremos que seja maçador. Marianne aconchegou-se de encontro a Lance, num abraço. Fechou os olhos e saboreou a forma como partilhavam a alegria e o amor. Mais perfeitas, dissera ele sobre as suas vidas. As lágrimas formavam-se, ao pensar no quanto eram perfeitas. Agradeceu então ao destino por ter feito com que encontrasse o duque perverso.


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