Madeline Hunter - Os Libertinos 02 - Alto, Moreno e Provocador PT (Agosto 2018)

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Ficha Técnica Título: Alto, Moreno & Provocador Título original: Tall, Dark and Wicked Autor: Madeline Hunter Edição: Carmen Serrano Tradução: Ana Pinto Mendes/Lufada de Letras Revisão: Catarina Sacramento Fotografia da autora: Studio 16 ISBN: 9788792342924 "MEB" Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201 © 2015, Madeline Hunter Reservados todos os direitos incluindo o direito de reprodução total ou parcial sob qualquer forma. Edição publicada por acordo com Berkley, um membro do Penguin Publishing Group, uma divisão do Penguin Random House LLC. © 2018, Edições ASA II, S.A. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor edicoes@asa.pt www.asa.leya.com www.leya.pt Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


CAPÍTULO 1 Leal Jovial Inteligente Desinibida Impetuosa Recetiva ord Ywain Hemingford – Ives, para a família e os amigos mais chegados – leu a lista de qualidades que exigia numa amante. Tinha-as escrevinhado, sem particular sequência, num momento de ócio do dia anterior. Apenas a primeira merecia a sua posição na lista sem margem para dúvida. Na verdade, deveria ser sublinhada. Havia outras qualidades que também o atraíam, mas estas seis, tinha aprendido pela força da experiência, eram fundamentais. Enfiou o papel atrás de uma folha, para a devolver mais tarde à sua função atual de marcador de livro. Acomodou-se na sua cadeira favorita, apoiou as pernas num escabelo, com os pés virados para a lareira em lume brando e dedicou novamente a sua atenção a um romance que andava a fazer menção de ler havia já quatro meses. Vickers, o seu criado, pousou um copo e dois decantadores, um de vinho do Porto e outro de água, numa mesa ao lado da cadeira, recuando depois novamente para a retaguarda. – Se o seu irmão, o duque, passar por cá esta noite, senhor, deverei... – Não o deixe entrar. Ponha trancas à porta. Para ele, não estou em casa. Se Deus tivesse um pingo de misericórdia, teria inspirado o Lance a permanecer em Merrywood Manor, não teria permitido que se atrevesse a regressar à cidade onde será uma maçada para toda e qualquer pessoa que se cruze no seu caminho.

L


Estou farto de ser o seu companheiro de brincadeiras ou a sua ama-seca. – Pelo menos durante algum tempo, acrescentou para os seus botões. Após uma das últimas semanas novamente a ladrar, os cães tinham batido outra vez em retirada, mas não haviam desistido da caçada. Ives não se importava de ser o guarda do irmão. Mas melindrava-o muito ter de desempenhar este papel para um irmão que tratava os seus conselhos como se fossem emitidos por uma velha tia. Seria de esperar que um homem suspeito de homicídio fosse mais discreto no que dizia e fazia, que quisesse causar boa impressão, e não que, pelo contrário, deitasse a língua de fora à sociedade sempre que tinha oportunidade. – Muito bem, senhor. Passos camuflados. Uma porta a fechar. Paz. Ives fechou os olhos e saboreou por momentos aquela raridade na sua vida – a liberdade de fazer o que muito bem lhe apetecia, quando lhe apetecia, sem nada a exigir o seu tempo ou a sua atenção. Vários desenvolvimentos haviam permitido esta folga, além do decrescente interesse de magistrados sequiosos de sangue na direção de Lance. Nenhum caso esperava a sua eloquência em tribunal, pelo menos nos quinze dias seguintes. Coincidentemente, a sua amante tinha sido extremamente desleal havia uma semana, dando-lhe a ele a desculpa de que estava à espera há algum tempo para se separar dela. Ficara assim livre dela também. De lhe dar atenção. De comprar presentes. De alimentar a sua vaidade. De ir a pequenas festas que ela gostava de organizar e que o entediavam mais do que alguma vez lhe dera a entender. Como é evidente, também o deixava livre de companheira sexual. Essa não era uma situação que ele, por natureza, encarasse de bom grado, mas não se importava em demasia. Ponderar com quem terminaria a sua abstinência daria às suas incursões pela cidade uma animada distração. Perspetivou um período glorioso de atividades inúteis. Chamavam-no várias longas cavalgadas pela região, seguindo mais o seu capricho do que estradas ou mapas. Tinha também à sua espera uma pilha de livros como este, por ler há demasiado tempo. Poderia dar-se ao luxo de treinar regularmente as artes da espada e dos punhos, para melhorar a sua mestria em combate com uma e outros. E ansiava pelo menos um bom longo deboche de embriaguez com velhos amigos há demasiado tempo postos de lado. – Senhor. A voz de Vickers, mesmo junto ao ombro, surpreendeu-o. Não tinha ouvido


Vickers regressar. – Senhor, tem uma visita. – Mande-o embora, já lhe disse. – Não é o seu irmão. É uma mulher. Diz que veio tratar de um assunto profissional. Que o senhor lhe foi recomendado. Exalando um suspiro, Ives estendeu a mão. – Não me deu nenhum cartão, senhor. Eu tê-la-ia mandado embora, mas ela não quis dizer exatamente quem o teria recomendado e a última vez que teve uma recomendação foi de... – Sim, tem toda a razão. – Diabos. Se alguém, ou mesmo Alguém estivesse a pensar perturbar as suas duas próximas semanas enviando-o a percorrer Inglaterra nalguma missão ou investigação, esse Alguém estava muito enganado. Ainda assim, teria pelo menos de receber esta mulher e ouvir o que teria a dizer, e depois elaborar um bom motivo para a não poder ajudar. Levantou-se e olhou-se a si mesmo. Usava um robe comprido sobre a camisa e as calças. A ideia de se vestir novamente irritou-o. Com os diabos, já tinha há muito passado a hora de tocar à porta do escritório de um advogado, mesmo que Alguém o tivesse recomendado. Apresentar-se-ia demasiado informal para um desconhecido, ou para assuntos profissionais, mas não estava propriamente em camisa de noite. Esta mulher teria simplesmente de lhe perdoar o robe. Com sorte, daria conta de que tinha perturbado o seu serão, o que indelicadamente estava mesmo a fazer, e trataria rapidamente do assunto que a trouxera ali. Dirigiu-se para o escritório. Era provavelmente uma peticionária de alguma causa de reforma ou familiar de um amigo que queria os seus conselhos sobre que solicitador deveria contratar. A sua missão naquela noite teria certamente sido cumprida de modo mais humano se tivesse escrito uma carta. Abriu a porta do escritório e, imediatamente, soube que a sua visita não fora recomendada por pessoa relevante, e muito menos por Alguém realmente importante. O vestido simples identificava-a como uma criada. Não vislumbrava um só adorno no vestido nem no enfadonho casaco verde que trazia abotoado até acima sobre o peito. O chapéu mais simples que vira em meses cobria-lhe o cabelo negro e enquadrava-lhe o rosto. De olhos baixos, perdida em pensamentos, não o tinha ouvido entrar. Ele ponderou sair novamente tão silenciosamente como entrara e dizer a Vickers que a mandasse embora. Recuou um pé para fazer exatamente isso. Nesse preciso momento, ela ergueu um lenço até aos olhos – uns olhos cintilantes, foi inevitável reparar, com negras e grossas pestanas que


contrastavam acentuadamente com a pele branca. Uma pele radiosa, na verdade, conferindo ao seu rosto uma presença ilustre, se lhe era permitido dizer, apesar de não ser uma mulher bonita. Mas bem-parecida, apesar dos traços algo agrestes. Ela secava levemente as lágrimas. A sua expressão reservada desfeita sob a emoção. Detestava ver mulheres a chorar. Detestava. A sua piedade fácil também só lhe tinha trazido sarilhos no passado. Mas... Ora bolas. Esperou até que ela se recompusesse e depois avançou. Padua fungava, mas não apenas para conter as lágrimas que aquele dia insistia em fazer verter. Também estava a verificar, pela décima vez, se a sua roupa libertava algum odor. A prisão de Newgate tresandava. Todo o fedor exalado por Londres parecia concentrar-se na cidade velha, mas o cheiro de Newgate faria crer que era ali que estava a origem de tudo. Nunca sentira nada assim. Permanecia-lhe no nariz e preocupava-a a ideia de se ter impregnado na roupa. Sentou-se muito hirta na cadeira que o criado lhe tinha indicado. O ambiente em que se encontrava deixava-a algo ansiosa. Ter-se-ia talvez precipitado a seguir o conselho de procurar este advogado. Era muito provável, considerando que a pessoa que a aconselhara fora uma alcoviteira detida na prisão. Normalmente, não aceitaria conselhos de uma prostituta nem de um criminoso. E no entanto, quando aquela mulher a chamou enquanto se dirigia à saída da prisão e lhe demonstrou compaixão, foi como se ela fosse outra pessoa. O simples ato de conversar com alguém aliviara-lhe a angústia. Depois de escutar a sua história de aflição, aquela mulher recomendara-lhe que arranjasse um advogado e até lhe indicou o nome de um que lhe ajudara um familiar que fora injustamente acusado. Subitamente, a prostituta parecera-lhe um anjo enviado pela Divina Providência a fim de a guiar para fora do Vale do Desespero. E agora estava à espera de ser atendida por esse mesmo advogado. Não era apenas um advogado como também era um lorde. Achou estranho um lorde ser advogado. Teria presumido que a alcoviteira se teria enganado quanto a isso, mas a verdade é que o criado nem pestanejou quando ela usou o título para solicitar uma audiência.


Agora que já se encontrava ali, estava disposta a acreditar na parte do lorde. Embora estivesse no seu gabinete, a verdade é que não se tratava de um apartamento, nem de um simples complexo de escritórios. Ao invés, encontravase no primeiro patamar daquilo que parecia ser uma casa nova virada para Lincoln’s Inn Fields. Não havia indício algum de que mais pessoas residissem ou trabalhassem no andar de cima. Este advogado tinha uma boa dose de dinheiro, se todo este edifício era a sua residência. Pela mobília de mogno e as encadernações caras, tudo indicava que sim. Tinha os pés pousados e semissubmersos na densa lanugem da carpete que cobria o chão. Estava sentada numa cadeira que deveria ter custado muitas libras. As paredes estavam decoradas com quadros verdadeiros e não gravuras baseadas em obras de arte famosas. Os seus honorários eram provavelmente muito elevados. Duvidava de que tivesse condições para os pagar. Até aí, a alcoviteira tinha chegado. Se não tiver massa para lhe pagar, ele aceitará provavelmente outra forma de pagamento, minha querida. Quase todos os que nos defendem o aceitam. Conseguiria aceitar tal coisa? Sentiu repugnância pela simples ideia. Por outro lado, não seria pior do que os acordos que a maioria das mulheres se via forçada a aceitar ao longo das suas vidas. Não lhe tinha a mãe ensinado que os casamentos sem amor a que a maioria das mulheres são sujeitas eram meros acordos económicos adornados por pormenores legais? A sua experiência no mundo ensinara-lhe que esta perspetiva seria talvez um pouco cruel, mas, na sua essência, verdadeira. Fechou os olhos e, imediatamente, viu-se de novo na prisão, a espreitar para dentro de uma cela cheia de homens. O fedor, a sujidade, os sons feios atacaramlhe novamente os sentidos. A desesperança e a morte reinavam na prisão de Newgate. Ninguém deixaria lá dentro nenhum ente querido, caso tivesse forma de o tirar de lá. As lágrimas marejavam-lhe os olhos. Limpava-as com o lenço e esforçava-se por manter a compostura. Ela nunca chorava, mas este não era um dia normal, sob tantos pontos de vista. – Pediu para ser recebida. A voz catapultou-a dos seus devaneios e atraiu a sua atenção para o homem que, de repente, ali estava de pé, meio metro à sua frente. Oh, céus. Meu Deus. Ele não era nada do que ela estava à espera. Mesmo nada. Imaginara um homem de meia-idade, com cabelo grisalho, óculos e rosto


marcado pela experiência de vida. Vestiria um casaco escuro e um plastrão rígido, surgindo acompanhado de um ou dois dos seus escrivães. Pelo contrário, o homem que ali estava a avaliá-la – não havia outra palavra para o modo como a absorvia com o olhar – não podia ter mais de trinta anos. Exibia uma fisionomia clássica e elegantes caracóis de cabelo castanho-escuro com uma tonalidade invejável. Usava um robe comprido que poderia passar por um sobretudo, se não fosse confecionado em brocado em vez de lã. Um homem impressionante. Os seus olhos verdes cativavam a atenção de qualquer um. Uns olhos muito atraentes. Inteligentes. Expressivos. Este advogado não era apenas bem-parecido, mas sim bem-parecido de uma forma que transformava numa pateta qualquer mulher que o visse. Recompôs-se, não fosse ela dar a ideia de que era precisamente esse tipo de mulher. – É Lord Ywain Hemingford? – Não fazia ideia de como se pronunciava Ywain. Certamente não seria «ia-ueine», como dissera a alcoviteira. Experimentou «ii-ueine». Uma leve crispação no rosto dele indicou-lhe que não tinha acertado. – O próprio. Pronuncia-se «ê-ueine», já agora, pelo menos na minha família. Há uma meia dúzia de hipóteses. Quase toda a gente escolhe a hipótese errada, por isso há muito tempo que desisti e me fiquei pelo nome Ives. Pense em mim com esse nome, se lhe for mais fácil. – A sua boca perfeita esboçou um meio sorriso. – Mas seja qual for o nome que escolha, estou na verdade em desvantagem. – Perdão. Chamo-me Padua Belvoir. – E tomou nota da sua indumentária informal. – Vejo que o incomodo, vim na altura errada. Peço-lhe perdão também por isso. Estava tão perturbada que não atentei à hora e, em todo o caso, não conseguiria descansar enquanto não tivesse procurado a ajuda de que preciso. – Disse ao meu criado que lhe recomendaram que viesse ter comigo. Posso perguntar quem foi? Uma prostituta na prisão de Newgate. – Penso que ela não quererá que eu revele o nome. Ele passeou-se pela sala. – Pressuponho que esteja aqui para tratar de assuntos criminais. – Como sabe? – Porque essa é a única razão por que ela não quereria ver o seu nome envolvido e porque estou em crer que esteve hoje de visita à prisão. – Com toda a calma, abriu uma das janelas. Entrou na sala uma corrente de ar fresco.


Ela sentiu as faces a arder. – Por favor, não sinta embaraço. A prisão é um lugar fétido – disse ele –, tive um casaco que teve de ser queimado depois de lá ter ido com ele vestido num dia de verão. – Não é apenas fétido, é horrível em todos os aspetos. As condições são uma vergonha. Os prisioneiros são uns desgraçados. Ele repousou o corpo alto numa cadeira próxima da dela. Sentou-se como um rei se sentaria num trono. De braços pousados ao longo dos flancos e as mãos suspensas em frente dos entalhes. – Veio pedir um donativo, talvez promover uma campanha para melhorar as condições de lá? Contribuirei, mas devo avisá-la de que é uma demanda nobre, mas em vão. As pessoas não costumam preocupar-se grandemente se os criminosos não estiverem confortáveis. – Não vim aqui pedir-lhe um donativo beneficente, embora espero um dia ter tempo para me dedicar a boas causas desse tipo. – É uma reformista em germinação, é isso? – Há muita coisa na nossa sociedade em que seriam úteis algumas reformas. – Como aconteceu em todas as sociedades ao longo do tempo. Oh, céus, ele era uma daquelas pessoas. Do tipo que não via utilidade nenhuma em tentar melhorar o presente por os esforços nesse sentido terem falhado no passado. – Tenho conhecimentos de história, senhor. Recebi uma educação liberal. Com o nosso conhecimento superior, penso que podemos ser mais esclarecidos do que os nossos antecessores. Ele ajustou a posição na cadeira e inclinou a cabeça. – Perguntar-lhe-ia quais as reformas que gostaria de ver executadas em primeiro lugar, mas deixe-me antes adivinhar. – Com o olhar, percorreu-a dos pés à cabeça. – Direitos dos trabalhadores. Reforma educativa. – Perscrutou-a novamente. – Sufrágio universal, incluindo voto para as mulheres. Se é uma mulher instruída, não quererá que lhe seja negado um direito exercido por outros que não possuem faculdades mentais mais treinadas do que as suas. – A sua conclusão está absolutamente correta. Todavia, os meus motivos são menos elevados. Acredito simplesmente que, uma vez que há muitos homens que agora votam que são estúpidos e ignorantes, não vejo a lógica de negar esse direito a mais ninguém, por mais estúpido ou ignorante que também possa ser. Ele soltou um riso fácil. Um riso atraente. Tranquilo. Caloroso. Os seus olhos revelavam novas profundidades.


– Penso que nunca ninguém antes mo tinha dito de forma tão ousada. Como um astuto professor de Matemática, insistiu na resolução de uma equação diferente, uma equação que me colocaria em posição de desvantagem, caso eu tivesse a intenção de discordar. A sua perspicácia com aquela observação sobre o professor de Matemática enervou-a. Como tinham eles enveredado por semelhante tema? – As minhas opiniões não têm importância, evidentemente. A minha intenção original era no sentido de dizer que nem todas as pessoas que estão na prisão são criminosas, pelo que o sofrimento que ali lhes é infligido não tem desculpa. Ele esboçou novamente aquele meio sorriso, nada mais. – Uma vez que não quer dinheiro e não quer discutir reformas, talvez me possa explicar o que pretende, afinal. – Quero a sua eloquência e a sua competência para ajudar o meu pai, que foi tão afetado pela estada na prisão que está demasiado débil para se ajudar a si mesmo. Foi injustamente acusado de um crime. Não suspirou propriamente ao ouvir este tema mais do que previsível, mas a sua expressão revelava uma doce paciência. – Há quanto tempo está lá? – Pelo menos duas semanas, mas possivelmente um mês. Eu só soube ontem. Recebi uma carta, não sei de quem, a contar-me o sucedido. Normalmente, tenho notícias dele pelo menos uma vez por mês. Passaram seis semanas desde a última carta dele, por isso fiquei preocupada. – Porque não o visitou para saber o que se passava, ao ver que não chegava uma carta? – Estamos um pouco distantes. Não houve nenhuma discussão entre nós. Ele anda muito ocupado com as suas próprias atividades. Não pude fazer uma visita porque não sei onde ele reside em Londres. – Viu-o hoje, quando foi à prisão? – Permitiram-me que o visitasse. Está numa cela grande com muitos homens rudes. Não está lavado, tem a barba por fazer e está assustado. Receio bem que possa adoecer ali. Há tantos outros que estão doentes. – Porque o mandaram para lá? – Ele não mo quis dizer. Disse apenas para me ir embora e que não voltasse. – A voz quase lhe falhou na última frase. Fora horrível. Se não tivesse tido uma porta de ferro a separá-la do seu paizinho, a sensação com que ficou era de que ele a teria escorraçado fisicamente. O verde dos olhos dele escureceu enquanto refletia. Ela não interpretou


aquela pausa como um bom sinal. Mesmo nada bom. – Miss Belvoir, estou certo de que ficou consternada ao encontrar o seu pai numa cela juntamente com homens indignos de lhe prestarem uma companhia adequada. Contudo, se não sabe que crime lhe foi imputado, como pode saber que foi injustamente acusado? A recusa dele em falar consigo sugere precisamente o contrário. – O meu pai não é um criminoso, senhor. É um estudioso. Ensinou em universidades em todo o Continente e detinha uma posição de professor em Oxford até se casar com a minha mãe. Ocupa todo o seu tempo com a investigação e os seus livros. Não pode haver um motivo justificável para ele estar preso, a menos que ser-se intelectual tenha passado a ser crime. Está prestes a ocorrer um grave erro judicial. Saiu-lhe tudo de um jorro, sem se interromper; por vezes o seu entusiasmo traía-a. Lord Ywain – Ives – limitou-se a ficar ali sentado, a escutar, a marcar uma presença que se aglomerava dentro dela, apesar de estar sentada a metro e meio de distância. Não parecia especialmente interessado. – Tem a certeza? – perguntou. – Absoluta. – E, contudo, nem sequer sabe onde ele vive em Londres. – As suas palavras não a rejeitavam liminarmente, mas a sua expressão quase o fez. Os seus olhos estreitaram-se com ceticismo. Ela sentiu escorrer-lhe por entre os dedos a sua melhor hipótese de ajudar o pai. – Eu disse-lhe que o seu silêncio era imprudente. E é por isso que aqui estou. Disseram-me que agora algumas pessoas têm advogados nos julgamentos. Disseram-me que por vezes assume a defesa dos acusados. – Mais devagar. Para de jorrar palavras. – O meu pai é incapaz de se defender e poderá até não se mostrar disposto a fazê-lo. As acusações são insultuosas e ele é o tipo de pessoa capaz de se recusar a contestar o insulto, por considerar que nem se quer envolver. Ele não se tinha mexido durante toda a sua veemente argumentação. As mãos continuavam apoiadas na extremidade dos braços da cadeira. Mãos masculinas e atraentes, tão bonitas quanto o seu rosto. O seu olhar manteve-se sempre fixado nela e as mudanças na direção do que observava tinham sido subtis, mas inequívocas. Não medira apenas o rosto dela. Ela sentia que nunca antes havia sido tão escrupulosamente examinada em toda a sua vida, muito menos por um homem como este.


Não era uma garotinha inexperiente. Reconhecia a finalidade daquele olhar e conseguia imaginar os pensamentos que ocupavam parte do seu espírito. Uma parte diminuta, esperava ela. Tinha esperança de que pelo menos um pouco daquilo que dissera tivesse penetrado além dos seus cálculos masculinos. Em circunstâncias diferentes, poderia ter-se sentido lisonjeada, mas as palavras da alcoviteira faziam com que sentisse essa atenção como perigosa. Não lhe parecia ser um predador e um homem deste tipo dificilmente precisava de se aproveitar de uma mulher parente de um homem acusado para satisfazer as suas necessidades carnais. Não conseguiu, no entanto, deixar de sentir algum alarme e uma boa dose de confusão. Esta última derivava da inegável e imprópria agitação funda que a sua atenção lhe provocava. Ela não queria reconhecê-lo, mas estava lá. Ele era o género de homem que conseguia provocar esse efeito numa mulher, por mais que ela o combatesse. – Não sabe quais são as acusações, por isso não está em condições de dizer se são insultuosas – disse ele. – Qualquer acusação de crime seria insultuosa para um homem como o meu pai. Se o conhecesse, compreenderia o que quero dizer. Hadrian Belvoir é a última pessoa no mundo que poderia ser considerada um criminoso. É mesmo assim. Ele franziu quase impercetivelmente o sobrolho. Mudou de novo o foco da sua atenção, para o interior da sua cabeça. Por um longo momento, ela deixou de existir. Então, ele levantou-se abruptamente. – Dê-me licença, por favor. Volto já. E depois saiu, com o robe de brocado ondulando atrás de si. Hadrian Belvoir. Desde que a sua visitante se apresentara que algo indefinível espicaçava a atenção de Ives. Eram sinais que lhe indicavam que deveria conhecê-la, mas nada nela lhe era familiar. Hadrian Belvoir. Esse nome suscitava-lhe mais do que uma ligeira evocação. Caminhou a passos largos até aos seus aposentos privados, até uma secretária onde tratava de cartas pessoais. Remexeu um maço grosso de correio antigo, descartando cada envelope, um a um, franzindo o sobrolho enquanto procurava a carta que queria. Por fim, encontrou-a. Abriu-a rapidamente e segurou-a sob o candeeiro. Ali estava aquele nome, referido numa comunicação casual. É expectável que venha a ser chamado para


a acusação de um tal de Hadrian Belvoir, logo que o seu caso seja apresentado. Ficaríamos muito agradados se aceitasse. Verificou a data. Tinha sido escrito um mês antes. Não admira que não tivesse o nome prontamente na memória. Se Mr. Belvoir residia na prisão de Newgate, por que razão esta abordagem informal não se tinha ainda formalizado? Evidentemente, as suas vítimas poderiam ter contratado o seu próprio procurador, mas, se isso fosse provável, estas linhas nunca teriam sido escritas. Ficaríamos muito agradados se aceitasse. Considerando quem tinha escrito estas palavras, escusado será dizer que a aceitação era um dado adquirido e seria efetivamente concedida. Teria de informar Miss Belvoir de que teria de procurar ajuda junto de outra pessoa. Regressou ao escritório e aos olhos brilhantes de Miss Belvoir. Enquanto ela falava incessantemente, ele havia dado conta de que os seus olhos cintilavam mesmo quando não estava a chorar. Estimou ainda que, em pé, seria esbelta e ver-se-iam as suas pernas longas. Passou-lhe na mente uma vã curiosidade, sobre como seria tomar uma mulher com uma estatura à altura da sua. Tinha-o imaginado na sua cabeça, fazendo os devidos ajustes... Logo que ele entrou no escritório, ela começou de imediato a falar. – Penso que consegue perceber a grande injustiça que será cometida se o meu pai não tiver a sua ajuda, senhor. Imploro-lhe que pondere aceitar este caso. Estou preparada para lhe pagar quaisquer que sejam os seus honorários. Provavelmente, não, a julgar pelo vestido e o casaco. – Miss Belvoir, permita-me que lhe explique que nenhum advogado aceitará qualquer compensação financeira da sua parte para assumir a defesa deste caso. Ela permaneceu imóvel. Os lábios afastaram-se, com a surpresa. Ele sentiu-se mal por a sua recusa a ter chocado, mas não havia mais nada a fazer. Ela olhou para cima, para ele, confusa. – Está a dizer que o fará graciosamente? – Estou a dizer que os advogados não são pagos pelos clientes; são contratados por solicitadores que tratam dessas coisas. Um advogado sentir-se-á insultado se a senhora se oferecer para lhe pagar como se fosse um comerciante. – Tenho então de encontrar um solicitador e pedir-lhe que o contrate a si. Em vez de um, tenho de contratar dois juristas. – Tem de encontrar um solicitador que investigue, mas não serei eu o advogado que ele irá contratar para defender o caso em tribunal. Eu não posso


assumir a defesa. Quando referiu o nome do seu pai, dei conta de que já fui abordado para servir o lado contrário. – O lado contrário? – O da acusação. Ela absorveu o que tinha ouvido. Os seus lábios cheios em tom de rosaescuro proferiram a palavra. Ergueu-se, o que fez com que se aproximasse dele. O cimo da sua cabeça alcançou-lhe o nariz. Sim, ela era invulgarmente alta. Os aromas de Newgate já não a envolviam. Flutuava antes um subtil aroma a alfazema, como se, por força da sua vontade, tivesse vencido os males daquele dia. Uma vez que a cintilância do seu olhar já não se devia às lágrimas, ele imaginou que sim, que os tinha vencido, de muitas formas. Ela caminhou, afastando-se dele, refletindo. Deslocava-se com extrema elegância e com um balanço subtil. Ostentava a sua estatura invulgar como uma rainha exibia a sua coroa. Voltou-se e enfrentou-o. Ele imaginou-a num diáfano vestido branco fluindolhe pelo longo corpo, uma faixa sob e em torno dos seios, imitando uma das deusas da Antiguidade. Contudo, com a expressão que agora arvorava, poderia estar a usar capacete e escudo, como Atena, a deusa da sabedoria e também da guerra. – É uma situação confrangedora – disse ela. – Todavia, valeu a pena falar consigo. – Dado que eu ainda nem sequer vi o memorando do tribunal, não há qualquer informação que lhe possa dar. – É sempre útil conhecer o nosso adversário. Se eu não tivesse cometido o erro de aqui vir, duvido que tivesse tido esta oportunidade. Teria chegado ao julgamento e o senhor seria para mim um perfeito desconhecido. – Não sou seu adversário, Miss Belvoir. Não é a si que vão julgar. – Teremos objetivos opostos, pelo que me parece que o termo é o correto. – Estou certo de que encontrará um advogado condigno para aceitar este caso, como é sua intenção. – Depois de o conhecer a si, não estou certa de que possa encontrar alguém suficientemente condigno. Agora não ousarei deixar tudo nas mãos de outra pessoa. O olhar dela penetrou-o. Ele sentiu como se a sua alma estivesse a ser analisada pela inteligência mais aguçada que jamais se lhe tinha deparado. O que quer que ela tenha encontrado, aliviou-lhe a expressão. Suavizou-a. A invulgar


beleza que o atraíra até àquela sala tornou-se muito mais visível. As faíscas dos seus olhos insinuavam conclusões a que teria achado graça. Ele sabia o que ela vira. Tinham transmitido entre si um reconhecimento disso mesmo, num instante de nua honestidade. Sim, é certo, ela era arguta. Todo ele havia sido contenção. Um bispo não teria escondido melhor as suas especulações sensuais, mas, ainda assim, ela percecionara-as nele. Ela voltou os olhos e mirou-o plenamente. Ives reconheceu a expressão de alguém prestes a propor um suborno. Tinha deparado com algumas no passado. Ficou à espera de que ela o propusesse. Um súbito brilho de determinação. Um laivo de ousadia. E depois, ambos desvaneceram. – Lamento tê-lo feito desperdiçar o seu tempo, ainda por cima a uma hora tão pouco adequada. Deixá-lo-ei por hoje. – Dirigiu-se para a porta. – Vou averiguar quais são as acusações – disse ele. – Assim ficará pelo menos a saber o que lhe poderá acontecer. Deixe a sua morada com o meu criado e garantirei que recebe essa informação. Ela voltou-se. – Obrigada. É muito amável, vindo de alguém que agora tenho de considerar um inimigo. – Só serei um inimigo se a verdade também o for. Estas palavras divertiram-na. – Palavras nobres para aliviar os receios de uma mulher desamparada, senhor? Que generosidade da sua parte. Contudo, a verdade também depende da equação, não é verdade? Diferentes variáveis produzem soluções diferentes.


CAPÍTULO 2

Q

uando Padua conseguiu esgueirar-se pelo jardim nas traseiras da casa da Frith Street, começava a vislumbrar-se a última luz do ocaso. Vozes estridentes ecoavam do segundo andar do edifício, onde as raparigas jantavam. Se fosse suficientemente rápida, poderia ocupar a sua cadeira da sala de jantar sem atrair grandes atenções. Se tivesse mesmo muita sorte, Mrs. Ludlow não teria conhecimento das atividades de Padua naquele dia. Não temia Mrs. Ludlow, a fidalga a quem pertencia aquele edifício e a escola, e em cujas mãos estava a sua própria capacidade de sustento. Generosa até mais não e calorosa como uma mãe, Mrs. Ludlow sofria de um grau de distração que a tornava bastante inofensiva. Mas saber que uma das suas professoras saíra das instalações perturbá-la-ia e Padua não queria que tal acontecesse. Verificou a porta do jardim e sentiu alívio ao ver que ainda estava destrancada. Atravessou a passos largos a sala de estar das traseiras, despindo o casaco em andamento. Enrolou-o e enfiou-o atrás de uma cadeira no átrio de entrada, subindo depois as escadas. Compondo uma expressão confiante, entrou na sala de desenho que agora funcionava como sala de jantar da Escola de Meninas de Mrs. Ludlow. Dirigiuse à mesa principal e deslizou no assento da cadeira. Não captou especial atenção das outras já em plena refeição. Apenas o olhar de Caroline Peabody a acompanhou manifestamente, primeiro com um pequeno franzir de sobrolho, depois com alívio visível. Caroline era uma das três raparigas que Padua tinha sob sua tutoria em Matemática Avançada. Aquelas aulas não faziam parte do plano curricular e tinham lugar a uma hora mais tardia, depois de Mrs. Ludlow se retirar. Apreciava aquele trabalho extra, já que lhe permitia que estas raparigas descobrissem até onde a sua inteligência conseguia alcançar. Encontrava satisfação em fazer por elas aquilo que a sua própria mãe fizera por si. A remuneração na escola poderia ser baixa, mas era uma vida respeitável, para a qual possuía excelentes qualificações. Este emprego permitia-lhe também juntar


algum dinheiro para os planos que tinha para o futuro. – Miss Belvoir. – O chamamento de Mrs. Ludlow deslizou pela mesa fora, passando pelas outras professoras. – Venha falar comigo ao meu gabinete depois do jantar. Gostaria de lhe dar uma palavrinha. Padua terminou a refeição enquanto a sala se ia esvaziando. Dirigiu-se então ao gabinete de Mrs. Ludlow. A porta que dava para a sala de estar estava aberta, como era habitual ao final do dia. Contudo, depois de entrar, Mrs. Ludlow fechou-a. Padua adorava a sala de estar. Pequena e bem arranjada, as cadeiras estofadas e a carpete com padrões criavam uma saleta acolhedora. Padua e Mrs. Ludlow sentaram-se junto a uma lareira a arder em lume brando, em duas daquelas cadeiras confortáveis, separadas por uma mesinha. Na mesa, um pequeníssimo copo de xerez, algo que Mrs. Ludlow se permitia «por motivos de saúde». A cadeira, com um tamanho adequado para uma pessoa com a altura de Padua, quase engolia a pequena e roliça Mrs. Ludlow. Se não fora um escabelo, os pés ficariam a baloiçar. Com cinquenta anos, olhos velados e uma nuvem de cabelo louro que resistia a ser domado, Mrs. Ludlow parecia estar em permanente perplexidade. Com efeito, o mundo deixava-a frequentemente confusa. Era por isso uma mulher inconstante, algo que por vezes exasperava Padua, mas que em muitas ocasiões também lhe era útil. A escola tinha muitas regras, como é normal, mas Mrs. Ludlow podia deixar-se levar pelas lágrimas ou promessas das raparigas ou por ameaças dos pais de quem dependiam as mensalidades. Ou pela persuasão lógica da sua professora, Padua Belvoir. – Hoje saiu de casa. – Mrs. Ludlow falava como quem proferia apenas uma observação, e não uma acusação, enquanto se inclinava para acomodar uma colcha à volta dos pés. Satisfeita com o resultado, recostou-se e deixou-se envolver no volumoso abraço do estofo da cadeira e pegou no copo de xerez. – Precisei de tratar de um assunto de família. Mrs. Ludlow bebericou e depois aninhou o copo frágil entre os dedos. – Peço-lhe que me informe e que me peça autorização. São estas as regras, Miss Belvoir. Onde estaríamos nós se não houvesse regras? – Como bem sabe, é minha opinião que, como mulher adulta, eu não deveria precisar de autorização. Nenhuma das minhas aulas ou tarefas foi negligenciada e regressei antes do anoitecer. – Por pouco. Se tivesse entrado dez minutos depois... A simples ideia causava agitação a Mrs. Ludlow.


– O que diriam os pais se soubessem que as minhas professoras se aventuram pela cidade à noite, sozinhas? Teria de atender uma longa fila de pais quando viessem buscar as meninas. Certamente consegue perceber isso. – Enrubesceu, dando pancadinhas no peito. – Céus, estaríamos todas na ruína, Miss Belvoir. Na ruína. Eu ver-me-ia obrigada a despedi-la, numa tentativa de evitar que acontecesse o pior. – Não há motivo algum para os pais saberem da nossa vida, a menos que não sejamos discretas – ripostou Padua. – Sim, o mundo precisa de regras, mas, como mulheres independentes, devemos criar as nossas próprias regras e garantir que são exequíveis. – As nossas próprias regras? Oh, minha querida menina, isso tem muita graça. E é tão tipicamente seu. E quanto à discrição, deixe-me esclarecê-la a respeito das suas limitações. Preciso de falar consigo acerca de algo mais que não apenas a sua ausência no dia de hoje: e, sinceramente, Miss Belvoir, não posso tolerá-lo, sabe bem que não o posso tolerar. Padua evitou fazer promessas. A situação do pai impedia-a. – Que outros assuntos a preocupam? – Recebi hoje uma carta de um pai a queixar-se. – Nada sobre as aulas, certamente. O seu plano curricular é muito superior ao que se ensina habitualmente. – Na verdade, foi precisamente essa a queixa. – Mrs. Ludlow suspirou e, em seguida, bebericou de novo. – Este pai manifestou a sua consternação com o facto de a filha ter escrito ao irmão a vangloriar-se das suas aulas de geometria. Aparentemente, o rapaz não consegue ainda dominar o mesmo nível e é um ano mais velho. – Não podemos ser responsabilizadas pela falta de capacidades do irmão ou da escassa atenção do seu tutor. – Evidentemente, mas... este senhor não estava a contar com algo assim. Enfim, nunca estão. Costura, desenho, música, francês, aritmética básica; sabe bem o tipo de aulas que ele quer. – Olhou em volta, toda ela confusão e reduzida confiança. – Talvez ele tenha razão. Talvez... Não tenho a certeza. É tão difícil saber. Não será certamente prejudicial, penso eu, mas depois recebo uma carta destas e... – Passou o olhar pela sala de estar, como se esperasse que alguma figura de autoridade surgisse de uma parede e lhe dissesse qual a melhor forma de proceder. Os pais contavam com o plano curricular que a escola tinha antes da chegada de Padua. Ela conseguira convencer rapidamente a impressionável Mrs. Ludlow


a introduzir algumas alterações. Agora questionava-se se, de futuro, teria de se limitar a ensinar aritmética básica a raparigas que tinham capacidade para muito mais. – A sua objeção à matemática foi apenas uma introdução – continuou Mrs. Ludlow, gesticulando ansiosamente com a mão. – A partir daí, a carta tornou-se muito mais incisiva. Este pai mostrou-se indignado. Horrorizado. A sua filha terá aparentemente também escrito à mãe, desta feita sobre um panfleto fascinante que uma professora lhe tinha emprestado. Encorajava a mãe a procurá-lo e a lêlo também. Padua desejaria não saber o que aí vinha. Mas sabia. – Ela pediu-mo emprestado. Eu disse-lhe para não contar a ninguém. – Oh, céus. Eu tinha a esperança... – Mrs. Ludlow deu novamente pancadinhas no peito. – Eu não lhe disse que não pode ensinar às meninas as suas ideias sobre os direitos das mulheres? Tenho a certeza de que lhe disse. – Não ensinei nada às meninas. Não falei abertamente sobre esses assuntos, embora seja ridículo uma mulher instruída não ter noção nenhuma desses argumentos. Todavia, tenho guardado essas ideias para fora da sala de aulas. – Mas não para fora da escola. Terá de fazê-lo no futuro. Que sugestão bizarra. Tinha as ideias na cabeça e ela estava na escola. Não havia forma de deixar as ideias fora da escola, a menos que... Era melhor não referir o óbvio. Mrs. Ludlow era uma mulher adorável, de bom coração, mas também estava com medo. – Ela viu o panfleto entre os meus livros. Pediu-mo emprestado. Eu deixei, mas avisei-a de que deveria ser discreta. – Daí eu ter começado por lhe referir as limitações da discrição. – Mrs. Ludlow falou com tristeza. – Teria muita pena se a perdesse, Miss Belvoir. Muita mesmo. Contudo, esses panfletos têm de ficar guardados onde ninguém lhes possa aceder, onde as meninas não os possam ver. E tem de me pedir autorização antes de sair da escola no futuro e explicar porque precisa de sair, para evitarmos receber mais cartas. Padua mordeu a língua. Como é evidente, não diria a Mrs. Ludlow que tinha a intenção de sair novamente no dia seguinte, para levar comida ao pai na prisão. Se Mrs. Ludlow tivesse conhecimento da sua situação, mandaria certamente Padua fazer as malas até à manhã seguinte. Não teria escolha. Padua não discutiu. Pediu licença e retirou-se para os seus aposentos. Jennie estava lá à sua espera. – Despediu-a?


Os olhos azuis de Jennie revelavam uma preocupação genuína. Jovem viúva de boas famílias, Jennie dependia tanto quanto Padua da sua situação na escola de Mrs. Ludlow. Bonita, loura e bem-criada, ensinava às raparigas comportamento e etiqueta. Os seus familiares podiam não lhe dar um tostão, mas Mrs. Ludlow gostava de referir por acaso o seu nome ao falar com pais de potenciais alunas. – Não. E também disse que não desejaria fazê-lo. – Mas que o faria, se se revelasse necessário. Padua sabia disso. – Então não deve repetir o que fez hoje. Aonde foi? Jennie era o mais parecido que Padua tinha com uma amiga, mas não eram próximas a ponto de querer admitir a Jennie que tinha o pai na prisão. – Pensei saber onde poderia encontrar o meu pai, para tentar encontrar-me com ele. Jennie abanou a cabeça com tristeza. – Ele está a evitá-la para não ter de lhe dar dinheiro, Padua. Já lhe disse isso. Era por este motivo que a família de Jennie a evitava, pelo que ela pressupunha que essa era uma regra que regia a vida de toda a gente. – Sei que ele não tem nada para me dar. Ainda assim, eu tinha de tentar. Jennie dirigiu-se para a porta. – Tenho de ir. Vou dizer às meninas para não se esgueirarem para aqui hoje para as aulas extra. Não quererá certamente arriscar-se a obrigar Mrs. Ludlow a fazer uma escolha, Padua. – Sim, talvez seja sensato prescindir de uma ou duas noites de aulas. Quando Jennie saiu, Padua ajoelhou-se junto à cama. Olhou para baixo da cama e esticou-se para alcançar uma mala que ali tinha guardada. Abrindo-a, retirou uma pequena bolsa onde guardava o dinheiro. Aquelas moedas tinham uma finalidade, mas agora duvidava que alguma vez conseguisse poupar o suficiente para pagar a passagem para Itália, rumo à cidade com o nome dela, onde a mãe estudara e os pais se conheceram. Não conseguiria, se estas moedas fossem agora necessárias para pagar aos advogados que ajudariam o pai e para lhe proporcionar o mínimo de conforto que ela lhe conseguisse oferecer enquanto ele vivesse no seu atual domicílio. Em tempos, já conseguira poupar quase o suficiente, quando era mais jovem e ensinava na escola de Birmingham que ela própria havia frequentado. Após três anos a contar tostões, tivera a passagem na mão. Mas depois conhecera Nicholas e apaixonara-se. Um amor belo e glorioso. O tipo de amor que o seu pai e a sua mãe haviam vivido e sobre o qual se escrevem poemas. Amara


plenamente, livremente e sem culpa nem apreensão. Três meses depois, Nicholas desapareceu, levando no bolso o dinheiro dela. Olhou fixamente as moedas. O pai tratara-a com frieza durante dez anos, desde que a mãe morrera, quando Padua tinha quinze anos. Enviara-a então para aquela escola, numa altura em que ela desejaria ter permanecido com o que lhe restava da família. Desde então, vira-o apenas algumas vezes por ano, mesmo depois de ela se ter mudado para Londres para estar mais perto dele. O pai não queria a sua ajuda. Nem sequer queria a sua companhia. Ela devia simplesmente partir para Pádua, candidatar-se à universidade e construir uma boa reputação, se conseguisse. Talvez nessa altura o paizinho a respeitasse. Veio-lhe à mente a voz da mãe, frágil e tremente da maleita que lhe consumia a vida. Ele é como uma criança, Padua. Tens de me prometer que tomas conta dele, tanto quanto ele permitir. Para um homem que viajou tanto e que leu as grandes obras literárias, não sabe praticamente nada sobre como sobreviver no mundo. Soltou um longo suspiro. Oh, mãezinha, que promessa me exigiste... cuidar de um homem que não tem amor por ela. Exigir um lugar na sua vida quando ele preferiria que ela não o tivesse. Folheou quinze xelins e colocou-os de parte, devolvendo o resto à mala. Tendo possibilidade de escolha, a maioria dos advogados nunca se mancharia com casos de direito penal. Consequentemente, os que aceitavam eram os advogados que não encontravam nada mais lucrativo para fazer. Ives era um caso raro, um advogado que defendia casos penais por sentido de dever. Não havia uma ordem de advogados penais e os seus colegas que assumiam esta tarefa eram um bando sortido de advogados cuja principal missão se desenvolvia noutros tribunais e processos judiciais. Tal como ele, só ocasionalmente tinham o privilégio de chegar a Old Bailey ou a outras salas de audiência de julgamentos penais para contribuir com a sua eloquência e os conhecimentos da lei para as decisões que ali eram tomadas. Solicitadores, funcionários judiciais – não havia limites para quem podia comparecer para defender. Se alguma vez se visse um advogado qualificado em Old Bailey ou na prisão de Newgate seria muito provavelmente do lado da acusação, contratado pelas vítimas ou pelo Estado. Atualmente, alguns juízes permitiam que o réu também tivesse advogados, mas nem todos. Em muitos casos, os juízes seguiam a


tradição de que um réu podia providenciar a sua própria defesa dizendo simplesmente a verdade. Naquele dia, Ives entrou em Newgate por uma porta através da qual a maioria desses outros advogados nunca era recebida – a da residência do carcereiro, Mr. Brown. Na qualidade de lorde, Ywain tinha os seus privilégios. Em poucos minutos, estava sentado no gabinete de Mr. Brown, a explicar o que o levara ali. – O Belvoir está aqui detido enquanto são levadas a cabo investigações mais aprofundadas – confirmou Mr. Brown. – Está aqui vai fazer agora quatro semanas. – Caso tenham sido apresentadas acusações ou se estiverem iminentes, gostaria de saber quais são. – Cunhagem de moeda. Vai ter direito à forca ou, na melhor das sortes, a vida toda nas galés. Ives não estava certo de que crime estaria na verdade à espera. Algo de cariz político, supunha ele. Como intelectual, como a filha o descrevera, Mr. Belvoir era o género de pessoa que poderia ter aderido a ideias e companhias radicais e ter sido arrastado para alguma violação da lei em vigor que controla atualmente este tipo de coisa. – Quais são as provas? A cunhagem de moeda, ou a contrafação de dinheiro, era um dos crimes mais graves. A contrafação prejudicava a boa saúde da economia e era encarada como uma espécie de traição. – Foi apanhado em flagrante, foi o que me chegou – respondeu Brown. – Encontraram o dinheiro falso nos aposentos que mantém na Wigmore Street. A situação não se asseverava nada boa para Hadrian Belvoir. Ives contava aviar todo o julgamento em menos de uma hora. – O que disse ele em sua defesa? – Bem, aí é que está o busílis. Ele não disse nada. Os magistrados e outros perguntam-lhe constantemente e ele recusa-se a colaborar. Nada sensato da parte dele, não acha? Talvez pudesse conseguir alguma misericórdia se denunciasse os seus parceiros de crime. Sabe bem como funciona, senhor. Sabia, de facto. Criminosos a fornecer informações sobre outros criminosos era o óleo que fazia rodar as engrenagens dos tribunais penais. – Até lhe mostrámos o velho esmagador do pátio, para o assustar. Normalmente, a simples ameaça de tortura faz maravilhas – acrescentou Brown. – Mas com este homem estranho, nada. Se tanto, fez com que ainda teimasse mais.


– Diz que ele é estranho. Será talvez demente? – Não diria isso. Quanto a ser estranho, bem, venha ver com os seus próprios olhos. O carcereiro levantou-se. Caminharam juntos até à prisão propriamente dita e pelos longos corredores de celas. Uma lufada suficiente de ar entrava pelas pequenas janelas naquele dia, pelo que não cheirava tão mal quanto seria de esperar. Ainda assim, quando há centenas de pessoas apinhadas em celas húmidas, os simples odores da existência humana ficam concentrados e tornam-se ofensivos. Bastava o cheiro a desperdícios humanos para inundar completamente os sentidos. Acrescente-se os efeitos de corpos por lavar, comida apodrecida e o odor quase doce da doença, e gerava-se uma mistura suficientemente forte para levar um homem ao vómito. Quando se aproximavam de um cruzamento de corredores, uma mulher passou a correr no outro trajeto. Padua Belvoir, alta e altiva, caminhava com determinação em direção à saída, de lenço encostado ao nariz. Ia por ali abaixo, passando por celas de mulheres, algumas das quais faziam troça com chamamentos lascivos e gargalhadas ruidosas. Ives parou no cruzamento e observou-a a percorrer o estreito corredor. – É a filha dele, ou pelo menos é o que ela diz – comentou Brown. – Apareceu aqui ontem a pedir para o ver. Hoje trouxe-lhe alguma comida, roupa e livros. Os senhores que se interessam pelo caso do Belvoir ficaram muito interessados no súbito aparecimento desta mulher, passado tanto tempo. Imagino que tivessem esperança de que ela tivesse sido enviada pelas pessoas para quem ele trabalhava. – Ela é mesmo filha dele. – Ives falou com mais autoridade do que lhe seria legítimo fazer. Não tinha praticamente qualquer prova desse facto. Contudo, aquela mulher que lhe havia invadido o serão revelara muito pouca dissimulação e uma apreensão considerável. Se ela conseguisse convencer o pai a cooperar, seria bom. Mas alarmava-o que tivesse agora atraído a atenção das autoridades. Algumas voltas depois, Brown parou diante de uma cela. Como tantas outras, continha pelo menos vinte homens, sendo que era ali que todos vivam, dormiam, comiam e definhavam. Se pagasse, qualquer um deles podia ter uma melhor acomodação. Mas os desgraçados que aqui estavam não tinham dinheiro para isso. – É aquele, o do canto. Ives não teria precisado das indicações do carcereiro. O homem ao canto destacava-se entre todos os outros. Apesar de estar sentado e encostado à parede,


de tornozelos agrilhoados recolhidos junto ao corpo, conseguia ver que era muito alto e magro. Usava colete e sobrecasaca que, apesar de estarem agora repugnantes e sujos, tinham outrora sido a indumentária de um cavalheiro. Presumivelmente não teria barba quando entrou naquela cela e o cabelo grisalho metálico também estaria mais bem cuidado. Todavia, o que mais se destacava nele não era a sua aparência, mas sim o que estava a fazer. No seu canto, ao lado da anca, tinha uma pequena pilha de livros. Belvoir lia um dos livros com tal atenção que não deu conta de que o carcereiro e Ives estavam a espreitar pela grade de ferro da porta. Ao lado dos livros jazia um embrulho e um pequeno cesto de fruta. Os outros homens na cela fitavam este último com cobiça. Ives pressupôs que Belvoir seria em breve libertado da fruta e quem sabe também do embrulho de roupa. Ninguém quereria os livros. – Quando chegou e registei os seus dados, identificou as profissões de professor, académico, cavalheiro e matemático. – Brown achava aquilo divertido. – É engraçado como nunca dizem falsário, cunhador de moedas, assassino ou ladrão. Ives observou os livros. Adivinhava que Hadrian Belvoir nem sequer se aperceberia do que se passava à sua volta enquanto não os tivesse lido todos. E lê-los-ia de novo, se a filha não lhe trouxesse mais. – Aquela filha, se é que é mesmo filha dele, queria comprar um lugar melhor – contou Brown. – Tinha dinheiro para pagar. Eu disse que ia ver se seria permitido. Tenho a sensação de que o querem aqui, tão desconfortável quanto possível. Na opinião de Ives, isso já não importava. Qualquer pessoa que o visse conseguiria perceber que Hadrian Belvoir penetrara num mundo que não era aquele em que estava sentado naquele momento. O espírito tinha sido libertado, mesmo que o corpo continuasse em sofrimento. Padua forçou caminho por entre a multidão para ouvir as notícias dos julgamentos em Old Bailey. Conseguiu um lugar perto da extremidade do edifício, onde poderia parar e recompor-se. Nunca se habituaria a ver o pai naquele lugar, mas o que a perturbava agora não era o estado em que ele se encontrava. Mais do que isso, carregava consigo uma profunda raiva após aquele encontro. Trouxera-lhe algumas coisas que lhe aliviariam o sofrimento, por um custo pessoal nada negligenciável, para ele


depois se limitar a rejeitar novamente a sua ajuda. Oh, sim, tinha aceitado a comida e os livros, mas sem uma palavra de agradecimento, ordenando-lhe novamente que fosse embora e não voltasse. Só não tinha perdido as estribeiras nem o repreendera por ver como ele olhava para os livros e, depois, para ela. O seu alívio fora palpável e a sua avidez, visível. Quando ergueu novamente o olhar em direção ao dela, Padua conseguiu discernir alguma gratidão e também embaraço. Em seguida, folheouos avidamente e quase sorriu quando encontrou o papel e o lápis escondidos no interior de um. Com exceção daquela expressão vaga no olhar, será que apesar de tudo ele tinha reconhecido o amor e preocupação dela por ele? Nada. E as suas palavras haviam sido cruéis e cortantes. Já te disse para não voltares aqui. E repito-o, não me desobedeças desta vez. – Miss Belvoir. – O chamamento vinha da outra extremidade do edifício, para lá da fila de pessoas à espera de pedir para verem os seus familiares. O seu olhar deu subitamente com o aceno de um chapéu e um homem a cavalo. Ives. Ele dera-lhe licença para pensar nele com aquele nome e ela ganhara o hábito de assim o fazer a maior parte do tempo. Ele trotou na sua direção e a fila abriu-se como o mar Vermelho para o deixar passar. A cinquenta metros dela, desmontou e aproximou-se a pé puxando o cavalo pelas rédeas. Aperaltado como o aristocrata abastado que realmente era, Ives era uma figura digna de ser vista. Sob a luz do sol, o rosto não era nada menos impressionante, mas a iluminação oblíqua revelava as finas linhas que ladeavam os olhos e a boca. Rugas de expressão, era o nome que se lhes dava, mas davamlhe uma aparência menos amável, e não o contrário, conferindo arestas mais duras à sua beleza clássica que não lhe haviam sido reveladas sob a bruma suave da luz das velas. – Miss Belvoir, que feliz acaso encontrá-la aqui. – Fez uma pequena vénia. – Obtive algumas informações de que deverá ter conhecimento. Caminhe comigo e conto-lhe tudo. É claro que caminharia com ele. Juntos, passearam pela orla da praça. – Visitou-o hoje novamente – disse ele. – Conseguiu saber alguma coisa? – Se tivesse, não seria sensato da minha parte contar-lhe. – Tudo o que ele possa dizer em sua defesa ajudá-lo-á. A Coroa não é desprovida de misericórdia. – Tem algum motivo para acreditar que ele precisará de misericórdia?


Ele interrompeu a passada e olhou-a de frente. – Infelizmente, tenho. É pior do que eu pensava e, parece-me, pior do que os seus receios, Miss Belvoir. Foi acusado de cunhar moeda. É muito grave e as provas são sólidas. Cunhar moeda? O seu pai? Hadrian Belvoir? Não conseguiu evitar soltar uma gargalhada. – Isso é ridículo. Ele não tem nenhuma noção do dinheiro e encontra-lhe pouca utilidade, exceto para comprar papel e livros. Qualquer pessoa que o conheça saberá... – O dinheiro falso foi encontrado em casa dele. Têm provas irrefutáveis da sua culpa. Só continua na prisão e não foi ainda julgado e condenado porque têm esperança de conseguir que ele revele o resto da tramoia. Ninguém falsifica dinheiro sozinho. É um procedimento complicado que requer competências especializadas. – Se ele tinha dinheiro falso na sua posse, recebeu-o provavelmente nalguma loja e não teve consciência de que não era verdadeiro. Os traços menos amáveis do seu belo rosto endureceram. – Não pressuponha que a lei se faz cumprir pelas mãos de néscios. Não se acusa um homem de falsificação por meia dúzia de libras. Se o têm na prisão é porque encontraram uma grande quantidade na sua posse, Miss Belvoir. – A sua expressão suavizou-se. – Tem de se preparar. Preparar-se. O género de coisa que se dizia aos familiares de pessoas moribundas. Padua olhou fixamente para este homem que seria o agente da destruição do seu pai. A fúria que sentia contra o pai colidia agora com a fúria que sentia contra Ives. – Que amável da sua parte. Que solidário. Baixa o tom de voz e finge preocupação, mas quando o julgamento começar lá estará com a sua peruca a convencer os jurados a condená-lo e o juiz a amaldiçoá-lo. A vida dele terá acabado devido a um pequeno crime que praticamente não vale nada. O semblante de Ives endureceu visivelmente. – Miss Belvoir, lamento verdadeiramente a sua situação, mas não a dele. Falsificar dinheiro não é um crime menor. Nunca é pequeno. Normalmente é cometido em grande escala, por exigir uma arte e um investimento significativos. Se o seu pai tiver feito isto, como aparenta ter feito, terei efetivamente de convencer o júri a condená-lo. A minha solidariedade é para consigo, como é para todos os familiares de criminosos, mas será de mais esperar solidariedade com os próprios criminosos, minha ou de qualquer outra


pessoa. Cada uma das suas palavras cortou o ar, cada uma como um golpe de chicote, infligindo o tipo de dor que só uma realidade impiedosa consegue provocar. Padua vislumbrou um futuro terrível para o seu pai, e um fim ignóbil. O seu desânimo deve ter sido evidente, já que Ives se aproximou. Pousou a mão no ombro dela, num gesto de reconforto que a consternou ainda mais. – O carcereiro disse que a senhora pediu que o seu pai fosse transferido para uma cela melhor. Com alguma privacidade e menos humidade. Se quiser, posso ver o que poderei fazer quanto a isso. Que voz a dele quando falava assim. Grave e ressonante, com o simples tom seduzia-nos a escutar e a querer ouvir mais. Isso e a sua proximidade tentaramna a fingir que o gesto era o de um amigo. Seria uma ditosa sorte ter alguém com quem partilhar este fardo, nem que fosse apenas durante alguns minutos. Padua fungou e reprimiu as lágrimas que ameaçavam cair. – Primeiro amável, depois cruel e depois amável de novo. Que tipo de homem é o senhor? Não quero ficar em dívida para com os seus caprichos de generosidade. Quero sentir-me livre para o odiar. Ele deixou cair a mão. – Verei, ainda assim, o que posso fazer. Não ficará a dever-me agradecimento. Padua sentiu que não conseguiria manter a compostura. Sem mais palavras, afastou-se apressadamente, para não ter de aceitar a sua oferta.


CAPÍTULO 3

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adua não pediu ao homem mais provável que lhe indicasse um solicitador. Embora Ives conhecesse sem dúvida os melhores, não podia contar com a sua imparcialidade. Ocorreu-lhe outra opção enquanto percorria cegamente as ruas próximas de Newgate, depois de abandonar a companhia de Ives. Antes de regressar a casa, visitou novamente o gabinete do carcereiro e pediu-lhe que indicasse nomes. – Não pode estar certa de que o juiz o irá permitir -– disse Mr. Brown. Ainda assim, deu-lhe o nome de três solicitadores que, na sua opinião, eram honestos e inteligentes. Dois dias depois, Padua esgueirou-se para fora da escola e pôs-se a caminho da associação dos advogados para visitar um deles. Mr. Notley escutou a história da sua angústia, de olhos escuros e acutilantes a perscrutá-la sobre a secretária larga e vazia. Padua suspeitou de que fosse aquele género de pessoa que precisava de uma ordem precisa na sua vida, já que parecia gerir os seus assuntos com tão poucos indícios de dinamismo. O cuidado dedicado à indumentária dera-lhe ânimo. Ao contrário de Ives no seu robe de noite, Mr. Notley usava efetivamente uma casaca preta perfeitamente à medida e tinha a seu lado um escrivão que ia tomando notas. O seu rosto indicava que não era jovem, mas mantinha o cabelo negro como os olhos. Padua questionou-se se não faria ele alguma coisa para estimular aquela cor. Deu por si a mirar-lhe o colarinho em busca de vestígios de poeira ou manchas de tinta. – Disse que a acusação está a cargo de Lord Ywain? – Este pormenor revestiu-se de particular interesse para Mr. Notley. – Receio bem ter de lhe dizer que isso não são boas notícias. – Estou tão habituada a más notícias que, dou agora conta, recebo a sua observação com uma surpreendente serenidade. – Ele é muito bom, mas não é isso que me preocupa. Dado o seu berço, dispõe de conhecimentos ao mais alto nível, incluindo uma amizade com o


Príncipe Regente. – Não fazia ideia. – O pai dele era o duque de Aylesbury, Miss Belvoir, e o irmão é o duque atual. Pedem-lhe que assuma a acusação quando o Governo tem especial interesse num caso. Seria preferível que não tivesse demasiado interesse neste. – Percebo agora o que quis dizer com más notícias. – Efetivamente. Contudo, pelo menos é honesto. Vamos contar com isso. Padua tinha a esperança de que o repetido nós significasse que ele a ajudaria. Mr. Notley parecia ainda estar a refletir sobre o assunto. – Se o seu pai não me ajudar na defesa, terei as mãos consideravelmente atadas, Miss Belvoir. Sentir-me-ei um ladrão ao aceitar que me pague honorários. – Mas não posso permitir que seja julgado sem que alguém fale por ele. – Compreensível. – Juntou os dedos compridos e meditou, de olhar pousado na cúpula que formavam. – Se tudo se resumir a reunir uma defesa com base no seu carácter, eu assumirei a fala. Normalmente, os solicitadores não comparecem perante os juízes, mas é tudo menos formal nos tribunais penais. Contudo, se se revelarem informações que questionem a sua culpa, precisaremos de angariar os serviços de um advogado que domine a arte dramática na sala de audiências, alguém que esteja à altura da habilidade e do prestígio de Lord Ywain. E isso sairá caro. – Diga-me quanto será, quando chegar a altura, e eu dir-lhe-ei se o tenho. Mas, para já, diga-me por favor quanto lhe ficarei a dever. – Normalmente é o meu escrivão quem trata desses assuntos. – Olhou para o escrivão. Os dois trocaram olhares como quem diz É este tipo de pessoas que temos de servir. – Duas libras pelas diligências preliminares – disse o escrivão. Mr. Notley conseguiu aparentar que não tinha ouvido. Padua tinha essa quantia com ela, e até mais. A mala debaixo da cama ia-se esvaziando dia após dia. – Se eu lhe der mais dez xelins, pode fazer outra averiguação por mim? Também está relacionada com o meu pai. Os olhos escuros cintilaram de interesse. – A minha mãe faleceu quando eu tinha quinze anos. Pouco depois, o meu pai recebeu uma herança de um familiar afastado e utilizou-a para me enviar para uma escola em Birmingham. Poucas vezes o vi desde então. Gostaria que, se possível, me averiguasse essa herança. Penso que era uma propriedade; se assim


for, quem sabe poderei obter daí algum dinheiro que me ajude a pagar os honorários da sua defesa. Mr. Notley escrevinhou algumas notas. – Está a solicitar-me um serviço em que estou mais à vontade do que em criminologia, Miss Belvoir, e que é mais do que bem-vindo. Vou ver o que consigo descobrir. O recado chegou às mãos de Ives às nove da manhã, ainda antes de se levantar da cama. Era o tipo de recado que o punha imediatamente a pé. Enquanto praguejava, vestiu-se rapidamente e ao acaso, prescindindo de se escanhoar para depois atravessar a cidade a galope em direção a Mayfair, com a maior celeridade possível. Quando chegou à casa de família, subiu as escadas duas a duas e escancarou a porta dos aposentos do irmão. Encontrou Lance a usufruir da barba feita de que ele mesmo havia prescindido. – O que diabo aconteceu? – exigiu saber. – O que fazes aqui? – perguntou Lance. – Só te esperava lá para a tarde. – Vem imediatamente. Preciso que sejas minha testemunha num duelo. Era o que dizia o teu recado. – Pois sim, mas eu achei que só o lerias lá para o meio-dia, pelo que chegarias aqui por volta da uma. – Alguns de nós acordam mais cedo. Agora, diz-me lá porque precisas de uma testemunha e, por Zeus, é bom que a tua história te revele a vítima de algum lunático com uns copos a mais e não o instigador de um desafio. O lacaio rapou o último pedaço da barba de Lance e depois pousou-lhe uma toalha quente e húmida no rosto, pelo que se via apenas o seu cabelo escuro. – Não tive opção – foi a resposta abafada de Lance. – Queres dizer que o desafio foi mesmo teu. – Teve de ser. Maldição. A toalha ergueu-se. Lance retirou outra que tinha a envolver-lhe o pescoço. – Terias feito o mesmo, Ives. Não havia escapatória possível. Ives andava de um lado para o outro no quarto. – Eu não teria feito o mesmo, porque não teria estado em Londres. Eu teria escutado o meu irmão, cujo conselho nestas matérias é procurado pelos mais prestigiados de mais alto calibre, e teria mantido o meu traseiro na província.


O lacaio começou a arrumar o quarto de vestir. Lance foi à frente até à sala de estar. – Porque me chamaste para ser tua testemunha? – exigiu saber Ives. – Porque não um dos teus parceiros no crime? – Achei que a tua eloquência poderia ser útil. Tive de proferir o desafio, mas seria melhor que não tivéssemos de lutar. Não quero matar outro duque. – Deu conta do que dissera e riu-se. – Quando digo outro, estou a referir-me a outro que não eu, é claro. E não outro além do Percy. Ives parou ao ouvir a explicação. – Não tinhas de me explicar a diferença, Lance. Certamente sabes disso. Lance nada disse. Tinha os olhos escuros marcados pela fadiga. Ser suspeito do assassínio do próprio irmão estava a cobrar a sua fatura, independentemente de ele pretender afirmar o contrário. – Mas de que outro duque se trata então? – O Middleburrow. Foi sobre o Percy, é claro. Ele estava embriagado e perdeu uma pequena fortuna comigo e não resistiu a dar algumas punhaladas na minha reputação por puro despeito. Não podia tolerá-lo. Não, é verdade que não podia. Mas um duelo, sobretudo com Middleburrow, nada faria para manter os cães à distância. – Vou arranjar uma forma de me livrar do duelo. – Ele terá de pedir desculpa. Não se tolera nada menos do que isso. Marquei o encontro para as duas da tarde, na esperança de lhe dar oportunidade de ficar a curar a embriaguez. Ives começou a planear como poderia operar tal milagre. – Se eu for bem-sucedido, tens de me prometer que regressas a Merrywood. Não posso andar repetidamente a resolver os teus desastres. O semblante carregado de Lance traduzia o que pensava dessa condição. – Dá-me a tua palavra, Lance, ou podes arranjar outra pessoa para ir ao encontro contigo. – Muito bem, com os diabos. Tens a minha palavra. Vou levar uma vida rústica até ficar grisalho e fraquinho e até que uma corda de enforcado em seda me pareça um ato de misericórdia, se é isso que queres. Ives teria gostado de o tranquilizar, dizendo que em breve se veria livre deste fardo, mas a verdade é que não vislumbrava um fim à vista. Quando saiu, Lance começara a limpar as suas pistolas de duelo, para o caso de a eloquência afinal não conseguir evitar o confronto. Ives planeara ir montar a cavalo naquela manhã, mas, quando finalmente


deixou o irmão, já não tinha tempo para sair da cidade e regressar a tempo do encontro. Resolveu então voltar a casa para se arranjar e terminar o que mal começara e, à tarde, cavalgou de regresso a Mayfair. A testemunha do duque de Middleburrow pareceu aliviada quando Ives explicou que era o sentimento de Lance que uma indiscrição que escapara num estado de embriaguez não deveria dar origem à morte de um homem. Passaram uma hora a negociar a linguagem do pedido de desculpa que Middleburrow deveria apresentar. Conhecendo a cabeça de Lance, Ives insistiu para que não pudesse ser qualificado como estando sequer no limiar da ambiguidade. Para o caso de Middleburrow colocar impedimentos, combinaram igualmente as condições de um duelo, caso se revelasse necessário. Ives estava confiante de que aqueles pormenores encorajariam Middleburrow a engolir o orgulho, a alegar incapacidade devido ao seu estado de espírito e a recuar graciosamente. Todas essas diligências custaram grande parte do dia. Essa invasão do seu tempo irritou Ives. Regressou a casa, determinado a passar o dia seguinte fora de portas, a cavalo, livre de toda e qualquer obrigação. Quando, no final desse dia, se sentou de livro na mão, captou novamente a sua atenção o papel onde havia registado a lista de qualidades das suas amantes. Leu-o, demasiado consciente de que a abstinência começava a tornar-se um incómodo. À medida que avançava um a um pelos itens da lista, um rosto foi cada vez mais claramente assumindo forma na sua cabeça. Cabelo escuro. Olhos cintilantes. Expressão determinada. Uma lealdade firme. Oh, diabo. Guardou novamente o papel.


CAPÍTULO 4 ves entrou no Ministério do Interior, em Whitehall, demasiado ciente de que era o terceiro dia do seu precioso repouso que passaria a tratar daquilo a que começara a chamar o «Dilema de Miss Belvoir». O orgulho impedia-o de incluir também o dia anterior, em que, apesar de ter finalmente apreciado uma boa cavalgada pelo campo, deu por si a remoer o caso de Hadrian Belvoir. Um pensamento conduzia a outro e, quando deu por isso, imaginava os olhos escuros de Miss Belvoir iluminados de prazer e o seu corpo alto e esbelto nu, rendido às suas lições de erotismo. A fantasia tinha sido tão envolvente que não a conseguira largar facilmente, padecendo na noite anterior da sua presença insistente. Já estivera implicado em tantos processos com o Ministério do Interior que quase toda a gente com quem se cruzava o cumprimentava. Mais de uma vez ao longo da sua carreira tinha assumido missões em nome da Coroa que poderiam mais acertadamente ser descritas como extralegais. A amizade com o Príncipe Regente começara por dar azo a que lhe solicitassem uma destas pequenas investigações, a título de favor. O êxito daquelas transformara-o no homem que a realeza chamava sempre que surgia um problema de contornos diferentes e que exigia alguém capaz de apurar alguns factos de forma discreta, quem sabe com uns poucos puxões de orelhas. Ou de braços. O facto de prestar ocasionalmente esses favores não significava que aprovasse que todo um aparelho governamental o fizesse também. Era nisso que o Ministério do Interior se transformara sob a administração do visconde de Sidmouth, secretário de Estado do Ministério do Interior. À medida que a situação política nacional se fora intensificando, este ramo do Governo começara a recorrer a espionagem doméstica e até a agentes que se infiltravam e perturbavam aquilo que os seus líderes considerassem atividades potencialmente traiçoeiras. Os excessos franceses trinta anos antes nunca se haviam dissipado totalmente das mentes de alguns dos pares de Ives na

I


sociedade e os apelos de reforma e outras ideias radicais soavam-lhes por demais perigosos. Assim, embora caminhasse pelos corredores do Ministério do Interior na qualidade de amigo, havia lá dentro quem tivesse consciência de que ele contava plenamente vir um dia a proferir a sua acusação quando eles próprios se apresentassem em julgamento. Não era o caso de Ivan Strickland, de cujo gabinete abriu a porta. Strickland mantinha-se uma voz sã que combatia as invasões mais graves à liberdade britânica à moda antiga. Ives estava convicto de que, se havia alguém em quem podia confiar no Ministério do Interior, essa pessoa era Strickland. Prestavam por vezes favores mútuos, pelo que partilhavam uma história de dívidas de parte a parte. Strickland era um tipo forte e louro, com aquela robustez que facilmente se podia transformar em flacidez se não fosse controlada com exercício regular. Cumprimentou Ives com entusiasmo e foi com satisfação que puseram a conversa em dia. Strickland, como é evidente, quis saber tudo o que Ives pudesse partilhar acerca da morte prematura do seu irmão mais velho, Percival, na primavera anterior, bem como das suspeitas que pairavam sobre o outro irmão, Lance, o seu herdeiro. Só uma boa meia hora após o início da visita, Ives abordou o motivo da sua vinda. – Recebi há um mês uma carta do Príncipe Regente – contou. – Penso que na altura não estava na cidade. – Estava no Norte – respondeu Strickland. – Aquele assunto em Manchester. Que grande trapalhada. Por mais que nos esforçássemos, não conseguimos o que queríamos. A história condenar-nos-á. Referia-se às mortes numa grande manifestação de trabalhadores em Manchester, uma catástrofe que passara a ser popularmente designada como Peterloo. – Naquela carta, mencionava um caso em que me pediriam que assumisse a acusação. De um homem chamado Hadrian Belvoir. – Belvoir? – O sobrolho de Strickland franziu enquanto refletia. – Ah, já me recordo. Cunhagem de moeda, é isso. Achaste interessante? – Nunca passou dessa carta. Ele ainda não foi levado a julgamento. Nem parece que tal venha a acontecer em breve. – Conheço a tua opinião quando há pessoas que não obtêm um julgamento célere. Não me repreendas a mim. Tenho ideia de ter ouvido o magistrado dizer


que pretendiam usar esse tipo como isco para apanhar peixe graúdo. – O carcereiro da prisão disse que encontraram dinheiro falso em casa dele. Mais alguma coisa? – Prensa e coisas assim? Não. Só dinheiro falso. – Quem o denunciou? – Parece-me que um ladrão qualquer com talento para o furto com arrombamento lhe assaltou a casa e viu o suficiente para negociar a suspensão da pena de morte pela forca da amante. Tudo batia certo, mas os instintos de Ives continuavam a inquietar-lhe o espírito. – Conheces muitos pormenores sobre o Belvoir, Strickland. Strickland irradiou um sorriso. – Bem, o tal magistrado era um tagarela. – Suponho que não tenha explicado também qual a dimensão do peixe graúdo que espera apanhar com o seu isco... – Deixa-me pensar – refletiu Strickland. – É mais um polvo gigante, na verdade. Com todos aqueles braços a chegar a todo o lado, se é que me compreendes. Ives compreendia suficientemente bem. Alguém pensava que Belvoir poderia conduzi-los a um criminoso implicado em muito mais do que este incidente de contrafação. Se Strickland sabia assim tanto, o Ministério do Interior estava envolvido ou então monitorizava de perto a situação. E se o Ministério do Interior estava a revelar este grau de interesse, é porque considerava provavelmente que este polvo era perigoso e que tinha um ou dois braços associados a radicais políticos encarados como ameaças para o reino. – Suponho que os magistrados, ou quem quer que esteja a investigar, estão a ser minuciosos. Tive oportunidade de ver este homem e é um réu improvável. Não quereria receber outro caso como o de Waverley. O rosto de Strickland entristeceu. O olhar mudou de direção. – Esse foi um caso infeliz. – Não foi infeliz. Foi um erro trágico da justiça. – Tens mesmo de o esquecer, Ives. Os erros acontecem. – Mandei um homem inocente para a forca. Não é o tipo de coisa de que me possa esquecer facilmente. – Não foste tu quem o mandou. Foi o processo. – A negligência mandou-o para lá. Foi a conformação com a solução fácil e a indiferença em descobrir a verdade. – Ouviu como a sua voz subia de tom.


Esquecer? Arrepender-se-ia para sempre daquele dia em Old Bailey. – Se eu ficar a saber que o Belvoir está a ser sacrificado por um oportunismo do Ministério do Interior, vou armar confusão. – Não é nada disso – disse Strickland. – Não há aqui jogos políticos. Segundo ouvi, trata-se de contrafação e outros crimes normais. – Se só ouviste dizer, então não podes saber verdadeiramente. Se outras pessoas neste edifício estivessem a ultrapassar o limiar da lei, certamente não te informariam a ti. Ives dominou a fúria que o havia tomado. Fora injusto atirar aquele peso a Strickland, que nem sequer participara no caso de Waverley. – Não podem manter o Belvoir preso para sempre sem o levar a julgamento – disse ele. – É um cidadão e tem os seus direitos. – Penso que irás encontrá-lo em Old Bailey daqui a um mês. Segundo o tal magistrado, é claro. Contudo, se tens assim tantas suspeitas, se calhar não devias assumir a acusação. Ainda te podes escusar. Sorriu com ironia ao proferir estas palavras, porque evidentemente Ives não se podia escusar. Quando a Coroa o nomeava procurador, era isso mesmo que ele tinha de ser. Desviaram a conversa para outros temas, mas Ives continuou sempre a calcular as ramificações das confidências que Strickland lhe havia feito. Era bom que Padua Belvoir encontrasse o advogado de que precisava, e rapidamente. E, se não tivesse cuidado, poderia acabar a precisar de aconselhamento legal para ela própria. Padua deambulou por entre as mesas, olhando sobre os ombros das raparigas enquanto trabalhavam na aula de geometria. As poucas que cometiam os erros mais graves não eram aquelas a quem faltavam capacidades para a aprendizagem de matemática. Ao invés, eram as que conheciam suficientemente o mundo em que viviam para saber que, por muito bem que dominassem a disciplina, ninguém celebraria as suas proezas. O esforço de Padua para encorajar a aprendizagem por satisfação pessoal não encontrava grande adesão por parte de algumas raparigas a partir do momento em que começavam a distrair-se com ideias de festas e pretendentes. Ainda antes do final da aula, Jennie – cujas aulas de comportamento e etiqueta as raparigas nunca encararam como inúteis –assomou à porta da sala de aula.


– Tem uma visita – anunciou ela, depois de chamar Padua de parte. – Eu fico aqui com elas, para que possa descer já. – Espanta-me que Mrs. Ludlow tenha permitido que eu abandone os meus deveres para receber essa pessoa. – A mim não. Vá e veja porquê. Bastou entrar no átrio de entrada para o mistério ficar resolvido. Mrs. Ludlow em pessoa já estava a fazer companhia ao visitante, numa pequena sala adjacente ao átrio, decorada com frágil mobiliário dourado e uma enjoativa combinação de tecidos rosa e rosa-choque. – Ah, cá está Miss Belvoir – chilreou ela quando Padua entrou na sala. O rubor de Mrs. Ludlow tingia-lhe as faces e não conseguia evitar soltar uma série de risinhos enquanto apontava na direção de Padua com um patético gesto teatral. O visitante era nem mais nem menos do que Ives. Padua suspeitava de que o seu cartão de visita permaneceria pousado na salva do átrio de entrada até amarelecer com o tempo. Mrs. Ludlow aparentava estar dividida entre sair ou não daquela sala. Padua sorriu-lhe com uma expressão tranquilizadora. Por favor, a sala não tinha portas e quem estivesse no átrio via todo o seu interior. Além disso, com vinte e cinco anos, não precisava de um pau de cabeleira, especialmente com este homem. Quando Mrs. Ludlow saiu, Padua voltou-se para Ives, expectante. – Como me encontrou? – Deixou a sua morada com o meu criado naquele primeiro dia, recorda-se? Sim, agora recordava-se. Sentou-se num banquinho forrado a seda. Ele ocupou a única cadeira que tinha um tamanho adequado. – Peço perdão se a minha vinda aqui lhe puder criar dificuldades com a sua patroa – disse ele. – Não penso que haja problema algum. Ela está provavelmente a ouvir atrás da porta neste preciso momento, pelo que até me será poupada a sua curiosidade. Vinda do átrio, muito próximo da entrada da sala de estar, ouviu-se uma inspiração profunda. E depois, passos muito ligeiros, cada vez menos audíveis. – Pode contar que ela dirá aos pais que o senhor nos visita com frequência, que tem aqui familiares e que patrocina a escola com donativos – continuou Padua. – É uma mulher amorosa e essencialmente honesta, mas isto é a sua vida e há muita concorrência lá fora. Ele sorriu. Pareceu-lhe bastante afável. Contudo, a verdade é que a luz ali era suave, já que as janelas estavam voltadas para Norte e dado ser ainda tão cedo.


– Foi mesmo para patrocinar a escola que veio até aqui? – perguntou ela, ao ver que ele não explicava o motivo da sua visita. Teria sido um ligeiro rubor que ela detetou no rosto dele? Céus, ele perdera a noção de si mesmo, bastante literalmente. – Vim indicar-lhe os nomes de alguns advogados que serviriam competentemente os interesses do seu pai. Enfiou a mão no casaco e tirou uma pequena folha de papel. – Obrigada, mas já contratei um. – Permite que lhe pergunte quem? Ponderou não lhe dar essa informação. Ele não tinha nada com isso, pelo menos não antes do julgamento. – Mr. Notley. – Não é nada má escolha. O Notley é diligente, discreto e honesto. – Também achei. – Tem, no entanto, pouca experiência em tribunal, dado ser solicitador. Pode atuar nessa qualidade no tribunal penal, mas seria mais sensato se ele contratasse um advogado. – Foi o que ele explicou. E assim o fará, caso se revele necessário. Disse também que, se lhe pediram a si que se encarregasse da acusação, isso significava que pessoas muito importantes estavam interessadas no caso. É verdade? Ele fixou o olhar no dela. – Com frequência. – O seu irmão, o duque? – Não. – Evidentemente que não. Que interesse poderia ter ele? Contudo, não me ocorre mais ninguém que pudesse exigir a sua intervenção. – A honra exige-o. O dever exige-o. Acima de tudo, a justiça exige-o, Miss Belvoir. Se lhe interessa tanto a justiça, recuse a sua participação neste processo. Padua mordeu a língua. Seria tolo da sua parte antagonizar o homem que o pai teria de enfrentar em tribunal. – Porque veio até aqui? O que quer de mim? Ives caminhou até à entrada e espreitou para o átrio. Regressou então e posicionou-se, em pé, junto a ela para poder falar em voz baixa. – Vim avisá-la. Não deve regressar a Newgate. Deve afastar-se de todo este processo. Deixe que Mr. Notley trabalhe em seu nome, se assim for necessário,


mas diga-lhe que seja o mais discreto possível, como conselheiro do seu pai, e não tanto ao serviço da filha. Padua não gostava que lhe falassem de alto, literalmente. Nem estava com disposição para aceitar instruções de Ives. Levantou-se, para melhor conseguir olhá-lo nos olhos. – Por muito que eu gostasse de acreditar que está a cuidar dos meus melhores interesses, estou certa de que o mesmo não se aplicará de todo aos interesses do meu pai ao dirigir-me este aviso. Como procurador, está contra os interesses dele. Sem mim, ele será presa fácil para pessoas do seu calibre, especialmente se eu me afastar. Ele inclinou a cabeça para um lado. Baixou as pálpebras. – Está a insinuar que eu temo o seu envolvimento porque me levará a perder o processo? – Farei seguramente com que a sua vitória seja menos garantida. – Miss Belvoir, o motivo para a minha presença aqui não tem nada que ver comigo. Estou apreensivo por si. Este caso poderá ter muito mais que se lhe diga, mais do que qualquer um de nós tem conhecimento. – É evidente que tem. Estou desde o início a dizer que o meu pai não é o género de pessoa que se envolva neste tipo de crime. Foi cometido um erro monstruoso... Um gesto firme da mão de Ives a cortar o ar interrompeu-lhe o discurso. – Não é isso que quero dizer – suspirou, exasperado. – Agora, ouça-me. E acredite que não estou a falar como procurador, mas como alguém que conhece melhor esta parte do mundo do que a senhora alguma vez o fará. Padua sentou-se novamente, com a intenção de o escutar. Não por ele lhe ter dado uma ordem, embora a sua força de vontade tivesse pouca experiência em confrontar tamanho ímpeto. Sentou-se a ouvir porque não era tonta, e a expressão e a voz de Ives tinham-na convencido de que era imperativo ela atentar no que quer que fosse que ele tinha para dizer. Ele puxou uma cadeira para muito perto dela, uma vez mais para que nenhum curioso atrás da porta os pudesse ouvir. Os seus joelhos quase se tocavam. Ela teve grande dificuldade em negar o poder da presença deste homem com ele ali tão perto, a ponto de se sentir envolta por ele. Ele tinha algo irresistível, como se de alguma forma lhe invadisse o espírito. Tão pouco próprio, indigno até, estar a reagir daquela forma à presença dele, considerando que ele desempenharia um papel tão terrível na vida dela. – O seu pai envolveu-se nalguma coisa muito maior do que ele sabia – disse


Ives. – Tenho motivos para crer que o Governo se interessou por ele e pelo dinheiro falso que encontraram nos seus aposentos na Wigmore Street, bem como nos seus parceiros. Se assim for, isso significa que há alguém que considera que não se trata de um simples crime, mas parte de uma conspiração. A palavra conspiração percorreu-lhe a espinha como um calafrio. Era uma palavra que ultimamente andava muito na boca de toda a gente, desde que o final da guerra provocara perturbações na economia que levavam os trabalhadores a manifestarem-se na rua, abrindo também espaço para os radicais reiniciarem as suas campanhas em prol de mudanças profundas na sociedade e na política. Sempre receoso das convulsões que este tipo de inquietação pudesse provocar, o Governo aprovara leis que tornavam mais difícil cozinhar atos de conspiração. – Ele não tem qualquer interesse na política – informou ela. – Não tem de ter, basta que os seus parceiros tenham. – E quem são esses parceiros? Sabe-se? – Eles pretendem saber isso através dele. Contudo, neste momento, têm curiosidade acerca de um parceiro que surgiu recentemente. A senhora, Miss Belvoir. Mais um calafrio. – Apareceu quase um mês depois. Visitou-o todos os dias. Leva-lhe livros e papel. E ele, o que lhe dá em troca? O que lhe diz a ele? São estas as perguntas em cima da mesa. O carcereiro chegou a colocar em dúvida de que seja mesmo sua filha. – Que outra pessoa poderia eu ser? – Uma cúmplice. – Isso é insultuoso. – Veja a situação pelos olhos deles. Tem de deixar de ir a Newgate. Já cumpriu o seu dever de filha. O advogado fará o resto. – Não posso fazer isso. – Mas tem de o fazer. – A sua atitude demonstrava que esperava obediência. Padua não devia obediência nenhuma, mas também não queria que ele pensasse que era imprudente. Explicaria as suas razões uma vez, mas não mais do que isso, para que talvez ele pudesse compreender que ela não rejeitava o seu conselho por pura teimosia. – Disse que estava sujeito ao que lhe é exigido. Bem, também eu. Também tenho deveres e um deles é garantir que o meu pai não seja abandonado aos seus parcos expedientes. Prometi-o à minha mãe. Ela não quis dizer que deveria assegurar que ele tinha camisas limpas ou o plastrão aprumado, apercebo-me


disso agora. Queria dizer que eu devia cuidar dele se algo deste género acontecesse. A cabeça do meu pai continua absorta nos seus números e abstrações. Sozinho, ele será um desgraçado numa tal teia de suspeitas e conspirações. Ele pareceu compreender, mas não gostou do que ouviu. Mirou-a quase como um professor exigente olharia para uma aluna que lhe apresentasse uma boa razão para não ter estudado em casa. Reconhecer que a justificação era válida não resolvia o problema da falta de estudo. – Prometa-me, pelo menos, que não voltará a Newgate – disse ele. – Se enviar comida para o gabinete do carcereiro, tratarei de que seja levada ao seu pai. Se ao menos ele parasse de a ajudar. Não via ele a contradição de fazer este tipo de coisa quando tinha plena intenção de fazer incidir a ira da justiça sobre esse mesmo homem? – Não posso prometer. No entanto, não regressarei, a menos que considere ser absolutamente necessário. Não teve de ceder muito ao acordar esta condição. O pai não a queria lá e recusava-se a falar com ela. Quem sabe Mr. Notley seria mais bem-sucedido. Ives sorriu. Parecia agradado. E ela não conseguia perceber porquê. Ele olhou a sala em volta e foi como se o olhar penetrasse as paredes e visse também o resto do edifício. – É professora aqui? – Sim. – De que disciplinas? – Matemática e Ciências Naturais, embora também consiga dar conta de quase tudo o resto que aqui se ensina. – Mrs. Ludlow tem muita sorte em tê-la. Padua não conseguiu conter o riso. – Acho que ela nem sempre concorda. Mas é verdade que sou útil e pouco onerosa. Se eu saísse, teria de me substituir, o que, no que toca à Matemática, significaria provavelmente ter de pagar muito mais. – Foi o seu pai quem lhe ensinou matemática? – Toda a gente pressupõe isso, mas não foi ele. Foi a minha mãe. Padua apreciava ver a surpresa das pessoas quando dizia isto. Ives não foi diferente dos outros. Os seus olhos foram invadidos de curiosidade. Mas teria de esperar até a ver satisfeita. Passos familiares anunciavam o


regresso de Mrs. Ludlow. Seguia-a uma criada, de bandeja na mão. – Lord Ywain, dar-nos-ia a honra de tomar um café connosco? Ele aceitou atenciosamente. Padua reparou que a bandeja tinha apenas duas chávenas em dois pires. Mrs. Ludlow usara o «nós» da realeza. – Miss Belvoir, não deveria regressar à sala de aula? As meninas mais novas estarão agora à sua espera. Padua pediu licença para sair. Ives conseguiu aparentar agrado quando Mrs. Ludlow lhe dirigiu um sorriso adulador, mas antes Padua pensou ter vislumbrado alguns segundos de sofrimento. Bem, se o homem insistia em interferir, tinha de contar com algum desconforto ocasional. Já era suficientemente mau andar a desperdiçar horas e dias com o Dilema de Miss Belvoir. Mas agora Ives via-se sujeito às lisonjas sociais de Mrs. Ludlow. Passou meia hora a falar sobre os seus esforços educativos. – Aqui, damos o nosso melhor com as meninas – confidenciou ela depois de o presentear com uma descrição da escola. – Tanto quanto é possível, gosto eu de pensar, considerando o meio de onde vêm. Baixou o tom de voz. – Na sua maioria, o pai trabalha no comércio e, havendo alguma possibilidade de os resultados da educação superarem os do dinheiro, é com jovens como estas. – Há quanto tempo Miss Belvoir ensina na sua escola? – perguntou ele. – Procurei-a hoje para falar de um assunto relacionado com familiares dela e não conheço a sua situação em pormenor. – Está connosco há três anos. Chegou com uma única referência, uma referência muito qualificada, na verdade. Contratei-a com algum risco, já que ensina disciplinas para as quais pode ser difícil arranjar professores. Não lhe nego as qualificações e aprecio a sua companhia. Considero, no entanto, que é obstinada e, por vezes, também altiva. Tem apetência por ideias radicais, o suficiente para me levar a ponderar se não deveria convidá-la a sair. Ives teria preferido que o termo radical não fosse associado a Padua Belvoir, considerando as circunstâncias. Tinha esperança de que Mrs. Ludlow estivesse a referir-se apenas às ideias reformistas que eram já do seu conhecimento. – Imagino que ela não defenda a eliminação de todos os aristocratas – disse ele, com uma risada breve.


Mrs. Ludlow achou a observação muito divertida. Riram juntos de uma ideia tão absurda. – Não, não é esse tipo de radical. Céus, se os nossos pais alguma vez teriam imaginado tal coisa. – Deu pancadinhas no peito, como se corresse o risco de desmaiar. – Mas nutre algumas ideias sobre as mulheres. Sabe a que me refiro. Todos aqueles assuntos à la Wollstonecraft1. A mãe dela frequentou uma universidade no estrangeiro que admitia mulheres. Com uma mãe assim, pode imaginar as ideias estranhas que Miss Belvoir veio a herdar. Os nossos pais não teriam achado graça nenhuma. – Olhou para ele como se de um velho amigo se tratasse, digno das suas confidências. – E eu vou negligenciando a situação, mantendo-a ao serviço? É uma questão que me ocupa permanentemente o espírito. – Não será certamente fácil encontrar uma professora de Matemática que aceite trabalhar numa escola feminina. Se Miss Belvoir é competente na sala de aula, não me parece que esteja a ser negligente nem que tenha de apressar-se a mandá-la embora. Mrs. Ludlow olhou-o com gratidão. – Que bom é receber o seu conselho. Tem toda a razão, evidentemente. A menos que faça alguma coisa que prejudique a escola, posso muito bem fechar os olhos às suas opiniões. Parecia uma excelente oportunidade para sair de cena. Assim o fez, acreditando que esta sua boa ação do dia se multiplicava em várias. Miss Belvoir manteria o emprego e marcaria menos presença em Newgate. Com um pouco de sorte, em cerca de uma semana qualquer pessoa que acompanhasse o caso do pai perderia o interesse nela, caso deixasse de fazer visitas à cela. Ives não se teria importado de pôr para já totalmente de lado o assunto de Hadrian Belvoir, porém, algo mais carecia da sua atenção. Sabia por experiência que, por vezes, os magistrados, ansiosos por identificar um culpado, fechavam os olhos a provas inconvenientes que pudessem pôr em dúvida a culpa de uma pessoa. A situação de Hadrian Belvoir parecia estar perfeitamente clara e bem arranjada, mas, antes de avançar com a acusação, queria ter a certeza. 1 Mary Wollstonecraft, feminista e revolucionária intelectual (1759-1797). (N. da T.)


CAPÍTULO 5 Avisita de Ives produzira outros resultados além da simples aceitação de Padua em deixar de visitar o pai. Mais interessante do que isso para ela havia sido a referência de Ives aos aposentos do pai na Wigmore Street. O facto de o pai usar um apartado ao longo de tantos anos tinha-a magoado particularmente. Mas agora sabia onde ele vivia. E também tinha esperança de que esta fosse a propriedade que o pai herdara. Nesse caso, não teria de pagar a Mr. Notley dez xelins para localizar essa herança. E se o pai tivesse usado apenas alguns espaços do edifício, talvez isso significasse que arrendava os outros e que essa constituísse uma fonte de rendimento. Teve de esperar uns dias até conseguir sair da escola sem que Mrs. Ludlow desse conta. Por sorte, Mrs. Ludlow tinha um ritual de visitas sociais todas as sextas-feiras à tarde. Levava sempre Jennie com ela porque as suas relações, por mais que na realidade estivessem degradadas, melhoravam o estatuto social de Mrs. Ludlow e até abriam algumas portas. Padua ficou até então à espera do seu momento. Logo que a carruagem alugada as levou, vestiu o casaco e pôs o chapéu, e saiu pela porta do jardim. Nesse dia haveria pouco tempo, por isso chamou uma tipoia e indicou ao cocheiro o nome da rua. Esperava que não fosse longe e que pudesse regressar a pé. Foi uma surpresa quando a carruagem parou numa rua perto da orla nordeste de Piccadilly. Pagou o transporte, saiu e observou bem tudo em volta. A Wigmore Street não tinha um pingo de elegância. As casas pareciam ser robustas e Padua adivinhou que muitas albergassem vários apartamentos. Como não sabia qual era a do pai, perguntou a um merceeiro numa esquina. Não foi preciso descrever o pai com grande pormenor para que o proprietário reconhecesse o homem que procurava. Orientou-a para uma casa de tijolo no quarteirão seguinte, com uma altura de três pisos sobre uma cave sobrelevada. Estava uma mulher loura sentada à janela do primeiro andar. Padua perguntou por Mr. Belvoir.


– Mora aqui em cima – disse a mulher. – Não está cá agora. Já não está há algumas semanas. – Ele é dono do prédio? A mulher riu-se até às lágrimas. – Aquela ave rara, dono deste prédio? – Limpou os olhos com a ponta do avental. – Porque haveria ele de ser dono de um prédio? Nada disso! Arrenda um quarto, tal como eu arrendo o meu, muito obrigada. Padua abriu a porta. Subiu as escadas que conduziam ao piso seguinte. Como se esperava, a porta dos aposentos do pai não estava trancada. Hadrian Belvoir nunca se teria ocupado de pormenores práticos desse género. Quando entrou, teve de admitir que, fosse como fosse, não havia motivo para a trancar, já que não possuía nada digno de ser roubado. Um monge poderia viver assim, num espaço pejado de livros que transbordavam das estantes, em pilhas sobre mesas ou no chão. Uma secretária, como que barricada num canto da sala de estar, ostentava um maço de papéis. Padua dirigiu-se até lá e examinou esses documentos. Eram poucas as palavras escritas. A maioria eram números e anotações matemáticas. Há muito que o pai se dedicava a uma busca por provas impossíveis. Não seria o primeiro homem a passar a vida em tais demandas para depois simplesmente falhar. Olhou em volta, tentando imaginar onde teria sido guardado todo aquele dinheiro falso. Tanto quanto conseguia perceber, não havia espaço para tal. Deambulou até ao quarto de dormir. Um espaço vazio saltava à vista junto a uma parede. Parecia ter ali estado em tempos uma arca, mas já não. Conseguia delinear-se o contorno nas pranchas do soalho, uma vez que não havia ali mais nenhum objeto. Esperara talvez encontrar alguma prova de que não poderia ter ali existido um grande esconderijo de dinheiro, pelo que aquele espaço flagrante a desanimou. Era evidente que o pai vivia ali, mas porquê? Se herdara uma propriedade, porque não residia nela? Infelizmente, suspeitava que conhecia a resposta a essa pergunta. Provavelmente vendera essa propriedade há muito tempo. Não ficaria surpreendida se alguém o tivesse enganado, pagando-lhe muito pouco ou mesmo nada. Teria sido mesmo típico do pai assinar a escritura e esquecer-se de cobrar o pagamento. Desalentada, regressou à sala de estar e começou a escolher livros para entregar na prisão. Tinha retirado dois deles quando um pequeno volume de encadernação vermelha captou a sua atenção. Puxou-o para fora. Era um dos


manuais escolares que ela usara em menina. Comoveu-a que o seu paizinho o tivesse guardado. Abriu-o e viu a sua assinatura infantil na primeira página. Uma nota bancária caiu e flutuou até ao chão. Vinte libras. Apanhou-a e depois abanou as páginas. Não havia mais dinheiro. Desviou o olhar para os livros, em busca. Descortinou outra fina encadernação vermelha. Verificou esse livro e encontrou mais dez libras. Empolgada, procurou novamente e encontrou um terceiro livro. Tirou de uma mesa as pilhas de revistas e panfletos, de modo a abrir espaço para colocar os manuais escolares. As suas escavações revelaram uma caixa de madeira, sob uma pilha, que lhe desviou a atenção. Lembrava-se dela da infância. A mãe guardava essa caixa no quarto de vestir. Vê-la de novo evocou memórias e sentimentos, todos eles reconfortantes e nostálgicos. Na altura, era onde guardava as luvas. Não eram luvas que guardava agora. Estava preenchida com um maço de cartas. As cartas exalavam o aroma da sua mãe, tinha a certeza, e a sua simples existência extasiava Padua. Pousou os manuais escolares, para tratar deles mais tarde, e enfiou as notas no corpete, para que também não atrapalhassem. Libertou uma cadeira, atirando livros para o chão, e sentou-se. As cartas eram sobretudo da autoria da mãe, mas o pai também escrevera algumas. Pelas datas, eram antigas, anteriores ao nascimento de Padua. O coração tremeu-lhe quando observou a caligrafia da mãe. Por fim, abriu uma das cartas e começou a ler. O facto de Lance aceitar sair da cidade e ir para Merrywood não era sinónimo de ver Lance a subir efetivamente para a carruagem e ir-se embora. Ives visitouo ao pequeno-almoço, demorou-se lá em cima, no quarto de vestir de Lance, a conversar sobre ninharias e barrou-lhe geralmente o caminho até que Lance, enfadado, ordenou ao lacaio que fizesse as malas. – Suponho que te verei para a semana – disse Lance quando a carruagem se pôs em andamento. – Maldito sejas, não te atrevas a voltar tão depressa. – Não aqui. Em Merrywood. – O veículo avançou aos solavancos. Ives não tinha a menor intenção de passar a última porção do seu precioso tempo de repouso a fazer companhia a Lance no campo. – Não contes com isso – gritou para a carruagem que seguia caminho.


Lance enfiou a cabeça fora da janela e olhou para trás. – Que belo irmão me saíste. O Gareth vai regressar a casa com a noiva, vêm lá das suas viagens, e tu não te dás ao trabalho de os vir receber. Ives gritou ao cocheiro que parasse. Caminhou depressa até à janela e espreitou lá para dentro. – O Gareth volta para a semana? – Será que me esqueci de te dizer? – Pois, esqueceste-te. – Recebi uma carta há dois ou três dias. Talvez quatro. – Refletiu sobre esse pormenor como se fosse importante. Lá se ia a segunda semana de liberdade absoluta. – Estarei lá, evidentemente. – Vamos caçar. – Ótimo. – Bateu na carruagem para indicar ao cocheiro que podia continuar. A carruagem avançou. Uma cabeça assomou novamente à janela. – Ter-me-ei esquecido também de referir que ela está grávida? A Eva, quero eu dizer. A carruagem virou para a rua. A cabeça desapareceu. Ives ficou a pensar quão embriagado Lance teria estado dois dias antes. Passava já das três da tarde quando se dirigiu à Wigmore Street. Amarrou o cavalo perto do cruzamento e aproximou-se do prédio de Belvoir a pé. Reparou em duas coisas enquanto caminhava. A primeira foi um tipo a mandriar, várias portas abaixo do prédio de Belvoir. Fazia por parecer ocupado sem, na verdade, estar a fazer coisa nenhuma. Ives pensou que seria provável a casa de Belvoir ter sido colocada sob vigilância. Era o tipo de coisa que exigia recursos de que um magistrado não dispunha, ou seja, o Ministério do Interior envolvera-se muito mais do que Strickland alguma vez admitiria. Viu então um rosto inesperado do passado. Uma mulher de cabelo acobreado em estilo elaborado estava sentada à janela do primeiro andar. Quando ela olhou para fora ao vê-lo aproximar-se, Ives reconheceu-a. A mulher engendrou um sorriso, mas o seu olhar encerrava um ódio inequívoco. Ives não podia censurar-lhe a reação. Dois anos antes, o seu companheiro, Harry Trenholm, fora deportado depois de um julgamento em que Ives fora procurador. As acusações eram de fogo posto e rebelião, por ter


incendiado uma fábrica perto de Liverpool, pertencente a um industrial que, ele próprio, incendiara, e muito, os confrontos que conduziram àquelas chamas. Quanto à rebelião, Trenholm justificara o ato com vestes de retórica política. O pateta contratado para o defender não conseguiu tirar suficientemente partido das provocações do industrial nem do facto de ninguém ter saído ferido. Pelo contrário, foi Ives quem habilmente o fez, livrando da forca o companheiro desta mulher. Era perdoável que ela não lhe apreciasse o esforço. Ainda assim, o seu homem desaparecera e, para todos os efeitos, era como se estivesse morto. Parou junto ao pilar do prédio. – Mrs. Trenholm. É sempre simpático ver uma cara familiar numa rua que não conhecemos. – O prazer é certamente todo seu. – Como vai andando? Ela cerrou os dentes atrás do sorriso. E assim o seu queixo já proeminente avançou ainda mais. – A vida continua. O que o traz para estes lados? Não é bem o tipo de rua onde se veja muita gente do seu nível ou carruagens como aquela ali. – Procuro a casa de Mr. Belvoir. – Também você, hein? Bem, um lanço de escadas e é aí. O que fez ele para estar interessado no homem? Deve estar na cadeia. Isso explica o silêncio lá em cima nas últimas semanas, não é? – Conhece-o bem? – É um tipo estranho e não fala com ninguém. Achei que se calhar tinha morrido lá em cima. Tenho andado à espera do cheiro para saber isso. Não tenho tempo para tipos doidos como ele. Agora trabalho numa florista e tenho um cavalheiro novo na minha vida, por isso na maior parte do tempo nem estou aqui. – Fico contente por ver que a vida realmente continuou para si. Diga-me, o que quis dizer com também você? Houve mais alguém a visitar os aposentos de Mr. Belvoir? Os olhos dela dirigiram-se para cima. – Uma mulher. Está lá em cima agora. Está lá há mais de uma hora. – Uma mulher atraente de cabelo muito escuro? E pele de porcelana e olhos preenchidos de estrelas, com pestanas espessas e escuras? – Atraente? Nem por isso. É esquisitamente alta. É só isso que chama a atenção nela, ser tão alta como alguns homens.


Que descrição ridícula de Miss Belvoir. Qualquer pessoa de olhar atento conseguia ver que a sua altura lhe conferia elegância, distinção e presença. Ela saía-se tão bem porque não tentava fazer nada na falsa expectativa de parecer mais baixa aos olhos de mulheres estúpidas como Mrs. Trenholm, cujo cabelo espampanante e o rosto pintado a identificavam como uma mulher sem bom gosto. Ives entrou e subiu as escadas. Não se ouvia nada lá de cima. Não se ouviam passos no soalho. Talvez Mrs. Trenholm estivesse enganada e Padua Belvoir já não se encontrasse nos aposentos do pai. Um certo desapontamento assomou-lhe ao espírito, o que o surpreendeu. A porta dos aposentos estava aberta. Ives espreitou lá para dentro. Padua ainda não saíra. Estava sentada numa cadeira de madeira. A seu lado, numa mesinha, jazia uma caixa de luvas aberta. Estava a ler alguma coisa. O que quer que fosse, paralisara-a e afetava todo o seu ser. O seu rosto parecia muito suave, jovem e vulnerável. Banhava-a a luz poeirenta da sala, iluminando-lhe a pele. Não era meramente atraente. Era bela. Pareceu-lhe uma intrusão cruel interromper quaisquer que fossem os seus pensamentos. Permaneceu assim no limiar da porta, esperando que ela regressasse a si.


CAPÍTULO 6

P

adua leu as cartas uma a uma. Não eram apenas cartas normais. Eram cartas de amor. Cartas de amor belas e apaixonadas. Quase pôs a primeira de lado quando se apercebeu. Mas a voz da mãe motivou-a. Na sua cabeça, ouvia as palavras ditas como ela costumava ler. Continuou, para preservar aquela memória tão viva durante algum tempo. Ao fazê-lo, ficou a saber o que na mãe atraíra o seu pai. Num mundo que se ria das suas ambições, ele amava-a precisamente por as ter e encorajava-a a almejar cada vez mais alto. Juntos, estavam destinados a unirem-se ao panteão das mentes mais celebradas de toda a Europa. Esperava-os a fama, o mecenato real e um futuro livre para se dedicarem a investigações sobre a ordem natural do Universo. Mas depois a desgraça abateu-se sobre eles. Enquanto o pai beneficiava de uma nomeação especial em Oxford e a mãe organizava salões deslumbrantes, uma criança fora concebida. Nas últimas cartas, escritas enquanto o pai procurava subsistência nalgum lugar, os assuntos práticos da vida vieram substituir os sonhos e a paixão. Deixou de haver cartas depois do nascimento dela, ou pelo menos nenhuma foi parar àquela caixa. Padua dobrou-as todas e colocou-as novamente na caixa. Não se arrependia de as ter lido, mesmo que as últimas a entristecessem. Não admirava que o pai não a amasse. Ela tinha arruinado o seu futuro e ele vira-se forçado a lidar com as preocupações mais comuns. Quanto à mãe, que sacrificara tanto mais... Uma tábua do soalho rangeu. Padua olhou na direção do som. Ali, do lado de fora da porta, estava Ives. Continuava a aparecer como se fosse a sua sombra, exceto que... Os seus olhos verdes encerravam agora uma escura profundidade e a sua expressão revelava uma subtil compaixão, como se lhe lesse os pensamentos. – Mencionou a rua – disse ela. – Sabendo isso, não foi difícil encontrar estes


aposentos. Ele entrou na sala de estar. – Encontrou alguma coisa de interesse? Padua abanou a cabeça. – Apenas cartas de há muito tempo. Tive esperança de encontrar alguns documentos que ele pudesse ter ou alguma coisa capaz de explicar por que razão aquele dinheiro foi encontrado aqui. Ives olhou em volta, para os papéis e livros desorganizados. – Admirar-me-ia muito se alguém conseguisse encontrar aqui seja o que for. – Incluindo dinheiro falso. Infelizmente, penso que sei onde estava. Levantou-se e caminhou até ao quarto. Apontou para o espaço vazio no chão. – Parece-me que costumava aqui estar uma arca grande. – Tudo indica que sim. – Não é descuidado guardar uma grande quantidade de dinheiro falso na própria casa? Pensaria que os criminosos teriam um lugar menos incriminador para o guardar. – Caso o seu pai se tenha limitado a ser usado para fins práticos, então ele era o lugar menos incriminador. – O meu pai anda tão distraído a resolver os mistérios da matemática que poderia ter sido usado e nem ter dado conta. Olhe-me para este lugar. Qualquer pessoa poderia ter posto a arca aqui, tapando-a depois com livros e papéis, e ele poderia nunca ter sequer reparado. – Deveria partilhar essa teoria com Mr. Notley. – Acho que vou dizer para lho perguntar a si no julgamento. Foi o senhor quem disse que era de admirar que alguém conseguisse encontrar alguma coisa aqui. Penso que seria benéfico se lhe pedíssemos que o repetisse em tribunal. – Era uma arca muito grande, Miss Belvoir. Dificilmente o seu pai não teria reparado nela. Contudo, se me perguntarem, responderei com verdade. Os dedos de Ives folhearam as arestas de um molho de papéis em cima da cama. – Tem a certeza de que não encontrou aqui nada de interesse para o caso? Alguma coisa que pudesse ter guardado nessa bolsa que tem na mão? – Certeza absoluta. – Padua saiu do quarto e regressou à mesa com a caixa das luvas. Começou a escolher alguns livros para o pai. – Disse que o carcereiro lhe entregaria o que eu levar. Levarei poucas coisas, para não parecer que me estou a aproveitar da generosidade alheia. Retirou alguns livros das prateleiras e formou uma pequena pilha. Desejava


poder verificar mais alguns dos seus manuais escolares, mas isso seria um disparate, com ele ali. Enfiou as notas mais profundamente dentro do corpete, não fossem elas cair. Nas suas costas, conseguia ouvir Ives a movimentar-se pela sala, a remexer em papéis e a abrir gavetas. – Não acredita em mim? – exigiu saber, encarando-o. Ele inclinou-se para puxar uma gaveta muito em baixo num dos armários. – Penso que é inexperiente e que não reconheceria provas úteis, se as visse. – Já os magistrados, pelo contrário, reconheceriam. Está determinado a encontrar mais pregos para o caixão do que afirmam já ter? – O meu único objetivo quando assumo a acusação é que se faça justiça. Encantar-me-ia encontrar alguma coisa que corroborasse a inocência do seu pai. Não sou insensível a ponto de estar desejoso de o condenar. E agora que a conheço, bem pelo contrário. Nasceu na cabeça de Padua uma resposta acutilante, mas faltou-lhe a voz. Tudo devido à forma como Ives estava a olhar para ela. Não era um olhar zangado. Mas também não era benevolente. Não se via nos seus olhos vislumbre de reprovação nem despeito. Ao invés, olhava-a com o calculismo de um homem. Emergiu a sua firmeza, mas não revelava desagrado. As ideias de que ela suspeitara no primeiro encontro, no seu escritório, revelavam-se agora mais explicitamente. Ele ficava diabolicamente atraente com aquela expressão nos olhos. Perversamente perigoso. Algo que a deveria incitar a fugir. Contudo, pelo contrário, Padua não se conseguia de todo mexer. Conseguia apenas olhar para ele, sendo que uma breve mirada apenas lhe causava tremuras pela espinha abaixo. Ives quebrou o feitiço e olhou pela janela. Padua pensou ver um clarão de satisfação confiante antes de ele colocar novamente a máscara. – Está a fazer-se tarde – fez ele notar. A realidade expulsou todos os calafrios. A luz do lado de fora da janela desvanecera-se consideravelmente. Seria improvável conseguir regressar à escola antes do cair da noite. – Tenho de me apressar. – Olhou para a caixa das luvas. – Seria aceitável também levar isto comigo? Como lhe disse, são apenas cartas antigas. Não desejaria que se perdessem ou que fossem destruídas se... ele não regressar. – Seriam suas de qualquer modo. Leve-as agora pelo seguro, se desejar. Padua ergueu os livros e a caixa e prendeu-os todos contra o corpo. Ives caminhou até ela.


– Tem mesmo a certeza absoluta de que não encontrou nada importante? – perguntou. – Foi o que lhe disse. Porque pergunta novamente? Ele olhou-a lá do alto. – Porque a ouço a restolhar. – Restolhar? Ele agarrou um pedaço de papel e esmagou-o na mão, produzindo um som distintivo. – Restolhar. Todos os tipos de papel faziam aquele ruído. Como notas bancárias enfiadas num corpete. Padua resistiu à tentação de olhar para baixo, para o seu corpo. Mas ele não. O seu olhar fixou-se precisamente ao nível dos seios dela. Se Padua não estivesse a segurar nos livros, ele estaria a perscrutar-lhe o corpo de uma forma muito pouco própria. – Estou aqui a pensar que deveria garantir com certeza absoluta que não está a levar destes aposentos documentos ou provas às escondidas – refletiu ele. Padua queria apertar a pilha de livros com mais força ainda, mas receava começar novamente a restolhar. – Tem a minha palavra de honra de que não estou a levar documentos nem provas, senhor. – Poderei confiar na palavra de uma pessoa que me declarou seu adversário? – Como cavalheiro que é, não tem escolha. A menos que esteja a pensar revistar-me, mas parece-me que não será suficientemente ousado para o fazer. – Não a revistaria toda. Apenas a zona onde se sabe que as mulheres escondem coisas. Para terror de Padua, Ives levantou as mãos na sua direção. Mas estava apenas a erguer os livros e a caixa, retirando-lhos dos seus braços. Ela não ousava respirar, não fosse começar a restolhar novamente. – Vamos – disse ele, apontando o braço na direção da porta. Ele não lhe devolveu os livros, transportando-os enquanto caminhava atrás dela. Ela manteve as costas muito direitas para que as notas não se mexessem de todo. Ives ofereceu-lhe a mão para a ajudar a descer a escadas e acompanhou-a até à saída do edifício. Permaneceu a seu lado enquanto ela caminhava pela rua abaixo. – A minha carruagem é esta. Eu levo-a de volta a casa de Mrs. Ludlow, para que não ande pelas ruas de Londres sozinha à noite. – Apontou para a requintada


carruagem mais à frente. A sua oferta ajudava muito, mas um pequeno sinal de cautela ecoou no seu interior. – Mrs. Ludlow irá provavelmente fechar os olhos à minha saída, se eu chegar na sua companhia – disse ela. – É o tipo de mulher que pressupõe que as pessoas da sua estirpe merecem os seus privilégios e a nossa confiança. – Ai, é? Que conveniente. – Vincos encantadores enquadravam-lhe o sorriso. – Ainda assim, seria melhor eu tratar do meu próprio transporte. – Não o admitirei. Abriu a porta da carruagem e deu-lhe a mão, ajudando-a a subir. Colocou a caixa das luvas ao lado dela e depois acomodou-se à sua frente, com os livros a seu lado. Ao ver a caixa, os pensamentos de Padua foram novamente transportados para as cartas no seu interior. Pousou a caixa no colo e levantou a tampa pelas dobradiças. Alguns adornos haviam sido deixados lá dentro com as cartas. Remexeu o interior e puxou para fora um lencinho. Era da mãe. Ergueu-o até ao nariz e um aroma familiar invadiu-lhe o espírito. Surgiram memórias, todas da infância, naquela idade em que uma mãe ainda nos pega ao colo e abraça sem qualquer outro motivo senão por amor. Não contava que um lenço a pudesse comover tão profundamente. Será que o pai por vezes, à noite, segurava no lenço para a poder cheirar novamente? Os olhos de Padua turvaram e começaram a arder. Voltou-se na direção dos livros no assento de Ives, esticando-se. Ele mexeuse para a ajudar nesse mesmo momento e a mão dele pousou na sua. Ele não a retirou, mantendo a mão dela sob os seus dedos. Ele inclinou-se tanto como ela, na sua direção, até que os seus rostos distavam meros centímetros. – Está a chorar. – O polegar da sua mão livre limpou-lhe uma lágrima. – Porquê? Padua abriu a outra mão para mostrar o lenço. – Era da minha mãe. Ainda o reconheço. Ainda... A voz ficou embargada. – Pensei em enfiá-lo num dos livros para ele o encontrar. Achei que lhe podia trazer algum conforto. Sem lhe soltar a mão, Ives agarrou no livro de cima e abriu-o. Estendeu-lho. Padua colocou o lenço no interior. Ele fechou-o e pousou-o de lado. – Impressiona-me a sua lealdade para com o seu pai, especialmente


considerando que ele praticamente a abandonou, tanto quanto pude perceber do que me contou. – Tenho-me sentido zangada com ele por isso. Mas li nestas cartas coisas que explicam uma parte da história. Tinha-me esquecido de que ele nem sempre foi aquele homem estranho que vemos agora. Quando eu era mais nova, ele mostrava resquícios de ambição e potencial. Se não tivesse sido subjugado pela escravidão da vida... se ambos não tivessem sido subjugados... quem sabe como tudo poderia ter sido. – Parece-me que se considera parte dessa escravidão. Espero bem que não. Padua não conseguiu responder. Estava demasiado sufocada em lágrimas. A mão de Ives segurou a sua mais completamente. Com a outra, fletiu um dedo sob o queixo dela e ergueu-lhe a cabeça. – Que tamanha perda, se não tivesse nascido, Padua. Para o mundo, mas sobretudo para eles. O seu pai não teria ninguém agora a lutar por ele. A sua mãe não teria tido ninguém ao cuidado de quem o pudesse entregar e teria tido menos paz ao falecer. E eu nunca teria conhecido a raridade que é Padua Belvoir. O seu olhar hipnotizava-a. As suas palavras comoveram-na profundamente. Mal conseguia respirar. Ela esperou e deu conta de uma chocante expectativa. Uma esperança irrefletida. Um ligeiríssimo movimento quando ele se afastou um centímetro. Que desiludiu o mágico entusiasmo do seu coração e da sua mente. E, ainda assim, conseguiu ficar surpreendida quando ele se inclinou apenas o suficiente para a beijar. Um beijo sólido, não apenas uma breve ligação de piedade ou amabilidade. Um beijo de inconfundível paixão. A excitação do seu corpo lançou-se numa dança pagã. Padua não o deveria permitir, mas permitiu. Não tinha lógica alguma este homem querer beijá-la e, no entanto, sentiu a inevitabilidade de ele o fazer. Aquele beijo deu expressão a uma intimidade que se gerou entre eles desde o primeiro instante e, naquele preciso momento, com as suas emoções em bruto ao ler aquelas cartas, Padua precisava de se sentir próxima de alguém. Não foi demasiado longo, embora a sensação tenha sido de que durou bastante. O suficiente para que ele lhe envolvesse o rosto com ambas as mãos. O suficiente para que o beijo se transformasse em mais do que uma suave carícia. Ela nada fez para o encorajar, mas também nada fez para o impedir. Aceitou e permitiu que o motim de emoções que ele despertou saísse vencedor. Deu conta de que a carruagem parara. E o beijo também. Ele continuou a segurá-la, as mãos firmes inclinando-lhe o rosto contra o seu. Olhou-a


profundamente nos olhos, soltando-a em seguida, abriu a porta da carruagem e saltou para fora. Ela desceu. Estavam a um quarteirão da escola. Ele esticou-se para o interior da carruagem e agarrou na caixa das luvas, entregando-lha. – Chegou a tempo, assim o espero – disse ele. Padua caminhou em direção à escola, aturdida, registando com uma especificidade indecorosa as diversas formas como aquele beijo a havia excitado. Ele acompanhou-a, também em silêncio. Quando se separaram em frente da casa, ele pousou-lhe um levíssimo beijo na face. Ela sentiu-o durante todo o percurso em torno do edifício e ao entrar no jardim. – Espere aqui – indicou Ives ao cocheiro, voltando atrás. – Vou dar uma volta. Desceu a rua no sentido contrário ao da escola. A última luz do crepúsculo ainda raiava no céu do ocaso com tonalidades de laranja sanguínea, mas a noite já caíra sobre as ruas. Receava que Mrs. Ludlow pudesse apanhar Padua no regresso e questionou-se sobre o que sucederia se assim fosse. Por mais que procurasse ocupar o espírito com estes receios, revelou-se um esforço em vão. Pelo contrário, os seus pensamentos desviavam-se para o impulso que o levara a beijar Miss Belvoir e os outros impulsos que, com dificuldade, havia suprimido enquanto o fazia. Fora uma loucura. Uma estupidez. Indigno dele. Ives não se impunha a mulheres jovens. Não roubava beijos. Organizava essa dimensão da sua vida com discrição e cautelas ponderadas. Não era o seu estilo a sedução de mulheres virtuosas. As suas mulheres eram experientes e voluntárias, todas haviam sido amantes de outros homens antes dele. Não era ele quem as conduzia para aquela vida e, tanto quanto era do seu conhecimento, nenhuma delas queria uma vida diferente. E no entanto, naquela tarde... ele devia estar a calcular como reparar a situação e a formar a sequência de palavras para o seu pedido de desculpa. O que não devia, sem dúvida nenhuma, era sentir-se tão empolgado. O sorriso que não conseguia apagar do rosto seria incriminatório, se alguém o visse. Nunca seria adequado. Ela nunca seria adequada. Ele nunca seria adequado para ela. Mesmo que esta história com o pai não tornasse qualquer continuação ainda mais complicada – e não podia haver nenhuma continuação, não haveria, é claro, decididamente, jurou –, ela não era mulher para ele.


E, contudo, aquele beijo dera-lhe muito mais prazer do que qualquer outro primeiro beijo em muitos anos e, agora, permitia-se um estado de prolongado maravilhamento com o seu prazer fresco e nítido, enquanto caminhava em círculos por vários quarteirões, criticando-se severamente em vão. Com desalento, Padua reparou nas luzes que vinham das janelas do andar de cima. Quando abriu a porta do jardim para entrar em casa, parou e pôs-se à escuta de sons que pudessem indicar que algumas raparigas já tivessem terminado a refeição. – Imaginei que regressaria por aqui. Ao ouvir aquela afirmação, o corpo de Padua ficou rígido. Prendeu a caixa e os livros contra o peito. Mrs. Ludlow entrou na sala, de vela na mão. A luz transformava-lhe o rosto no de um fantasma roliço e triste. – Precisei novamente de tratar de assuntos de família – explicou Padua, na esperança de soar inocente. – Imagino que sim. – Mrs. Ludlow pousou o castiçal numa mesa. – Tenho estado à sua procura para lhe falar desse assunto de família que a tem ocupado nos últimos tempos. O coração de Padua encolheu. – O que quer dizer? – Penso que sabe. – Suspirou e depois aproximou-se. – Recebi uma carta de Mr. Peabody. É solicitador. Sabia? A filha dele fala muitas vezes de si, pelo que o nome Belvoir captou a sua atenção quando ouviu dizer que um homem com esse nome tinha sido preso, para ser julgado por contrafação. – Ia dando leves pancadinhas nos olhos com o lenço. – Diga-me, por favor, que não é um familiar seu. Se me disser que não é, eu acredito em si. Padua pousou os livros e a caixa e tomou Mrs. Ludlow nos seus braços. – Não lhe vou mentir. Tive a esperança de que, até ao julgamento, o caso não chamasse demasiado a atenção. – Oh, céus. Oh, meu Deus. – Mrs. Ludlow choramingou. – Não ouso... Lamento, mas eu... – Sairei de imediato. Esta noite. – Esta noite! Espero não ter de a atirar para a rua a meio da noite. – Fungou. – Ou será que tenho? – Talvez seja o melhor a fazer. – Para onde irá?


– Encontrarei algum lugar. – Com trinta libras dentro do vestido, contava encontrar algum lugar. Graças a Deus, o pai tinha escondido aquele dinheiro. Graças a Deus, ela encontrara-o. – Não, não o permitirei – disse Mrs. Ludlow, recompondo-se. – Amanhã será mais do que a tempo. Dormirá aqui e tomará o pequeno-almoço e, nessa altura, contaremos às meninas. Vai despedir-se e, se Mr. Peabody não gostar, pois temos pena. Esta escola é minha, não dele. Padua beijou-a na testa. – Foi sempre muito amável comigo. Agradeço-lhe. – Pegou nos livros e na caixa e subiu ao quarto. Começou a fazer a mala, dizendo a si mesma que tudo correria bem. Na verdade, estava agoniada. O futuro afigurava-se-lhe um vasto oceano cinzento, sem terra à vista e nenhuma esperança de salvamento. Tinha encontrado satisfação naquele lugar. Não estivera sozinha. Agora, aonde quer que fosse, não teria sequer o lar que a escola havia representado para ela. A porta entreabriu-se e Jennie esgueirou-se para dentro do quarto. Viu a mala e caiu numa expressão de desalento. – Oh, não. – Oh, sim. Parto amanhã. – Porquê? Padua percebeu que Mrs. Ludlow não tinha partilhado a história que Mr. Peabody lhe contara. Jennie ainda não sabia. – Recebeu mais uma queixa de um dos pais. Não teve outra opção. Eu teria feito o mesmo. – Para onde vai? – Vou procurar um hotel ou uma estalagem. – Não pode viver para sempre num sítio desses, mesmo poucas noites custarão muito dinheiro. – Voltou-se para a porta. – Não tenho muito, mas vou buscar para... Padua agarrou-a pelo braço. – Não o aceitarei, por isso, não saia. Mas nunca esquecerei que o ofereceu. Jennie sentou-se na cama. – Sentir-me-ei sozinha, quando se for embora. Tem de prometer que cuidará bem de si. Tem de me informar onde está e que está segura. Padua fechou a mala. Sentou-se ao lado de Jennie e abraçou-a. – Também sentirei a sua falta. Talvez possa vir visitar-me. Mrs. Ludlow gosta de si e, se lhe pedir, ela permitirá que visite uma velha amiga de vez em quando.


– Encontrarei uma forma de me encontrar consigo, logo que me dê notícias. Receio bem não conseguir dormir enquanto não o fizer. – Não se preocupe comigo. Já antes me desenvencilhei sozinha. Não tenho medo. A minha educação foi diferente da sua. Levantou a mala e pousou-a no chão. – Bem, acho que é melhor ir jantar. – Sim, junte-se a nós. Caminharam juntas até à sala de jantar e ocuparam os respetivos lugares na mesa principal. Padua estava contente por ter esta refeição antes de as meninas saberem que se iria embora. Proporcionava-lhe uma pausa com emoções normais, apesar de, no fim, Jennie e Mrs. Ludlow revelarem uma expressão triste. Nessa noite, as suas alunas especiais também a visitariam para a aula de Matemática, sem saberem que seria a última. E depois, no dia seguinte, já teria partido.


CAPÍTULO 7 ves saltou da carruagem pouco depois do meio-dia. Caminhou na direção de uma figura junto ao pórtico da Escola de Meninas de Mrs. Ludlow. – Está um belo dia, não está, Miss Belvoir? Padua ergueu o olhar que antes estava ocupado a procurar algo dentro da bolsa. Uma mala jazia a seu lado. – Ah. O senhor. O que faz aqui? – Esta manhã recebi uma carta de Mrs. Ludlow. Tinha sido enviada para a casa do meu irmão e um mensageiro trouxe-ma. Ela pensa que sou advogado dos seus familiares e quis assegurar-se de que não ficava entregue a si mesma. Fora uma carta peculiar, cheia de mal-entendidos sobre o seu papel na vida de Padua. Por um lado com mexericos e confidências, por outro com palavras de uma mãe com sentimento de culpa e preocupada com a sua filha, Mrs. Ludlow tinha sido extremamente eficaz a não lhe dar outra alternativa senão interferir no assunto. – Sente-se culpada. Mas não deveria. – Se calhar sentiu-se apenas responsável. – Apontou para a mala. – Isso devese à noite passada? Ela viu-me consigo? – Tem que ver com o meu pai. – Pegou na mala. – Eu estava mesmo a sair para alugar uma carruagem, mas, já que aqui está, o seu criado poderá levar-me e assim poupo o frete. Ives tirou-lhe a mala da mão. – No mínimo, levá-la-emos aonde queira ir. Contudo, quem sabe se eu entrar e falar com Mrs. Ludlow, talvez a consiga convencer a deixá-la ficar. – Por favor, não faça isso. Ela já está tão perturbada que até poderia concordar e a escola sofreria com isso. Provavelmente será melhor assim. Neste momento tenho coisas para tratar que me exigem sair e andar pela cidade. Não posso continuar a sair às escondidas. Cá me arranjarei, e encontrarei outro emprego.

I


Ives colocou a mala na carruagem e ajudou-a a subir. – Para onde deseja ir agora? Ela acomodou-se. – O meu pai tem aposentos que não está atualmente a usar. Mais vale usá-los eu. A renda está paga durante algum tempo. Diga ao seu criado que me leve até à Wigmore Street. Ele subiu e sentou-se à frente dela. – Não. – É a solução mais lógica para a situação em que me encontro atualmente. – Não posso permiti-lo. Se ficar a viver ali, só continuará a atrair as atenções que já fez por captar. – Parece-me que não importa o que o senhor permite ou deixa de permitir. Espero que não seja um daqueles homens que acredita que um beijo lhe dá o direito de dar ordens a uma mulher. – Trata-se do seu bem-estar. Irá suscitar as piores suspeitas se for viver para os aposentos do seu pai. Mas o que mais me preocupa é que os seus cúmplices sabem da existência daqueles aposentos e poderão muito bem fazer-lhe uma visita. É demasiado esperta para correr o risco de atrair a atenção deles também. Padua não contestou de imediato o seu raciocínio. – É muito bom advogado, não é? – disse ela, por fim. – Foi impecável. Muito bem dito. Estou sem argumentos para esta discussão. – Gosto de pensar que sei ser persuasivo quando quero. – É extremamente persuasivo. E vou pagar caro por isso. Parece que irei esta noite para um hotel e passar os próximos dias à procura de aposentos para me instalar. Quem sabe não me poderá recomendar um hotel adequado a uma mulher sozinha e com alguns meios, mas longe de ser abastada. – Conheço um sítio excelente que será esplendidamente adequado a si, pelo menos durante alguns dias. Ela ficou tão rígida que a cabeça se ergueu um centímetro. – E onde fica esse sítio? – Já verá. – Virou-se e indicou a rua ao cocheiro. Quando se voltou novamente, a sua postura perdera já a rigidez. – Estava preocupada que eu indicasse a minha casa, não é verdade? – perguntou ele. – É claro que não. Foi apenas um beijo. Bem, dois. Nunca deve pressupor que eu estaria recetiva a permanecer em sua casa após uma tão pequena intimidade.


– Apenas um beijo? Pequena intimidade? Sinto-me ofendido, Miss Belvoir. – Penso que vê as coisas da mesma maneira e que ficou tão espantado como eu por ter acontecido. Como ela estava enganada. Aquele beijo já andava no ar havia dias. No silêncio escuro da carruagem, os sucessores daquele beijo clamavam por serem libertados. Ives tinha dúvidas sobre se ela estaria a sentir a mesma expectativa, mas o ambiente no espaço confinado crepitava com a atmosfera carregada de desejo. O seu lado malicioso começou a argumentar a favor de ser malcomportado. A carruagem parou. Padua olhou pela janela. – Isto não é um hotel. – É um local onde estará segura e será bem tratada. – Ele abriu a porta, saiu e ofereceu-lhe a mão. Ela desceu e inclinou a cabeça para trás para olhar pela fachada acima. – Onde estou? – Esta é a casa da minha família. É a casa de cidade do duque de Aylesbury. – Pelo tamanho, parecem dez casas. – Por isso mesmo, tem mais do que espaço suficiente para si. – Agarrou na mala e entregou-a a um lacaio que descera da porta. – Venha. Vou tratar de a instalar. Esta noite partilhamos o jantar. E depois deixo-a perder-se ali dentro a seu bel-prazer. Terá privacidade. Não está neste momento mais ninguém, com exceção dos criados. Avançou alguns passos, mas depois hesitou. – Insisto que permita que a carruagem me leve a um hotel. – Mrs. Ludlow nomeou-me responsável pela sua segurança. Ficaria muito grato se não me tornasse a missão ainda mais difícil. – Suponho que, se o coloca dessa forma... Aceitou que ele o acompanhasse até à porta. – Não devo permitir que um beijo inexplicável me faça suspeitar das suas intenções. – É muito generosa. Padua concordou em aceitar a oferta de abrigo, em parte porque a consumia a curiosidade sobre o interior da casa. Ives vivia luxuosamente sozinho e ela suspeitava de que a sua casa de família a impressionasse ainda mais. A mansão não a desiludiu. Só o átrio de entrada tinha capacidade para


albergar um apartamento de dimensão considerável. Uma escadaria ascendia por um vão acima, dando voltas e voltas ao longo de cinco andares. Objetos decorativos e quadros de valor incalculável decoravam as mesas e as paredes. Sentiu o ímpeto de não mais do que sussurrar, não fosse perturbar os nobres fantasmas que ali viviam. Ives entregou-a ao cuidado de uma governanta, que a conduziu até um belíssimo quarto, lá em cima, no terceiro andar. De uma elegância quase espartana, Padua apreciava a colcha da cama e os cortinados e o mobiliário de mogno requintadamente trabalhado. O elemento mais decorativo, em lugar de honra sob uma janela, era uma pequena e lindíssima secretária com padrões multicoloridos encastrados nas superfícies de ébano. Era como uma contrastante nota de excesso e excentricidade face à melodia simples que o quarto entoava. Imaginou-o coberto de livros. Estudá-los-ia à vontade à luz de um bom candeeiro, em vez de uma hora aqui e ali quando o coto de uma vela lhe oferecia um resquício de luz à noite. Surgiu uma rapariga para a ajudar a desfazer a mala e a lavar-se. Os criados agiam como se estivessem à espera da sua visita e como se não tivesse uma aparência muito mais pobre do que qualquer um deles, sendo por isso uma estranha visita naquela casa. Quando se viu finalmente sozinha, sentou-se na cama e ali ficou maravilhada com a súbita mudança das circunstâncias. Não seria duradoura, mas por um ou dois dias não teria de se preocupar com um lugar onde dormir e com o que comer. Como será nunca, mas nunca termos de nos preocupar com este tipo de coisa? Não conseguia imaginar plenamente uma vida assim, mas, por momentos, teve uma ideia de como poderia ser. O facto de Ives se ter tornado seu benfeitor perturbava a sua satisfação. Ele ajudara mais do que o necessário. Talvez se sentisse culpado por aquele beijo. Talvez até se tivesse arrependido, sentindo-se tolo. Provavelmente ela não era o género de mulher que ele beijava na maioria das vezes. Ele teria certamente concluído que, por uma questão de sensatez, nunca deveria ter deixado que a solidariedade pela sua angústia com aquelas cartas o tentasse a reconfortá-la propriamente daquela maneira. Ela não era tão pateta a ponto de apostar muito naquele beijo, apesar de ter sido muito agradável. Nem era infantil a ponto de fingir que não acontecera. Ainda assim, quanto menos se falasse do assunto, melhor.


Ela deixaria que o episódio deslizasse imediatamente para o passado, de modo a não afetar as suas relações a partir daquele momento. O que não queria dizer que não pudesse apreciar a sua recordação durante muito tempo. No final desse dia, a rapariga que tinha ao seu serviço comunicou-lhe que o jantar estava servido. Vestida como estivera o dia todo, Padua desceu a escadaria. Ives encontrava-se indolentemente reclinado num cadeirão do átrio de entrada. Ela ficou a observá-lo antes que ele a ouvisse e parou para o encarar. Tinha trocado de roupa para jantar. A casaca e as calças escuras, bem como as botas, conferiam-lhe uma forte presença naquele cadeirão, apesar da pose descontraída. O seu rosto em repouso ostentava toda a sua fina beleza e a sua expressão, profundamente perdida em pensamentos, suscitava a vontade de saber o que lhe ocupava o espírito. A expressão dos olhos evocava a que vira mesmo antes daquele beijo, só que agora a atenção estava voltada para o interior. E depois ele desviou esse mesmo intenso olhar na direção de Padua. As pernas dela vacilaram. Ele ergueu-se. – Espero que esteja com fome. O cozinheiro andou muito atarefado. – Estou esfomeada. Contudo, será sensato estar aqui comigo, considerando o seu envolvimento no caso do meu pai? – Só se permitir que influencie o meu discernimento. Esta será a nossa regra nesta refeição: não se fala da situação do seu pai. Far-lhe-á bem uma pausa de toda essa apreensão. Ives acompanhou-a até à sala de jantar. Aquela sala majestosa intimidou-a. A mesa nunca mais acabava. Só os cortinados tinham custado provavelmente mais dinheiro do que a sua mala alguma vez conseguiria albergar. Dominavam os tons de azul e vermelho, com muito prateado e dourado a refletir as luzes dos grandes candelabros. – Deus do céu – murmurou, olhando para todo o lado enquanto absorvia tudo. – Um pouco fora de moda, talvez algo colorido de mais – disse Ives. – O meu falecido irmão, o último duque, recusava-se a mudar a decoração até que se casasse, o que nunca veio a acontecer. – E o duque atual? – Também é solteiro e não se interessa grandemente por esse tipo de coisa. – Pelo casamento ou pela decoração?


– Ambos. Por isso, é muito provável que, durante muitos mais anos, se mantenha como foi a minha vida toda. – Não consigo imaginar como é conhecer sempre este luxo. Deixa de ter noção, por estar tão habituado? – Suponho que sim. Ives ofereceu-lhe a mão para a conduzir até à mesa. Estavam sentados frente a frente, numa das extremidades. – Pelo menos não teremos de gritar para nos fazermos entender. – Padua sentou-se. – Teria sido impossível conversarmos grande coisa, consigo lá ao fundo e eu aqui. Se calhar teríamos de enviar mensagens por um cãozinho a correr entre nós. A ideia divertiu-o, talvez porque era evidente que não seria preciso um cão, já que tinham ao seu serviço criaturas de duas pernas. Os lacaios entraram para servir a refeição, que começou com uma saborosa sopa de peixe. – Eles vão ficar aqui em pé o tempo todo? – perguntou ela quando os lacaios assumiram os seus postos perto da porta. – Apenas quando não estiverem a ser necessários. Foi preciso um lacaio para servir um vinho diferente. O outro desapareceu e regressou com o que parecia ser borrego com um molho maravilhoso. Não comia desde o pequeno-almoço e não se esforçou minimamente por esconder que achava a comida divinal. – Vou ficar mal habituada. Estou a começar a regozijar-me por Mrs. Ludlow me ter convidado a sair. – Mrs. Ludlow não era generosa na alimentação? – Alimenta as meninas e as professoras suficientemente bem. Mas o cozinheiro é um bêbedo, por isso só raramente as refeições são bem confecionadas. – Se calhar deveria fundar uma escola com comida de melhor qualidade. – Isso seria impossível. Ele olhou para ela, perplexo. – Mrs. Ludlow só tem aquela escola porque herdou a casa – explicou. – É preciso ter um edifício para ter uma escola, e tem de ser muito grande para albergar alunas internas. Eu nunca teria dinheiro para comprar uma casa em Londres, por isso, para tentar a minha sorte teria de o fazer numa cidade distante. – Conseguirá obter outra posição a ensinar noutra escola? – Mrs. Ludlow poderia sentir-se obrigada a referir o meu pai na sua carta de recomendação. Mas tenho uma recomendação mais antiga que posso usar em


vez disso. Contudo, não está isenta de reservas, infelizmente. Além disso, será preciso explicar os últimos anos. Uma vez mais, se eu for para uma cidade longe daqui... – Isso afastá-la-ia demasiado do seu pai. – Franziu o sobrolho e pousou o garfo e a faca. – Se não puder ensinar, que fará então? – Tenho algum dinheiro que poupei para outros fins, mas dar-me-á subsistência, se for preciso. Além disso, a minha mãe costumava trabalhar como contabilista para pequenos comerciantes enquanto me criava. Podiam pagar-lhe muito menos do que a um homem, pelo que não era difícil convencê-los a contratarem uma mulher por esse motivo. Se necessário, disponibilizarei os meus serviços da mesma forma. Ives reagiu com uma expressão insondável. Pediu mais vinho e depois disse ao lacaio que deixasse a garrafa. Veio outro prato, uma pequena ave de caça com tubérculos a acompanhar. Padua provou. Faisão. Avançou, reparando que Ives não tinha voltado a tocar na sua refeição. Ele olhava para ela, avaliando-a friamente, muito à semelhança do que acontecera naquela primeira noite quando ela se apresentou em sua casa sem ser convidada. – Que outros fins? – perguntou. – Disse que tinha poupado dinheiro para outros fins. Padua hesitou. Nunca partilhara o seu sonho com ninguém. Todavia, percebeu que queria contar-lho a ele. Tinha orgulho nos seus planos, por mais estranhos que lhe pudessem parecer. – Faço tenção de ir estudar para Itália. Há lá várias universidades que permitem que mulheres se apresentem a exame para concluírem os seus estudos superiores. Uma sobrancelha de Ives ergueu-se, mas ele não fez troça nem se riu. – Que universidades o permitem? Confesso que nunca ouvi falar de tal coisa. – Pádua, Bolonha e Pavia já concederam diplomas de estudos superiores a mulheres. Bolonha teve até mulheres docentes. Mas pretendo ir para Pádua, porque é onde a minha mãe estudou e tenho os nomes de pessoas de lá que me poderão ajudar. Falar sobre os seus planos fez com que a sua excitação só de pensar neles borbulhasse na sua imaginação. – Mrs. Ludlow referiu que a sua mãe havia frequentado a universidade. Pressupus que se tinha enganado. Quer então seguir as suas pisadas. Vai tentar fazer estudos de Matemática?


– As perguntas nos exames podem dizer respeito a qualquer uma das artes ou ciências. Parecia uma mulher louca, sabia disso. Ainda mais louca do que se calhar imaginava. Nos últimos anos não estudara com a intensidade que o seu sonho exigia. O dinheiro que possuía, mesmo as trinta libras que encontrara, desapareceriam em breve. Continuara a aperfeiçoar os seus conhecimentos de latim enquanto permanecera na escola de Mrs. Ludlow, mas o seu domínio do italiano, que lhe fora ensinado pela mãe, estava muito enferrujado devido à falta de uso. Padua remexeu o faisão. O seu entusiasmo perdeu intensidade sob o peso da impossibilidade do seu plano. – Tenho muito que recuperar. Passar-se-iam anos até conseguir passar nos exames. Pode até já ser demasiado tarde. – Duvido que assim seja. Mas o que a impediu de avançar? Tem estado à espera de poupar dinheiro para depois fazer os seus estudos? Seria tão fácil dizer simplesmente que sim. Se calhar foi o vinho que a levou, pelo contrário, a dizer a verdade. – Em tempos tive o dinheiro, quando vivia e ensinava em Birmingham – contou. – Mas desviei a minha atenção do meu objetivo. O dinheiro perdeu-se e tive de começar de novo. O olhar de Ives invadia o dela, curioso e inquiridor. Mas depois a sua expressão foi tocada pela compaixão. – Referiu uma recomendação com reservas. As reservas devem-se a esta distração que afetou a sua reputação? A sua atenção desviou-se por causa de um homem? – Como tinha ele adivinhado? – O patife roubou o dinheiro? Foi assim que o perdeu? O rosto de Padua ardia violentamente. – O velhaco mentiroso não me deixou um tostão. – Bem, pelo menos ficou a saber ao certo que tipo de pessoa ele era. Não ficou a imaginar ou a consumir-se. – Mas que sorte a minha. Pude consolar-me com o facto de ter sido uma perfeita idiota, do princípio ao fim. Muito melhor do que guardar algumas memórias decentes que poderiam desculpar o meu fraco discernimento. A gentileza que conseguia aquecer o olhar de Ives surgiu inesperadamente nesse momento. – Mil perdões. É claro que deve ter ficado desapontada e magoada. Eu não deveria ter tentado fingir que havia um lado positivo em toda a história.


Padua baixou o olhar para o prato, debatendo-se enquanto revivia a humilhação que sentira quando ficou efetivamente a saber que tipo de vigarista era Nicholas. Desapontada não descrevia suficientemente as suas emoções naquele dia. Ficara desvairada de fúria. – Não peça perdão. Tem toda a razão. É melhor saber a verdade. Fez-se silêncio. Ela manteve o olhar em baixo e obrigou as memórias a regressarem ao passado. – Estava errada, hoje, quanto àquele beijo – disse ele. – Não foi inexplicável. Certamente sabe disso. Padua ergueu o olhar, surpreendida. – Da minha perspetiva, inexplicável é uma palavra adequada – disse ela. – Não acredito que seja assim tão desconhecedora dos homens, Miss Belvoir. Acabou, aliás, de o admitir. Esses seus olhos brilhantes veem tudo muito claramente, parece-me. – Tenho a certeza de que o senhor beija muitas mulheres. Mas o facto de me ter beijado a mim faz muito pouco sentido. Daí ser inexplicável. Não sou uma pessoa elegante. Bem pelo contrário, de formas muito evidentes. Regra geral, os homens não costumam beijar-me por impulso. – Que parvoíce a deles. – Ives tinha os olhos ardentes. Santo Deus, estava diabolicamente atraente. Ives ergueu o decantador e verteu mais vinho no copo dela. – Aquele beijo também não foi nem de perto nem de longe tão impulsivo como possa pensar. Tenho desejado beijá-la desde o primeiro momento em que a vi em minha casa, há alguns dias. – Pode não ser impulsivo, mas se calhar pelo menos precipitado? – respondeu ela friamente, escondendo o melhor que conseguiu até que ponto as palavras dele a haviam afetado. – Precipitado? Não, não o descreveria dessa forma. – Ele fingiu estar a refletir profundamente. – Deixe-me ver... não foi inexplicável, não foi impulsivo e não foi precipitado. – Esboçou um sorriso matreiro. – Parece-me que estamos a chegar à conclusão de que foi uma muito boa ideia, Miss Belvoir. – Eu não estou a concluir isso. – Então já a devia ter beijado há mais tempo. Ele fisgou-a com o olhar. Olhou para ela como se ponderasse corrigir o erro já ali mesmo. Ela sentiu-se vibrar com um arrepio delicioso. Não conseguia desviar o olhar daquela nova luz sensual que via nos olhos dele. – Revela ser tão pouco convencional nos seus planos... que estou quase


inclinado a passar hoje a noite nesta casa – disse ele. – É extraordinariamente honesto. E muito perverso. – E a senhora, Miss Belvoir? É suficientemente honesta para admitir que não se importou nada com aquele beijo? – Não sou suficientemente perversa, isso é certo. – Não acredito que pense ser perverso admiti-lo, nem apreciá-lo. Não, de facto não pensava. Objetivamente, ao analisar à distância, não tinha apetência por muitas das noções que a sociedade defendia nestes assuntos. Não fora educada por pessoas conformadas aos costumes comuns. Por esse motivo havia sido uma presa tão fácil para Nicholas. Mas mesmo essa experiência não a convencia de que faziam sempre sentido as regras da negação. Naquele momento, este tipo de reflexões filosóficas não lhe servia de grande coisa. Com este homem, era como se estivesse no alto de um muro em equilíbrio instável. Um só sinal, um encorajamento e, suspeitava ela, ele não sairia daquela casa. Na manhã seguinte, já teria sido seduzida. Inevitavelmente. E só de olhar para Ives, sê-lo-ia esplendorosamente. Padua recuperou a voz. – Independentemente daquilo que penso sobre as convenções, estaríamos ambos a pôr em risco as nossas posições, se nos deixássemos levar por paixões volúveis. Ele lançou-lhe um olhar verdadeiramente perverso. – Ah, é uma mestre da lógica. Que inconveniente. Então... se não fosse pelas nossas «posições», como disse, pensa que apreciaria ter um caso amoroso comigo? Que pergunta escandalosa. Contudo, aquela malícia temerária tinha algo inexplicavelmente arrebatador. – Suponho que as mulheres com quem tem casos amorosos o achem pelo menos tolerável, por isso comigo não seria com certeza diferente. Ele sorriu face ao tom afetado. – Esforço-me por ser mais do que tolerável. – Que generosidade a sua. – Se as mulheres com quem tenho casos amorosos forem honestas quanto ao que lhes dá prazer, é difícil não ser generoso. – Honestas quanto... Quer dizer então que debatem essas questões? Que... interessante. – Prefiro uma abordagem direta. É benéfico para ambas as partes.


– Fico espantada por saber que as senhoras de bons costumes abordam sequer esse tipo de coisas, quanto mais falar delas diretamente. – Não me interesso normalmente por senhoras de bons costumes. Deixo as suas delicadas sensibilidades para outros homens. Os meus irmãos, por exemplo. – Qualquer senhora, então. Qualquer mulher. Esta conversa, por si só, é para mim espantosa, por ser tão direta, e considerando que não corro perigo de vir a ser uma das suas seduções. Ele inclinou-se para a frente, tornando a conversa mais próxima. Pousou a mão na mesa, tão perto da mão dela que Padua contou com uma carícia. – Se não está em perigo, isso acontece simplesmente por não acreditar em seduções. Isso pressupõe lisonjear uma pessoa até que faça algo que não crê que deva fazer. Eu prefiro negociações e essas nós já começámos. Hipoteticamente falando, evidentemente. Padua olhou de relance a mão que se encontrava a um mero centímetro de distância da dela. Imaginou aqueles dedos a mexerem-se ligeiramente e a passearem-se pela sua pele. Ele estava a provocá-la deliberadamente. E isso não tinha nada de hipotético. – Então, hipoteticamente, acha que apreciaria ter uma relação amorosa comigo, Padua? Ah, então agora passava a ser Padua. O primeiro passo para a familiaridade. – Isso depende das negociações diretas, não é? – É uma mulher inteligente. Gosto disso. Pressuponho que não esteja a referir-se a contratos e propriedade, e as demais coisas que as amantes gostam de discutir. – Do meu ponto de vista, essas negociações deveriam vir depois das primeiras. – Não só é inteligente como sábia. – Posso estar enganada, mas parece-me que tem um motivo para ser direto. Uma mulher teria o direito de saber que motivo é, antes de encher o espírito com visões de joias e um guarda-roupa novo. Ives riu-se. – A Padua é efetivamente uma raridade, se as joias não lhe derem a volta à cabeça e não assumirem o primeiro plano das negociações. Ou quem sabe lhes dá menos valor do que outras mulheres. – Não sou nem sábia nem inteligente, e espero bem não ser uma raridade. Guio-me apenas pela intuição feminina. Diga-me então o senhor. Apreciaria eu ter um caso consigo? Ou é um daqueles homens com noções muito peculiares de


prazer? Desta vez foi a franqueza dela que o surpreendeu. Por um instante, pareceu ter sido apanhado desprevenido. Ótimo. Mas recuperou num ápice. Claro que sim. – Já que é uma pessoa bem informada, pressuponho que saiba a que se refere. Prometi ser honesto e honesto serei. Não me considero peculiar. Não sou um bispo, lá isso é verdade. Todavia, também não sou o marquês de Sade. – Fico feliz em saber. No contexto hipotético da nossa conversa, claro está. – E quanto a si, Padua? Seria avessa a prazeres mais aventureiros? Foi a vez de ela ser apanhada desprevenida. Padua bebericou o vinho. O líquido vermelho-escuro revolvia-se na zona do nariz. Claramente, tinha apreciado demasiado o vinho naquela noite. Aonde ela tinha chegado... A falar de temas pouco próprios com um homem que, num sentido muito real, era seu inimigo. Pior ainda, ela estava absolutamente a apreciar a conversa. Era mais do que tempo de lhe pôr um fim. Padua pousou o copo. Retirou a mão da mesa. – Já que estamos a jogar um jogo, concedo que um bispo seria sem dúvida bastante entediante. Até para uma mulher com tão pouca experiência como eu. Mas estava enganado ao dizer que não dou valor às joias. Neste momento, na situação em que me encontro, seria uma tolice não as valorizar, e muito. Ele observou-a de perto. Ela aguentou, desejando que o seu olhar não a excitasse. Não podia culpar o vinho por todo aquele calor e formigueiro. – Parece-me que acabou de abrir a porta a uma proposta, Padua. – Seguramente não! Ives levantou-se. O coração de Padua batia com tanta força que o conseguia escutar dentro dos ouvidos. Ives caminhou na sua direção. Ela observou-o como se o tempo estivesse a abrandar. Ele colocou-se de pé ao lado da cadeira de Padua. Ela sentiu-o tão completamente que ele podia tê-la abraçado. Algo dentro dela... uma imprudência que nunca soubera existir no seu interior... queria que ele o ousasse, que vencesse a sua sensatez com um único toque. – É melhor eu partir agora, caso contrário já não o farei de todo. – Ergueu a mão de Padua, curvou-se sobre ela e beijou-a. Ela sentiu aquele beijo a percorrer-lhe o corpo. Ives não se endireitou totalmente depois disso, mantendose suspenso sobre ela, olhando-a nos olhos. – É diabólico não conseguir aquilo que desejo, Padua. Normalmente consigo


e, neste preciso momento, eu desejo-a ferozmente. – Beijou-lhe os låbios levemente e, depois, afastou-se.


CAPÍTULO 8

P

adua não dormiu bem nessa noite. Apesar do vinho, ou precisamente devido a ele, deu voltas e voltas na sua cama de luxo. Os seus pensamentos eram repetidamente invadidos por imagens. Lord Ywain com um olhar perigoso. Lord Ywain com um olhar severo. Ives curvando-se para a beijar. Ives fazendo-lhe carícias. Ives nu... Quando, por fim, despertou, a sua perspetiva da noite anterior mudou drasticamente. Qual tinha sido a sua ideia? Comportara-se de forma escandalosa e não podia atribuir todas as culpas ao vinho. A conversa já não lhe pareceu apenas imprudente, mas sim imbecil. Céus, deveria abandonar imediatamente aquela casa, para não parecer que estava efetivamente a abrir a porta a uma proposta. A criada entrou logo que Padua produziu algum som. A rapariga estendeu-lhe uma carta e depois começou a fazer a cama. A carta fora escrita pelo homem que não acreditava em sedução, mas que, com a sua honestidade direta, conseguia ser extremamente sedutor. Cara Miss Belvoir, Confio que os criados a tenham feito sentir-se em casa. Faça uso da casa como bem entender. Não se apresse a sair por minha causa, nem por causa da minha família, já que nenhum deles tem planos para vir à cidade nos próximos tempos. Quando decidir o seu destino, ficar-lhe-ia grato se me informasse da localização. Um seu criado, Ives


Aparentemente, já não voltariam a partilhar jantares. A carta deixava bem claro que ele não regressaria àquela casa enquanto ela lá permanecesse. Mas não apresentou qualquer pedido de desculpa. Quem sabe não tivesse motivo algum para o fazer. Padua abriu um guarda-fatos e retirou um vestido limpo. A criada surgiu a seu lado, tirou-lho das mãos e retirou outras peças de roupa. Quando se afastou para dar passagem à rapariga, Padua reparou na pilha de livros no fundo do guarda-fatos. Tinha de os levar ao pai. Mas naquele dia não. Naquele dia, tinha intenção de usufruir daquela casa, como lhe ordenara o anfitrião. – O pequeno-almoço está servido na sala matinal – disse a criada. – Informei que já estava acordada, pelo que a comida quente estará servida em breve. Primeiro o pequeno-almoço, depois a biblioteca. Hoje tiraria umas pequenas férias e leria até não poder mais. Todas aquelas palavras e nobres ideias ajudá-laiam a esquecer quão imprudente havia sido na noite anterior. Bloqueariam as memórias de como o seu comportamento confrangedor permitira que a conversa levasse o rumo que levou. Contudo, antes de descer, sentou-se na encantadora secretária com encastrados e encontrou papel numa gaveta. Escreveu uma carta breve a Jennie, para que soubesse que tinha encontrado refúgio por um ou dois dias. Ou talvez três. Ives decidiu que, no dia seguinte, não gastaria um só minuto a pensar no Dilema de Miss Belvoir. De manhã, foi ao Jackson’s, na Bond Street, onde tinha combinado encontrarse com um velho amigo, Jonathan, Lord Belleterre, barão, para trocarem alguns golpes de pugilismo. Despidos até à cintura, punhos em cima, atiravam-se um ao outro. Ives empenhou-se no exercício com entusiasmo. Paf. Diabos o levassem se alguma vez se deixaria – paf – distrair outra vez. Qualquer interesse em Padua – paf – Belvoir era o resultado de uma abstinência – paf – a que não estava acostumado. Tinha ultrapassado um limite – paf – na noite anterior que certamente nunca – paf – jamais – paf – ultrapassaria outra vez. Não era um desgraçado de um rapazinho imberbe a precisar que lhe ensinassem noções de ética, muito menos da própria Padua. Quanto ao pai dela, maldição, as dúvidas que tinha – paf – sobre aquele caso tinham de ser resolvidas antes que ele – paf – se visse comprometido de outras formas.


Belleterre pediu uma pausa no combate. Caminhou até uma cadeira, pegou numa toalha e enxugou o cabelo escuro. A rapidez de Belleterre e a perícia estudada e natural colocavam-no em vantagem no pugilismo, pelo que conquistara boa reputação neste desporto. Ives gostava de lutar com um homem que atacava com tudo o que tinha. – Quem é ela? – perguntou Belleterre, deixando cair a toalha. – De que estás a falar? – Hoje és todo força e pouca habilidade. Revelas agressividade só porque sim. Acho que se calhar ficavas mais feliz se pudesses dar murros numa parede. – Acho que não foi assim tão mau. Ainda suaste bastante. – Como teria suado se tivesse de lutar com um gorila. Então, quem é ela? Ives foi buscar uma toalha também para si. Limpou a cabeça e o peito. – O que te faz pressupor que é uma mulher? – Estás a ceder a alguma espécie de emoção, e não é de felicidade. Dado que não vais a tribunal há várias semanas, não me parece que seja uma argumentação que tenha corrido mal ou um caso que tenhas perdido. Resta então uma mulher. Ainda estás zangado por a tua amante te ter deixado? – Ela não me deixou. E também nunca estive zangado com isso. – Se calhar é a solidão que te está a exasperar. Alguma coisa certamente está. Ali perto, o «cavalheiro» John Jackson dava uma aula a um jovem com idade de quem frequenta a universidade. Voavam punhos e suor. Ives observou-os enquanto admitia a si mesmo que havia estado a libertar emoções com os punhos. Sobretudo, dera socos de fúria contra si próprio. Estivera mesmo muito perto de oferecer a Padua um acordo durante o jantar. Na fácil intimidade da conversa, nem sequer lhe parecera pouco próprio. O vinho e o calor levaram-no a achar que era uma esplêndida solução para a sua repentina falta de alojamento ou apoio. Que lhe passara pela cabeça? Que queria levá-la para cima, para a cama, e que possivelmente o poderia fazer. Era o tipo de calculismo de um canalha. De um libertino. De um homem não só com gostos perversos – todos os homens os tinham –, mas com um coração também perverso. Deixara-se dominar pela sua pior faceta, porque ela era encantadora e interessante e, sim, maldição, estava vulnerável. – Quem quer que ela seja, não deixes que faça de ti um idiota. Arranja outra, se esta não estiver recetiva – sugeriu Belleterre. – Lembras-te de Mrs. Dantoine? Tiveste um fraco por ela em tempos. Ela regressou à cidade.


– Ah, regressou? Passaram, quanto, cinco anos? – Tivera mais do que um fraco por ela, na altura. O desejo quase o deixara louco. E ela escolhera outro. Outro com um título e tremendamente abastado. Ela beneficiara de carta-branca durante vários meses e, depois, desaparecera. – Vai estar no salão da Charlene na terça-feira – referiu Belleterre, regressando passo a passo à sua posição. Charlene era a sua amante e recebia amigos todas as terças-feiras à noite. – Devias vir. Dizem-me que Mrs. Dantoine perguntou por ti. Ives posicionou-se de frente para Belleterre e ergueu os punhos. Tentou lembrar-se da beleza de Mrs. Dantoine. Pequenina, bem arranjada e loura – as suas memórias só chegaram até aí. Contudo, enquanto lutava e tentava visualizar-lhe o rosto, a imagem mental que se formava sempre era a de uma mulher de cabelo escuro, pele luminosa e olhos cintilantes. Se é para viver num palácio, nem que seja por alguns dias, há que poder exibi-lo. Foi precisamente isso que Padua decidiu fazer depois de se permitir várias deliciosas horas na biblioteca. Escreveu novamente a Jennie ao final da tarde e convidou-a a visitá-la na Langley House no dia seguinte, caso conseguisse dar uma escapadela da escola. No dia seguinte, ao meio-dia, um lacaio veio encontrar Padua no terraço, a reunir coragem e motivação para empreender outra visita a Newgate. O lacaio concedeu-lhe um adiamento, informando-a de que tinha uma visita. Por indicação de Padua, o lacaio saiu e regressou com a visitante. Jennie escondeu o seu espanto até o lacaio as deixar sozinhas. Os seus olhos arregalaram-se. – «Segura» é uma boa forma de descrever a sua situação, Padua. A quem pertence esta casa? – Ao duque de Aylesbury. Jennie espreitou por cima do ombro, alarmada. – A família não está cá – explicou Padua. – Albergaram-me aqui por caridade durante alguns dias, enquanto procuro outro alojamento. Jennie sentou-se no banco a seu lado. Franziu as sobrancelhas. – E quem ofereceu tal caridade? Lord Ywain? É irmão do duque de Aylesbury. Já foi suficientemente estranho ele tê-la visitado na escola, mas se agora até lhe ofereceu um sítio para ficar... – É só por alguns dias.


– Se o diz. – Não parece convencida. – Estou certa de que sabe o que está a fazer. Mas... sabe mesmo? Este homem... o seu interesse em si não... – Não faz sentido? Concordo. Por isso pode ficar descansada que ele não está interessado em mim. – Eu ia dizer outra coisa. – Se calhar deveria dizê-lo, então. Uma vez mais, Jennie olhou para trás. E depois inclinou a cabeça para se aproximar. – O seu interesse em si não revela boas intenções. Pronto. Cumpri o meu dever. Padua não estava em condições de defender Ives, considerando aquele jantar. – Fala como se conhecesse o seu carácter. Conhecem-se? Jennie riu-se. – Eu posso ser filha de um cavalheiro e familiar de um barão por afinidade, mas nunca me movimentei em círculos tão requintados. Porém, conheço pessoas que ouviram falar dele. – Quer dizer que ouviram falar dele, mas não o conhecem efetivamente. – Bem, sim, mas... depois de ele a ter visitado, escrevi a uma amiga que não cortou os laços de amizade comigo apesar da minha situação atual. Ela casou-se muito bem. O marido é primo de um visconde. Por isso, embora também não se movimente nos círculos mais elevados, por vezes a sua vida passa de raspão pela deles. E ela respondeu-me com uma carta bastante extensa. Por outras palavras, nada mais do que mexericos. Rumores partilhados por mulheres em salas de desenho quando faziam visitas umas às outras. Nada que esta amiga pudesse contar teria valor ou seria fiável. Padua detestava este tipo de má-língua e recusava-se a participar. Normalmente. – O que lhe confidenciou ela? – Que ele é um dos advogados mais respeitados de Inglaterra. Que, maioritariamente, o seu carácter é irrepreensível. Que tem um rendimento impressionante e um charme considerável a condizer com uma cara bonita... e ele é bonito, não é? Receei desmaiar quando o vi no átrio de receção... Que até mantém uma amizade com o Príncipe Regente, apesar da diferença de idades. – Dito dessa forma, parece o homem ideal. – É, não é? – As pálpebras de Jennie baixaram. – Se não fosse uma única


falha, seria perfeito. Padua ficou à espera. Jennie aguardou também, quase a rebentar. Padua suspirou. Não era muito boa a seduzir pessoas a contar mexericos. – Que falha é essa? Duas manchas cor-de-rosa coravam as faces de Jennie. – Não é o tipo de coisa sobre a qual eu costume falar. – Talvez consiga fazê-lo só desta vez, para que eu fique devidamente precavida. Prometo esquecer imediatamente que abordou assuntos escandalosos. É disso que se trata, não é verdade? Uma coisa escandalosa? Jennie anuiu. – Um escândalo recente? – Não é recente. E também não é propriamente um escândalo. Mas é escandaloso. – Como pode ser escandaloso sem que haja um escândalo? – Por exemplo, suponho eu, se, numa conversa privada, uma pessoa abordar assuntos que não são virtuosos. Padua questionava-se se a conversa em causa teria sido hipotética. – Por favor, esclareça-me. – Bem – Jennie lambeu os lábios –, a minha amiga diz que, quando era mais novo, e tentando conquistar uma senhora, ao ter conquistado a sua atenção, mas, penso eu, não outras atenções, ele foi muito franco na forma como explicou as suas preferências quanto a estas últimas. Padua esperava que não fossem agora as suas faces a estar coradas. – Suponho que terá o seu valor chegar-se a acordo quanto às expectativas – murmurou ela. – Segundo a minha amiga, essas expectativas não eram simplesmente as normais. Envolviam coisas que as senhoras não fazem. Coisas pecaminosas. – Se a sua amiga sabe assim tanto, a senhora em causa deve ter contado a outras e não guardou para si tal descoberta. – Seria difícil guardar segredo, tal foi o choque. Padua imaginou a senhora a apreciar a atenção durante toda uma temporada, enquanto outras senhoras a cercavam em salas de desenho, querendo saber pormenores. Será que as suas descrições entraram em pormenores específicos? Improvável. Este mexerico fora construído sobre insinuações e eufemismos. – Diz que foi já há algum tempo. Ou seja, ele era muito jovem. – A minha amiga diz que, depois disso, a maioria das senhoras não permite os seus avanços. A sua reputação precede-o. Embora não se possa imaginar que


prescinda absolutamente da companhia feminina. – Estou certa de que não prescinde. Jennie segurou na mão de Padua e apertou-lha. – É provável que hoje em dia tente conquistar outras. Atrizes e outras que tais. E mulheres vulneráveis e em situação de necessidade que, devido às suas circunstâncias precárias, podem ser atraídas para a perversidade. Mulheres como Padua. Padua levantou-se. – Agradeço-lhe o aviso, embora tenha a certeza de que, mesmo com intenções perversas no coração, ele consegue melhor do que eu. Agora vamos investigar esta casa e cobiçar as suas riquezas. Espere até eu lhe mostrar a sala de jantar. Tenho a certeza de que a mesa dá para cinquenta convidados. Uma noite a beber e a jogar com velhos amigos teve as suas felizes consequências e Ives dormiu profundamente, esquecido dos impulsos que o martirizavam. Contudo, com a luz do dia veio também a sobriedade e foi novamente invadido por pensamentos acerca de Padua. Enquanto se vestia, ponderou a possibilidade de visitar um bordel, para evitar andar pela cidade fora a abordar mulheres com propostas ofensivas. Uma boa aventura e quem sabe Miss Belvoir deixaria de o fascinar. Tinha mesmo de fazer alguma coisa porque, se ela continuasse a absorver a sua atenção, ficaria totalmente comprometido na questão do pai. E seria isso assim tão mau? Remoeu a questão enquanto quebrava o jejum matinal. Ele não era o único advogado que poderia assumir a acusação. Eles que encontrassem outra pessoa. Conhecia os prováveis candidatos. Embora fossem todos bons homens, para eles vencer era mais importante do que ser justo, exatamente como os tribunais esperavam que fosse. Como ele, aliás, costumava ser. Por vezes, nesses casos, a justiça ficava a perder. Era raro, mas acontecia, especialmente em casos em que a culpa não era clara. Mas a culpa de Hadrian Belvoir era evidente. Supostamente. O problema é que, além de imaginar o que faria com Padua quando a apanhasse nua, também remoía o caso do pai. E as informações de Strickland. E o apartamento na Wigmore Street. Para um crime em que o homem foi apanhado com as provas em casa, havia várias perguntas sem resposta e coincidências por explicar. Pediu o seu cavalo, com a intenção de sair da cidade. Ao invés, passados


alguns quarteirões, praguejou, deu a volta ao cavalo e encaminhou-se para o apartamento. Quando parou na esquina próxima, estava a tentar convencer-se a passar ao largo e continuar quando reparou na cabeça loura na janela do piso térreo. Mrs. Trenholm ainda não tinha ido para a florista, apesar de serem duas da tarde. A cabeça desapareceu. Minutos depois, a porta abriu-se e ela saiu. Mesmo de longe, ele conseguia ver-lhe a maquilhagem no rosto. Seguiu-a enquanto ela caminhava rua abaixo, virando à esquerda e percorrendo vários quarteirões. Ela parou e assim ali permaneceu. Uma vez mais, Ives observava a partir de um cruzamento. Cinco minutos depois, uma carruagem estacou no sítio onde ela parara. Ela aproximou-se da janela e disse alguma coisa. Um homem estendeu o braço para fora e as suas mãos encontraram-se. Então a porta da carruagem abriu-se e Mrs. Trenholm subiu. Ives regressou ao apartamento. Não podia censurar aquela mulher por lhe mentir dizendo que trabalhava numa florista, considerando a ocupação que na verdade tinha. Ainda assim, a sua presença no mesmo edifício que Hadrian Belvoir tornara-se uma daquelas coincidências que o incomodavam. Qual a probabilidade de duas pessoas com antecedentes de atividade criminosa grave viverem naquela rua, quanto mais no mesmo prédio? E embora Strickland não pensasse haver conotações nem suspeitas políticas no caso de Belvoir, Ives não estava convencido. Assim sendo, o marido de Mrs. Trenholm e Belvoir poderiam ter alguma outra coisa em comum. De regresso ao apartamento, desmontou e prendeu o cavalo. Subiu as escadas e entrou nos aposentos em desordem. Padua disse que não havia ali nada de útil, mas não lhe pareceu que ela tivesse olhado muito além daquelas cartas que a absorveram. Abriu uma janela, despiu a casaca e começou a investigar. Uma hora depois, já tinha consultado mais apontamentos de matemática do que a maioria das pessoas numa vida inteira. Reclinou-se na cadeira da secretária e olhou em volta da sala. Estava desiludido. Tivera a esperança... maldição, tivera a esperança de encontrar alguma coisa que pudesse ajudar Hadrian, achava ele. Poderia entregá-lo a Padua como um presente. E evitaria o momento em que teria de optar entre colocar a peruca e a túnica e entrar em Old Bailey ou se a sua amizade com Padua significava que teria de deixar o pai entregue ao destino nas mãos de outro advogado. Enquanto mantinha a mente a trabalhar, o seu olhar vagueou pela eclética


coleção de publicações que enchiam a estante na parede da sala. A coleção permitia entrever outros interesses além da matemática. Conseguiu vislumbrar livros de História e volumes de poesia por entre os títulos científicos. Contudo, muitas aquisições nunca haviam sido encadernadas, pelo que o seu conteúdo permanecia invisível. No preciso momento em que os seus pensamentos se desviavam para uma infeliz introspeção sobre a primeira vez que os seus instintos a respeito de um caso se haviam comprovado corretos, mas demasiado tarde, o olhar assentou numa encadernação que o fez sorrir. Levantou-se e dirigiu-se até lá. Fino, pequeno e vermelho, um manual escolar de matemática para crianças fora enfiado entre dois calhamaços de química. O seu tutor usara o mesmo livro quando ele era ainda rapaz. Encontrou outro, e depois mais outro, espalhados aqui e ali pelas prateleiras. Os manuais escolares de Padua, supôs ele. Puxou o primeiro para fora. Quem sabe ela teria assinado o seu nome no interior. A ideia de ver a sua caligrafia infantil encantou-o. Abriu o livro e gelou. Virou as páginas. Tirou depois todos os restantes manuais infantis e procedeu da mesma forma. Quando terminou, tinha uma pilha de dez livrinhos. Não, doze, porque outros dois já haviam sido retirados e colocados na mesa ao lado da cadeira. Tinha também uma pilha de outra coisa. Dinheiro.


CAPÍTULO 9

–M

inha filha, quantas vezes tenho de dizer a mesma coisa? Não venhas aqui. Padua abraçava o próprio corpo enquanto o pai a repreendia. As suas palavras eram ríspidas, mas soava aflito e a voz parecia mais exasperada do que zangada. Os companheiros de cela riam-se. Um deles aproximou-se e enfiou um sorriso lascivo por entre as grades pelas quais ela via a cela. – Não ouça o velho louco – disse ele. – Todos gostamos das suas visitas, não é? Quando sairmos daqui teremos todo o prazer em mostrar a nossa gratidão. – Estendeu a mão e tirou um livro dos braços do pai de Padua. – Mas mais comida e menos disto, se não se importar. Padua fulminou o homem com um olhar de fúria. Aparentemente, o pai não ouvira as insinuações e a falta de respeito. Estava ocupado a pensar noutras coisas. – Quem dera que nunca tivesses saído de Birmingham – murmurou, de olhos tristes a recusarem encontrar-se com os dela. – És excessivamente voluntariosa. E a tua mãe é a culpada disso. É essa a razão da tua desobediência agora. Pensas que sabes mais do que eu, mas não sabes. – Penso apenas que precisa da minha ajuda, para ter alguma comida fresca e, de vez em quando, alguns livros para ocupar o espírito. – Falou tranquilamente, rezando para que pelo menos metade desta argumentação não fosse ouvida na prisão inteira. – Não preciso de livros para me ocupar o espírito. Para isso bastam-me os pensamentos e raramente consigo manter estes patifes longe da comida, por isso estás a desperdiçar o teu dinheiro. – Afastou-se e largou os livros no seu canto, regressando em seguida. Padua recordou a si mesma que ele estava privado da sua liberdade. Não podia recriminar a sua crueldade.


– O carcereiro disse-me que recusou encontrar-se com o advogado que lhe enviei. As suas pesadas sobrancelhas juntaram-se sobre o nariz. – Ele veio com um escrivão. Não se pode confiar num homem que precisa de outro para se lembrar do que diz. – O escrivão regista as informações, para poderem ser consultadas mais tarde. Do mesmo modo que uma pessoa tira notas para uma palestra. Mr. Notley veio com boas recomendações. Ele pode aconselhá-lo sobre como responder às perguntas que lhe farão, antes e durante um julgamento. Ele mergulhou a cabeça até que o nariz tocou numa barra mesmo à frente dos olhos. – Não sou um tonto. Saio-me bastante bem a responder sozinho. Diz a esse tal de Nutley... – Notley. – Diz-lhe que os seus serviços não são necessários. E agora, desaparece. Para de pôr a minha paciência à prova com a tua interferência infernal. Virou-se de modo a que Padua o visse apenas de costas. Caminhou até ao seu canto, chocalhando as grilhetas. Baixou-se encostado à parede e fechou os olhos. Padua sentiu a cabeça prestes a explodir. Ele tornara-a invisível. No que lhe dizia respeito, ela já tinha mesmo desaparecido. Como quando ele a enviou de volta para aquela escola. Se ele não se tivesse afastado, ela teria arranjado forma de estender a mão através das grades, de lhe agarrar o casaco e de lhe puxar a orelha até à boca dela, para poder cuspir toda a raiva que a atormentava. Só o facto de saber que toda a prisão ouviria a impediu de descarregar todo o seu ressentimento de qualquer modo. Que ele não a amasse era o menos. Conseguia viver com essa verdade. Muitos familiares não se amam. Mas que lhe negasse qualquer relação com uma família... Padua perdera os dois pais com a morte da mãe, e não apenas um. A diferença era que o pai tinha optado por ficar morto para ela. Ele quis que assim fosse. Padua lançou um olhar furioso à pilha de livros ao lado da coxa do pai. Será que apreciaria sequer o lenço dentro do livro que estava em cima? Quem sabe aquelas cartas tinham sido o produto de uma paixão breve e passageira. Provavelmente nem gostara particularmente da sua mãe. Um peso doloroso prendeu-lhe a respiração com a ideia de que ele poderia alguma vez ter falado com a sua mãezinha como tinha acabado de falar com ela.


Que horrível e triste. Não, certamente não. A mãe falara sempre do casamento como uma paixão gloriosa. Ensinara a filha a procurar o mesmo e a nunca se contentar com menos. Se tivesse havido desilusão, ela não o teria feito. Ou teria? Tinha de sair dali, antes que perdesse a compostura ali mesmo, à frente dos criminosos que partilhavam a cela. – Direi a Mr. Notley que tente novamente esta semana, paizinho. Talvez nessa altura já se sinta melhor. Mais em si. – Rodou nos calcanhares e atravessou cegamente os corredores da prisão. O ar outonal lá fora trouxe-lhe alguma calma. A brisa levou o pior da sua indignação, mas a mágoa continuou a deixar-lhe um nódulo repugnante no peito. Ives tivera razão. Padua cumprira o seu dever e tudo o que estava ao seu alcance. Deixaria agora o pai nas mãos de Mr. Notley, o que quer que isso pudesse ajudar. Olhou para o Sol que já ia baixo e viveu um momento de pânico até se lembrar de que já não precisava de dar satisfações a Mrs. Ludlow. Considerou que poderia caminhar até casa antes do cair da noite e fez-se ao caminho. Duas horas depois, a sua chegada a casa causou mais alvoroço do que teria esperado. Um lacaio estava à sua espera no interior, logo à porta, já que a peruca se via da rua. Quando ela entrou, ele solicitou-lhe que esperasse enquanto ia buscar alguma coisa que lhe estava destinada. Regressou com uma carta. – Foi entregue há poucos minutos, Miss Belvoir. Padua subiu ao quarto, levando a carta. Um candeeiro projetava uma iluminação suave sobre o lugar que ocupou à secretária de padrões encastrados. Sentou-se e abriu a missiva. Fora escrita por um dos escrivães de Mr. Notley, pedindo que visitasse o advogado naquela tarde para tratar de um assunto de importância. Ficariam no escritório até às dez horas, na esperança de que se pudessem encontrar ainda naquela noite. Padua pousou a carta, retirando em seguida o chapéu e a peliça. Lavar-se-ia primeiro, e ainda comeria alguma coisa. Depois, se ainda restasse tempo para alugar uma carruagem, talvez saísse para visitar Mr. Notley. Naquele momento, não se sentia de todo inclinada a fazê-lo. Não lhe parecia que conseguisse suportar mais desânimo por causa do seu pai num só dia. Ives deu pancadinhas no embrulho liso que tinha dentro do casaco enquanto trotava pela cidade fora. A simples existência do dinheiro que transportava


deixara-o de mau humor. O facto de estar agora a transportá-lo para Mayfair – quando não o deveria fazer – não tornou a cavalgada propriamente mais agradável. Dissera a si mesmo que decidiria no caminho. Debatia-se interiormente enquanto o som dos cascos do cavalo entrecortavam o seu avanço pelas ruas empedradas. Mesmo quando já virava para o quarteirão dominado pela Langley House, fingiu que ainda podia optar por dar a volta e, ao invés, fazer uma visita ao magistrado na manhã seguinte. Passava-lhe pela cabeça todo o tipo de imprecações quando parou e ficou a olhar para a casa. Imprecações contra si mesmo, porque sabia que ia fazer algo que não devia. Imprecações com um misto de resignação. Que Deus o ajudasse, era um perfeito pateta. Mesmo assim, reatou o avanço a cavalo, mas deteve-se abruptamente. Perscrutou as sombras na casa, do outro lado da rua. Teve a certeza de, por um instante, ter visto a aba de um chapéu, depois novamente absorvida pela escuridão. Deslizou da sela abaixo e prendeu o cavalo a um poste. Caminhando casualmente, passeou-se pela rua, no encalço daquela sombra. Quando se aproximou, tornou-se mais evidente a figura de um homem. Observava a Langley House com tanta atenção que tardou a reparar em Ives. E, quando o fez, fingiu estar a limpar o sapato. Olhou para Ives por cima do ombro e sorriu. – Maldita bosta. Não se pode andar nem mesmo nas melhores ruas sem arriscar sujar os sapatos. Ives devolveu o sorriso. Quando teve o homem ao seu alcance, esticou o braço, agarrou-o pelo colarinho do casaco e virou-o. O homem assumiu imediatamente uma atitude de combate. – Teria todo o prazer em dar-lhe uma valente tareia, com o devido desportivismo, mas não tenho tempo – rosnou Ives. Arrastou o fulano até um portão iluminado por um candeeiro de rua. – O que faz aqui a vigiar aquela casa? – Não estou a vigiar... Ives apertou o punho à volta do colarinho. – Vamos tentar outra vez. Porque está a vigiar aquela casa? Porquê e para quem? – Está a entender tudo mal. – Enquanto protestava, o homem olhou para o fundo da rua. Ives olhou também e viu a pequena carruagem que ali estava à espera.


Ives puxou o rosto do patife para um local com mais luz. Estreito e comprido, o rosto estava a precisar de uma boa escanhoadela. Os olhos, juntos e redondos, pareceram-lhe familiares. – Eu conheço-o. Já o vi antes. – É verdade que sim, milord. – Em tribunal. – Como testemunha da Coroa, orgulho-me de o dizer. Estávamos do mesmo lado. O lado leal. Chamo-me Crippin, milord. Agora já se lembrava. Crippin trabalhava para o Ministério do Interior. Há um ano, tinha-se infiltrado num grupo radical e levara-os a cometer atos pelos quais foram presos, quando Crippin os delatou. O júri mostrara pouca simpatia por radicais que o Estado atraíra para o crime. Ives arrependeu-se amargamente de ter aceitado a acusação quando soube do envolvimento do Governo. Olhou novamente para a carruagem ao fundo da rua. – Está a planear raptar alguém, não é? A convidada daquela casa? – Raptar, não. Levar emprestada. Para uma conversa. Sabe como as coisas se processam, senhor. – A sua voz saiu estrangulada e baixa. – Vai ser mais rápido assim do que o senhor tentar sacar-lhe a informação. – Concluí que não há nada a sacar, por isso pode poupar-lhe a indignidade. – Acabei de saber que ela visitou Newgate outra vez hoje e que falou com o prisioneiro durante algum tempo, por isso há quem não concorde consigo quanto a essa conclusão. Agora, se puder largar-me e sair de cena, penso que ela vai sair em breve. Ives largou-o efetivamente, mas apenas o suficiente para se assegurar de que não o estrangulava de vez. – Quem vai sair de cena é o senhor, não eu. E não vai regressar. Esta é a casa de um duque e ninguém tem autoridade para a pôr sob vigilância. Quem quer que o tenha enviado aqui irá pagar caro pelo insulto. Bem como o senhor, se o voltar a ver por estas bandas. Crippin suspirou profundamente. – Se calhar aquele que me enviou irá conversar com esse duque e será o senhor quem terá de pagar por interferir em assuntos que dizem respeito à segurança de duques e outros da sua estirpe. – Atreve-se a ameaçar-me? Saia daqui, antes que eu o espanque até perder os sentidos. Crippin afastou-se, abanando a cabeça. Ives esperou até que subisse para a carruagem e viu-a a avançar. Depois, caminhou a passos largos para a Langley


House. Padua não tinha vontade alguma de se deslocar novamente à cidade. Todavia, a carta de Mr. Notley fizera-a sentir-se culpada, por isso, depois do jantar, prendeu o chapéu à cabeça, colocou a peliça e pegou na bolsa. Certificou-se de que levava algumas moedas e depois desceu em direção à porta. – Peça-me, por favor, uma carruagem – disse ela ao criado que servia no átrio de entrada. Este girou nos calcanhares e apressou-se em direção à porta. Mas não saiu. Estava alguém lá fora. O criado desviou-se do limiar da entrada. Ives transpôs a entrada numa só passada. Avançou diretamente para ela, parou e examinou-a do chapéu aos sapatos. – Vai sair? – Fui chamada pelo advogado. Pediu-me que o visitasse o mais depressa possível. – É um pouco tarde para isso. – Ele disse que era importante. – Posso ver a carta? Padua não apreciava aquele tom. Não tanto desconfiado, mas mais autoritário; contudo, havia também uma boa dose de desconfiança. A sua expressão assumira o seu semblante mais marcado. Os olhos perfuravam o que quer que estivesse a ver. Especialmente a ela. Padua procurou na bolsa. – É uma nota profissional, nada mais do que isso, de um dos escrivães. – E entregou-lha. Com um gesto teatral, Ives abriu-a e segurou-a sob o candeeiro de uma mesa próxima. – Isto não foi enviado por Notley nem por nenhum dos seus escrivães. Os escrivães têm mais habilidade no uso da pena e os advogados têm papel de melhor qualidade. – Se não é de Mr. Notley, então de quem é? – Venha comigo. – Agarrou-lhe a mão e caminhou a passos largos novamente para dentro de casa, arrastando-a consigo. Padua tentou cravar os calcanhares no chão, mas em vão. Revelou-se impossível libertar a mão. Foi tropeçando pelo caminho atrás dele, à medida que


ia ficando cada vez mais zangada, mais renitente e menos equilibrada a cada passo. Ele conduziu-a até à sala matinal, soltou-a e fechou a porta. Padua compôs-se. – A sua carta de ontem insinuava que não voltaria a visitar-me enquanto eu aqui estivesse. Infelizmente, parece que não percebi bem. – Foi mas é uma grande sorte eu a ter vindo visitar. – Pôs-se direito e bem alto. Acenou com a carta no ar, com dramatismo. – Isto foi enviado para a atrair a sair de casa esta noite. Havia homens à sua espera para a raptar. O anúncio provocou uma gargalhada que Padua não soube conter. – Ninguém alguma vez me raptaria. Não há ninguém para pagar o resgate. Ele não esboçou o mais leve sorriso. Sob aquele olhar sombrio, Padua engoliu os últimos risinhos. – Certamente, está enganado – disse ela. – Dificilmente, considerando que acabei de mandar um desses homens daqui para fora. Além disso, não queriam um resgate normal, embora o seu pai pudesse ver-se na situação de ter de negociar a sua libertação. Queriam obter informações. Informações que o seu pai se recusa a dar-lhes. – Dado que não estou igualmente em condições de as dar, teria sido um grande alarido para nada. Ives caminhou à frente dela, pousando firmemente as botas, nunca desviando os olhos dela. – Eles não sabem disso. Eles não acreditam nisso. – E quem são eles? Ives olhou para o teto, como que a suplicar paciência. – Esta tarde regressou ou não a Newgate? Padua decidiu que já era tempo de tirar o chapéu. Enquanto o fazia, ponderou se seria sábio contar uma pequena inverdade. Ou se seria sequer bem-sucedida. Ele esperou pela resposta, de mãos cerradas atrás das costas, desafiando-a a mentir com o olhar. – Sim, é verdade. – Não lhe disse para não o fazer? Não a avisei de que estava rodeada de suspeitas? – Sim. – Mas resolveu ignorar-me e foi na mesma visitá-lo à cela, levando-lhe mais livros: coisa que quase nunca é levada aos prisioneiros e que, por isso, se tornam eles mesmo suspeitos.


– Por que razão haveriam os livros de ser suspeitos? – Porque é fácil esconder mensagens dentro deles. Se não uma nota, alguma coisa escrita nas próprias páginas. Padua enfrentou-o com firmeza. – A minha intenção era pedir a um guarda que os entregasse. Mas depois Mr. Brown disse-me que o meu pai se havia recusado a encontrar-se com Mr. Notley. Fui então pessoalmente, para o convencer a aproveitar o advogado que eu lhe tinha arranjado. Percebo que, na sua opinião, eu devia simplesmente deixá-lo lá a apodrecer, mas, como filha, não posso fazer isso. – E valeu de alguma coisa? Convenceu-o? Detestava ter de lhe dar a satisfação de ouvir o que queria. – Não, não valeu a pena. Ives limitou-se a olhar para ela. Estava a refletir sobre alguma coisa importante, a julgar pela intensidade do exame. – Ele disse-lhe alguma coisa útil? – Limitou-se a repreender-me por lá ter ido, como sempre. – Mais nada? Não deu indicações, instruções? Nenhuma confidência sobre a localização dos seus ganhos ilegais? – O que está a insinuar? – Quero saber tudo o que sabe sobre ele, com os diabos. Exijo que me conte tudo o que ele possa ter dito e que, de alguma forma, esteja relacionado com o papel que ele desempenhou naquela contrafação. Todo ele era severo. O reputado advogado encurralara-a a um canto e, com pura determinação, tinha a clara intenção de a levar a confessar. Confessar o quê? – Também acredita que posso ser cúmplice? Pareço-lhe isso? – Eu diria que não. Contudo, não confio grande coisa no meu discernimento neste momento. – Porque não? O que mudou? – Ora essa, sabe muito bem porquê. Quanto ao que mudou... – Caminhou até à mesa onde se servia o pequeno-almoço. Pôs a mão no casaco, tirou algo lá de dentro e pousou-o no tampo da mesa. – Não pesquisou lá muito bem o apartamento dele, pois não? – Mesmo nada bem. – As cartas distraíram-na. – É claro, eu interrompi-a. Se não o tivesse feito, talvez tivesse encontrado isto, como era talvez a intenção do seu pai. – O que é?


– Dinheiro. Bastante dinheiro. Padua fitou aquela pilha, tentando perceber qual o valor das notas que continha. – Surpreende-me que nenhuma autoridade o tenha encontrado. Parti do princípio de que tinham revistado tudo – disse ela. – Talvez não, depois de terem encontrado tão depressa o dinheiro falso. Caso tenham aprofundado, escapou-lhes isto. – Fez deslizar uma nota da pilha e colocou-a sob um candeeiro. Examinou-a. – É verdadeira. Tudo isto, imagino eu. – Atirou uma nota de dez libras para cima do embrulho. Padua aproximou-se da mesa e ergueu a pequena pilha dentro de um embrulho de papel. – Quanto dinheiro está aqui? – Pouco mais de duzentas. Uma pequena fortuna. Padua rasgou o embrulho. – Estas notas estavam escondidas em livros. Manuais escolares. Os seus manuais escolares. Padua tinha esperança de não estar a corar. – Guardou este dinheiro em livros velhos? – Encheu as mãos com as notas. Abriu-as em leque. – Havia doze. Encontrei dinheiro em dez. Dois outros já tinham sido revistados, por isso eu acho que encontrou uma parte, Padua. Ela não tinha intenção alguma de confirmar a sua teoria. Preferia distrair-se a fitar o dinheiro do que encarar o severo lorde que pairava a seu lado. Se calhar ele pensava que o paizinho havia descoberto uma forma fácil de contar à filha cúmplice onde encontrar os seus ganhos ilegais. – Encontrou parte do dinheiro, não encontrou? – A sua voz, frontal e exigente, flutuava-lhe dentro do ouvido. – Antes de eu interromper. – O que o leva a pensar assim? – Porque não parava de restolhar. Parece que, afinal, devia tê-la mesmo revistado. Padua voltou a cabeça. Ives estava mesmo ao lado dela. – Não compreendo porque está tão zangado. Fez uma descoberta fantástica. Tenho agora fundos para pagar honorários de advogados e para me aguentar até resolver a minha situação. Que suspeita pode ter em relação a mim? – De não querer que eu, mais do que qualquer pessoa, visse os frutos dos crimes do seu pai. – Tenho a certeza de que este dinheiro não é nada disso. – Ela poderia


provavelmente ficar com ele, se fosse essa a conclusão a que chegassem. Mas uma prova de pagamento também só aceleraria a condenação do pai. – É muito dinheiro – disse ele. – Mais do que a maioria das pessoas tem assim à mão. Se não é um pagamento dos cúmplices, onde foi ele arranjar tanto? Ela formou uma pilha alta com as notas, de forma a poder agarrá-las com firmeza. – Ele não gasta muito dinheiro. Viu como ele vive. Ao longo do tempo, provavelmente foi pondo de lado o que ia sobrando. – A sério, Padua. – Estendeu a mão para agarrar nas notas. Ela virou-se para que o não conseguisse. Desejou ter procurado todos aqueles livrinhos vermelhos antes dele. Deveria ter regressado ontem para o fazer, em vez de representar o papel de senhora da casa de um duque. – A herança. Deve ser isso. Pagamento da herança ou relacionado com ela. Provavelmente só o recebe uma ou duas vezes por ano e esconde o dinheiro, e vai vivendo dele, a pouco e pouco. Apesar do seu desespero, tinha lógica. Ives também o achou. Não voltou a tentar tirar-lhe as notas. – Fale-me dessa herança. – Não há muito a dizer. Recebeu-a pouco depois de a minha mãe morrer, de um familiar distante que ele não conhecia. Nunca se encontraram. Os advogados tinham passado anos à procura de um herdeiro. Ele nunca me disse quanto era. Tudo o que disse foi que fora finalmente bafejado pela sorte, que tinha agora o dinheiro de que precisava para subsistir e já tinha condições para me enviar para a escola. Agora tenho meios para pagar a tua educação. Não tenho paciência para ser tutor de uma criança, como fazia a tua mãe, nem para ter uma rapariga à perna. Como tal, isto é o melhor para os dois. Percorreu as arestas das notas com a ponta do dedo. – Ninguém vai acreditar nisso. – E se não acreditarem? – O dinheiro será confiscado. Daria cabo dela ter de entregar aquele dinheiro. Era injusto ter caído assim do céu, como uma oferta divina, para depois desaparecer tão depressa como surgiu. Ela olhou para ele, em busca do lorde amável e solidário que por vezes aparentava ser. – Não podem confiscar o que não souberem que existe – disse ela. Ives baixou as pálpebras. Cruzou os braços. Ela esperou por escutar o


advogado a explicar todas as legalidades que não lhe apetecia ouvir. – Eu deveria informar o magistrado sobre o que encontrei, como é evidente – disse ele. Mas não o tinha feito, pois não? Ao invés, trouxera o dinheiro para ali. Ela já tinha a batalha meio ganha mesmo antes de ele entrar por aquela porta. – Pedi a Mr. Notley que investigasse a herança – continuou ela. – Juro que não gasto nada disto sem que ele antes confirme a sua existência. – Nessa altura, Padua consideraria que aquele dinheiro eram os ganhos. Não que o afirmasse agora. – Entretanto, guardo-o bem seguro comigo. Uma derradeira faísca de indecisão atravessou os olhos dele. Num ímpeto, Padua enfiou as notas pelo corpete abaixo. Ele riu-se, sombriamente. – A moda de hoje não se presta a essa manobra com uma tão grande quantidade de notas. Uma ou duas, no máximo. Padua olhou para baixo, para a ridícula saliência entre os seios. – Ainda assim, está aqui seguro de um qualquer cavalheiro com noções inconvenientes de dever. – Alguns cavalheiros decidiriam que o dever é uma boa desculpa para o ir aí buscar. – Aproximou-se mais dela. – Está praticamente a convidar-me a tentar. Padua engoliu em seco. – Mas não vai fazê-lo. Certo? Não houve resposta. Nenhum aceno. Tudo que recebeu foi aquele profundo exame a que tantas vezes a submetia. – Fico a pensar... – murmurou, como que para si mesmo. – Fica a pensar em quê? – Naquela primeira noite, esteve perto de me tentar subornar. – Ergueu-lhe o queixo com a mão. – Tem estado a tentar fazer isso, Padua, de formas mais subtis? Está a tentar fazê-lo agora mesmo? – Não fui eu quem apareceu inesperadamente na sua vida. Não sou eu quem tem andado a interferir. Não me culpe a mim só porque o Ives... – É verdade. Não tem culpa nenhuma. Eu sou a minha própria perdição. – Inclinou a cabeça e beijou-lhe os lábios, primeiro num toque suave e, depois, mais plenamente. Padua fingiu tolerar quando, na verdade, descia sobre ela uma chuva de centelhas sensuais. Virou a cabeça, numa resistência hesitante. – Não deveria estar a revelar mais fortaleza moral? A pensar no dever e outros que tais? – Suponho que deveria. E no entanto...


Os beijos dele animaram-lhe as faces, o maxilar, e depois a pele sensível abaixo da orelha. Ele abraçou-a, envolvendo-lhe a cintura com o braço firme. – Se é para fechar os olhos a um pequeno pormenor de dever relacionado com aquele dinheiro, não vejo por que razão me deva negar outro. – Fico lisonjeada em saber que sou um pequeno pormenor. – A Padua não é. Mas decidi que beijá-la, sim, é. Ambos sabiam que não era verdade. Mas não lhe pareceu a ela que ele fosse agora ouvir a voz da razão. Nem conseguia reunir sensatez suficiente para argumentar. A forma possessiva como ele começou a acariciá-la tornou-se uma distração em demasia. Calafrios comandavam de tal modo a sua atenção que mal conseguia pensar. Ainda assim, ele devia mesmo parar com aquilo, mas... um toque no seio dissolveu completamente essa ideia. A mão ficou simplesmente ali pousada, a cobrir-lhe o seio, enquanto o braço dele a puxava mais estreitamente contra o seu corpo. Padua olhou-o nos olhos facetados como esmeraldas escuras, incapaz de lhe ler os pensamentos. Exceto um. Ele sabia que ela estava a apreciar demasiado para o recusar. Ele sabia que, afinal, tinha vencido sem grande esforço. O leve toque no seio tornou-se uma carícia deliberada que se sentia através da roupa. Um prazer voluptuoso percorreu-lhe o corpo e aninhou-se no seu baixo-ventre. Pensou que desfaleceria. – Os seus olhos são tão luminosos como imaginei que seriam quando eu a acariciasse, Padua. A sua carícia continuou a absorver toda a atenção dela. Padua mal conseguia falar. – Disse não acreditar na sedução. – Eu disse isso? Que descuido o meu. – Aconchegou-se a ela e beijou-lhe o pescoço. Arrepios sensuais animaram-lhe a pele com mil torrentes de deleite. – Embora me queira parecer que, na verdade, o seduzido fui eu. Não o contrário. – Tem jeito para falar. Contudo, foi o Ives quem me montou a armadilha. – Sabe tão pouco sobre os seus poderes, Padua. – Roçou os lábios novamente nos dela. A boca dela estremeceu. Os dedos dele encontraram o mamilo sob a roupa. O modo como a provocava punha-a num estado totalmente alerta. – Devo parar? Eu paro, se o pedir. Parar? Pôr fim a tamanha maravilha? Rejeitar esta transformação de todo o seu ser? Padua não queria que acabasse, nunca. Ele esperou a resposta. Até parou as carícias, o que a deixou perdida. Ela


abriu os olhos. O seu olhar continha tudo o que sabia sobre ele. A faceta perversa e a faceta amável. A sua austeridade e o seu charme. Sobretudo, refletia o que ele sabia ser a resposta dela sem que ela precisasse de a proferir. – Bem, nesse caso – murmurou ele –, vamos fazer isto como deve ser. Fazer o quê? A ideia de que deveria perguntar desvaneceu-se no preciso momento em que surgiu. Ele pegou nela, erguendo-lhe os pés do chão com o seu abraço. A sala começou a rodar. Deu por si sentada no seu colo, ombros envoltos no braço dele, corpo estendido sobre as suas ancas. Espantada, viu como a cabeça dele se inclinou até sentir o toque de beijos quentes no pescoço e na pele exposta acima da roupa. Cada um fazia disparar torrentes de tortura pelo corpo abaixo. Ives dirigiu o seu arrebatamento para a boca de Padua. Já não a seduzia, exigia sim o que era dele. O corpo dela respondia eroticamente. Ele aproveitou os seus arquejos para lhe invadir a boca. Momentaneamente em choque, ela rapidamente se rendeu à ousada intimidade. Quando a carícia dele a afagava em todo o corpo, do pescoço aos joelhos, o seu estado de consciência submergiu sob um entorpecimento das sensações com laivos de uma expectativa selvagem. Padua sentiu-lhe os dedos no peito. Ives retirou o dinheiro do corpete e deixou-o cair no chão. Ela olhou para baixo enquanto ele desabotoava a peliça. Ele sentou-a e retirou a peliça, deslizando-a. Ela virou a cabeça para a ver cair junto à mancha verde de dinheiro. Beijos ardentes no pescoço reclamaram a sua atenção. Carícias deliberadas nos seios levavam-na ao delírio. O vestido estava já meio desapertado quando ela deu conta de que a mão nas costas tinha intenções mais perversas do que a da frente. Mesmo depois de baixar o corpete, revelando o espartilho e a combinação, essa mão continuava a mexer-se lá atrás. Um resquício de racionalidade regressou. – Não devíamos negociar primeiro? Disse que o fazia sempre. – Estou-me nas tintas para isso. A boca dele desviou-se para a pele macia exposta acima do espartilho. Padua sentiu o espartilho a soltar-se. Começou a deslizar pelos ombros abaixo, juntamente com a combinação. Uma mão masculina ajudou-os. Pelo meio da bruma de sensações, Padua deu conta de que, muito em breve, estaria seminua. – Pensava que... – Virou a cara para que o seu beijo não a pudesse calar. – Pensava que se assegurava sempre de que as mulheres e o Ives estavam em sintonia. Pensava que conversasse primeiro.


O calor na pele dela. No seio. Uma nova carícia, uma carícia direta, fê-la sentir-se tonta de prazer. – Já fizemos isso. – Isso foi uma conversa hipotética, e não muito pormenorizada. Podemos não nos satisfazer de todo um ao outro nesta matéria. – A Padua satisfaz-me perfeitamente. Mas converse à vontade. Eu prometo ouvir. – Até a olhou nos olhos, para que ela pudesse constatar a sua atenção. Infelizmente, as carícias não pararam. E isso dificultava a formação de pensamentos coerentes, quanto mais proferi-los em voz alta. O seu olhar ardente fê-la perder ainda mais a compostura. Padua olhou para baixo, para os seus seios agora nus e para a roupa enrodilhada mais em baixo. Enquanto ela olhava, as pontas dos dedos dele deslizaram para o mamilo. Começou a afagá-los suavemente. A sensação arrebatou-a completamente. A visão ficou desfocada. Mal conseguia sentar-se quieta. O prazer começou a ser atroz. Se Ives continuasse, ela morreria, mas se parasse, Padua começaria a gritar. A respiração dele aqueceu-lhe o ombro. – É encantadora, Padua. – Beijos mais abaixo, no peito. – Perfeita. – Ainda mais abaixo. O seio ficou pesado e cheio. A sua respiração acelerou enquanto esperava que ele... Ela queria, precisava... Arqueou as costas em oferta e frustrada expectativa. Quando o seu beijo lhe roçou um mamilo, ela rendeu-se em abandono. Ele provocou-a, com a mão num seio e a boca no outro, os dentes, a língua e os lábios a conduzi-la à loucura. Uma tormenta de sensações que se intensificava cada vez mais. Mas a sua consciência hesitava em pleno centro da tempestade. Evidentemente, reparou quando os tormentos sensuais pararam. Os braços dele deslizaram sob o seu corpo e levantaram-no. Pelos seus olhos encobertos Padua viu a sala a flutuar à sua passagem. Quando a pousou, ela estava a olhar para o teto. A mesa. Estava em cima da mesa. De costas. Olhou para baixo, para o seu corpo, os seios nus e a roupa enrodilhada, a saia comprida. Para as ancas, o tronco e a cabeça do homem que ali estava, em pé, entre as suas pernas que baloiçavam. Não conseguia suportar que ele tivesse deixado de a tocar. Os seus seios estavam agora tão sensíveis que até o ar os provocava, fazendo-a desejar mais. Instintivamente, fez beicinho, no momento em que o seu espírito se deixou levar por alguma curiosidade quanto ao motivo que o levara a pousá-la ali.


Ives baixou-se na direção do corpo dela e tocou num mamilo. Ela arqueou as costas. Sentiu derramar-se uma torrente de regozijo por todo o seu corpo. – Agora pode fazê-lo sozinha. – Uma carícia deslizou por uma das pernas acima. – Eu vou estar ocupado. Ela franziu o sobrolho perante uma sugestão tão bizarra. – Nunca se tocou, Padua? Nunca deu prazer a si mesma? É claro que não. Que pergunta peculiar. A carícia dele na perna alcançou mais alto. A bainha da combinação também subiu. – É muito parecido. Experimente. Vai ver. Agora? Com ele ali? A ver? Ives estava maravilhoso, a olhar para baixo, de olhar caloroso e perigoso ao mesmo tempo. Pelo menos não viu qualquer indício de que se estivesse a divertir às custas dela. Hesitantemente, colocou as mãos sob os seios, para ver qual era a sensação. Nada de especial. – Vai estar ocupado a fazer o quê? Ele ergueu uma das pernas dela. A combinação tombou, revelando os collants até cima e o joelho. – Só a beijá-la. A tocá-la. – Virou a cabeça para lhe mostrar. Ela não ficou impressionada. O beijo fazia um pouco de cócegas e não era nem de perto tão demolidor como nos seios. Depois acariciou-a descendo pelo interior da perna. Aquele toque ténue, tão ligeiro que podia ser o roçar de uma pluma, lançou-lhe um profundo calafrio diretamente até à sua... Oh. Pela primeira vez desde que Ives começara a tocá-la, incertezas começaram a minar o seu estado de graça. – Parece-me que agora está a ser pecaminoso. Os seus dedos continuaram a aflorá-la vagamente. A boca lambia-a de forma mais evidente. – Não demasiado pecaminoso. Ainda não. Ainda não? – Quanto àquelas negociações... – Tarde de mais. – A saia caiu ainda mais, desnudando mais a perna. Quase até à... ao sítio para onde também iam os prazeres que ele estava a criar. A sensação foi-se intensificando, até se tornar muito mais forte do quando ela


estava sentada ao colo dele. Mal conseguia resistir a levantar as coxas de formas escandalosas. Mordeu o lábio inferior para que os gritos suplicantes que lhe povoavam a mente não se soltassem. Ele olhou para o modo como ela continuava a segurar os seios em concha. – Assim, não. Faça como eu. Juro-lhe que vai ser extraordinário. Já tinha ido demasiado longe para se preocupar com a imagem que daria de si mesma, e começou a afagar suavemente os mamilos. Espirais de êxtase dispararam-lhe pelo corpo abaixo, na direção dos êxtases que ele estava a criar. Juntaram-se na... Oh! – Isto é escandaloso – murmurou ela. – Vergonhoso. Contorceu-se nesse momento, mas nada fez para aliviar o tormento sensual que aumentava a cada momento. A sua essência suplicava esse alívio, mas também lhe exigia que continuasse a beliscar os mamilos com as palmas das mãos para, deliberadamente, tornar tudo ainda pior, não, melhor. Agora, beijos no joelho. Ardentes. Escaldantes. Primeiro naquele sítio, depois no outro, depois mais abaixo na coxa. Puro abandono fê-la perder o controlo de si mesma. As ideias mais perversas alojavam-se nos seus pensamentos enevoados... de abrir totalmente as pernas, de o levar a beijar ainda mais acima, de se tocar, não nos seios, mas na... e, ainda assim, as suas carícias ao de leve, aquele toques fugazes e palpitantes, atraíam-na cada vez mais fundo e abriam uma necessidade oca que nem o prazer conseguia preencher. Ives beijou-a pela coxa acima, segurando a perna para poder alcançar a carne mais macia. Padua deixou escapar um gemido, e depois outro. Ela olhou para baixo, para onde a saia estava agora enrodilhada bem em cima das pernas. Formava uma vedação de tecido. Deu conta de que, se ele virasse a cabeça, veria algo que ninguém antes tinha visto. E ele virou a cabeça. E viu. E então as leves e magistrais carícias desceram, até que ele pôs os dedos na fonte primeira e centro da sua agonia sexual. Ficou desvairada. Ouvia os seus próprios gritos a atravessar o ar. Gritos de gratidão, famintos, que davam voz à necessidade que a consumia. És perversa, perversa, perversa. – Sim. Eu não devia permitir... não devia... – Sim. Ives puxou-lhe as ancas na direção do corpo dele. Padua obrigou-se a olhar para ele. O seu corpo baixava pouco a pouco enquanto se ajoelhava. Ela


conseguia ver-lhe apenas a cabeça, depois apenas o cocuruto enquanto lhe beijava novamente o interior da coxa. Ah, ah, perverso. Demasiado perverso. Ajoelhou-se mais acima e dispôs as pernas dela sobre os ombros dele. Uma ideia radical penetrou-lhe os pensamentos. Uma esperança, mas também um alarme. Ele não ia... Certamente não iria... Padua agarrou rapidamente o tecido da saia entre as pernas e segurou-o, escandalizada com a ideia. Ele acariciou-lhe a coxa, acalmando-a. Na verdade, não se limitou a acalmá-la. Manteve vivos e despertos o calor e a agitação sexual. – Choquei-a. – Agora compreendo por que razão normalmente negoceia primeiro. Rebeliões dentro do seu corpo geravam desconfortos nunca antes sentidos. O desapontamento manifestava-se de formas viscerais. Ele levantou-se. – Está livre. Prometo. – Prendeu o olhar no dela e deslizou a mão por baixo do tecido, sob a força da mão dela. – Pensei que tinha dito que eu estava livre. – Disto, por agora. Não de mim. – Envolveu as suas ancas com as pernas dela. – Tire agora a mão. Não a possuirei, caso esteja a recear que a pus assim para isso. A menos que queira. Fitou-o. Abanou a cabeça. – Tem a certeza? Padua não tinha certeza nenhuma. – Tire a mão. Eu cumpro o que prometo. Ela tirou a mão. – Feche os olhos, Padua. Não pense em nada. Aquele toque devastador pressionou de novo, garantindo que ela obedecia. Todo o seu ser físico se dissolveu até restar apenas aquela pressão. Um prazer assombroso. Um prazer exigente. Não pensar significava a ausência de limites. Sentiu-se como nunca antes se sentira. Como nunca imaginou ser possível. Ele sabia precisamente o que fazer para intensificar a loucura. Ela sabia que ele a observava. Perverso. Maravilhosamente perverso. Ela sabia que gemia e gritava. Quando o prazer se tornou demasiado intenso e inexorável para se suportar, ela sabia que suplicava. Alguma coisa, qualquer coisa, não sabia o quê. Esticou-se para o alcançar, desesperada, insana e à deriva numa sensação agonizante. Subitamente, ficou pior ainda, maravilhosamente pior. Focada e profunda. O


lugar do prazer encheu-se e depois espalhou-se abruptamente. Conquistou o que restava do seu ser desagregado. E depois rebentou, deixando-a reverente perante a sua glรณria perfeita.


CAPÍTULO 10 ves arrancou a mão de Padua da sua. Quando o clímax se aproximou, ela tentara travá-lo e evitar mergulhar no desconhecido. Sentou-a e abraçou-a. Conseguia sentir como os ecos do seu fim explosivo ainda lhe afetavam o corpo como réplicas sísmicas. A expressão relaxou, a pele enrubesceu, ela não contestou a forma como ele lhe tocava. Talvez nem sequer desse conta. Pousou a cabeça no peito dele e encostou-se, mole, contra o seu corpo. Ele encostou os lábios à cabeça dela e percorreu lentamente com os dedos a linha dos seus ombros. Ele não deveria ter feito isto, mas naquele momento não se importava. Mais tarde, repreender-se-ia por se ter deixado levar por um impulso. Conhecia bem o sermão. Raiva, paixão, pesar – dominar-se em acessos de emoção permanecia um esforço de uma vida inteira em que tantas vezes falhava. Alterações subtis no corpo de Padua revelavam que estava a assumir de novo o controlo. Mas não se mexeu nem quebrou a intimidade do abraço durante uns bons cinco minutos. – Parece-me que nos portámos mal – murmurou ela para dentro da camisa dele. – Muito mal. Diabos o levassem se alguma vez concordaria. Talvez ele se tivesse portado mal, mas ela tinha sido magnífica. – Aquilo que queria fazer... Suponho que seja por isso que as mulheres decentes não querem ter nada que ver consigo. – É um dos motivos. – Mas há mais? Sim, claro que há. – Ela suspirou. – Parece-me bem que negoceie de forma direta, embora tenha dificuldade em imaginar como faz para explicar tudo. Suponho que ser advogado ajude. Todas aquelas palavras sofisticadas que sabe dominar. Imagino que inunde as mulheres com elas e, quando finalmente começam a conseguir analisá-las e a compreender o que significam, já é demasiado tarde para sentirem vergonha.

I


Na verdade, as suas amantes precisavam de parcas explicações. A sua missão era agradar aos homens. Não as chocava a elas mais do que um comerciante ficaria chocado ao ouvir que um cliente habitual, com o dinheiro que tem, quer comprar um galão da melhor cerveja em vez de dois galões de cerveja normal. Padua libertou-se dele e olhou sobre o ombro. Corou e tateou a roupa à volta da cintura. – Eu deveria... – Ele levantou-lhe o espartilho até aos ombros. Apertou e atou os atilhos. Recuou e ergueu-lhe a combinação até ao pescoço. – Eu consigo. – Tirou-lhe o tecido das mãos. – Poderia, talvez...? – Rodopiou o dedo. Ele voltou-se de costas para ela. – Está com vergonha, Padua? Não tem razão para estar. Não comigo. – Estou demasiado espantada para sentir vergonha, mas imagino que isso venha a mudar. Parece-me que, muito em breve, concluirei que fui uma tonta. O Ives é uma revelação para mim. Supus que um homem na sua posição e com a sua frieza de raciocínio nunca seria tão... impetuoso. – Só quando me sinto intensamente provocado. – Agora culpa-me a mim? Ives olhou por cima do ombro. Ela estava recomposta e abotoava agora a peliça. – Não estou a culpar ninguém. – Virou-se e tomou o rosto dela nas mãos. Inclinou-se e beijou-lhe os lábios. – Nem a si, nem a mim. Estou a dizer que o meu desejo por si me provocou mais do que o habitual. Perdi a cabeça. Olhos escuros fitavam-no divertidos e com puro ceticismo. – Que palavras bonitas. Dar à língua é a sua especialidade, milord. Logo que o disse, deu conta da alusão que acabara de fazer. Assumiu uma expressão horrorizada. Ele ergueu-a e baixou-a da mesa, pousando-lhe os pés no chão. Padua olhou para a mesa. – Não deveríamos pedir água e sabão? – Os criados tratam disso. Ela olhou a porta de relance. – Eles sabem? Ou usa frequentemente esta mesa para estes fins? – A mesa é lavada e polida todas as manhãs, muito antes de quem a usa estar acordado. – É bom sabê-lo. Ives tomou-lhe as mãos nas suas. Tolerava toda aquela conversa sobre


assuntos práticos porque sabia que ela estava novamente prestes a cair no embaraço. Conseguia perceber como os olhos de Padua evitavam os seus e como ela se obrigava a arvorar uma expressão o mais calma possível. – Vou avisar os lacaios para se manterem alerta, não vá alguém tentar entrar nesta casa. Tem de me prometer que espera dentro de casa até eu chegar de manhã, Padua. Ela anuiu. – Mas não posso ficar aqui para sempre. Tenho de arrendar aposentos e fazer outras coisas que me exigem ir até à cidade. – Falaremos disso amanhã. Por agora, fique aqui. Soltou-a e voltou-se, com a intenção de sair. Para deleite de Ives, ela acompanhou-o, a seu lado. Caminharam em silêncio pela casa, em direção ao átrio de entrada. Diabos, ele devia-lhe mais... mais alguma coisa. Um amparo para a sua dignidade, pelo menos, caso as horas seguintes lhe trouxessem arrependimentos. – Tenho de lhe pedir perdão pelo meu comportamento. – Tinha esperança de que não soasse tão pouco sincero como na verdade o sentia. Não lamentava absolutamente nada. Contudo, uma parte do seu espírito especulava o que poderia ter faltado e como poderia colmatar as omissões. Padua esboçou um pequeno e pensativo sorriso. – Acho que, mais do que se portal mal, desceu um degrau ou dois no poço do inferno. Se eu não estivesse ainda em recuperação, a ideia do que nós... Um rubor profundo subiu-lhe ao rosto. – A culpa é toda minha. Importunei-a. Foi indesculpável da minha parte. – Oh, como lhe saía tudo em catadupa, como lhe soava tudo tão extremamente correto. Ainda ardia de desejo por ela. Não descera de todo assim tanto ao inferno enquanto ela ali jazia em abandono naquela mesa, mas refletiria sobre as suas profundezas naquela noite. Ela olhou-o nos olhos. Franziu o sobrolho. – Foi impetuoso, como disse. Os dois fomos. Estou certa de que concorda que teremos de ser mais temperados no futuro, se a ideia é mantermos de todo alguma relação. Ele inclinou-se e beijou-lhe a mão. – Seria, de facto, sensato. – E impossível. – Partirei agora e vê-la-ei pela manhã.


Padua subiu ao quarto. A criada chegou e preparou-a para se deitar. Quando ficou sozinha, tentou sair da bruma que a envolvia desde que Ives estilhaçara a sua consciência em milhares de pedaços cintilantes. Repetia mentalmente a conversa posterior. Teve de se rir de si mesma. Um homem quase a tinha tomado à força, vira-a pior do que nua, quase lhe fizera uma coisa muito perversa e tudo o que ela conseguiu fazer foi questioná-lo sobre o estado da mesa que lhe havia servido de cama? Riu até às lágrimas. Oh, és uma mulher muito sofisticada, Padua. Este aristocrata nunca antes tinha visto ninguém com a tua categoria! Lembrando-se do resto da conversa, recuperou num ápice a sobriedade. O pedido de desculpa. A tentativa de assumir a culpa. Ele tinha de dizê-lo. Terá sido sincero nalgum momento? Ou, pelo contrário, achava que tivera demasiado trabalho e não recebera grande coisa em troca? Jamais poderiam repetir aquilo. Nunca poderiam fazer algo assim. Ela não era esse tipo de mulher. E certamente ele também não era o tipo de homem que atraía mulheres para a sua perdição. Ou será que era? Ou não tinha grandes escrúpulos nesta matéria ou então ela tinha realmente confundido o seu bom carácter e provocado aquele comportamento impetuoso. Será que tinha? Que ideia tão bizarra. Decididamente, ela também não era esse tipo de mulher. E contudo... e se assim fosse... poderia convencê-lo a lidar com o caso do pai de um modo um pouco diferente do que faria habitualmente? Ele suspeitava de que ela poderia ter tentado suborná-lo. Deveria fazê-lo? Quase deu uma estalada em si mesma pelo simples facto de ponderar a ideia. Que indignidade a dela. Que ideia manipuladora. Vergonhosa, na verdade. Ainda assim... se uma filha tinha esse poder, não deveria utilizá-lo? Não seria pecado maior virar as costas a uma oportunidade de ajudar o pai? No mínimo, não deveria refletir seriamente antes de descartar a oportunidade? Levantou-se e despiu o robe. Apagou o candeeiro, subiu para a cama e aconchegou-se nos lençóis. E ali ficou a fitar as sombras onduladas dos cortinados da cama. No momento em que fechou os olhos, foi inundada de memórias. Ives a comandar o seu corpo com a boca e as mãos... Ives conduzindo-a à loucura com cem plumas no interior das pernas e das coxas... Ives apertando-a contra si enquanto um prazer profundo rodopiava por todo o seu corpo.


Depois de deixar Padua, Ives saiu à procura de Strickland. A noite ainda era uma criança e havia a ínfima possibilidade de que, se se mantivesse agora ocupado, talvez conseguisse acabar por se libertar da frustração e da energia erótica que lhe fazia ranger os dentes. Encontrou Strickland no Damian’s, um salão de jogos. Strickland gostava de jogar faraó e vingt-et-un, pelo que era visto muitas noites a fazê-lo num dos antros da cidade, bebericando brandy enquanto evitava a esposa que nunca havia amado. Strickland viu-o aproximar-se e saudou-o entusiasticamente. Ives pressupôs, portanto, que Strickland já estava imbuído do espírito da noite. – Que bom que estás aqui. Podes vir admirar a minha boa sorte – disse Strickland, lançando um olhar malicioso para o homem a seu lado na mesa de vingt-et-un. – Puxa uma cadeira. Junta-te a nós. Ives não jogava com frequência. Nunca desenvolvera gosto por aquilo. Em todo o caso, sentou-se ao lado de Strickland e pediu cartas. – Hoje vi o Crippin – disse Ives após alguma conversa de circunstância. – Lembras-te dele, certamente. Strickland acenou com a cabeça. – Claro que sim. Não sabia que estava em Londres. Pensava que estava lá para o norte. É onde ele costuma arranjar sarilhos. – Ele vai para onde o mandam. E parece que o mandaram vir a Londres. Strickland espreitou as cartas. – Não sei de nada disso. – Espero bem que não. Estou deserto para dar uma tareia em alguém e não quereria que essa pessoa fosses tu. Strickland olhou para ele, alarmado. Colocou as cartas na mesa. – Estou a ver que estás de bom humor. Vamos apanhar ar fresco. Juntos, encaminharam-se para uma pequena varanda adjacente ao salão de jogos. Strickland ofereceu-lhe um charuto. Ives recusou. Strickland acendeu um para si. Posicionando-se fora da incidência da luz, lançou-se em grandes baforadas. Com cada inalação, a extremidade ardente do charuto desenhava-lhe pequeníssimos focos laranja no rosto. – Porque tens vontade de dar uma tareia em alguém? – O Crippin esteve a vigiar a Langley House. Punha-se nas sombras do outro lado da rua e espiava os seus residentes.


A ponta incandescente estacou. – Seguramente não é o caso. Ninguém seria estúpido a ponto de o destacar para a casa do teu irmão. O Aylesbury poderia dar cabo de qualquer homem do Ministério do Interior. – E, no entanto, alguém o fez. – Por Zeus. O teu irmão está a viver lá agora? – Não. Puf. – E tu, estás? – Não. – Está lá alguém? Caso contrário, não faz mesmo sentido nenhum. – A filha do Hadrian Belvoir está neste momento a usar a casa, a meu convite. A situação do pai levou a que perdesse o emprego na escola onde leciona. – Ah. Estou a ver. Que situação infeliz para ela. – Não podia propriamente deixá-la desamparada e sem abrigo. – Nenhum cavalheiro o faria. – Puf. – Evidentemente. – O Crippin recebeu ordens para a vigiar e também para a raptar. – Ora essa, raptar! Para quê? Ives explicou a conversa com Crippin. – Ele insinuou que eu deveria ajudar, para que a pudessem interrogar. – Achas que ela é cúmplice? Se houver sequer alguma possibilidade de assim ser, talvez devesses organizar as coisas de modo a que lhe possam ser feitas essas perguntas. – É claro que não é cúmplice. Strickland caminhou em círculos, enquanto fumava e pensava. – Como podes ter a certeza de que não é? Tens estado a investigá-la? Não, com os diabos. Tinha acreditado nela sem questionar, não era? Porque a desejava. Naquele dia e naquela noite, tinha percebido o quanto se baseara na boa-fé. E continuava a acreditar. Mas tinham surgido algumas questões. De pouca monta, é certo, mas que se haviam alojado no seu espírito, logo atrás do desejo. Foi devido a essas questões, supunha ele, que não levara as coisas mais longe naquela noite, quando sabia que o poderia ter feito. – O emprego que tinha na escola não lhe deixava tempo para ser cúmplice de fosse o que fosse ou de seja quem for. Além disso, nenhum residente do prédio do pai a reconheceu quando ela lá foi pela primeira vez.


Não tinha qualquer dificuldade em desfiar um rol de argumentos a favor das suas afirmações. Tinha-os analisado muitas vezes. Ainda assim, apesar destas provas, o procurador dentro de si não conseguia eliminar aquelas pequenas dúvidas, nem a levíssima suspeita de que Miss Belvoir poderia ter estado a brincar com ele desde que lhe perturbara a paz naquela primeira noite. – Ah, bom, se só sabes... O clarão do charuto fez um arabesco no ar com os gestos de Strickland. – Não vim à tua procura para falar sobre ela. Quero que entregues uma mensagem minha aos teus colegas. – Não vou gostar disto, pois não? – Diz que estiveste comigo hoje e que eu estava com instintos violentos por causa do insulto à minha família. Diz a quem quer que seja que está por trás disto que, se eu vir outra vez o Crippin no raio de um quilómetro à volta daquela rua, vou contar ao Lance e ele leva o assunto ao primeiro-ministro e ao Regente e informa os outros lordes. Strickland suspirou. – Preferia que escrevesses uma carta. É um pouco problemático ser o mensageiro de uma ameaça desse calibre. – Conto contigo para garantires que a ameaça é ouvida. Alguém foi longe de mais, Strickland. A casa de um duque, nada mais, nada menos. O mais baixo dos barões sentirá o insulto com mais intensidade do que o Aylesbury. Diz-lhes para afastarem o Crippin e as gentes da sua laia, ou a Câmara dos Lordes exigirá o rolar de cabeças.


CAPÍTULO 11

P

adua enfrentou a manhã com uma disposição silenciosa. Havia quem defendesse que, quando temos problemas, depois de uma noite de sono as ideias são mais claras, pelo que a sua perspetiva dos acontecimentos da noite anterior assomou de forma estranhamente lúcida à luz do dia. Além de concluir que anos de abstinência a haviam transformado numa presa fácil, não conseguiu chegar a mais conclusão nenhuma e não conseguiu atribuir culpas a ninguém. Admitiu, no entanto, que tinha de abandonar a Langley House. Pelo menos agora possuía algum dinheiro. Prometera não usar ainda o dinheiro encontrado no apartamento do pai, mas gastar as suas poupanças seria mais fácil, agora que tinha o outro dinheiro dentro da mala. Apreciou mais um pequeno-almoço requintado, sentindo já nostalgia daquele luxo. Do breve período em que se sentiu importante e digna de atenção. O simples facto de percorrer estes espaços fazia-a erguer a cabeça e sentir-se digna. Pediu para comer na sala de jantar. Demorou-se e, em seguida, dirigiu-se ao quarto e chamou a criada. Seguindo as suas indicações, a rapariga começou a dobrar as poucas roupas. Estavam quase a terminar quando a porta se abriu. Ives entrou. Padua desejou que o seu coração não tivesse desatado aos saltos ao vê-lo, mas a verdade é que assim foi. Não admira que tivesse sido tão imprudente no dia anterior. Ele exalava uma força masculina que exigia obediência a tudo o que ele quisesse. Ela estivera sempre em desvantagem e a combater na retaguarda contra os efeitos que a sua presença produzia nela. E agora seria ainda pior. Ives viu a mala e a pilha de roupa a seu lado, no banco junto à janela. – Estou a ver que já quase acabou de fazer as malas. Ótimo. Vim dizer-lhe que deveria fazê-lo imediatamente. Padua pediu à rapariga que saísse e depois começou a enfiar ela própria a


roupa na mala. – Que atencioso da sua parte. Desconfiei que o seu discurso sobre assumir toda a culpa era apenas boa educação, mas não pensei que me poria na rua como se fosse lixo. Um toque no ombro captou-lhe a atenção. Dominou a sua humilhação antes de olhar para ele. – Não estou a pô-la na rua, mas não pode ficar aqui. Não tenho garantia alguma de que não a seguirão ou de que não se meterão na sua vida, como tentaram ontem. – Imagino que lhes tenha dito para se manterem afastados? – Assim fiz. Tanto ao homem que estava de atalaia como aos seus patrões. – Nesse caso, estou certa de que ninguém se meterá comigo. Padua continuou a arrumar a mala. Oxalá ele se fosse embora. Imagens vívidas da tarde anterior invadiam-lhe o espírito enquanto ele ali estivesse. E saber que ele guardava ainda mais imagens eróticas só tornava tudo pior. Como era possível as pessoas conversarem depois de se deixarem levar por uma tal intimidade? Mas era tudo o que conseguia fazer para não asfixiar na sua própria respiração. – Não concordo – respondeu ele. – Seria melhor sair de Londres, para que lhe percam o rasto. – Se for necessário, posso ir para Birmingham. – Pelo menos era uma cidade que conhecia. Não se perderia por lá. – Isso não pode ser. Tenho de a manter debaixo de olho. Vou levá-la para Merrywood Manor, a casa de campo do Aylesbury. Partiremos de imediato. Padua parou de fazer a mala. Estacou completamente de pente e escova na mão. Ele tinha emitido um decreto, não um pedido. – Serei um empecilho por lá. – Não será. – Está desocupada, como esta casa? – Está lá o meu irmão. Eu também terei de estar. O nosso outro irmão vai regressar de uma viagem pelo continente e deverei estar lá para o receber e à esposa. Padua enfiou o pente e a escova na mala. – Estarei então decididamente a atrapalhar. – Uma pessoa pode viver a vida inteira naquela casa sem jamais se cruzar com outra, Padua. Se se isolar, vai ver que é entediante, mas pode fazê-lo, se quiser.


Padua espreitou para dentro da mala, para a roupa velha que conhecia demasiado bem. – Mas terá de ser. Não tenho nada adequado para usar à mesa de um duque. – Ninguém se vai importar com isso. Ai isso é que vão. Até ele reparara na sua aparência pobre quando ela o visitou a primeira vez, embora nunca o admitisse. Padua notou como ele analisava cada triste centímetro do vestido, da peliça e do chapéu. Eu também me vou importar. Não queria que a mulher do outro irmão tivesse pena dela. Uma coisa era ser uma mulher de poucas posses, outra era ser a hóspede intrometida e desleixada. Teria de se isolar e não obrigar esta família a fingir que recebia a toda a hora pessoas do seu nível. – Espero por si lá em baixo. – Voltou-se para sair. – Para onde viajaram? O seu irmão e a mulher? Ives encolheu os ombros. – Roma, Florença, Veneza, por aí. Alpes, imagino eu. França. Regressaram mais cedo do que pensavam. Optaram por encurtar a viagem. Veneza? Florença? Padua reponderou a sua decisão de ser invisível. Concedeu que talvez pudesse tolerar alguma piedade, se pudesse ouvir falar dos espaços e dos arredores dessas cidades. A mãe costumava perder-se em recordações sobre as suas visitas a Veneza e seria bom saber como as coisas teriam mudado. Fechou a mala depois de Ives sair. Antes de descer, escrevinhou rapidamente uma carta para Jennie e outra para Mr. Notley, informando-os de que sairia da cidade, mas que receberia o correio que lhe enviassem para a Langley House. Ives passou a maior parte da viagem até Merrywood ao lado do cocheiro. A alternativa, sentar-se no interior com Padua, prometia causar-lhe apenas desconforto. Era muito melhor enfrentar o vento outonal do que o receio palpável de Padua. A expressão no seu rosto quando saiu da Langley House não fora propriamente sociável. Nas estalagens, retirava-se para o quarto e tomava lá as refeições. Só um idiota não reconheceria os sinais de uma mulher que faz por manter a distância. Padua pensou que ele a seduziria se se visse sozinho com ela novamente. Que acabaria o que começara. Que passaria os longos quilómetros a namoriscar da


melhor forma que lhe ocorresse. Tinha jurado a si mesmo que não o faria, mas imaginava que as probabilidades de resistir ou não à tentação, caso a oportunidade se apresentasse, estivessem, no melhor dos casos, equilibradas. Assim, manteve também ele a distância, lá em cima no banco de madeira. Por vezes, pegava nas rédeas, para que os seus pensamentos não se ocupassem demasiado com a mulher fora da sua vista e a meia dúzia de centímetros de distância. Foram recebidos em Merrywood apenas por criados. Ives ficou a ver Padua ser conduzida pela governanta, saindo depois à procura de Lance. Encontrou o irmão na biblioteca, em traje de montar com uma boa dose de lama outonal. Lance assinalou ter dado conta da sua presença apontando para o brandy e erguendo o copo. – O Gareth e a Eva já chegaram? – perguntou Ives a Lance. – Amanhã. Ele escreveu há dois dias a informar dos seus planos. Pararam primeiro em Langdon’s End, e depois em Birmingham. – Deduzo então que a Eva esteja bem de saúde. – Ele não referiu que não estivesse. Ives atirou-se para uma cadeira. – Chegaste mesmo agora de montar? Lance abanou a cabeça. – Voltei há pelo menos uma hora. Foi uma cavalgada muito peculiar. – Como assim? – Encontrei o Radley também a cavalo e ele juntou-se a mim. Passei as duas horas seguintes na sua companhia. Sir Horace Radley era magistrado. Andava há meio ano a tentar provar que Lance matara o irmão mais velho, Percy. – Voltou a interrogar-te? Apresentarei a mais determinada objeção. Já basta o que basta. – Eu disse que foi peculiar, não típico. Tanto quanto parecia, podia até ser o meu melhor amigo, de tão jovial. A sua única observação sobre a lamentável nuvem negra que paira sobre mim foi dizer, e passo a citar: Tenho motivos para crer que foi cometido um erro e tratarei desse assunto em breve. – Estranho. – Não é? Passei esta última hora a pensar que é mesmo estranho. Ele não disse, por exemplo: Concluí que é inocente e que foi muito caluniado, pois não? Foi mais ambíguo do que isso.


– E, contudo, o tom amistoso insinuaria... – Absolutamente nada, talvez. Ives desejava que houvesse ali uma razão mais otimista. Esperava que essa conversa peculiar anunciasse o fim do assunto. – Deverei provavelmente informar-te de que não vim sozinho. Convidei uma pessoa – disse ele. – Foi o que o lacaio me sussurrou quando se apressou a entrar aqui para me informar da tua chegada. Uma mulher, disse ele. Uma tal de Miss Padua Belvoir. – Tenho a certeza de que vais gostar dela. – E tu? Quer dizer, gostas dela? Deves gostar, se a trouxeste para aqui. Nunca fizeste isso antes com as tuas atrizes e cantoras de ópera. E as tuas amantes não costumam apelidar-se de Miss qualquer coisa. – Não é nada disso. Não é o que estás a pensar. Lance levantou-se e caminhou lentamente até ao brandy. – E o que estou eu a pensar? – Não é minha amante, nem cantora de ópera, nem atriz. Lance recebeu toda aquela informação com um sorriso vago. Tornou a sentarse, esticou as penas e dedicou a Ives aquele tipo de atenção concentrada que já só raramente revelava. – O que é ela então? Se é para ser seu anfitrião, se calhar devia saber. – É... era... professora numa escola. Foi despedida e precisa de ajuda até decidir o que fará em seguida. – É a mesma mulher que foi minha hóspede na Langley House nestes últimos dias? O mordomo escreve-me quando há acontecimentos interessantes. Se calhar não sabias disso. Lá se iam as explicações simples. Ives pigarreou. – Conheci-a por causa de um caso em que estou envolvido. Quando soube da situação difícil em que se encontrava, não podia simplesmente deixá-la desamparada e sem sítio onde ficar. – É claro que não. Isso não seria cavalheiresco. Todavia, podias tê-la deixado em Londres, na Langley House, em vez de fazer uma viagem de vários dias na sua companhia e trazê-la para aqui. Poderias ter-lhe arranjado outros aposentos, numa estalagem, por exemplo. Ives amaldiçoou Lance entre dentes. Tinha-se habituado à falta de interesse do irmão no que quer que fosse e contara com isso. Ao invés, por algum motivo, Lance continuava a aprofundar o assunto. O buraco estava a ficar muito grande. – Não me pareceu sensato deixá-la em Londres.


Lance limitou-se a olhar para ele. – Passa-se o seguinte. Tenho motivos para achar que ela corre perigo de ser raptada por agentes do Ministério do Interior. A melhor coisa a fazer foi tirá-la da cidade. – Então, esta mulher captou a atenção do Ministério do Interior e tu chegaste à conclusão de que ela devia sair de Londres. E depois decidiste trazer este fardo problemático contigo para esta casa, para que o Ministério do Interior possa questionar-se ainda mais sobre qual poderá ser a tua relação com ela. Estou pelo menos a meio caminho da verdade? – Pelo menos a meio caminho. – Não te ocorreu que já temos nuvens suficientes a pairar sobre as nossas cabeças? – Lance dardejou-lhe um olhar muito direto. – Surpreendes-me. És supostamente o irmão sensato. O advogado, por Deus. E juntas os trapinhos com uma professora de quem o Ministério do Interior suspeita e decides vir aqui esconder a tua amada. Estaria Lance a dar-lhe um ralhete? Era preciso descaramento. – Não juntámos trapinhos nenhuns. – Ai, não? Bem, suponho que isso sejam boas notícias. Contamos que sejas sensato também nesse plano. Não te interessam as esposas entediadas, como ao Gareth. Não te interessa uma qualquer que te capte a atenção, como é o meu caso. Imagino que tenhas assegurado que ela traz uma mulher com ela, já que ela não é dessas. Ives bebericou um pouco de brandy. Lance atirou as mãos ao ar. – Não é dessas, com os diabos. Bem, eu proíbo-o. Enquanto esta professora estiver nesta casa, não podes seduzi-la. Não o tolerarei. Ives riu-se. – Agora és padre? – Alguém tem de assumir responsabilidade por esta pobre professora, já que a trouxeste sozinha. A pobre mulher está provavelmente assustadíssima, ao adivinhar as tuas vis intenções. – As intenções que presumes que tenho, queres tu dizer? Lance levantou-se e pousou o copo. – Conheço-te. E isso é tudo o que preciso de saber, porque as tuas intenções estão patentes nos teus olhos quando falas dela. Normalmente, é uma atriz qualquer que inspira essas chamas. Conhecê-la-ei ao jantar e transmitirei a tranquilidade que puder com a minha presença ducal.


Desta vez, Ives riu a bom rir. – Nunca conseguiste convencer nenhuma mulher de que a sua virtude estava segura, Lance. Duque ou não, a tua presença não lhes inspira essa confiança. – Serei então explícito e direi que, como mulher inocente, está sob a minha proteção em minha casa. – Dirigiu-se para a porta. – Bem, já que temos uma convidada, é melhor ir vestir-me. Ives engoliu de um trago o resto do brandy. Que altura inconveniente para o seu irmão indisciplinado se decidir tornar um picuinhas das regras da sociedade. Padua tinha pensado jantar no quarto. No seu muito luxuoso quarto. Comparativamente, o quarto de Londres era muito desenxabido. Era mais um apartamento do que um quarto, já que tinha o seu próprio e grande quarto de vestir. Muito especialmente, Padua adorava as janelas altas com vista para a paisagem ondulada de Merrywood Manor. Os cortinados eram tingidos de verdeclaro e rosa. O recado de Ives, trazido por um lacaio, desfez os seus planos. O duque de Aylesbury contava com a sua presença ao jantar, para lhe poder dar as boasvindas. Auxiliada por uma criada, vestiu-se o melhor que pôde, o que não era nada bem. Mesmo no seu melhor vestido, um modelo simples de musselina amarela, e o xaile de lã azul que herdara da mãe, Padua compunha uma fraca figura. Com um pouco de sorte, o duque concluiria que Padua não era grande maisvalia à sua mesa e não voltaria a exigir a sua presença. Ives chegou à sua porta enquanto ela tentava acalmar os nervos. – Pensei que talvez apreciasse um acompanhante. – Obrigada. Seria uma ajuda. Enfiou a mão dela no seu braço e conduziu-a até às escadas. – Ele é só moderadamente excêntrico. Caso ele comece a perder-se em eloquências, deixe-o falar à vontade. Não se preocupe com qualquer obrigação de contribuir para a conversa, nem sequer de concordar com ele. – Não sei porque insistiu em ter-me a jantar com ele. – Está curioso. É o seu anfitrião. Padua teria preferido que ele fosse um anfitrião ausente, como fora em Londres. Que pensamento tão grosseiro. Logo que entrou na sala de jantar, Padua decidiu que talvez não fosse um


suplício assim tão grande. O duque já tinha chegado, dado que era um serão informal. Examinou-a subtilmente enquanto a cumprimentava. Por seu lado, ela também o examinou. Apesar de ser tão atraente como o irmão, os olhos castanho-escuros e o cabelo negro do duque intensificavam a carga escura da sua aparência. Uma cicatriz desfigurava-lhe um dos lados do rosto, formando uma linha fina, pálida e irregular que conferia um toque de dramatismo severo à sua pessoa. A intensidade que por vezes via em Ives parecia um estado permanente no duque. Não teve dificuldade alguma em imaginá-lo de madrugada, em mangas de camisa, a enfrentar outro homem em duelo de espada ou pistola. Os lugares à mesa haviam sido dispostos de modo a proporcionar uma conversa próxima, com Ives em frente a Padua e o duque no topo da mesa. – O Ives contou-me que é professora – começou o duque. Ela brindou-o com um relato completo do seu trabalho em Birmingham e em Londres. Ele pelo menos fingiu estar interessado, apesar de reparar que olhava de vez em quando para Ives. Falou demasiado, mas tinha medo do vazio quando parasse. – Peço perdão – disse ela, ao terminar. – É para mim um tal prazer conversar com adultos que, por vezes, falo em demasia. – Gosto de saber tudo sobre as pessoas que vêm residir em Merrywood. – Não permanecerei muito tempo. Não ficarei verdadeiramente a residir. – Pode ficar o tempo que desejar. Insisto para que fique enquanto a Eva cá estiver. É a esposa do meu outro irmão. Ela vai ficar contente por ter outra presença feminina por aqui, para não ter de tolerar sozinha a nossa companhia. O duque voltou a sua atenção para Ives e quis saber como estavam as coisas em Londres. Os dois conversaram da forma casual e franca usual entre familiares. Ela deixou de ser o centro das atenções. Sentia-se bem assim. Concentrou-se na refeição deliciosa, ainda melhor do que aquela que tomara na Langley House. – Monta a cavalo? A pergunta veio invadir a sua admiração perante um bolo ornamentado com chantili. Só queria saltar para dentro do creme e ir comendo até encontrar a saída. Estava outra vez na mira do duque. – Nunca tive oportunidade. – Então deve aproveitar enquanto aqui estiver. É a única forma de ver a propriedade como deve ser. A égua alazã deve estar bem para a Padua, não


achas, Ives? – Diria mesmo muito bem. Amanhã levo-a a passear a cavalo. Era precisamente isto que ela sabia que iria acontecer se passasse tempo com a família dele. Normalmente, as suas circunstâncias não a envergonhavam, mas vezes sem conta dava por si a ter de dispensar a sua generosidade. – É muita amabilidade vossa. Contudo, não tenho roupa de montar adequada. Já serei suficientemente cómica em cima de um cavalo sem a figura ridícula com as minhas tentativas de manter alguma modéstia trajada com um vestido de passeio. Os dois cavalheiros não sabiam que dizer. – É claro que, se nunca montou a cavalo, não poderia ter traje de montar – disse Ives, por fim. – Devias ter pensado nisso, Lance. Agora estavam todos envergonhados. Decidindo pôr fim ao seu sofrimento, Padua levantou-se. – Espero que não levem a mal se eu me retirar e vos deixar entregues ao vosso porto e à vossa conversa. Puseram-se os dois de pé e desejaram-lhe boa-noite. – Ela é muito... alta. – Foram as primeiras palavras de Lance sobre Miss Belvoir enquanto ele e Ives passeavam pelo jardim. – Distintivamente alta – concordou Ives. – Imagino que distintivamente não seja uma palavra que ela tenha ouvido a maior parte da vida com referência à sua invulgar estatura. Teria ela, pelo contrário, ouvido palavras indelicadas? As pessoas podiam ser tão idiotas. Tontas e cegas. – A mim parece-me uma palavra muito adequada. O irmão olhou para ele na escuridão. – Isso dificultará as coisas. Arranjar roupa de montar, por exemplo. Duvido que possa usar as da Eva ou que possam ainda restar do tempo da nossa mãe. – Levo-a a dar uma volta pela propriedade de carruagem. Ela não tem de montar. – Tu, sozinho com Miss Belvoir, durante horas, numa carruagem... Que atencioso da tua parte quereres tomar conta da nossa hóspede. Imagino que não te aborrecerás em demasia. – Se isso acontecer, ela nunca o saberá. Tento ser bem-educado. – Não tentes beijá-la antes do caminho de regresso. Assim, quando ela


rejeitar os teus avanços, não restará muito tempo para ambos poderem escapar da situação. Ives resistiu à tentação de lhe fazer ver que Miss Belvoir já não o tinha rejeitado. Longe disso. Também evitou o convite a contestar o pressuposto de que tentaria beijá-la novamente. Ainda não tomara uma decisão quanto a isso. Pelo menos não definitivamente. – Em que quarto a governanta a alojou? – perguntou Lance. – Isso importa? São todos apresentáveis. – Quero saber. Acho que me podes dizer. Tu próprio o descobriste, não foi? – Só porque a acompanhei até à sala de jantar. – Ouviu-se a si mesmo a soar como um rapazinho a arranjar desculpas para uma transgressão descoberta. – É o quarto com os cortinados verde e rosa. – É um quarto bastante simples. Imagino que a governanta tenha achado que Miss Belvoir se sentiria esmagada se lhe pedissem para viver rodeada de sedas e ornamentos. Mas tem um quarto de vestir, por isso não sentirá que foi acomodada com os criados. – Continuou a caminhar durante algum tempo. – Ou foste tu que pediste para ela ser colocada naquele quarto? – Porque faria eu isso? – Sempre que me respondes a uma pergunta com outra pergunta, sei que estás a evitar a verdade. Aquele quarto não fica longe do teu quarto, eis porquê. – Não fica? Quem diria. – Faz o teu joguinho como quiseres. Estou convicto de que as tuas intenções desonrosas só te trarão frustração. – Sabes com toda a certeza quais são as minhas intenções, é? – Depois de a ver e de ver como olhas para ela, tenho a certeza de que as minhas suspeitas iniciais estavam corretas. Contudo, não acho que vás assaltar esse castelo já esta noite e, depois, amanhã, chega a Eva. Vou encarregá-la da missão de pau de cabeleira de Miss Belvoir. – Miss Belvoir não precisa de um pau de cabeleira. Tem pelo menos vinte e cinco anos e é uma mulher com opinião própria. É instruída e provavelmente mais inteligente do que tu. Além do mais, toda esta interferência é absurda, vinda de ti. – Estou apenas a seguir os conselhos do meu advogado. Lembras-te? Eu deveria ser o protótipo da perfeição no condado, pelo menos durante algum tempo. Deveria evitar regabofes de embriaguez ou convidar mulheres para esta casa para fins eróticos. Deveria até evitar ir aos locais onde se encontram essas mulheres, mesmo nos seus domicílios. Deveria cavalgar pela propriedade como


um bom patrão e ser generoso nas minhas relações com todas as pessoas que encontrar. Tenho até de tolerar a companhia do Radley durante meio dia, sabendo que, entretanto, ele está a ver se me enforca. Por isso, se eu tenho de fazer isso tudo, maldito sejas se vais ter o direito de ir atrás de uma mulher debaixo do meu teto enquanto eu tenho de me comportar como um monge. – Vais criar-me problemas simplesmente porque te dei conselhos sãos e muito sensatos? É assim que me agradeces por te manter longe das garras deles? – Estou a fazer isto porque seguir os teus conselhos me está a enlouquecer. Não tenho intenção alguma de sofrer sozinho. Obrigaste-me a vir para aqui, insististe que saísse de Londres, por isso agora vais sofrer também. Se eu precisasse de proibir o Gareth de usufruir dos favores da mulher dele enquanto aqui estiver, também o faria. – Tu estás louco. – Mais do que louco. Insano de tanto tédio. Mentalmente perturbado com a abstinência. Desequilibrado por causa de... – És demasiado dramático. – Tenta seduzir Miss Belvoir e verás como consigo ser dramático. Deixaram cair o assunto e tagarelaram sobre outros temas enquanto regressavam a casa. Mas a exigência caprichosa de Lance de ter um companheiro na dor não abandonava os pensamentos de Ives. Só tinha faltado a Lance desafiá-lo. Era o que mais faltava Ives permitir que o irmão desse ordens em qualquer assunto, quanto mais naquele, e ainda menos por Lance estar a ter uma crise de melindre em torno das suas próprias restrições. Seduzir Padua era agora praticamente uma questão de orgulho, caso optasse por escutar essa voz dentro de si.


CAPÍTULO 12

P

adua fez questão de terminar o pequeno-almoço antes de os irmãos descerem. Apreciou um passeio pelo jardim matinal, regressando em seguida ao quarto com um livro que pediu que um lacaio lhe procurasse na biblioteca. Não queria estar visível quando chegasse Gareth, o terceiro irmão. Contudo, ouviu a carruagem lá fora, por volta do meio-dia. Com a sua aproximação, a casa ganhou vida. Padua pousou o livro e saiu para outro quarto, onde poderia assistir às boas-vindas lá de cima. Identificou Gareth imediatamente. Era suficientemente parecido com os irmãos para que o elo familiar se tornasse inequívoco. Parecia um pouco mais novo do que Ives, mas não muito. Cabelo e olhos escuros, partilhava a altura e a boa aparência dos irmãos e, reparou ela, tinha um sorriso encantador, com um laivo de travessura. Gareth ajudou a mulher a descer. Padua deduziu imediatamente que Eva estava grávida. A moda atual já sabia esconder bastante bem, mas a postura de Eva indicava que estava a meio da gestação. As boas-vindas fluíram ruidosa e informalmente. Todos pareciam dar-se bem. Seguiram-se abraços, risos, uns socos no braço e outras brincadeiras de homens, e depois entraram todos lentamente em casa. Eva olhou para cima mesmo antes de desaparecer sob o tejadilho do pórtico. Uma mulher atraente, mas não uma grande beldade, observou Padua. De estatura média, cabelo castanho e um rosto agradável. Padua sentiu-se mal por isso a ter aliviado tanto. Se Eva fosse uma mulher de beleza estonteante, tudo se tornaria ainda mais confrangedor. Contudo, aquela mulher parecia ser aproximadamente da sua idade e nada pretensiosa. Regressou ao seu quarto e ao seu livro. Mais cedo ou mais tarde, teria de descer, mas para já não se intrometeria no reencontro familiar. Nessa noite ficaria a conhecer o terceiro irmão e a mulher e seria uma convidada. Contudo,


do dia seguinte em diante, era sua intenção fugir a qualquer contacto. – O Ives trouxe uma visita – disse Lance. – Uma mulher. – Vão conhecê-la ao jantar. – Por ora, Ives queria pôr esse assunto de lado. – Que mulher? – perguntou Gareth. – É só uma mulher – respondeu Ives. – Uma amiga que precisava de se afastar da cidade. Gareth aguardou, curioso. Olhou para Lance. Olhou de novo para Ives. – Nunca ouvi dizer que alguma vez tivesses trazido para aqui alguma das tuas amantes. – Não é minha amante. – Isso dificilmente chega para matar a minha curiosidade. Bem pelo contrário. Porque não está agora aqui connosco, para eu poder vê-la com olhos de ver? Espero que não lhe tenhas dito que nos importaríamos com a sua presença quando chegássemos – disse Gareth. – Ela optou por ficar lá em cima. Vais conhecê-la ao jantar, mas não me parece que ela queira juntar-se ao grupo muitas vezes. – Porque não? É de alguma forma imprópria? – Eu nunca traria uma pessoa imprópria para Merrywood. – Então, porquê... – Ele não quer falar sobre isso agora – disse Eva, exasperada. – Pois não, Ives? Os homens são piores do que as mulheres, estou convencida disso. Eu sei quando não me devo intrometer. Pelo menos ainda não. – Obrigado, Eva. O vosso regresso é tudo o que importa agora e não a curiosidade com uma visita, curiosidade essa que será satisfeita daqui a umas horas, quando a conhecerem. Queremos saber da vossa viagem. Foi tudo o que esperavam? Eva era uma mulher amável, sensata e nascida na pequena nobreza. Ives gostava dela, apesar de ainda achar espantoso Gareth se ter casado com ela. Gareth fizera uma mal-afamada colheita entre as esposas dos aristocratas antes de conhecer Eva, e qualquer pessoa podia ser perdoada por achar que formavam um casal peculiar. E que ainda por cima se casou por amor. Eva vira o melhor que Gareth tinha para dar, imaginava ele. Poderia mesmo ser a única pessoa que conhecia realmente o seu irmão bastardo, com exceção da amante do duque que havia dado Gareth à luz. – Foi magnífico. Muito melhor do que sonhei. Tenho dezenas de quadros e


livros de esboços – contou Eva. – O mês em Florença a estudar com o Signore Rosselli, a subir às colinas da Toscânia... vou recordá-lo para sempre. – Então foi mesmo pena que tenham sido obrigados a encurtar a viagem – disse Lance. – Foi pelo melhor dos motivos. – Eva pousou instintivamente a mão na protuberância abaixo do peito. – Ah. Mas é claro. Não me apercebi de que tinha sido esse o motivo – atalhou Lance. – Espero que esteja de boa saúde? Nada a correr mal, espero eu. – A Eva está de ótima saúde. Achei apenas que era melhor passar os últimos meses em Inglaterra – disse Gareth. – Não percebes mesmo nada destas coisas, pois não? – Não percebo absolutamente nada do assunto. Eva riu-se. – Não tarda nada começo a ficar um pouco desajeitada. Não é boa ideia fazer viagens marítimas nesse estado, se pudermos evitar. Não me importei de regressar. Queria ver a minha irmã, e todos vocês, claro. Eva levantou-se. – Bem, vou descansar até à hora de jantar. Esta é outra característica do estado em que estou, Aylesbury. As mulheres como eu precisam de muito descanso. Mal Eva saiu, Lance levantou-se, dirigiu-se à secretária e tirou de lá alguns papéis. – Gareth, quero que saibas que os últimos quadros foram retirados há uma semana. Tens aqui os recibos que lhes pedimos para assinarem. Lance estava a referir-se a uma investigação em que Gareth trabalhara na primavera e que envolvia um grande esconderijo de quadros roubados. Envolvera-se a pedido de Ives, para depois se ver muito mais emaranhado na história do que seria desejável. – Ainda demorou bastante – disse Gareth enquanto analisava os recibos. – Graças ao Ives, o teu nome ficou sempre fora de toda esta história até ao final. Bem como os nomes de quaisquer outros elementos da família. Como se previa, quando aqueles cavalheiros receberam a notícia de que todos os seus tesouros tinham sido encontrados seguros e incólumes, ninguém se interessou por aí além pela forma como os quadros haviam ido parar a uma cabana junto à estrada ou onde tinham estado todos aqueles anos desde o desaparecimento. Gareth olhou para Ives. – Acabou-se, então.


– Sim, finalmente, acabou-se – respondeu Ives. * Uma levíssima pancadinha na porta chamou a atenção de Padua. Abriu-a e deu com Eva do lado de fora. – Espero não estar a incomodá-la – disse Eva. – Sou a Eva Fitzallen. Quis conhecê-la e dar-lhe as boas-vindas a Merrywood. – É muito amável da sua parte. Gostaria de entrar? Eva pôs-se à vontade, sentando-se numa cadeira. Tinha tirado o chapéu e a peliça e estava envolta num longo xaile veneziano. – O Ives disse que optou por não se juntar a nós hoje, quando chegámos. Espero que não receie estar a incomodar. – Era um momento de família. A minha presença nada mais faria do que acrescentar um silêncio aqui e ali. – É possível que sim. Na verdade, a minha presença também faz isso, quando aqueles três se juntam. Sentem-se obrigados a ser bem-comportados. Quando ficam sozinhos, parecem-se mais com um grupo de rapazinhos a rebolar pela colina abaixo. – Mas a verdade é que os conhece. A minha relação, mesmo com o Ives, é ainda recente e não é profunda. O sobrolho de Eva elevou-se quase impercetivelmente. – Posso, de alguma forma, ajudar a tornar a sua estada mais confortável? Alguma coisa que lhe possa contar sobre a família? – Já que tem a generosidade de o oferecer... Surpreendeu-me dizer que o seu nome é Fitzallen. – Ahhh. O Ives não explicou. Que descuidado. O Gareth é bastardo. A mãe dele não era a duquesa, mas sim a amante de longa data do duque. Mas imagino que tenha deduzido isso nestes últimos minutos, desde que aqui cheguei. – Havia mais um irmão, não é verdade? – O Percy. Era o mais velho e o anterior duque. Morreu inesperadamente na primavera. Não estarei a cometer uma indiscrição se lhe contar que há quem suspeite de que o Lance possa ter tido alguma mão nesse assunto. Irá certamente ouvir alusões ao tema quando eles conversarem e se for a qualquer sítio no condado é assunto comum de mexerico. Não há motivo nenhum para isso, é evidente, mas estas coisas têm tendência para ficar a pairar. – É uma família complicada.


– Não mais do que era a minha. E se calhar a sua também? Não vou perguntar por que razão o Ives a trouxe para aqui. Não terá sido para a grandiosa sedução de que suspeitam os irmãos, parece-me. Para isso ele não precisa propriamente de transportar uma mulher até Merrywood e imagino que esta casa seja o último lugar onde seria conveniente fazê-lo. – Não, não é essa a razão por que estou aqui. – Ele trouxe-me para aqui porque o meu pai está preso e as autoridades acham que sou cúmplice. Ponderou como esta mulher tão doce reagiria ao ouvir tal coisa. – Em todo o caso, se ele decidir enveredar por esse caminho, deve informarme. Se quiser impedi-lo, claro está. Caso contrário, esteja à vontade para seguir o caminho que entender. Bem, isso é que é franqueza. Eva olhou para Padua da cabeça aos pés. – Espero que me perdoe por ser tão direta, mas... O Ives disse que achava que a Padua quereria evitar a nossa companhia. É livre de fazê-lo. Contudo... Se calhar estou a pressupor demasiado, porque há não muito tempo eu teria reagido exatamente da mesma forma... Espero que não esteja a pensar que se sentirá desconfortável por não ter o guarda-roupa adequado. Padua nem conseguia acreditar na rapidez com que Eva adivinhara essa parte. – Disse ao Ives que pareceria deslocada e pior do que um familiar pobre. Normalmente não me importo com as minhas circunstâncias, mas também não costumo visitar casas como esta. – Que respondeu o Ives a isso? – Disse que ninguém se importaria com isso. – A questão é que a Padua se importa. É como se ele entrasse num dos clubes a que vai, vestido como um homem do campo, aí ele importar-se-ia. Os homens como o Ives proferem afirmações magnânimas de que essas coisas não importam, mas esperam que as mulheres continuem a apresentar-se e se mantenham elegantes e na moda. Afinal de contas, tudo o que têm na vida são mulheres e dinheiro. – Eva cravou o olhar em Padua. – Vamos ver o que podemos fazer. A sua altura vai complicar as coisas. Não dá para tirar simplesmente roupa minha da arca e emprestar-lha. Contudo, as criadas desta casa sabem usar uma agulha para fazer alterações, por isso talvez possamos engendrar alguns conjuntos, para que possa sentir-se mais confortável, pelo menos ao jantar. – Não sei o que dizer. – E não sabia mesmo. A amabilidade de Eva comoveua. – E adivinhou logo tudo.


Eva tomou a mão de Padua e segurou-a entre as suas. – Quando conheci o Gareth, só me restava uma cadeira dentro de casa. Não tinha um vestido novo há seis anos. Normalmente, também não me importava com as minhas circunstâncias. Mas havia ocasiões em que as sentia mordazmente. – Puxou todo o seu peso até ficar de pé. – Agora tenho de ir descansar, como disse que faria. O Gareth ralha comigo se eu passar a tarde inteira na conversa, embora não me importasse. Padua usou novamente a musselina amarela ao jantar. Graças à perceção de Eva e à forma como a tranquilizou, não se sentiu demasiado deslocada. Mas assumiu o papel de observadora na maior parte do tempo. Continuava a ser um encontro de família e os elementos dessa família tinham muito a contar uns aos outros. Depois da refeição, Eva retirou-se. Padua seguiu-a e saiu da sala de jantar. – Vou retirar-me – disse Eva logo que se encontraram sozinhas. – Porque não aproveita a biblioteca? Ao jantar demonstrou um forte interesse pelas cidades que visitámos na nossa viagem. Tenho a certeza de que há lá livros com gravuras das paisagens. Sei que há um com desenhos que mostram as composições artísticas que podem ser vistas, incluindo as pinturas de Giotto, na cidade com o seu nome. – A minha mãe falou-me desses quadros. Vou procurar esse livro. – Eu mostro-lhe onde está. Eva levou-a à biblioteca. Quando Padua viu a sua dimensão impressionante, duvidou que conseguisse encontrar facilmente qualquer livro. Eva foi diretamente a uma das estantes, esquadrinhou as prateleiras e esticou-se. Tirou para fora um tomo grande e pesado sobre arte renascentista, pousou-o numa mesa e depois saiu. Padua sentou-se à mesa e folheou. Os quadros que procurava estavam mais no início, já que Giotto os havia pintado dois séculos antes do início da Renascença propriamente dita. Examinou uma gravura do exterior da capela e imaginou a mãe a aproximar-se. O seu espírito preencheu as cores e a paisagem em falta. Virou uma página para ver o interior da capela, e outra em seguida. Cada página ostentava agora imagens gravadas de cada cena do ciclo de frescos. Olhar para elas evocava a voz da mãe. Sucumbiu à nostalgia e permitiu-se uma digressão pelas memórias.


– Que infame excesso – foi a crítica que Gareth murmurou entre dentes enquanto olhava sobre o ombro. Era de noite e ele, Lance e Ives estavam no cemitério da família. A seus pés, invisível na escuridão, jazia uma pedra retangular simples que assinalava a sepultura do pai. Tinham vindo cá fora fazerlhe um brinde. O alvo do escárnio de Gareth estava uns metros mais adiante. Uma monstruosidade de sepulcro elevava-se a quatro metros de altura, a pedra branca a cintilar ao luar. Naquela sepultura em particular repousava o seu irmão mais velho, Percy. Ninguém sugerira brindar a ele também. – Reconstruí a cabana que ele mandou incendiar – disse Lance. – Agora tenho lá rendeiros. – E a cabana vazia lá perto? – perguntou Gareth. – Fui lá visitá-la depois de ter sido esvaziada do seu património mais recente. Descobri que o nosso irmão a usava como o seu covil privado. Havia indícios de que era ali que dava azo aos seus apetites. – Um local de encontros discretos? E eu aqui a pensar que ele nunca se envolvia em aventuras amorosas – disse Ives. – Pensava que tinha optado por ser virtuoso só para ser melhor do que nós. – Olhou para baixo, para a lápide da sepultura do pai. – Para ser melhor do que ele. – Suspeito de que o seu desejo de privacidade envolvia muito mais do que simples discrição – afirmou Lance. – Opto por não dizer mais do que isto. Há apenas muita coisa sobre o nosso irmão que nós não sabíamos. Por mim, não me importava que assim continuasse. Foram caminhando a passo lento até casa. – Ela é muito alta, não é? – perguntou Gareth. Ives suspirou. – Estás a falar de Miss Belvoir, deduzo eu. – De certeza que não estou a falar da Eva, que essa tem uma estatura média. – Concordo que sim, é alta. Não sei porque toda a gente sente necessidade de o comentar. Apesar de lhe conferir uma elegância distintiva, é na minha opinião a sua qualidade menos digna de nota. Gareth caminhava à sua direita e Lance à esquerda. – Claro que ela vale muito mais do que a altura que tem – afirmou Gareth num tom meditativo. – Apenas, quando a vemos, a altura dela é um pouco surpreendente. E aí começamos a pensar.


– A pensar? – A imaginar. Lance riu baixinho. Ives lançou um olhar irado na direção do perfil de Gareth na sombra. – A imaginar o quê? Gareth encolheu os ombros. – Ela é quase uma cabeça mais alta do que a maioria das mulheres, por isso não conseguimos deixar de imaginar como seria. Calcular a diferença que faria. Ives contraiu a mandíbula. Os punhos cerraram. Gareth continuou a caminhar, sem consciência de que corria perigo. – Para um homem de estatura média, poderia revelar-se confrangedor, mas para um homem alto, poderá ter as suas vantagens. – Para certas posições, isso é verdade – contribuiu Lance. Ives rodou a cabeça num ápice e olhou ameaçadoramente para Lance através da escuridão. – Sim, é isso que quero dizer – continuou Gareth, envolvendo-se no tema. – Por exemplo, de pé, revelar-se-ia provavelmente impossível tentar erguer uma mulher tão alta, mas como se calhar não seria preciso fazê-lo, ocorrem-me nesse caso outras opções. Ives sentia a cabeça prestes a explodir. O facto de ele ter entrado neste tipo de cogitação no momento em que conheceu Padua não significava que outros homens se arrogassem o direito a fazê-lo, quanto mais os seus irmãos. – Nem acredito que estão a falar de forma tão indigna desta mulher, que é uma senhora e nossa convidada. Gareth voltou a cabeça em reação a tal acesso de fúria. Inclinou-se para a frente e dirigiu-se a Lance. – Que se passa com ele? – Não se passa nada comigo. Estou apenas chocado, é tudo, por estarem a especular sobre uma mulher quando ela não vos deu qualquer motivo para isso, além de ser alta por natureza. – Eu não estou a imaginá-la a ela, mas sim a ideia. A mulher que estou a imaginar é anónima. Embora não consiga perceber porque estás tão irritado. Costumamos sempre pôr-nos a imaginar e a especular. Nunca protestaste antes – disse Gareth. – A menos que... Ahhh. As minhas desculpas, Ives. Disseste que não era tua amante, por isso parti do princípio... Não percebi que tinhas um fraquinho por ela. – Não tenho um fraquinho por ela.


– Ele não tem um fraquinho por ela – disse Lance em eco. – Não é assim. – Não é assim – repetiu Lance. – Miss Belvoir é apenas uma conhecida. Uma amiga. Uma mulher que precisava de refúgio. Não é isso, Ives? – Acho que vou dar-vos uma tareia aos dois agora mesmo. – Está irascível, não está? – perguntou Gareth. – Miss Belvoir é um assunto sensível. – Deduzo que isso signifique que ela não o poderá ter. – É essa a minha conclusão. Pelo menos até agora. Nem ele a vai ter a ela, enquanto estiverem aqui. Eu proibi essas atividades sob o meu teto. Fez-se silêncio. Continuaram a caminhar. Ives tentou libertar a fúria que o dominava. – Só para ver se eu percebo – disse Gareth. – Proibiste-o apenas a ele ou esta é uma nova regra da casa? – O decreto do Congresso sem Sexo de Merrywood aplica-se a toda a gente – disse Ives. – O Lance está muito chateado por ter de se comportar, por isso decidiu que ninguém terá prazer se ele não o pode ter. Também estás proibido. Ele só se esqueceu de to dizer até agora. – Não sejas parvo – disse Lance. – A mulher dele está prestes a parir. Não era preciso proibi-lo. A natureza já fez isso por mim. Ives olhou para Gareth. Gareth fez um sorriso tão largo que o luar lhe refletiu os dentes. Separaram-se quando entraram em casa. Lance retirou-se para o seu apartamento, tão ignorante como sempre sobre as mulheres no estado de Eva. Gareth foi à procura da mulher, presumivelmente para gozar algum prazer proibido com ela, com ou sem decreto. Ives decidiu que lhe apetecia um trago de brandy e dirigiu-se à biblioteca. Para sua surpresa, encontrou Padua. Pensava que se havia retirado, tal como Eva. Estava sentada numa das mesas da biblioteca, a ler um grande livro. O candeeiro perto da cabeça lançava um suave brilho dourado sobre o seu perfil e o corpete do vestido amarelo. Ela não o ouviu entrar. As suas pestanas grossas mantiveram-se a meia-haste sobre os olhos que liam. Ives manteve-se junto à porta e admirou a imagem que ela compunha. O corpo longo e ágil estava inclinado sobre o livro, mas as costas permaneciam direitas. O que quer que estivesse a ler era algo que lhe transmitia alegria. Um ténue sorriso aligeirava-lhe a expressão, como se escutasse um amigo a falar.


Devia deixá-la entregue àquilo que a cativava naquele momento, mas como é evidente não conseguia. Não conseguia. Não sabia que tinhas um fraquinho por ela. Se calhar tinha mesmo. O desejo, por si só, seria mais simples. Ele sabia como lidar com o desejo. Não era a primeira vez, desde que a conhecera, que Ives ignorava o bom senso que lhe dizia para se afastar, que o alertava para o facto de que um envolvimento implicava um comprometimento, no melhor dos casos, ou um escândalo, no pior, que suspeitava de que tudo isto pudesse ter sido planeado por ela e que ela pudesse estar a puxar os cordelinhos enquanto ele fazia o que ela queria como uma marioneta. Naquele preciso momento, tudo o que importava era que ela era encantadora, que estavam sozinhos e que ele a desejava.


CAPÍTULO 13

P

adua percebeu que não estava sozinha um momento antes de se regozijar por ter conseguido traduzir uma inscrição em italiano numa das gravuras. Não fora emitido um único som, mas reconheceu a presença na sala pela forma como o ar se transformara. E também sabia quem era. Não se voltou para olhar. Não o ousou antes de acalmar a reação que se espalhara por todo o seu ser. Deleite. Excitação. Expectativa. Nenhuma daquelas emoções involuntárias anunciava coisas boas. Ives caminhou até ela. Padua foi então forçada a olhar e a reconhecer a sua presença. – Está profundamente absorta nesse livro – disse ele, olhando sobre o ombro dela. – O que é? – Foi a Eva quem mo mostrou. Está cheio de gravuras de pinturas e edifícios dos locais que ela visitou. – Os locais que também deseja visitar? Padua anuiu e voltou a página. – Deduzo que já tenha visitado a maioria destes lugares. – Não tantos quanto possa pensar. Como a maioria dos homens da minha idade, a guerra veio dificultar grandes viagens. Mas fui quando a guerra terminou. Visitei Veneza e Florença, mas não fui a Pádua, por exemplo. – Ainda assim, invejo-o. Ives esticou-se, envolvendo-a, e virou outra página. – Terá a sua oportunidade. Não tenho dúvida. Padua não via a nova imagem. A proximidade de Ives distraía-a. A sua confiança de que concretizaria os seus sonhos comoveu-a. Oxalá ela tivesse tanta fé em si mesma. Ele não tinha forma de saber como, para uma mulher, a simples passagem do tempo conseguia minar a autoconfiança. A respiração de Ives aquecia-lhe o pescoço e o ombro quando se esticava para voltar uma nova página. Ela só conseguia controlar o tremor em todo o


corpo recorrendo a toda a sua força de vontade. Padua fechou o livro e rodou na cadeira. Aconchegou um pouco mais o xaile azul. – Acho que agora vou para o meu quarto. – Ainda não. – Ives estendeu a mão para a ajudar a levantar-se. – Venha sentar-se um pouco e tranquilize-me dizendo que não se sentiu esmagada pela minha família. Padua devia sair. Todos os seus instintos gritavam que deveria fazê-lo. Aceitou a mão de Ives. Ele conduziu-a até um divã. Ela sentou-se. Ele sentou-se ao seu lado. De tanto bater, o seu coração parecia palpitar para fora do peito, atirando-se para o ar. O que já acontecera entre eles existia agora ali no pequeno espaço que separava os seus corpos, a suplicar por atenção. Mesmo que tivesse quinze anos, ela teria sentido a armadilha que Ives se tornara desde que entrara na biblioteca, e agora era muito mais velha, e longe de ser ignorante. – Apreciei muito o jantar – disse ela. – Não me senti esmagada. A Eva foi muito amável e é uma revelação ver como três irmãos se tratam quando não estão a ser observados por pessoas de real relevância. – Não aceitarei a forma como se descreve a si mesma. – Quis dizer que não estavam presentes convidados a sério que pudessem afetar a vossa camaradagem e as graças. Puderam ser todos tão francos quanto desejaram. Duvido que se comportem da mesma forma entre os vossos pares em jantares ou bailes de Londres. – Concedo que baixámos a guarda, apesar da sua presença. Não estávamos juntos há alguns meses. – Fico contente por não terem feito cerimónia. Se a conversa tivesse sido formal e contida, eu teria ficado a pensar se teria sido por minha causa e ter-meia sentido desconfortável por ter roubado a alegria do vosso reencontro. Ives voltou-se para ela. Levantou o braço e pousou-o nas costas do divã. – Estão todos curiosos consigo. – O que lhes disse? – Nada sobre o seu pai. Expliquei que é uma donzela em apuros que precisava de sair de Londres durante algum tempo. Disse-lhes também que não é minha amante. – E eles não reconheceriam a sua amante? – Não neste momento, já que não há nenhuma. Padua gostou de o ouvir, mais do que deveria.


O olhar de Ives desviou-se para o cimo da cabeça de Padua. Ela sentiu vagos movimentos no cocuruto, enquanto ele brincava com alguns caracóis com a ponta dos dedos. A pequena flutuação lançava-lhe felizes arrepios pela espinha abaixo. – Também tentam perceber se a minha intenção é seduzi-la. – Não sabem que não é um homem de seduções? – Não é o tipo de coisa que lhes tenha explicado. E mesmo que tivesse, o facto de a ter trazido para aqui levá-los-ia a especular. O Lance já está tão desconfiado que o proibiu. – Estou a tentar imaginá-lo a dizer tal coisa. – Riu-se. – Suponho então que, se o duque o proibiu, estarei segura. Ele inclinou-se para ela e beijou-lhe a face. – Não me parece. – Beijou-a de novo. – Não faço a vontade ao Lance quando tem ataques de hipocrisia. Padua não fingiu não gostar daqueles beijos suaves. Imaginou até onde aquilo a conduziria se não o travasse. Reagiu com menos alarme do que lhe ditaria o bom senso. Mas isso acontecia provavelmente porque o seu corpo a estava a sabotar, vibrando profundamente com a ideia de que poderia uma vez mais sentir o pico do prazer sensual. – Imagino que, se fosse essa a sua intenção, esta sala seria o ideal, desde que não entrasse nenhum criado ou membro da família – disse ela, nervosamente. A respiração de Ives aquecia-lhe a pele do ombro. – Tem jeito para usar mesas e aquela ali, onde eu estava a ler, é grande e robusta, por exemplo. Sem o candeeiro, ficaria à sombra, mas também não ficaria aqui demasiado escuro. Não que eu esteja a sugerir que devêssemos repetir a nossa última indiscrição. Ambos concordámos que seria pouco recomendável. – Padua forçou-se a impedir que a torrente nervosa de palavras continuasse a jorrar pela sua boca. Nesse preciso momento, ele voltou a cabeça e silenciou-a com um beijo nos lábios. – Lembra-se de termos acordado isso? – O apelo à sua consciência saiu-lhe com um guincho, a pergunta era agora irrelevante. Ives segurou-lhe o rosto com as mãos em concha e beijou-a bem fundo. A intimidade descompô-la. Ela agarrou-lhe os braços e beijou-o também. As suas línguas lutaram e ele ganhou. Os seus beijos dominavam-na, reclamando-a sem tréguas. Os seios e as coxas de Padua ficaram tão sensíveis, como se ele estivesse a lamber-lhe a pele como ela desejava que fizesse. Se ela erguesse as pálpebras, poderia ver a mesa da biblioteca. Sim. Queria


que ele a tocasse e beijasse até ficar novamente insana e começasse a gritar de tanta intensidade. Queria sentir aquelas plumas no interior das suas pernas a fazê-la vibrar. Os beijos pararam e ela fitou-o, os olhos severos e pensativos, a escassos centímetros dos seus. Sim. Um cálculo. Uma decisão. Sim. Ives levantou-se e pô-la de pé. – Vá agora lá para cima. Depressa. Por momentos, ela não se mexeu. Seguramente tinha ouvido mal. Não queria ir. Ele não percebia isso? Ele voltou-lhe as costas e afastou-se. Embaraço e frustração colidiram com estrondo. Atordoada, Padua cambaleou para fora da biblioteca. Quando chegou à porta, voltou-se. Ele ali estava, de braços cruzados, olhando o vazio, de perfil hirto como que esculpido em pedra. Supostamente és o irmão sensato. Pois claro. Ives andava de um lado para o outro no apartamento como um animal enjaulado. Sentar-se revelou-se tarefa impossível. Nada o distraía. Tivera um comportamento muito sensato com Padua. Honrado. E usufruía agora da paz dos virtuosos? Queria mas é dar murros na parede. Não te interessam as esposas entediadas, como ao Gareth. Não te interessa uma qualquer que te capte a atenção, como é o meu caso. Não, lá isso é verdade. Isso era demasiado desleixado. Ineficiente. O prazer mutuamente acordado fazia muito mais sentido. Não havia possibilidade de mal-entendidos, separações dramáticas, poesias angustiadas. Também se evitavam as mentiras e os arrependimentos. E, graças a Deus, poucas noites exasperantes como esta, uma vez estabelecido o acordo. Não lhe interessavam as esposas entediadas e, decididamente, também não as filhas de prisioneiros de Newgate. Evitava percorrer novamente a lista das razões por que seria estúpido manter uma relação com Padua Belvoir. Ali só havia sarilhos. E dos grandes. Não importava se era a filha inocente ou a cúmplice conivente. Ives arrepender-se-ia. Aliás, já estava arrependido. Parou de deambular em pleno quarto de vestir. Um laivo de clareza implacável penetrou no seu espírito febril e deu-lhe a devida atenção para uma


análise mais cuidada. Estava a agir como se estivesse perante escolhas futuras, mas as escolhas já haviam sido feitas. Ives já estava profundamente envolvido. Intencionalmente ou por acidente, por desejo ou negligência, a sua posição no caso Belvoir estava comprometida. Estaria a mentir a si mesmo se fingisse que a realidade era outra. Ou seja, não tinha nada a perder. Padua preparou-se para se deitar e, em seguida, dispensou a criada. Transferiu o candeeiro para uma mesa do quarto de dormir, aconchegou o xaile azul sobre a camisa de dormir e abriu um livro que trouxera da escola. Um romance de Miss Austen que tinha conseguido resgatar quando Mrs. Ludlow o confiscara a uma das meninas e o declarara escandaloso. Padua ainda não tinha encontrado essas partes e estava a perder a esperança de que houvesse sequer alguma. Permanecia agitada com os beijos de Ives. Estava grata por ele a ter mandado embora. Ou não estava? Não queria mesmo ter uma relação com Ives. Ou queria? Tivera a felicidade de um dos dois se ter comportado com bom senso e honradez. Não ela. Não, ali estava ela sentada de livro no colo, a tentar ignorar a excitação e o desejo ainda em ebulição, tentando convencer-se de que estava aliviada, e não desiludida. Não conseguia mergulhar na história como no dia anterior. E o pouco de atenção que lhe conseguia dedicar só a deixava zangada. Mr. Darcy estava prestes a fazer a pior proposta que um homem poderia fazer. Era o tipo de proposta que Padua Belvoir poderia receber na improvável possibilidade de um dia sequer ter direito a alguma. Uma levíssima pancada soou na porta, tão leve que quase não a ouviu. Pensando que talvez Eva tivesse visto a luz sob a porta, levantou-se e abriu. Ali estava Ives em mangas de camisa. Sem casaca, sem plastrão. Sem pretextos. Não disse uma palavra. Não era necessário. Anunciara as suas intenções com a sua simples presença e pela forma como olhava para ela. Percecionou nele uma tensão, muito semelhante à de um animal antes de soltar toda a sua pujança física. Na cabeça de Padua, uma espiral de centenas de pensamentos embrulhados rodopiava. Devia pensar na sua reputação. Deveria fingir que não tinham ecoado


na sua cabeça sinos de alegria e triunfo quando viu quem estava à porta. Não deveria permitir que a beleza dele a fizesse vacilar, mas, oh, a sua aparência inspirava nela uma reverência ainda mais intensa do que antes. A expectativa que pairava no ar anunciava a iminência da catástrofe ou da vitória. A excitação, em si, hipnotizava-a, mas ele também. – Não devia estar aqui. – Saiu-lhe com a respiração, quase num sussurro. – Não. – Nada mudou na sua expressão. Nem a rigidez da mandíbula, nem o fogo nos seus olhos. – Pode fechar a porta, se quiser. Padua agarrou a extremidade da porta. Podia fechá-la, é claro. E deveria. Os olhos dele fixaram-se nos seus. Procuravam a sua decisão. Ele viu-a antes de ela própria o saber. Com um único passo, ele havia transposto o limiar da porta e ela estava nos seus braços. Todo o seu corpo crepitava de paixão, relâmpagos silenciosos numa tempestade palpável. Ergueu-a, fechou a porta com um pontapé e virou-a. Ofegante e instável, Padua sentiu-se pressionada contra a porta. O corpo dele aprisionava-a ali, enquanto a reclamava com um beijo furioso que pôs o mundo a girar ainda mais à sua volta. Dominou-a e comandou a sua resposta com beijos escaldantes na boca e no pescoço. O desejo que Padua trouxera consigo até ao quarto, e que a havia distraído e atormentado, afluiu numa vaga de sensações. O calor e a força de Ives titilavam em todo o seu corpo. A energia selvagem que emanava enquanto a manuseava incitava vibrações eróticas baixas e profundas. Quando ela lhe agarrou desesperadamente os ombros, para se segurar a alguma coisa tangível e real, ele não o permitiu. Prendeu-lhe as mãos nas dele e ergueu-as acima da cabeça, para que Padua não tivesse outra hipótese senão submeter-se ao caos sensual. E ela submeteu-se, sim, aos beijos que aliciavam o seu ser primitivo, à ânsia que lhe palpitava entre as pernas, ao corpo tão próximo que se tornou o foco de todos os seus sentidos. Ives libertou-lhe os ombros e o pescoço do xaile, que flutuou para onde ela já não o podia ver. Beijando-a com força, puxou para cima com impaciência a camisa de dormir. O ar arrefecia-lhe as pernas, e depois as coxas e as ancas. Ele encostou o joelho entre as pernas dela, erguendo-a até ela ficar montada sobre uma rígida proeminência que lhe pressionava a vulva. Os dedos dos pés mal raspavam o chão. A pressão excitava-a, completamente. Tremores profundos e obscuros de prazer dominavam-na por completo. – Já chega. – Ives soltou-lhe as mãos e despiu-lhe a camisa de dormir. Uma nuvem de tecido branco envolveu-lhe a cabeça. E depois estava nua, com o


corpo a centímetros do dele, esperando a tortura que as suas carícias lhe poderiam trazer. Ele olhou para baixo enquanto movimentava as mãos pelas pernas e as coxas dela acima. Parou, por instantes, para depois deslizar um polegar entre o joelho e a púbis. Pressionou com precisão exatamente naquele lugar que Padua não cessava de ondular para sentir alívio. O gemido profundo dela fez nascer luzes perversas nos olhos dele. – Linda – murmurou, enquanto observava as suas mãos deslizando pelo corpo dela. – É elegante, sinuosa. – Cobriu-lhe os seios em concha com as mãos. Com os polegares, afagava-lhe os mamilos. Uma excitação torturante entrou-lhe na corrente sanguínea. – Beije-me agora, enquanto a enlouqueço de prazer. Ela envolveu-lhe o pescoço com os braços e beijou-o o melhor que soube. Tentou usar a língua como ele fizera, e os dentes. Entretanto, as mãos dele provocavam-lhe os seios, aumentando a intensidade do prazer, até sentir que se aproximava aquela loucura especial. O tormento erótico fê-la choramingar dentro dos beijos e ofegar sem ar. Deixou de sentir as mãos dele. Queria repreendê-lo, quando o viu a despir a camisa. Ele puxou-a contra si num abraço, para que os seus corpos se encontrassem sem interferências. Abraçá-lo assim, sentindo-lhe a pele sob as mãos e os braços e contra os seios, enfeitiçava-a. O prazer mudou nesse preciso instante. Até o beijo era diferente. Sentiu-se tocada por uma nova intimidade e não podia ignorar o seu poder. Ives ergueu-a em braços e levou-a até à cama. Deitou-a e começou a tirar o resto da roupa. Numa nesga de clareza de espírito, Padua viu onde estava, o que estava a fazer e o que poderia acontecer. Sentiu a sua completa nudez. Escandalosa. Mais do que naquela mesa, apesar de ter estado igualmente exposta. Instintivamente, cobriu os seios com o braço e a púbis com a mão. Quando as calças dele desceram, olhou para o outro lado. O calor a seu lado afundou o colchão. A sensação de intimidade desceu sobre ela como uma bruma. O seu odor, a sua pele... – Não se envergonhe agora comigo, Padua. – Afastou o braço do peito. – Antes não o fez. Antes não estava tão nua. Tão vulnerável. E também não estava numa cama. Ele fez desaparecer os seus receios com um beijo que lhe deixou a cabeça a andar à roda. O prazer aboliu toda a hesitação e timidez. O seu beijo comandava,


não só que obedecesse, como também que participasse. Quando a febre assumiu novamente o controlo, ele pôs-se por cima dela, cobrindo-lhe o corpo com o seu. Afastou-lhe as pernas, de modo a que as suas ancas encaixassem entre as coxas dela. Outro fragmento de realidade irrompeu pela bruma sensual. – Vai...? – Ainda não. – Deslizou os braços por baixo do tronco dela. – Em breve. Com o abraço dele, ela arqueou as costas, elevando ainda mais os seios. Ives saboreou-lhe o ombro e depois foi-se movimentando lentamente pela sua pele abaixo. Padua arqueou ainda mais as costas, em oferta, desejando ardentemente. A expectativa tornou-a selvagem e tão excitada que as ancas começaram a baloiçar. – Muito em breve, se não parar de fazer isso. Beijou-lhe a ponta hirta de um seio, depois a outra. Deixar de mexer as ancas significava sofrer sem aquele pequeno alívio. Beliscadelas com a língua enviavam correntes de maravilhosos tormentos até à cavidade sensível e suplicante onde todas as sensações se acumulavam e aguardavam. Ives excitou-a até ela já praticamente não ver, mal conseguia respirar. Achou que podia morrer ali mesmo ou então gritar. Agarrou-se a ele, com força. O seu corpo começou novamente a mexer, sem que ela o comandasse. Empurrou os joelhos contra os flancos dele e as ancas insistiam naquele lento baloiçar. Ele avisara-a. E agora sabia porquê. Ele despiu-se de toda a contenção como quem deixa cair a armadura. Incitou nela um novo arrebatamento, provocando, mordendo, beijando e com as carícias mais possessivas. Deslizou a mão para baixo entre os dois corpos e pressionou-lhe a púbis, procurando então implacavelmente os locais que conduziam ao grito. Conduziu-a a prazeres cada vez mais intensos, até ao cume e, com um afago devastador, lançou-a num solavanco até à glória da plenitude. Desta vez não houve direito a recuperação lenta. Não flutuou numa nuvem de perfeição. Mais um toque, mais abaixo, mais profundo, abalou o seu contentamento com mil estremecimentos. Ele mudou de posição e ergueu-lhe uma das pernas ao nível da anca dele. Dentro do tremor, uma plenitude encheu a ânsia de desejo que a torturava. Uma nova plenitude deixou-a arquejante. A sua força pairava sobre ela, tensa e rígida enquanto ele empurrava mais fundo. Queria aquele alívio, mas também o temia. Ele tanto lhe inspirava reverência como temor.


Foi então que Ives a possuiu. Não havia outra palavra para o que aconteceu. Demasiado ignorante para o possuir também, Padua pôde apenas maravilharse com o poder que a controlava. Que a submergia. O seu passado não a preparara para isto. Para aquele homem. A sensação dos seus movimentos levou a que os ecos do seu desfecho perdurassem, mais e mais, até que, no fim, no mais fundo da sua mente, ela gritou uma vez mais. Quando algo vagamente parecido com clareza de espírito começou a regressar – e demorou um bom tempo até isso acontecer –, Ives viveu um momento curioso, semelhante àquele que sentia depois de dar uma tareia num homem, tendo sucumbido a uma abrupta explosão de fúria. O seu eu mais sensato dava agora pancadinhas no ombro do seu eu atual e perguntava: Que diabo estás a fazer? A apreciar a mais rara paz com uma mulher encantadora. Vai-te embora, seu idiota arrogante. Infelizmente, não podia evitar pensar para todo o sempre. E, por entre o emaranhado de membros e lençóis que formava com Padua, algumas ideias sólidas começaram a abrir caminho na sua cabeça. Estar com uma mulher alta tinha, efetivamente, as suas vantagens. Ele tomara-a à força. Não fora essa a sua intenção, mas não havia outra palavra para descrever o sucedido. Ela não era virgem. A possibilidade de que poderia ter sido surgiu no seu espírito apenas algo tarde, quando já há muito tinha deixado de se preocupar com isso. Duvidava de que o velhaco daquele ladrão a tivesse tomado mais do que algumas vezes, considerando a sua ignorância, mas pelo menos Lord Ywain Hemingford não acabara de abusar de uma inocente. Padua permanecia debaixo dele. Ele olhou para baixo, para a sua perna longa, branca e modelada estendida junto ao flanco dele. Apoiou-se nos braços para se levantar e ficou a olhar o rosto dela. As pestanas grossas e escuras adornavamlhe as faces alvas e os lábios continuavam ligeiramente afastados. Inspirações profundas que não soavam como um sono profundo, mas vindas de alguém que recuperava de um esforço extremo. Seu idiota. Olha para ela. Em que diabo estavas a pensar? Não pensara em absolutamente nada. Tinha deixado a racionalidade para trás, no seu quarto. Fora pouco mais do que uma reunião caótica de fome e crua necessidade quando assomou à porta dela. Se ela o tivesse mandado embora,


teria provavelmente uivado como um animal. Simplesmente, ela não o fizera. E, em troca da sua generosidade, ele tratara-a como a uma meretriz. Ives afastou-se ligeiramente dela. As pálpebras de Padua tremeram quando ele se retirou, mas não abriu os olhos. Ele acomodou-se a seu lado, apoiado no braço. Acariciou-lhe o rosto com a ponta de dois dedos. – Magoei-a. Ela abanou a cabeça. – Não sou frágil. Longe disso. – As pestanas ergueram-se e ela penetrou o olhar no dele. – Gostei. Ora, que interessante. – E eu aqui a tentar engendrar um pedido de desculpa. – Por favor, não o faça. Tornaria triste o que aconteceu. – As suas pálpebras baixaram de novo. Um sorriso irreverente delineou-lhe os lábios. – Já que vou ser escandalosa e irresponsável, prefiro a paixão às boas maneiras. Prefiro o Ives perverso ao íntegro Lord Ywain. Ainda mais interessante. Absolvido do seu mau comportamento, puxou-a para si e aconchegou-a junto ao seu corpo. Ela não precisava de um pedido de desculpa, mas o íntegro Lord Ywain sentou-se no seu ombro a recordá-lo de outros assuntos que era preciso resolver. Agora não. Enxotou aquelas ideias incómodas. – Está a pensar fazer isto outra vez? – perguntou ela. – Não na próxima meia hora. Padua virou a cabeça para cima e olhou para ele. – Oh. – Ah. Não se estava a referir a agora. – Não. – Parece-me que o futuro está nas suas mãos. – Não totalmente. Padua também não queria dizer que estava nas mãos dele. À semelhança da maioria das mulheres, Padua pressupunha provavelmente que os homens tomariam as rédeas do prazer sempre que pudessem. O que era verdade. Estava, no entanto, a pensar nos motivos pelos quais não os deveriam apreciar uma noite sequer. – Parece-me que é o tipo de escolha que se deve fazer à luz do dia. Achou que estava a ser mesmo muito nobre ao dizer tal coisa. Na verdade,


ele desejaria definir os seus direitos clara e inequivocamente enquanto ela estava demasiado saciada e atordoada para ter mais discernimento. – Provavelmente – murmurou ela, com a cabeça agora repousando no peito dele. – Mas sem negociações. Nada de joias e essas coisas. Não aceitaria ser sua amante, é o que estava a dizer. Não seria uma dessas mulheres. Aí estava mais uma coisa que também seria melhor deixar para a luz do dia. Se Padua se mantivesse firme, Ives encontraria formas de tomar conta dela que não tresandassem à ideia de que estava a ser comprada. Naquele preciso momento, precisava de alguém que cuidasse dela, quer ela o aceitasse quer não. Ives deixou-se levar para o limiar do sono. Aquela pequena conversa repetiuse várias vezes na sua cabeça. Unia-os a ideia de que a luz do dia poderia trazer decisões de que ele não gostaria. Uma noite impulsiva, louca e irrefletida poderia ser o balanço final da sua relação amorosa. O advogado dentro dele começou a reunir os argumentos que utilizaria para a convencer do contrário. O patife dentro dele imaginava todos os prazeres que poderia nunca vir a conhecer. – Sem negociações, foi o que disse. O cimo da cabeça dela mexia-se enquanto acenava. – Muito bem. – Ives ergueu os ombros dela, que piscou os olhos, confusa. – Aqui, assim. – Orientou-a até ela ficar montada em cima dele, sentada nas ancas dele, a olhar para baixo. O seu cabelo escuro tombava em desordem pelo rosto e os ombros. – Fique assim. Desta forma, conseguia vê-la muito bem. Observou-a enquanto a acariciava. Na sua expressão, revelavam-se as reações àquilo que ele lhe fazia. Ela observava também, por baixo das pálpebras semicerradas. Os seus lábios tremiam enquanto, lentamente, ele provocava os seus mamilos escuros e eretos. A ereção dele avolumava-se e pressionava-lhe as nádegas. Ele puxou-a para baixo, deitando-a por cima dele, para poder usar a boca do modo que ela apreciava. Tremores de prazer vibravam por todo o corpo de Padua, nas mãos dele, onde a segurava na cintura. As suas leves súplicas choviam sobre Ives. Pressionou-a ainda mais, até que ela começou a choramingar de desejo. Voltou a pô-la direita. Estava agora húmida e perdida no seu abandono. Tão bela no seu abandono. – Para cima. – Ives forçou-a a pôr-se de joelhos, de modo a ficar acima dele, com o corpo alvo e os seus membros encantadores expostos ao seu olhar e às


suas mãos. Deslizou os dedos entre as ancas de Padua e acariciou-a. Mil estrelas cintilavam nos olhos dela. Ives explorou as pregas de carne e observou como o desejo tomava conta dela. Ela baloiçou, instável, incapaz de controlar o que o prazer lhe fazia. Um sentimento selvagem primitivo invadiu os olhos dela. Foi então que Padua o surpreendeu. Virou o corpo de modo a ficar de costas para ele. As suas costas adoráveis e as nádegas arredondadas seduziam-no. Ives acariciou-lhe a fenda em todo o seu comprimento, terminando uma vez mais no quente veludo dos seus lábios tumefactos. Quando o fez, sentiu como ela lhe tomava o membro nas mãos. Não podia durar muito, aquele prazer mútuo. A sua excitação aproximou-se daquele limiar que tão bem conhecia. Agarrou-lhe a cintura e içou-a o suficiente para deslizar debaixo dela. Ela olhou sobre o ombro e começou a virar-se. – Não. Fique aí. Padua olhou outra vez para trás, confusa. Ele empurrou-lhe os ombros para baixo. Ela olhou de novo para trás, mas desta vez compreendeu. De joelhos, abraçou o colchão. Levantou as nádegas, redondas e tensas. Ele acariciou as suas protuberâncias e as ancas de Padua movimentaram-se em círculos subtis, torturando-o. Ives prolongou o tormento erótico um pouco mais. – O que quer, Padua? A resposta veio na sua respiração ofegante. O fundo das costas mergulhou, subindo ainda mais as nádegas. Ele foi lá abaixo e acariciou-a. – Isto? Ela clamou e anuiu. – Sim, por favor, sim. Ives manteve a mão sobre ela até Padua gemer e, depois, suplicar. De cabeça quente e mandíbula cerrada, ele substituiu a mão pelo pénis e pressionou ligeiramente, de modo a introduzir a ponta dentro dela. Parou e procurou uma âncora na tempestade que se desencadeava dentro dele. – Sim – murmurou ela. – Sim. Penetrou-a, ficou lá dentro a saborear a sensação, e depois saiu. Ela mexeu as nádegas, impaciente. Entrou novamente e ela gritou. Foi então que a tempestade tomou conta dele. Deixou-se dominar pela fúria e pelo prazer, até que aquela tensão atroz explodiu num alívio de sensações profundas.


No entorpecimento sensual que se seguiu, Ives inclinou-se e beijou-lhe o fundo das costas. Ao mesmo tempo, usou a mão para oferecer a Padua o seu êxtase, levando-a a abafar um grito entre os lençóis.


CAPÍTULO 14

D

e pé, ao lado da cama, Padua observava os sinais dos acontecimentos da noite. A roupa da cama parecia-se com uma arena de combate entre saqueadores. Metade das almofadas havia sido lançada para os sítios errados. Ives, a dormir profundamente, jazia nu, de pernas e braços abertos, em abandono. Padua pegou na ponta de um lençol e arrastou-o, para o cobrir pelo menos da cintura para baixo. Vestiu o robe e foi até ao quarto de vestir. Lá fora, o céu estava agora mais claro, assumindo um tom cinza-prateado escuro. A criada raspou do lado de fora da porta do quarto de vestir que dava para o corredor. Nunca tal tinha acontecido antes. No dia anterior, quando ouviu que Padua já acordara e estava a pé, ela limitara-se a entrar. Padua questionou-se se a mulher suspeitava de que havia um homem nu nos seus aposentos. Mesmo que assim não fosse, começara provavelmente a pensar nisso quando Padua não a deixou entrar e insistiu que naquela manhã se arranjaria sozinha. Tirou a selha de água quente das mãos da criada e fechou a porta. Lavou-se minuciosamente. Ives afetara a tal ponto o seu corpo que ainda o sentia dentro dela. Se fechasse os olhos, ainda sentia palpitar os ecos das suas investidas. Tinha sido muito malcomportada na noite passada. Caprichosa e irresponsável. Quem sabe um dia se arrependeria de cada minuto. Naquele momento, todavia, não se arrependia de nada. Não conseguia. A luz lá fora passara de cinza a dourado, quando a porta do corredor se abriu outra vez. Eva entrou. Usava um vestido matinal e um chapéu ornamentado com uma fita. Trazia nos braços uma pilha de vestidos. – Vi a sua criada perto das escadas, por isso sabia que estava acordada. Que bom que não sou a única. – Pousou a carga que trazia. – Agora acordo sempre cedo. Não há como evitar. Ficar na cama torna-se desconfortável.


Padua posicionou-se casualmente entre Eva e a porta do quarto. – Que traz aí? – Três vestidos, uma jaqueta e duas peliças. Esta peliça vermelha comprou-a a minha irmã em Florença, que é mais alta do que eu. Não tão alta como a Padua, mas será mais fácil de alterar. Este vestido exterior é bastante comprido e, com uns toques rápidos de costura, deverá parecer bem, se a Padua o usar com o mesmo fim. Depois, temos ali alguns adornos, fitas e penas, etc., que tirei de algumas roupas usadas pela última duquesa. – É tudo lindíssimo – exclamou Padua. Bem alto. Frisava cada palavra e deixava-se levar por arrebatamentos de entusiasmo. – Este tecido é perfeito. – Rodopiou numa pequena dança, batendo com os pés no soalho. Ruidosamente. – Tinha esperança de que gostasse. Fico animada com o seu entusiasmo – disse Eva. – Vá, ponha este vestido para vermos o que tem de ser feito. Padua enfiou o vestido de lã verde sobre a combinação. Eva recuou e analisou-o. Olhou de relance para as janelas e abanou a cabeça. – Aqui não vai dar. Vamos ter de o provar no quarto de dormir, onde há mais luz. Pegou em toda a roupa e agarrou na pega do cesto de costura. Padua recuou e barrou a porta que dava para o quarto de dormir. – Não será um incómodo? Acho que nestas gavetas há alfinetes e afins. – Tenho o meu cesto – respondeu Eva. – Contém tudo aquilo de que precisamos. Arremessou todo aquele tecido para o braço esquerdo e estendeu a mão direita para agarrar no puxador da porta. Padua encostou o braço à ombreira da porta, criando uma barreira física. – Preferia que não entrasse ali. – Porquê? – Desarrumei tudo esta noite. Tanto que não queria que a criada o viesse arrumar e ainda não tive oportunidade de o fazer eu mesma. Eva riu-se. – Comigo não tem de se preocupar com essas coisas. Duvido que esteja assim tão desarrumado. O que pode uma mulher fazer numa só noite? – Ainda assim, preferiria se... – Oh, disparate. – Eva agarrou no puxador, rodou e empurrou a porta. Padua sentiu a porta a abrir-se atrás dela. Sabia que Eva conseguia ver todo o quarto, apesar de continuar impedida de passar o limiar da porta. A atenção de


Eva estava, no entanto, centrada em Padua. Franziu o sobrolho, desconfiada, como se só agora desse conta de que toda a conversa havia sido algo estranha. Então, o olhar de Eva deslocou-se para o espaço atrás do ombro de Padua. Arregalou os olhos. – Realmente, isto está uma confusão, Padua. Vai dar algum trabalho a arrumar. Padua quase desmaiou de alívio. Ives devia ter ouvido a conversa e ter-se-ia esgueirado para fora do quarto. Voltou-se para entrar à frente. E resmungou para dentro. Ives ainda dormia. Tinha-se mexido o suficiente para descobrir uma perna fina e bem torneada, até à anca. Um braço fletido atrás da cabeça conferia uma extrema rigidez ao seu tronco. Padua fechou os olhos, envergonhada. – Oh, céus – disse Eva. – Está a dormir muito profundamente. Se é esse o seu hábito depois de... Bem, depois, devia ter ido embora ontem à noite. Padua não se lembrava de terem tomado alguma decisão quanto a isso. – Imagino que as mulheres com quem ele normalmente anda não serão demasiado exigentes com este tipo de coisa. Provavelmente também dormem até ao meio-dia e o pessoal da casa já terá certamente conhecimento das regras. Eva passou por Padua e pousou a mão cheia de roupa numa cadeira. E começou a fazer uma seleção. Padua avançou devagarinho pelo quarto adentro. – Vai arranjar este vestido com ele ali? E se ele acorda e a vê aqui? – E depois? Eu não estou nua. Ele é que está. Se isso é razão para se envergonhar, devia ter pensado nisso há várias horas. – Eva abanou a cabeça. – Não sei o que lhe aconteceu enquanto estivemos fora. Era sempre tão sensato, pelo menos quando não estava zangado. – Talvez o devesse acordar, para que não tenha de se esgueirar às escondidas até ao quarto em roupão com toda a gente em casa levantada e a andar por aí. Eva segurou um vestido e analisou-o. – Isso talvez fosse sensato. Consta que o Aylesbury emitiu uma proibição ridícula. Não seria bom descobrirmos se ele a leva realmente a sério. Padua aproximou-se da cama, junto a Ives. Deu-lhe pancadinhas no ombro. Ives abriu as pálpebras. Olhou em volta, confuso e, depois, sorriu. Com o braço, rodeou o pescoço de Padua e puxou o seu rosto para baixo, na direção dos lábios. Padua contorceu-se para evitar ser arrastada para um beijo e sabe Deus que


mais. – Hmm, a Eva está aqui. Olhe. A expressão de Ives fechou-se. Olhou para a cama e o quarto em redor, para onde Eva continuava a debater-se com os vestidos. Agarrou um pedaço de lençol para se cobrir melhor. – Eva. – Riu-se um pouco, muito sem graça. – Bom dia, Ives. – Levantaste-te cedo. – Ao contrário de ti. – Pois, é verdade. – Ives analisou a sua situação. Dirigiu o olhar para onde a sua roupa se amontoava no chão. Olhou para Padua, impotente. – Talvez devesse regressar ao quarto de vestir por alguns minutos, Eva – sugeriu Padua. – Nessa altura, o Ives poderá sair da cama, vestir-se e sair. Eva encarou-os. Os seus olhos trespassaram Ives. – Estou à espera de que ele me peça discrição, Padua. É isso que queres, não é, Ives? – Mas é claro. – Ives inclinou a cabeça. – Estás zangada comigo, Eva? – Acho que sim. A Padua não é uma cantora de ópera. – Bem sei que não. – Nesse caso, não sejas tão descuidado com a sua reputação no futuro, por favor. Eva marchou para o quarto de vestir e fechou a porta. Ives atirou os lençóis. Chegou-se ao pé da roupa e vestiu-se. – Ela tem razão. Fui negligente. – Acordei nem há dez minutos – disse Padua. – O dia ainda mal nasceu. – Eu devia ter saído ontem à noite ou pelo menos tê-la acordado com beijos em vez de me deixar dormir consigo nos meus braços. Ives reaproximou-se dela e abraçou-a. – Vamos dar um passeio pela propriedade esta tarde, se quiser. Por essa altura, imagino que já tenha decidido se também está zangada comigo. Deu-lhe um beijo e saiu porta fora. Lance terminara a refeição quando Ives entrou na sala de pequeno-almoço. Estava sentado à mesa a beber café enquanto passava o correio em revista. – Levantaste-te cedo – disse Lance sem erguer os olhos. – E tu também. É um hábito novo?


– É o resultado de um tédio sem fim. Vou deitar-me cedo para lhe fugir, só para depois ter mais horas de manhã para dele padecer. – Parou numa carta e ergueu uma sobrancelha. – Miss Belvoir tem correio. Enviado para aqui da Langley House. Duas cartas. – Pousou a que tinha na mão sobre uma outra que tinha posto de lado. – Uma de uma amiga, a outra de um advogado, parece-me. Ives dirigiu o olhar para aquelas cartas. Enquanto isso, Lance parou novamente, franziu o sobrolho e estendeu a mão para agarrar no abre-cartas que o mordomo colocara na mesa. Ives devorou o substancial prato que tinha composto. Despertara cheio de apetite, sob diversos pontos de vista. Pelo menos o do estômago tinha a possibilidade de saciar. Quanto ao outro... imaginava-se a levar Padua para uma cabana onde os seus familiares não se sentissem à vontade para invadir um quatro de dormir a horas pecaminosas da manhã. Tanto quanto sabia, toda a casa já estaria a par de tudo no máximo ao meiodia. Eva poderia ser discreta, como prometido, mas não faria diferença. A criada veria aquela cama e saberia o que acontecera. O seu criado comunicaria que Lord Ywain não dormira na sua cama. Gareth adivinharia só de olhar para os dois, isto pressupondo que a discrição de Eva incluiria o marido, o que não era provável. A única pessoa que poderia permanecer na ignorância era Lance, e apenas porque o modo como andava absorto em si mesmo por estes dias lhe embotava a sua habitual perspicácia sobre as pessoas à sua volta. Não podia levar Padua para uma cabana, mas podia tirá-la daquela casa durante algumas horas. Tinha de a compensar pelo embaraço de Eva o ter encontrado naquela cama. Também queria dizer-lhe algumas coisas. Exatamente o quê, não sabia ao certo. Normalmente, dizia o que quer que achasse necessário antes de levar uma mulher para a cama, não depois. Normalmente, tudo o que fazia era elaborar um contrato de prazer. Mas esta relação com Padua não era normal. E daí o dilema. O nariz de Lance ainda estava enfiado na carta que acabara de abrir. – Que diz essa carta para teres de a ler três vezes? – perguntou Ives. – Uma carta muito curiosa. Do Sidmouth. Ele nunca me escreve. Na verdade, acho que nunca o secretário do Ministério do Interior me dirigiu mais de dez palavras em toda a minha vida. – Agitou a carta no ar. – Contudo, de repente, sou o seu grande amigo, com quem comunica extensamente. Ives levantou-se.


– Deixo-te entregue a isso. Acho que vou sair a cavalo. O dia está bom. – Agradecia se pudesses esperar uns minutos. Na verdade, penso que me podes ajudar a esclarecer esta missiva peculiar. Menciona-te várias vezes. – Pousou a carta e ergueu os olhos. Ives não fazia ideia do que Sidmouth escrevera, pelo que não tinha qualquer intenção de liderar aquela conversa. – Quando chegaste, referiste o teu receio de que Miss Belvoir pudesse ter atraído a atenção do Ministério do Interior. Tiveste essa suspeita por pensares que estava a ser vigiada enquanto residia em minha casa? – Sim. – E mandaste recado às altas instâncias do Ministério do Interior de que, se não cancelassem a vigilância, tratarias de garantir que eu... Como escreveu Sidmouth?... criaria um tal pandemónio na Câmara dos Lordes que os pares insistiriam no rolar de cabeças? – Eu tinha a certeza de que não tolerarias um tal insulto a ti e a todos os pares. – Bem, isso explica isto. – Lance deu pancadinhas na carta. – Contém um críptico pedido de desculpa de Sidmouth, algo sobre um homem contratado não ter compreendido a sua missão, e termina pressupondo jovialmente que eu não faria grande fé nas histórias que tu me pudesses contar. – Fico satisfeito por ele ter levado o assunto a sério. – Lamento eu não ter feito o mesmo, quando referiste o Ministério do Interior a primeira vez. O que quer Sidmouth de Miss Belvoir? Ela é alguma espécie de radical? Uma revolucionária? Uma criminosa? – Não é nenhuma dessas coisas. – Jurá-lo-ia. Simplesmente, não tinha nenhuma prova dessa sua convicção. – Tens a certeza? – Absoluta. – Então por que razão Sidmouth pôs um homem atrás dela? – Tem que ver com o pai dela e com um mal-entendido quanto à lealdade que ela lhe dedica. – Sendo assim, o pai é que é o criminoso, radical ou revolucionário. – Sim. – E qual deles é? – Tanto quanto consigo perceber, o primeiro. Possivelmente o segundo, mas, a ser verdade, não tem qualquer relação. Improvavelmente o terceiro, mas... – Mas não podes ter verdadeiramente a certeza.


– Isso mesmo. Contou a história de Hadrian Belvoir e da contrafação e das visitas de Padua à prisão e a esperança do Ministério do Interior de que um peixe miúdo os conduza a peixe graúdo. – É assunto do foro dos magistrados, caso estejam apenas convictos de que foi contrafação. O interesse do Ministério do Interior indica que alguém pensa que o dinheiro falso financiou algo desleal – concluiu ele. – Por isso, trouxeste-a para aqui, onde nenhum agente ousará invadir propriedade privada. – E onde pudesse mantê-la debaixo de olho, enquanto eu próprio estivesse de visita. Se achares que a sua presença te compromete de algum modo, partimos hoje. Lance levantou-se e caminhou lentamente até à janela. Olhou para fora enquanto refletia. – Não podemos confiar em fanáticos. Toda a gente sabe que os agentes do Sidmouth ultrapassam vários limites e que criam mais problemas do que resolvem. Os lordes não lhe fazem frente e não lhe põem travão porque receiam que esses radicais comecem uma revolução e que as nossas cabeças acabem no cepo. – Mas podemos partir, ainda assim, para te poupar problemas. Como disseste, já pairam por aqui nuvens suficientes. – Nuvens políticas, não. – Voltou-se, com uma centelha de gozo nos olhos. – Acho que vou gostar disto. Por uma vez que seja, vou tirar satisfação de ter o título. De ser o título. Lord Lancelot Hemingford poderá ser alvo de suspeita. Mas o Aylesbury? Nunca. Ninguém se atreveria. – Pegou na carta. – Devo responder. Graciosamente, é claro. Expressarei a minha consternação com o insulto à minha posição, conforme me foi relatado pelo meu irmão. Serei clemente, mas de uma forma extremamente condescendente. Insinuarei que, já que Sidmouth só há pouco assumiu o título de visconde, ainda por cima um título criado tão recentemente, poderá ser perdoado do seu erro por esta vez. Feliz por ver o assunto decidido, Ives levantou-se novamente para sair. – Quanto a Miss Belvoir – continuou Lance –, confio que irás ter cuidado. Como tu próprio admites, não há como ter certeza absoluta. – A minha capacidade de discernimento não me costuma deixar mal no que toca a avaliar pessoas. – Como, aliás, em tudo, para benefício eterno da família. Mas se eu acreditasse que estarias a usar o teu discernimento no que diz respeito a ela, Ives,


não teria dito nada. Ives aconchegou uma manta em torno das pernas e do regaço de Padua. O gesto encantou-a, bem como a almofada que ele insistiu em colocar na prancha em que ela se sentou. O dia não estava propriamente frio e a peliça seria suficiente, mas ela não objetou os seus esforços para que se sentisse confortável na carruagem aberta e simples que utilizariam no passeio. Ele subiu e pegou nas rédeas. O cavalo saiu do pátio a trote e dirigiu-se para a vereda. Era um dia bastante soalheiro, mas uma brisa fresca sacudia folhas secas em torno do cabriolé. O cavalo acelerou a trote rápido pela vereda abaixo. A meio caminho, na estrada, Ives puxou as rédeas e parou. Voltou-se e puxou Padua para um longo beijo. – Este é para compensar o que não pude fazer esta manhã – disse ele, chicoteando novamente as rédeas. – Lamento o embaraço e o mau corolário da noite. – Não foi tão mau quanto pareceu. Descobri que o embaraço tem um limite. Quando o alcançamos, já nada piora. – Riu-se. – A Eva tinha dito que viria de manhã para vermos alguma roupa para alterar, mas nunca pensei que aparecesse ao romper da aurora. – Quero crer que, depois disto, ela nunca mais entrará nos aposentos de uma visita sem antes enviar recado. – Podia ter sido pior. Se eu não tivesse puxado o lençol para o cobrir, ela teria visto muito mais. Duvido que, nesse caso, até a Eva se tivesse conseguido manter tão blasé. Padua não resistiu a fazer a cara de espanto que Eva teria feito. Partilharam uma boa gargalhada só de imaginar. Padua limpou as lágrimas dos olhos. – Ela não disse nada o tempo todo, enquanto experimentávamos a roupa. Acho que será tão discreta quanto prometeu. – Exceto com o Gareth. Ela contou-lhe. – Acha mesmo isso? – Sei que sim. Vi-o mesmo antes de vir ter consigo e o sorriso que me dirigiu foi inequívoco. – Um sorriso de congratulação, sem dúvida. Seria assim que os homens encarariam a situação do seu ponto de vista.


Ives olhou-a de forma peculiar quando ela disse aquilo. Parou novamente o cabriolé. – Padua, não vou fingir que me comportei honradamente na noite passada. Essas reflexões não existiram. Tudo o que me passou pela cabeça foi que a desejava. Também não lhe dei grande possibilidade de escolha e isso não foi justo. – Não me importunou. Senti-me dominada, talvez, mas não tratada de forma desonrosa. Não sou uma colegial. – Mas também não é lá muito mundana. – Não sou uma cantora de ópera, como disse a Eva? – Decididamente, não. Padua não se importou com o confrangimento que se instalara entre os dois. Receava, deu ela conta, que Ives decidisse ser honrado no futuro. – Não me arrependo, caso esteja a pensar nisso. Não estou zangada, nem sinto que se tenha aproveitado de mim. Talvez devesse, mas não. Ives conduziu a carruagem por uma colina abaixo, na direção de uma pequena capela que assomava entre um ajuntamento de carvalhos. Quando passaram pela capela, Padua viu que ao lado havia um cemitério. Era dominado por um sepulcro, erguendo-se com o dobro da altura de qualquer um dos outros monumentos e fazendo as pequenas pedras tumulares parecerem ainda mais diminutas. – É o túmulo do seu pai? Ives abanou a cabeça. – Do meu irmão. O do meu pai é muito modesto. Padua virou-se para trás e olhou para o cemitério. – Que estranho. – De todo. Um homem que tenha feito algo na vida não precisa de o destacar na sepultura para que seja recordado. Um homem que tenha feito muito pouco de bom nada mais pode fazer para ser recordado pelo mundo onde em tempos viveu. – Parece-me que não gostava lá muito do seu irmão. – Odiava-o. Não havia resposta possível a uma declaração tão simples e direta. Ives segurou nas rédeas com uma mão e pegou na dela com a mão livre. – Choquei-a com esta confissão seca e cruel. Não é o tipo de coisa que partilhe com frequência. Que costume verbalizar. Espero que não pense mal de mim, mas é a verdade. Odiava-o. Todos nós o odiávamos. Os outros tinham mais


motivos do que eu, mas ele lançava uma tal sombra sobre todos nós que, quando morreu, nós... bem, ninguém chorou grandemente a sua morte. – Se todos sentiram o mesmo, então havia certamente bons motivos para isso. Ives levantou a mão dela e beijou-a, como que grato por não o ter repreendido. – Tornei-me advogado especificamente para o irritar. Foi uma pequena vingança. Estava permanentemente a dar sermões sobre como a ideia de eu fazer tal coisa estava abaixo do nosso nível, e eu ouvia e acenava, ouvia e acenava. Quando ficou a saber que eu tinha ignorado os seus conselhos, ficou louco. Gostei do ataque de nervos que isso lhe provocou. – Não terá sido imprudente acicatá-lo? Ele tornou-se duque em seguida. Teve certamente oportunidade de reclamar algum tipo de vingança, imagino. – Apenas financeira, mas eu e o Lance ficámos com uma parte da herança da nossa mãe e o meu pai garantiu a subsistência do Gareth. O Percy tentou usar as nossas mesadas para nos levar a ajoelhar-nos, mas optámos por não ficar dependentes dele. Com ele, essa situação teria sido um inferno. – Não tenho irmãos, nem bons, nem maus, por isso parece-me triste ter tido um irmão que não sabia a sorte que tinha. Tive muitas vezes pena de não ter irmã ou irmão. Embora não lhe inveje o seu irmão Percy, fico melancólica quando os vejo todos juntos. Novamente, aquele beijo na mão. Um pedido de perdão, desta vez? Ou uma expressão de piedade? A sua atenção permaneceu no cavalo e na estrada, mas Padua tentou perceber se os seus pensamentos se teriam desviado para o modo como se conheceram e o que os esperava em Londres. Ela tinha pouca família e em breve poderia não ter nenhuma. A vereda inclinou-se numa colina íngreme. No topo, esperava-os uma vista encantadora. Olharam para baixo, para a paisagem campestre outonal pontilhada de casas rurais. As casas de uma aldeia agrupadas lá longe. – Isto é lindíssimo, Ives. Para alguém que só conheceu cidades, isto parece o paraíso. Tão amplo e sossegado, e tão silencioso. Ives saltou do cabriolé e atou o cavalo a um coto de árvore. Deu a volta e ajudou-a a desenvencilhar-se da manta e depois a descer. – Podemos sentar-nos aqui um pouco, se desejar. – Gostaria muito. Ives estendeu a manta no chão. Padua sentou-se e ele juntou-se a ela. Durante alguns minutos, ela limitou-se a banquetear os olhos com o panorama lá em baixo e mais além.


– Como correu a sessão de confeção de vestidos esta manhã? – perguntou ele. – Muito bem. A Eva tem muito talento para reformular vestidos. Padua voltou a atenção para Ives. – Pediu-lhe que fizesse isso? – Não é assim que ofereço guarda-roupa às mulheres com quem tenho relações amorosas. – Essas terão certamente expectativas mais elevadas. – Não é uma questão de expectativa, mas antes de exigência, Padua. De muitas formas, estou em desvantagem em relação a si. Não ouso dar-lhe o que normalmente ofereço, não vá eu ofendê-la. – A expressão dos seus olhos convidava-o a resolver o seu dilema, declarando que não ficaria ofendida e que também gostaria de ter um guarda-roupa novo. E, na verdade, gostaria. Que mulher não gostaria? – Seria mais fácil se, de facto, eu fosse uma cantora de ópera, quer isso dizer – disse Padua. – Nesse caso, tudo seria normal. Como não é o caso, agora não sabe o que fazer comigo, não é? – Não. – Ives segurou a mão de Padua. – Não é verdade. Sei o que devo fazer. Numa situação como esta, um cavalheiro propõe casamento. – Acho que eu não quereria isso. – Especialmente se acontecesse só por ele se sentir obrigado a fazê-lo. Só que no seu coração Padua não queria mesmo isso. Seria o escândalo do ano se ele casasse com uma mulher cujo pai estava preso em Newgate por contrafação, quem sabe ainda suspeito de algo muito pior. E depois havia a questão do julgamento. Preocupava-a agora a ideia de que, se Ives não assumisse a acusação, alguém menos honesto e mais implacável o fizesse. Se havia algum motivo de apreensão relativamente à noite anterior, era apenas pelo facto de Padua não o ter vinculado à sua causa, podendo, pelo contrário, tê-lo obrigado a abandonar todo o caso. – Ives, talvez fosse melhor se não começássemos... – Não. Pelo menos ainda não. Entre todas as opções, essa eu rejeito. A menos que insista, é claro. Ives esperava agora que ela fizesse uma escolha. Será que tudo acabaria ali, naquela colina? Padua mirou a paisagem tranquila. – Como isto é diferente de Londres. Muito mais longe do que dita a distância física. Poderia estar num outro mundo, tão diferente e novo é este lugar. Mágico. – Olhou para ele. – Aprecio particularmente o facto de ser tão longínquo do que me espera lá.


Haveria razões, boas razões, para ela insistir, mas estavam tão longe naquele momento, ali sentados com a sua força a seu lado e a intimidade uma memória recente, que nada disso parecia ter grande importância. – Não vou insistir, embora fosse a opção mais sensata. Como é evidente, não ter sucumbido logo de início teria sido a atitude mais inteligente, para ambos. Não vou insistir. Pelo menos ainda não, como referiu. A resposta dela agradou-o. – Não é o género de mulher com quem normalmente tenho casos amorosos – disse ele. – Concluí que tenho de repensar as coisas. Fazer tudo de modo diferente. Não há de ser assim tão difícil. – Fazer o quê de modo diferente? – Terei de sair da sua cama bem antes da aurora, para que não a encontrem comigo lá dentro. Não enganaremos ninguém, mas a aparência conta. Ives olhou para baixo, onde a mão esquerda de Padua repousava na manta. Com a ponta dos dedos, afagou as costas da mão. – Em vez de entrar de rompante no seu quarto e de a tomar à força, se calhar devia seduzi-la. – Pensava que não acreditava em sedução. – Nunca antes achei que valia a pena gastar o meu tempo nisso. – Significa isso que vamos também saltar aquelas negociações que considera tão eficientes? Olhou para a mão dela enquanto a afagava. Os dedos passearam-se pelo braço acima. – Não precisámos delas na noite passada. – Suspeito que o que sucedeu ontem à noite não é o motivo por que gosta de revelar as suas expectativas àquelas suas amantes. Esta afirmação divertiu-o. – É inteligente em demasia, Padua. Mas não quero elaborar uma lista consigo. Parece demasiado frio e impróprio. – Levantou-se, apoiando-se no braço, aquecendo-a de lado. – Se lhe pedir algo que não quer conceder, tem de mo dizer. Se eu der demasiado como adquirido, tem de me impedir. Penso que o fará e nunca ficarei desiludido se assim for. Soava justo. Contudo, Padua tentava imaginar o que pediria ele às amantes. Até que ponto conseguiria por vezes ser mauzinho? Um beijo no ombro distraiu-a desse pensamento. A respiração quente no pescoço gerou-lhe tremores que agora tão bem conhecia. Padua fechou os olhos, de modo a sentir cada delicioso arrepio. As pontas dos dedos de Ives ao longo do


limiar do corpete, e depois mais abaixo até lhe roçarem o seio, exatamente o suficiente para que a sensação penetrasse a roupa e a excitasse. – Está a exercitar a sedução, Ives? – Ela gostava das pequenas provocações. Esperava que continuassem durante muito tempo. Um beijo aqueceu-lhe a orelha. – É um facto sobejamente conhecido que se aprende fazendo. – Eu diria que tem um talento natural. – Tenho ouvido dizer que é de família. Que perversidade a minha ter negado esse legado. – Rodou a cabeça dela e roçou os lábios nos seus. Um toque tão leve, quase inexistente, mas a falta de ar dominou-a. – Sinto-me honrada por achar que valho o esforço – murmurou ela. Ives pousou a palma da mão no rosto dela e olhou-a nos olhos. – A honra é toda minha, Padua. – O beijo que lhe deu fê-la acreditar que estava a ser sincero. Foi profundo, emotivo e muito, muito sedutor. Ficaram deitados na manta, abraçados, aquecidos pelo sol e refrescados pela brisa. Trocaram os beijos mais doces e uma paixão diferente daquela da noite. De certa forma mais profunda e impregnada de uma intimidade diferente. Contudo, apesar da interferência da roupa e de toda a lenta intensificação do desejo, Padua deu por si novamente no limiar do abandono total e a desejar que estivessem de novo na cama onde nada disto poderia voltar a acontecer. Como se lhe tivesse lido os pensamentos, as carícias de Ives na perna de Padua começaram a levantar a ponta do vestido. Ela sentiu o tecido a subir cada vez mais e a palma da mão dele contra a sua pele nua. Mais acima ainda, o ar arrefecia-lhe as pernas e o vestido já não a constrangia. Ele soltou-se do abraço e fez menção de se ajoelhar entre os joelhos dela. – Para cima. – Uma palmadinha na anca mostrou a Padua o que ele pretendia. Ela levantou as ancas e puxou o vestido até à cintura, de modo a expor a parte inferior do corpo. Ergueu o olhar, para ele. Parecia tão austero na sua paixão, de mandíbula tensa e boca rígida. Só os seus olhos revelavam profundidades e luzes ardentes enquanto não tirava a mão dela, dando-lhe prazer. Bastava olhar para ele para se sentir extasiada e não sentia qualquer embaraço. Ives pôs-se por cima dela, apoiado nos braços esticados. A cabeça mergulhou e ele tomou-lhe a boca num beijo profundo e tenso. – Vou terminar o que comecei em Londres. Na altura, não o permitiu. Permite-o agora? Padua percebeu a que se referia.


– Pois parece que a sua intenção é dar-me as vinte e quatro horas mais perversas de sempre. Ele limitou-se a esperar, convencendo-a com toques que lhe geravam um desejo desesperado. Um lugar mágico. Outro mundo. Ela permaneceria ali apenas alguns dias. Duvidava que lhe negasse fosse o que fosse, considerando que tinham tão pouco tempo. Padua anuiu. Ele baixou a cabeça para outro beijo profundo. Em seguida, foi descendo pelo corpo dela abaixo. Ela olhou para cima, para o céu e as nuvens, para as folhas a adejar com a brisa que a envolvia. Padua deixou de respirar com a expectativa. Os toques tornaram-se muito específicos. Devastadores. O prazer atravessava-lhe o corpo, gritando. Apertou a manta, torcendo a mão na lã, para que não se agitasse tão violentamente quanto desejaria. Um novo afago, suficientemente suave, acentuou ainda mais as sensações. A intensidade assustou-a. Ele fletiu-lhe os joelhos para que a boca alcançasse um melhor apoio. Ives aproveitou a sua abertura. Ela sentiu a língua dele a penetrar. Pensou que morreria de prazer ali mesmo. A partir daí, perdeu o controlo de si mesma. A sua consciência desceu em espiral para um só ponto de necessidade física. Tornou-se quase doloroso, até que explodiu numa libertação incendiária.


CAPÍTULO 15

–A

s mulheres devem ter estado a coser o dia todo. – Padua olhou para baixo, para o conjunto que tinha vestido, enquanto Eva recuava para o avaliar. O comprimento da parte exterior do vestido vermelho tinha sido aumentado com uma banda larga de fita. A parte inferior bege também exibia fileiras de fita, revelando-se por baixo. Pedaços de fita haviam sido cortados e fixados à baixa linha de decote. – Deve dar para jantar – disse Eva. Para Padua, daria para um baile. Era o vestido mais bonito que alguma vez usara. Levantou o espelho do toucador e mirou-se longamente. Seguindo as instruções de Eva, a criada penteara-lhe o cabelo de modo diferente. Os caracóis não pareciam em desalinho como habitualmente, surgindo pelo contrário amontoados artisticamente no cimo da cabeça. Os olhos pareciam muito grandes, mas suspeitava de que era por estar tão incrédula com aquilo que via. Eva aproximou-se e ergueu as mãos. – Vai usar estes. Atou um pendente à orelha direita de Padua e depois fez o mesmo na esquerda. Padua sentiu os brincos. Pequenas joias vermelhas, cujo peso baloiçava alegremente quando mexia a cabeça. – Está a estragar-me com mimos, Eva. – Parece-me que merece algum mimo. Não há muitas mulheres que possam sequer sonhar em pôr Lord Ywain Hemingford de joelhos. Confesso que estou a gostar de ver. – Ele não está propriamente de joelhos. – Ele perdeu a noção de si mesmo. O Gareth está fascinado. – Provavelmente porque sou a mulher que menos probabilidade teria de levar o irmão a ter um comportamento fora do vulgar.


– A Padua não se valoriza o suficiente. Sei como é. Eu era a mulher que menos probabilidade teria de atrair o Gareth. Demorei meses a perceber o motivo por que, pelo contrário, tal aconteceu. Andava aborrecido. Tendo isso em conta, parece que acabei por me tornar interessante. Não parecia a Padua que tivesse sido assim tão simples. Gareth adorava Eva. O seu amor por ela estava-lhe patente nos olhos. Não se limitava a achá-la interessante. – Agora tenho de ir tratar do meu vestido – disse Eva. – Está belíssima, Padua. Mal posso esperar para ver a reação do Ives. Quando Eva saiu, Padua andou de um lado para o outro para se habituar ao vestido. Não queria ficar rígida como uma boneca. A seda crua do vestido interior silvava elegantemente quando se mexia, mas a sensação era como a de água à volta das pernas. Riu de si mesma e obrigou-se a sentar-se à secretária do quarto de dormir. Abriu uma das cartas que haviam chegado. Jennie escrevera a exigir saber aonde tinha ido depois de lhe enviar o recado ambíguo de que partiria da Langley House e sairia de Londres durante alguns dias. Acrescentou que Mrs. Ludlow contratara uma professora substituta para ensinar matemática. Jennie suspeitava de que aquela mulher não tinha capacidade para resolver sequer cálculos aritméticos de nível médio. Padua não ficou de modo algum satisfeita ao ler essa notícia. Entristecia-a saber que, se houvesse na escola uma aluna com o interesse e a capacidade para aprender mais, nunca teria oportunidade. Pegou na outra carta. Esta vinha de Mr. Notley. A sua reação ao lê-la depois do pequeno-almoço fora confusa. Deveria ter ficado contente. E apesar de assim se ter sentido, essa emoção fora temperada com uma outra. Naquele momento, enquanto lia as poucas linhas registadas pelo escrivão, sentiu-se invadida por uma certa nostalgia. Mr. Notley contava ter notícias sobre a herança do pai, escrevia ele. Entraria em contacto com ela através da Langley House, seguindo as indicações de Padua. Quanto ao pai, continuava a recusar-se a receber Mr. Notley, pelo que o advogado continuava de mãos atadas. Não fez qualquer referência à organização da entrega de comida na prisão. Dado que tinha assumido essa missão, Mr. Notley não sentia necessidade de a tranquilizar dizendo que a estava a cumprir. Padua não duvidava de que efetivamente o fazia. Muito em breve, seria hora de descer. Sentou-se, à espera. Virou-se para a


cama. Será que Ives viria nessa noite? Provavelmente, sim. Ambos sabiam que o seu tempo era limitado, apesar de não falarem disso. Um lugar mágico, muito longínquo. Um outro mundo. Não era o mundo dela. Já nem sequer era dele. – Quem decidiu que eu queria um jantar a preceito? Lance dava a entender a sua opinião sobre tal decisão pela forma como puxava o tecido envolvente do plastrão. Enfiava constantemente o dedo entre o plastrão e o pescoço, como se o nó lhe afetasse a respiração. – A Eva – informou Gareth. – Não sei por que razão os criados obedecem a uma mulher no primeiro momento em que passamos a ter uma em casa. Ninguém sequer me consultou. – Ela ordenou-lhes que não te incomodassem com esse tipo de assuntos de menor importância. – Isso é porque ela sabia que eu iria contrariar as suas ordens. Ives não se juntou ao conflito. Observava da cadeira onde se havia reclinado na sala de desenho. Grande parte do seu espírito pensava em Padua e no tempo que tinham passado na colina naquela tarde. – Para de te queixares como um rapazinho choramingas – disse Gareth. – Acomodaste-te demasiado a viver sozinho, Lance. Geraste um desdém por qualquer ponta de formalidade. O mordomo disse que, por vezes, prescindes de um jantar como deve ser e pedes pão e queijo. Se nos tivéssemos ficado pelo continente, quando finalmente chegássemos teríamos dado com um autêntico bárbaro. – Não tenho nada contra comida decente. Só me estou a queixar deste maldito plastrão. O meu criado de quarto revelou um prazer indecoroso em garrotar-me com isto e objetou firmemente quando eu manifestei o desejo de me vestir menos formalmente. Também exagerou na goma do colarinho. É muito provável que me corte nele. Gareth olhou para Ives, suplicando ajuda. Ives encolheu os ombros. – Se queres mesmo saber... – disse Gareth. Hesitou. – Quero mesmo saber – incentivou-o Lance. – A Eva queria um jantar como deve ser porque queria que Miss Belvoir tivesse essa experiência na residência de um duque. É tua convidada. O mínimo que podes fazer é usar um colarinho engomado, não vá ela pensar que, para ti, ela não vale o esforço. Esqueces-te do que o teu título significa para as outras pessoas e como a passagem de visitas por esta casa implica certas expectativas


nos outros. Lance nada teve a obstar. Ives levantou-se. – Que simpatia a da Eva. Se uma mulher é convidada de um duque, deve viver segundo os padrões que acredita serem os dos duques. – Antes de mais, a Eva é perspicaz – disse Lance, derrotado. Gareth caminhou descontraidamente e sentou-se perto de Ives. – As senhoras não tardarão a juntar-se a nós. – Imagino que sim – disse Ives. – Pareces muito tranquilo, Ives. Satisfeito. É bom ver-te sem o semblante carrancudo com que muitas vezes nos presenteias na presença do Lance. – Isso é porque aqui, em Merrywood, ele não pode fazer as coisas que me tornam carrancudo. – Ah. Achei que talvez fosse mais do que isso. – O quê, por exemplo? Gareth fez um ar inocente. – O tempo lá fora. O sossego. O campo, que tantas vezes nos relaxa. A satisfação. – Ele parece realmente satisfeito, não é? – exclamou Lance. – Devias vir cá mais vezes, Ives. O ar do campo parece estar a fazer-te bem. – Só me queres aqui para teres alguém com quem arranjares sarilhos – replicou Ives. – Como se eu alguma vez tivesse a sorte de concordares comigo quanto a isso. A atenção de Gareth voltou-se para a porta. Inclinou a cabeça. – Ah, aí vêm elas. Passos ligeiríssimos. Um ínfimo murmúrio. As duas senhoras assomaram à porta. A boca de Ives secou. Padua sofrera uma transformação. Ela sempre fora encantadora, mas... Levantou-se ao mesmo tempo que os irmãos. Gareth manteve-se estreitamente a seu lado. – Miss Belvoir está excecionalmente bela esta noite, não está? Ives arrancou os olhos de Padua e dirigiu-os para Gareth, ele próprio de olhos pregados no rosto de Ives. – Sim. – O vermelho complementa mesmo bem a sua tez, parece-me. – Gareth


divertia-se. – Não concordas? Ives assentiu. Gareth chegou-se mais perto. – Se calhar agora era melhor tentares fechar a boca. Não quero que a Eva se divirta demasiado à tua custa. Ives reparou por fim em Eva. Sorria para ele. Muito satisfeita consigo mesma. E depois tomou a palavra. – Vamos todos para a sala de jantar. Não precisamos de fazer cerimónia. Afinal de contas, somos todos família e amigos íntimos. – Eva olhou diretamente para Padua quando proferiu a última parte. E depois diretamente para Ives, sendo de seguida a primeira a sair. – Estava particularmente encantadora hoje. – Ives ofereceu o elogio acompanhado de um beijo depois de a névoa branca do êxtase se ter dissipado. Desta vez, Padua tinha participado mais do que antes. Mais ousada, segurara firmemente o membro na sua mão e experimentara formas de lhe dar prazer. Os seus esforços haviam-no encantado a um ponto que chegara a ser ridículo. – Eu senti-me encantadora – respondeu ela. – Foi muito generoso da parte da Eva ter-me adornado daquela forma. Não fora mera generosidade. As motivações de Eva refletiam a sua perspetiva sobre aquela relação. Achava que ele estava a aproveitar-se de Padua. Acreditava que Ives estava a ser um libertino, tal como o seu marido em tempos costumava ser. – Acho – murmurou Padua, encurvando o corpo contra o dele – que nunca antes me senti tão bonita em toda a minha vida. A sua confissão comoveu-o. É claro que as mulheres se importavam com este tipo de coisa e a roupa que usavam afetava a forma como se viam a si mesmas. O facto de Padua ostentar uma postura confiante, mesmo vestida de um feio cinzento, não significava que não sentisse que era notada pela ausência de vestidos elegantes. – Deveria ter um guarda-roupa novo, para poder sentir-se sempre assim – experimentou ele. Padua não respondeu. Ives praguejou interiormente. Que raio de situação. Ele já comprara guarda-roupa para mulheres por quem praticamente nada sentia, mas esta mulher não o permitia. Não sou esse tipo de mulher. Maldição. Padua voltou-se de lado e olhou para ele.


– Certamente já teve casos amorosos com mulheres que não eram sustentadas por si. Eu preferiria que fosse assim. Comprou guarda-roupa para as senhoras com quem se envolveu nesse tipo de relação? Foi a vez de Ives negar a resposta. – Oh – disse ela –, nunca antes teve uma relação desse tipo, pois não? Uma relação amorosa, não uma amante. Ele certamente iria arrepender-se do que estava prestes a dizer. Sabia que sim. – Essas ligações estão cheias de complicações. – Que tipo de complicações? – Daquelas sobre as quais não se fala. Expectativas. Obrigações. Temas sensíveis. – Como a expectativa de casamento, como referiu esta tarde? – Nalgumas situações, sim. – Ou a expectativa de haver amor. – Seguramente isso não se aplica se a mulher for adulta. – Se for casada, não. Se for viúva, não. Se for reconhecidamente mundana, não... – Mundana, como as suas cantoras de ópera, quer isso dizer. – Diferente dessas. Apenas de espírito independente. Mais como a Padua, na verdade. – Ainda assim, quer comprar-me um guarda-roupa. Se eu o permitir, sentirse-á mais tranquilo de que não será complicado? Se eu te deixar fazeres de mim uma meretriz, ficas mais feliz? Ela não o disse. Talvez nem o tenha pensado. Mas Ives não podia negar as implicações da conversa. – Tem razão. Não tive relações amorosas, apenas amantes. Contudo, não quero comprar-lhe um guarda-roupa para que possa ser incluída nesta última categoria. – Ives não achava pelo menos que era essa a razão. O facto de que apreciaria mesmo muito se ela fosse sua amante era algo completamente diferente e com razões que não esta. Gostaria disso porque, nessa altura, saberia que ela seria sua, só sua, pelo menos durante algum tempo. – Compreendo – disse ela. – Os homens gostam quando têm mulheres encantadoras. A conversa exasperava-o. Uma oferta inocente tornara-se complicada. – Também não é essa a razão. Para mim, é sempre encantadora. Quero apenas que saiba que o é, e não estou certo de que o saiba. Se for preciso um vestido bonito para a convencer, quero que o tenha.


Padua ficou imóvel. Fungou. Oh, diabo. Ives analisou o que acabara de dizer, para se assegurar de que não a tinha magoado ou irritado sem intenção. – Não está a chorar, pois não? – Um bocadinho. – Fungou novamente. – Que bonita coisa para me dizer, Ives. Tenho a certeza de que nunca antes alguém me achou encantadora. – Que disparate. Claro que sim, a menos que sejam cegos. – Aconchegou-a nos seus braços. Sim, complicado. Ela beijou-o tão ternamente que ele decidiu que nem se importava assim tanto com isso. Padua aconchegou-se nele e adormeceu. Ives decidiu ficar um pouco mais, até o sentido de discrição ditar que teria de sair. * Lance ergueu o mosquete. Um disparo perturbou a paz da manhã. Ao longe, uma galinha-brava tombou do céu. Entregou a arma a um criado próximo, o qual por sua vez lhe entregou outra, carregada e pronta a disparar. Ives observava o silvado, atento a ver se outras aves levantavam voo. Lance dedicou a atenção novamente à caçada. – Miss Belvoir recebeu outra carta hoje. Gareth olhou lá de onde também ele aguardava com o mosquete pronto a disparar. – Do advogado – acrescentou Lance. Ives não perguntara a Padua acerca das cartas. Não a proibira de comunicar com amigos em Londres e se as cartas chegavam da Langley House, duvidava que alguém soubesse onde ela estava. Sobretudo, não a questionou sobre elas porque, se Lance achava que algumas eram de um advogado, é porque provavelmente estava certo. Presumia que fosse Notley. A última coisa que Ives queria fazer era falar com Padua sobre Hadrian Belvoir. Haveria espaço e tempo suficientes para isso mais tarde, quando regressassem a Londres. Por vezes, Ives especulava e tentava imaginar como correria a conversa. Suspeitava de que não correria bem. E era por isso que ia ficando ali em Merrywood, enquanto fingiam que os acontecimentos de Londres sucediam noutro planeta. Estavam ali há cinco dias. Cinco dias de um desejo mal contido e cinco noites de prazer erótico. Se assim pudesse, podia prolongar a estada por um mês.


Um ano. Várias galinhas-bravas levantaram voo. Ele e Gareth dispararam e abateram duas. – Eu também recebi uma carta. – Lance mantinha o olhar lá longe. – Do Príncipe. Assim se matou o interesse no tiro ao alvo. Na qualidade de duque, Lance gozava naturalmente do favorecimento real, mas isso não significava que o Príncipe Regente lhe escrevesse cartas. Com a atual nuvem negra sobre a cabeça de Lance, o Príncipe mantivera ainda mais a distância. – A carta era dirigida a mim, mas versava sobre vocês os dois. – Como assim? – perguntou Gareth. – Escreveu a agradecer a ambos os esforços em nome dos lordes na primavera passada, agora que o assunto está encerrado. Pede que o visites quando ele estiver em Londres, Gareth. Ele vai receber-te. Gareth conseguiu ocultar muito bem o seu espanto. – Quanto a ti, Ives, pediu-me que use a minha influência sobre ti para garantir que aceitas o caso do Belvoir. Está a contar contigo como procurador pela Coroa, mas disseram-lhe que tu poderás escusar-te do processo. – Maldição. – É a vingança do Sidmouth. Foi bisbilhotar e encurralou-te bem encurralado – disse Lance. Voltou novamente a atenção para o terreno e ergueu o mosquete para estar pronto a disparar. Gareth olhou Ives de soslaio. – Não percas as estribeiras. Nem o Sidmouth nem o Príncipe estão agora aqui para assistir. – Mas o Lance, sim. Se calhar devia simplesmente dar-lhe uma tareia. Lance olhou-o, surpreendido. – A mim? Eu estou inocente. – Nunca ouviste falar em matar o mensageiro? – perguntou Gareth. – Mata uma perdiz em vez disso. Os rendeiros vão ficar contentes se lha ofereceres para porem nas caçarolas do jantar. Ives conseguiu controlar a irritação. – É insultuoso que o Príncipe te escreva a ti a falar-te deste assunto. Não costuma hesitar em escrever-me diretamente quando quer que eu encontre uma qualquer mulher que esteja a chantagear um dos seus tios. – Ele escreveu ao Aylesbury, não ao teu irmão Lance. Teria escrito ao Percy, se ainda estivesse vivo. Está a tratar do assunto com o duque. O patriarca da


família, digamos assim. – Lance fez pontaria e disparou novamente. – Patriarca da família. Para o diabo com isso – rosnou Ives. Lance entregou-lhe o mosquete usado e pegou no que ele tinha encostado ao braço. – Já que não o estás a usar... Voltou-se e disparou outra vez. Gareth pousou a arma contra a parede do abrigo e cruzou os braços, pensativamente. – Gostas de ter o favorecimento do Príncipe, Ives? É importante para ti? Só escreveu ao Lance porque, seja o que for que o Sidmouth lhe disse, o levou a duvidar da tua posição no seu círculo. É claro que gostava da sua posição perante o Príncipe. Era mais velho e fora um bom amigo do pai. Assumia um tom avuncular quando falavam. Quanto a gostar desse favorecimento...nenhum homem o encararia com ligeireza. Mesmo o filho de um duque via a sua posição melhorada se fosse conhecido por merecer a atenção do Príncipe Regente. O olhar de Gareth revelava solidariedade com o dilema. – Ainda bem que emiti aquele meu decreto – declarou Lance, enquanto esperava que os mosquetes fossem recarregados. – Será mais fácil acabares tudo com ela agora do que se te tivesses deixado levar por um mau discernimento. Refiro-me a Miss Belvoir. – Sei bem a quem te referes. – Estou a ver que ainda é um assunto sensível. Vê se lhe inculcas algum juízo, Gareth. Já deixou de me escutar há muito. Ives não precisava de ninguém a inculcar-lhe juízo nenhum. Já tinha disso de sobra. Um juízo racional, implacável e muito mais lábia do que o mundo precisava. Era a sua ferramenta de trabalho. A amizade da Coroa ou a da filha de um criminoso. Só um louco acharia que tinha realmente escolha. * Padua enfiou a carta na bolsa e depois colocou a bolsa na mala. Pôs a mala num local que não fosse visível. Enterrou a carta como se a sua invisibilidade significasse que podia ignorar a mensagem que continha. Mr. Notley descobrira a herança do pai. Aguardava o regresso de Padua a Londres antes de aprofundar a informação.


Tinha de regressar. Vestindo o casaco cor de safira que Eva reformulara para ela, desceu até ao jardim. Os irmãos haviam saído a cavalo várias horas antes, acompanhados de um séquito; foram caçar. Ela e Eva passaram algum tempo sozinhas, mas agora Eva estava a descansar e Padua tinha tempo para as suas reflexões. Passeou pelo jardim, fascinada com a ideia de que a própria noção de tempo se tornara algo invulgar. Passara a maior parte dos últimos anos sozinha. Mesmo na escola de Mrs. Ludlow, com exceção das conversas com Jennie, os seus pensamentos eram a sua companhia. Todavia, ali, começara a fazer parte de um grupo. Agora nunca tomava as refeições sozinha. Mesmo quando lia na biblioteca, muitas vezes estava lá outra pessoa a ler também. Frequentemente, essa outra pessoa era Ives. Passara mais tempo com ele nos cinco dias anteriores do que passara provavelmente com qualquer outra pessoa desde a morte da mãe. Nunca procurara essa vida tão solitária, mas também nunca se importara particularmente. Até estava a apreciar o seu isolamento no jardim naquele momento, como se de um velho amigo se tratasse. Cinco dias. Cinco noites. Diferentes. Mágicos. A intimidade com Ives transformara-a. Mexera com ela. O prazer era o menos. O seu calor enchia vazios que nem sabia que tinha. Estava contente por ter sido caprichosa e irresponsável. Não se arrependia de se ter permitido conhecer o seu desejo de mulher e a sua satisfação. Mas preocupava-a poder não gostar das consequências. Sorriu com a memória de Ives naquela manta, querendo negociar, mas sabendo que não o deveria. Não. Pelo menos ainda não. Ele sabia, tão bem como ela, que esta relação seria breve. Padua sentou-se num banco na extremidade do jardim, encostando-se a uma parede de pedra que conservava o calor do sol. Fechou os olhos e recordou aquela manhã. Quase tinha sido apanhado novamente no seu quarto. A noite fora louca e erótica, quase selvagem, e ele adormecera abraçado a ela. Padua não suportara a ideia de o acordar ou de abandonar o casulo de carinho que a envolvia. Receara que a sua simples respiração pudesse estragar um quadro tão perfeito. Percebeu que o Sol se escondera atrás da casa. O ar transportava um novo calafrio. Abriu os olhos e começou a levantar-se. Lá em cima, na varanda, viu Ives. Ainda usava o casaco e as botas de montar. Observava-a e a sua simples atitude dizia que contemplava aquilo que via.


Ciente de que ela reparara nele, desceu da varanda e caminhou na sua direção. – Foi bem-sucedida, a caça? – perguntou quando ele se sentou a seu lado. – O Lance acha que sim. A sua pontaria dará para alimentar metade dos rendeiros esta noite. Vão ficar contentes. As colheitas foram fracas este ano. – Foi generoso, então. Pensava que o fazia apenas por diversão. – Fá-lo no papel de Aylesbury. Não foi educado para o cargo, mas está a habituar-se às suas responsabilidades. – Olhou para ela vendo como se abraçava a si mesma para se aquecer. Desabotoou o casaco, tirou-o e colocou-o sobre os ombros dela. – Vamos entrar não tarda nada. Mas ainda não. Ives fechou os olhos como ela fizera, só já não havia sol com que se deliciar. Padua não precisava de ver a sua expressão para saber que refletia profundamente acerca de alguma coisa. Era algo que agora ela simplesmente sentia. Mesmo às escuras, quando ficavam deitados, sabia quando o seu espírito dava voltas com alguma coisa. – O Lance disse que recebeu hoje uma carta – disse ele. – O duque fala demasiado sobre assuntos que não lhe dizem respeito. É este o lado negativo das famílias, quer-me parecer. Toda a gente se mete na vida uns dos outros. Ives abriu os olhos e olhou para ela. – Era de Mr. Notley – admitiu Padua. – Tem a certeza de ter informações sobre a herança do meu pai. – Isso são boas notícias. – Espero bem que sim. Se houver mais fundos... o simples facto de saber que há... muda tudo. – Padua aconchegou-se um pouco mais com o casaco. – Bem, não tudo, mas tornará a vida mais fácil. – Então são mesmo boas notícias. – Ives pegou-lhe na mão. – Escreveu sobre mais alguma coisa? Padua queria mentir. Durante mais um ou dois dias, queria silenciar todas as vozes de Londres. – Escreve que foi marcada a data do julgamento. Não o informaram a si? – Também chegou uma carta para mim. Ainda não a abri. – É mais esperto do que eu a adiar os apelos do dever. – Mais experiente, nada mais. – Quando pensava abri-la? – Possivelmente amanhã. Ou, quem sabe, no dia seguinte. Ives parecia um pouco triste. Isso comoveu-a. – Tenho a certeza de que perdi a minha carta, Ives.


– Que descuidada. – Sou, não sou? Não a encontro em lado nenhum no meu quarto. Duvido que lhe volte a pôr os olhos em cima nos próximos dias. Ele levantou-se e ofereceu-lhe a mão. – Dois dias, então. Não mencionaremos o assunto até lá. Regressemos a casa. * Toda a gente sabia. Padua sentia-o. Só não sabia ao certo quanto todos eles sabiam. Todavia, a conversa ao jantar soava demasiado alegre e acelerada. As graças levavam toda a gente a rir-se em demasia. Eva agia normalmente, mas os cavalheiros ostentavam uma boa disposição forçada. Não para ajudar Ives, percebeu Padua. Para a ajudar a ela. Todos sabiam que a relação amorosa a que tinham dado abrigo acabaria em breve. Ives, muito em particular, sabia-o e juntou-se aos irmãos enquanto a envolviam numa galhofa e numa graça descontraída. Ela entrou no jogo, para que a nostalgia que já lhe invadia subrepticiamente o coração não arruinasse o pouco tempo que ainda lhe restava. Contudo, naquela noite, não conseguiu controlar essa nostalgia. Tingia todas as suas reações. Ives fez com que o prazer fosse longo e lento e levou-a três vezes além do limite do êxtase antes de se juntarem numa união pungente que a deixou à beira das lágrimas. As suas mãos acariciaram-na como se conhecesse o seu estado de espírito, e dele partilhasse, e como se talvez conseguisse antever a saudade futura. – Amanhã vamos sair a cavalo – disse-lhe enquanto ela caminhava em direção à cama a meio da noite. Padua tinha saído para o quarto de vestir enquanto ele dormia, mas agora, apoiado no cotovelo, esperava que ela regressasse. – A Eva encontrou alguma coisa que poderá usar, não é verdade? – Sim, mas em todo o caso vou parecer uma pateta, porque não sei montar. – É fácil. Vai gostar. Encare-o como mais uma nova experiência. – Não lhe parece que já as tive em quantidade suficiente? – encostou-se ao poste da cama e admirou-o na sua aparência por entre os lençóis, com a quente iluminação do candeeiro incidindo-lhe no tronco e nos braços. Só de olhar para ele, sentia a agitação dentro dela. Sempre o sentira, mas essas agitações tinham agora vida própria, continham memórias e um fito, e não as sabia controlar devidamente. – Nem de perto. – Abanou a cabeça como um homem assoberbado pelo


dever. – Há tanto para lhe ensinar... Interrompeu-se, mas ela, mentalmente, terminou a sua pequena graça. E tão pouco tempo. Ives inclinou a cabeça e estudou-a assim de pé. Luzes malandras invadiramlhe os olhos. Lançou para trás o lençol e aproximou-se de Padua, medindo-a da cabeça aos pés. – Que foi? – perguntou ela, a olhar para baixo, tentando perceber o que estava errado. – Estou só a fazer cálculos. – Que resposta mais estranha. Ives chegou-se mais perto. Tão perto que a encurralou contra o poste da cama. Franziu o sobrolho. – Não, não me parece. Estávamos enganados. – Estávamos? – Não falo de nós os dois. – Enganados acerca de quê? – Senti-lo ao longo de todo o seu corpo disparara-lhe outra vez o desejo. – Se, com a sua altura, eu a poderia tomar em pé sem precisar de a levantar. Era uma curiosidade. – Nossa curiosidade? Não de nós os dois, mas de outro nós? A expressão de Ives fechou-se e depois exibiu um sorriso encantador. – O nós da realeza. Eu. Padua fitou-o com ceticismo. A sua atenção regressara ao problema que o ocupava. – Só há uma forma de saber. Está confortável aqui, encostada ao poste? Talvez seja melhor a parede, para o caso de a experiência falhar. Sim, parece-me que sim. – Pegou-lhe na mão e conduziu-a até à parede. Padua não demorou muito a estar pronta. Sentia sempre o prazer mais intensamente quando estava de pé. Sensações físicas em bruto acumulavam-selhe no ventre, incitadas pelos seus beijos penetrantes e as suas mãos perversas. Ives deslizou para dentro dela, subindo profundamente. Padua pensou que ele a poria em bicos de pés, até que parou. A plenitude fê-la ofegar. Padua sentia-o de forma diferente. Ele pressionava pontos novos, por dentro e por fora. Pontos excitantes. Mexia-se uma, duas vezes e depois parava. – Isto é batota, mas... Ives levantou-lhe a perna pelo joelho e segurou-a, fletida sobre a sua anca. Mexeu-se novamente.


– Melhor. Perfeito. Ela teria concordado, se conseguisse falar, mas não conseguia parar de arfar de espanto. Ele grunhia cada vez que investia dentro dela, cada som uma afirmação de prazer. Foi a união mais ruidosa que alguma vez partilharam. É verdade que, no fim, ele a levantou, para que as suas pernas formassem um círculo à volta dele e que as suas investidas finais a golpeassem contra a parede. Transportando-a assim, cambaleou até à cama, onde colapsaram os dois.


CAPÍTULO 16 ves saiu de casa pelas portas da varanda. Queria falar com os moços de estrebaria sobre o cavalo que Padua iria montar. Ao sair, viu Lance de pé, perto da escadaria, a vigiar o seu domínio. – Será que nunca dormes? – perguntou Lance sem se voltar. Ives parou de caminhar. – Muito frequentemente e bem. Obrigado pela tua preocupação. – Suponho que seja positivo que alguém o consiga. Esta noite, não foi seguramente o meu caso. – Dirigiu um sorriso contrito a Ives. – Houve alguém constantemente a bater contra as paredes de um dos quartos por cima de mim, a gemer devido a quaisquer que fossem os esforços que o ocupavam. – Que estranho. Talvez estivesses a sonhar. – Parecias-me tu. – O meu quarto não fica por cima do teu. – Ao contrário de uma parte do quarto de Miss Belvoir. O quarto de dormir fica por cima do meu quarto de vestir. – Duvido que ela gema como um homem, independentemente dos esforços que empreenda. – Mas tu sim. – Como poderia ter sido eu? O meu quarto fica do outro lado do corredor. Se estás a insinuar que eu estive no quarto dela, isso não é possível. Está em vigor um decreto em todo o território. Lembras-te? Lance levantou um sobrolho. Ives sorriu. – Vou sair esta noite depois do jantar – informou Lance. – Não me perguntes aonde vou. Não te arrogues o direito de me dar sermões sobre bom comportamento. Esta abstinência infernal já é suficientemente má, mas ter de a suportar enquanto te ouço a investir contra a tua amada até desmaiar é pedir de mais. As investidas tinham sido tão boas que Ives até sentiu uma pontinha de

I


desgosto. – Esta noite não me parece que vás reparar no que os outros fazem, Lance. Se andas com o sono assim leve ultimamente, uma boa cavalgada pode fazer-te bem. Ives prosseguiu para os estábulos e pediu que lhe trouxessem a égua alazã. Todos os cavalos eram vivazes, mas o encarregado da cavalariça garantiu-lhe que esta não era espantadiça nem impulsiva. – Aceita uma mão dócil, senhor. Deverá ser apreciada por uma senhora. – Traga-os daqui a cerca de meia hora. Sele a égua pessoalmente, para eu ter a certeza de que não há percalços. De regresso a casa, Ives subiu aos seus aposentos. Caminhou rapidamente para a secretária, abriu uma gaveta e tirou uma carta. Fitou-a. Ostentava o selo do chanceler-mor. Ergueu uma faca e cortou a carta. Apenas uma palavra da missiva o surpreendeu. Como se esperava, estava a ser nomeado procurador pela Coroa no caso de Hadrian Belvoir. A Coroa não perguntava nem solicitava este tipo de coisa. Isso implicaria que era possível dizermos não ao nosso rei ou que poderíamos sequer desejá-lo. O resto da carta não estava redigido exatamente como teria esperado. As acusações, explicava, eram de contrafação e rebelião. Questionou-se se haviam sido desenterradas provas disso ou se se esperava que ele argumentasse sem mais nada na manga do que insinuações e suposições. Atirou a carta novamente para a gaveta e fechou-a com força. – Ainda acho que vou cair. – Padua fez uma careta de apreensão enquanto o cavalo a levava pelo campo, lentamente. Muito lentamente. – Está a sair-se lindamente. Tente não se sentar tão rígida. É importante uma boa postura, mas a adaptação ao passo do cavalo será natural e sentir-se-á mais confiante. Padua não parecia estar convencida. Com esforço, conseguiu descontrair, mas só muito ligeiramente. – Mas se detesta, podemos voltar – disse Ives, com pena dela. – Não, não. Não detesto propriamente. Quer oferecer-me esta experiência, por isso eu devo saber ser recetiva. Estou apenas um pouco receosa, mas vai melhorando passo a passo. – Estou-lhe eternamente grato pela sua capacidade de ser recetiva, mesmo quando está um pouco receosa. Já lhe tinha dito isso?


Padua olhou para ele, compreendeu a referência e corou. – Não se pode dizer que tenha sido propriamente um sofrimento. Não foi um sofrimento, porque ela se permitira ser impetuosa. Ives recordou a lista que escrevera com os atributos da amante ideal. Leal Jovial Inteligente Desinibida Impetuosa Recetiva Padua era tudo isso e superava a maioria das mulheres nalguns aspetos. Ela nunca concordaria em ser sua amante, mas a lista aplicava-se a qualquer mulher com quem tivesse uma relação amorosa, qualquer que fosse o seu estatuto. Infelizmente, a qualidade mais importante, aquela em que não poderia haver cedências, a lealdade, prometia ser o problema mais difícil. Não porque lhe faltasse lealdade, mas por também ser excecional nesse domínio. Ives trotou a seu lado, de olho nela e no cavalo, reparando como ela se habituava lentamente. Quando acabaram de atravessar o campo, Padua quase parecia estar a divertir-se. Ele acelerou o passo só um pouco e ela não se importou. Padua interessou-se pelas quintas e acenou quando passaram por uma família a trabalhar do lado de fora da sua cabana. O homem e a mulher pararam e ficaram a olhar. – Parecem surpreendidos – disse ela. – Há já alguns anos que não veem uma mulher a montar a cavalo pela propriedade. Provavelmente desde que a minha mãe deixou de o fazer. Instintivamente, Padua olhou para o seu traje de montar azul. Outro milagre de Eva: tinha sido recuperado a partir de um dos trajes da mãe dele. A longa cauda dos trajes de montar permitira um reajuste. – Eles não o reconhecem – disse ele. – A mulher reconhece, pode ter a certeza. – Riu-se. – A sua mãe tinha cabelo escuro? Se sim, poderá espalhar-se o boato de que foi avistado o seu fantasma. – Tinha o cabelo e os olhos escuros e, suspeito eu, também o seu espírito e, quem sabe, o coração. Quando morreu, percebi como a conhecera tão pouco. – Isso é triste.


Sim, era, imaginava ele. Ela tinha preferido Percy, como acontece com a maioria das mães relativamente ao primogénito. Ives e Lance tinham visto uma aliança naquilo que teria sido talvez apenas uma mãe a ser mãe. – Não só não sei absolutamente nada sobre ela, como também sobre o casamento dos meus pais. O Gareth é a prova de que não era feliz, mas não sei se ela afastou o meu pai, se ele lhe fugiu ou se a culpa era dele. – Se calhar é por isso que nenhum de vocês se casou. Todas essas ambiguidades não vos permitem ter grande fé no casamento. Que coisa peculiar de se dizer. Não se tinham casado porque... Sorriu consigo mesmo. Porque nenhum deles o quis. Gareth acabara de se casar, mas a verdade é que era quem tinha menos a perder e o seu carácter formara-se de modo diferente. Ele não estava à frente da manada. Nem sequer corria com a manada. Seria típico dele decidir que, a menos que houvesse provas em contrário, o casamento seria uma boa ideia se a mulher em causa fosse Eva. Aproximaram-se da colina por um caminho diferente. Iam a meio caminho quando Padua percebeu onde estavam. – Obrigada por me trazer novamente aqui, para eu poder ver outra vez este lugar. Ives insistiu que se apeassem quando chegassem lá acima. Ficaram parados, em pé, no cume. Os olhos de Padua cintilavam enquanto se banqueteavam com a paisagem. – Tive um motivo para a trazer aqui, Padua. – Não me parece que este vestido, com toda esta saia, seja muito prático para isso. Ele riu-se e tocou-lhe a mão. – Quando aqui estivemos da última vez, abordei um assunto sobre o qual quero falar novamente. Gostaria que nos casássemos. Nada mudou na expressão de Padua. Continuou a mirar as quintas lá de cima. O seu meio sorriso não se alterou. Permanecia em paz. Talvez, só talvez, dos seus olhos tenham emanado algumas luzes. – Quer fazer o que está certo – disse ela. – É decente da sua parte. – Nestes assuntos sei ser o maior dos canalhas. Não estou a pedi-la em casamento por obrigação. Acho que combinamos muito bem. Padua olhou para ele. Um milhão de estrelas faiscavam naquele momento, porque havia lágrimas nos olhos dela. – Combinamos mesmo bem, não é? E se este fosse mesmo outro mundo... que escândalo causaria se se cassasse comigo. Poderia sobreviver a isso só com


o valor do seu berço? Casar-se com a filha de um criminoso, um homem que poderá ser condenado à forca? Duvido. Acho que os seus irmãos duvidam. Eles sabem que não me pode ter. Está nos olhos do Gareth quando olha para mim. O lamento por aquilo que certamente acontecerá. – Não me importo com tudo isso, com os diabos. – Mas irá importar-se. Ter estado no centro e, depois, ser empurrado para a margem... Acho que é mais fácil ter vivido como eu vivi, desde sempre na margem. E quando está a pensar celebrar este casamento? Antes de fazer a acusação ou quando o meu pai deixar de existir? Ives puxou-a para os seus braços. – Nunca. Decidi que não o farei. Ela fitou-o em choque. Fulminou-o com os olhos. – Mas tem de o fazer. – O diabo é que tenho. Não serei responsável por lhe infligir essa dor. Ela torceu-se e contorceu-se para escapar aos seus braços. Recuou e enfrentou-o, alta e hirta. – Em todo o caso, conhecerei a dor. Se se recusar a servir a acusação não me estará a poupar nada e até tornará tudo pior do que o necessário. – É perverso sugerir que, depois de tudo o que partilhámos, eu vá a tribunal contra o seu pai, Padua. Isso agora está fora de questão. Vou escusar-me. – Se não o fizer, quem o fará? – Acelerou na sua direção e cravou o rosto no dele. – Um tonto qualquer que ache que só ganhará se o acusado for enforcado? Um homem mais interessado no dinheiro que irá ganhar do que na justiça? O meu pai poderá ser culpado de ter desempenhado um papel secundário num crime em grande, mas há quem vá fazer crer que ele planeou tudo e que ainda enriqueceu com isso, e ainda pior. Ives teve um acesso de fúria. Para a poder dominar, afastou-se de Padua. – Depois desta semana, assumir a acusação seria desonroso. Nunca poderia ser eficaz. Tenho de me escusar. Com os diabos, já antes de sairmos de Londres eu sabia que teria de o fazer. – Sabia? – Era mais uma acusação do que uma pergunta. – Claro que sim. Um homem não pode fazer a uma mulher o que eu lhe fiz na Langley House e depois afirmar imparcialidade perante os seus pares. Acha mesmo que a teria assim e depois iria fingir que representava a Coroa quando o seu pai fosse julgado? A expressão de Padua quebrou-se. Estilhaçou-se. Mordeu o lábio inferior. Envolveu-se com os braços e bateu com o pé, num esforço para conter a emoção.


– Mas tem de o fazer. Tem de o fazer. – Bateu com o pé de novo. O rosto contorcia-se de angústia. – Fiz disto tudo uma grande salgalhada. Sou uma idiota. As piores inquietações de Ives regressaram de onde ele as havia enterrado. Espalharam-se por todo o seu ser como um calafrio ominoso. Quase asfixiou com a desilusão que deles emanava. – Padua, em minha casa, naquela primeira noite, sentiu-se tentada a subornarme. Estava nos seus olhos. É isso que tem estado a tentar fazer? Convencer-me a não dar o meu melhor em tribunal? Padua olhou para ele, de olhos ainda mais velados. – Não a poderia censurar se o fizesse – acrescentou. – A Padua é absolutamente brilhante. E leal. Padua abanou a cabeça. – Por favor, não pense assim. Por favor, não. Não lhe abri a minha porta para nada disto. Contudo, se eu tivesse sabido que, ao fazê-lo, estaria a levá-lo a afastar-se completamente... o melhor que tem para dar é honesto e justo e o de outros poderá não o ser. – Ela voltou-lhe as costas e comprimiu as palmas das mãos contra os olhos. Ives aproximou-se por trás e envolveu-a com os braços. As suas lágrimas causavam-lhe convulsões e, depois, começaram a esmorecer. Quando se conseguiu recompor, Padua encostou-se a ele e cingiu os braços dele contra o seu corpo. – Já leu a sua carta? – perguntou ela. – Sim. – Mas vai recusar. Isso é algo que se faça habitualmente? – Não. – Nesse caso não pode de todo ajudar o meu pai, pois não? Depois de se recusar a assumir a acusação, defendê-lo seria uma bofetada na cara de quem tenha escrito essa carta. O chanceler-mor seria o menos. Mas ela não precisava de o saber. Ives ajudou-a a subir para o cavalo e depois montou o seu. Encaminharam-se para casa. Ela manteve-se pensativa. – Ives, referiu que estaria a fingir representar a Coroa. É essa a proveniência da carta? A corte real ou o Regente? Havia alturas em que a inteligência rápida de Padua se revelava inconveniente. – O Príncipe Regente mencionou-mo antes, há mais de um mês.


Padua estacou o cavalo, fechou os olhos como que a absorver um soco, abriuos em seguida e depois prosseguiu. – Teria sido mais sensato da sua parte ter mantido uma das suas amantes, Ives. Temo bem que um novo guarda-roupa e meia dúzia de joias não seriam nada comparado com o que eu lhe irei custar. Tal como na viagem para Merrywood, Ives não viajou dentro da carruagem com Padua no regresso a Londres. Partilharam um beijo de despedida na primeira luz da aurora, antes de deixar toda a magia para trás. Padua não se importou. Seria demasiado triste sentar-se ao lado dele dias a fio, tentando fingir que o seu coração não se quebrava aos poucos. A verdade é que subiu atrás dela quando se afastaram da última estalagem. – Disse ao cocheiro que a leve à Langley House – informou. – Eu deixá-la-ei quando passarmos a última cancela. – Não preciso de regressar à Langley House. Não o devo fazer. – Irá fazê-lo, pelo menos esta noite. Amanhã irei ter consigo e ajudá-la-ei a arranjar um lugar para residir. Tem o dinheiro que encontrou nos livros, por isso arrendar um apartamento não deverá ser problemático. Padua quase o recordou da sua promessa de não gastar aquele dinheiro. Temia que ele encarasse a oferta daquele dinheiro como mais uma cedência em toda uma série delas. Depois da última cancela, a carruagem parou. Ives agarrou no puxador da porta, pronto a saltar lá para fora. Estacou e olhou para ela, depois tomou-lhe o rosto nas mãos e beijou-a profundamente. E depois foi-se. Padua permitiu que a carruagem a levasse à Langley House. Inclusive permaneceu lá nessa noite. Contudo, na manhã seguinte, não esperou a visita de Ives. Fez a mala, pediu uma carruagem de aluguer e partiu. Não tinha marcação, mas Mr. Notley recebeu-a. Sentou-se à sua frente no gabinete, como da outra vez, com o escrivão ao lado a escrevinhar apontamentos. Mr. Notley sorriu, satisfeito consigo mesmo. – Fui muito esperto relativamente a esta herança, se é que posso dizê-lo. Deu algum trabalho. – Estou-lhe grata. Notley reclinou-se na cadeira, juntando os dedos para formar aquelas cúpulas


como era costume enquanto pensava. – Tive de convencer o carcereiro a dar a volta ao seu pai para revelar o seu local de nascimento. Não vai querer saber como ele o conseguiu. Só a incomodaria. Depois de saber de que paróquia de Essex era originário, enviei um escrivão para investigar a família, recuando duas gerações. Mapeámos a árvore genealógica e depois começámos a procurar testamentos sob aqueles nomes. E, minha cara senhora, encontrámo-lo. Debruçou-se. – Sabia que o seu pai se chama na verdade John Hadrian Belvoir? Se não tivéssemos ficado a saber isso na paróquia, toda a procura teria sido em vão, já que no testamento ele aparece como John H. Belvoir. Não admira que os advogados tenham demorado eternidades a encontrá-lo. – Se calhar o meu paizinho achava que Hadrian soava mais académico do que o simples John. Ele consegue ser algo vaidoso. – John Belvoir herdou propriedade, como era sua esperança. Aqui mesmo, em Londres, uma casa. – Se ele tem uma casa aqui, porque arrendou aposentos? – Pressuponho que tenha essa casa arrendada. Sozinho, não precisaria de tanto espaço. Contudo, eu também lá poderia ter vivido. Padua pôs de lado a ponta de ressentimento. – Já viu a casa? – Não. Não fui autorizado a visitar e avaliar. Não teria legitimidade para entrar. – Eu vi-a – disse o escrivão. Notley voltou-se para ele. – Ah, viu? – Passei à frente dela. Tinha curiosidade. É uma bela casa, Miss Belvoir. Maior do que a maioria, numa boa rua. O relato do escrivão animou-a. – Pode indicar-me a morada, por favor? O escrivão anotou-a num papel e entregou-lho. Padua enfiou-o na bolsa. – Bem – disse Mr. Notley –, receio ter outras notícias menos felizes. Como lhe escrevi, foi efetivamente marcada a data do julgamento. Tive oportunidade de consultar as acusações completas e foi acrescentada uma nova. Padua temia continuar a ouvir, mas era evidente que tinha de o fazer. – E que nova acusação é essa?


Notley franziu os lábios. – Rebelião. Isso significa... – Sei o que significa. – Sabe? Não é propriamente traição, por exemplo. Com a contrafação, teria sido essa a gravidade. Estas são, por isso, más notícias que na verdade poderiam ter sido piores. – Vou tentar encarar a coisa dessa forma. O meu pai já falou entretanto consigo, com uma tal acusação a pender sobre ele? Notley abanou a cabeça. – Fui lá e fiquei do lado de fora daquela cela durante uma hora e ele ignoroume o tempo todo. – Obrigada por tentar e pela sua diligência relativamente à herança. Espero poder contar consigo, se o conseguir convencer a cooperar. – Sem dúvida, Miss Belvoir. Puseram-se ambos de pé. Notley saiu do gabinete. O escrivão abriu o livro de contabilidade e informou-a de quanto devia. – Como assim, foi-se embora? – Exigiu Ives saber ao lacaio que abriu a porta, depois de tomar conhecimento de que Miss Belvoir abandonara a residência. – Saiu esta manhã cedo, senhor. De mala na mão. Ives saiu novamente de casa a passos largos e saltou para o cavalo. Não tinha ele dito a Padua que passaria por lá e a ajudaria a organizar a vida? Ela não tinha experiência nenhuma com agentes imobiliários e contratos. Só o estava a fazer para provar que não precisava que ele tomasse conta dela. Não se queria casar? Muito bem. Não queria ser sua amante? Aceite. Achou que o regresso a Londres tornaria uma relação demasiado complicada, demasiado perigosa? Isto é, perigosa para ele, e não para ela? Ives acabaria por lhe tirar essa ideia da cabeça, mas, naquele momento, ela estava sem casa e à deriva e o mínimo que ele podia fazer era ajudá-la a arranjar alojamento. E o mínimo que ela podia fazer era permiti-lo. Dirigiu-se ao centro, para ver se Padua havia ido falar com o tal advogado. Notley escrevera a dizer que tinha notícias e ela quereria certamente saber quais eram. – Miss Belvoir esteve aqui, senhor – disse o escrivão. – Saiu há pelo menos uma hora.


– Para onde foi? Sabe dizer-me? O escrivão dedilhou a pena nervosamente. – Talvez se pudesse aguardar o regresso de Mr. Notley... – Não tenho tempo para isso. Se sabe aonde ela foi, diga-me e poupe-nos a ambos uma longa discussão da qual, posso garantir-lhe, tenho toda a intenção de sair vencedor. O escrivão ouviu a ameaça ou vislumbrou-a. Pegou num pedaço de papel e escrevinhou. – É muito provável que tenha ido a esta casa, senhor. Ficou muito empolgada ao saber que o pai era o proprietário. Recebeu-a como herança. Ives leu a morada. Belvoir era proprietário desta casa? Nesse momento, quase agarrou no escrivão pelo pescoço. – Mr. Notley deixou que ela lá fosse sozinha? Ele conhece esta propriedade? O escrivão olhou para um lado e para o outro, como que procurando uma saída de emergência. – Ele não conhece a casa. Mas eu vi-a. – Mas não entrou, pois não? – Só passei à frente, para ser útil. Informei que era uma casa bonita e grande. – Então você mandou-a para lá? O escrivão contorceu-se. – Não a mandei propriamente. Essa decisão foi dela. Caso tenha mesmo ido. Ela não disse que lá iria hoje, ou em qualquer dia, agora que penso no assunto. – Sorriu debilmente. Oh, sim, ela tinha lá ido. Ives não tinha dúvida alguma. Ao saber que o pai possuía tal propriedade, teria de ver a casa. Qualquer pessoa o faria. Deixou o escrivão, voltou à rua e cavalgou rumo a oeste.


CAPÍTULO 17

N

ão havia outra hipótese. Teria de carregar a mala até à porta. Oxalá a família que ali vivia não pensasse que era sua intenção mudar-se para ali ou despejá-los de casa. Parou a admirar as elegantes pedras cor de camelo que formavam a fachada de quatro andares na Silver Street. Impressionada, utilizou o requintado batente de latão que alguém instalara recentemente. Um africano alto de libré abriu a porta. Olhou para ela, franzindo o sobrolho sob a orla da peruca branca. Mirou-a ousadamente da cabeça aos pés. Ela também o examinou. Um criado de libré ornado de veludo azul e sapatos formais parecia-lhe excessivo para aquela rua. A casa era grande, mas não era propriamente uma zona das mais requintadas. – Sou Padua Belvoir, filha de Hadrian Belvoir. O seu patrão conhece-o talvez por John Belvoir. É ele o senhorio desta casa. Venho com a esperança de que a família não se importe se eu fizer algumas perguntas. O meu pai está indisposto, está a ver, e... Uma luva branca ergueu-se, interrompendo-a. O homem desviou-se para o lado, para que ela entrasse. Trouxe uma bandeja. Padua abriu a bolsa e fingiu estar à procura. – Lamento muito. Deixei os meus cartões de visita em casa. Que descuido o meu – disse ela. Diga apenas que é a filha do senhorio. Pouco convencido, o criado foi-se embora. Padua sentou-se num banco de cabedal no átrio de entrada. Havia vários ao longo das paredes. Achou que era uma forma algo masculina de decorar uma entrada. O criado regressou. A luva branca acenou. Ela seguiu-o. Levou-a até uma sala decorada como um escritório, com uma secretária, cadeiras e estantes. Padua imaginou que fosse a sala do mordomo. Esperava que o criado não a tivesse entregado ao pessoal. Ela queria mesmo falar com os


inquilinos. Sentou-se na cadeira que a luva lhe indicou. Ele deixou-a sozinha. A casa parecia muito tranquila a meio do dia. Talvez a família não estivesse presente. Esperou bastante tempo. Por fim, a porta abriu-se. Uma mulher entrou, vestida com um encantador vestido matinal de lã cinza bordada a preto. A cor combinava com o seu cabelo ruivo. Padua imaginou que teria cerca de cinquenta anos. Não era a governanta, se usava roupa assim. – Miss Belvoir, sou Mrs. Lavender. Creio que, se alguém pode ajudá-la, serei eu. Peço perdão pela demora. Ainda não me tinha vestido. – Peço desculpa pela intrusão. É generoso da sua parte receber-me. Mrs. Lavender sentou-se numa cadeira junto a Padua. – Disse ao Hector que o seu pai está indisposto. Não está doente, espero eu. – Não, doente propriamente não. Só um achaque. Confesso que vim até aqui, em parte, por curiosidade. Não sabia que o meu pai tinha esta propriedade em Londres. – Olhou para o teto. – É muito grande. – Nós achamos confortável. A renda é razoável, mas justa, caso esteja preocupada com a possibilidade de alguém se ter aproveitado de Mr. Belvoir. Sei que ele não é o tipo de pessoa que inspire confiança no campo dos negócios. – Conhece-o, então? Pensei que a casa pudesse ter sido arrendada através de um agente. – Nós estávamos aqui quando ele a herdou. Já cá estamos há bastante tempo. – Suponho então que, se tiver havido crianças, já estejam entretanto crescidas. Mrs. Lavender limitou-se a olhar para ela e sorrir. – Seria possível ver a casa? Sei que é pedir muito, mas... – Mas poderá ser sua em breve, por isso tem curiosidade. – Sim. Muita. Mrs. Lavender semicerrou os olhos. A sua hesitação era evidente. – Não todos os compartimentos – disse Padua. – Não quero interferir na rotina da sua família. – Mostro-lhe centímetro a centímetro, se o desejar. Contudo, esta não é uma casa de família, Miss Belvoir. Não de uma família no sentido normal. Vivem aqui meninas. – É uma escola? – Também não no sentido normal dessa palavra, não. Padua ficou desorientada. Mrs. Lavender observava-a de perto. – Não compreendo.


– Claro que não. Miss Belvoir, este é um estabelecimento comercial. O meu estabelecimento comercial. As meninas prestam serviços pelos quais os cavalheiros... Oh. Padua sentiu o calor subir-lhe ao rosto. – Quer dizer que é um... um... – Sim. – O meu pai é dono de um... um... – Ele só é dono da propriedade. O... o... é meu. O seu pai herdou igualmente uma participação minoritária na sociedade, na qual não tinha qualquer interesse. Recebe as rendas e a sua quota-parte dos lucros, e ignora a nossa existência. Padua sentia a cabeça como se alguém lhe tivesse atirado água fria para cima. A sensação de choque simplesmente não parava de aumentar. – Quando ele a recebeu em herança, nós já aqui estávamos. Ele não promoveu a abertura do estabelecimento ao arrendar-nos a casa. O nosso contrato de arrendamento é muito antigo. Ele não nos poderia ter despejado, mesmo que quisesse. – Claro que poderia. Bastava ter pedido ao magistrado que encerrasse o estabelecimento. – Garanto-lhe que o magistrado já sabe tudo o que há a saber sobre esta casa. Toda a gente sabe. Abri-a há vinte e cinco anos. A Casa de Mrs. Lavender faz parte da paisagem de Londres, é respeitada e entre os nossos visitantes incluemse cavalheiros das melhores famílias. Muitos futuros pares do reino viveram aqui o seu primeiro encontro com Vénus. São enviados pelos pais. Era uma idiota. Uma criança rústica, ignorante e ingénua. Não admira que o paizinho nunca lhe tivesse contado grande coisa sobre a herança. Não admira que não a quisesse em Londres. Quem sabe poderia tropeçar na descoberta de que ele era sócio de um bordel. – Gostaria, ainda assim, de ver a propriedade, se não se importar. – Um dia seria sua, e não a manteria como era agora. Poderia talvez instalar ali uma escola, se a casa fosse tão grande quanto parecia. Talvez ela própria pudesse lá viver. – Como desejar. Não posso mostrar-lhe a maioria dos quartos. As senhoras ainda estão a dormir. Claro que estavam. Padua seguiu Mrs. Lavender e saiu do escritório. Se tivesse visto a sala de desenho logo que entrou, talvez tivesse adivinhado a atividade que ali se exercia. Continha muitas cadeiras grandes e várias chaises longues. Um balcão lateral ostentava uma boa quantidade de decantadores. Uma


profusão de padrões e cores femininos combinavam-se para criar uma decadência vistosa e exuberante. A biblioteca, mais adiante, era apenas mais do mesmo. Perguntou-se se alguma das meninas alguma vez usava os livros ou se tinham vindo com a casa e nunca ninguém lhes havia mexido desde então. Quando já tinha espreitado todos os compartimentos dos primeiros dois pisos, conseguiu perceber quais eram usados para receber clientes e quais eram verdadeiros espaços de residência. A sala de jantar parecia simples e funcional, a sala matinal nas traseiras não tinha tapetes de pelo e o jardim seria o adequado a uma família de um comerciante próspero. Mrs. Lavender foi à frente, em direção ao terceiro andar. – Aqui em cima temos dez quartos pequenos. Um deles está vago. Uma das raparigas casou-se há duas semanas. É algo raro de acontecer. Era muito popular e este mês os lucros vão baixar, até a conseguirmos substituir. O único quarto vago não era grande. Padua suspeitou que tinham dividido aposentos maiores. Além de uma cama e de um lavatório, não tinha mais nada, nem mesmo uma secretária. Subiram mais um lanço de escadas. – Os nossos clientes não podem aceder a esta área. Tenho aqui o meu quarto e as criadas também aqui dormem. Não vá a senhora pensar que eu atraio inocentes para a sua perdição começando por as contratar como criadas, quero que saiba que sou muito rigorosa e que não deixo nenhuma criada movimentarse nos andares de baixo, mesmo que o queira. Entram e saem por estas escadas exteriores e nunca entram na sala de desenho depois das cinco da tarde. – É uma atitude louvável. – Não conto com a sua aprovação ou compreensão, Miss Belvoir. Já há muito deixei de me tentar justificar a mulheres como a senhora. – Tentou justificar-se ao meu pai? Afinal de contas, ele poderia ter encerrado este lugar, mesmo que o magistrado fechasse os olhos. – O seu pai demorou dois anos a dar conta do que acontecia aqui. Eu tinhalhe dito que geria uma estalagem informal para mulheres. Todas precisamos por vezes de encostar a cabeça numa almofada arrendada, não é verdade? Se não tivesse sido um episódio infeliz com uma das raparigas e um rapaz que a quis proteger dela mesma, o seu pai poderia nunca ter sabido. Padua conseguia imaginar que isso seria verdade. Mesmo vendo a sala de desenho, metade da sua mente estaria ocupada com algum cálculo misterioso e poderia ter achado apenas a decoração estranha. Padua caminhou lentamente ao longo do corredor estreito ladeado dos


quartos das criadas. Já tinha superado o choque, mas, em seu lugar, formara-se um humor sombrio. A sua perspetiva de si mesma, do pai, de todo o seu mundo, fora tão errada. Ironicamente. Pensara ser filha de académicos. Pelo contrário, era filha de um proxeneta. – Quanto? – perguntou. – Quanto dinheiro lhe envia? – A renda é... – Não me refiro à renda. O resto. Quanto é? Mrs. Lavender baixou as pálpebras. – A sua justa quota-parte. Padua fitou-a diretamente nos olhos. – Recebeu trinta libras todos os trimestres. – Vou querer ver as contas em que se demonstra que essa é a sua justa quotaparte – disse Padua, continuando a avançar no corredor. – Perdão? O seu pai... – O meu pai não consegue tratar dos seus assuntos neste momento, por isso fá-lo-ei eu. Tenho muito mais sentido prático do que ele. Ele nunca questionaria a sua justa quota-parte, mas eu sou o género de pessoa que gosta de ver comprovativos. Este pedido não tem nada de insultuoso. Na extremidade do corredor, havia uma porta aberta. – Há seis criadas e sete quartos – explicou Mrs. Lavender. – E estas são as escadas que referiu. Padua abriu uma porta. Dava para um pequeno terraço de madeira e longos lanços de escadas de madeira que conduziam até lá abaixo, ao jardim. Mrs. Lavender espreitou lá para fora, esticando a cabeça junto à de Padua. – Há quinze anos, houve um pequeno incêndio. Assustou-me o suficiente para eu decidir pagar estas escadas do meu próprio bolso. Como lhe disse, são úteis para permitir que as criadas evitem presenciar a atividade ou que sejam alvo dos olhares dos cavalheiros. Padua olhou para as escadas e, depois, para o quarto vazio. – Onde dormem os criados? Mrs. Lavender apontou para um edifício exterior que percorria a lateral do jardim. – O Hector e o mordomo dormem ali, em aposentos por cima da cocheira e do estábulo. – O estábulo é grande. – Nem sempre foi usado para esse fim. Antes do meu tempo, era usado para algum tipo de negócio. Por ferreiros ou metalúrgicos. Mandei limpar a maior


parte e instalei ali a minha carruagem e os meus cavalos. Padua entrou no quarto vazio. Olhou em volta. – Durante um breve período, a sua descrição original desta casa será, em parte, verdade. Por acaso, preciso de uma almofada onde encostar a cabeça até estabilizar a minha situação. A menos que tenha alguma objeção devidamente justificada, usarei este quarto. Mrs. Lavender arregalou os olhos. – Não pode estar a falar a sério. Não seria próprio. – E porque não seria próprio? O meu pai é dono de parte de um bordel. Quem sou eu para me fazer de rogada quanto a usar as suas instalações? Pagarei um colchão novo para esta cama, caso a senhora possa arranjar quem o traga até aqui. Usarei estas escadas e evitarei interferir na sua atividade. E, enquanto eu aqui estiver, estudarei o arrendamento e as contas. – O seu pai não interferia no meu negócio. Ia à vida dele. Foi esse o nosso entendimento sobre a forma de funcionarmos. – Também não interferirei, se estiver tudo em ordem. Mrs. Lavender ainda abriu a boca, mas não saíram mais objeções. Abanou a cabeça, com resignação e espanto. – Você é um bicho raro. E ambas sabemos a quem sai, não é? Sabiam, efetivamente. A diferença, da perspetiva de Padua, era que a estranha filha não estava disposta a ser depenada como o estranho pai provavelmente fora. Se este é o negócio da família, assim seja, até expirar o contrato de arrendamento. – Se o Hector puder trazer a mala que deixei no átrio da receção, começarei a instalar-me. Mrs. Lavender partiu. Padua abriu a janela para arejar o quarto e, depois, dedicou os seus pensamentos a decidir que mobiliário gostaria de manter e qual deveria pedir para ser retirado. Ives estava a ficar impaciente. O lacaio, Hector, instalara-o no escritório de Mrs. Lavender havia pelo menos meia hora. Consultou o relógio de bolso. Não, tinham passado apenas dez minutos. Dez minutos de frustração. Hector recusouse a responder a quaisquer perguntas, inclusivamente a mais básica: Teria uma senhora muito alta, de seu nome Miss Belvoir, visitado esta casa durante a manhã? Se ela não o tivesse feito, cada minuto ali sentado era um minuto desperdiçado.


Olhou em volta do escritório. Era um pouco exíguo, intencionalmente. Mrs. Lavender poderia ter disposto a secretária noutro local para criar mais espaço. Naquela posição, no centro de uma sala pequena, confinava eficazmente os visitantes a uma pequena fatia de chão entre a secretária e a porta. Forçava uma sensação de intimidade e de espaço acanhado, o gato a dormir no fogão e o novelo de lã à espera no cesto conferiam ao escritório um ambiente acolhedor. A porta abriu-se, por fim, e Mrs. Lavender entrou. Ficou boquiaberta de surpresa quando o viu. E depois sorriu. – O Hector disse apenas que tinha um cavalheiro à espera. Não disse que era o senhor. – Deu-lhe uma palmadinha na cabeça, como se fosse um rapazinho, e depois dirigiu-se para a secretária. – Há tanto tempo – disse Mrs. Lavender. – E continua diabolicamente charmoso. A sua família alguma vez se acostumou ao caminho que escolheu na vida? Às vezes vejo o seu nome nos jornais. – O meu falecido irmão, nunca, agrada-me dizer. Ela franziu os lábios. – Lamento muito a sua perda. – Não lamente. Superámos tudo bem, esplendidamente. Recuperámos tão rapidamente do choque que alguns nos acham cruéis. – Ele veio aqui, alguns meses antes de falecer. Recordei-lhe que não era bemvindo. Fez uma cena. O Hector quase teve de o expulsar. Mas ainda bem que não foi preciso. Não haveria ajuda de amigos suficientes no mundo se um duque falasse contra um estabelecimento, mesmo deste género. Lembrei-lhe que havia estabelecimentos mais adequados às suas preferências. – Os seus olhos brilharam com malícia. – Disse-lhe que perguntasse aos irmãos, caso se tivesse esquecido onde ficavam esses estabelecimentos. O estabelecimento de Mrs. Lavender especializara-se em ilusões polidas e românticas para homens que não procuravam grandes variações nas suas experiências eróticas. Quando era jovem, Ives tinha-o frequentado, à semelhança da maioria dos seus amigos. Imaginava que alguns ainda o fizessem. Outros haviam evoluído para as preferências mais exóticas a que Mrs. Lavender agora aludia. – Evidentemente, alguns dos meus cavalheiros mais sofisticados regressam de quando em vez. Concluo que os trazem aqui os males de amor ou outras desilusões. Foi por isso que veio? Ainda é cedo, mas seguramente uma das raparigas... – Vim por outro motivo. Não vim à procura de uma das suas meninas, mas


sim de outra mulher. Recebeu hoje a visita de Miss Belvoir? Mrs. Lavender baixou o queixo e olhou-o de baixo para cima como uma mãe aborrecida. – Efetivamente, sim. Essa só me vai trazer sarilhos. – Então é verdade que o pai é proprietário desta casa. – A casa e um quarto dos lucros do negócio foram-lhe deixados em herança pelo meu falecido sócio. Cheguei a pensar que nunca se encontraria nenhum familiar. Se assim fosse, seria tudo meu. – Uma desilusão, certamente. – Mas, pelo menos, o Belvoir não se metia no meu caminho. Acho que se sentia envergonhado, mas não a ponto de me vender ou de recusar o dinheiro sujo. Agora, quer-me parecer que a filha se vai atravessar muitas vezes no meu caminho. Já questionou a minha contabilidade. Acredita nisto? – Que descaramento. – Isso mesmo. Se não tenho cuidado, vai tentar mudar tudo à maneira dela. Tem cá um olhar. Reparou na mobília e tudo o resto, quando lhe fui mostrar as instalações. Ives imaginou Padua a desafiar a formidável Mrs. Lavender. Normalmente esta tinha apenas de se preocupar com homens que passassem os limites e tinha Hector à disposição quando tal acontecia. Ives duvidava que alguma vez tivesse sido obrigada a lidar com uma mulher como Padua. – Sabe para onde foi ela quando saiu daqui? – Quando saiu? Ela não saiu. Está lá em cima neste preciso momento. – Debruçou-se, com fúria nos olhos. – Está a pensar mudar-se para cá. Lá em cima, com as criadas. – Mudar-se? Para aqui? – Certamente Mrs. Lavender não entendera bem. – Aqui. Se ela é sua amiga, imagino que irá procurar explicar-lhe que isso não poderá acontecer. Ives levantou-se e sacudiu o seu espanto. – Lá em cima, com as criadas, é o que me diz. – Vire à esquerda no patamar de cima e, depois, é a última porta à direita, ao fundo do corredor. Ives saiu a passos largos e subiu as escadas com determinação. Padua ficara certamente chocada ao saber para que era usada a casa e por isso não estava no seu perfeito juízo. Desiludida com o pai, começara a tomar decisões peculiares. Explicar-lhe-ia imediatamente que não podia ser, embora entretanto ela já tivesse provavelmente chegado a essa conclusão.


A porta no fim do corredor, à direita, estava fechada. Ouviu movimentos no interior. Recusando-se a tratar aqueles aposentos como a casa de Padua, Ives abriu a porta e escancarou-a. Padua, que estava a empurrar um lavatório ao longo da parede, não o ouviu. De olhos semicerrados, o rosto hirto, arrastava o lavatório sobre o soalho. A mala estava em cima da cama. Despira a peliça para libertar os braços e facilitar o esforço. – Padua. Ela congelou ao ouvir a sua voz. Recompôs-se, mantendo o olhar no lavatório. E depois olhou para ele. Esboçou um sorriso difícil. Avançou para o centro do quarto e fez um gesto largo. – O que acha? É melhor do que o meu quarto em casa de Mrs. Ludlow. Com um colchão novo e alguns candeeiros decentes, será confortável e mais do que adequado. – Não vai fazer isto. – Oh, vou, sim. E vou viver aqui gratuitamente e garantir que aquela mulher paga o que deve, e vou poupar dinheiro e, daqui a seis meses, parece-me que terei a quantia de que necessito para sair do país. Entretanto, este será o meu studiolo privado, onde vou ler, estudar e preparar-me. – E o seu pai? – Está a referir-se a John Hadrian Belvoir? Sócio de um bordel? Se por sorte for absolvido, pode regressar aos seus aposentos na Wigmore Street. Ele prefere ficar lá. Padua soava amarga e zangada. Ives não a podia censurar. Toda a vida pusera o pai num pedestal, para agora descobrir que tinha os pés cobertos de lama. – Ele tem um discernimento algo alheado, Padua. Quando deparou com esta propriedade e o arrendamento, e o rendimento constante, provavelmente não lhe ocorreu como poderia mudar as coisas de modo a melhorar-lhe a reputação. – Não. Acabou-se. Já não vou arranjar mais desculpas para ele. Acabou-se a ideia de ele ser um estudioso alienado, mas brilhante quando, na verdade, é um proxeneta muito, muito sagaz. – A explosão ardia-lhe nos olhos. – Mas vai ocorrer-me a mim, um dia, suponho eu. E quando isso acontecer, decidirei se lhe vou encontrar um uso mais respeitável. Se calhar não. Se calhar nessa altura já me terei habituado também ao rendimento constante. Agora, por favor, ajude-me com este lavatório. Ives contribuiu com a sua força e colocou-o no lugar pretendido. – Uma estante. Vou precisar de uma aqui. O roupeiro serve assim mesmo. –


Abriu a mala e tirou roupa para começar a guardá-la. Ives aproximou-se e travou-a. Pôs a mão na mala, em cima da dela. – Não vai fazer isto. Vai certamente arrepender-se. – Quem ficará a saber? Não sou ninguém, Ives. É perfeito. Usarei um apartado, não esta morada, e entro e saio pelo jardim. Olhe, há escadas aqui fora. – Levou-o até ao corredor e abriu uma porta. – As criadas que aqui trabalham fazem-no sem o mundo o saber e a sua reputação não fica manchada. Nem sequer entrarei nos pisos de baixo. – Não. Não o permitirei. Padua cruzou os braços. – Não tem legitimidade para permitir ou deixar de permitir, Ives. – Não está a pensar claramente. Perceberá isso daqui a um ou dois dias, mas entretanto não pode passar nem mais uma hora sob este teto. Os olhos de Padua semicerraram-se na direção de Ives. – Acha que serei corrompida por Mrs. Lavender? – Não, é claro que não. Eu nunca... Ela não o faria... – Ela não o faria? Conhece-a assim tão bem a ponto de afirmar que ela não o faria? Maldição. Padua fez uma careta. Ele não apreciava ser o alvo da sua diversão. Inspirou profundamente. – Quando eu era mais jovem, muito mais jovem... – Não tem de me explicar a mim. Imagino que os homens precisem de treinar um pouco antes de se porem a seduzir cantoras de ópera. Foi um golpe baixo. Ele não continuaria a alinhar neste tipo de discussão ridícula. – Agora virá comigo, Padua. Vamos encontrar aposentos numa casa respeitável. – Uma casa de família, é o que quer dizer. Ou de uma solteirona. Não deixará de ser um quarto lá em cima com as criadas, imagino eu. Prefiro este. Não quero ter as mulheres nessas outras casas a vigiarem-me, a julgarem-me. Seria como voltar a casa de Mrs. Ludlow. Virou-se e tirou um vestido da mala, para sublinhar a sua decisão. – Se está demasiado escandalizado com a minha morada, a nossa amizade pode terminar. Ou então, se preferir mantê-la, podemos encontrar-nos de vez em quando no parque. – Olhou para ele sobre o ombro. – É claro que também pode subir por aquelas escadas, da mesma forma que eu as posso descer, se assim o


desejar. Ives estivera pronto a arrastá-la dali para fora, mas aquele convite fez soçobrar a sua determinação. Ficou imediatamente com uma ereção, escravo que se tornara do prazer. Sentiu-se atraído pelas possibilidades. Padua tinha razão, ele podia subir aquelas escadas sem ser visto. A dona da casa dificilmente objetaria, se viesse a saber, considerando a atividade que geria lá em baixo. Se mais alguém se apercebesse, viveriam numa casa onde reinava a discrição. Melhor que isto, só instalar-se numa casa própria, mas ela rejeitara essa ideia ainda antes de ele a propor. Padua encontrara a solução perfeita, caso quisessem manter a relação. Ives queria, sem dúvida, mesmo tendo-se tornado complicado e até perigoso. A tentação começou a tecer as suas artimanhas no interior de Ives. Fisicamente, toleraria apenas uma opção. Vacilou fortemente. Padua voltou-se e esperou, de lábios entreabertos, pronta a recebê-lo imediatamente nos seus braços. Um passo, era só o que bastava. Um sorriso... – Nem pensar, Padua. Pode optar por viver por cima de um bordel, mas não me juntarei a si neste lugar. – Virou-lhe as costas. – Por favor, venha cá para fora, para as escadas. Quero perguntar-lhe uma coisa. Dizer-lhe uma coisa. O seu corpo fê-lo passar pelas maiores tormentas ao sair por aquela porta. Esperou no pequeno terraço de madeira, questionando se ela o seguiria. Ela acabou por fazê-lo. – Além das notícias sobre esta propriedade, o Notley referiu mais alguma coisa? – perguntou. – Se se refere à acusação de rebelião, sim. – Padua dardejou-o diretamente com o olhar. – Já sabia em Merrywood, não é verdade? – Estava na carta que recebi. Ives esperou que ela o repreendesse por não lho ter contado. Ao invés, ela suspirou profundamente. – Uns dias antes, eu teria insistido que era uma acusação tão errada que até seria cómica – disse ela. – Agora não acredito que conheça de todo o meu pai. – Eles poderão não ter grande coisa contra ele, ou nada de útil. Vou tentar saber. – Não é preciso muito para tecer uma boa história. Regressavam aos receios de Padua de que o advogado de acusação pudesse ser mais agressivo do que honesto. Ives desejava poder tranquilizá-la, mas não era possível. Padua aproximou-se dele e esticou-se para o beijar.


– Ele não só é criminoso como também proxeneta e, quem sabe, esteve envolvido num conluio de rebelião. Envolveu-se com a filha de um homem que fará certamente o gáudio dos jornais. – A Padua e o seu pai não são uma e a mesma pessoa. – Ninguém se lembrará disso quando este assunto andar na boca de toda a gente. Senti no meu interior um momento de fraqueza, quando tentei suborná-lo. Um momento desesperado e de esperança. Penso que talvez seja melhor deixarnos entregues ao nosso destino e ir procurar uma amante que o ocupe no futuro. Ives teve dificuldade em acreditar que ela dissera tal coisa. – Não. – Adoro a forma como diz isso. Não. É como se partisse do princípio de que o mundo se submeterá às suas preferências. O seu berço e a sua posição fazemno sentir-se assim confiante. Se quiser preservar os privilégios que ambos lhe garantem, certamente concordará que tenho razão. – E, contudo, esta não é a minha preferência. Eu não quero isto. Padua encostou a mão ao rosto dele. Os seus olhos cintilavam sobre os dele. – Mas eu quero. Ambos sabíamos como seria. Beijou-o novamente e entrou outra vez em casa. Ives ficou ali parado um momento. E depois desceu as escadas. Só lá em baixo aceitou o que acabara de acontecer. Padua Belvoir acabara tudo com ele, total e completamente. Padua regressou ao quarto. Permaneceu no meio, em pé, de mãos nas ancas, a enumerar o que era necessário para fazer daquele espaço o seu lar. Sim, uma estante, bastante grande, ali mesmo. Um conjunto de cama adequado também, para não a fazer lembrar demasiado a casa de Mrs. Ludlow. Pediria a Hector que trouxesse alguém para inspecionar a lareira. Não queria o quarto cheio de fuligem da primeira vez que... Correu até à porta que dava para as escadas e espreitou lá para fora. Ives estava nesse momento a sair pelo portão do jardim. No coração, sentiu alívio por ele ter ouvido as suas palavras e por tudo estar acabado. Mas também começou a partir-se em dois. Correu de volta ao quarto e fechou a porta, antes que o seu esforço de conter as lágrimas soçobrasse. Logo que o ferrolho encaixou, começou o dilúvio. A dor dentro dela foi aumentando até sentir que a iria sufocar. Arfou, sem ar, enquanto chorava, curvada sobre si mesma. Toda a sua força a abandonou, até que se


sentou no chão, soluçando e cobrindo a boca com as mãos, tentando abafar o som.


CAPÍTULO 18 ves acreditava firmemente que, quando uma mulher dizia que a relação acabara, então acabara mesmo. Não era seu estilo sofrer a humilhação da lisonja e da súplica. Não só seria pouco digno como também um caso perdido. Pela sua experiência, as mulheres sabiam muito bem o que queriam no que toca a com quem se queriam desnudar. Foram raras as ocasiões em que havia sido rejeitado, mas acontecera. Sabia o que fazer. Primeiro, uma noite de copos com os amigos – amigos do sexo masculino – para compensar o tempo em demasia passado na companhia feminina. Segundo, energias redobradas para se dedicar a assuntos do espírito: os seus casos, leitura e interesses intelectuais. Terceiro, a receita que a própria lhe tinha dado: arranjar uma amante. Estes passos não tinham de ser seguidos por esta ordem, nem sequer um de cada vez. E foi assim que, duas noites depois, se viu ébrio no salão de jogos Damian’s, lamentando-se a Belleterre das complicações que as mulheres causavam na vida de um homem. Belleterre tinha os seus próprios problemas, muito mais pitorescos do que os de Ives. Uma cortesã muito conhecida perseguira-o na temporada anterior, tendo conseguido por fim apanhá-lo mesmo no fim das festividades. Por essa altura, não usou de qualquer discrição nem bom senso, e apaixonara-se. O drama foi-se intensificando ao longo do verão, a ponto de até a mulher de Belleterre ficar a saber da relação. Não sendo o género de mulher que tolera meretrizes de ânimo leve, quatro dias antes havia confrontado o marido e declarado as suas condições. Ou ela ou a amante. Ele tinha cumprido o seu dever e terminado a relação com a sua amada, que andava agora por aí a anunciar que se suicidaria devido a um mal de amor. – Ela quebrou todas as regras – queixou-se Belleterre. – A Miranda nunca se importou noutras ocasiões, desde que ficasse tudo em segredo. Esta história mais

I


parecia uma peça de teatro anunciada nos jornais. Agora, se alguma coisa acontecer à Charlene, será culpa minha. Não me digas que ninguém me porá as culpas. Tenho a certeza de que sim e tudo o que fiz foi morder uma maçã que me caiu na cabeça. – Isto passa. Ela não se vai suicidar. Não és assim tão fascinante e, de todo, não és insubstituível. Nenhum de nós é. – Mas que raio de história, ainda assim. Está tudo virado do avesso. – Belleterre bebeu mais um trago do uísque que estavam a partilhar. – Teria tanto para te contar sobre o que é ter a vida do avesso, mas... Simulou que estava a trancar os lábios à chave. – Tens andado ocupado? Uma relação secreta? Quem é ela? Eu conheço-a? Ives abanou a cabeça e trancou novamente os lábios. – O importante é montarmos outra vez o cavalo. E cavalgarmos a toda a brida. Belleterre deu uma gargalhada para dentro do copo. Ives deu conta de que soara mais obsceno do que tencionara, mas riu-se também. – Deverias ir visitar Mrs. Dantoine. Não te sintas inibido com a minha situação com a Charlene. Mrs. Dantoine estava muito interessada em ti, como te disse. Ela é encantadora. Se não me arriscasse a navegar demasiado perto dos rochedos que já me ameaçam, eu mesmo traçaria a minha rota nessa direção. Ives ponderou indolentemente se Mrs. Dantoine encaixaria nalguma das qualidades daquela lista que elaborara. Não que essa lista ainda existisse. Queimara-a na noite anterior, quando caiu do livro que folheava. Para quê ter aquela lista, se a mulher que se ajustava a todos e cada um dos adjetivos não o queria? – Então, vão beber isso tudo sozinhos? Eu cá já tomava uns tragos. A voz que clamava era a de Strickland. Baloiçava uma gorda e pesada bolsa na mão. Ives acenou-lhe para que se sentasse a seu lado. Apontou para a bolsa. – Ganhaste outra vez? Strickland deu pancadinhas na bolsa e sorriu como um gato satisfeito. Serviuse de uísque. – Que bom ver-te de novo por cá. Constava por aí que andavas por parte incerta. – Estiveste fora? – perguntou Belleterre. – Não admira que não soubesses do meu lamentável apuro. – Fui até Merrywood. O meu irmão Gareth regressou do continente.


– O teu meio-irmão, queres dizer – disse Belleterre com um sorriso afetado. Belleterre podia ser um idiota quando bebia. Ives já se havia esquecido até que ponto. – Ainda bem que regressaste, agora que as coisas estão a avançar com aquele caso – disse Strickland. Ives olhou para ele e relanceou para o lado de Belleterre. Strickland percebeu o aviso. – Tenho de ir à casa de banho – disse Belleterre, sem notar as suas mensagens silenciosas. Logo que ele saiu, Ives juntou a cabeça à de Strickland. – Ora essa, rebelião? Não acredito. Strickland bebericou uísque e estalou os lábios. – Não que aches isso importante, certo? Interessa apenas aquilo em que o júri acredita. – Eles têm sequer alguma coisa que convença o júri disso? – O suficiente para um bom advogado fazer o que tem de ser feito. Mais do que suficiente para tu o fazeres. Disseram ao Belvoir que lhe tornariam a vida um inferno se ele não cooperasse. E quem o disse estava a falar a sério. – Mais uma razão para eu me recusar a assumir a acusação – murmurou Ives. Strickland fitou-o. – Não podes estar sequer a pensar nisso. Ouvi dizer que estavas definitivamente empenhado. – Debruçou-se e sussurrou: – Essa informação veio diretamente lá de cima. Compreendes? Ele está plenamente confiante de que tu vais cumprir o teu dever, segundo consta. – Tenho um conflito. – Um conflito? Bem, livra-te dele. Já se tinha livrado do conflito. Ou melhor, o conflito é que se tinha livrado dele. Ainda assim, estava muito longe de se sentir empenhado. Que bem faria à alma de um homem cumprir o seu dever se lhe perdera a fé? Belleterre cambaleou na direção dos dois. – Vamos arranjar mulheres – declarou. – Tanto quanto ouvi dizer, a mulher com quem te casaste pôs-te um cadeado na pila – disse Strickland. Belleterre olhou para Ives, pesaroso. – Estás a ver? A cidade toda sabe. Se até o Strickland se diverte à minha custa, imagina o que outras mentes mais perspicazes andarão por aí a dizer? Ives olhou de esguelha para Strickland. O olhar de Strickland encontrou o


seu. Desataram a rir. – Confia em nós – disse Ives, engasgando-se. – Não vais querer saber o que as mentes perspicazes andam por aí a dizer. Desalentado, Belleterre emborcou mais uísque. * Padua entrou no gabinete do carcereiro. Ele fitou-a da cabeça aos pés. – Já há algum tempo que aqui não vinha, Miss Belvoir. – É verdade. – Sem comida? Sem livros? Padua abanou a cabeça. – Será uma visita muito breve. – Faça por isso. Ele foi declarado perigoso, aproveito para a informar. É suposto mantermo-lo sob vigilância mais apertada. Ela saiu do gabinete e atravessou a prisão a passos largos. Perigoso. Que disparate. As autoridades estariam cegas? Contudo, na verdade, o que sabia ela? Se calhar o seu paizinho era um mestre do crime. Encontrou-o a dormir no seu canto. Com o tempo, os companheiros de cela foram mudando. Não reconheceu a maioria. Acenou a um deles e, depois, apontou para o pai. O grandalhão foi até lá e deu-lhe um bom pontapé na anca. Ele acordou, sobressaltado, encolheu-se, fez uma careta e depois viu-a. E fechou novamente os olhos. – Já sei da casa – gritou ela. – A da Silver Street. Ele abriu os olhos novamente. Arregalou-os. Pôs-se de pé num salto e arrastou-se até às grades. – Padua, eu... – Não diga nada. Não teve grande coisa para me dizer em dez anos, por isso não comece agora a falar. Escute só. Encontrei a casa. Já lá estive. Não lhe resta qualquer dignidade para me proteger. Eu devia voltar-lhe as costas, como tantas vezes o paizinho fez comigo. Mas não o farei. Prometi à mãezinha e sou sua filha. De si, quero ouvir apenas uma palavra. Agora vai finalmente fazer alguma tentativa de se defender? – Estiveste lá? – O seu rosto enrubesceu. – Estou a viver lá. Ele arregalou os olhos.


– Não. Não podes ter... – Oh, paizinho, por amor de Deus. Não comecei a trabalhar lá. Não sou uma das meninas de Mrs. Lavender. Estou lá em cima, com as criadas. Tenho de viver nalgum lado, não é? Se o paizinho não foi suficientemente digno para deixar de manter aquele estabelecimento, quem sou eu para me dar ao luxo de não me abrigar sob o seu teto? – É diferente. É... – Uma palavra, paizinho. Sim ou não. Vai começar finalmente a lutar? Se não, deixo-o em paz, como tantas vezes insistiu para que eu fizesse. Ele olhou para baixo. O rosto contorcia-se de emoção. – Lamento muito que tenhas sabido. – Sim ou não, paizinho? Ele ponderou demoradamente a resposta. Exasperada, ela voltou as costas, pronta para se ir embora. – Sim – disse ele. – Sim. – Senhor. – Vickers falara muito baixo. – Senhor, tem uma visita. Ives abriu os olhos. Foi saudado pelas chamas baixas da lareira. Passara pelas brasas enquanto lia um memorando longo e entediante sobre a contestação de uma herança. Era o tipo de disputa de família que enriquecia advogados e empobrecia, e muito, a família em questão. – Mande-o embora. Diga-lhe que regresse amanhã à tarde. – É uma mulher, senhor. Ives estendeu a mão. – Não tem cartão, senhor. É a mesma senhora de antes. Aquela muito alta. Padua? Aqui? Levantou-se. – Irei recebê-la. – Vou conduzi-la ao escritório, senhor. Queria dizer a Vickers que fosse lá fora e a trouxesse até ele. Ao invés, dirigiu-se determinado para o escritório. Ela estava sentada no mesmo sítio daquela primeira noite. Parecia menos perturbada do que então. Menos vulnerável. Ives parou junto à porta e admirou-lhe os olhos cintilantes e a pose contida. Diabos, era bom vê-la de novo. Demasiado bom. Padua reparou na sua presença e aproximou-se.


– Padua. – Peço desculpa por vir a esta hora. Uma vez mais. – É bem-vinda a qualquer hora. Venha para a biblioteca. – Não. Prefiro que conversemos aqui. Na verdade, vim falar com o reputado advogado. Não com o meu antigo amante. Estas últimas palavras lancetaram o coração de Ives. Com dificuldade, transformou-se no advogado que ela procurava. Sentou-se numa cadeira defronte dela. – Eu sei que não vai assumir a acusação e sei que não pode assumir a defesa sem um elevado custo pessoal – disse ela. – Todavia, gostaria que conversasse com ele. Com o meu pai. Está a par de tudo... sobre... a casa e aquele rendimento. Mr. Notley ainda não sabe. Se o Ives o questionar, poderá obter informações que Mr. Notley nunca conseguirá. Além disso, confio em si, como jamais confiarei noutro. Noutro quê? Homem? Advogado? Ives não perguntou. – Tem algum motivo para achar que ele falará comigo, Padua? Ou com qualquer outra pessoa? – Estive com ele hoje. Contei-lhe que já sei da existência da casa. Ele sentiu vergonha. Acho que não queria que nem eu nem ninguém o soubesse. Era por isso que não falava, penso eu. – O seu pai disse isso? Que coopera consigo? – Sim. Disse-me que sim. Falará com ele? Sei que não tenho o direito de pedir, mas... – Tem todo o direito de o pedir. O que vivemos juntos dá-nos, na verdade, alguns direitos, Padua. A ambos. Não somos feitos de pedra. É claro que o farei, se mo pede. Ela enrubesceu. – Obrigada. É preciso eu fazer alguma coisa? O carcereiro permiti-lo-á? O carcereiro permiti-lo-ia porque ainda estava convencido de que Ives seria o procurador. A carta em que pedia para se escusar jazia lá em cima, na sua secretária, à espera do correio da manhã. Andara à volta dela horas a fio, tentando encontrar palavras que não insinuassem que estava indiferente ao seu dever nem à preferência real de que usufruía. Numa segunda carta, dirigida diretamente ao Príncipe Regente, esse esforço fora ainda mais intenso. Nenhuma das duas seria bem recebida. Podiam esperar mais um dia antes de saírem com o correio. – Ele recebe-me sempre, Padua. Vai deixar-me falar com o seu pai. Irei lá


amanhã. – Obrigada. Sinto-me melhor agora, sabendo que será consigo que ele falará. Não o deixe esquivar-se a dar-lhe respostas completas. Obrigue-o a contar tudo, Ives, mesmo que sejam as piores notícias. – Nem uma serpente consegue esgueirar-se de me responder e o seu pai não é nem de perto assim tão manhoso. Padua levantou-se e ele seguiu-a. Ela sorriu debilmente e fez um gesto desajeitado com a mão, quase parecendo um aceno de despedida. – Sabe que pode ficar – disse ele. – Ninguém a viu entrar. Ninguém a verá sair. Padua parecia dividida. Ives apelou silenciosamente a que ela ouvisse o seu próprio desejo, se não mesmo o coração. Um só passo na sua direção. Um só e ele iria... – Passei três dias a chorar, Ives. A fazer o luto. Não quero chorar tudo outra vez. Ela deu o passo. E mais outro, até ser possível beijá-lo. Ele lutou contra o impulso de a agarrar, de a cingir contra si e de a acariciar de uma forma que superaria todas as apreensões e receios, pelo menos durante algumas horas. Ives aceitou o seu beijo de agradecimento e no seu espírito ficou gravada a suavidade dos lábios dela. E depois ela já ali não estava, deslizara na direção da porta e partira. – Se desejar, pode usar esta sala – disse Mr. Brown. – Vou pedir que o tragam até aqui. Ives conhecia bem a sala. Homens havia que ali entravam para uma conversa, mas que dali saíam destroçados. Belvoir não fora submetido a coerção física. Quem usa esse tipo de táticas conhece bem as suas vítimas e Belvoir não era um candidato promissor. Belvoir emanava uma aura de fanático, de um homem que morreria antes de trair um princípio. Homens assim não falam sob tortura. Morrem dela. Ives esperou naquela sala pequena e sem janelas enquanto os guardas foram buscar Belvoir. Ao contrário de alguns advogados, não planeava estratégias elaboradas nem encenações quando atuava. Meia dúzia de factos e um muito bom instinto serviam-lhe bem. Esperaria para ver se Belvoir teria de ser seduzido ou intimidado para se tornar comunicativo.


Alto e esgalgado, muito mais magro do que há semanas, Hadrian Belvoir entrou arrastando os passos, de mãos e pernas agrilhoadas. Ives ordenou ao guarda que esperasse do lado de fora da porta, o qual a fechou em seguida. – O guarda disse que é o procurador do meu caso – disse Belvoir, depois de se sentar na única cadeira disponível. – Tudo aquilo que precisa de saber é que a sua filha me pediu que viesse. É sua convicção que o senhor me contará a verdade que poderá estar a evitar contar-lhe a ela. – E porque faria eu isso? – Porque sou um homem, não sou familiar nem amigo. As acusações que pendem sobre si são graves. O mais provável é ser enforcado, se for condenado. Chegou o momento de acrescentar o seu lado da história. Belvoir deixou a cabeça pender, com dificuldade em respirar. Ives percebeu que o afetava alguma doença pulmonar. Newgate estava a cobrar o seu preço. – É tudo por causa daquela maldita herança – disse ele, abanando a cabeça. – Eu devia tê-la recusado ou vendido àquela mulher toda a maldita coisa. Deu-me para a ganância, não foi? Há muito tempo que eu não sabia o que era ter uma vida estável. Imaginei que podia simplesmente agarrar no dinheiro e fingir que a propriedade não era minha. – E de que forma isso o levou a estar envolvido em contrafação? – Fui abordado por uns homens. Desconhecidos. Tinham conhecimento da casa. Disseram que, ou lhes guardava aquela arca, ou contariam ao mundo inteiro. Eu teria a reputação de proxeneta. Toda a gente que me conhecia ficaria a saber. – Afastou o olhar. – A minha filha ficaria a saber. Isto aconteceu há um ano, faz agora talvez uns quinze meses. Eu tinha de o fazer, não é verdade? – Não, não tinha. O seu interesse na matemática fez com que se esquecesse das suas leituras de filosofia moral. Não conte com a minha aprovação para o acordo que fez. Belvoir baixou novamente a cabeça. – Abriu a arca? Sabia o que havia lá dentro? – Quando levaram a primeira e trouxeram a segunda, eu abri-a. Nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida. Soube então que estava seriamente metido nalguma coisa provavelmente ilegal. Deduzi que o dinheiro não fosse legítimo. Da primeira vez que o trouxeram, cheirava. Como se a tinta aplicada ainda libertasse um odor. Era todo ele novinho em folha, acabado de sair da prensa. Ou estavam a roubar o Banco de Inglaterra ou eram eles que imprimiam aquilo tudo. Belvoir era um homem inteligente. Isso era uma pena. Se ele pudesse alegar


ignorância, se um júri acreditasse que poderia ser demasiado imbecil para compreender o que havia naquela arca... – Depois disso, remoí muito o assunto – continuou Belvoir. – Eles sabiam da casa. Mais ninguém sabia. Até na escritura está o meu nome de batismo completo. Ninguém me chama John há trinta anos. Por isso, ponderei se a contrafação não estaria também relacionada com aquela casa. De que outro modo me teriam encontrado? – Pensa que Mrs. Lavender falsifica dinheiro? Belvoir abanou a cabeça. – Isso seria uma surpresa. À sua maneira, ela é uma mulher à moda antiga e honesta. Suponho que me engane nas contas, mas não em demasia. Ela é esse género de pessoa. Até aquele estabelecimento. É um bordel tão decente que me admira ela conseguir sequer manter o negócio. É errado, mas não demasiado errado. Ives conteve um sorriso, mordendo o lábio. Para um homem em perpétua distração, Belvoir revelava um notável discernimento quando dedicava atenção a alguma coisa ou pessoa. – Contudo, há os criados. O Hector, o mordomo e mais alguns. Pus a hipótese de um deles andar a magicar alguma e que me tivesse atraído para a sua teia. – Disse que vieram ter consigo. Quem eram? Descreva-os, por favor. – Dois homens. Um alto, outro baixo. Não tinham nada de especial. Nunca os tinha visto antes, nem os vi depois. Mesmo quando uma arca saiu e a outra chegou, não eram eles a transportá-las. Quem fazia esse trabalho eram trabalhadores normais de mudanças e não me parece sequer que soubessem o que ali levavam. – Lembra-se do nome da empresa de transporte? Belvoir fechou os olhos e depois abanou a cabeça. – Tinham uma carruagem castanha. Pintada. Não me lembro que indicasse um nome. – Tem mais alguma coisa a acrescentar? Seja o que for que possa ajudar a esclarecer esta história? Belvoir abanou a cabeça. – Nesse caso, tenho eu algumas perguntas para si. Responda com honestidade. Caso contrário, ninguém o poderá ajudar. Está de alguma forma associado a radicais ou revolucionários? Ou mesmo velhas amizades que possam ser mal-entendidas? – Não tenho interesse nenhum na política. Nunca tive. E também não tenho


velhos amigos. Não sou o tipo de pessoa que precise muito disso. Gosto de estar sozinho. – Fez uma pausa e depois acrescentou: – Tenho livros, evidentemente. Panfletos e coisas tais. Leio muitas coisas. Ler não é o mesmo que fazer, ou até que concordar. Toda a gente sabe disso. Nem toda a gente. Ives imaginou o procurador a ler em voz alta um dos folhetos revolucionários mais sórdidos, a acená-lo pela sala, dizendo como fora encontrado na cabeceira do acusado. – Mais uma pergunta. Não é um homem muito ligado ao mundo. Diz que não tem velhos amigos e que a sua vida não poderia ser ameaçada por um escândalo. Porquê, então, se recusou a falar até agora? Porque aceitou a chantagem que me descreveu? É difícil acreditar que se importasse com a ideia de o mundo ficar a saber. – Eu não estava preocupado com o mundo inteiro. Somente com uma pequena parte dele. A minha filha. Não queria manchá-la com esta história e nunca quis que ela soubesse. – Tapou os olhos com a mão. – Mas agora ela já sabe. Certamente me despreza. – Está surpreendida e desiludida, mas não o despreza. Parece-me que ficou aliviada por saber que há um motivo para ter recusado a sua ajuda. – Ives entregou-lhe um lenço. – No que diz respeito à sua filha, tenho mais algumas perguntas, se me permitir. Padua escutou a descrição que Ives lhe fez do encontro com o pai. Ives pedira-lhe para se encontrar com ela em Hyde Park, onde passearam ao longo do rio Serpentine enquanto ele lhe relatava a explicação do pai. – Foi o que imaginei – disse ela. – Logo que me apercebi do que se passava naquela casa, soube que era aquele o motivo de ele não abrir a boca. Mas tudo acabaria por se revelar, para minha humilhação. – Não é o raciocínio de um homem que sinta indiferença por si – disse Ives. – Possivelmente não. – Padua não sabia agora o que pensar do seu paizinho. A sua antiga imagem fora destruída e ainda não se formara uma nova. – Estamos em Inglaterra. Não posso acreditar que estar na posse de alguns folhetos possa ser usado como prova de rebelião – afirmou ela. – Tudo depende de como seja apresentado no julgamento. – Conseguiria utilizar esse elemento com suficiente eficácia? – Sim. Não era esta a resposta que Padua queria ouvir.


– E utilizá-lo-ia? – Se estivesse convencido de que o homem teria conspirado para cometer assassínios, poderia, sim. E poderia fazer o oposto e apresentá-lo de modo a que toda a gente decidisse que não tinha relevância nenhuma? Padua não perguntou. Não era preciso. Claro que poderia. Já estava arrependida de o ter comprometido a ponto de ele não poder assumir a acusação. Temia bem que ainda se amaldiçoaria a si mesma antes do final de toda esta história. Ives dissera-lhe tudo quanto havia a dizer. Caminhar ao lado dele, vê-lo, trazia-lhe tristeza e melancolia. O seu coração queria ficar, por mais doloroso que pudesse ser. Mas ela, todavia, sabia que não seria sensato. – Tenho de ir. Ives puxou do relógio de bolso. – Ainda não. Temos um encontro marcado para daqui a pouco. – Combinou-me um encontro com uma pessoa? – Eu sou essa pessoa. Eles são os amigos. – Olhou por cima das cabeças que os rodeavam. – Ah, ali estão eles. – Ives conduziu-a pelo trilho. Mais adiante, Eva e Gareth acenavam. – O que os traz a Londres? – perguntou Padua quando continuaram todos a caminhar no trilho. – Vamos encontrar-nos com agentes imobiliários, estamos à procura de uma casa para arrendar – respondeu Eva. – Além disso, o Lance tornou-se má companhia. – Gareth fez um ar de quem pede desculpa. – Parece-me que nos seguirá os passos em breve. Lamentamos, Ives, mas já não podia ouvi-lo mais um só dia a lamuriar-se por estar a morrer de tédio no campo. Prometo que faço de ama-seca se ele aparecer por aqui. – Imagino que sejamos necessários os dois. Contudo, se ele desafiar mais alguém para um duelo, podes tu ser a testemunha desta vez. Já gastei toda a minha lábia no que lhe diz respeito. Os dois irmãos avançaram um pouco mais enquanto continuavam a tagarelar. Eva ficou para trás com Padua. – Onde está alojada? Gostaria de a visitar. – É um quarto simples, numa casa. Teria todo o gosto em recebê-la, mas nem sequer tenho sala de estar. O sorriso de Eva estava em sintonia com a malícia com que olhava para Ives de costas. – Imagino que o Ives não esteja satisfeito com isso.


– Ele não está satisfeito com muita coisa no que me diz respeito. O regozijo de Eva foi substituído pela preocupação. – Terminou a relação com ele, Padua? – Tive de o fazer. Londres não é Merrywood. Ambos sabíamos que uma tal ligação só lhe traria escândalo. Certamente o Gareth já lhe terá falado nisso e de como o Ives já terá pago um preço alto pela sua amizade comigo, apesar de a relação ter terminado. – Ele só me contou que a recusa do Ives a servir contra o seu pai não seria bem recebida no tribunal. Mas ele está a fazer o que é correto. Seria desprezível, se tomasse uma opção diferente. À primeira vista, sim. Eva não ficaria com uma boa imagem de Ives se, de facto, ele optasse de forma diferente para poder dar menos do que o seu melhor em prol da sua amada. Se se salvaguardasse a si mesmo, era cruel; se a salvaguardasse a ela, era desonrado – Ives não tinha forma de sair ileso. Fora insensível da parte dela obrigá-lo a enfrentar um tal dilema. – Não gosto de a imaginar num quartinho qualquer na casa de desconhecidos – disse Eva. – Quando nos instalarmos na nossa casa nova, tem de ficar connosco. – Não quereria incomodá-los. Ainda são recém-casados. Por favor, não tente convencer-me, Eva. Tem um coração generoso, mas fico bem onde estou. E, por favor, não conte ao Ives que me fez a oferta. Ele não aprova a forma como me organizei. Eva inclinou a cabeça. – Ele ofereceu-se para arranjar uma solução melhor? Eva acabara de perguntar frontalmente se Ives lhe havia pedido para ser sua amante. Padua nunca pensou que pudesse alguma vez falar tão abertamente com uma pessoa, mas Eva dera com Ives na sua cama. Isso criava uma intimidade especial entre elas. Uma amizade imediata. – Não mo propôs diretamente. Mas era sua intenção ajudar-me a encontrar uma casa. – E quando uma casa adequada se revelasse demasiado cara, a ideia dele seria ajudá-la a pagá-la. – Eva cerrou os olhos na direção de Ives. – Foi ganhando maus hábitos ao longo dos anos. Poderá ser crueldade minha, mas estou contente por não ter aceitado essa ajuda, Padua. As suas transações com mulheres têm sido demasiado eficientes para o meu gosto. Vai fazer-lhe bem não ter aquilo que quer uma vez na vida. – Nenhum de nós conseguiu o que queria, Eva.


A expressão de Eva encheu-se de preocupação. Parou de caminhar e, ao sentir a sua mão no braço, Padua também parou. – Padua, ama-o? Não é o mesmo que desejo ou paixão. Tenho a certeza de que sabe disso. Será que amava Ives? Não tinha experiência suficiente para saber de que modo era diferente da paixão. Se calhar a paixão não conseguia partir-nos o coração. Se calhar só o amor poderia tornar tão difícil estar hoje próxima de Ives e tão difícil fingir que não ansiava pelo seu toque, o seu sorriso e o som da sua voz. Mais à frente, os irmãos também haviam parado e estavam a conversar. Padua olhou para Ives, de rosto e compleição tão atraentes, o sorriso a suavizar a boca que tão facilmente se tornava severa. Queria sentir o seu abraço de novo. Queria deixá-lo fazer o que quisesse, o que quer que isso fosse. – Eva, agora vou ter de a deixar. Apresente, por favor, as minhas desculpas ao Gareth e ao Ives. Diga-lhes que prometi encontrar-me com uma amiga. – Mas... o que está a.... – Por favor, Eva. Estou a correr sérios riscos de fazer papel de tonta. Tenho de ir. Eva debruçou-se para a beijar na face. – Venha fazer-me uma visita. Prometa que o fará. Padua limitou-se a anuir, já que tinha as palavras presas pela emoção. Deu meia-volta e afastou-se rapidamente.


CAPÍTULO 19

D

urante dois dias, Padua refletiu sobre o que o pai tinha contado a Ives. Afirmava que fora coagido a guardar o dinheiro falso nos seus aposentos. Os homens que o fizeram sabiam do bordel. Logicamente, ele adivinhou que eles teriam algo que ver com o bordel, caso contrário não teriam conhecimento das suas ligações àquele local. O suspeito evidente era Mrs. Lavender. Padua tinha provas de que aquela mulher era, pelo menos, moderadamente desonesta. Ao examinar as contas, descobriu uma pequena, mas reiterada irregularidade na forma de calcular a quota-parte do pai. Mais interessante ainda era o arrendamento. Mrs. Lavender omitira uma condição importante ao descrevê-lo. O arrendamento era renovado de cinco em cinco anos, a menos que uma das partes decidisse em contrário. Presumivelmente, nessa altura a renda poderia ser renegociada. Que astuto da parte de Mrs. Lavender dar ao senhorio parte do negócio. Não tinha interesse em exigir uma renda que matasse a galinha dos ovos de ouro. Se aqueles homens ainda estivessem a fabricar notas falsas, não quereriam arranjar uma forma de as guardar? Se utilizasse a casa de outras formas ou se estivessem mancomunados com Mrs. Lavender, não quereriam apanhar também o outro sócio na rede, uma vez mais? Talvez os homens implicados nesse esquema lhe tivessem escrito a informá-la da prisão do pai. Se assim fosse, era como se, efetivamente, eles tivessem desejado que Padua tomasse o seu lugar. No dia seguinte, Padua desceu ao piso de baixo à hora do jantar e entrou na sala de refeições. Todas as mulheres estavam a jantar juntas, acompanhadas de Hector e do mordomo. Todas olharam para ela. Fez-se silêncio. – Achei que deveria apresentar-me. Chamo-me Padua Belvoir. O meu pai é John Hadrian Belvoir. É sócio de Mrs. Lavender. Um leve murmúrio sugeria que todas aquelas jovens não sabiam que existia um sócio. – O meu pai está indisposto, por isso tenho de o representar aqui. Irei assumir


as suas responsabilidades e obrigações. Todos os olhares se voltaram para Mrs. Lavender. Os seus olhos trespassavam Padua. – O meu pai distrai-se facilmente e não intervinha no negócio. Mas eu sou farinha de outro saco. Tenho ideias para melhorar a vida de toda a gente aqui. Não tenho qualquer intenção de me intrometer, mas o meu pai foi insensato ao negligenciar uma parte importante do seu rendimento. – Sentou-se numa cadeira vaga e olhou, expectante, para uma das criadas de servir. A rapariga apressou-se a trazer-lhe um prato e um garfo. Duas das prostitutas passaram-lhe as terrinas de guisado e arroz. A conversa prosseguiu. A mulher sentada ao lado de Padua, uma jovem bonita e roliça de cabelo ruivo, falou com ela. – Não me parece que Mrs. Lavender esteja satisfeita com o seu interesse na casa. – Ela assumiu este fardo sozinha tanto tempo e não consegue imaginar outra forma de o fazer. Contudo, daqui a algumas semanas, vai sentir-se contente por eu estar aqui para a ajudar. Deve estar a ficar cansada de tratar de tudo. – Está a pensar também receber os clientes? Duvido que ela prescinda disso. A simples ideia aterrorizava Padua. – Nesse caso, não vejo motivo para lho pedir. Contudo, que acontece se ficar doente? O Hector toma o seu lugar? A mulher riu-se, captando a atenção de Mrs. Lavender. – Céus, não. Ela tem uma amiga que fica connosco quando precisa de dinheiro. É ela quem a substitui quando não pode assumir o leme. Felizmente, não acontece muitas vezes. Não gosto da Emily. Padua olhou em volta da mesa. – A Emily está aqui neste momento? – Hoje não. Tem o seu próprio negócio, com clientes de longa data. Um negócio com carruagens, segundo ela diz. O honorável isto e o lorde aquilo. Vem cá talvez uma noite por semana. Vai dar por ela. É mais velha do que a maioria de nós. Alguns homens têm um fraquinho por mulheres mais velhas. Alguns até tentam convencer Mrs. Lavender a voltar a esta vida, mas acho que já lá vão vinte anos desde a última vez que o fez. Bolinhos a circular pela mesa. Padua serviu-se de um. Pelo menos Mrs. Lavender alimentava as suas pupilas com comida decente. Muito melhor do que aquela que fora enviada para o quarto de Padua nas noites anteriores. – Devemos tratá-la por Miss Belvoir? – perguntou a sua comensal. – Mrs.


Lavender não permite informalidades no que diz respeito a ela. – Talvez seja melhor que me tratem assim. – Chamo-me Susan. Aqui, a maioria de nós não tem apelido. Pelo menos, não os verdadeiros. Possuidora de uma mente inquisidora, Padua tinha muitas perguntas que gostaria de fazer a Susan, na sua maioria grosseiras e pessoais. Susan comeu o último pedaço do bolo e lambeu os dedos. – Nunca trabalhou neste ramo, pois não? – Não. – Mmm. Bem me parecia. Dá para perceber. Não é uma daquelas senhoras reformistas, pois não? Não precisamos disso por aqui. – Eu não teria a presunção de as tentar reformar. – Na verdade, até lhe tinha passado pela cabeça. – Nesse caso, seja bem-vinda. – Fez-lhe um sorriso aberto e empurrou a cadeira para trás. Mrs. Lavender aproximou-se de Padua. – Que discurso tão bonito, Miss Belvoir. Contudo, não tolerarei qualquer intromissão. – Daqui a pouco menos de seis meses, o arrendamento desta casa é renovado. Ou não. Não me vou intrometer. Mas estarei atenta aos interesses do meu pai. Mrs. Lavender mal conseguiu conter a fúria. – Em breve vão começar a chegar cavalheiros. Sugiro que saia de cena, a menos que os queira no meu escritório a querer negociá-la a si. Padua teria gostado de ser mosca na parede do escritório, a observar como se estabeleciam tais negociações. A ideia de um bordel repugnava-a. Todavia, agora que se encontrava dentro de um, estava a achar interessante. Subiu as escadas até ao piso de cima, que estava deserto, e dirigiu-se para o quarto. Sempre gostaria de saber se o anúncio da sua presença produziria algum fruto. Se os problemas do pai tivessem começado ali, e se ele estava agora indisponível, será que alguém a abordaria a ela? Esperava que sim. Naquele momento, não lhe ocorria forma melhor de o ajudar do que dar às autoridades informações sobre a origem daquele dinheiro falso. – Então, parei o cavalo e pedi-lhe satisfações – contou Lance. Estava reclinado numa cadeira lateral, observando Ives e Gareth a praticarem esgrima. – Eu disse: Ouve lá, Radley. Porque insistes em aparecer do nada como um


rapazinho apaixonado sempre que eu saio a cavalo? Ele não ligou nenhuma à parte do rapazinho, mas juro que, às vezes, sinto como se ele tivesse intenções impróprias comigo. Gareth sorriu, mas não perdeu a concentração. – Quem dera ele te tivesse declarado a sua paixão ali mesmo – declarou Ives. – Terias ficado de cara à banda. – Um homem daqueles nunca admitiria esse tipo de inclinações, mesmo que as tivesse. Nunca ninguém o vê sem chapéu. Fala sempre como se se dirigisse a um bispo. Não me parece que tenha sequer um pingo de paixão e acho que me odeia porque sei divertir-me. – Estou a ver que presumes que és admirado pelos teus excessos – disse Ives. – Mas continua, continua. Que respondeu Radley ao teu desafio? – Ele disse... e outras intenções para comigo ter-me-iam surpreendido menos... ele disse que esperava um dia conquistar a minha confiança e amizade, já que me queria apresentar as senhoras da sua família. Eis algo que impressionou Gareth o suficiente para dar um passo atrás e baixar o florete. – E qual o objetivo dele com tais apresentações? Lance encolheu os ombros. – Para que as receba, suponho eu. Para que possam dizer o meu nome en passant nos eventos do condado. Para poder dizer às pessoas que tem um conhecimento. – Para que pudesses casar-te com uma delas? – acrescentou Gareth. Lance olhou para cima, surpreendido, e depois desatou a rir. – Ele é um tolo, mas não é parvo, Gareth – engasgando-se. – Um passeio ou dois a cavalo comigo é uma coisa, mas isso... nem o Radley seria tão estúpido a ponto de atirar tão alto. Ives esperou que Lance parasse com a risota. – Ele disse mais alguma coisa? – perguntou Ives. Lance recompôs-se e refletiu. – Insinuou que poria um açaime nos cães de caça, se eu lhe fizesse um pequeno favor. – Insinuou? – Não podia dizê-lo de caras, pois não? Isso seria como um pedido de suborno. O Radley não vai querer safar-me da forca à custa de ele próprio ir lá parar. – Que disse ele? – perguntou Gareth.


Lance acenou com a mão, formando um círculo. – Alguma coisa sobre amigos e vizinhos e o bem do condado e, esperem, outra coisa. O que era mesmo? – Franziu o sobrolho enquanto vasculhava a sua mente algo desorientada. A paciência de Ives ia-se diluindo a cada segundo. – Tu agarras nele – rosnou para Gareth – e eu enfio-lhe a cabeça num balde de água para lhe avivar a memória. Gareth riu-se entre dentes. – Não o culpes a ele por estares com a neura. Ele tem-se portado bastante decentemente desde que chegou ontem. Está só meio desorientado e tens de admitir que um Lance feliz é de longe melhor do que um Lance chateado, já que insiste em contagiar toda a gente com o seu estado de humor, seja ele bom ou não. – Culpo-o daquilo que me apetecer. Não tinha previsto passar dias a fio com ele a servir-me de sombra, nem eu a servir de sombra dele. – Ah, já sei. – Lance espetou um dedo no ar. – Lembro-me exatamente das suas palavras. – E vais partilhá-las connosco? – perguntou Ives. – Ou esperas que tas saque com uns bons abanões? A expressão de Lance contraiu-se. Olhou para Gareth. – Está outra vez a falar como um vigário. – Os vigários não dão tareias a ninguém – respondeu Ives. – Confio que não te esquecerás disso, vigário – ripostou Lance. – O Ives está preocupado com assuntos importantes – disse Gareth. As sobrancelhas de Lance elevaram-se quase impercetivelmente. – É aquela mulher? Mas é claro que é. Estou a ver que ainda é um assunto sensível. Ives rezou a todos os santinhos para ter paciência. – Será que podias dedicar a atenção da tua cabeça meio baralhada novamente às palavras exatas que o Radley te disse para insinuar que poria um açaime nos cães? – Ah. Sim. Ele disse, e penso que concordarão comigo que é inequívoco aquilo que quis dizer... eu pelo menos entendi imediatamente... – O que disse ele? – perguntou Ives. – Disse: Os vizinhos de condado deveriam tomar conta uns dos outros e os amigos ainda mais. Cumpro sempre os meus compromissos quando me sinto reconhecido a um homem, especialmente se eu tiver ao meu dispor os meios


para resolver a minha maior preocupação. – A mim soa-me realmente a uma oferta – disse Gareth. – Estou mais interessado nos meios que ele pensa ter ao seu dispor – disse Ives. – O Radley não pode concluir a investigação sozinho. Não é a única autoridade implicada. – Que me interessa como o faz? – disse Lance. – Permito que me apresente a estas mulheres, aceno-lhes numa reunião, recebo-as e ao Radley quando vierem de visita uma ou duas vezes e depois assunto encerrado. – Não estou a gostar disto – disse Ives. – Não aceites nada antes de eu ter oportunidade de falar com ele. Se for assim tão simples, certamente não se importará com algumas negociações frontais sobre este assunto. Lance atirou as mãos ao ar. – Ele não é uma das tuas amantes, Ives. Por vezes é preciso alguma subtileza. – E que sabes tu de subtileza? Basta que não aceites nada. Um dos criados do estúdio de esgrima aproximou-se deles. – Meus senhores, está um homem lá fora. Pediu para falar consigo, senhor. – Esta última parte foi dirigida a Ives. – Que homem? – Grande. Negro. Não me deu o nome. Repentinamente, os irmãos perderam o interesse em Radley. Lance mirou-o. – Mrs. Lavender não costumava ter um negro enorme à porta? Um antigo escravo das ilhas. Como se chamava ele? Aquiles ou algo assim. Ignorando-o, Ives dirigiu-se para a porta e saiu. Hector estava à espera. – Mrs. Lavender pediu que passasse por lá. Está muito zangada. – Diga-lhe que irei amanhã. Hector abanou a cabeça. – Ela disse que deveria vir imediatamente. – Muito bem, diga-lhe que irei muito em breve. Juntou-se aos irmãos a passos largos, desapertando o colete acolchoado enquanto caminhava. – Tenho de ir fazer uma coisa. – Vais a casa de Mrs. Lavender? – perguntou Lance. – Mas tu não vais. – Parece-me bem que sim. Já não pensava em Mrs. Lavender há muito tempo. Há anos. Sempre gostei dela. Fazia-me lembrar uma mãe. – Não a nossa mãe, espero eu. – Claro que a nossa mãe não. Uma mãe a sério. Calorosa e preocupada. Não


concordas, Gareth? – Nunca lá fui. – Não? Pensei que toda a gente lá ia, no início. – Leva-o ao clube dele – disse Ives a Gareth. – Lá ele vai ter de ser o Aylesbury. Assim deve ficar controlável. – Não sou membro do clube dele – recordou Gareth. Maldição. Estava sempre a esquecer-se. – Nesse caso, leva-o para casa. – Preferia ir a casa de Mrs. Lavender – disse Lance. Ives lançou-lhe um olhar enfurecido. – Não te atrevas a aparecer por lá. Estou a falar a sério, Lance. Tens Londres inteira para te distraíres. Não vás àquela casa. Libertou-se do colete e voltou-lhes as costas para se ir embora. – Ouviste o que ele disse – ouviu ele Lance dizer a Gareth. – Londres é toda nossa, com a bênção do senhor vigário. Ives não sabia o que esperava encontrar na casa de Mrs. Lavender. Nada de bom, isso era certo. Tentava imaginar as várias formas de Padua ter causado sarilhos a ponto de Mrs. Lavender enviar Hector atrás dele. Hector conduziu-o para dentro de casa. A noite já ia suficientemente alta, pelo que Mrs. Lavender já assumira a sua posição no escritório. Teve de esperar enquanto alguma transação ocorria do outro lado da porta fechada. Por fim, a porta abriu-se e saiu um jovem cavalheiro com ar de ter no máximo dezoito anos. Mrs. Lavender acompanhou-o e apresentou-o à mulher que acabara de lhe vender. Ela regressou, dirigiu a Ives um severo franzir de sobrolho e entrou no escritório. Ele seguiu-a, fechou a porta e sentou-se na cadeira dos clientes, como fez em tempos, quando era tão inexperiente como o seu ocupante anterior. – Miss Belvoir não está a ficar no canto dela como fui levada a pensar que faria. – Porque não me conta o que ela fez para a perturbar? Mrs. Lavender presenteou-o com uma longa descrição do momento em que Padua se havia juntado às residentes ao jantar, fazendo um discurso e ameaçando Mrs. Lavender com a perda do arrendamento. – Pretende zelar pelos interesses do pai, diz ela. Pretende vigiar as contas em pormenor, diz ela. Pretende envolver-se na gestão das coisas, diz ela.


– Eu vou falar com ela. – Não vou tolerar tal atrevimento. Ela acha que me pode ameaçar com o arrendamento? Bem, eu cá também tenho alguns trunfos na manga, se for preciso. Ives escusou-se e dirigiu-se às escadas. Um piso acima, ouviu risos vindos da sala de desenho. Continuou a subir, passou pelos quartos e ascendeu aos aposentos das criadas. Padua abriu uma frecha da porta quando ele bateu. Espreitou para fora, alarmada. – Deixe-me entrar, Padua. – Não me parece que deva fazê-lo. – Abra-a ou entro ao pontapé. – Não gosto do seu tom de voz. – O que está a ouvir é provavelmente o mais contido que conseguirei ser e estou a sentir-me cada vez menos contido a cada segundo que passa. Abra a porta. Já. Padua abriu, mas dirigiu-lhe o olhar contraído e de sobrancelhas baixas que, suspeitava ele, usava com as alunas que desafiassem a sua autoridade. Ives andou de um lado para o outro no pequeno ninho que ela criara para si. – Disse que pretendia usar este quarto como dormida gratuita. Disse que sairia e entraria em casa usando as escadas lá de fora e que ninguém ficaria a saber de nada. – É verdade, eu disse isso. – Mrs. Lavender diz que jantou com as prostitutas. – Nós chamamo-lhes meninas. – Nós? Padua recuou um passo. – Mrs. Lavender. E, bem, o Hector. E... eu. – Agora decidiu dedicar-se à atividade? Será que lhe devo oferecer dinheiro, depois de ter recusado formas de apoio menos insultuosas? – Isso era escusado. Não sou uma das meninas, nem virei a ser. – Fico tão tranquilo. Mas será uma madame, como Mrs. Lavender. – Se foi isso que ela lhe disse, está a exagerar. Ives sentou-se na cama e puxou-a para a frente dele. Olhou para cima. – Diga-me então em que ponto ela exagerou. O que tem em mente? Está tão desiludida com o seu pai que quer esfregar-lhe na cara a sua própria ruína? – Não estou a fazer isto para o vexar. Estou a fazê-lo para o salvar. – Padua


pousou a mão no rosto de Ives e debruçou-se para que o seu olhar preenchesse o dele. – Acha que eu seria estúpida a ponto de colocar tudo em risco sem uma boa razão? O toque suave de Padua acalmou-o e cauterizou a ferida. Ele reagiu como alguém esfomeado há anos, e não apenas alguns dias. – Tenho um plano, Ives. E penso que vai funcionar. Padua falou com seriedade. Com honestidade. Ele mal a ouvia. Ives puxou-a para o seu colo e enfiou os dedos no cabelo dela. – Depois. – Beijou-a. – Conte-me depois. Ela aceitou um beijo insaciável e devolveu outro igualmente feroz. Tentou virar a cabeça. – O que estamos a... Não devíamos... Ele avançou para os colchetes do vestido, impaciente de a ver, de a tomar nos braços. – Somos inocentes. Eros está presente nesta casa. Não sentiu o seu feitiço, mesmo cá em cima? Ives beijou-a e chupou-lhe o pulso. Ela gemeu e anuiu. – Então não me diga que não devemos, Padua. O que será de admirar é eu não a possuir de todas as formas que conheço ou que alguma vez imaginei. Tirou-lhe a roupa, impaciente. Desajeitado. Ela ajoelhou-se ao lado dele, na cama, e tomou-lhe o rosto nas mãos. Beijou-o prolongadamente e obrigou-o a acalmar-se um pouco. Não muito, mas o suficiente para que ele a deixasse livrálo das casacas, desabotoar-lhe a camisa e martirizá-lo enquanto o despia. – E o que imagina? Disse que era de admirar se não me possuísse de todas as formas que imaginou. Que coisas perversas sonha fazer? – Padua abriu-lhe a camisa e afagou suavemente os seios contra a pele dele. – Ficaria chocada. – Não fiquei assim tão chocada até agora. – Padua tratou de lhe desabotoar as calças. – É o tipo de coisa que tinha de negociar com as suas amantes? – Algumas. – Não se trata por isso de pequenas variações, a julgar pelo facto de essas mulheres não se deixarem levar facilmente. – Mas nada perigoso. Nada cruel. Saltou do colo dele e ajudou-o a livrar-se da roupa de baixo. Depois, escarranchou-se em cima dele, com as pernas brancas e compridas a baloiçar em cada um dos lados do seu colo, o pelo escuro da púbis a revelar centelhas de pele


rosa-escuro. – Se calhar não ficarei chocada. Pelo menos não em demasia. Ela estava a seduzi-lo para um caminho que andara a evitar. Poderia ter renunciado a esse caminho para sempre. Com Padua, essas coisas tinham-se tornado caprichos desnecessários. Mas agora que ela o mencionava... Ives pousou a mão na dela e usou os dedos para explorar os seus pontos mais sensíveis. Padua cobriu-lhe os ombros com os braços e aceitou o prazer. Uma expressão etérea suavizava-lhe o rosto. – Primeiro, tem de fazer o que eu disser – explicou ele, debruçando-se para lhe lamber as pontas escuras e duras dos seios. – Manda em mim, é isso que quer dizer. – Sim. – Não há seduções. – Não. – Negociações? – Pode dizer que não. As ancas de Padua balançavam ao sabor dos toques excitantes das mãos de Ives. – Soa... Não deveria ser excitante, mas acho que a noção o é. Um pouco assustador, mas... Olhou-o nos olhos. – Depois, tem de responder às minhas perguntas. – Vamos estar a conversar? – Vai dizer-me coisas que eu quero ouvir. – Mais alguma coisa? – Vai tratar-me por «meu senhor». A princípio, a ideia divertiu-a, mas Ives observou a compreensão a assomarlhe aos olhos. – Isso não tem nada que ver com o seu título, pois não? Ele abanou a cabeça. Padua encostou a testa à dele e olhou para baixo. Tomou-lhe o membro nas mãos. – E o que quer o meu senhor? Isto? – Com os dedos, Padua percorreu o falo e, depois, envolveu-o. – Isso é o mínimo. Mas comecemos pelo princípio. Levantou-a e puxou-a para a frente, de modo a que ficasse com os joelhos apoiados no colchão. Içou-a até ter a boca ao nível dos seios. Ives desejava-a


tanto, que ela nada lhe negou. Excitou-a sem misericórdia até que ela começou a oscilar e lhe cravou as unhas nos ombros. Ives introduziu dois dedos na sua abertura, depois três. Padua pressionou-se fortemente contra eles, ofegando em respirações curtas e desesperadas. Controlou-a cuidadosamente, dando-lhe apenas o suficiente para a deixar no limiar do desespero. Com as ancas, ela procurou obter mais e contestou com queixumes de frustração. – O que quer, Padua? – Quero... Preciso... Não podemos... – Vai ter de esperar para isso. Assim ajuda? – Retirou os dedos e acariciou-a do lado de fora, nos lábios. Com um estremecimento, ela soltou um grito grave e gutural. A sua reação fê-lo cerrar os dentes para controlar o impulso de a atirar para o chão e os aliviar a ambos. – Ou será que quer isto? – Continuou a acariciá-la, avançando até ao ponto essencial, e friccionou. Padua enterrou os gritos no ombro dele, enquanto o prazer a fez explodir ainda mais. Ives permitiu-lhe o êxtase, mas não totalmente. Tirou a mão no momento em que ela se acalmara e sentira a melhor parte, mas em que ainda estava excitada. Pô-la em pé e levantou-se também. Libertou alguma da sua própria fome num abraço bem apertado e num beijo demasiado selvagem, mas, com tanto desejo, o sangue subia e embotava-lhe o espírito. – Agora quero que se ajoelhe – ordenou ele. Padua relanceou-o com curiosidade e depois baixou-se. Ele olhou para baixo, para o seu cabelo escuro e comprido, para os seios plenos, os braços e ombros alvos. – Como se sente, Padua? – Pequena. – Olhou para cima. – Vulnerável. Se o meu senhor fosse outro homem, não gostaria da sensação. Se não o conhecesse tão bem. Assim sendo, o medo não é verdadeiramente medo, porque... – Porque a excita? Ela anuiu. Por sua iniciativa, Padua tomou-lhe o membro nas mãos. Ives observava, sentindo que se esvaziava de pensamentos, enquanto ela o afagava. – Sabe o que eu quero agora? – Não tenho bem a certeza.


Ele disse-lhe. As pontas dos dedos dela desenhavam círculos na ponta do pénis. Ele praticamente ouvia os mecanismos da sua mente a trabalhar. – O meu senhor disse que eu podia dizer que não, se o desejasse. – É verdade. – O seu senhor morreria se ela o fizesse. Padua ponderou a exigência durante um minuto atroz. Ives sentiu que o seu corpo se iria abrir em dois. A medo, Padua pôs a língua de fora e experimentou. Refletiu mais um pouco. – Faz isto por mim e é maravilhoso. Se puder sentir algo semelhante... é apenas justo tentar. – Padua ergueu os olhos. – Diz-me como devo fazer? Ele disse. Ela beijou, depois lambeu, e em seguida usou plenamente a boca. Relâmpagos afiados de prazer selvagem empurraram-no para auges eróticos espantosos. Padua não recuou, nem sequer no fim. Ives ergueu-a e deitou-se na cama, com ela nos braços. Durante longos instantes, perdeu-se numa escura névoa de um prazer envolvente que se prolongara do seu clímax. Depois, não sabia ele se tinham passado um ou vinte minutos, Padua mexeuse. Ergueu-se e apoiou-se nos cotovelos. – Já terminámos, meu senhor? Ele abriu os olhos e fitou-a. – De todo. Padua sempre soubera que a sua submissão excitava Ives. Não lhe dera esse nome, mas estivera sempre ali, desde aquela primeira noite em que ele lhe juntou as mãos durante os primeiros beijos. Ela percebera-o nas formas como ele lhe tocava. Mesmo nas suas carícias possessivas. Supunha que todos os homens gostassem. Não andavam muito longe dos animais nestas coisas. Aliás, nem as mulheres, como estava ela agora a aprender. Padua deitara-se na cama enquanto esperava que Ives terminasse os preparativos para o próximo jogo perverso. Este empilhara duas almofadas e disse-lhe para se deitar, de rosto virado para baixo, com as almofadas debaixo das ancas. Estava agora esparramada na cama, nua. A espera excitava-a tremendamente. Uma vez mais, a vulnerabilidade. Uma vez mais, o medo que não era medo, porque a excitava. Tinha os braços estendidos para os cantos da cama, aos quais estavam atados com um nó lasso. Atrás dela, Ives fazia o mesmo a um dos pés.


Passou para o outro pé. Agora com as pernas afastadas, à semelhança dos braços. As nádegas elevavam-se, expostas. À espera. Mal conseguia acreditar no que aquilo lhe fazia. Nunca antes tinha ficado em tal estado sem sequer ser tocada. – Como se sente, Padua? Pôs-se de pé atrás dela, ao lado da cama, próximo da perna. Mesmo voltando a cara no colchão, ela não o conseguia ver. – Bastante confortável. Uma pequena palmada atingiu-lhe o traseiro. – Não foi isso que quis dizer e sabe-o perfeitamente. A palmada não doeu. Fora demasiado suave para isso. Mas tinha... Padua bloqueou os pensamentos contra a fantasia de que ele pudesse fazê-lo de novo. Ela não iria gostar, estava certa disso, mas só de pensar nisso, a espera... – Estou surpreendida, meu senhor. Não me sinto como esperaria. Já estou de cabeça meio perdida. Uma carícia rodopiou-lhe pela perna acima, como o toque de pluma que ele aplicara pela primeira vez na Langley House. – Gosta da sensação? – É intensa. Mas estou cada vez mais impaciente. O colchão afundou quando o peso dele se uniu ao dela. Padua olhou por cima do ombro. Ives ajoelhou-se, alto, entre as pernas dela. Mais abaixo, latejos profundos começaram a torturá-la. Padua pousou novamente a cabeça. Ele acariciava-lhe as nádegas e ela latejava mais. – E o Ives? Como se sente? Ele aqueceu-lhe as costas ao debruçar-se sobre ela. Apoiado nos braços, mergulhou a cabeça até lá abaixo, para lhe falar diretamente ao ouvido. – Sinto que tenho posse, apesar de saber que assim não é. Sinto que é minha e que garantirei que nunca partirá, embora saiba que isso não é verdade. Posso desejá-la sem reservas, como nunca antes desejei outra mulher e fazê-la admitir a sua própria paixão e fingir que sou, efetivamente, o seu senhor. – Raspou-lhe a face com os lábios. – E gosto de poder fazê-la sofrer de desejo e render-se totalmente ao prazer que lhe dou. Ives regressou lá para trás. – Diga-me o que quer, Padua. Acariciou-lhe firmemente as nádegas, martirizando-a. – Quero-o a si – sussurrou ela. – Quero tudo.


Ele penetrou-a lentamente. Ela prendeu a respiração. Fechou os olhos para poder sentir tudo o mais intensamente possível. Ele preencheu-a. Completou-a. Foi então que a possuiu. Presa como estava, Padua podia apenas aceitar o que quer que lhe oferecesse, tanto a ternura como a fúria. – O que está a fazer aqui fora? Padua voltou-se na direção da porta. Ives estava ali a seu lado. Vestira as calças e a camisa. Ela puxou para cima a manta com a qual protegia a sua própria nudez. Encostou os dedos aos lábios e depois apontou para a longa cocheira. – Olhe lá para baixo. Junto ao chão, a meio. Há ali uma sombra escura. Acho que é uma pequena janela. Ives perscrutou a noite. – Pode haver uma cave por baixo. – Parece-me que há. Passei um bom tempo a olhar para aquele edifício nos últimos dias. Padua abriu a porta e voltou ao quarto. Subiu para a cama e encolheu as pernas. Ele deitou-se a seu lado, apoiando-se no cotovelo. – Disse-lhe que tinha um plano. Disse a toda a gente que ia assumir o lugar do meu pai por achar que quem quer que seja que o coagiu a receber aquela arca está ligado a esta casa. Se assim for, quem sabe me abordam a mim como o abordaram a ele. Nessa altura saberei quem mais está envolvido e posso usar essa informação para o ajudar. Estão a tentar apanhar peixe graúdo, foi o que me disse. Bem, é minha intenção encontrá-lo ou alguém que me saiba dizer onde costuma andar a nadar. Padua esperava que ele a elogiasse pela sua esperteza. Contudo, pelo contrário, estava a trespassá-la com os olhos. – Se estiver correta, acabou de se pôr em perigo, Padua. – Não me parece que alguém me faça mal aqui. – Não sabe se o farão ou não. Sob a ameaça da forca, as pessoas cometem atos desesperados. – Serei muito cautelosa. O ar severo de Ives não se atenuou nem um pouco com as palavras tranquilizadoras de Padua. Ele sentou-se na beira da cama. – Vai mudar-se daqui amanhã. Vou levá-la para a Langley House.


– Não posso partir. Tenho coisas para fazer amanhã. Ele virou a cabeça subitamente. – Que coisas? – Um passeio no jardim, por exemplo. Ives agarrou-lhe o rosto com a mão. – Um passeio muito perto daquela cocheira, imagino eu. – Só quero ver se há mesmo uma cave, como nos pareceu agora. – As palmadas no traseiro deviam ter sido com muito mais força, e mais vezes. E ainda estou a tempo de o fazer. Proíbo-a de se aproximar a menos de quinhentos metros daquele edifício. Padua ergueu-se sobre os joelhos e atirou os braços, abraçando-o por trás. Aconchegou o nariz ao pescoço dele. Achava encantador, e muito másculo, o facto de ele não compreender que, mesmo que fosse ele o senhor (que não era), ela nem sempre lhe obedeceria. – Não tente as suas artimanhas comigo. Não pode... Ela mordiscou-lhe a orelha. – Pare de fazer isso, estou a falar a sério. Não pode sair desta... Padua percorreu o peito dele com as mãos. – Não tolerarei... Ela deslizou as mãos ainda mais abaixo. Ele agarrou-lhas, voltou-se e atirou-a para baixo. – Vou eu fazê-lo – disse ele. – Amanhã à noite, vou verificar se há uma cave e o que poderá haver lá dentro. Nada mais do que peças ferrugentas de carruagens, é o meu palpite. Vou lá ver, se quiser. Mas a Padua não se chega nem perto nem demonstra o mínimo interesse. Estamos entendidos? Ela anuiu e tentou parecer submissa. Ele empurrou-a, desenfaixou-a da manta, deitou-se a seu lado e lançou a manta por cima dos dois. – Quanto ao resto do seu plano, estarei aqui todas as noites. Se estiver certa, não terá de enfrentar nem de encontrar esses homens sozinha, se eu ainda estiver vivo para o impedir. Uma vez que pôs tudo em movimento por sua iniciativa... – Ives fulminou-a novamente com os olhos. – Não há outra hipótese senão esperar para ver o que acontece. – Todas as noites? – Até esclarecermos que está errada ou até se provar que está certa. – Está a pensar em dormir aqui? – Não vou ficar acordado sentado numa cadeira, Padua.


– A cama é bastante pequena. Ele voltou-se e puxou-a para si. – Cá nos arranjaremos. A Padua não ocupa muito espaço. Seria novamente como em Merrywood, ele deitado ao lado dela. Padua a dormir com a presença dele a envolvê-la e dentro da sua alma. Poderia não se arrepender da paixão, mas isto... O seu coração inchou com uma emoção pungente à medida que ia sendo invadida pela intimidade, que tomava conta dela. Mas também estava a tremer. Iria suportar novamente a pior dor de coração, bruta como um corte acabado de infligir. – Vem aqui alguém de manhã? – perguntou ele com uma voz sonolenta. – Alguma das criadas? – Tenho de sair para chamar uma delas. Mrs. Lavender não faz nada para promover o meu conforto. Ele acomodou-se mais fundo na almofada e pousou o braço por cima dela. – Isso é porque ela suspeitou que lhe traria sarilhos desde a primeira vez que lhe pôs os olhos em cima. – Bocejou. – Tal como eu, valha-me Deus.


CAPÍTULO 20 ves chegou à Langley House na noite seguinte. Encontrou Gareth na biblioteca, como combinado. Serviu-se de um pouco de brandy e pôs-se de pé junto à janela, a observar o lusco-fusco a iniciar a descida rumo à escuridão. – Onde estão os outros? – A Eva está nos aposentos dela, a ler. O Lance está no escritório a fingir que trata de assuntos oficiais – respondeu Gareth. – Ao fim da tarde o solicitador enviou uma pilha de documentos, com indicação de que exigiam a sua atenção imediata. – Que conveniente. – Mesmo muito conveniente. É atencioso da parte dele ajudar-nos desta maneira. – Ele tem tanta vontade de que o Lance se envolva em sarilhos como nós. Abriu a janela e pôs a cabeça lá fora. Conseguia ver a Lua baixa no céu. Poucas nuvens havia a interferir na luz que conseguia emanar. Gareth levantou-se. – Vamos? Ives assentiu. Caminharam lado a lado até ao átrio de entrada. – Ives. Não sabia que estavas cá. – A voz de Lance ecoou do cimo das escadas. – Não pares – rosnou Ives entre dentes. Disparou um olhar rápido para Lance, de pé numa das escadas com uma pilha de papéis nos braços. – Só passei para vir buscar o Gareth. – E dirigiu-se para a porta. – Aonde vão? Gareth voltou-se e encolheu os ombros. – Por aí. A nenhum sítio em especial. A nenhum sítio divertido. Agora sou casado, por isso é de esperar que seja um par de horas totalmente entediantes. – Não tão entediantes como as minhas. – Fez uma careta para os documentos.

I


– Acho que precisamos de um novo solicitador. Ives foi ficando para trás enquanto Gareth interagia. – É mesmo muito papel – disse Gareth. – Ia espalhar tudo na biblioteca e ver se assim me faz mais sentido. – São as obrigações que vêm com o título, não é? – Gareth agarrou firmemente o ombro de Lance. – Vamos deixar-te entregue às tuas ocupações, então. – Bolas. Isto pode esperar. Até aborrecer-me convosco é melhor do que isto. – Acenou a um lacaio e depositou-lhe a pilha nos braços. Sacudiu as mangas do casaco. – E então, aonde vamos primeiro? Ives deu meia-volta. – Não podes vir. – Porque não? – Não seria próprio – disse Gareth. – Se nós formos apanhados, é uma coisa. Se tu fores apanhado, será um enorme escândalo e o falatório de toda a cidade. – Apanhado a fazer o quê? Ives tinha vontade de estrangular Gareth. – Não é da tua conta. E é precisamente por isso que não podes vir. – E é da conta dele? – Lance sacudiu o polegar na direção de Gareth. – Também não me pareceu. É da tua conta. – Certíssimo. Por isso quem toma todas as decisões sou eu, como aquela que diz que não vens connosco. – Ai isso é que vou. Está prestes a acontecer uma aventura, sinto isso no ar. – Uma pequeníssima – minimizou Gareth. – Tão pequena que será quase tão aborrecida como aqueles documentos. Lance fez uma careta rabugenta. Mas depois a sua expressão iluminou-se. – Tem que ver com aquele caso do Belvoir, não é? Ives arrependia-se frequentemente quando se esquecia de que Lance, apesar de totalmente absorvido e distraído consigo mesmo, tinha a inteligência afiada como uma espada quando se lembrava de a usar. O facto de só lhe ocorrer tal coisa nos momentos mais inconvenientes era uma fonte de infindável irritação. – Eu tenho razão. Estás a investigar alguma coisa e até aposto que não serve os interesses da Coroa. Sem mim, só vais estragar tudo ainda mais, o que quer que seja. – Estalou os dedos para um lacaio. – O meu cavalo. Gareth suspirou, vencido. Ives tentou engendrar uma forma de se livrarem de Lance entre a casa dele e aquela que estavam prestes a visitar.


– Não sigas o teu olfato nesta história – recomendou ele a Lance. – Se insistes em vir, pelo menos não atrapalhes nem arranjes mais sarilhos do que os necessários. – Sinto-me insultado e magoado. Eu não arranjo sarilhos. Caminhou a passos largos em direção à porta, parou e voltou-se para eles. – Digam lá, precisamos das pistolas? – Não é esse tipo de aventura. – Se o dizes. Que pena. Lance ficou parado no beco, de olhos postos na casa. – Vens ou não? – sussurrou Ives. Lance juntou-se-lhe. – A casa pareceu-me familiar. Já aqui estive antes? – Tenho a certeza de que nunca antes estiveste neste sítio em particular. Juntaram-se a Gareth, que estava debruçado sobre o cadeado da cocheira, manuseando um palito. – Onde aprendeste a fazer isso? – perguntou Lance. – Aqui e ali. Requer sobretudo concentração e silêncio. – Vais ter de me ensinar isso. Pode dar jeito saber fazê-lo. Não achas, Ives? Um dia destes vamos pedir ao Gareth que nos dê umas aulas de arrombamento de cadeados. – Concentração e silêncio – repetiu Gareth, com firmeza. Lance cruzou os braços e esperou. Até agora, tê-lo trazido ainda não criara nenhum problema em especial. Ao chegar às cavalariças atrás da casa e ao entrar no beco para onde dava a cocheira, Lance ainda não se apercebera do sítio onde estavam exatamente. Eles acabariam o que tinham a fazer ali e ele estaria de volta à Langley House sem ficar a saber de nada. O cadeado soltou um estalido. Gareth endireitou-se, tirou-o e abriu uma das portadas da cocheira. Esgueiraram-se todos lá para dentro. Pelo menos as janelas deixavam entrar o luar. O volume de uma carruagem enchia a maior parte do espaço. – Um mordomo tem os aposentos aqui em cima – sussurrou Ives. – Ele pode estar lá, por isso vamos em silêncio. – Vamos para onde? E porquê? – perguntou Lance. – Estamos à procura de indícios da presença de uma cave e do acesso para lá


entrar – respondeu Gareth. Percorreram o perímetro da sala e depois atravessaram a porta que dava para os estábulos. Os cavalos já estavam ruidosos e nervosos e ainda mais ficaram quando eles entraram. Lance caminhou até às baias e acalmou-os. Ives percorreu o soalho, comprovando que o edifício fora antes utilizado para outros fins. De repente, as botas produziram um som diferente. Um som oco. Agachou-se e apalpou o chão. A mão deparou com um aro. Gesticulou na direção dos irmãos e puxou. No chão, abriu-se uma porta com dobradiças. Lá de dentro surgiu uma negritude total. – Esperem aqui – disse ele. Desceu pelo buraco abaixo. Não tinha escadas, por isso deixou-se cair. Sempre havia uma cave, tão baixa que teve de fletir os ombros para se movimentar. Uma pequena janela no cimo de uma parede devia ser a que Padua vislumbrara na noite anterior. Penetrava ali apenas uma luz ténue, mas suficiente para ver o candeeiro numa mesa próxima. Foi até lá, encontrou o isqueiro e acendeu a vela do candeeiro. A cave começou a ganhar vida. Formas e sombras surgiam-lhe à frente dos olhos. – Que há aí em baixo? – O ruidoso sussurro de Lance entrou na cave através do buraco. – Fiquem aí. Não cabemos cá todos. Silêncio. Ouviram-se depois alguns raspões, arquejos e botas a aterrar no chão sujo da cave. – Eu disse para esperares. Lance ignorou-o. Olhou em volta da cave e avançou para um dos cantos. – O que é isto aqui? Parece uma máquina qualquer. – Isto costumava ser de um ferreiro ou de uma fábrica qualquer. – Isto é ferro, lá isso é verdade. Traz o candeeiro para aqui. Ives levou o candeeiro. As peças da máquina assomaram saídas do escuro. Ele olhou para ela e soube de imediato o que era. – Ora bolas. Lance brincou com o volante e deu umas pancadinhas no rolo. – É uma prensa? É pequena. – A cave é pequena. – Bem visto. – É muito pesada?


Lance pôs os braços por baixo e tentou levantá-la. – Pesada, mas não amovível. Claro que não. Teve de ser transportada por homens lá para dentro. O que significava que também podia ser levada por homens. Ives pousou o candeeiro. – Vejamos se a conseguimos içar até ao Gareth. – Vais roubá-la? – Isso mesmo. E como insististe em vir, tu também vais. Lance não discutiu. – Espero que saibas o que estás a fazer. Juntos, levantaram a prensa e carregaram-na até ao buraco no chão. Em esforço, empurraram-na para cima, fazendo-a passar pela abertura. Gareth ajudou-os do lado dele, até pousarem a prensa no chão do estábulo. – Há uma porta que dá para o jardim, perto da carruagem – disse Ives. – Vocês os dois conseguem levar isto por esse caminho e escondê-la? Para já, basta enfiá-la por baixo de uns arbustos. Gareth lançou-lhe um olhar direto, mas curioso. Depois estendeu o braço para ajudar Lance a sair. Lá em cima, Ives ouvia-os a arrastarem-se pelo chão fora, em direção à cocheira. Ives regressou ao candeeiro. Colocou-o novamente onde antes estivera, perto da janela. O candeeiro lançou o seu clarão ao longo da parede e sobre os dois objetos que ele vira antes, logo que o acendeu. Uma caixa de madeira bastante grande repousava sobre uma grande arca. Pousou o candeeiro e abriu a tampa da caixa. Continha finas placas metálicas, empilhadas umas em cima das outras. Ives percorreu uma delas com os dedos e sentiu finas estrias e baixos-relevos. Ergueu-a e aproximou-a da luz. Revelou-se a imagem fantasmagórica de uma nota bancária. Levantou a caixa inteira e pousou-a na mesa onde estava o candeeiro. Abriu então a arca de madeira. O seu conteúdo surpreendeu-o ainda menos. Estava cheia de papel. Metade ainda virgem. A outra metade composta por folhas de seis notas, cada folha do tamanho da prancha daquela prensa que haviam acabado de acartar dali para fora. Não só Padua tivera razão, como tivera toda a razão, mais plenamente do que ela própria adivinhara. Os falsificadores não estavam apenas ligados a esta casa. Tinham trabalhado precisamente ali, naquela cave. Fitou as provas irrefutáveis disso mesmo. Provas de que, se se ficasse a saber que Hadrian Belvoir era proprietário desta casa, ele seria sem qualquer dúvida


mandado para a forca. Presumir-se-ia que ele não era um ingénuo que fora enganado por um peixe graúdo, mas sim o próprio peixe graúdo. E Padua... Abanou a cabeça. Não era preciso especular muito para imaginar o que pareceria. Anunciara que estava a assumir o lugar do pai. E vivia nesta casa naquele preciso momento. Ives praguejou entre dentes. Praguejou duramente e durante muito tempo. Tudo isto eram provas de um crime grave. Deveria entregá-las às autoridades. Ignorar isto, fechar os olhos a isto... ele não era esse tipo de pessoa. Violava tudo aquilo em que acreditava e deixá-lo-ia despido de honra ou integridade, mesmo que nunca viesse a saber-se. E se isso acontecesse... Fechou a arca. Apagou a vela. Usando de toda a sua força, levantou a caixa com as placas e transportou-a até ao buraco. Ergueu-a acima da cabeça e deslizou-a para o soalho, saltou e agarrou os lados da abertura, puxando todo o seu peso para cima. Ofegante, levantou-se e carregou a caixa até à sala ao lado e saiu pela porta. – Que trazes aí? – O sussurro de Lance atravessava o silêncio da noite enquanto, com Gareth, se aproximava no caminho. – Não perguntes. – Deixa que eu ajudo-te. – Gareth veio na sua direção para segurar de um dos lados. – Não. Vão e esperem por mim perto da porta. Vou ter convosco não tarda nada. Eles afastaram-se. Ives puxou o fardo até às traseiras do jardim e deixou-o cair no chão, aliviado. Procurou um local para o esconder perto do portão. Os arbustos baixos e densos de buxo atrás de um banco pareceram-lhe a melhor opção. Levantando novamente a caixa, carregou-a até lá e enfiou-a por baixo do banco, empurrando-a mais para trás, até o buxo a engolir completamente. Exausto do esforço, esticou os braços e tomou o caminho de regresso ao jardim e ao longo do muro. Lá em cima, perto da porta que dava para a cocheira, viu Gareth e Lance. E mais alguém. – Mas você conhece-me, Hector – dizia Lance. – Agora sou duque. Par do reino. Não devia mesmo ameaçar um de nós. Isso não se faz. – Realmente, não se faz – reforçou Gareth. – Só sei que é ladrão, não um duque – disse Hector. Ives caminhou até lá e juntou-se-lhes. E percebeu qual era o problema.


Hector não se limitara a confrontar os seus irmãos. Estava também acompanhado de uma faca muito, muito grande que adejava sob o luar. – Eu disse-te que devíamos ter trazido pistolas – rosnou Lance quando reparou em Ives a seu lado. – Vocês agora vão entrar comigo – disse Hector. – Vou levá-los a Mrs. Lavender. Roubaram-na, por isso ela decide o que fazer. Gesticulou para que avançassem à frente dele. Caminharam todos em direção à casa. – Ele viu-os a sair com a prensa? – perguntou Ives. – Acho que não – respondeu Gareth. – Parece-me que chegou ao mesmo tempo que nós. Quando se aproximaram da casa, Ives olhou para o alto das longas escadas de incêndio. Lá em cima, no pequeno terraço sob os beirais, viu uma figura a mexer-se. Esperava que Padua tivesse suficiente bom senso para não sair de lá. Lá marcharam eles pela casa adentro. Até à sala de jantar. Hector dirigiu-se para a porta e chamou uma criada. Falou baixo e depois assumiu a sua posição, de braços cruzados e com a sua monstruosa faca pronta a usar. A porta abriu-se e Mrs. Lavender entrou apressadamente, com espalhafato. – Não sei o que poderá ser tão importante que justifique tirares-me da... Congelou e demorou a perceber os três convidados que ali tinha. A faca estava apontada para eles. – Encontrei-os no jardim e não estavam a aprontar coisa boa. Perto da cocheira. Acho que iam roubar os cavalos. Ela perscrutou-os aos três. Mais especialmente, cerrou os olhos em Lance. Ele abriu os olhos e sorriu. – Mrs. Lavender, que alegria encontrá-la novamente. Já lá vai tanto tempo. Certamente não se esqueceu de mim? Ela arregalou os olhos. – Oh! Ohhh. – Recompôs-se e fez uma vénia impressionante. – Vossa Senhoria, que honra a nossa. O pobre Hector parecia confuso. Mrs. Lavender lançou-lhe um olhar furioso. – Este cavalheiro é um velho amigo de há muitos anos. Certamente, lembraste de Lord Lancelot. Acontece que agora é duque. Ameaçaste um duque, Hector. Um duque. Hector baixou a faca, e também a cabeça. Mrs. Lavender enxotou-o dali para fora. Ele saiu, subjugado. Ela voltou a atenção para os convidados.


– Cavalheiros, que faziam no meu jardim? Um momento confrangedor. Um silêncio ensurdecedor. Lance avançou, todo ele sorrisos. – Tive a ideia de revisitar o sítio onde passei as melhores horas da minha juventude desperdiçada. Acontece que dificilmente poderia entrar pela porta da frente. – Oh, céus, não, é claro que não. É uma honra, Vossa Senhoria. As meninas vão ficar encantadíssimas. Mrs. Lavender perscrutou Gareth. – Não o estou a reconhecer a si. – Nunca aqui estive antes. – É o meu irmão Gareth – disse Ives. – É o mais novo. – Que injustiça o duque não ter tratado também da sua iniciação. – O Gareth tratou disso muito antes de o meu pai começar a pensar no assunto – explicou Lance. – Bem, algum dia teria de usufruir dos requintes das suas diversões. – Terei de declinar uma oferta tão generosa – disse Gareth. – Vim apenas acompanhar o Ives, que queria mostrar ao Lance onde poderia encontrar a entrada do jardim. – Verá que pouco mudou, Vossa Senhoria, com exceção das caras. Se puder esperar só um momento, quero preparar as minhas meninas para o receberem condignamente. E saiu da sala de jantar. – Eu bem disse que iam arranjar confusão se eu não viesse convosco – disse Lance. – Por esta hora, se não fosse eu, o Hector já os teria cortado aos bocadinhos. – E agora vais sacrificar-te para nos poupar, uma vez mais – disse Ives. – Que generoso da tua parte. – É para isso que servem os irmãos. A porta abriu-se e Mrs. Lavender acenou. – Vossa Senhoria, está tudo pronto. Lance endireitou os ombros. – Cavalheiros, apreciem o resto da noite e façam um brinde pelo meu sacrifício quando estiverem com os copos. – O teu altruísmo comove-nos – declarou Ives. – Deveria. – Suspirou. – As coisas que faço pela minha família.


* Ives separou-se de Gareth logo que saíram da casa. Tornou então a dar a volta de regresso ao portão do jardim e subiu as escadas de incêndio. Padua estava à sua espera no quarto. – Eu vi – disse ela. – Conseguiram entrar lá antes de o Hector os encontrar? – Sim e encontrei a cave. Não tinha nada de interesse. Detestava mentir-lhe, mas ainda não se reconciliara completamente com o que acabara de fazer. Nem com o que faria na noite seguinte, quando regressasse com uma carruagem para levar a caixa e a prensa para fora daquela propriedade. Ocultar provas era uma violação do dever que jurara cumprir. Comprometia a sua honra sem apelo nem agravo. Ninguém quereria saber se ele o fizera para proteger Padua. Agiu impulsivamente. Ainda podia voltar atrás. Uma nota enviada para o Ministério do Interior ou para o magistrado acertaria tudo. Com a escolha a pesar-lhe na alma, juntou-se a Padua na cama. Com o beijo que lhe deu, fê-la saber que nessa noite não haveria paixão. Ficou deitado no escuro com Padua nos braços, avaliando a grande trapalhada em que tudo se transformara, considerando as suas limitadas opções e as inaceitáveis consequências. – O que vai fazer depois do julgamento do seu pai? – Ele sabia que ela ainda não adormecera, mas a pergunta soou árida pela forma como quebrou o silêncio. – Se eu herdar... Padua interrompeu-se. Só herdaria se uma coisa acontecesse. – Se isso acontecer, acho que vendo esta casa. Mas não a Mrs. Lavender. Ela pode ir para outro lugar, se estiver determinada a continuar. Gostaria que se transformasse numa escola. Aceitaria muito menos dinheiro se alguém a quisesse para esse fim. – Poderia ser a sua escola. O cabelo dela, tão fino como a mais requintada seda, roçou na cara dele quando abanou a cabeça. – Pego no dinheiro e vou para Pádua estudar. Se por algum ato de misericórdia eu não herdar, obrigo-o a dar-me o dinheiro que encontrou nos livros e vou de qualquer modo, e procuro trabalho como professora enquanto lá estiver. – É possível que eu não permita tal coisa. Ela beijou-o e ele sentiu o seu sorriso.


– Sabe bem que não me pode impedir. Tenho de ir. Aqui, ganharia má fama. Ives estava a arriscar o seu bom-nome, a sua reputação e tudo o que importava para proteger uma mulher determinada a abandoná-lo. Ou era um perfeito idiota ou... O seu abraço apertou-a com mais força quando reconheceu a verdade na origem de tudo o que fazia. Na origem do desejo e, agora, até mesmo do prazer. Na origem do aperto que sentia no peito. – Se não a puder impedir, se calhar vou atrás de si. – Para me arrastar de volta? Soa romântico, mas acho que eu não iria apreciar. – Não para a arrastar de volta. Para ficar consigo. Ela virou a cabeça. – E porque faria isso? A sua vida é aqui. Diz-lhe. Ela tem o direito de saber. – Para me poder saciar consigo. Cobarde. Ela aninhou-se de novo. – Eu ficaria contente se me visitasse por algum tempo. Ives beijou-a com força no cimo da cabeça. – Poderá ser mais do que só algum tempo. Alguns meses, pelo menos. Padua anuiu subtilmente e depois bocejou. Ives manteve-a nos seus braços até ela adormecer. Alguns meses. Quem sabe alguns anos. Se calhar para sempre.


CAPÍTULO 21

D

uas manhãs depois, Ives transpôs a porta e começou a descer as escadas de incêndio da casa. Um movimento chamou-lhe a atenção e estacou de repente. Lá em baixo, uma mulher passeava-se pelo jardim. Ficou a observá-la durante um bom tempo. Depois, quando ela se encaminhou para o portão de trás, Ives regressou ao quarto de Padua. Ela ergueu os olhos, preparava-se para se lavar. – Está uma pessoa no jardim. Uma mulher. – Acontece muitas vezes elas virem apanhar ar quando se levantam. Não vai ficar aí muito tempo. – Não acredito que esta mulher seja uma das meninas de Mrs. Lavender. Para já, é demasiado velha. – Deve ser a Emily. Disseram-me que é mais velha e que trabalha aqui de vez em quando. Não vive aqui. Mrs. Lavender ontem queixou-se de que não estava a sentir-se bem, por isso a Emily assumiu o lugar dela no escritório. Ela também faz isso. Ives voltou de novo para a porta. Não saiu novamente, ficando ao invés a observar Emily o melhor que conseguia pela frincha. Quando ela se voltou para regressar a casa, confirmou-se a suspeita que o andava a cutucar. Reconheceu-a. – Já a conheceu? Ela sabe que está aqui? – perguntou a Padua ao reentrar no quarto. Sentou-se numa cadeira para a observar a terminar as suas abluções. Ficava encantado com esta tarefa simples e rotineira. Ela surgia assim doméstica e fresca sob a luz da aurora, com a camisa de noite em baixo, em torno da cintura, e as costas delgadas suavemente fletidas enquanto lavava os seios e os braços. – Não nos conhecemos. Mas ontem ouvi duas das criadas a queixarem-se dela. – Reconheci-a. Padua olhou por cima do ombro. Fez uma careta.


– Uma assombração do passado? – Não da forma que pensa. Se a visse, talvez também a reconhecesse. Vive mesmo por baixo dos aposentos do seu pai na Wigmore Street. – Aquela mulher loura que gosta de se sentar à janela? Ele anuiu. – Chama-se Emily Trenholm. Fui procurador num processo contra o marido. – Imagino então que ela não goste lá muito de si. – Pareceu-me uma estranha coincidência ela viver mesmo em baixo do seu pai. Que agora também esteja relacionada com esta casa já é coincidência a mais. Padua enfiou novamente os braços dentro do robe. – Acha que Mrs. Lavender afinal está envolvida? Espero que não. Eu até gosto dela. – Só saberemos quando tudo for revelado. Contudo, por agora, vou presumir que sim. Não a deixe perceber que estamos desconfiados. – Tenho estado à espera, na expectativa de algum tipo de abertura, dela ou de outra pessoa, e ainda nada aconteceu. Ives aproximou-se e beijou-a. – Então é altura de resolvermos isso. – Como? – Montando uma armadilha. Padua aconchegou melhor o xaile azul da mãe em volta dos ombros e olhou para Berkeley Square. Naquela manhã nublada e fria, a maioria das pessoas a pontilhar os caminhos e a relva eram governantas com crianças pequenas. – Padua. A voz atrás dela fê-la dar um salto. Voltou-se e viu Jennie a vir na sua direção, de braços abertos. Abraçaram-se e depois Jennie recuou um pouco para olhar bem para ela. – Essa peliça é nova. Fica-lhe bem. Era uma das roupas que Eva lhe havia reformulado. – Estou a usá-la especificamente para si, para que saiba que não ando a morrer de fome. – Receei bem que pudesse estar ou que nunca mais a voltasse a ver. Que lhe passou pela cabeça? Escreveu a dizer que saía da cidade por tempo indefinido e depois nunca mais tornou a dar notícias! Estive ralada o tempo todo. Deram o braço e caminharam vagarosamente caminho afora.


– Fiz amigos novos e também fiquei a saber algumas coisas sobre a minha família. Têm sido semanas maravilhosas, Jennie. Os olhos azuis de Jennie relancearam outra vez a peliça. – Foi um dos seus amigos que lhe comprou isto? Juro que não a vou repreender. – Sim, mas não foi um homem, se é isso que está a insinuar. Uma senhora muito simpática ofereceu-ma. Uma artista. – Falou a Jennie de Eva e Gareth e da sua recente viagem no estrangeiro. – Passou a frequentar uns ricos círculos, Padua. Como foi que se lhe abriram tais portas? – Deve-se tudo ao meu pai. – Era verdade. – Há muita coisa que ainda não lhe posso contar, mas quem sabe um dia lhe possa explicar tudo. Quis vê-la sobretudo para saber se está tudo bem consigo, Jennie. Diga-me que sim. – Pouco mudou, com exceção de que já não a tenho a si para me lamuriar. A senhora contratada para a substituir sabe pouco mais do que as raparigas. Põenas a resolver problemas muito básicos. Mrs. Ludlow não sabe ou não quer saber. – Bem que Londres precisava de uma escola para raparigas como deve ser – disse Padua. – Uma escola onde elas fossem ensinadas do mesmo modo que os rapazes. As raparigas são tão inteligentes como eles. Porque hão de tolerar professoras como essa que me está a descrever? – Porque aquela que o faria melhor conseguiu que a mandassem embora? – Os olhos de Jennie cintilavam de boa disposição. Padua riu-se. – Espero um dia ter uma escola, Jennie. Seria lá professora, se isso acontecesse? Seria uma Mrs. Ludlow? Jennie também se riu, mas depois deu conta de que Padua tinha parado de rir. – Está a falar a sério? – É algo que, penso eu, talvez um dia consiga convencer o meu pai a apoiar. – A sério? – Jennie olhou-a de forma estranha e depois desviou os olhos. Dez passos mais adiante, o sobrolho de Jennie continuava ligeiramente franzido. – O que se passa? – perguntou Padua. – De repente, ficou séria. – Fala do seu pai como tendo havido uma aproximação entre os dois. Se assim for, fico verdadeiramente feliz por si. Mas... – Mas? Jennie inspirou profundamente.


– Vi num jornal um pequeno anúncio acerca de um homem com o seu nome. Belvoir. Vai ser julgado por crimes graves. Fiquei a pensar se seria familiar seu e perguntei a Mrs. Ludlow. Ela insistiu que não. Mas... Parecia confrangida e esperançosa ao mesmo tempo. Padua observou a pobre Jennie a tentar acreditar no melhor cenário, tal como a querida Mrs. Ludlow a havia encorajado. Se lhe dissesse que Hadrian Belvoir não tinha nenhuma relação com ela, Jennie provavelmente acreditaria. – O anúncio era sobre o meu pai. Foi cometido um erro. – Evidentemente que sim. Tenho a certeza de que sim. – Sei que vai ser absolvido. – Eu também sei que sim, se tem razões para pensar nisso. Sinceramente. Teria sido imaginação sua ou Jennie tinha-se afastado? Não deu um único passo, mas uma ligeira mudança de posição tornou Jennie mais distante. Exibia um olhar preocupado e o seu sorriso tranquilizador era polido e forçado. Remexeu dentro da bolsa e endireitou as luvas. – Tenho mesmo de me apressar e regressar. Tenho aula depois do almoço. – Jennie... Jennie parou. – Gostaria muito de ser tão corajosa como a Padua. Corajosa o suficiente para enfrentar o mundo. Corajosa o suficiente para ser diferente. Para pensar de modo diferente. Mas não o sou. – Não tem de ser. – Não? O seu pai... É o tipo de julgamento que todos os jornais acompanham. Palavra por palavra. Quando começar, ele vai ser infame. – E eu também. É isso que está a dizer, não é verdade? Jennie não se podia dar ao luxo de também ser contaminada. Não podia correr mais riscos com esta amizade. Padua sentiu profundamente aquele golpe, mas não podia censurar a amiga. Os olhos de Jennie encheram-se de lágrimas. – Tenho mesmo de ir. Afastou-se, de expressão destroçada. – Lamento muito, Padua. Lamento tanto. * – Está pronta? – perguntou Ives. Estavam sentados na sua carruagem, a duas ruas dos aposentos do pai de


Padua na Wigmore Street. Tinham passado além do edifício para garantir que viam uma cabeça loura junto à janela do primeiro andar. – Estou pronta, mas o Ives é que vai ter de gritar. Não me parece que a minha voz chegue muito longe. – Vou certificar-me de que ela ouve. Por cada dia que esta história continuava, a situação dele tornava-se cada vez mais insustentável. Estava muito mais envolvido do que alguma vez teria achado possível e queria simplesmente que tudo acabasse. Padua saiu da carruagem. De postura rígida, caminhou em direção à Wigmore Street. Mentalmente, Ives seguiu-a até à porta do edifício e pelas escadas acima. Só então se fez ao mesmo caminho. Aproximou-se do edifício e detetou Mrs. Trenholm à sua janela. Ela espreitou cá para fora e depois entrou novamente, saindo do alcance da sua vista. Ele subiu as escadas como que no encalço de uma presa esquiva. Encontrou Padua junto à estante do apartamento do pai a passar os dedos pelas lombadas. Parou e retirou um pequeno e fino manual escolar. Azul, desta feita. Virou-o ao contrário e abanou-o. – O que está a fazer? – perguntou ele. – A certificar-me de que não lhe escapou dinheiro. Já que aqui estou, achei que podia aproveitar para ver que outros dos meus livros também cá estão. Encontrar aquele dinheiro fora o primeiro passo do caminho que o conduzira aonde estava naquele preciso momento. Não se arrependia de nada, mas uma renúncia à honra tornava sombrio o estado de espírito de qualquer homem. Ives apontou para o chão. Hora da representação. – Miss Belvoir, chegou a hora de nos entendermos como deve ser. – Sobre quê, senhor? Ives levantou a voz. – Penso que tem em sua posse as provas que procuramos sobre o seu pai. Tenho a certeza. Se não me disser o que encontrou, esta história vai correr mal para o seu lado. – Não faço ideia de que está a falar. – As placas, Miss Belvoir. O equipamento – rugiu ele. – Ele disse-lhe onde as podia encontrar. Puseram na cela dele um homem para os vigiar aos dois. Ele relatou uma conversa, cheia de sussurros e instruções através das grades. O seu pai fez de si cúmplice e, se não revelar tudo, acabará na forca com ele. – O senhor é um fanfarrão. Não sabe nada de nada.


– Então é porque há alguma coisa para saber! Padua contou até cinco. – Mesmo que houvesse... e não estou a dizer que haja... haveria possibilidade de eu negociar a liberdade do meu pai, se eu o revelasse? – A liberdade dele? Espero bem que não. Alguma misericórdia, quem sabe. Para ele e para si. Sabe onde está, não sabe? O equipamento utilizado para imprimir as notas. O local onde o dinheiro falso é guardado enquanto vai sendo introduzido a pouco e pouco na economia. Conte-me já. – Se eu tivesse essas informações, esperaria muita misericórdia antes de as entregar. E também precisaria de mais garantias do que apenas a sua palavra. – A minha palavra é o máximo que poderá conseguir. – O senhor crê seguramente que mais não é necessário. Não concordo. Não temos mais nada a dizer um ao outro. Por favor, agora saia. Ninguém o convidou a entrar, mas agora sou eu quem o convida a sair. Ives aproximou-se de Padua. – Foi esplêndida – sussurrou ele. – Zanguei-me a sério consigo. O seu tom foi muito despótico. Não me custou nada. – Esperemos que a senhora lá em baixo não tenha perdido pitada. – E se estivermos errados? E se ela não tiver nada que ver com toda esta história? – Nesse caso, teremos de encontrar outra forma de descobrir quem tem. Deu-lhe um beijo. – Tenho de ir. Acabou de me pôr fora de casa, lembra-se? Desceu as escadas com passos pesados e fez uma cara bem séria quando saiu do edifício. Afastou-se a passos largos e depois esperou por Padua na carruagem. Ela demorou algum tempo a chegar. Ives foi ficando aborrecido e, depois, preocupado. Por fim, Padua apareceu ao virar da esquina. – O que esteve a fazer? – exigiu ele saber. – Acabei de pesquisar os manuais escolares. Falharam-lhe vinte libras. – Padua agitou a bolsa. – Que descuido o seu. – Não era o momento certo para isso. – Foi um momento excelente. Entre o momento em que saiu e em que eu saí, mais alguém abandonou a casa. – Padua subiu para a carruagem. – Acho que tinha razão sobre ela. Ives acomodou-se no outro assento. – Esperemos que sim. Jante no quarto esta noite. Vou ter consigo cedo, para o


caso de termos sido bem-sucedidos. Nessa noite, ficaram de vigia. Padua jantou e depois jogaram às cartas. Quando se fartaram, leram. As horas passavam devagar. Ninguém lhe veio bater à porta do quarto. Não chegaram mensagens. Padua concluiu que o seu quarto tinha espaço suficiente para uma, mas não duas pessoas. Queria dizer, a menos que estivessem os dois na cama. Mas não se podiam distrair dessa forma. Padua apreciava o simples facto de estar com Ives. Tinha esperança de que ele sentisse o mesmo em relação a ela. Deu conta de que aquela era a situação em que haviam estado mais tempo na companhia um do outro, desta forma, sem sequer falar, partilhando um companheirismo silencioso. Gerara-se uma intimidade caseira que ela apreciava. Guardou o momento dentro de si como uma recordação para mais tarde, noutra fase da vida, quando precisasse de sentir um pouco de aconchego. Depois da meia-noite, Ives começou a ficar inquieto. Padua percebeu que ele começara a duvidar de que o assunto se desenvolvesse tão rapidamente como havia suposto. Nessa altura, quase parecia que o quarto se tornara mais pequeno. Um Ives em paz consigo mesmo ocupava menos espaço do que um Ives agitado e impaciente. Não se comportou, na verdade, de modo diferente, mas o seu espírito espumava e borbulhava. Já tinham começado a desistir e a pensar que não seria naquela noite, quando se ouviu alguém a arranhar a porta. De sobressalto, ficaram os dois alerta. Ives deslocou-se silenciosamente para a parede atrás da porta e depois acenou. Tinham ensaiado o que ela deveria fazer e dizer, pressupondo que as exigências seriam as previstas. Padua abriu uma frincha da porta e espreitou. Estava um homem do lado de fora. Um desconhecido. A porta que dava para as escadas continuava totalmente aberta. Ele entrara do mesmo modo que ela, e Mrs. Lavender não teria conhecimento. Ele soubera onde a encontrar. Soubera-o através de alguém dentro daquela casa. – A senhora é filha do Belvoir. – Falou baixo, com um sotaque cerrado da Cornualha. – Quem é o senhor?


– Isso não importa. A senhora tem uma coisa que nos pertence, ou pelo menos sabe onde está. Vou precisar que me dê essa informação. – Não sei de que está a falar. – E fez menção de fechar a porta. A bota dele, grande e pesada, impediu-a. Empurrou-a para a abertura no chão. Debruçou-se mais perto. – Não vai querer arranjar sarilhos. Meia dúzia de pedaços de ferro e cobre não vão ajudar o seu pai. Se os entregar, só vai garantir que ele é mesmo enforcado. – E a que tenho então direito, se os entregar a si? Os olhos dele estreitaram-se. – O que quer dizer com isso? – O senhor acha que eu tenho alguma coisa que é do seu interesse. Se eu lho der, conto receber alguma coisa em troca. – Está a chantagear-nos? – Pareceu incrédulo. – Estou a negociar. São estas as minhas condições. Quero duas mil libras. Das verdadeiras, não daquelas que vocês imprimem durante a noite. É um bom negócio para vocês. Refazer a atividade do nada custar-lhes-á muito mais. Ele coçou o queixo. – Vou ter de falar com os outros sobre isto. Regresso amanhã ou num dos próximos dias. Uma levíssima palmadinha no cotovelo fez com que Padua recuasse o suficiente para ver Ives pelo canto do olho. Estava a abanar a cabeça. Padua pensou rapidamente. – Se tem de fazer isso, então não é quem toma as decisões. Diga-lhe, quem quer que seja, que negociarei apenas com ele, para que possamos despachar este assunto rapidamente. – Não é assim que ele gosta de fazer as coisas. – É a única maneira a que vai ter direito. Se ele não aceitar até ao final da semana, eu entrego tudo ao magistrado local e tento a minha sorte. O homem abanou a cabeça e fitou-a cheio de desdém. – Assim, sem mais nem menos, está disposta a vender o seu pai. Que raio de filha é? Padua sentiu o calor subir-lhe ao rosto, mas manteve a rigidez da pose e da expressão. – Daquelas que preferem ter duas mil libras em notas legítimas do que sequer trinta mil das falsificações amadoras que vocês imprimem. Quero isto resolvido até ao final da semana, caso contrário transformo-me novamente na filha digna e


respeitadora. Padua fechou-lhe a porta na cara e susteve a respiração. Nem ela nem Ives mexeram um fio de cabelo durante muito tempo. Depois, quando ele acenou, ela abriu novamente a porta e espreitou lá para fora. O homem tinha ido embora. – Acha que ele vai voltar amanhã à noite? – perguntou ela. – Daqui a duas noites, mais provavelmente três. Pareceu-me que o homem de que andamos à procura não está em Londres. Vai ter de viajar até cá. – Pelo menos não é Mrs. Lavender. – Ela ainda pode ter conhecimento de tudo. Poderá usar o dinheiro falso no escritório dela. – Ergueu uma das sobrancelhas. – Acabei de dar conta de que talvez eu possa descobrir se assim é. Ives deu a volta a Padua e começou a desapertar-lhe o vestido. Ela esperou até ele acabar. – Parece-me que não precisarei de proteção esta noite. Ou até daqui a duas noites, segundo o que disse. Virou-a para que ficasse de frente para ele. Olhou para baixo, com as mãos ainda nos seus ombros. – Habituei-me, mas partirei se assim o desejar. Ela não queria tal coisa. Tinha recorrido a todas as suas forças para dizer aquilo. Também ela se tinha habituado a tê-lo ao lado dela. Temia bem que em demasia. Tudo se tornara normal. Expectável. Questionava-se sobre se daí em diante alguma vez conseguiria dormir sem o braço dele por cima dela a noite inteira. – Se não se importar com aquela cama estreita e com a água fria nas primeiras lavagens da manhã, fico contente se ficar. Mais tarde, quando Padua pensava que ele estava a dormir, embora ela permanecesse acordada a armazenar memórias, ele falou por entre aquele espaço de tranquilidade. – Quero que amanhã à noite fique na Langley House. – Não tem a certeza de que estarei segura aqui? – Não é isso. Estou verdadeiramente convencido de que nada acontecerá durante pelo menos dois dias. – Nesse caso...? – Seria bom usar uma boa cama durante uma noite. Padua não conteve o riso. – O quê? Não acha esta confortável? Não anda a dormir bem? – Não é propriamente no sono que me sinto limitado.


– Eu diria que conseguiu desenvencilhar-se mais do que bem noutros aspetos, meu senhor. – Foi, não foi? – Soava satisfeito consigo mesmo. – Uma mente com recursos encontra sempre uma solução. Contudo, não deixa de ser necessária uma noite de conforto. Por si, quero eu dizer. Juntamo-nos aos outros para um bom jantar e ficará lá como convidada. – Não me importaria de receber mimos por uma noite. – Ótimo. Vamos alimentá-la opiparamente e deitamo-la numa cama sob cortinados encantadores, rodeada de almofadas macias. E eu passarei a noite a mimá-la sem misericórdia. Ives deitou-se de lado e encostou as costas de Padua contra o seu corpo. Ela aninhou-se e sentiu a prova de que ele não dormiria tão cedo. Beijos nas costas garantiram que também ela não o faria. Aquele braço possessivo foi-se deslocando até que a mão conseguiu acariciar-lhe os seios, continuando as carícias cada vez mais abaixo, até lhe levantar a camisa de noite. Toques experientes e eficientes excitaram-na rapidamente. Quando estava tonta de prazer, ele dobrou-lhe um dos joelhos para a frente do corpo e pressionou, entrando nela. Padua sorriu ao receber a tão apreciada plenitude. – Tantos... recursos. – Mais do que imagina. Veja, vou mostrar-lhe. – Demonstrou como conseguia chegar facilmente aos seios e a todo o corpo e como toda a frente do corpo dela continuava ao seu dispor. – Que maravilha – conseguiu ela dizer, apesar da respiração curta e ofegante. – Malandrice a sua deixar um dos melhores para o fim. – Não é propriamente o fim, Padua. Muito mais tarde, quando estavam uma vez mais entrelaçados e com ele verdadeiramente a dormir, ela questionou-se sobre se ele se estaria a referir à forma como se tinham unido ou ao momento em que teriam de se separar.


CAPÍTULO 22

–A

cho que está na hora de dar uma voltinha lá fora – anunciou Gareth. – Isto foi um verdadeiro banquete e, de repente, sinto-me corpulento. – A Eva disse que foi aqui o Ives quem pediu metade disto tudo – disse Lance. – Estava a apetecer-me alguns dos meus velhos pratos favoritos. A Eva foi muito amável ao dizer ao cozinheiro para me fazer a vontade – disse Ives. – Lamentavelmente, acabei por saciar a minha vontade em demasia. Vou contigo, Gareth. Podemos ir rua abaixo a bambolear como dois velhotes. – Eu cá vou apreciar o meu porto e depois vou retirar-me – disse Lance. – As senhoras já foram, por isso entretenho-me sozinho. Lá fora, onde o ar estava fresco e húmido, Ives e Gareth passearam no meio da neblina. As casas no outro extremo do quarteirão surgiam fantasmagóricas, vislumbrando-se apenas uma luz difusa de algumas janelas e as suas formas sombrias derramando-se no nevoeiro. – A Eva está felicíssima por teres convencido Miss Belvoir a vir visitar-nos – disse Gareth. – A tua mulher tem sido muito amável com ela. Nem todas as mulheres seriam, depois de... – Depois de te encontrar na cama dela? – Sim. E depois de ter conhecimento do caso do pai. Continuaram a caminhar lentamente e viraram a esquina. – Até que ponto estás comprometido, Ives? – perguntou Gareth. – Até ao pescoço. – É mais grave do que perderes o favor da Coroa? – Muito mais grave. – Aquilo que eu e o Lance tirámos daquela cocheira não era, por si só, incriminador. Mas a verdade é que nunca referiste o que estava dentro da caixa que arrastaste dali para fora.


– Pois não. E não me perguntes. – Estás a arriscar muito por esta mulher. O Lance acha que perdeste a cabeça. – De certa forma, suponho bem que sim. Mas não da forma a que ele se refere e não de uma maneira que alguma vez ele pudesse compreender. Mas tu, sim, creio eu. Gareth mirou-o longamente e depois travou-o, pousando uma mão no seu braço. – Sou a última pessoa com direito a dar sermões. Não tenho o direito e... – Tens todo o direito, se é que alguém tem. Tu e o Lance. E também conseguirás provavelmente ser mais sensato do que ele. Gareth riu-se baixinho, mas depois ficou sério. – Estive sempre de fora. Sei quais são as possibilidades, vendo as coisas desse ângulo. Tu nunca estiveste nessa posição. Estás a pensar manter esta relação quando o julgamento começar? Mesmo sendo filho e irmão do Aylesbury, isso não te vai ajudar grande coisa se o fizeres. O escândalo vai ser inacreditável. Tudo o que fizeste com ela, por ela, será analisado, esmiuçado e dissecado até que acabarás por abominar a simples ideia de pôr o pé fora de casa. Gareth tinha razão. Há um ano, talvez Ives tivesse superado a situação com bravura. Seguro na sua honra, teria resistido a tudo. Mas agora já não tinha esse porto seguro. E poderia nunca mais voltar a tê-lo. – Há alguma saída para a situação? – perguntou Gareth. – Ela acha que sim. Tentou acabar tudo comigo. E vai fazê-lo outra vez. – Nesse caso, se calhar, durante algum tempo... – Acontece que ela não tem conhecimento daquela caixa. Fiz uma escolha naquela noite e não posso, não quero, voltar atrás. A relação amorosa com a filha de um criminoso tornou-se o menor dos meus males. De humor sombrio, Gareth prosseguiu o passeio. Já quase tinham dado a volta ao quarteirão quando Ives retomou a conversa. – Passei a maior parte da noite a tentar decidir se te pedia uma coisa. – Espero que saibas que podes pedir qualquer coisa. – Não te precipites. Vai arrastar-te para dentro desta história, mais do que eu desejaria. Dei voltas e voltas à cabeça para encontrar uma alternativa, mas não há nenhuma. Tenho de ter total confiança no homem envolvido. Tirando tu e o Lance, não há ninguém que preencha esse requisito. – Espero que não queiras que eu cometa assaltos na estrada. – Não propriamente. Preciso que vigies aquela casa nas próximas noites. Mas, desta vez, de pistola.


Gareth não era temerário a ponto de ignorar as implicações. – Só eu? O Lance... – O Aylesbury não deve envolver-se mais. E não estaria de todo envolvido, se não se tivesse metido naquela noite. – Ele meteu-se à brava naquela noite, não foi? Especialmente depois de o deixarmos, parece-me bem. Ives sorriu com o trocadilho malicioso. – É verdade que ele referiu o seu sacrifício extremo. – Só regressou na manhã seguinte às dez da manhã. Quantas meninas tem Mrs. Lavender? Dez? Doze? Não acredito que tenha usufruído de todas, ou achas? – Esforcei-me por não tentar imaginar. Vou só imaginá-lo a cambalear em direção ao quarto até cair de exaustão. Riram-se e Ives sentiu-se grato pela capacidade que Gareth tinha de alumiar mesmo a noite mais escura. – Vou limpar a pistola – disse Gareth quando entraram em casa. – Basta dizeres-me onde, quando e o quê. Lá estarei. Por ora, vou deitar-me. – Acho que vou fumar um charuto antes de sair. Gareth fez uma careta. Aproximou-se e inclinou a cabeça bem junto à de Ives. – As escadas da criadagem são um acesso mais prático ao quarto dela. E mais discreto. Ives entrou na biblioteca, preparado para fazer tempo enquanto fumava um charuto e procurava as escadas dos criados. Mas não encontrou a sala vazia, como esperara. Lance continuava ali sentado, num cómodo cadeirão junto à lareira, com o porto numa mesa ao alcance da mão. – Pensava que te tinhas retirado – disse Ives, tirando um charuto da caixa e preparando-o. – Estive a pensar. – E não consegues fazer isso nos teus aposentos? – Preferi fazê-lo aqui. Importas-te? Sim, importava-se. Agora teria de esperar por Lance. Tinha à sua espera uma cama muito grande e muito confortável, com uma mulher encantadora e muito solícita lá dentro. Não queria submeter-se aos caprichos de Lance quando, em vez disso, podia estar com Padua.


Lance fez um gesto preguiçoso na direção de uma cadeira próxima, convidando-o a sentar-se. Ives serviu-se de porto e levou-o, juntamente com o charuto, até à lareira. Instalou-se. Aquilo podia levar horas. – Miss Belvoir estava encantadora esta noite – disse Lance. – Também achei. – A Eva estava contente por ter cá outra mulher. – É muito provável que se entedie connosco. Lance manuseou o copo com os dedos e depois olhou para Ives. – Sabias que Miss Belvoir tem estado a viver num quarto no cimo da casa de Mrs. Lavender? Ives quase asfixiou com o fumo do charuto. Pigarreou. – Quem te disse isso? – A Susan. É a menina que me entreteve enquanto lá estive. Fez-me toda uma série de revelações. – Estiveram à conversa? A ideia era estarem a dar umas cambalhotas. – Íamos conversando por entre as cambalhotas. Nunca fizeste isso? Ou limitas-te a ficar para ali deitado, calado, enquanto recuperas? – Estou sobretudo espantado por saber que passaste aquele tempo todo só com uma delas. Presumi que era tua intenção espalhar a preferência ducal por todos os cantos da casa. – Era esse o meu plano, mas quando a Susan me fez saber que não seria avessa a ignorar muitas das regras niquentas de Mrs. Lavender, achei que o melhor mesmo era manter o rumo. Ives contava que Lance começaria agora a perder-se numa nostalgia sobre a sua visita ao antro da sua juventude. Mas não, não ia acontecer. – Ela disse que Miss Belvoir se tinha apresentado a todas. Que se sentou com elas à refeição. Que disse que o pai era sócio e que agora também ela o era. Não sou uma pessoa picuinhas, Ives. Não me cabe a mim pregar sermões... – Pois não. – Ainda assim, será boa ideia trazê-la para aqui com a Eva a morar cá em casa? Para alguém que nunca deixou nenhuma das suas mulheres sequer aproximar-se da família, a tua cegueira face a princípios básicos de decoro com esta madame é deveras preocupante. – Ela não é uma madame. – Então a Susan estava enganada? Ives lançou uma grande baforada de fumo. Lance esperou, todo ele curiosidade.


– É muito complicado – disse Ives. – Demora o que quiseres. Tenho a noite toda. – Mas eu não. Lance mirou o teto. – Ah. Mas é claro. O jantar foi apenas um prelúdio. A sinfonia ainda vai começar. Bem, vai lá então, vai lá bater o ritmo com a tua batuta. Podes explicar tudo amanhã. – Não tenho de te explicar nada. – Ai isso é que tens. Assaltámos aquele edifício, por exemplo. Roubámos uma coisa. Tu roubaste outra. Tenho a certeza de que é tudo importante. Tudo, se tiver que ver com Miss Belvoir. E penso que ainda haverá mais uma aventura, porque tudo tresandou a tarefa por terminar. Nem sequer tentes deixar-me de fora do desenlace, quando esse momento chegar. Transformo-te a vida num inferno se o fizeres. Ives apagou o charuto. Lance podia mesmo transformar a sua vida num inferno. Até o conseguia sem sequer fazer por isso. Se ele se empenhasse... – Só por curiosidade, como pagaste a Mrs. Lavender, Lance? – Com uma nota de vinte libras. – Quer dizer que ela te deu troco em notas, certo? Lance riu-se. – Muitas, sim. Não há uma prostituta em Londres que valha mais do que duas ou três. – Tens essas notas contigo agora? Lance refletiu e depois vasculhou os bolsos. Colocou várias notas amarrotadas na mesa a seu lado. – Penso que são estas. Estavam no meu toucador. Devo tê-las atirado para lá quando voltei. Ives pegou nas notas. Alisou-as e depois levou-as até ao candeeiro. – Acredito que sejam verdadeiras – disse Lance. Ives pousou-as novamente na mesa. – Verdadeiras e não impressas naquela pequena prensa que encontrámos na cave, quero eu dizer – acrescentou Lance. – Parecem todas genuínas. Lance perscrutou-as. – Tens a certeza? Alguns destes tipos são especialistas com o buril. – Tenho a certeza. – Ives avançou na direção da porta. – Agora estou de saída.


Lance limitou-se a sorrir-lhe. – Já que não consegues dormir, Lance, poderias gastar o teu tempo a fazer alguma coisa mais útil do que ficar aí a ruminar sobre a minha inexplicável falta de decoro. Poderias, por exemplo, limpar as tuas pistolas. Padua ouviu a porta do quarto de vestir a abrir-se. Ouviu passos de botas e depois viu a sombra alta no limiar do quarto. A sombra desapareceu e ouviramse sons abafados vindos do aposento ao lado. O seu corpo começou a ficar sensível ao toque do tecido dos lençóis contra a sua pele. Os seios intumesceram e ficaram firmes, à medida que a expectativa a provocava. Ives reapareceu e caminhou até à cama. Estava nu. Ficou de pé, ao lado dela. Atirou o lençol para trás e olhou para ela. Ela também olhou para ele. A luz do pequeno candeeiro banhava-o com um brilho dourado que definia a sua forma com pontos de luz e sombras profundas. O verde-escuro dos seus olhos assemelhava-se à folhagem de uma floresta densa. O seu rosto, sempre tão belo, ostentava os ângulos austeros que refletiam o seu desejo. Padua tentava imaginar que jogo ele iria querer jogar ou se haveria outro novo. Ficou surpreendida quando Ives se juntou a ela e a envolveu num abraço trivial. Os seus olhos percorriam lentamente o rosto dela, enquanto os dedos torciam preguiçosamente uma mecha do seu cabelo. – Não há em si nada que seja comum, Padua. Nem sequer a sua beleza. Não o disse como uma adulação fácil, mas sim, pelo contrário, pensativamente, enquanto a submetia àquele olhar atento. Ela acreditou que estava a ser sincero, apesar de nunca ninguém antes de Ives lhe ter dito que era bela. Ives ergueu-se apoiado no braço para poder observar a ponta dos seus dedos a percorrer o corpo dela. Padua esperara uma paixão dura, e até violenta, por isso esta carícia sinuosa encantou-a. E depois percebeu o que ele estava a fazer. Estava a criar memórias, muito à semelhança do que ela fizera já várias vezes. Estava a guardar aquela noite na sua cabeça num local onde a pudesse revisitar. Comoveu-a profundamente ver a sua tentativa de o fazer. Ives não tinha apreciado quando ela cortara a relação. E talvez tivesse havido mais do que apenas orgulho ferido, conforme ela presumira. Beijou-a lentamente, profundamente, maravilhosamente. O coração de Padua


expandiu-se e encheu-se até doer. As carícias dele começaram a guiá-la para fora do mundo do dia a dia, em direção à existência rara que ela vivia quando ele controlava o prazer dela. Ives agora já a conhecia muito bem, conhecia o seu corpo e sabia como tornar o prazer doce, depois enlouquecedor e, por fim, tão poderoso que estilhaçava qualquer controlo que ela tivesse sobre si mesma. Ele usou todo o seu talento, como se quisesse que, também ela, recordasse. A intimidade foi-se aprofundando a par do prazer, os dois tão entrelaçados que se tornaram um só. Inspirava-lhe tanto respeito quanto comoção, tanto que o seu coração se agarrou desesperadamente aos dois, da mesma forma que Padua se agarrou a Ives. Sim, a sua mente rejubilava, aceitando tudo o que experimentava, mesmo a doce angústia que tingia a beleza com um toque de tristeza. Ives juntou-se a ela quando os primeiros tremores do êxtase dela a martirizaram. Fletiu-lhe os joelhos e depois levantou-lhe as pernas por cima dos ombros dele. Apoiado nos braços, olhava para baixo, entre os seus corpos, e observava-se a penetrá-la. Fechou os olhos perante a sensação. – Sim. – A afirmação dele fez eco com a dela. Ela observou o que nele acontecia. Nunca antes o fizera. Observou como o prazer tanto lhe endurecia a expressão como a transformava. Observou como o seu olhar tanto a possuía como a adorava. Viu como Ives procurava sinais para saber o que ela queria e tratava de responder a essa necessidade. Sim, respirou Padua enquanto Ives se movimentava dentro dela. Sim, agora em voz alta, quando ele começou a impelir com mais força. Padua encostou as palmas das mãos no peito dele acima dela e o coração de Ives palpitava dentro do corpo dela. Sim, gritou Padua quando o delírio se instalou e o seu espírito se estreitou a ponto de não o ver senão a ele. Depois deixou até de o ver e o prazer apertou e rebentou e gritou. Ives esperou por ela do outro lado, com o coração a bater violentamente sob a palma da mão dela, a respiração em farrapos. Desceu-lhe as pernas e baixou-se sobre ela com um beijo infindável no pescoço. Padua preencheu o seu abraço com ele lá dentro, a cabeça com o seu odor e os seus sons, a alma com o seu cuidado. Ama-o, Padua? Não é o mesmo que desejo ou paixão. Sim, não é o mesmo, mas não é assim tão diferente. Não se separam. Ama-o? Sim.


CAPÍTULO 23

D

uas noites seguidas, Ives e Padua esperaram. Duas noites seguidas, Gareth esteve de vigia ao beco. Duas noites seguidas, nada aconteceu. Ao terceiro dia, Ives tomou uma decisão relativamente a um assunto com que andava a debater-se. Foi até ao Ministério do Interior e visitou Strickland. – Queres apanhar peixe graúdo? Os olhos de Strickland iluminaram-se. – Claro que sim. Nada faria a minha carreira avançar mais depressa. Tens um debaixo de olho? – Tenho. Mas envolver-te neste assunto implica algumas condições. Strickland fez uma careta. – Vem aí um monte de conversa de advogado, não é? – Alguma. Contudo, vou confiar mais na tua amizade do que na nossa relação formal. Nisso e na tua palavra de cavalheiro. – Será melhor dizeres-me que condições são essas. De repente, sinto-me inquieto. – Tenho motivos para acreditar que os cúmplices do Belvoir darão à costa esta noite. E terei todo o prazer em ter-te comigo quando isso acontecer. Strickland mirou-o. – E qual é a condição? – Se eu estiver errado, nunca vais comentar o que vires ou ouvires. Strickland refletiu. – Essa condição é preocupante. Ives encolheu os ombros. – Como queiras. Mas depois não digas que nunca te dei nada. – Voltou-se para a porta. – Vá, espera. Dá-me lá um minuto para pensar bem. Ives deu. – Quão má pode ser a situação, se estiveres errado?


– Não será pior para ti do que para mim. – Por um qualquer motivo, isso não me tranquiliza. – A tua escolha é simples, tal como a minha. Podemos deixar um homem ser julgado por crimes que superam de longe a sua culpa ou podemos tentar levar os verdadeiros criminosos à justiça. Lembras-te do que é a justiça? É a razão por que fazemos aquilo que fazemos. Estamos em Inglaterra e esta palavra antes significava alguma coisa. Strickland enrubesceu. – Não me dês sermões. Não o vou tolerar quando sinto nas entranhas que estás a tramar alguma coisa que não devias. – Tens razão. Eu não devia pregar sermões. Em vez disso, vou apelar aos teus desejos mais básicos de promover a tua carreira. O rosto de Strickland corou ainda mais. – O que tenho de fazer? – Vais à Langley House esta noite, às oito horas. O meu irmão Gareth estará lá. Ele dir-te-á o que fazer. Voltaram a esperar, mas desta vez foi diferente. Padua sentia alguma coisa no ar, uma excitação suspensa. Ives estava mais alerta, escutando todos os sons que atravessavam as paredes. – Mrs. Lavender retirou-se depois do jantar, dizendo que estava doente – contou Padua. – As criadas dizem que ela parecia estar bem, mas que depois se queixou de um mal-estar do estômago. Ives mantinha o olhar fixo de onde estava sentado, olhando para nada, pensativo. À espera. – A Emily Trenholm estava nesse jantar? – Talvez. Consta que Mrs. Lavender ficou aliviada por a Emily conseguir substituí-la no escritório. Ives levantou-se e foi até à porta. Olhou lá para fora e depois fechou-a. – Acho que os acontecimentos vão decorrer de forma diferente do que esperamos. Acho que o homem que procuramos não vai entrar por esta porta. – Então, como? – Tinha acalmado o nervosismo com a ideia de que Ives estaria ali mesmo ao lado dela quando aquele homem chegasse. – Se a Emily assumiu o lugar de Mrs. Lavender, acho que ele vai entrar pela porta da frente, como um cliente. – Alisou o cabelo com os dedos. – Volto em dois minutos. Se alguém aqui vier, não saia do quarto. Empate-os se eles


tentarem atraí-la a sair. Ives esgueirou-se lá para fora, deixando-a ralada. Esta situação era de longe muito pior do que a espera da última vez. Tinha o estômago às voltas. Sentiu uma onda de alívio quando Ives regressou. Ele olhou para ela e agachou-se a seu lado, perto da cadeira onde estava sentada, para lhe poder ver o rosto. – Não tem de fazer isto. Podemos pensar noutra forma. – Que outra forma existe? Tenho de o fazer. Caso contrário, não terei nada para negociar em defesa do meu pai. – Não gosto de pensar que sente medo. – Um bocadinho de medo não me fará mal. Bem fundo no meu coração, a verdade é que não sinto tanto medo como parece. Sei que o Ives não andará muito longe. Sei que não é tolo a ponto de me prejudicar. Ele agarrou-lhe na mão. Levantou-se e debruçou-se para a beijar, mas estacou quando foi interrompido por um raspar na porta. Ives saiu do campo de visão, encostando-se à parede. A tremer, Padua abriu uma pequena frincha na porta. Do lado de fora estava uma criada. – A Emily pede que desça, minha senhora. Até ao escritório. Está a ter problemas com um cliente, com o pagamento. Com Mrs. Lavender ausente, ela quer a sua ajuda e conselho. Padua quase ordenou que dissesse a Emily para pedir a Hector que pusesse o cliente na rua, quando percebeu que esta era a outra forma a que Ives se referira. – Diga-lhe que desço muito em breve. Tenho de me pôr apresentável. A criada afastou-se. Padua fechou a porta. – Não aceite nada de imediato – disse Ives. – Mesmo que ele lhe queira dar as duas mil libras, regateie um valor mais elevado para o manter a falar. – Mas que devo dizer, se ele quiser saber onde está o equipamento? Eu afirmei que sabia, mas não é o caso. Ives parecia dividido. – Diga que está naquela cave. – E está mesmo? – Estava. Ainda lá ficou algum papel e dinheiro falso. – E só agora mo diz? – Se não o soubesse, não teria de mentir. Poderia ser confrontada com perguntas de outras pessoas além do homem com quem se irá encontrar esta noite. Ralhe-me depois, se o desejar. Decididamente, era o que iria fazer.


Padua fechou os olhos para se recompor. Não precisava de se arranjar. Já estava apresentável. Vestira-se naquela noite de modo a parecer uma comerciante próspera, não uma professora empobrecida. Ives deu-lhe uma palmadinha no ombro. Antes de abrir a porta, deu-lhe um beijo. Enquanto descia as escadas, Padua ia lutando contra o entusiasmo e o medo. Queria soar equilibrada e controlada e procurou essa voz dentro de si. Pensaria neles como alunos, decidiu. Alunos que não tinham estudado a lição. Hector montara guarda junto à porta. Antes de entrar no escritório, Padua abordou-o. – Mrs. Lavender já se sente melhor? Ele fez uma expressão sombria, de preocupação nos olhos. – Pelo menos não está pior. Pensei que fosse a comida, talvez... mais ninguém ficou maldisposto. – Chame um médico, Hector. Diga-lhe que a comida dela poderá ter sido contaminada ou envenenada. O branco dos olhos dele ficou mais saliente ao ouvir a última palavra. Hector zangado era algo digno de ser visto. – Quem? – Não sei. Chame o médico e depois mantenha-se de ouvidos atentos. Padua entrou no escritório sem pedir licença. Afinal de contas, Emily não era Mrs. Lavender. Deparou com Emily num tête-à-tête com um homem. Não era particularmente alto, usava roupa de montar e tinha o rosto por barbear. Olhos redondos e muito juntos perscrutaram-na desde o seu rosto estreito. Dava a impressão de ter cavalgado recentemente de longe. Com a intrusão de Padua, Emily parou repentinamente de falar. Parecia mais velha e mais rígida assim de perto. Sentada à janela, poder-se-ia pensar que era atraente. Agora, as linhas profundas junto à boca acentuavam o seu carácter. O queixo pontiagudo conferia-lhe uma aparência beligerante. – É este o cavalheiro que se recusa a pagar? – perguntou Padua. – Não se recusa propriamente – respondeu Emily. – Mas quer usar um cheque bancário. Padua permaneceu em pé e reparou no facto de o homem não se ter levantado, como faria um homem educado.


– Não aceitamos cheques, senhor. Em todos estes anos, Mrs. Lavender nunca o fez. Não pode haver exceções. O homem limitou-se a olhar para ela. A apreciá-la. A avaliá-la. – Se já terminou o seu assunto connosco, senhor... – começou Padua. – Ainda não terminei, Miss Belvoir. Tem na sua posse uma coisa que eu quero. E não estou a falar das prostitutas que aqui vende. – Não faço ideia do que possa ser. – Claro que faz. Mandou-me chamar. Não estou satisfeito com isso, por isso vamos lá resolver o assunto rapidamente. Padua olhou contundentemente para Emily. – Ela pode ficar – disse ele. – Embora praticamente não me tenha tido qualquer utilidade nos últimos tempos. – Arranjei aos teus homens um sítio para guardar aquilo tudo, não foi? – disparou Emily. – Pois, os aposentos de um idiota qualquer que o deixou à vista de todos. Também era suposto teres mantido aquilo debaixo de olho. Mas ficaste simplesmente a olhar enquanto eles o carregavam dali para fora. – E era suposto eu fazer o quê? Contestar? Dizer que era meu e que magistrado algum podia deitar-lhe a mão? – Podias ter ficado com a arca seguinte quando chegou, em vez de dizeres aos meus homens que os polícias tinham passado por lá. Espantaste-os sabe-se lá para onde, sem que eles deixassem indicação nenhuma de onde tinham a prensa. Isso já me custou muito. Emily espetou o polegar na direção de Padua. – Consegui que Mrs. Lavender falasse sobre o sócio dela e fiquei a saber desta aqui, ou não? Para que depois lhe escrevesses a contar que o pai estava na prisão, porque talvez ele lhe dissesse a ela o que sabia. Padua interrompeu. – O meu pai não é um idiota. O homem olhou para ela, espantado. E desatou a rir. – Está a defendê-lo, é? Olhe que bonito, vindo de uma filha que está disposta a vendê-lo por duas mil libras. – Fico satisfeita por ver que a conversa está a regressar à direção certa. Trouxe-as consigo? Ele debruçou-se. Os olhos semicerraram-se. – Antes vê-la morta a pôr-lhe duas mil libras na mão.


Ives quase rebentou com a porta ao ouvir a ameaça. A mão firme de Strickland impediu-o. Lá fora, na antessala do escritório, Lance falou. – Hoje o estabelecimento está fechado, meus senhores. Doença generalizada. Peço-lhes o favor de saírem sozinhos. O Hector está ocupado. – Porque está o Aylesbury aqui? – sussurrou Strickland. – Insistiu em vir. Quem sou eu para dizer que não a um duque? – Ele trouxe a pistola, espero que saibas disso. – Ah, trouxe? Ora bolas. Ives e Strickland encostaram novamente os ouvidos à porta. – Não farei tal coisa – disse Padua. – Não é do seu interesse fazer-me mal. Tenho o seu equipamento. Tenho as suas placas e o seu papel e uma grande quantidade de notas impressas. Se recuperar tudo, pode continuar a sua atividade. Duas mil libras é um reduzido preço a pagar pela fortuna que fará. – Não vou pagar por uma coisa que já é minha. Só precisei de saber que você estava aqui, e disposta a negociar, para perceber onde está tudo. Eu devia ter adivinhado. Ou esta tonta aqui deveria ter sabido. Estavam a trabalhar aqui mesmo, debaixo do teu nariz e tu não deste conta, Emily. Estás a perder capacidades? – Não estou por aqui muitas vezes. Nunca vou ao jardim à noite, ocupada como costumo estar. Ninguém lá vai, considerando a atividade que aqui se exerce. – Duas mil – repetiu Padua. – Por esse valor, devolvo-lhe aquilo que lhe pertence e não terei qualquer objeção, se o senhor continuar a usar aquela cave. Com exceção dos infelizes acontecimentos com o meu pai, o plano dos seus homens funcionou muito bem. – Não eram os homens dele – balbuciou Emily. – Ele obrigou-os a incluí-lo no plano e depois assumiu o controlo. Não foi isso que fizeste? – Está calada, sua meretriz caquética. – Ameaçou lançar o Governo atrás deles se eles não aceitassem. A postura de Ives endureceu. Desde que começara a escutar, algo lhe soara estranhamente deslocado em toda a conversa. E de repente percebeu o que era. Lançou um olhar furioso a Strickland. – É o Crippin ali dentro. Juro-te, se tu ou qualquer outra pessoa estiver a tentar montar uma armadilha a Miss Belvoir, eu vou... Strickland abanou as mãos.


– Ele não está a trabalhar para nós. Não está! – Isso foi o que disseste quando eu o apanhei ao pé da Langley House. – Nessa altura também não estava. Fartei-me de te dizer isso. – As coisas vão ser assim, Miss Belvoir – estava Crippin a dizer. – Neste preciso momento, tenho os meus homens a vasculhar a cocheira lá fora. Acho que vamos encontrar tudo ali, exatamente como os outros o deixaram. Nem pensar que uma mulher, mesmo uma amazona como a senhora, conseguiria carregar uma prensa dali para fora, ou uma caixa com placas, nem uma grande quantidade de papel. E também não vou precisar da sua autorização para continuar a usar a cave. Vou dizer a quem importa que a senhora me tentou vender mais notas que encontrou na propriedade do seu pai. As autoridades confiam naquilo que lhes digo, está a ver? As minhas informações vão, com certeza, pô-la na prisão ao lado daquele velho tonto. – Já ouviste o suficiente, Strickland? – perguntou Ives. Strickland anuiu. – Eu ouvi, disso não há qualquer dúvida – disse Lance. Ives rodou nos calcanhares. Lance estava a seu lado. Puxou de uma pistola de baixo do casaco. – Vou levar esta em sítio visível, para não perdermos tempo ao soco e outros que tais. Olhou sem rodeios para o punho cerrado de Ives. – Vamos lá, então. – Lance empurrou o trinco para baixo, escancarou a porta e marchou por ali adentro de pistola em riste, segurando-a bem alto, junto à cabeça.


CAPÍTULO 24 Acasa fervilhava de polícias. Alguns outros homens, cuja presença ali não era oficial, acotovelavam-se no escritório. Crippin e Emily Trenholm esperavam na sala de jantar, sob a vigilância atenta de Lance e Hector. As meninas tinham-se todas retirado para os seus quartos. – Olha o que encontrei – anunciou Strickland. Liderava um pequeno cortejo vindo do jardim. No fim da fila, Gareth mantinha uma pistola apontada aos dois homens que estavam a escoltar. – Ponham-nos na sala de jantar com os outros – disse Ives. Strickland enfiou a cabeça dentro do escritório. Fechou a porta e voltou para junto de Ives. Assobiou uma pequena melodia de espanto. – Mandaste vir o Sidmouth? – Foi o Lance. Uma cortesia, disse ele. Uma coisa entre pares. – Como eu gostava de ler a mensagem que ele enviou. – Se a memória não me falha, escreveu algo sobre o perigo iminente, tanto para a reputação do Sidmouth, como de o Ministério do Interior ficar mergulhado em excrementos até ao pescoço. Deu-lhe uma hora para aqui chegar; caso contrário, sentir-se-ia obrigado a, em seguida, escrever ao primeiro-ministro e ao Príncipe Regente, não fosse dar-se o caso de explodir um escândalo que abalasse o Governo. Strickland riu-se entre dentes. – O Sidmouth parece destroçado. Um dos agentes dele assume o controlo de um circuito de contrafação... tens de reconhecer, é obra. Acho que vou ter com ele e os meus colegas do Ministério do Interior e apreciar o espetáculo. Strickland caminhou até à porta do escritório. Desfez o sorriso antes de entrar e substituiu-o por um semblante meditativo. Lance e Gareth saíram da sala de jantar. – O Hector está aqui. Ninguém vai a lado nenhum. Tem a faca com ele – disse Lance. Olhou para a porta do escritório. Era atravessada por vozes em alto volume. – Ele veio?


– Oh, sim – respondeu Ives. – Devo ir lá ajudá-los. Tenho a certeza de que lhes vai escapar alguma solução óbvia se eu não fizer questão de a mostrar. – Eles não são estúpidos, Lance. Vão perceber qual é. – O problema é que ninguém vai querer proferi-la em voz alta. Vai soar demasiado como realmente é. Um meio-termo de honra para evitar a humilhação e o escândalo. – Se calhar um pequenino escândalo só lhes faria bem. Punha-lhes travão. O Crippin era inevitável. Mais cedo ou mais tarde, quando se lhes dá licença para violarem a lei, as pessoas acabam por fazê-lo sem autorização. – Nem tu, nem Miss Belvoir, nem o Reino se podem dar ao luxo de tal coisa. Não vá o Strickland estar a pensar em tais disparates, o melhor é eu assumir o papel do Aylesbury. Deambulou em direção à porta do escritório, abriu-a e deu a conhecer a sua presença ducal. – Cavalheiros – disse enquanto a porta se fechava atrás dele. – Que grande trapalhada, não é verdade? – Onde está Miss Belvoir? – perguntou Gareth. – Foi lá para cima, ver Mrs. Lavender. Preocupa-a que uma inocente possa ter sido lesada com o nosso esquema. – Que ousadia a deles, mandar a Trenholm pô-la doente. Ainda bem que te apercebeste de que ele afinal não subiria pela escada exterior. Para Ives, fora por um triz. Se não tivesse imaginado o plano de Crippin, Strickland e Lance encontrar-se-iam no meio do jardim quando a criada viesse buscar Padua e não estariam à espera no cimo das escadas. Fora preciso que Strickland ouvisse o que iria suceder. Precisava de uma testemunha que não fosse Padua e ele próprio. – Ali vem ela – disse Gareth, olhando para as escadas. Padua estava a descer. – Leva-a para o jardim. Vou informá-los de que estás lá fora, caso alguém pergunte por um dos dois. – Diz ao Strickland para vir falar comigo antes de ir embora. Ives conduziu Padua para o jardim. Já não estava lá ninguém. Ela tinha observado uma grande confusão ali fora antes, quando os polícias andavam a espreitar nos arbustos e retiraram uma grande caixa para fora da cocheira. Sentaram-se num banco de pedra, encostados a um buxo. Ives retirou a casaca e colocou-a em volta dos ombros de Padua.


– Acharam tudo? – perguntou ela. – Ainda estava tudo ali. Pensei em tirar tudo de lá, mas decidi que seria mais fácil retirá-la a si. Mas a verdade é que essa se revelou uma tarefa quase impossível. – Envolveu-a com um braço. – Mrs. Lavender está fora de perigo? – O médico acha que sim. Poderia ter sido trágico. Os venenos não são coisa que se deva usar descuidadamente. A Emily poderia muito facilmente ter posto quantidade suficiente na comida para a matar, e não apenas para a incapacitar. – Tem conhecimento dessas coisas? – Trata-se apenas de química. Padua encostou a cabeça ao ombro dele. Já se acalmara, mas seria preciso algum tempo até ela se sentir verdadeiramente em paz. – O que acontece agora? – Estão lá dentro de casa homens que nada mais querem do que ver toda esta história desaparecer. Farão qualquer coisa para que ninguém saiba a verdade sobre o Crippin. – E podem fazê-lo? – Se assim o quiserem. Os polícias serão obrigados a jurar sigilo. O Hector e Mrs. Lavender e as meninas serão ameaçados. Ao Crippin será proposta a forca ou o exílio. A Emily Trenholm terá direito a uma escolha semelhante. Se o Hadrian Belvoir alguma vez chegar a julgamento, o que me surpreenderia, já que se isso acontecer toda a história vem ao de cima, será considerado uma vítima da sua própria baralhada confusão. – O meu pai não é baralhado nem confuso. – Pois não. Mas será um homem livre, Padua. Não é o tipo de desfecho em que devamos ser picuinhas. Padua agarrou-se às suas palavras com esperança. Acabaria tudo assim? Seria possível? – E se aqueles homens não fizerem nada disso? E se decidirem mandar toda a gente para a prisão ou para a forca? – Isso seriam más notícias para o Crippin e para Mrs. Trenholm. – E o meu pai? – Esse é o que se sai melhor desta história. Consta que tem um excelente procurador no processo que se assegurará de que seja feita justiça. – Receio bem que tenha os seus colegas em demasiada conta. Não pode ter a certeza de que esse homem faça as coisas de modo a que se faça justiça. – Posso ter toda a certeza, já que o procurador sou eu. Ela endireitou-se e voltou-se para ele.


– Pensava que se tinha escusado. – Parece que me esqueci de pôr as cartas no correio. – Quando decidiu isto? – Depois de falar com ele. Vi que ele era o pior tipo de réu para um procurador. É incapaz de dissimular. Exala honestidade e uma inocência infantil. Além do mais, revela precisamente a quantidade de baralhamento suficiente para aparentar ser incapaz de cometer um crime conscientemente. O júri ia adorá-lo. Se ele se defendesse a si próprio, no melhor dos casos a minha arte dramática teria as mesmas hipóteses que ele de obter a condenação. Neste preciso momento, a minha posição como procurador está a influenciar os acontecimentos. O Strickland está a dizer-lhes que nunca ninguém me convencerá a omitir metade da história. Padua tomou-lhe a mão e beijou-a. – Obrigada. Outra pessoa poderia deixar-se convencer nesse sentido. Não podia ter sido fácil ele tomar esta decisão. O seu sentido de honra deve ter-se insurgido. Provavelmente ainda se questionava se ela planeara tudo de modo a que, efetivamente, ele desse menos do que o seu melhor. Ives puxou-a novamente e envolveu-a nos seus braços. – Naquele dia ele disse-me outra coisa, Padua. Acho que deve saber o que ele disse sobre si. – Ele falou sobre mim? – Depois de ouvir a história dele, perguntei-lhe porque preferia morrer a deixar que a Padua soubesse acerca daquela casa. Afinal de contas, há anos que ele não demonstrava grande interesse em si. Padua sentiu um nó na garganta. As desilusões haviam sido muitas, e ainda a magoavam. – O que disse ele? – Ele chorou, minha querida. Explicou que não foi por falta de amor que manteve a distância. Foi porque olhar para si lhe partia o coração. É igualzinha a ela, disse ele. É extremamente parecida com a sua mãe. Ele nunca deixou de a chorar, nem de a amar. Padua conteve as lágrimas, mas ardiam-lhe nos olhos e na garganta. Ives deve tê-las sentido, porque lhe depositou um beijo reconfortante na cabeça. Passos anunciaram a presença de outra pessoa no jardim. O luar refletia-se no cabelo de Padua, clareando-o. – Aqui, Strickland – disse Ives. O homem que entrara de rompante no escritório ao lado de Ives e Aylesbury


juntou-se a eles. – Está terminado. O teu irmão revelou-se eloquente a descrever as repercussões, caso viesse a saber-se que um agente do Governo se havia tornado um trapaceiro. O Sidmouth estava pálido quando o Aylesbury acabou de falar. Estão a levar o Crippin e a Trenholm para um local de detenção até se organizar a forma de os mandar embora. – E o Belvoir? – Há quem pragueje perante o azar de ter um picuinhas como tu neste caso. Será preciso alguma arte para encontrar uma história que o magistrado engula, mas eles resolvem a coisa. – Obrigado pela tua ajuda. – Adorei cada minuto. – Despediu-se e afastou-se. O jardim ficou em silêncio. A casa também. – Acho que já foram todos embora – disse Padua. – Nesse caso, nós também podemos ir. Ives levantou-se e ofereceu-lhe a mão. – Não ficará aqui esta noite, nem mais nenhuma, Padua. Agora virá comigo. Ives levou-a para sua casa em Lincoln’s Inn Fields. O criado Vickers pestanejou apenas uma vez ao vê-la chegar, antes de anunciar que traria alguns refrescos. – Acho que o chocámos – disse Padua. – Não há dúvida de que o surpreendemos. Não trago mulheres para aqui. – Também não me devia ter trazido a mim. – Quero dizer-lhe algumas coisas e não são apropriadas numa estalagem, numa carruagem ou naquela casa. Venha para a biblioteca. Padua adorou a biblioteca. Tudo ali emanava conforto e informalidade. Cadeiras de qualidade, um divã bojudo, uma mesa grande e uma belíssima lareira enchiam uma sala bastante ampla forrada de livros. Uma parede tinha livros de Direito, mas as restantes ostentavam uma ampla seleção de volumes com encadernações de cabedal. Percorreu a sala toda, atenta ao mobiliário. Sentiu que Ives a observava. – É perfeita – disse ela. – Tem o tamanho ideal. Luxuosa, mas não opressiva como a da Langley House. Ives pegou-lhe na mão e conduziu-a até ao divã. Sentou-se e puxou-a para baixo, para o seu colo.


– Fico contente por ver que gosta. Amanhã mostro-lhe o resto da casa, para ver se também é do seu agrado. – O que importa é que seja do seu agrado. Ele esboçou um meio sorriso. O seu olhar desceu. – Ora, quem diria. Não tinha dado conta antes. – Dado conta de quê? – Devido à sua estatura, quando se senta assim, os seus seios ficam a uma altura muito conveniente. – Beijou um, para mostrar o que queria dizer. – Basta desapertar uns fechos e colchetes e posso levá-la à loucura no conforto da minha cadeira favorita. – A sua mão brincou com os botões da peliça para mostrar a que se estava a referir. – Mr. Vickers... – Maldição. Terei de esperar até ele trazer os refrescos. Até lá... – Beijou-lhe novamente o seio e afagou o outro. Padua olhou para baixo, para a sua bela mão a movimentar-se pelo corpo dela. Uma excitação de extrema satisfação começou a ronronar dentro de si. Se calhar só mais uma vez... Estava sempre a dizer isto, não estava? – Padua, agora vamos ter de falar de assuntos sérios. – Nesse caso, se calhar era melhor parar de fazer isso. Muito em breve, serei incapaz de pensar de todo. – Vou permitir-lhe alguma capacidade. O suficiente. Mas sinto-me inclinado a continuar, para que se torne mais maleável à minha vontade. – Vai propor mais um jogo? – Não se trata de um jogo, isso garanto-lhe. – Ives ergueu o olhar, fitando-a. – Já antes abordei a ideia de casamento. Na altura não quis ouvir uma proposta. Estava manchada por um sentido de obrigação. Gostaria que aceitasse ouvir uma tal proposta agora. Penso que tenho direito a isso. Na opinião dela, ele tinha direito a muito mais. – Eu escutarei. – Estamos bem um para o outro, Padua. E não apenas na cama. Sob todos os pontos de vista. Gosto da sua companhia, da sua cabeça, do seu riso. Nunca me aborreço quando estou consigo e sinto-me muitas vezes contrariado quando não estou. – Beijou-lhe o seio uma vez mais. – Roubou-me o coração, Padua. Não quero que seja minha amante. Isso não chega. Nem que seja apenas um caso amoroso. Isso não é permanente que chegue. Quero casar-me consigo, para poder amá-la para todo o sempre. Padua encheu-se de luz e felicidade. Pousou a mão no rosto dele e beijou-o.


– Foi um pedido perfeito, Ives. Muito melhor do que eu esperava ouvir. Nem uma palavra sobre a má-fama que ainda será associada ao nome Belvoir, mesmo que o meu pai seja libertado. Nem sequer uma alusão a todos os problemas que lhe causei. – Nada disso importa se me disser que sim. – Não sei bem se deveria. A expressão de Ives fechou-se. – Se não sente o mesmo, compreendo. Contudo, com o tempo, quem sabe... – Oh, não. Oh, céus. Não pense que não sinto o mesmo. Amo-o há tanto tempo. Por vezes não consigo conter o meu amor e só quero gritar ou chorar de tanto o sentir. É só que... o meu pai é dono de um bordel e esteve em Newgate durante um mês, suspeito dos piores crimes. O Ives poderá conseguir poupar-lhe a ele sofrimento no futuro, mas o passado já está escrito com tinta indelével. – Vai ser precisa mais do que meia dúzia de manchas de tinta para me dissuadir, minha querida. Ou para que a minha posição seja afetada. E se eu estiver errado, a escolha é minha, parece-me bem. Tê-la comigo vale isso tudo, como já valeu tanta outra coisa que aconteceu. O coração de Padua transbordava de amor. Nunca pensou que fosse possível ser tão feliz. – Se eu disser que sim, é só assim? Ficamos noivos? – O resto são só formalidades. – Nesse caso, sim. – Ela beijou-o. – Sim! Uma tosse discreta interrompeu-a. Padua olhou em volta, mas não conseguia perceber de onde vinha. – Sim, Vickers – disse Ives. – Os refrescos estão na sala de jantar, senhor. A voz vinha do lado de fora da porta. – Nós damos com eles. Agora, deve retirar-se. – Muito bem, senhor. Padua soltou risinhos no ouvido de Ives. – Acha que ele estava a ouvir? – Sem dúvida. – Ives pô-la em pé. – Vamos ver o que ele nos preparou. – Dirigiu-se a uma secretária e formou uma pilha de papel e dois tinteiros e penas. – Para que é isso? – Para as formalidades. Vickers preparara uma pequena ceia com presunto, ovos mexidos, pão e queijo. Esperavam-nos igualmente uma cafeteira e uma chaleira. Ives dividiu o


papel enquanto comiam. Colocou um tinteiro próximo de Padua e guardou outro para ele. Depois da refeição, deu umas pancadinhas no papel dela. – Os solicitadores tratarão da maior parte do acordo, mas nós devemos ter o nosso. Um acordo que aborde outras coisas além da propriedade e da mesada. Padua ficou a olhar para o seu papel em branco. – O que espera que eu faça? – Registe as suas expectativas. Qualquer coisa que queira deste casamento. Exceto o direito a ter relações por fora. Isso não aceitarei. – Eu nunca exigiria tal coisa. – Não, claro que não. É uma pessoa absolutamente leal. – Ives olhou para ela com grande seriedade. – É uma das suas melhores qualidades e uma das razões para eu a amar tanto. Esta lisonja comoveu-a. Era raro vermos algo de nós mesmos pelos olhos de outra pessoa. – E quanto a si, Ives, vai ter relações por fora? Continuará a ter as tais cantoras de ópera? Ives pegou-lhe na mão e segurou-a firmemente. Olhou-a diretamente nos olhos. – Não posso censurá-la por perguntar, apesar de me magoar que o faça. Não, não o farei, Padua. Amo-a a si. Espero que possa vir a saber quanto e quão profundamente. Agora é a minha única relação amorosa, para sempre. Prometolhe. Esta era uma expectativa que Padua não ousara alimentar. Aprendeu ali e naquele momento que o seu amor ainda podia crescer, apesar da forma como já parecia preenchê-la, porque assumiu uma nova profundidade e confiança enquanto davam as mãos naquele pacto. Padua ergueu a pena e verificou a ponta. – Todos os advogados fazem isto quanto se comprometem em noivado? – Duvido que algum o faça, mas deviam. – Mergulhou a sua pena. – Cresci numa casa que conheceu pouca felicidade, Padua. Penso que as expectativas por cumprir causaram uma grande parte desse sofrimento. Faça-me a vontade, por favor. – Apontou para o papel. Ela tentou. Tinha a cabeça tão em branco como aquela página. Ives não compreendia. Ela nunca tivera expectativas nenhumas. E dificilmente conseguia conjurar algumas de um momento para o outro. Conseguiu escrevinhar algumas coisas, mas sem convicção.


Ives, pelo contrário, escrevia sem parar. Padua relanceou uma lista que não parava de crescer. Por fim, ele pousou a pena no seu tinteiro. Puxou a folha dela e leu. – É tudo? Padua encolheu os ombros. – Um novo guarda-roupa com pelo menos quatro vestidos. Padua, quatro vestidos não fazem um novo guarda-roupa. Sou homem e até eu sei isso. – Agarrou na pena e riscou o número de vestidos. – Um guarda-roupa novo, ponto final. Agora, quanto a esta aqui, é claro que vamos garantir que o seu pai nunca ficará desprovido. Por que tipo de pessoa me toma? Contudo, verá na minha lista a exigência de que ele venda aquela casa e a sua quota-parte da sociedade a Mrs. Lavender. Garantirei que ela paga um preço justo. – Aceito essa condição. Tê-la-ia registado eu mesma, embora me parecesse que essa formalidade dizia mais respeito ao meu pai. – O resto é fácil de aceitar. Demasiado fácil. – Ives pousou o papel. – Não há aqui nada sobre uma ida ao continente. Sobre estudar numa universidade. Desistiu desse sonho? – Pensei que era obrigada a fazê-lo, se me casasse. – Querida, o primeiro ponto da minha lista é que não vá sem mim. É claro que vai fazê-lo na mesma. A próxima primavera será uma boa altura para nos fazermos ao caminho, não acha? Padua deu um salto e envolveu-o nos seus braços. Partilharam um longo beijo que a deixou a pensar se as mesas de jantar alguma vez eram usadas do mesmo modo que as mesas das salas matinais. Incapaz de parar de sorrir, sentou-se novamente e tirou-lhe a lista da mão. Começou a ler. Após algumas questões práticas, a lista fez um desvio noutra direção. Para pontos que nunca eram incluídos em acordos de casamento, mas que se calhar deveriam. Padua continuou a ler. – Afinal sempre vai ter as tais negociações, não é? Ele limitou-se a observá-la. Padua percorreu as variações amorosas que já conhecia. As coisas tornaramse um pouco obscuras a partir daí. Refletiu tentando perceber uma referência. Quando finalmente se fez luz, lançou-lhe um olhar hesitante. Ele respondeu com um sorriso encantador e olhos marotos. Depois de percorrer aquilo tudo, Padua pegou na pena. Riscou três pontos. Entregou-lhe o papel.


– Consegue viver com isso? Ives não olhou para o que ela acabara de rejeitar antes de dobrar o papel. – Consigo viver com qualquer coisa, desde que seja consigo e enquanto me amar. Levantou-se e puxou-lhe a cadeira. Içou-a em braços. – Venha comigo agora, minha rara e belíssima amada. Vou mostrar-lhe o quarto mais importante desta casa. Padua abraçou-lhe o pescoço e ele arrebatou-a.


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