Madeline Hunter - Os Libertinos 01 - Uma Reputação Perigosa PT (Janeiro 2018)

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Ficha Técnica Título: UMA REPUTAÇÃO PERIGOSA Título original: HIS WICKED REPUTATION Autor: Madeline Hunter Edição: Carmen Serrano Tradução: Ana Sofia Pereira Revisão: Catarina Sacramento Capa: Alexandra Rezende Imagem da capa: Lee Avison/Trevillion Images Fotografia da autora: Studio 16 ISBN: 9789892340852 Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201 © 2015, Madeline Hunter Edição publicada por acordo com The Berkley Publishing Group, uma chancela da Penguin Publishing Group, uma divisão da Penguin Random House LLC. © 2018, Edições ASA II, S.A. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor edicoes@asa.pt www.asa.leya.com www.leya.pt

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


CAPÍTULO 1

J

á passava há muito do meio-dia quando a criada levou o tabuleiro do pequeno-almoço ao quarto opulento de Hendrika. Gareth Fitzallen concluiu a leitura do esboço final de um difícil contrato comercial ao mesmo tempo que a serviçal afastava as cortinas e abria a janela. Hendrika ronronou, espreguiçou-se e esfregou os olhos. Gareth reuniu as folhas de papel velino que espalhara sobre o corpo dela para melhor as organizar. A criada afofou e amontoou uma variedade de almofadas. Hendrika soergueu-se e recostou-se nelas, expondo o seu corpo luxuriante e nu à criada, a Gareth e possivelmente à família proprietária da casa estreita e alta do outro lado do canal. – Precisa de mais alguma coisa? – perguntou a criada. Os olhos baixos dela permitiram-lhe, ainda assim, um relance que se demorou no peito nu de Gareth. Ela ergueu o olhar e fitou-o durante um segundo por entre as pestanas. As narinas dela estremeceram. A criada estava a tornar-se um problema. Gareth não fazia nada para a encorajar, mas era inevitável que Hendrika visse um dos sorrisos dissimulados ou olhares ardentes dirigidos a ele. Hendrika dispensou a mulher e a seguir serviu café nas duas chávenas. – O que são todos estes documentos? – O carregamento marítimo para Inglaterra de Honfleur. Acordámos os termos da venda. Só faltam as assinaturas do administrador do património do conde e a minha. E a sua também, evidentemente. Embora fossem claros como os da maior parte dos habitantes de Amesterdão, os olhos de Hendrika podiam tornar-se muito escuros quando ficava pensativa.


Naquele momento, estavam pretos. – Tem a certeza de que o seu irmão, o duque, garante o seu pagamento? O Elbert daria voltas na campa se soubesse que permiti que levassem o espólio dele de um porto estrangeiro para outro somente a crédito. Ele pousou o café no tabuleiro, afagou gentilmente um caracol longo do cabelo loiro dela chegando-o para o lado e inclinou-se para depositar um beijo de distração no abundante globo do seu peito. – Depois de tudo o que partilhámos neste último mês, suspeito que o seu falecido marido iria considerar a nossa parceria em relação a este carregamento a menor das suas preocupações. Dedos fortes alongaram-se por entre o cabelo de Gareth e depois prenderam a cabeça dele naquela posição, encorajando-a a perturbar ainda mais o fantasma de Elbert. Ela contorceu-se, quase derrubando o tabuleiro e soltou um risinho gutural característico. Depois, empurrou-o para longe e retomou o seu pequenoalmoço, com os seios agora pesados e duros e as extremidades protuberantes. Barrou o pão com manteiga. – Que compota prefere? – Cereja. Tinham vindo dois jornais com o tabuleiro. Ela pegou no holandês e passoulhe o que vinha de Paris. Ele trincou o pão enquanto lia as notícias da política francesa. De súbito, sentiu um aperto forte no braço. Hendrika exclamou algo em holandês. – Gareth, meu amor – sussurrou ela, depois de respirar fundo. – Veja o que está aqui. Consegue ler? Quer que traduza? Ele pegou no jornal. Ela acariciou-lhe o braço enquanto ele lia o anúncio curto que indicara. Depois de ler cinco palavras, deixou de reparar na presença dela ali ao lado. – Céus. – Foi a vez dele de parar e prender a respiração para depois expirar. O seu meio-irmão Percival, o quarto duque de Aylesbury, estava morto. Morrera há mais de uma semana. Subitamente. Abruptamente. Inesperadamente. – Isto é um choque. Ele não era um homem de saúde débil. Longe disso. Ainda por cima era jovem. Tinha apenas trinta e três anos. – O que se entende por «o inquérito está aberto»? – perguntou ela, suavemente. – É apenas uma formalidade. Tenho de regressar, é claro. Imediatamente. Tenho de ajudar os outros e...


– Com certeza. Com certeza – murmurou ela, compassivamente. Ele voltou as folhas do jornal até encontrar o horário dos paquetes de Amesterdão para Londres. Os talheres e a loiça tiniram enquanto Hendrika regressava à sua refeição. Ele colocou o jornal de lado no topo da pilha de papéis velino. – Vamos precisar de assinar estes contratos hoje, agora. – Gareth apontou para eles. – Vou enviar uma mensagem aos advogados para nos encontrarmos. Ela examinou atentamente o pão enquanto espalhava uma grande quantidade de compota. – Com o seu irmão morto, isso será sensato? O nome dele convenceu o conde a conceder-te uma compra a crédito. Convenceu-me igualmente a isso. A isso e a outras coisas. Ele estendeu o corpo ao lado dela e deu-lhe uma dentada no pão. – Agora, há outro meio-irmão que é o duque, que gosta ainda mais de mim. Deus nos livre de ele cair morto também, mas se assim for, ainda há mais um a seguir. Nunca se esgotam. Nada mudou. – Ele deu-lhe um beijo tranquilizador. Ela tornou o beijo longo e depois olhou-o nos olhos. – Mas agora vai partir e não me parece que volte. Por isso, tenho de garantir que sou paga de uma forma ou de outra. Mergulhou a pequena faca romba num dos frascos brancos e azuis e depois espalhou a compota de cor grená à volta do seio. – Cereja, creio que foi isso que disse que preferia esta manhã. – Pegou no frasco com uma mão, a faca na outra e fez um gesto para ele afastar o tabuleiro. Com cuidado e devagar, desenhou círculos de compota à volta do outro seio, salpicou os mamilos com dois grandes pingos e depois pintou riscas ao longo do corpo. – Aqui também, julgo eu. – Abriu de par em par as coxas roliças e pintou um pouco mais abaixo. – Oh, sim, e aqui também. Esta manhã vai ter de se mostrar mais pecaminoso do que nunca para não me preocupar com o seu crédito no dia de hoje. Ele deixou-a terminar como queria. A seguir, içou-se por cima dela e começou a lamber a compota para que ela não pensasse em absolutamente nada durante muito tempo.


CAPÍTULO 2

E

va puxou subitamente a trouxa disforme que trazia mais para cima sob o braço. Uma brisa abrupta ameaçou revelar o objeto encoberto por uma serapilheira velha. Ela parou para envolver melhor o tecido grosseiro a toda a volta da moldura de gesso excessivamente trabalhada. Quando escolhera aquele quadro, não pensara no quão difícil seria escondê-lo e transportá-lo. Enquanto se afadigava com o seu fardo, manteve um olho numa figura em movimento na estrada. Mais um desconhecido. Com o crescimento da cidade próxima de Birmingham e com todas as pessoas desalojadas pelas colheitas fracassadas, desconhecidos a deslocarem-se pelos caminhos rurais não era algo digno de nota. Porém, aquele provocou-lhe um ligeiríssimo alarme, por razões que não conseguiu identificar. Talvez ele circulasse assaz devagar para um homem que tivesse algum destino. Na verdade, parecia que tinha abrandado para não passar pelo caminho de acesso à casa antes de ela o percorrer até ao fim. Não era a primeira vez que dava por si a perguntar-se a respeito das intenções de um homem desconhecido. Na semana passada, cruzara-se com outro, dessa feita na vila. A diferença é que estava certa de que também o vira mais tarde, na vereda perto da sua casa. Repreendeu-se por estar a inventar fantasmas. A sua atual missão deixava-a nervosa, nada mais. Não devia estar na posse daquele quadro e a culpa tornava-a excessivamente cautelosa. Continuou a andar. Olhou para trás, para a casa que acabara de deixar, ao mesmo tempo que se aproximava do ponto em que o caminho que levava a esta se cruzava com a estrada. Alguns anos antes, quando metade das árvores que


ladeavam aquele caminho particular ainda não tinham morrido, era provável que não fosse possível ver muito mais do que chaminés daquele ponto. Agora, o estado degradado do edifício era visível a todos os que por lá passassem. Assemelhando-se mais a um grande pavilhão de caça do que a uma casa senhorial propriamente dita, consistia em alas de pedra unidas a um núcleo rústico de estilo Tudor. Trinta anos antes, o estilo podia ter sido considerado como deixado ao acaso. Naquele momento, as autoridades do bom gosto achálo-iam encantador. De cada vez que visitava a casa, podia ver mais estragos. Naquele dia, uma boa parte do muro do jardim tinha desaparecido, e as suas pedras haviam sido indubitavelmente surripiadas para construir alguma dependência numa das melhores propriedades da Langdon’s End. Mais dia menos dia, estava à espera de dobrar a esquina na estrada e descobrir nada mais do que um monte de pedras. Eva virou então para a estrada, a arrastar com dificuldade aquela moldura estúpida, tentando não olhar repetidamente para trás para o homem que agora caminhava atrás dela. De repente, ouviu algo que lhe paralisou os dedos. Um cavalo aproximava-se. Pelo som dos cascos, galopava na sua direção e aproximava-se da curva da estrada adiante que a tornaria visível. Examinou rapidamente o fardo que levava para garantir que nada estava à mostra e depois continuou em frente com passadas longas, na esperança de parecer uma mulher no seu dia a dia normal, com intenções perfeitamente honestas, completamente legais, de modo nenhum incorretas. Em poucos segundos, um enorme cavalo preto, com a cabeça retesada contra as rédeas e os dentes arrepanhados como um garanhão saído do Inferno, aproximou-se rapidamente dela. Com o clamor dos cascos e uma respiração resfolegante, aquela cabeça diabólica depressa se tornou cada vez maior. O ponto em que o cavaleiro devia ter abrandado ao ver alguém na estrada passou. Continuou a galopar. Alarmada, deu um salto para o lado para lhe dar espaço, amaldiçoando o tratante que colocara em risco a sua vida de forma imprudente devido ao seu capricho. Ato contínuo, o cavalo empinou-se. As patas dianteiras deram patadas no ar e o animal soltou um relincho longo e furioso. Sentiu os pés e tornozelos envolvidos por um líquido frio. Olhou para baixo e viu que caíra no meio de uma poça profunda de água. Soltou de novo uma imprecação. O mais provável era os sapatos ficarem estragados. – As minhas sinceras desculpas. – A voz veio do alto, no exato momento que ela erguia um pé para aferir os estragos. Estava encharcado e seguramente


estragado. – É um pouco tarde para a cortesia – disparou ela. Concentrou-se em colocar os pés de determinada forma para sair da poça sem dar mais um passo dentro dela. O fardo que carregava não lhe facilitava a tarefa. Mal conseguia ver por cima dele. Talvez se o erguesse acima da cabeça... – A casa distraiu-me. Sei que aproximar-me de si tão depressa é indesculpável, mas não parecia estar aqui ninguém. – Se estivesse atento à estrada, saberia que não era esse o caso. – Ela olhou para trás a fim de apontar para a outra pessoa que estava na estrada, mas esta tinha desaparecido. Talvez tivesse seguido por um atalho no meio da mata. A saia revelou-se muito estreita para as longas passadas que precisava de dar. Não teve outra escolha senão arrastar-se vagarosamente ao longo da poça até uma das extremidades. Uma mão estendeu-se à frente do rosto dela, a segurar no quadro. – Permita-me aliviá-la deste peso, para que não o deixe cair. Ela afastou a mão com uma palmada e alcançou a erva seca. O cavalo arquejou e estremeceu, provavelmente a decidir se a mordia. Ela ergueu o olhar ao longo do seu flanco considerável, pelas longas pernas e bonitas botas que o agarravam com força. Subiu ainda mais o olhar, pelo elegante casaco de montar de cor grená até ao plastrão atado de modo despreocupado. Por fim, o olhar dela alcançou o rosto do homem que a interpelara. A fúria que sentia abandonou-a momentaneamente. Não durou mais do que três segundos, estava certa disso, mas naquela pequeníssima pausa, não foi apenas a sua raiva que se suspendeu. A respiração dela fez o mesmo, assim como o movimento das folhas na brisa e talvez até a rotação do planeta. O cavaleiro era belíssimo. Não havia outra palavra para o descrever. Bonito seria demasiado vago. Atraente seria desadequado. Cabelo preto espesso, olhos escuros e pestanas que se arqueavam de forma perfeita, tudo isto adornava umas feições que eram ao mesmo tempo harmoniosas e simétricas. O único defeito, a boca bastante ampla, mal podia ser considerada uma desvantagem, uma vez que lhe dava possibilidades expressivas e uma qualidade sensual indiscutível. Mas, por outro lado, ele não precisava da boca para esse fim. O seu aspeto e atitude, a própria forma como se sentava naquele cavalo eram sinónimo de sarilhos para uma mulher. É claro que a maior parte das mulheres o julgaria demasiado delicioso para lhe resistir. Suspeitava que ele sabia disso. Como poderia não saber, quando patetas como ela o fitavam boquiabertas ao vê-lo pela primeira vez?


Aqueles olhos escuros examinaram-na de forma tão inequívoca como ela, mas com muito mais divertimento do que Eva sentira no seu exame. Era provável que se tivesse dado conta da pausa de três segundos. Eva duvidava que ele a julgasse uma reação invulgar à sua presença. – Fi-la estragar os sapatos. Insisto em pagar-lhe outro par. A culpa fora dele e devia pagá-los, mas Eva reagiu mal à oferta. Levou a mal o facto de ele ter reparado que ela dificilmente se poderia dar ao luxo de perder um par de sapatos. Detestou que procurasse submetê-la à sua caridade. – O único pagamento que lhe peço é que não ande a galope com esse cavalo nesta estrada enquanto admira a arquitetura. Impressiona-se facilmente por isso, se aquela casa o distraiu. Ele voltou-se para olhar para a casa. – Acho-a bonita. Ela reposicionou o fardo que trazia nos braços. – No exterior, talvez seja apelativa para quem prefere o sentimentalismo em detrimento da sofisticação. Porém, no interior, está ao abandono. Não tenho memória de alguém lá viver e o proprietário não a conserva em bom estado. É um paraíso para vagabundos e ladrões e as pessoas da vila mais próxima ficariam felizes se ardesse e desaparecesse. Talvez um dia isso aconteça. – Ela esperava que não. Aquela casa fora-lhe muito útil nos últimos cinco anos. Depois de puxar o quadro mais uma vez para cima, retomou o seu caminho na estrada. Ouviu o cavalo a mover-se. A seguir, sentiu a sua respiração junto ao ombro. Sobressaltou-se e quase deu um salto para o lado de novo. – Não me permite ajudá-la a transportar isso? Ou, melhor ainda, dar-lhe uma boleia para onde vai? Isso parece ser um embrulho pesado e esses sapatos devem ter ficado desconfortáveis. Ela olhou para trás por cima do ombro, e ergueu os olhos para aquele rosto espantoso agora marcado por um sorriso insinuante. Não, aquela boca não era de modo nenhum um defeito. Masculina e firme, transformava-o num homem sedutor em vez de simplesmente belo. Ele fitou-a de modo caloroso. Talvez demasiado caloroso. Isso devia-a ter alarmado novamente. Em vez disso, sentiu pequenas palpitações dentro de si. Com dificuldade, reprimiu um rubor e um gemido afetado. – Não, obrigada. Eu sou capaz. – Não precisa de ter medo. Prometo portar-me bem. Sou extremamente inofensivo. A expressão dele, nitidamente divertida com as suas palavras, expunha a


mentira da sua afirmação tranquilizadora. Venha comigo e mostrar-lhe-ei prazeres deveras pecaminosos, prometiam aqueles olhos provocadores. – Não tenho medo de si, meu senhor. O seu cavalo, porém, deixa-me atemorizada. Podia afastá-lo um pouco de mim? Ele ficou um pouco para trás, mas seguiu-a na mesma. – Vai para a vila? Fica um pouco longe. Pelo menos um quilómetro e meio. – Não aceitaria uma boleia sua nem que tivesse de caminhar dez quilómetros. Por favor, siga o seu caminho para eu seguir o meu. Ele fez um aceno de aquiescência. Deu meia-volta ao animal negro, trotou ao longo da estrada e depois até meio do caminho que dava para a casa. A seguir, deixou-se ficar a observá-la. Desistira do jogo porque alguma coisa lhe despertara mais o interesse do que namoriscar com ela. Eva olhou para trás mais uma vez antes de a curva na estrada afastar o cavaleiro para fora de vista. Parecia magnífico, com a brisa a soprar-lhe para trás o cabelo, o perfil encantador rente ao céu e um olhar absorto e pensativo. Se fosse uma boa artista e não apenas uma copista sofrível, figurava-o numa composição majestosa repleta de uma ação arrojada. Em vez disso, pintou a imagem dele na sua memória. Os sapatos estragados não a incomodaram no caminho de quase um quilómetro até à casa da sua família. Nem tão-pouco o peso incómodo do quadro. Sorriu o caminho todo. Como é que o dia de uma pobre solteirona podia ser mau quando o homem mais belo que já vira namoriscara com ela?

Que típico de Percy deixar a propriedade degradar-se. Percy sabia que ele jamais venceria o caso no Tribunal da Chancelaria e enquanto os seus advogados deixavam o caso arrastar-se em tribunal, deixara simplesmente o tempo desvalorizar o objeto da disputa. Gareth incitou o cavalo a galopar vigorosamente para ultrapassar a frustração que sentia. Quando passou as rédeas do garanhão ao moço de estrebaria numa estalagem, o pior da sua raiva havia-se dissipado. No dia seguinte, seguiu a cavalo para Coventry com o bom humor quase completamente recuperado. Tinha imensa prática em engolir o desapontamento e aprendera cedo que se permitisse a Percy perturbar o seu estado de espírito dias a fio estaria a conceder-lhe uma vitória. Para além disso, Percy estava morto. Bastava esse pensamento para tornar o dia muito mais radioso.


Desmontou o cavalo à frente de uma casa elegante de tamanho acima da média. Aquela não estava ao abandono, mas, por outro lado, Percy nunca conseguira tocar no que o pai de ambos dera a Mrs. Johnson. Gareth esperava que o último pensamento de Percy tivesse sido de fúria pela forma engenhosa com que o pai planeara aquilo. Mrs. Johnson recebeu-o na sua sala de estar delicada. Ele entrou com passadas largas, inclinou-se e beijou-a. O braço dela cercou-lhe os ombros para que o beijo se transformasse num abraço. – É tão bom ver-te, Gareth. Parto do princípio de que soubeste da notícia. Ele instalou-se numa cadeira. – Regressei assim que li a notícia, mãe. Que notícia terrível. Simplesmente terrível. A mãe manteve uma expressão séria, mas os olhos cintilaram com o tom irónico do filho. – Sim, terrível. Ele ainda era tão jovem. Ora, quantos anos teria, trinta e três? E foi igualmente deveras súbito e inesperado. – Uma tragédia. – Já regressaste a Merrywood? – Decidi vir vê-la primeiro. Sigo para lá amanhã de manhã. Ela estendeu a mão e bateu-lhe ao de leve no braço afetuosamente. Ele raramente tinha de explicar muita coisa à mãe. Tinham formas de pensar semelhantes, do mesmo modo que possuíam uma fisionomia semelhante. Os olhos, o nariz e até mesmo a boca tinham sido herdados dela. Se Allen Hemingford, o terceiro duque de Aylesbury, tivesse menos confiança nela, podia ter desconfiado que Gareth não era o seu bastardo. Em vez disso, aceitara a reivindicação da amante e cumpriu o contrato que tinha com ela. Aquele contrato, elaborado quando ela tinha dezoito anos, não lhe providenciara apenas aquela casa, uma carruagem, criados e um rendimento vitalício. Astuta, ela insistira igualmente que os filhos gerados pelo duque fossem incluídos nesse contrato e autorizados a utilizar o apelido Fitzallen da maneira antiga: o bastardo de Allen. Da mesma forma, Percy nunca pudera interferir com o rendimento que Gareth recebia. A casa perto de Langdon’s End era uma questão diferente. Aylesbury deixara-lhe aquele legado num codicilo ao seu testamento. Percy contestara o legado antes de o corpo do pai de ambos esfriar na campa. Apesar disso, o seu rendimento não chegava perto do da sua mãe. Com este, podia viver como um cavalheiro solteiro com um nível decente de estilo. Mas


naquelas circunstâncias, quase a totalidade desse rendimento ia para os advogados que litigavam pelo seu caso no Tribunal de Chancelaria. Por isso, ele encontrara uma forma de o aumentar. Felizmente, herdara a argúcia da mãe e fazer isso não fora muito difícil após terminar os estudos que também haviam sido providenciados por aquele contrato. Um olho para a arte tinha ajudado. Outros cavalheiros podiam não o convidar para as suas festas e jamais lhe apresentariam as suas irmãs e filhas, mas os laços de sangue dele implicavam que podiam confiar nele para encontrar um comprador quando tinham uma coleção para vender. Com a economia num caos nos tempos que corriam, uma grande quantidade de obras de arte estava a mudar de mãos. Era o tipo de ocupação que não aparentava ser puro comércio, uma vez que ele fazia tudo como um favor para todas as partes envolvidas. – Acabaste de regressar, segundo afirmaste. – Mrs. Johnson falou ao mesmo tempo que servia o café que uma das criadas trouxera. Tinha direito a quatro serviçais. Tinha existido um Mr. Johnson durante um breve período de tempo. Talvez durante uma semana completa, estimava Gareth, antes de o homem pegar no pagamento substancial que lhe fora feito e embarcar para a América. Quando o duque conhecera Amanda Albany, ela não era casada. Era uma inocente. Aquilo que o duque queria fazer não se fazia com raparigas solteiras. Por esse motivo, arranjou-lhe um casamento com um capitão do exército de nome Johnson. Mas não fora na cama matrimonial de Johnson que a jovem Amanda Albany se deitara na sua noite de núpcias. – Desembarquei há menos de uma semana. Porquê? Isso interessa? – Pode interessar. Tenho estado a corresponder-me com o velho Stuart. Recordas-te dele, o lacaio manco? Ele e eu mantivemos a relação de amizade desde a morte do Allen. Ele diz que existe uma questão qualquer em torno da morte do Percival. O juiz de instrução deixou o assunto inteiro em aberto e estão a ser levadas a cabo investigações pelo magistrado. – Alguém forneceu informação que insinuasse que se passou alguma coisa sinistra? – Não, mas o caso fez franzir algumas sobrancelhas. Uma enfermidade digestiva súbita com uma dor extrema e uma morte rápida... Bom, eu também franziria as sobrancelhas perante esse cenário. Daí o anúncio no jornal em Amesterdão de que tinha sido aberto um inquérito. – Ficou preocupada que eles se voltassem para mim, não foi? – A inimizade entre os dois já durava há muito e as questões levantadas por


aquele legado podia levá-los a questionarem-se. – Não tem nada a temer. Eu estava fora do país. Posso prová-lo. A expressão dela suavizou-se. De repente, parecia mais nova do que os seus quarenta e oito anos. Era uma mulher tão inteligente quanto impressionante. Teria sido uma esplêndida duquesa para o duque, se ele não fosse já casado com a mãe de Percy e se Amanda Albany não tivesse sido a filha do mordomo. A alteração do estado de espírito dela dava a entender que ela se preocupara bastante a respeito das suas ações ultimamente. Era terrível pensar que a nossa própria mãe nos julga capaz de um assassínio. Por outro lado, dadas as circunstâncias certas, provavelmente pensaria o mesmo dela. – Presumo que o Lancelot e o Ives estarão em Merrywood – disse ela. – Por causa da transição do título de nobreza para o Lance e das questões a respeito do património. – Espero que sim. Quero estar com eles. – Agora que Lance era o duque, era presumível que estivesse envolvido no inquérito. Ives devia encarregar-se das questões relativas ao património, uma vez que era advogado. Não estava a mentir ao afirmar que queria estar com os seus meios-irmãos. Ao contrário da relação que tinha com Percy, Gareth mantivera desde o início uma relativa boa relação com eles ao longo dos anos. E, é claro, seria Lance a decidir agora a respeito daquele caso no Tribunal da Chancelaria. – Vai haver um novo enterro para a semana – declarou a mãe. – Um mausoléu foi rapidamente construído, seguindo as ordens de Percy no seu leito de morte. Agora que está pronto, vão desenterrá-lo para o colocarem lá. É uma monstruosidade, de acordo com Mr. Stuart. Tenho um desenho aqui algures. Vou procurá-lo para tu te preparares. É tão medonho que nos perguntámos se ele estava determinado a ser lembrado por alguma coisa, ainda que fosse por ser o duque que foi enterrado no sepulcro mais feio do cemitério de família. – Ele nunca teve bom gosto. O pai sempre disse isso, o que o enfurecia. – Ele falou de forma absorta, com a mente ocupada com outras coisas. Se os magistrados estavam a fazer perguntas relativamente à morte de um duque, não era provável que o novo duque dedicasse alguma atenção a assuntos de menor importância, como o de uma pequena propriedade retida nos trâmites do tribunal. Maldição, até na morte Percy ia continuar a ser um imbecil. – Fui até perto de Langdon’s End – declarou ele – antes de vir para cá. A expressão indulgente da mãe repreendeu-o. Ela achava que ele devia esquecer o assunto. Sendo a filha de um mordomo e amante de um duque, não tinha uma inclinação para o direito de propriedade, ainda que tivesse o direito de


usufruto da casa em que estavam. – Ele deixou-a cair em ruínas. Não existe nenhum caseiro. Está ao abandono e a transformar-se num esqueleto vazio. Duvido que reste alguma mobília que possa ser usada. Fui informado de que os gatunos têm andado ocupados. – Entraste lá? – Estou proibido, lembra-se? Mas andei a rondar o exterior e espreitei por algumas janelas. Ele sabia que contestar o testamento não seria válido, por isso assegurou-se de que quando eu finalmente tomasse posse da casa, esta não tivesse praticamente qualquer valor. – Talvez o destino tenha intervindo antes de isso acontecer. O Lance não tem qualquer motivo para prosseguir com o litígio. – Talvez. – Gareth ergueu-se. – Se não se importar, vou subir. Estou na estrada há demasiados dias. Preparou-se para sair, mas a voz da mãe deteve-o à porta. – Lady Chester escreveu-me. A sobrinha dela ainda suspira por ti e perguntase quando regressarás a Londres. A sobrinha de Lady Chester era uma mulher atraente presa num casamento infeliz com um visconde grosseiro. – Quando regressar, irei visitá-la, mas ela ficará desapontada se estiver à espera de algo mais. – Amas e abandonas as mulheres muito depressa, Gareth. Não é de admirar que a tua reputação não seja a melhor. – Ter-me-ia demorado mais na cama da senhora, se ela não tivesse começado a tentar comprar-me. Um homem não permite que a sua amante o sustente, se tiver algum orgulho. Fiz um favor a ambos ao pôr um ponto final naquilo. – Não foste tão exigente com Lady Dalmouth. – Era muito mais novo na altura e Lady Dalmouth possuía muitos méritos para além dos seus presentes. – Em particular, Lady Dalmouth possuía uma experiência sexual que poucos homens têm o privilégio de desfrutar. Com a lascívia própria da idade, rancoroso e preparado para enfrentar o mundo, ele fora um aluno solícito e quase não reparara que se transformara na meretriz da senhora até à manhã em que ela lhe ordenara que mudasse de casaco porque não aprovava a cor em questão naquele dia. – Existem muitas mulheres que são sustentadas pelos amantes. Eu consegui manter o meu orgulho de forma bastante satisfatória. Não vejo porque terá de ser diferente para os homens, se duas pessoas partilharem uma afeição. Gareth ferira os sentimentos da mãe. Não fora essa a sua intenção, mas bastava


uma hora na sua presença para parecer voltar a ter quinze anos, com ela a tentar planear-lhe a vida. – A mãe não era apenas uma mulher sustentada pelo duque. Era a sua verdadeira esposa, diga o que disser a lei. Escreva a Lady Chester e diga-lhe que me encantei com uma viúva de Amesterdão, para a sobrinha não ficar à espera de que eu corra para os braços dela se decidir ir até à capital.


CAPÍTULO 3

parecem-me secos – declarou Rebecca. Bateu ao de leve e com –Amim cautela na superfície do quadro com as pontas dos dedos e depois examinou-as para ver se tinha saído alguma tinta. – Esse precisa de mais uma semana – murmurou Eva entre dentes, com a atenção presa sobretudo no quadro que levara para casa três dias antes e que lhe custara um par de sapatos. – Os outros não. – Não posso ir até Birmingham de cada vez que um quadro fica pronto. Não podemos dar-nos a esse luxo. Vou esperar até esses todos secarem e depois transporto-os todos de uma só vez. Rebecca suspirou de forma audível e deixou-se cair em cima do divã. Eva sentiu-se mal por causa da irmã. Em comparação com a excitação proporcionada por Birmingham, a casa de ambas nos arredores de Langdon’s End e a própria vila de Langdon’s End não ofereciam muitos motivos de interesse. O lugar onde nascemos e somos criados jamais o oferecia, se tivéssemos um espírito aventureiro. Rebecca suspirava pela novidade, por viagens e pelos mundos que lhe eram revelados pelas suas leituras. Há já um ano que Rebecca implorava para ir a Londres. Eva apaziguava a sua impaciência deixando-a acompanhá-la nas visitas periódicas a Birmingham quando levava os seus quadros a Mr. Stevenson, o proprietário de uma papelaria que os colocava na montra da sua loja à venda. A irmã recostou-se indolentemente no divã, uma das poucas grandes peças de mobília que não tinham sido vendidas. Fez um bonito beicinho, mas, afinal,


todas as expressões de Rebecca pareciam adoráveis. O cabelo caía-lhe abaixo dos ombros, numa torrente espessa de caracóis brilhantes tão sumptuosos que ninguém repararia que o vestido que estava a usar fora remendado em quatro sítios diferentes. Por vezes, Eva invejava Rebecca, o que não era justo. Rebecca não tinha culpa de ser bela. Mas parecia-lhe injusto que Rebecca houvesse ficado com a versão melhor de tudo o que tinham em comum. Os olhos azuis de Rebecca possuíam a cor e a profundidade de um oceano límpido e perfeito, ao passo que os de Eva somente poderiam realmente ser designados como azuis nos dias mais soalheiros. O espelho refletia-lhe uma cor indeterminada demasiado pálida para ser digna de nota, qualquer que fosse. E o cabelo de Rebecca tinha a cor viva e complexa do mogno, enquanto o de Eva se parecia com o castanho uniforme e insípido do tronco de uma árvore. Como se isso não bastasse, Rebecca era igualmente a mais esperta. Se não demonstrava a astúcia necessária para a sobrevivência era apenas porque Eva a protegia de experiências que exigiam tal argúcia. Uma rapariga tão encantadora como Rebecca merecia melhor do que aquilo conhecia até então. Porém, para além daquelas viagens de um dia a Birmingham, Eva não fora capaz de dar a Rebecca a possibilidade de algo melhor. Contudo, tinha um plano e aquele quadro a que dera agora início fazia parte dele. Eva voltou a sua atenção de novo para a tarefa que tinha em mãos e perguntou-se se devia retirar a moldura pesada de gesso antes de avançar. Teria de voltar a colocá-la depois, mas receava deixar cair tinta em cima dela caso não o fizesse. Parecia engolir a pintura a óleo que decorava. Nunca percebera como é que os proprietários de obras de arte não eram capazes de ver de modo tão claro como água quando uma moldura diminuía o valor do tesouro que exibia. Depois de decidir deixar ficar a moldura, colocou o painel de pintura no cavalete ao lado da cadeira. O painel era maior do que o quadro quase oito centímetros em altura, mas não podia comprar outro. Teria de preencher o espaço no alto, prolongando as árvores e o céu. – Porque escolheste esse tema desta vez? – perguntou Rebecca, agora de pé junto ao seu ombro. – Não sei quem irá comprar a tua cópia. O tema não é absolutamente nada grandioso. O quadro mostrava três rapazinhos a brincar perto de uma fonte. De faces rosadas e vestidos nos seus melhores trajes, era provável que representassem um retrato de grupo informal, mas podia ter sido pintado meramente para satisfazer um capricho do artista.


– É uma obra de Gainsborough, Rebecca. Alguém o vai comprar unicamente por essa razão, dado que o estilo dele continua a ser popular. E os rapazinhos irão despertar o interesse das mães e avós de maneiras que deuses gregos não conseguiriam. – Só se os deuses estiverem vestidos. Pinta-os nus e essas mães vão gostar deles quanto baste. – Rebecca! – Por favor, não fiques chocada. Se as irmãs Neville têm livros de gravuras de estátuas nuas na biblioteca, penso que é seguro afirmar que as mulheres não se importam de olhar para esse tipo de coisas. As irmãs Neville eram duas solteironas com um rendimento considerável que viviam em Langdon’s End. Viam em Rebecca uma potencial semelhante erudita e tinham-lhe dado livre acesso à sua biblioteca, incluindo, ao que parecia, gravuras de estátuas antigas de homens nus. – Tenho a certeza de que as irmãs têm esses livros apenas porque são educativos no que diz respeito à Grécia antiga. – Oh, sim, são educativos. – Rebecca fez um sorriso malicioso. – Eu aprendi imenso. Vem comigo um dia destes e eu mostro-te os melhores. – Se eu for contigo, será por motivos melhores do que esse. – Eva abriu a caixa das tintas e começou a aplicar tintas que já havia misturado no dia anterior na paleta. – Agora, vai-te embora. Tenho de me concentrar nisto. Rebecca fez beicinho novamente. – Mas eu queria falar contigo acerca de uma coisa muito importante. Tenho andado a pensar nas nossas vidas aqui e acredito que devíamos fazer uma mudança. Tenho um plano... Eva deixou de ouvir o que Rebecca estava a dizer. As palavras tornaram-se um som no segundo plano da sua consciência, à semelhança do fluir das águas de um ribeiro que passa despercebido aos ouvidos de alguém. Mal se deu conta quando Rebecca abandonou a divisão. Quatro horas depois, enquanto limpava os pincéis e admirava o progresso do dia, algumas das palavras da irmã assomaram na bruma da sua memória. Roeram e golpearam-lhe a consciência até lhes prestar mais atenção e tentar reconstruir o seu conteúdo. Quando achou tê-lo feito, riu-se. Decerto que Rebecca não dissera aquilo. A irmã jamais lhe proporia de modo tão sério que vendessem a casa, pegassem no dinheiro e fossem para Londres tornar-se cortesãs.


Merrywood Manor, a cerca de oito quilómetros nos arredores de Cheltenham nas colinas de Gloucester, não mudara absolutamente nada durante o tempo em que Percival fora duque. Deixara a renovação do seu estilo antiquado pseudoclássico do século XVI para a sua futura duquesa, gostava ele de dizer. Gareth partiu do princípio de que Percy era demasiado avarento para levar a cabo a renovação ou sequer casar-se, embora fosse provável que este último acontecimento acabasse por acontecer, tendo em conta os deveres de um duque. A relutância de Percy em investir nas propriedades que faziam parte do seu património tornou-se óbvia enquanto Gareth avançava a cavalo. Uma pequena casa de campo de rendeiros que ardera há pelo menos cinco anos ainda jazia no mesmo sítio numa pilha de madeira carbonizada e a própria Merrywood exibia indícios que exigiam alguma manutenção. Gareth apresentou-se à porta da casa senhorial como sempre fazia, na qualidade de visitante. Um bastardo não considerava a propriedade principal da família como a sua casa. A primeira vez que lá fora após a morte do pai, Percy tornara claras as restrições que existiam ao recusar-se a recebê-lo. O pai sempre o fizera e os criados deixavam-no entrar enquanto o pai era vivo, mesmo que o pai não estivesse em casa. Ele assistira ao funeral do pai montado na sela do cavalo numa colina sobranceira. Enquanto a nata da aristocracia transportava o caixão para a campa simples, aproximara-se uma carruagem e a mãe saíra. De cabeça bem erguida, com uma expressão que desafiava Percy ou quem quer que fosse a interferir, atravessara o ajuntamento de nobres para se colocar ao lado da campa enquanto o amante estava a ser enterrado. A duquesa já havia morrido há uma boa dezena de anos nessa altura, mas Gareth suspeitava que a mãe teria feito o mesmo se a duquesa estivesse junto à campa. Naquele dia, a porta de Merrywood Manor exibia uma enorme coroa fúnebre envolta em bombazina preta. Perguntou-se se Percy, nos derradeiros suspiros, ordenara aquela coroa gigantesca a par do mausoléu. Aguardou no átrio da entrada enquanto o seu cartão era levado e seguiu o mordomo até à biblioteca após a sua receção ter recebido um aceno de concordância. Na biblioteca, encontrou Ives, o mais novo dos irmãos legítimos e, com trinta anos, dois anos mais velho do que Gareth. Oficialmente apelidado de Ywain, nome que detestava, Ives era alto, tal como todos os descendentes do terceiro duque. Naquele momento, estava junto a uma janela que fazia sobressair as suas feições clássicas. A luz que a atravessava realçava as madeixas douradas


no cabelo castanho-escuro. Quando ouviu a porta a abrir-se, voltou-se. Uma braçadeira preta rodeava a manga do seu casaco escuro. Esperaram que o mordomo se retirasse. Ives travou uma batalha contra um sorriso rasgado que queria espalhar-se-lhe no rosto. Um prazer diabólico assomou aos seus olhos verdes. Reprimiu a expressão, tossiu e assumiu uma postura carregada mais apropriada a um reencontro entre irmãos. – Que bom que vieste, Gareth. Sei que o Percy ficaria comovido. Gareth manteve a expressão impassível com dificuldade. – Soube da notícia pelo jornal em Amesterdão e apanhei um paquete na manhã seguinte. Tão inesperado. Tão chocante. – Sim. Sim. Como podes imaginar, estamos transtornados. Ele podia imaginar. Quando completara quinze anos, Gareth dera-se conta de que Lance e Ives eram seus aliados contra Percy. Eles sabiam por que motivo ele odiava o herdeiro do duque, mas ele ainda não sabia o que acontecera naquela família para colocar um irmão legítimo contra outro irmão legítimo. – Amesterdão, dizes tu? – perguntou Ives. – Sim. – Fico feliz por saber. Parto do princípio de que a tua viagem tenha sido tão prazerosa quanto lucrativa. Mais uma pessoa que se perguntava se Percy fora liquidado pelo seu meioirmão bastardo. Gareth não se importou minimamente com isso. Devia ter ameaçado matar Percy meia dúzia de vezes ao alcance dos ouvidos de Ives. – Estou a servir de intermediário da venda da coleção de um conde francês. Encontrei um industrial aqui que tem esse dinheiro e que ambiciona adquirir uma galeria instantânea para adornar a sua recém-construída e grandiosa casa. Os quadros devem chegar daqui a quinze dias. Ives fez um gesto na direção de um tabuleiro com uma garrafa de cristal de brandy e ergueu as sobrancelhas de modo interrogador. Quando Gareth acenou com a cabeça, Ives prosseguiu e serviu copos a ambos. – O Lance vai querer que encontres um comprador do mesmo género para alguns quadros que aqui estão. Aqueles que o Percy comprou não são ao gosto dele. Gareth aceitou o copo e bebeu um golo. – Serão ao gosto de alguém? Não posso vender aquilo que ninguém quer comprar. – Talvez consigas encontrar um industrial rico com problemas de visão. Ou podes mentir e afirmar que são os melhores quadros pincelados nas últimas duas


décadas. – Só se estivermos a falar de trabalhos realizados pela mão de freiras espanholas. Todos aqueles querubins gordos de cor pastel e santos de olhos fitos no céu com palmas de martírio... Achas que o Percy era um dissidente secreto da Igreja Anglicana? – Isso implicaria que ele tivesse algum tipo de princípios, não é assim? A garganta de Gareth emitiu um som quase estrangulado. Ives mordeu as bochechas. – Oh, maldição. – Ives suspirou. – Não é de bom-tom falar mal dos mortos. Não neste momento. Não queremos que os criados nos vejam como nada menos do que apropriadamente pesarosos. Relatos de manifestações estridentes de regozijo podem ser mal interpretados. Deus me perdoe, Gareth, ele era meu irmão, mas quando soube da notícia em Londres, quase não me consegui impedir de abrir uma janela e disparar algumas balas de pistola para o céu em celebração. – Aposto que só não o fizeste porque o som podia assustar a tua amiga atriz. Como está ela? – Dispendiosa. Gareth partiu do princípio de que o caso amoroso iria terminar em breve. – Por que motivo relatos do nosso estado de espírito seriam mal interpretados? Creio que ninguém acredita que ele fosse muito estimado. A expressão de Ives tornou-se verdadeiramente grave. – É muito provável que tenha sido um homicídio, Gareth. Não tenho dúvidas de que chegou aos teus ouvidos. Até os jornais fazem alusão a isso. – Estavas com esperança de que eu estivesse em Inglaterra nesse dia e todos os olhos se voltassem para mim? Ele recebeu um olhar arguto por aquelas palavras. – Os olhos de todos já se tinham voltado na tua direção. Estão em marcha inquéritos em Londres para se inteirarem do teu paradeiro. Por isso, foi uma sorte estupenda estares fora do país. Estou verdadeiramente aliviado por ter menos um irmão para proteger com a minha eloquência causídica. A seguir, deixaram-se ficar nos respetivos lugares, de copos nas mãos, a beber o brandy. – Onde estavas nesse dia? – perguntou Gareth. – Em Londres. No tribunal durante o dia e num jantar ao serão. Não despertei o interesse do magistrado. Cada um bebeu mais um trago da bebida. – E o Lance?


Ives deixou escapar um suspiro longo e profundo. – Ele estava aqui. Estava dentro desta maldita casa. – Estava com certeza – disse uma voz. Gareth olhou por cima do ombro. Lance acabara de entrar na biblioteca, exibindo a sua figura impressionante e pouco convencional. De cabelo e olhos negros, envolto em arrogância e inteligência arguta de forma tão inegável como um casaco preto e botas, exibiu um sorriso que homens estúpidos interpretariam erroneamente como amigável. Não se barbeara naquele dia e a barba áspera no rosto realçava, em vez de esconder, uma cicatriz longa e fina na face direita. Avançou para junto deles a passos largos, apertou vigorosamente o ombro de Gareth num gesto de boas-vindas e depois serviu-se a si próprio de brandy. Em seguida, virou-se para ambos de copo na mão. – É uma pena que não tenha tido a coragem de o fazer. Acho que estamos todos de acordo, cavalheiros, em que o Percy era um exemplo lamentável de um ser humano que semeava sofrimento onde quer que fosse. Façamos-lhe um brinde pela ocasião da sua morte aos anos de infelicidade que agora não poderá criar. – Tens de parar de dizer coisas desse tipo – disparou Ives, pousando o copo com violência. – As circunstâncias exigem um mínimo de discrição. – Ele receia que me condenem à forca – anunciou Lance a Gareth. O seu tom de voz exibia indiferença pelos receios de Ives e pela opinião dos outros. – Eu tenho receio que te... Raios, queres que as pessoas fiquem com dúvidas a tua vida inteira se não for encontrado um culpado? – Diabos me levem se me importo com isso. Na qualidade de duque de Aylesbury, espero poder sobreviver a algumas ferroadas. – Escuta o que eu te digo. Não estou à espera que vás chorar junto à sua campa, mas tenta não dançar em cima dela. Maldição, morreu um homem e cabe-nos a nós, os seus familiares mais próximos, mostrar pelo menos alguma seriedade para evitar suspeitas. – Ele tem razão – declarou Gareth, reajustando o rosto numa expressão convenientemente sorumbática. – Morreu um homem, tal como ele disse. – Claro que tenho razão – reforçou Ives. Lance baixou as pálpebras e extinguiu o sorriso que trazia nos lábios. Traço a traço, criou uma máscara. – Algo deste género? – Sim, muito melhor – respondeu Ives. – Isto é diabolicamente desconfortável. Vai exigir demasiado esforço mental


para o manter. – Tens de o fazer. Pensa em mim a herdar tudo isto depois de baloiçares na forca. Isso deve manter-te esse sorriso rasgado no lugar. – Não têm de provar que existiu um homicídio antes de acusar alguém de homicídio? – perguntou Gareth. – O maldito médico relatou que possivelmente ele foi envenenado – disse Lance. – Que diabo, se o homem que vos pagava está morto, não achariam mais sensato tentar conquistar as boas graças do homem que vos vai pagar a seguir, em vez de criar um drama ao colocar por escrito que pode ter havido um homicídio? Aqueles sarrabiscos foram quanto bastou para agitar os ânimos e serviriam para sustentar a acusação, caso outros factos se tornassem conhecidos. – O que não vai acontecer – afirmou Ives. – Não existem outros factos. Não houve qualquer homicídio. O Percy comeu alguma coisa que estava contaminada ou sucumbiu a uma enfermidade do intestino de longa data. É essa a nossa história, cavalheiros. Os magistrados estão à procura daquilo que não existe e o juiz de instrução está a fazer muito barulho por nada. Com a mesma máscara de sobriedade, Lance deixou-se cair numa cadeira, reclinando-se indolentemente numa postura aborrecida e lânguida que comunicava claramente a sua arrogância, bem como o seu tédio em relação à vida. Gareth achou que ele parecia mais magro e com um aspeto um tanto ou quanto tresnoitado. Não conseguiu perceber se tal fora provocado por acontecimentos atuais ou se apenas refletia um longo período de excessos hedonísticos anterior à morte de Percy. Nenhum deles possuía uma reputação de santo, mas, para além disso, Lance não se preocupava minimamente em ser discreto ou comedido. Durante alguns minutos, a atenção de Lance esteve voltada para dentro, mas depois focou-se em Gareth. – Talvez seja melhor seres tu a fazer a homenagem póstuma no enterro, Mordred. Foste o primeiro a ver tudo aquilo que ele podia ser. – Não sejas perverso – repreendeu-o Ives. – E espero que não vás continuar a usar essa alcunha para o Gareth. – Se for esse o teu desejo, posso fazê-lo – disse Gareth. – Quanto à forma como ele me tratava, Ives, está só a recordar-me o quanto a minha homenagem podia ser eloquente se me dessem carta-branca. Mordred era o nome que Percy lhe chamava. Ressentido com o facto de o pai de ambos ter agraciado um bastardo com o nome de um dos cavaleiros do rei Artur, tal como fizera aos seus filhos legítimos, Percy decidira que era necessário


um nome mais apropriado. A presunção daqueles nomes tinha sido ideia da duquesa. O facto de o duque a utilizar para o seu bastardo fora um insulto para ela que nunca cessava de a ferir. – Estou a brincar, é claro. Podes ser um dos transportadores do caixão no enterro, se quiseres. Se preferires recusar, é perfeitamente compreensível. – Vou assistir a esse enterro da mesma forma que assisti ao funeral do meu pai, de longe, se não te importares. Lance engoliu de um trago o resto do seu brandy. – Que diabo, não me importo nada. Acho que vou andar a cavalo. Ficar à espera que algo aconteça está a enlouquecer-me. Podia sugerir que todos nós visitássemos um bordel, mas o Ives insiste que devemos fingir que estamos demasiado tristes para procurar o prazer. Saiu da biblioteca com passadas largas. Ives observou-o a sair, depois voltouse e encaminhou-se para as portas que davam para o jardim. – Vem caminhar um pouco comigo, Gareth. Preciso de falar contigo a respeito de outro assunto.

– Ele faz troça do perigo, mas não é nenhum imbecil. É pouco provável que venha a ser formalmente acusado. No fim de contas, agora é um duque. Mas a sombra da acusação pode persegui-lo para sempre. – Ives falava entre baforadas de charuto. Fumava apenas quando estava agitado. O facto de ter retomado o hábito mostrava que andava preocupado com os acontecimentos recentes e não partia do princípio de que iria correr tudo bem. – Parto do princípio de que a reputação dele não ajuda. – Lance fora um jovem libertino. O facto de ser o herdeiro sobressalente tornara-o mais irrefletido do que Ives, ou até mesmo Gareth. Lance possuía igualmente um lado sombrio, com origens desconhecidas para Gareth. Porém, não era um lado sombrio criminoso. A ideia de que Lance fosse capaz de envenenar alguém, e, em particular, o seu próprio irmão, não podia ser levada a sério. – O que realmente não ajuda é o facto de ele se ter envolvido com a mulher de um dos magistrados – declarou Ives. – O homem sabe disso e não vai deixar passar esta oportunidade, seja ele um duque ou não. Gareth não conseguiu deixar de se rir. – Lembra-me, caso alguma vez me sinta tentado, para nunca me deitar com a mulher de um homem que possa vir a dar-me problemas legais. – Como se tu me fosses escutar mais do que ele faz. Tenho de ficar aqui com o


Lance e desempenhar o papel do advogado com um cliente incorrigível. Não quero que ele faça ou diga alguma coisa enquanto estiver ébrio que só piore as coisas e quero manter-me informado acerca do que estão a pensar aqueles que querem causar problemas. – Parece-me sensato. – Sensato, mas inconveniente. Devia partir para o Norte do país para investigar uma coisa e agora não posso. Pensei que talvez me pudesses fazer a vontade e ocupar o meu lugar. Gareth hesitou. Ives desempenhava com frequência o papel de procurador da Coroa em crimes graves. O assunto que precisava de tratar a norte do país podia envolver confrontos com homens perigosos. Embora Gareth se saísse bastante bem nesse tipo de situações, não se sentia inclinado a procurá-las, muito menos em nome de terceiros desconhecidos. Além disso, agora ele tinha a sua própria missão. – Pensei em ficar cá durante alguns dias, pelo menos, após o enterro. Tinha esperanças de poder falar com o Lance. – Tens aquela propriedade em mente, sem dúvida. Não podia ser de outra forma. Se fizeres isto por mim, argumentarei a favor do teu caso e convenço-o a pôr uma pedra no assunto por completo. Não creio que precise mais do que alguns minutos e umas palavras, assim que eu lhe chamar a atenção para isso. Ives tentara-o com Percy, em vão. Gareth considerava Ives um advogado brilhante, mas as questões de propriedade tinham algo que fazia surgir nos homens o pior de cada um. – Além disso – prosseguiu Ives –, este caso a que me referi é na região daquele chalé. Vou fazer com que o Lance aceite autorizar-te a utilizar a casa enquanto estiveres por lá. Podes começar a instalar-te. De súbito, a proposta de Ives parecia-lhe apelativa. – Qual é o assunto para o qual precisas de mim? – Uma coleção de arte está desaparecida. Naquele momento, a proposta passou de apelativa a realmente interessante. – A coleção é de quem? – Não é propriedade de uma só pessoa. Pelo contrário, inclui obras que são propriedade de uma série de pessoas. – Que pessoas? – Ninguém importante. Somente metade dos membros da Câmara de Lordes.


– Foi durante a guerra – declarou Ives. Ele e Gareth estavam agora sentados num banco sob uma árvore. – Por volta do ano de 1800. Estavam todos com receio de uma invasão. Provavelmente lembras-te como foi esse período, ainda que não passássemos de rapazes. Napoleão já possuía uma reputação merecida por violação cultural. Escolhia as melhores obras de arte e enviava-as para trás, através das linhas de combate, até chegarem a França. Uma série de lordes bastante proeminentes começou a preocupar-se com as obras de arte que adornavam as suas casas senhoriais. As mulheres e filhas podiam sofrer o pior dos destinos, mas, que diabo, os quadros deles não iam acabar num palácio francês qualquer. – Fazes troça disso, mas muitas obras de arte foram saqueadas pelos franceses. – Tal como aconteceu às mãos de todos os exércitos ao longo dos tempos. Porém, o saque metódico de Napoleão afligiu estes lordes. O corso fazia-se acompanhar de peritos que sabiam exatamente o que queriam. Partia-se do princípio de que ele sabia quais eram as famílias, aquilo que possuíam e tinha uma lista preparada. Qualquer galeria particular entre a costa e Londres era considerada vulnerável. Então, acordaram uma solução para o despistar. – Mudar as obras de arte de lugar – adivinhou Gareth. Ives anuiu. – A nata das obras de arte foi encaixotada e transportada para o Norte do país, para o centro de Inglaterra, para aguardar o final da guerra. Mas, quando esse dia chegou, e aqueles que organizaram isto foram recuperá-las, já não estavam lá. – Foram roubadas? – Ainda não se está a chamar a isso um furto. – Onde estavam guardadas? – É nesse ponto que o assunto se torna delicado. O local do depósito era uma propriedade do duque de Devonshire. – Delicado é uma bela forma de o descrever. Não admira que não tenha havido quaisquer rumores ou má-língua em torno disto. Afirmar que foram roubadas é sinónimo de insulto a um homem muito poderoso. – Tem havido críticas leves a respeito da sua vigilância. Nada mais do que isso. Ninguém se atreveu a sugerir que ele ou o duque atual tenham decidido desviar de alguma forma qualquer um dos quadros para a sua própria coleção. – Aquela família possui uma das melhores coleções de arte do reino. Não precisam das coleções de mais ninguém. – Ainda assim, os quadros enviados para norte desapareceram. O governo recomendou paciência porque o Príncipe Regente esteve envolvido na ideia


original, mas os ânimos começam a exaltar-se. Fui incumbido de descobrir o que pudesse. Descobrir o que pudesse podia significar todo o tipo de coisas, no que dizia respeito a Ives. – Tencionas interrogar Devonshire? – perguntou Gareth. – Pareço-te louco? Seja como for, ele vai estar presente no enterro. – Surpreende-me saber que o Percy caiu nas boas graças de Devonshire. – Não o fez. De modo nenhum. O último duque apelidou-o em tempos de pequeno demónio desprezível. Na melhor das hipóteses, é uma questão de respeito para com a mesma classe. Morre um duque e um outro duque está presente no seu funeral. Na pior das hipóteses, o atual duque de Devonshire vem para cravar uma estaca no coração do Percy. – Talvez o Lance aborde o assunto por ti. Diga-me lá, Devvie, o que acha que foi feito de todas aquelas obras de arte que o seu pai aceitou guardar no sótão dele? Ele fará isso, se lho pedires. – Corremos o risco de ele o fazer ainda que não lho peça. Não lhe lembres o assunto. Ele está a par de tudo, é claro. Todos os lordes estão. Aqueles que ficaram prejudicados não se calaram entre os seus pares. Uma vez que nenhum dos nossos bens desapareceu, é pouco provável que o nosso irmão pense nisso, a não ser que seja incitado a tal. – Nesse caso, de que forma lhe vais explicar a minha pequena missão? – Não tencionava explicar seja o que for. Nunca esperamos relatos das tuas idas e vindas. Por outras palavras, o novo duque de Aylesbury não se interessaria minimamente pelo motivo que levaria Gareth a viajar para norte do país. – Se fizeres com que eu possa utilizar o chalé, temos um acordo. Ives pôs-se de pé. – Prometo fazer com que a questão desse legado seja completamente esclarecida, assim que este outro assunto esteja nas nossas costas. Até lá, o Lance irá concordar que é perfeitamente justo que utilizes aquela propriedade como se fosse tua. Gareth não precisava de mais garantias. Lance podia ser obstinado, até mesmo caprichoso, mas era justo. Uma escritura clara estaria então para breve. Aquele edifício degradado seria dele e podia começar a recuperá-lo. Gareth seguiu Ives de volta para o interior da casa, a fazer planos.


CAPÍTULO 4

grande foi arrendada, segundo ouvi dizer. – Rebecca mencionou a –Acasa notícia enquanto estava sentada em cima de um saco de serapilheira, observando Eva a arrancar ervas daninhas. O terreno atrás da casa de ambas fora preparado para flores e arbustos, mas Eva começara a juntar legumes no meio das flores há três anos. Poupava-lhes algumas libras por ano em comida, em troca de um pequeno esforço. Cultivar legumes fora o último ato de uma longa série de economias e aquele que dava mais prazer a Eva. O pai vendera a maior parte dos terrenos que possuíam e o que restava gerava-lhes rendas mínimas. A enfermidade de cinco anos do irmão fez com que ele não fosse capaz de complementar o rendimento da família com algum tipo de emprego, ainda que Nigel jamais se tivesse dedicado a algum ramo de comércio mesmo que tivesse tido saúde suficiente para tal. Havia sido o filho de um cavalheiro e tencionava morrer um cavalheiro, ainda que tal implicasse que a irmã mais velha tivesse de vender a mobília da casa para ter a certeza de que todos tinham o necessário para comer. – Quem a arrendou? Não consigo imaginar ninguém a querer viver lá – declarou Eva. – Ninguém sabe, mas alguns rapazes viram uma luz pelas janelas térreas há duas noites e há relatos de um cavalo no estábulo. – Se não fosse pelo cavalo, diria que tudo isso não passa de um disparate e alguns dos jovens de Langdon’s End decidiram embebedar-se ali numa destas noites. – Quem quer que seja, espero que se dê a conhecer na vila em breve. Decerto


que serão pessoas distintas. Mesmo no seu estado atual, a renda terá de ser alta para uma casa e propriedade tão grandes. – Acredito que sim. – Eva tinha esperança de que os rumores estivessem errados e que, no pior dos casos, o proprietário da casa tivesse enviado um criado para ficar lá um curto espaço de tempo. Talvez algum viajante tivesse simplesmente recorrido a uma casa vazia e seguisse em breve o seu caminho. Considerava-a uma casa abandonada e contava que assim permanecesse, de preferência. – Acho que devias ir visitá-los – disse Rebecca. – Talvez tenham uma filha que possa ser minha amiga. – Fá-lo-ei se prometeres não te queixar de que a nossa casa não é adequada a receber visitas, uma vez que serão obrigados a visitar-nos depois. Rebecca corou. – Se tiverem uma filha, talvez possa conhecê-la na vila. – Talvez devesses pô-la ao corrente da tua situação financeira quando a conheceres. Não existe qualquer vergonha em estar na nossa situação e se esta nova amiga imaginária for digna desse nome, não se vai importar. Rebecca ergueu-se abruptamente, de sobrancelhas franzidas, reflexo da sua irritação. – Eu não me importo com a nossa situação, mas fico ressentida com a tua aceitação dela. Em vez de melhorar, está a piorar cada vez mais e agora nem sequer posso convidar amigos para a nossa casa porque não temos cadeiras suficientes desde que vendeste todas as que tínhamos. – Vendi-as para não passares fome. E é claro que a nossa situação está a melhorar, mesmo que ainda não vejas os frutos disso. O nosso ano de luto ainda agora terminou e podemos voltar a participar nos acontecimentos da sociedade. Podes estar presente em encontros sociais, encontrar-te com outras raparigas na vila e se fores capaz de evitar falar acerca de filosofia nas primeiras conversas, vais encontrar amigas que podem mudar tudo. – Não me refiro a questões sociais. – Falavas da questão financeira, então? Os meus quadros estão a vender-se bem o suficiente ao ponto de a nossa situação não ser tão terrível como era, mesmo com as más colheitas e rendas por pagar. Acho que me estou a sair otimamente. – Eva sorriu e piscou o olho à irmã. – Estás invulgarmente aborrecida, Rebecca. Nem parece teu queixares-te com tanta veemência. A sua tentativa para aligeirar a conversa foi em vão. – O que vai acontecer se um dia ninguém quiser os teus quadros? – perguntou


Rebecca. – Vou encontrar outra forma de melhorar a nossa sorte, se tal acontecer. Não deves preocupar-te com isso. – Mas preocupo-me. Tu podes ver melhorias, mas eu vejo mais do mesmo durante anos a fio. Eu sugiro que façamos grandes mudanças e não as tuas pequenas mudanças. Vamos tirar o melhor partido possível da nossa educação e da nossa juventude e criar um outro caminho enquanto ainda podemos. Eva ergueu os olhos para a irmã. O rosto de Rebecca ficou avermelhado e a sua postura tornou-se mais rígida, mas enfrentou o olhar de Eva com bravura. – Receio que estejas a referir-te à proposta indecorosa do outro dia. – Devia ter prestado mais atenção na altura e ter arrancado aquela erva daninha em particular imediatamente. – Não podes estar a falar a sério, Rebecca. – Porque não? As irmãs Neville dizem que uma vida desse tipo pode trazer segurança a uma mulher e até mesmo fortuna. Eva riu-se e pôs-se de pé. – Querida, nem sequer compreendes o que uma vida dessas implica. Perguntome se as irmãs Neville também sabem realmente. Não consigo imaginar por que motivo falariam desse tipo de coisas contigo. – Perguntei-lhes e elas responderam de forma franca. Nem todos acham que as mulheres devem permanecer ignorantes. – Tu não és uma mulher. És uma criança. – Oh, que disparate! Olha para mim, Eva. Olha bem para mim. Não deixes as tuas memórias turvarem aquilo que vês. – Os olhos de Rebecca cintilavam com lágrimas. A sua expressão de desafio transformou-se numa máscara de infelicidade deplorável. – Já não sou uma criança. Vou completar dezanove anos em breve. Nenhum homem me fez uma proposta de casamento. Nem um. Nem sequer tive um amor trágico, como tu. E olha para ti. Costumavas ter sonhos de te tornares artista, mas há anos que te limitas a fazer cópias. E já não me lembro da última vez que te vi desenhar. Rebecca deu meia-volta de modo abrupto e correu para casa. Eva fixou o olhar no jardim que conhecera toda a vida. Na sua cabeça, surgiu uma memória de brincar com uma Rebecca muito mais jovem no meio dos arbustos. Depois, seguiram-se outras, de confortar a sua irmã mais nova quando o pai de ambas falecera. Pôs-se de joelhos e continuou a arrancar ervas daninhas. Ao mesmo tempo que as mãos enluvadas puxavam as pequenas intrusas para fora, o seu coração assimilava as palavras com as quais Rebecca lhe dera um forte abanão.


A irmã não queria realmente tornar-se uma mulher perdida. Rebecca só queria saber que teria algum tipo de vida para além daquela. A ausência de pretendentes iria pesar em qualquer jovem da idade de Rebecca e provocar um desassossego que a tornava vulnerável. Os pensamentos dela voltaram-se para Charles, o «amor trágico» que Rebecca lhe atirara à cara. Não fora realmente trágico. Rebecca fora demasiado dramática. Afinal de contas, Charles não morrera. Não a abandonara. Limitara-se simplesmente a partir como tinha planeado, mas sem Eva porque esta não podia, ou melhor, não queria, casar-se com ele e partir também. Isso implicaria deixar o irmão sozinho e doente, enfraquecido por causa daquele ferimento de uma arma de fogo que depois lhe afetara para sempre a saúde. Tinha pago um preço elevado por aquele dever. O casamento, a sua juventude, a sua arte... Evitava pensar em tudo aquilo porque quando o fazia, o seu coração ficava zangado e assustado. Quase nunca pensava em Charles ultimamente. Raramente ficava nostálgica com pensamentos acerca do que podia ter acontecido. Odiava estar a fazê-lo naquele momento. Bloqueou as memórias e pensou nos seus planos para o futuro, planos que não partilhara com Rebecca, por receio de que não viessem a concretizar-se. Tendo em conta a infelicidade da irmã, podia ser altura de enveredar por esse caminho mais cedo do que o previsto. Regressou a casa, lavou as mãos e subiu as escadas até ao seu quarto. Levantou uma tábua solta num dos cantos e puxou para fora um pequeno saco pendurado num prego pregado numa trave. Sentou-se na cama e esvaziou o conteúdo sobre o colo. Os xelins tiniram enquanto caíam num pequeno monte. As moedas entravam naquele saco, mas nunca saíam. Poupava-as para outro objetivo que não a segurança financeira, embora também tivessem essa finalidade. Com aquele dinheiro, tencionava dar a Rebecca o melhor que ela merecia. Planeava ter mais antes de dar o primeiro passo, mas agora decidira que era necessário mais arrojo. Decerto que se um homem decente e com uma posição confortável na vida conhecesse Rebecca, apaixonar-se-ia por ela e far-lhe-ia uma proposta de casamento, apesar da sua fortuna inexistente. Simplesmente tinha de arranjar uma forma de potenciais candidatos meritórios verem Rebecca. Precisava igualmente que Rebecca parecesse deveras encantadora nesse momento. E assim que o futuro de Rebecca estivesse acautelado, Eva estaria livre para


tornar o seu próprio futuro igualmente diferente.

Gareth examinou as prateleiras que exibiam rolos de tecido no Duran’s Cloths, uma loja de fazendas e miudezas em Langdon’s End. Aguardava há meia hora que o proprietário o atendesse. Pelo andar da carruagem, ainda ia demorar um bom bocado. A mulher que monopolizava a atenção de Mr. Duran devia ter analisado cada um dos rolos de tecido que existiam naquele lugar e ainda não mostrava qualquer sinal de ter chegado a uma decisão. Enquanto exercitava a sua paciência, fez uma lista mental dos artigos de que precisava, no caso de ter de passar mais um dia que fosse no Chalé Albany. Aquele não era o nome histórico da propriedade. Na verdade, esta não possuía qualquer nome de que tivesse conhecimento. No testamento, fora apenas designado como pavilhão de caça de Warwickshire. Na viagem a cavalo para lá, pensara em vários nomes até encontrar um de que gostava. Considerando a forma como tinha chegado à sua posse, dar-lhe o nome da mãe parecia-lhe apropriado. Como previra, o Chalé Albany fora esvaziado de quase tudo o que fosse possível transportar e de muita coisa que jamais o devia ser. A sua necessidade mais urgente eram roupas de cama. Apenas tivera lençóis em condições de serem utilizados nas últimas noites porque parara em Coventry de novo e, adivinhando o que iria encontrar, pedira alguns à mãe. Devia ter alugado uma carroça e persuadido a mãe a levar muito mais do que isso. Precisava de comprar panelas, sabão, pederneiras, utensílios de cozinha... tudo. Ferramentas também, lembrou a si próprio. Podia contratar mestres de ofícios para fazer os trabalhos especializados, mas era capaz de executar algumas das reparações. Tudo aquilo era dispendioso. Era melhor que a coleção do conde chegasse a Honfleur a tempo do barco de Hendrika. Gareth fixou o olhar em Mr. Duran, o proprietário, que estava a dobrar um pedaço de musselina. Dedos finos femininos retiravam moedas de uma bolsinha para as pousar no balcão. Não conseguia ver o rosto da mulher, mas alguma coisa nela avivou ao de leve a sua memória. A seguir, reconheceu a peliça e o chapeuzinho. Era a mulher que obrigara a sair da estrada perto do Chalé Albany. Reviu-a de novo mentalmente, com os olhos a lançarem-lhe um olhar ardente fulminante enquanto o repreendia pela falta de cuidado. Estava a usar a mesma peliça e o mesmo chapeuzinho naquele dia. Ambos os artigos seguiam o estilo em voga de há alguns anos. As suas tonalidades


acastanhadas eram uma escolha infeliz tendo em conta o seu tom de pele. Transformavam-na numa paleta de cores de inverno que implorava um vermelho ou azul vivo. Havia pássaros cujas penas os ajudavam a esconder-se em troncos de árvores e aqueles acessórios tinham feito o mesmo numa estrada ladeada de matas. Duvidava que aquela camuflagem fosse o seu objetivo. O mais provável era que usasse tal indumentária por possuir muito pouco para além disso que considerasse apresentável. Se tal fosse verdade, estragar aqueles sapatos não fora uma questão de somenos importância para ela. Não admirava que lhe tivesse rogado pragas. Ainda assim, mesmo em tons castanhos deslavados, era um artigo de primeira qualidade. Uma força de espírito imensa, com o aspeto de uma mulher, não de uma rapariguinha. Procurara um anel naquele dia e fê-lo de novo naquele momento. Aparentemente, não se tratava de uma mulher casada ou viúva. Uma bonita solteirona, nesse caso, com um nariz arrebitado encantador e olhos claros e inteligentes. Mr. Duran balbuciou qualquer coisa. A mulher respondeu num tom suave. Gareth não conseguiu perceber a troca de palavras, mas identificou o tom deferente na expressão do negociante. O homem chegou ao ponto de fazer uma vaga vénia quando a mulher pegou na musselina e deu meia-volta. A mulher saiu com passadas largas, com uma expressão determinada e um olhar que não via muito do interior da loja. Era certo que não o vira encostado à parede. Quando a porta se fechou atrás dela, aproximou-se do balcão. Mr. Duran avaliou ostensivamente o seu vestuário. A avaliação resultou num sorriso rasgado. – Bom dia, meu senhor. Precisa de algo para a sua viagem? Gareth olhou por cima do ombro. Ainda conseguia ver o chapeuzinho castanho através da janela da loja. Uma pena balançava-se ao lado dele. Ela parara para falar com alguém. – Tem alguma coisa na qual possa escrever? – perguntou a Mr. Duran. – Tenho de visitar outras lojas e dessa forma fazia uma lista do que precisava para o vir buscar mais tarde. Mr. Duran entregou-lhe um pedaço de papel e um lápis. Gareth escrevinhou apressadamente uma lista. Entregou-a a Duran e encaminhou-se para a porta no momento exato em que o chapeuzinho castanho começara a afastar-se.


Eva agradeceu a Mr. Duran e deu meia-volta para sair da loja. Ao voltar-se, avistou uma capa azul a passar pela janela do estabelecimento. Apressou-se a sair para a rua, para evitar que aquela capa se afastasse demasiado. – Miss Neville e Miss Ophelia Neville, um bom dia para ambas – transmitiu bruscamente a saudação, assim que a porta se abriu. As duas mulheres, uma alta e a outra baixa, voltaram-se e também a cumprimentaram. Pareciam-se muito uma com a outra, com rostos longos de tez muito clara que podiam ter figurado num quadro da corte Tudor. As duas exibiam igualmente cabelos extremamente claros. Possuíam caracóis firmes que resistiam a ser subjugados. Ophelia Neville, a irmã mais nova e de mais baixa estatura, tentava ainda assim arranjar o cabelo elegantemente, se bem que este, na melhor das hipóteses, se assemelhasse mais a uma névoa amarelo-pálida em torno da cabeça. Jasmine Neville, a mais velha e mais alta, havia-se rendido aos caprichos da Natureza. Deixava o cabelo ondulado cair livremente pelos ombros e costas. Ao adotar um guarda-roupa artístico de xailes, turbantes e capas, o seu aspeto sofisticadamente excêntrico realçava, por contraste, o aspeto convencional da irmã. – Que bom ter-me cruzado com ambas hoje – disse Eva. – Há um assunto que preciso de discutir com as duas. As pálpebras de Jasmine desceram. – Por favor, diga-nos do que se trata, Miss Russell. – Trata-se da minha irmã. – Espero que ela se encontre bem de saúde. – Muito bem, obrigada. Porém, receio que ela as visite com demasiada frequência. – O seu receio não tem razão de ser – declarou Ophelia. – Ficamos encantadas quando ela nos visita. Demos-lhe permissão para utilizar a nossa biblioteca sempre que queira e adoramos vê-la absorta nos livros. – Interpretaram-me mal. O meu receio é que as visitas dela a estejam a expor a ideias pouco adequadas. Jasmine pareceu ficar ainda mais alta. Inclinou a cabeça para trás de forma dramática e os olhos semicerraram-se-lhe. – Não existem ideias pouco adequadas para uma pessoa que pensa. Se uma ideia for considerada imperfeita ou má, a nossa inteligência dir-nos-á depois de a debatermos. – Algumas ideias devem ser ocultadas de uma pessoa até ela se tornar adulta,


não concorda? – A Rebecca é uma adulta – disse Ophelia, suavemente. – Tem quase dezanove anos. Gostava que ela fosse como tantas mulheres, ignorante da variedade de filosofias que existem no mundo? A boca de Eva contraiu-se. – Não me refiro a filosofias. Não me oponho a que lhe deem a conhecer opúsculos de dissidentes e radicais, a par dos grandes pensadores clássicos. Ela é suficientemente sensata para compreender o mérito de cada um. – Acho que Miss Russell se está a referir a coisas mais profanas, Ophelia – atalhou Jasmine, secamente. – Profanas, com letra maiúscula. – De facto, é a isso que me refiro. Tenho de manifestar a minha discordância quando encorajam a minha irmã a considerar com agrado o ofício de... de... – Eva estava à procura das palavras certas, bastante aborrecida para pensar com clareza – ...de amante profissional! Os olhos de Ophelia arregalaram-se. Os de Jasmine semicerraram-se ainda mais. Jasmine deu um passo em frente e ficou bastante mais alta. – Nós não corrompemos jovens mulheres, Miss Russell. A insinuação de que o fazemos não será tolerada. – Isso não é verdade – apressou-se a acrescentar Ophelia. – A Rebecca estava a ler uma história na qual era feita uma vaga referência a uma cortesã e foi procurar o significado da palavra na biblioteca, na ocasião de uma visita. A definição surpreendeu-a ao ponto de nos ter pedido para lha explicarmos. Nenhuma de nós acredita na mentira, por isso é claro que lhe demos essa explicação. De forma bastante discreta e objetiva, garanto-lhe. – Decididamente que não a encorajámos a considerar com agrado esse ofício ou vida. – A voz de Jasmine erguia-se a cada palavra que proferia, até estas ressoarem como um sermão pronunciado de um púlpito alto. Um homem que passava abrandou um pouco o passo para ouvir mais. – A minha irmã e eu somos as últimas pessoas a querer que uma joia rara como a Rebecca se torne a escrava sexual de um patego qualquer, por muito grande que seja a compensação ou muito acetinados que sejam os grilhões a que venha a ser subjugada. Eva susteve a respiração. Tinha a certeza de que aquelas últimas palavras tinham sido ouvidas num raio de quinhentos metros. As pessoas do outro lado da rua detiveram-se subitamente e fixaram o olhar nelas. – Por favor, baixe a voz – disse, num tom sibilante. – Louvo os vossos pontos de vista a respeito de as mulheres se tornarem escravas sex... escravas sex... – Não foi capaz de o dizer. – De se tornarem escravas de algum tipo. Pensamos de


forma semelhante, mas é necessário existir algum comedimento no discurso. Se falam de modo assim tão franco com a Rebecca, tenho de a impedir de prosseguir uma amizade com as duas senhoras. – Oh, céus. Jasmine, chocaste a simpática Miss Russell. Tens de aprender a controlar as tuas palavras, quando te sentires ofendida e zangada. – Não fui eu que dei início a esta conversa. Sou uma oradora eficiente, ainda que não possa dizer o mesmo de Miss Russell. Quanto a Rebecca, a nossa porta está aberta para ela. Se a quer manter afastada, encontre alguma coisa mais interessante para ela fazer. – Com uma fungadela satisfeita que exprimia a sua opinião em relação àquela possibilidade, Miss Neville deu meia-volta e afastouse. A irmã apressou-se a fazer-lhe companhia. Com as faces a escaldar, Eva recuperou a compostura. Bom, aquilo correra de modo muito diferente do que pretendia. Do outro lado da rua, duas mulheres continuavam a olhá-la, espantadas. As pobres criaturas provavelmente nunca tinham ouvido a palavra sexual em voz alta antes. Eva estava certa de que ela própria também não, muito menos ouvir alguém gritá-la numa rua principal em pleno alcance dos ouvidos dos transeuntes. Era provável que as más-línguas da vila em peso se alimentassem da história durante uma semana. Apertou o tecido novo de musselina contra o corpo e recomeçou a andar. Esperava que Rebecca gostasse do padrão. Aquela visita à vila custara-lhe mais do que as moedas que pagara por aquilo. Forçou a mente a concentrar-se em aspetos práticos. Devia fazer um vestido novo para Rebecca ou contratar uma costureira? – Encontramo-nos de novo – disse uma voz ao mesmo tempo que um par de botas surgiu ao lado dos seus sapatos. – Que generoso da parte do destino tê-lo feito acontecer. Ela assustou-se tanto que deu um salto para o lado, muito à semelhança da forma como pulara para dentro de uma grande poça há duas semanas. O rosto que a fitara do alto naquele dia era o mesmo. O cavaleiro descuidado regressara, tão atraente e perigoso como sempre. Vê-lo de perto não esmorecia o seu poder de atração, muito pelo contrário. Interiorizou os pormenores, aturdida, o que lhe provocou um abrandar dos movimentos. Uma pequeníssima cova no queixo dele. As maçãs do rosto pronunciadas que, em conjunto com pestanas bem formadas, chamavam a atenção para os olhos escuros e diabolicamente pecaminosos. As ondas de cabelo desalinhado que o tornavam ainda mais atraente do que um cabelo


cuidadosamente escovado. Naquele dia, usava um casaco azul e um plastrão atado de forma indiferente. Continuava a ter um aspeto dispendioso. Era óbvio que se tratava de um cavalheiro. – Não tinha intenção de a alarmar – disse ele. – Peço desculpa se a minha saudação a apanhou desprevenida. O sorriso vago dele comunicava mais do que uma simples simpatia. Conseguia ver o quanto a impressionara. Sem dúvida que sim, quando ela o fitava boquiaberta como uma rapariguinha. – Se lhe pareço surpreendida é porque não estou habituada a ser cumprimentada por homens que não conheço. – Ah, a senhora é picuinhas – disse a palavra como se fosse uma doença. – Espere aqui, por favor. Prometa-me que não se vai embora. – Depois de acenar com a cabeça, ele regressou a passos largos para dentro da loja e reapareceu dali a breves instantes com Mr. Duran, que escutava palavras murmuradas ao ouvido enquanto os dois se aproximavam dela. Mr. Duran pigarreou. – Miss Russell, tenho o prazer de lhe apresentar Mr. Gareth Fitzallen. Ele é um recém-chegado à região e está ansioso por travar conhecimento com os seus habitantes e famílias mais proeminentes. Mr. Fitzallen fez uma vénia. Eva não teve outra hipótese senão fazer uma rápida mesura. Mr. Duran regressou à sua loja. Eva tentou encontrar uma forma de se livrar do bonito homem que se dera a algum trabalho para lhe ser apresentado convenientemente. Embora uma apresentação feita por um comerciante não pudesse ser realmente considerada uma apresentação conveniente. Era mais do que certo que Mr. Fitzallen não era suficientemente picuinhas em relação a esse pormenor. – Prazer em conhecê-lo, meu senhor, mas dificilmente serei um dos habitantes mais proeminentes. Se se instalou na região, estou certa de que os nossos caminhos irão cruzar-se de novo e conto saudá-lo da próxima vez com mais cortesia. – Confiante de que ele compreenderia o afastamento implícito na fórmula de despedida, retomou o caminho pela rua. Aquelas botas surgiram junto aos sapatos dela mais uma vez. – Vive aqui na vila? – perguntou ele. – A minha casa fica a cerca de um quilómetro da vila. – Que coincidência. A minha também. Estou a viver na ruína onde nos cruzámos pela primeira vez.


Não eram boas notícias. – Decerto que existiam casas melhores para arrendar no condado do que aquela. Julgava que nem sequer estava habitável. – Neste momento, possui o mínimo de condições de habitabilidade. Vim hoje à vila adquirir alguns artigos que vão ajudar a torná-la mais tolerável. – Julgava que um cavalheiro como o senhor necessitaria mais do que o mínimo de condições de habitabilidade. – Desejo muito mais do que isso, mas, na verdade, necessito de muito pouco. Posso remediar-me com o mínimo de condições por agora. Estou com esperança de que sinta pena de mim e me encaminhe para as lojas e mestres de ofício de confiança. – Fez surgir subitamente um sorriso desarmante, um sorriso concebido para fazer uma mulher desfalecer. – Está a ver, houve uma razão para a ter abordado de forma tão rude. Não conhecia mais ninguém a quem pudesse perguntar isto. Aquele homem sabia explorar plenamente os seus dons naturais. Conhecer as intenções dele não a salvou de sucumbir aos seus encantos. O coração dela dançava. Ao sabor de uma música alegre e travessa. Controla-te, sua pateta. – Receio que se o ajudar, isso só o irá encorajar ainda mais a prosseguir com aquilo que é um mau negócio. Avisei-o de que a casa estava degradada no interior e, ainda assim, o senhor foi arrendá-la. Se não confiou na minha opinião a esse respeito, por que motivo o faria relativamente a lojas e mestres de ofícios? – A verdade é que não a arrendei. Ela pertence-me, com as paredes a cair e tudo. Por isso, ou a abandono a vagabundos e a incêndios, o destino que lhe vaticinou, ou tomo posse dela e tento salvá-la. Escolhi esta última opção. Eva estacou bruscamente e voltou-se para ele. – A casa é sua? – É minha. Ela recordou o pouco que sabia a respeito daquela casa. – Há anos, pertencia ao duque de Aylesbury, embora se saiba que a última vez que a visitou terá sido há quinze anos. O proprietário atual vendeu-a finalmente? – Foi-me deixada por ocasião do falecimento do terceiro duque. Não me foi possível fixar residência até este momento. Porque não? Conteve a pergunta para dar lugar a outra menos intrusiva. – O senhor é familiar dele? Conte em ser visitado sem qualquer tipo de misericórdia por todas as chefes de famílias distintas de Langdon’s End, se isso for verdade. – Talvez a senhora me faça o favor de passar a palavra de que a casa não estará


adequada a receber visitas durante algum tempo. Exceto a senhora, é claro, visto que agora somos amigos. Eram amigos. Que disparate encantador. Como se alguma vez visitasse um homem solteiro na sua casa. Partiu do princípio de que era um homem solteiro, se ele próprio se estava a encarregar da compra de cortinados e artigos semelhantes. Pareceu-lhe um momento prudente para continuar a andar. Caminhou ao lado do seu acompanhante até chegarem a uma porta vermelha. – Esta é a loja de Mrs. Fleming. Ela vende diversos artigos e mercadorias. Tenho de me despedir agora para poder ir comprar um pouco de linha. – Ergueu o tecido de musselina à laia de explicação. – Isso é para um vestido? O padrão favorece-a. Faz os seus olhos parecerem muito azuis. Mais lisonja pateta. Nunca tinham feito um comentário a respeito dos olhos dela. Ele espreitou pela janela. – Eu faço-lhe companhia. Estou a ver algumas panelas lá dentro. Panelas. Ela olhou pela janela e reconheceu as panelas que ele agora observava. – Chegaram ao ponto de roubar as suas panelas? Isso é terrível – murmurou. – Estou grato por terem deixado os restos de uma cama para não ter de dormir no chão. E uma cadeira e uma pequena mesa. Uma cadeira. Mrs. Fleming, uma mulher pequena e débil com cabelo grisalho, dava primazia a vestidos simples, batas grandes e cabelos apanhados de modo sóbrio. Não escondeu a sua surpresa ao ver Eva entrar com um homem. Os olhos dela arregalaram-se à medida que o aspeto elegante daquele homem se tornou óbvio. Corou até às raízes do cabelo e fingiu remexer nos frascos de vidro pousados no balcão à sua frente. – Bom dia, Mrs. Fleming. Se tiver a bondade de me ir buscar linha branca, gostava de levar um pouco. Mrs. Fleming abriu uma gaveta e fez aparecer a linha. – São três moedas de um dinheiro. Eva passou-lhe as moedas. – Permita-me que lhe apresente Mr. Fitzallen. É o proprietário da velha ruína na Estrada Thatchers. Fixou lá residência e precisa de substituir os artigos que foram roubados da casa ao longo do tempo. Panelas e coisas semelhantes.


Ela brindou Mrs. Fleming com um olhar eloquente e depois dirigiu um olhar grave para as panelas que atraíram a atenção de Mr. Fitzallen. Tinham aparecido na loja na manhã seguinte ao dia em que o seu caminho se cruzara com o do filho de Mrs. Fleming na estrada perto da casa abandonada. Ele carregava um saco volumoso às costas. Mrs. Fleming mordeu o lábio inferior. – Eu tenho panelas, meu senhor, mas só panelas pequenas e são usadas e velhas. Provavelmente, quer melhor do que isso. – Creio que terão de servir, por agora. Com um olhar de relance para Eva, Mrs. Fleming retirou-as da prateleira e colocou-as em cima do balcão. – Se desejar panelas para guisados e sopas, será melhor falar com o ferrageiro à saída da vila. O funileiro também vive lá perto, se quiser latas para guardar farinha e coisas do género. – Seguramente que irei visitá-los. Obrigado. – Ele acrescentou algumas facas e utensílios de cozinha às panelas. Seguiram-se lamparinas e velas, e depois passou às prateleiras do outro lado da loja que exibiam peças de loiça. Eva aproveitou a oportunidade para murmurar: – Parece-me que acabou de vender àquele homem panelas que já eram dele. – O que podia eu fazer? Há pedaços daquela casa um pouco por toda a vila. Quem é que esperava que o proprietário aparecesse depois de todos estes anos de abandono? – Ela sorriu para Mr. Fitzallen enquanto este enchia os braços. – O que são algumas panelas, no fim de contas? Não é a mesma coisa do que me ter servido de cadeiras, não lhe parece? – Ela baixou a cabeça e ergueu o olhar para Eva. Eva preferiu não aprofundar a questão das cadeiras. Na altura, pareceu-lhe que seriam mais felizes se fossem levadas para longe do que usadas para lenha por vagabundos. – Temos de espalhar a palavra de que aqueles que levaram coisas emprestadas daquela casa têm de devolver os objetos. – A não ser que já os tenham vendido, é claro. Sendo assim, não podem fazêlo, pois não? Não, não podiam. Ela não podia devolver as cadeiras. Mas se uma fila de habitantes da vila trouxesse de volta objetos levados emprestados, podia devolver igualmente aquilo que levara emprestado sem atrair atenção. – Vou espalhar a palavra e a senhora devia fazer o mesmo – sussurrou-lhe ela. – Ele pode ser parente de um duque, mas acho que vai fazer vista grossa a quem


lhe trouxer de volta os seus pertences, desde que regressem efetivamente ao seu lugar original. – Parente de um duque? O que quer ele de si? Nada de bom, isso lhe garanto. Eva não fazia ideia do que ele queria dela, ou se queria alguma coisa sequer. Mr. Fitzallen pousou os últimos artigos para comprar em cima do balcão. – É tudo, por agora. Porém, estou certo de que assim que não estiver distraído por duas senhoras encantadoras, vão ocorrer-me outros bens imprescindíveis. Eva quase revirou os olhos perante aquela adulação. Mrs. Fleming ficou radiante e, por instante, pareceu vinte anos mais nova. – Podemos levar-lhe tudo a casa – ofereceu ela. – O meu filho trata disso. – Que simpático da sua parte. Agradeço-lhe imenso. Mrs. Fleming soltou um risinho. – De nada, meu senhor. De nada. Eva retirou-se enquanto Mr. Fitzallen pagava. Ele apanhou-a lá fora e caminhou ao lado dela como se tencionasse passar o dia a fazer de sua sombra. Por cortesia, Eva apontou-lhe a rua da igreja, embora ele tivesse demonstrado mais interesse pelas duas tabernas pelas quais passaram. – É uma vila cativante – afirmou ele. – Parece próspera. – Embora existam famílias antigas na região, nas terras à volta, muitos dos que vivem aqui mudaram-se de Birmingham depois de terem feito fortuna. Nas primeiras horas da manhã, pode ver os homens a ir para Birmingham a cavalo ou em carruagens. Encontrará muitas casas novas se passear pelas ruas, geralmente de um tamanho considerável. Os encontros sociais estão repletos de roupas elegantes e joias. – São industriais? Duvido que eu seja bem recebido. A experiência diz-me que os recém-chegados ao mundo da prosperidade são mais críticos do que os demais a respeito do berço de uma pessoa. O meu é uma bênção contraditória. Tenho efetivamente, laços de sangue com duques. Na verdade, sou filho de um duque. Porém, a minha mãe não era a esposa dele. Era um bastardo. Seguiu-se um intervalo confrangedor enquanto ela procurava uma resposta. – Creio que o seu berço não terá importância – declarou. – Espero que as pessoas sejam suficientemente bem formadas para não julgar uma pessoa por coisas que ela não controla. – Fico contente por saber que existem alguns livres-pensadores em Langdon’s End, femininos, ainda por cima – disse ele. A seguir, acrescentou: – Não pude deixar de ouvir a sua conversa com aquelas outras senhoras à saída da loja de


Mr. Duran. Eva sentiu o rosto a aquecer à medida que a troca de palavras com as irmãs Neville se repetia na sua mente. – Talvez estivesse enganada e o senhor não seja um cavalheiro, afinal, se ouve conversas privadas às escondidas. – Dificilmente se poderiam considerar privadas. As palavras ressoaram pela vila com mais eco do que o sino de uma igreja. – Tenho a certeza de que interpretou mal aquilo que ouviu. – Talvez. Porém, para que saiba que sou igualmente uma pessoa bem formada, asseguro-lhe que também não acredito que as mulheres devam ser escravas sexuais. A não ser que tenham prazer nesse papel, é claro. – Muito embora existam mulheres desafortunadas que se veem nesse papel, estou certa de que nenhuma delas retira prazer disso. Ele parecia estar prestes a lançar-se num debate em relação ao assunto. Ela lançou-lhe um olhar fulminante. Ele absteve-se de prosseguir, mas não se retirou da companhia dela. – As minhas desculpas – declarou ele. – Receio tê-la chocado. – Suspeito que se diverte a chocar pessoas, Mr. Fitzallen. Se isso for verdade, vai achar a minha amizade assaz insatisfatória, visto que nada me consegue chocar. – Nada? É, de facto, uma livre-pensadora. Ela estugou o passo. Ouviu um riso baixo ao mesmo tempo que as passadas dele acompanharam o seu ritmo. Atravessou abruptamente a rua e conduziu-o à porta do escritório de Mr. Trevor. – Mr. Trevor é arquiteto – explicou, enquanto batia a aldraba na porta. – Pode aconselhá-lo em relação a trabalhadores e ajudá-lo bem mais do que eu serei capaz. Mr. Trevor, um homem jovem de cabelo loiro, óculos e uns modos obsequiosos que Eva achava irritantes, ergueu-se da cadeira de um salto quando a viu. Ela avançou em passo de marcha até à enorme secretária repleta de esboços e apontou para a sua companhia. – Bom dia, Mr. Trevor. Apresento-lhe Mr. Fitzallen. É o proprietário da velha casa em ruínas e tenciona recuperá-la. Vai precisar de bastantes conselhos e muitas referências. Os homens cumprimentaram-se mutuamente. Mr. Trevor voltou a dirigir a sua atenção para ela.


– Fico-lhe grato por nos ter apresentado, Miss Russell. Confesso, porém, que tinha esperanças de que tivesse vindo até cá falar da sua própria propriedade. – Já lhe dei a minha resposta a esse respeito. Agora, vou deixar-vos aos dois para me ocupar dos meus recados. E, Mr. Trevor, pode passar a palavra de que se alguém por acaso se deparar com artigos removidos da casa de Mr. Fitzallen os deve devolver? Houve muitos que julgaram tratar-se de uma casa abandonada. Erradamente, ao que parece. Dito isto, saiu com passos largos, antes de Mr. Fitzallen poder encontrar uma forma de se retirar igualmente.

Mr. Trevor observou a senhora a sair. Os olhos pálidos de Trevor refletiam uma apreciação masculina. – Miss Russell possui imensa presença de espírito, não é assim? – disse Gareth. – Sinto-me afortunado por ela ter acedido a ajudar um recém-chegado como eu. – Ela é igualmente uma oponente impressionante, em certas ocasiões. O seu ponto fraco é permitir que o sentimento por vezes conduza aquilo que é uma inteligência natural. – Trevor deixou-se cair de novo na cadeira. – Represento uma família que quer adquirir a propriedade dela por um valor considerável. Ela não quer vender. Receio que antes disso passe fome. – Ela pertence a uma das famílias antigas proprietárias de terras, não é verdade? Por norma, sentem aversão à ideia de vender. – É compreensível. Os Russell chegaram a possuir duzentos hectares de propriedades sem vínculos de sucessão hereditária. Mas como os tempos agora são outros... O pai dela vendeu muitas das terras e a doença do irmão contribuiu grandemente para a decadência da situação deles, como se pode compreender. – Falou como se Gareth soubesse de toda a história. Gareth não fez nada que indicasse que não era esse o caso. – Ela vai acabar por vender. Vai ter de o fazer. Será pelo melhor. Ficará bem melhor numa casa pequena aqui na vila. – Se fosse a si, não contava que isso acontecesse em breve, se ainda não aconteceu. Assim que essa herança se perder, é pouco provável que venha a ser recuperada. A propriedade não é obtida de forma fácil ou barata em Inglaterra. É por essa razão que o seu cliente quer a dela. Trevor assentiu de forma absorta e depois focou a sua atenção. – Qual é o ponto de situação da sua casa? O telhado está em bom estado, pelo menos?


Passaram a meia hora seguinte a discutir o estado do Chalé Albany. Gareth deixou o escritório após combinar a visita de Trevor dali a dois dias para avaliar os estragos. Fez uma visita ao ferrageiro e depois caminhou de volta até à rua principal e entrou numa das tabernas, chamada White Horse. A sua aparição fez cessar todas as conversas. Dez homens fitaram-no fixamente em silêncio. Nenhum deles era um cavalheiro. Aquela era, sendo assim, a taberna preferida pelos trabalhadores e comerciantes de longa data de Langdon’s End. Os novos residentes, aqueles industriais que construíam casas novas, bebiam noutro lado. Sentou-se e pediu uma cerveja. O zumbido das conversas foi retomado. Observou o teto revestido a madeira escura e paredes de reboco desiguais enquanto bebia. Um homem jovem com cerca de vinte e cinco anos, com um casaco castanho, calças largas e sapatos antiquados avançou despercebidamente até à sua mesa e sorriu de forma tão amistosa que todos os seus dentes ficaram visíveis. – Foi o senhor que ficou com o velho chalé? – Sou, pois. Como é que soube? – Com todo este falatório. De como um cavalheiro qualquer de Londres vem viver para cá agora. Mrs. Fleming disse aqui ao Harold como era o seu aspeto, por isso percebemos que era o senhor. – Ele riu-se. – É engraçado, não me parece louco. Gareth pediu outra cerveja para o seu interrogador. – Não obstante esse facto, devo estar louco, para ficar com um monte de pedras daquele, verdade? – Provavelmente. Não que eu seja a melhor pessoa para o julgar. O melhor é que alguém fique com ela, é assim que eu vejo as coisas. – E os outros não são da mesma opinião? O homem encolheu os ombros. Gareth fez um gesto ao homem para que se sentasse quando a cerveja chegou. – Como se chama? – Erasmus. Não se ria. O meu pai tinha ideias estranhas. Enviou-me para a escola para aprender letras e números, outra ideia estranha, por isso acho que posso fazer jus ao nome. – Eu chamo-me Gareth Fitzallen. Erasmus bebeu um longo trago da cerveja. – Eu sei. Mrs. Fleming também contou isso ao Harold. E também que Miss


Russell disse que tudo o que foi levado daquela casa tinha de ser devolvido. – É provável que alguém dê ouvidos a isso? – Pode ser que sim. Miss Russell é apreciada, de uma forma respeitosa. É uma senhora de alta sociedade, mas não é dada a arrogâncias, como outros parecem ser. E não dá muita importância aos novos. – Os novos residentes não são tão apreciados como ela? – Longe disso. Têm o nariz mais empinado do que o da rainha, mas os avós deles não eram melhores do que eu. – Erasmus bebeu de novo e depois inclinouse por cima da mesa com um sorriso cúmplice. – Há alguns meses, alguns dos novos estavam na loja de Mrs. Fleming e começaram a rebaixar as mercadorias. Aquilo não era suficientemente bom e aqueloutro não era de qualidade. Miss Russell estava lá e disse-lhes que saíssem, se não eram suficientemente bemeducados para saber quando falar e o que dizer. – Ele soltou uma pequena risada. – Diz-se que a boca deles se abriu tanto que se podiam ver os pulmões. – Acenou com a cabeça. – Ela é um artigo genuíno. Da mesma forma que o senhor. Talvez não chegue tão alto como o senhor, mas é a filha de um cavalheiro. – Qual é o seu mister, Erasmus? Embaraçado, Erasmus passou os dedos pelo cabelo castanho com um corte rente e grosseiro. – Venho de uma família de rendeiros. A nossa casa era junto ao lago. Era uma bela terra, aquela. Mas o dono vendeu-a e fomos obrigados a sair. Estávamos lá há quatro gerações. Agora não existem colheitas novas, só rosas, e casas grandes cheias daqueles novos. Por isso, o meu mister agora é o que aparece. – Sorriu quando lhe ocorreu um pensamento. – Acho que se pode dizer que sou um faz um pouco disto e um pouco daquilo. – Por coincidência, preciso de alguém que faça um pouco disto e um pouco daquilo. – Não me diga? Bom, sou o homem de que precisa. Não existe muito disto e daquilo que eu não saiba fazer. – Venha até lá a casa amanhã. Vamos começar pelo disto. – Gareth ergueu-se para partir. Erasmus fitou o outro lado da taberna, de olhos na mesa onde o seu amigo loiro ainda estava sentado. – Diga-me, precisa de mais braços? Ali o Harold esteve no exército durante a guerra. Serviu um oficial, afirma ele. – Diga-lhe para vir também, se estiver interessado.


Depois de deixar a taberna, Gareth passou pela loja de Mrs. Fleming para comprar mais um artigo e depois foi buscar o seu cavalo ao estábulo com o intuito de seguir em direção a casa. Casa. Teve de sorrir com aquela palavra. De certa forma, não tinha uma casa desde que fora enviado para o colégio interno na infância. Gostava bastante da ideia de ter uma naquele momento, ainda que fosse um monte de pedras em ruínas. Erasmus e Harold seriam úteis de muitas formas. Conheciam bem a vila, assim como os seus habitantes. Por exemplo, decerto que saberiam onde vivia Miss Russell.


CAPÍTULO 5

R

ebecca alinhavava cuidadosamente uma manga à luz que vinha da janela da frente. Eva trabalhava no corpete de maneira a poder fazer uma prova ainda naquele dia. – Já tiveste notícias da Sarah? – perguntou Rebecca, sem desviar a cabeça do trabalho. – Escrevi-lhe apenas há dois dias. Não estou à espera de uma resposta imediata. – Achas que nos vai receber em sua casa? Adoraria passar vários dias seguidos em Birmingham, em vez de um dia sem exemplo. – Julgo que sim. Sarah era filha da irmã da mãe de ambas, e mais velha do que Eva. Aquele lado da família nunca fora próximo, possivelmente porque a família do pai nunca aprovara o casamento dele com a filha de um comerciante. Um comerciante abastado, era sabido, que tinha o triplo da fortuna do pai delas. Eva mantinha com Sarah uma esporádica troca de cartas para que a ligação não se perdesse completamente. Isso não significava que Sarah visse com bons olhos o facto de as primas a procurarem para abusar da sua hospitalidade. Se, como esperado, Sarah se recusasse a recebê-las, o resto da reserva de moedas teria de ser mal gasta na diária de uma estalagem ou hotel, e só poderiam ficar uma noite, em vez de duas ou três. Eva sacudiu o corpete e admirou o tecido. Tinha escolhido bem. Parecia jovial, mas não demasiado ameninado. Rebecca teria protestado se a tivesse feito parecer uma rapariguinha naquele vestido novo.


– Quem é aquele? – perguntou Rebecca. Eva ergueu a cabeça e viu a irmã a olhar pela janela. Rebecca levantou-se e abriu-a para poder ver melhor. – Será mais um daqueles estranhos que têm andado muito por aí no último mês? – Eva avistara outro a atravessar o campo que ficava para lá do seu jardim quatro dias antes. Podia tratar-se de um amigo dos vizinhos, evidentemente. Estava tão longe que talvez não fosse sequer um estranho. Contudo, a inquietação apoderou-se dela, tal como acontecera com algumas das caras e figuras desconhecidas que ultimamente abundavam no seu mundo. – Parece ser um cavalheiro, ou um homem muito rico, montado num enorme cavalo negro e é deveras elegante. Meu Deus, parece-me que vem em direção à nossa porta! Eva aproximou-se e espreitou. Afastou-se rapidamente, fechou a janela e deu uma vista de olhos pela biblioteca. – É um conhecimento recente. Não estava à espera que aparecesse. Guarda o tecido e tira as linhas e agulhas do divã. Depressa. Rebecca pegou apressadamente no trabalho e despejou-o no cesto de costura. Eva tentou tornar a mesa mais apresentável, virando a única cadeira que existia de frente para o divã. Estava a agradecer a Deus pelos panos de proteção que tapavam o quadro emprestado e o seu trabalho em curso quando o toque à porta ecoou por toda a casa. Apontou para o divã. – Senta-te. Oferecemos-lhe a cadeira. – Quem é ele? Como o conheceste? Porque não me disseste que tinhas um novo amigo? – As perguntas jorravam em voz baixa. Eva não tinha tempo para explicar. Dirigiu-se à porta e abriu-a. À sua frente, surgiu Mr. Fitzallen em todo o seu atraente esplendor. Convencera-se de que exagerara a aparência dele na sua cabeça, mas afinal não, isso não era verdade. Pelo menos, daquela vez não o olhou fixamente boquiaberta. – Mr. Fitzallen, que visita tão amável. Faça-nos companhia, por favor, e digame em que lhe posso ser útil. Ele entrou e seguiu-a até à biblioteca. – Não venho abusar da sua ajuda, Miss Russell. Estava a passar por aqui a cavalo e pensei em fazer uma visita social. Fez-lhe uma vénia, depois outra a Rebecca, mas não deu nenhuma atenção especial à sua irmã.


O mesmo não se podia dizer de Rebecca. De olhos esbugalhados e queixo caído, Rebecca parecia estar em choque. Tal como eu já fiquei várias vezes, lembrou Eva a si própria. – Que generosidade da sua parte, meu senhor. – Apresentou Rebecca, sentouse no divã e convidou Mr. Fitzallen a ocupar a cadeira. – As suas diligências avançam bem no chalé? – perguntou ela. – Melhor do que nunca, obrigado. Contratei dois homens na vila. Um deles está a revelar-se habilidoso em reparações. O outro era impedido no exército e começou a organizar as tarefas domésticas e a cumprir as funções de criado particular. – Deve ser o Harold. É um homem honesto. – Como muitos dos habitantes de Langdon’s End, vim a perceber. Já tenho mais três cadeiras e duas mesas. Apareceram-me à porta ontem de manhã, juntamente com um cesto com talheres e vários alguidares de cobre. Julgo que é a si que tenho de agradecer. – É um alívio saber que alguns dos artigos levados emprestados foram devolvidos. Julgo que mais se seguirão. Desse modo, já não terá de mobilar a casa completamente. Os grandes olhos de Rebecca viraram-se para ela à menção de artigos levados emprestados. Eva ignorou-a. – Eu agradeço. Mr. Trevor apareceu e fez uma lista com as reparações mais importantes. Hoje percorri a propriedade, para perceber o que era o quê ali. – Se anda a cavalgar há muito tempo, deve precisar de um refresco. Só posso oferecer-lhe água, mas é de uma boa nascente. – Ela pôs-se de pé. – Vou buscarlha. Ele ergueu-se ao mesmo tempo que ela. – Permita-me que lhe faça companhia. Está um dia bonito. Tem um jardim? – Sim e é bastante agradável. Ao voltar-se para contornar a mesa, Mr. Fitzallen avistou a caixa das tintas. O olhar dirigiu-se para as paredes e para dois dos quadros dela que adornavam as paredes. Aproximou-se de um deles, lançando um olhar perturbadoramente interessado à tela coberta no cavalete. De seguida, semicerrou os olhos junto da paisagem na parede. – Qual das duas é a artista? – É um passatempo – respondeu Eva. – São apenas caprichos de uma amadora. – Nunca ninguém comprara os seus quadros. Muitos deles estavam na loja de Mr. Stevenson há anos.


– Uma excelente amadora – disse ele. – Que amável. Obrigada. – Eva indicou o caminho até às traseiras da casa. – Vem, Rebecca. – Importas-te que não vá? – replicou Rebecca. – Fico aqui a ler o meu livro, se não correr o risco de parecer mal-educada. – Estás a ler há horas – disse Eva de forma contundente, olhando a irmã nos olhos. – O dia está bonito e o ar puro vai fazer-te bem. – Bonito de mais, receio – respondeu Rebecca, inocentemente. Os seus olhos enormes continuavam a dirigir-se subtilmente para Gareth, mal reprimindo um sorriso. – Ia sentir-me desconfortável com esta lã que trago vestida. – A bem da tua saúde, devo insistir que... – Eva calou-se. Rebecca olhara na direção de Gareth de forma algo alarmante. Eva desviou o olhar e viu os dedos de Gareth aproximarem-se da ponta do pano que cobria o quadro emprestado. – Mr. Fitzallen, vamos nós sair e desfrutar do jardim, ainda que a minha irmã não se junte a nós – apressou-se Eva a dizer. Os dedos interromperam o seu curso. Mr. Fitzallen seguiu-a de forma solícita até às traseiras da casa. Eva levou o convidado para o jardim, voltando depois à cozinha para ir buscar um copo de cerâmica. Quando regressou, Mr. Fitzallen carregava um balde de água pelo caminho que vinha do abrigo da nascente. Nas traseiras, só havia bancos. Sentou-se com ele num deles e ele mergulhou o copo na água gelada. A brisa corria fresca, mas o sol irradiava calor. Pequenas folhas salpicavam os ramos das árvores e arbustos e os botões das plantas espreitavam da terra. – Que jardim tão agradável. O seu jardineiro cuida muito bem dele. – A jardineira sou eu. Descobri que gosto de cultivar coisas e mudar plantas e outras coisas de sítio. É como pintar, uma vez que tem que ver com cor, luz e formas. – Tem sido a jardineira desde que o seu irmão ficou doente? – Falaram-lhe dele? Era de calcular que não houvesse muita privacidade numa vila como a nossa. Ignorava a situação financeira da minha família até ele ter regressado a casa com aquele ferimento de bala. A enfermidade dele fez com que me desse conta do quão terrível se tinha tornado a nossa situação. Dispensei de imediato os serviçais. Por isso, sim, tenho sido eu a jardineira desde então. – Não obstante esse facto, descobriu uma nova alegria, portanto triunfou sobre a adversidade.


– Sim. Tenho orgulho neste jardim. Agora é uma criação minha. Gosto disso. Também gostava de o dizer em voz alta. Havia quem tivesse pena dela e de Rebecca, como se o dinheiro fosse a única coisa que importasse. Mr. Fitzallen não parecia ser assim e isso impressionava-a. Sentia uma intimidade cúmplice com o homem que a escutava. Ele sentou-se à distância de dois palmos, tão perto que ela sentia o seu calor ao lado do corpo. A presença masculina dele afetava-a de forma confusa. Ao mesmo tempo estimulante e reconfortante, a sua aura prometia novidade, fascínio e atenção. Talvez não estivesse a brincar a respeito do facto de serem amigos. Seria agradável ter um amigo. – É uma propriedade simpática. – Ele ergueu o copo, fazendo um sinal na direção do terreno entre muros e além. – A nascente, por si só, torna-a valiosa e está muito bem situada. Podia vendê-la e ter um futuro mais fácil do que o que conheceu até aqui. Levantaram-se e começaram a passear pelo trilho do jardim. – Esta casa e este pedaço de terra é tudo o que temos. Quando a Rebecca se casar, dou-lhe a minha parte, para que ela tenha alguma coisa de seu. Mas... – Fitou o jardim e depois a casa. – É também quem nós somos. Se vender, quem seremos nós? – Riu delicadamente das suas próprias palavras. – Isto parece estúpido. Continuaremos a ser as mesmas pessoas, evidentemente, só que... – Compreendo perfeitamente. Ela via nos olhos dele que sim. – Foi uma tragédia o seu irmão ter ficado doente – declarou ele. – Creio que não tem desfrutado muito da vida nestes últimos anos, a assegurar o dia a dia, apesar do seu prazer na criação deste jardim. – Sim, uma tragédia, em vários sentidos. – O teu amor trágico. – Mas... se não tivesse sido obrigada a assegurar o dia a dia, receio que teríamos perdido tudo. Ele contava levar uma vida de cavalheiro que não nos podíamos dar ao luxo de ter. Ele deteve-se e virou-se para ela. Estavam no pequeno pomar ao fundo do jardim, debaixo dos ramos carregados com os primeiros frutos. – Também compreendo isso perfeitamente. Mas agora temos de garantir que também poderá gozar a vida. Farei disso a minha missão. – Isso não será difícil. Tenciono gozar bastante a vida no futuro. Passei os últimos meses do nosso período de luto a planear exatamente como fazê-lo. Ele riu-se.


– Estará Langdon’s End preparada para uma Miss Russell determinada a gozar a vida? E o mundo? – Possivelmente não. O mundo terá de se adaptar. Está convidado a juntar-se a mim, mesmo que não seja necessária uma missão para me ajudar. – Se calhar sou eu quem vai precisar de ajuda. Sou um estranho aqui, lembrase? Infelizmente, receio que já se terá posto a caminho antes de eu regressar de uma viagem que tenho de fazer. – Julgo que não terá dificuldade em gozar a vida, assim que quiser. Ele fez um bonito sorriso. A sua postura alterou-se daquela forma subtil que mostra que alguém se prepara para partir. Algo o deteve. – Ah, já me ia esquecendo. Trouxe-lhe isto. – Pôs a mão dentro do casaco. A lembrança era um pedaço comprido de fita. Ela reconheceu-a da loja de Mrs. Fleming. Uma elegante tira de cetim, cuja intensa cor de alfazema lembrava a primavera. O gesto tocou-a. – Obrigada. É linda. – Condiz lindamente com a musselina que comprou. O roxo vai fazer sobressair a cor amarelo-clara do tecido e também o azul dos seus olhos quando a usar. Ela enrolou cuidadosamente a fita à volta da mão. – A musselina não é para mim. Estou a fazer um vestido novo para a minha irmã. – Ah. Pois, claro. Então, pode usar uma parte para o vestido, mas prometa-me que vai guardar o suficiente para colocar no seu cabelo. Ele deixou-a sem palavras durante bastante tempo, enquanto contemplava a fita. – É muito generoso. Envergonho-me de o ter julgado erradamente de início. Não é tão perigoso como parecia ser. – Trate-me por Gareth, por favor. Em troca, gostaria de a tratar por Eva em privado, se me permitir. – Gareth – disse ela baixinho, a testar a informalidade da palavra. – Sim, pode ser Eva quando ninguém estiver por perto. – É uma honra. Agora, uma vez que somos amigos, vejo-me obrigado a dizerlhe uma coisa. Devo avisá-la que o seu julgamento está, na realidade, bastante correto, Eva. Sou realmente perigoso. Especialmente para com mulheres maduras e adoráveis como é o seu caso. Espantada, ergueu os olhos para ele. Foi um erro. O olhar que se cruzou com o


dela pertencia ao homem perigoso para o qual a alertara. Contemplou-o, cativada por aquele rosto. O seu meio-sorriso deixou-a em tumulto. Iria beijá-la? Seria atrevido a esse ponto? Assim parecia. A ideia acelerou a sua pulsação. O que fazer? Não podia permiti-lo, mas... Não conseguia afastar-se, nem tãopouco pronunciar uma resposta trocista. Limitou-se a esperar e essa espera afetou o ar, o jardim e o espaço entre eles. Sentiu a mais chocante das excitações. Pareceu-lhe que ficaram ali muito tempo, de olhos fixos um no outro, até que a espera se tornou quase penosa. Uma ideia escandalosa passou-lhe pela cabeça – esticar-se e beijá-lo primeiro. Ele recuou. O olhar dirigiu-se para o jardim, para longe dela. Quando olhou para ela de novo, voltara a ser apenas o amigo encantador, apesar de uma minúscula ruga de expressão lhe vincar a sobrancelha. Fez-lhe uma vénia. – Tenho de partir. Regresso daqui a um mês. Talvez daqui a quinze dias. Farlhe-ei uma visita quando estiver de volta. E depois desapareceu, avançando com passadas largas pelo jardim até ao portão lateral.


CAPÍTULO 6

–V

ejo que a minha carta te encontrou – disse Ives quando Gareth entrou na biblioteca da Casa Langley em Londres. – Contratei um homem para o Chalé Albany que teve o bom senso de a reencaminhar. Que estás aqui a fazer? – A carta chegara naquela manhã, apanhando Gareth a planear sair da cidade. Os quadros do conde haviam chegado, a compra fora concluída e o transporte para a nova morada providenciado. O pagamento de Hendrika já ia a caminho de Amesterdão e a sua bolsa estava a abarrotar alegremente com a sua comissão. A única razão que o impedia de encarar com total contentamento o regresso a Langdon’s End prendia-se com Eva Russell. Uma agradável amizade tinha-se complicado no espaço de um minuto durante a visita que lhe fizera. Quase a beijara. Não podia negá-lo, embora não fizesse qualquer sentido. Eva Russell não era o género de mulher que habitualmente cortejava. Solteira, da pequena nobreza rural, era o oposto das mulheres com quem tivera casos amorosos. Nem tão-pouco beijava ou fazia qualquer outra coisa com mulheres de forma impetuosa. Não obstante, naquele jardim, o fervilhar rejubilante da excitação que tão bem conhecia quase levara a melhor sobre o bom senso. Tinha-a alertado durante a tempestuosa batalha contra as suas vontades, mas em vão. Ainda estava surpreendido por ter conseguido afastar-se da expectativa ofegante dela. Era provável que o espanto que sentira à face dos seus impulsos fosse responsável por salvar o dia. Ives pôs de lado o livro que estivera a ler. – O Lance insistiu em vir. Estava a enlouquecer. Não pude impedi-lo, por isso


vim com ele para ficar de olho nas coisas. – Houve alguma alteração no inquérito? Ives abanou a cabeça. – Está num impasse, mas ainda não o vão arquivar. Os magistrados fizeram uma visita para conversar com o Lance. Nenhum se atreveu a acusá-lo, mas as perguntas tornaram-se bicudas. – E as respostas dele? – Brindou-os com explicações acerca das várias e melhores formas de matar um homem do que fazê-lo com um veneno. Algumas eram deveras criativas. Gareth riu-se. Ives não. Em vez disso, lançou um estranho olhar a Gareth. – Chalé Albany? – A casa precisava de um nome. – Quem me dera que o Percy estivesse vivo para ouvir o nome que escolheste. – Assim que a propriedade for oficialmente minha, vou à campa dele e contolhe tudo. – Isso é a garantia de que ele não descansará em paz durante muito tempo. Gareth deu uma volta pela biblioteca. – Há muitos anos que não vinha a esta casa. Não mudou lá muito. Fico satisfeito. – Espero que as memórias que estejas a reviver sejam boas – disse Ives. – São melhores do que as memórias ligadas ao Chalé Albany. O Percy corrompeu-as, deliberadamente, ao passo que o tempo passado com o duque nesta biblioteca nada teve que ver com o Percy, nem com mais ninguém. Circulou por aquele espaço amplo, impressionado pela estranha familiaridade que criava. Duques por natureza e posição não eram dados a uma intimidade fácil, mas lembrava-se de algumas ocasiões em que ali se sentira como um filho. Quero ouvir-te a ler isto aqui, para me certificar de que a escola não anda a ignorar-te. Reconhece-se um nobre pela mente e educação, Gareth, e também pelo seu sangue. Os rapazes são duros contigo na escola por seres um bastardo, mas lembra-te por que motivo ali estás e de quem és filho. – Podes cá ficar sempre que vieres à capital – informou-o Ives. – O Lance disse o mesmo. Ou em Merrywood, quando estiveres lá perto. Ele avisou os serviçais que podes usar as propriedades da família na qualidade de filho do nosso pai. Gareth continuou a caminhar e a observar os pormenores, sobretudo para esconder a sua reação a esta surpreendente oferta. Com um pequeno gesto de generosidade, Lance apagara a sensação de uma vida inteira de jamais pertencer


a nenhuma daquelas casas ou a lado algum. Gareth ficou comovido e demoraria algum tempo a adaptar-se. – Fizeste progressos naquela investigação? – perguntou Ives. – Alguns. Localizei a rota provável das carruagens. Percorri a mesma estrada quando vim à capital, tomando nota das imediações e das propriedades por que passei ou atravessei. – Enquanto aqui estive, aproveitei a oportunidade para reunir alguma informação para ti. Nomes dos serviçais e dos cocheiros, até onde a memória alcança. Assim como cartas de apresentação para as famílias que vivem perto das derradeiras moradas dos quadros. Estou certo de que conseguirás arranjar um pretexto para as visitar. – Isso vai ser útil. – Diabos o levassem se sabia arranjar um pretexto para as visitar. Ives às vezes esquecia-se de que ele e Lance podiam aparecer de surpresa à porta de um aristocrata qualquer e receber a descontraída hospitalidade que aquelas famílias partilhavam sem questionar. Gareth não podia fazer isso. – Tens uma lista dos quadros que estão desaparecidos? Sem ela, não saberei o que encontrei, caso encontre alguma coisa. – Chega daqui a uma semana. Vou pedir que ta enviem. Para aqui? Ou... para o Chalé Albany? – Nessa altura, já devo estar de regresso. Na realidade, devo partir amanhã de manhã, por isso despeço-me já. – Preferia que não o fizesses – objetou Ives delicadamente, algo desapontado. – O nosso irmão quer sair logo à noite. Não consigo impedi-lo. No entanto, dava-me jeito alguma ajuda com ele, se não te importasses. Naquele momento, seria capaz de levar uma bala de mosquete por Lance. De imediato ajustou a sua agenda de forma a ficar mais um dia. – Não me importo. Uma noite na cidade com o Lance nunca é aborrecida. – É verdade, mas lamento informar que o nosso objetivo é torná-la deveras aborrecida.

Uma noite aborrecida significava jogar a dinheiro em salões frequentados por cavalheiros bem-nascidos em vez de um daqueles salões democráticos que Lance preferia. Ives bateu o pé quando chegou a hora de escolher, porque nos lugares preferidos de Lance quase sempre surgiam uma ou duas situações de luta entre os seus frequentadores, confrontos nos quais Lance não se coibia de participar.


À meia-noite, Ives e Gareth observavam Lance a apostar cada vez mais alto na mesa do jogo do faraó. Os clientes que já tinham perdido demasiado também assistiam. Juntara-se uma grande multidão. – Ele está a ser propositadamente imprudente – resmungou Ives. – Presumo que seja porque pode dar-se a esse luxo. – Ninguém se pode dar a esse luxo, a menos que ganhe a maioria das vezes – respondeu Ives. De facto, Lance ganhou dessa vez. Não reparara no burburinho que causava. Atrás dele, Gareth ouviu claramente um comentário. – Parece calmo para alguém que provavelmente cometeu um homicídio. Decerto que os franceses a caminho da guilhotina também pareciam calmos. O sangue não mente, aconteça o que acontecer, certo? Ouviram-se algumas risadas masculinas em resposta. Gareth olhou para o lado para ver se Ives tinha ouvido. Lamentavelmente, ouvira, a avaliar pela expressão severa do seu maxilar... Olhou para baixo e viulhe o punho cerrado. Era esse o problema de Ives. Falava e pensava como um advogado, e parecia bastante sensato e equilibrado, mas quando se irritava, era, não raras vezes, o primeiro a desferir um soco. – Estão com um grão na asa. Ignora-os – murmurou Gareth. – Não posso. Não posso permitir que este tipo de conversa tenha lugar. Mais uma palavra e... – Dizem que foi veneno – ouviu-se a mesma voz masculina afirmar. – Uma arma de mulher. Eu sempre disse que ele era só garganta. Ives voltou-se e abriu caminho por entre o amontoado de corpos até àquela voz. Gareth seguiu-o. Viu-se frente a frente com Lorde Kniveton. Conhecia bem o visconde, embora nunca tivessem sido apresentados. – Volte a falar mal do meu irmão e é a mim que terá de responder – avisou-o Ives. Kniveton achou aquilo muito engraçado. – O que vai fazer? Bater-me com um monte de papéis do tribunal? – Estou mais inclinado a enfrentá-lo num campo de honra do que num tribunal. Kniveton fez uma pausa que mostrava a sua preocupação por ter enveredado por um mau caminho. Depois sorriu desdenhosamente. – Seria uma pena matá-lo, visto que é o seu irmão que desejo ver morto.


Ives moveu-se tão depressa que Gareth quase não o segurou a tempo e agarrou-lhe no braço para não deixar avançar o punho. – Não o deixes provocar-te, Ives. O Kniveton está só a difamar o Lance porque acha, erradamente, que o Lance fornicou com a mulher dele. Quer a vingança de um cobarde, apenas isso. – Quem diabo é o senhor? – berrou Kniveton, atraindo a atenção da multidão que se aproximava. – Sou o irmão bastardo. – É verdade, ouvi falar de si. Muito bem, bastardo, eu não acho que ele tenha tomado liberdades com a minha mulher, eu sei, e serei o primeiro a votar pela sua condenação quando os lordes o levarem a julgamento. – O seu desejo de manchar o nome e a pessoa dele é despropositado. Ele não o enganou com a sua mulher. – Eu sei que o fez. – Está enganado. – O diabo é que estou. Encontrei uma carta que ela lhe escreveu. Tratava-o por Hemingford. – Não pode ser ele. – Ives, com o mau-génio controlado, transformou-se no advogado, observando de forma lógica e metódica as provas. Gareth preferia que ele se tivesse ficado por uma raiva silenciosa. – As amantes nunca o tratam por Hemingford. Kniveton franziu o sobrolho. – Se não for ele, é quem? O Percival não pode ser. – O Percy era demasiado sovina para se envolver com uma mulher que conta com os presentes que a sua esposa é conhecida por exigir. – Conheci... Mas que... Só fica a faltar... – Kniveton olhou zangado para Ives. – Lamento, não sou eu. Insisto para que as minhas amantes me tratem de outra forma. O nome Hemingford é desprovido do sentimento apropriado. Gareth olhou-o com curiosidade. – Nunca me pareceste uma pessoa dada aos tratamentos carinhosos e alcunhas amorosas que as mulheres usam. – Não os suporto. A realidade é que prefiro muito mais que me tratem por Meu Amo e Senhor. – Raios, se não foi nenhum dos dois, quem terá sido? Já esgotámos os Hemingford, por isso alguém tem de estar a mentir. Instalou-se um silêncio desconfortável. Gareth tentou parecer tão perplexo como os restantes.


Ives lançou-lhe um olhar inquisitivo de soslaio. Kniveton contemplou com desagrado Lance, que acabara de ganhar ao jogo novamente e depois Ives, desconfiado. Por fim, fitou Gareth com perplexidade. Era quase possível ouvir o seu cérebro confuso a deslindar aquele enigma. – Você. – Dadas as circunstâncias, para não difamar os meus irmãos de maneira a que se siga um duelo, vou admitir. Era a mim que ela se dirigia na carta. É comigo que ela ainda faz coisas pecaminosas em sonhos. – Diabos me levem se acredito em si. Não é um Hemingford. – Oficialmente, não. Mas ela gostava de me tratar assim na mesma. Se calhar achava que era mais erótico chupar a pila do filho de um duque se fingisse que ele era legítimo. Kniveton pareceu confuso durante uns segundos, como se precisasse de um momento para acreditar no que acabara de ouvir. Dois dos seus amigos disfarçaram um sorriso. – Como se atreve... Ela jamais... Devia desafiá-lo! – Faça o que tiver de ser. Todavia, preferia não ter de o matar por causa de um prazer desfrutado há tanto tempo, por muito agradável que seja a sua memória. Kniveton lançou-se sobre ele. Gareth agachou-se. O punho de Kniveton aterrou no maxilar de um homem entre a multidão que se voltara para assistir ao espetáculo. Ives agarrou em Kniveton, afastou-o e gesticulou na direção dos amigos. – Ele está baralhado e amanhã agradecer-vos-á se o levarem já daqui. Ele não vai querer enfrentar este meu irmão num duelo. Pode ser um bastardo, mas consegue arrancar com um tiro o botão de um casaco de um homem sem rasgar a lã à sua volta. Os dois amigos imobilizaram Kniveton e empurraram-no para fora dali. A boca e a testa de Ives franziram-se, mas os olhos luziam. – Tinhas de descrever o grande talento da senhora. – Se ela fosse minha mulher, gostaria de saber para ter direito à minha parte. A multidão dispersou. Lance caminhou em direção a eles. – O que queria o Kniveton? – Ver-te pendurado numa forca – respondeu Ives. – Não o censuro. É verdade que me deitei com a mulher dele. Ela gosta mesmo de ch... – Sim, nós sabemos – disse Ives. Lance afastou-se em direção à mesa de jogo.


Ives olhou para Gareth. – Raios, esta conversa toda sobre as preferências da senhora deixou-me teso como uma barra de ferro. Mentiste para o provocar, ou sou mesmo o único irmão que não teve direito à sua parte, como disseste? Gareth encolheu os ombros e seguiu Lance.

Eva estendeu o cesto das compras ao lacaio, que o levou para outro lado. Depois, seguiu-o até à bonita sala de estar decorada nos estilos incongruentes das duas mulheres que viviam naquela casa requintada. Os tons metálicos misturavam-se com os pastéis, e as cornucópias com motivos florais. As paredes estavam decoradas com bonitas paisagens, mesmo ao lado de imagens algo bizarras que faziam lembrar as ilustrações de Mr. Blake. As irmãs Neville receberam-na nos respetivos assentos preferidos. Ophelia estava sentada num cadeirão estofado cor-de-rosa. A luz vinda da janela realçava a leveza do seu cabelo loiro, fazendo-o parecer a pálida inflorescência de um dente-de-leão à espera de uma brisa forte ou de um sopro. Jasmine estava estendida no divã, com longos caracóis a acompanhar as mesmas colinas e vales do seu roupão de seda disforme. Tinham enviado uma carta no dia anterior, convidando-a a visitá-las. Era a primeira vez que o faziam. Presumiu que queriam discutir o mesmo tema que ela havia abordado à porta da loja de Mr. Duran, mas na privacidade do seu lar. O chá fora servido. Eva bebericava lentamente, desfrutando daquele privilégio. Nunca bebia chá. Chá de qualidade era demasiado caro e o chá barato sabia à pechincha adulterada que era. – Estamos tão contentes por ter vindo – disse Ophelia. – Podíamos ter sido nós a visitá-la, mas a sua irmã disse que preferia que as pessoas não o fizessem. – Como se nós nos importássemos com a quantidade de cadeiras existentes – acrescentou Jasmine. – A vida é como é. A pobreza de uma mulher não é vergonha nenhuma, especialmente porque raramente é culpa dela. – Obrigada pela vossa compreensão – respondeu Eva. – Seja como for, a Rebecca acha estranho pedir aos convidados para ficarem de pé o tempo todo. – Nisso ela tem razão, Jasmine. Tens de concordar. Jasmine assentiu relutantemente. – Quanto ao que aqui nos traz – continuou Ophelia. – Uma das razões é conhecê-la melhor. Temos comentado muitas vezes que é uma pena nunca ter vindo cá com a Rebecca para ficarmos a conhecê-la melhor. Enquanto o seu


irmão esteve doente, era compreensível, mas depois disso... – Devia sair mais, não ir só às compras – interrompeu-a Jasmine. – Nunca frequenta os encontros sociais nem dá passeios junto ao lago. Adotou certos hábitos enquanto tratou dele que devia tentar abandonar agora que terminou o ano de luto. – Acho que Miss Russell não precisa dos nossos conselhos, irmã. – Ophelia revirou subtilmente os olhos na direção de Eva. – Ainda que ela saiba que aquilo que te faz sugeri-los tenha origem no fundo do teu bom coração. Eva limitou-se a sorrir. – Também queríamos falar-lhe de outro assunto – disse Ophelia. – Como no outro dia nos falou de forma tão franca no meio da rua, depreendemos que não se importasse que fizéssemos o mesmo – intrometeu-se Jasmine. – Não posso levar a mal, como sabiamente apontaram. Digam-me, se não se importam, aquilo a que se acham obrigadas. – Espero que saiba que só o estamos a fazer na qualidade de amigas. – Evidentemente. Do fundo do vosso bom coração, foi o que disseram. Jasmine endireitou-se no divã. O seu exótico roupão fazia-a parecer um profeta estrangeiro. – Temos amigas em Londres. Velhas amigas. Boas amigas. Escrevemos-lhes, para ficarmos a saber tudo o que pudéssemos sobre ele. – Ele? – Mr. Fitzallen. Gareth Fitzallen – esclareceu Ophelia. – Sabia que ele é o filho bastardo do duque de Aylesbury? Do terceiro duque, claro. – A mãe era a filha do mordomo. O Aylesbury fez dela a sua amante. Sustentou-a anos a fio. Décadas. Até à sua morte – contou Jasmine. – Combinações dessas não são nada invulgares entre a nobreza – explicou Eva, com receio de que as irmãs achassem que era tão provinciana que ficasse chocada com aquelas revelações. – E julgo que concordarão que ninguém é responsável pelo seu berço. Jasmine olhou para a irmã expressivamente. Ophelia parecia contrariada. – Eu avisei-te – disse Jasmine. – Vê só como ela o defende. – Apenas porque também me esforço por ter um bom coração – respondeu Eva. Jasmine lançou-lhe um olhar sagaz. – Escute. A sua irmã disse que ele apareceu de visita lá em casa. Levou-lhe um pequeno presente. O Erasmus contou que lhe fez perguntas sobre a doença do


seu irmão e outras coisas relacionadas com a história da sua família. – Outras coisas – repetiu Ophelia discretamente. – Por isso escrevemos às nossas amigas para averiguar quem ele era. – E ficaram a saber que era um bastardo. Eu já sabia. Ele disse-me logo isso. Tal facto não devia ser da conta de ninguém, mas devo ter um coração demasiado bom para pensar assim. Jasmine ergueu as mãos. – Conta-lhe, Ophelia. Vindo de ti, talvez ela dê ouvidos. – Contar-me o quê? Ophelia parecia angustiada. – Nunca pensámos que desse importância ao facto de ele ser um bastardo. É, no entanto, o caráter dele que nos dá que pensar. Não é o melhor. Tem uma reputação para a qual achámos melhor alertá-la, por receio que... ou por outra, para que ele não... – A seduza e abandone – declarou Jasmine ruidosamente. – Para que não conte mentiras, se aproveite e cubra a sua família de vergonha. A voz dela ecoou pela sala de estar. Eva olhou em volta para ver se as janelas estavam fechadas. – Ele é conhecido por ser extremamente pecaminoso – revelou Ophelia. – Muito hábil na sedução. Mulheres casadas, viúvas, mulheres maduras como é o seu caso... – Sobretudo mulheres casadas – disse Jasmine. – Mas as nossas amigas explicaram-nos que ele considera jogo limpo mulheres acima dos vinte e três anos, e há mesmo quem suspeite que já tenha desflorado raparigas inocentes. – Baixou a voz, como se contasse um segredo. – Soubemos que emprega certas técnicas exóticas que deixam as mulheres hipnotizadas, até mesmo desnorteadas, e incapazes de o deixar. Algumas das mulheres mais bem-nascidas, cujos nomes não lhe serão desconhecidos, tentaram mantê-lo mais perto do que a prudência aconselha. Quando era um jovem acabado de concluir os estudos, manteve um longo romance com uma senhora, ela própria conhecida pelos seus excessos românticos. A relação ganhou má fama. Ela tratava-o como se fosse um animal de estimação e gastou uma pequena fortuna com ele. – Talvez ela o tenha corrompido – alvitrou Ophelia. – Se assim fosse, o atual caráter dele não seria da sua responsabilidade. Pelo menos, não completamente. – Irmã, irmã, irmã. Estás sempre a desculpar os mal-intencionados. Não te faz bem nenhum. – Isso não é verdade. Tu vês sempre o pior e eu não, é só isso.


Eva pigarreou para chamar a atenção delas, antes que começasse a assistir a uma longa troca de recriminações. – Estou, obviamente, grata por terem partilhado isso comigo. Posso tranquilizar-vos, Mr. Fitzallen não tem qualquer interesse em mim. Sou a última mulher por quem um homem desses voltaria a cabeça, nem que fosse por algumas horas. Julgo que concordamos que embora ele possa um dia vir a ser pecaminoso com uma senhora de Langdon’s End, essa senhora não serei eu. Ambas a olharam com alguma estranheza. Depois, trocaram olhares uma com a outra. A seguir, olharam novamente para ela. – Decerto que não é consigo que estamos preocupadas – disse Jasmine. – Receamos que seja a Rebecca a atrair a perversidade dele. Com certeza. Era com a lindíssima Rebecca que estavam preocupadas. Fui eu quem ele quase beijou. Foi a mim que ele ofereceu aquele pequeno presente. É a mim que ele talvez venha a seduzir e abandonar. Esteve à beira de o dizer. De o gritar. Só que sabia que as irmãs tinham razão. Não corria perigo. Perigo nenhum. Depois de refletir, de muito refletir, concluíra que se enganara e que ele não a tinha quase beijado. Porque, pelos vistos, uma coisa era certa: Gareth não se colocava na situação de quase beijar mulheres. Longe disso. – Têm um coração deveras bondoso para estarem preocupadas com a minha irmã. Estou muito sensibilizada. Se isso as deixar descansadas, deixem-me que lhes diga que ele mal olhou para ela quando visitou a nossa casa. – É a estratégia habitual desse género de homens. A questão é se ela olhou para ele – disse Jasmine. – Como poderia deixar de o fazer? Claro que ficou impressionada. Ele é muito bem-parecido. No entanto, depois de se ter ido embora, perguntei-lhe o que tinha achado dele. Vão achar graça à resposta dela. Disse que era bonito, mas velho. – Ele não terá mais do que trinta anos – retorquiu Ophelia. – Talvez seja até uns anos mais novo. – Para uma rapariga da idade dela, trinta anos é ser-se ancião. Pelo menos era, quando eu tinha dezoito anos. – O facto de Rebecca ter rejeitado Gareth por o considerar demasiado velho era um presente envenenado. Embora ficasse contente por Rebecca não ter desenvolvido uma paixoneta por ele, encontrar um marido para a irmã seria muito mais difícil se ela continuasse a achar que ter trinta anos era ser-se velho. Ophelia parecia aliviada. Jasmine aparentava estar mais ou menos calma. – Seja como for, é melhor mantê-la debaixo de olho – aconselhou Jasmine. –


Sabe-se lá que planos ardilosos poderá ele ter. Ele não tem fortuna, por isso, se o pior acontecer, ela dificilmente ficará mais bem servida se ele tomar a atitude mais correta, o que a sua reputação nos diz que não irá acontecer. Além de um rendimento modesto do duque e daquele monte de pedras a que agora chama Chalé Albany, não tem mais nada. E sendo um bastardo, nunca terá. Eva levantou-se. – Serei muito cautelosa e garanto que a Rebecca não ficará hipnotizada nem desnorteada, prometo-vos. Agora preciso de ir ter com ela. Já estou fora há muito tempo. Saiu da casa, sem saber se deveria sentir-se insultada ou com vontade de rir. As irmãs Neville não lhe tinham dito nada que ela já não suspeitasse acerca de Gareth. Muito mais interessante do que isso fora a referência às técnicas exóticas. Perguntou-se o que diabo significaria aquilo e porque deixaria as mulheres desejosas por mais. A caminho de casa, lembrou-se dos recados que a haviam levado à vila inicialmente. Procurou dentro do cesto por uma carta que chegara. Tinha-a ido buscar quando fora enviar uma outra missiva. Sarah escrevera. Abriu a carta, na esperança de poder dar boas notícias a Rebecca. Deu um pulinho de alegria depois de ler a primeira frase. Sarah tinha-as convidado a passar uns dias em sua casa quando fossem a Birmingham.

Eva bateu com as pontas dos dedos no azul acinzentado da fonte, para verificar se o quadro a óleo continuava pegajoso. Se o embalasse cuidadosamente, talvez aguentasse a viagem até Birmingham juntamente com os outros. Contudo, teria de pedir a Mr. Stevenson que o pendurasse logo de seguida. Passara os últimos dez dias a terminar o quadro, o vestido e a tentar fazer milagres de melhorias noutras peças de vestuário. Naquele momento, Rebecca costurava à luz do janelão, aplicando passamanes novos numa velha peliça. O objetivo, ou antes, a esperança, era tentar que aquelas peças não parecessem tão fora de moda. Ergueu o quadro que tinha copiado. De novo envolto no pano de serapilheira, apoiou o peso sobre a anca. – Tenho de sair agora. Devo estar de volta daqui a uma hora, mais ou menos. Rebecca levantou a cabeça. – Isso não pode esperar até regressarmos da nossa viagem? Estava com


esperança de que me pudesses dar uma ajuda com isto. – Ele agora não está em casa e nessa altura pode já ter regressado. É melhor que isto já esteja no sótão dele quando formos embora. – Duvido que lhe sinta a falta, se nunca for devolvido. Disseste que o sótão é difícil de encontrar. E mesmo que o descubra e repare que haja alguma coisa em falta, é pouco provável que ache que foste tu quem a levou, tendo em conta que há muitas mais coisas desaparecidas. – É um quadro de algum valor, Rebecca. Uma coisa são cadeiras que provavelmente acabariam na fogueira de um mendigo. Outra coisa é um quadro de Gainsborough. A honestidade obriga-me a devolvê-lo. – Então vai lá. Vou pondo a sopa a aquecer, se demorares a voltar. Eva saiu de casa e avançou pelo caminho de entrada abaixo até à estrada. O Chalé Albany não ficava a mais de quinze minutos a norte da casa delas. Chegou à estrada que ligava as duas propriedades e não demorou muito a alcançar o cruzamento com a outra estrada que seguia para Langdon’s End. Deu a curva e o Chalé Albany ficou à vista. Não parecia diferente de antes. Nada indicava que alguém agora o habitava e que havia reparações em andamento. Iria estar fora pelo menos quinze dias, informara-a Gareth. Erasmus e Harold não estariam a trabalhar na propriedade durante a ausência do senhor. Ela estava confiante de que ninguém passaria por ali naquela tarde para a ver concluir a sua missão. Arreios para cavalos, uma confusão de talheres e um sortido de potes e taças de cerâmica ocupavam o chão da entrada quando chegou ao chalé. Os cidadãos de Langdon’s End tinham feito o que ela fazia agora, aproveitando a ausência de Gareth para devolver mais alguns artigos levados de empréstimo ao longo dos anos. Aquele lote em particular talvez tivesse sido atraído para fora dos seus aposentos temporários por causa do sermão de domingo do vigário, que pregara sobre o mandamento de não roubar. A presença de Gareth revelou-se mais óbvia no interior do que no exterior. O lixo e o pó tinham desaparecido. Algumas peças de mobiliário davam ao salão de entrada um ar simples, mas habitado. Alguém limpara a lareira e esfregara as lajes. Espreitou para a biblioteca e viu melhorias semelhantes. O quadro pesava-lhe cada vez mais nos braços. Carregá-lo escadas acima revelara-se penoso. Manteve-se firme, passou os alojamentos dos serviçais e seguiu depois em direção a uma pequena porta situada de lado ao fundo do corredor. Não reparara naquele acesso ao sótão das primeiras vezes que


explorara a casa vazia. Quando finalmente o encontrou e se aventurou até lá acima, o seu conteúdo surpreendera-a. Agarrou no quadro com firmeza e percorreu as escadas estreitas até ao espaço quente e poeirento mesmo por baixo do telhado de uma das alas de pedra da casa. Não entrava muita luz porque havia apenas uma janela, que era pequena e estava tapada pelos vastos beirais do telhado. Era fácil não dar pelas formas encostadas às paredes, cobertas por lençóis. Fora o que quase acontecera com ela. Pousou o quadro, posicionando-o cuidadosamente de forma a ficar de frente a uma grande superfície lisa escondida por um lençol. Puxou o lençol para cima. Um pouco de luz realçou as cores vivas das tulipas e do vidro na superfície da tela, representados com tanto realismo que impeliam qualquer um a tocar nas diferentes texturas. O quadro era holandês, não tinha dúvidas, e provavelmente do século XVII. Sentira-se tentada a copiá-lo, mas era demasiado grande para ser possível carregá-lo até casa. Deixou cair o lençol de forma a cobrir os três rapazinhos e a fonte, agora de volta à pilha de quadros. Olhou ao longo da parede para outras telas pequenas que não poderia levar emprestadas agora que Gareth se mudara para a casa. Ele ainda não tinha encontrado aquele sótão, mas acabaria por acontecer. O mais certo depois seria mudar os quadros para as paredes de baixo, de onde haviam, sem dúvida, sido retirados quando a casa fora fechada depois da última vez que o duque a visitara. Mesmo que ele nunca os encontrasse, dificilmente poderia levar algum mesmo debaixo do seu nariz ou devolvê-lo nos mesmos moldes. Ou será que sim? Dirigiu-se à última pilha de quadros e levantou o lençol. Tencionara levar aqueles emprestados. Sem eles, não sabia muito bem como é que ela e Rebecca iriam viver, assim que o dinheiro do lote atual se gastasse. Poderia igualmente ser impossível construir vidas novas, já para não falar da ideia de gozar a vida, da qual tão orgulhosamente informara Gareth. Se Gareth continuasse a fazer viagens daquelas com alguma frequência, e se Eva não lhe falasse do sótão, será que poderia continuar de vez em quando a exercer a arte de copista para ganhar alguns xelins? Ergueu o quadro da frente, uma pequena paisagem com camponeses em primeiro plano e um castelo em ruínas ao fundo. Pensou que o tema poderia agradar a vários clientes de Mr. Stevenson. A sua consciência debatia-se entre o pragmatismo e a tentação de sair dali com


um embrulho igual àquele com que havia chegado. Enquanto se concentrava nas suas vontades contraditórias, uma perceção intuitiva entrou de fininho na sua mente. Ficou imóvel e pôs-se à escuta. Nada. Não obstante, pressentiu que já não estava sozinha na casa. Talvez Erasmus tivesse passado por lá, ou Harold. Caso a vissem sair, estava certa de ser capaz de arranjar uma desculpa aceitável. Mesmo assim, o seu coração sofreu um baque e o susto aguçou-lhe os sentidos. Pousou o quadro, foi em bicos de pés até ao cimo das escadas do sótão, e pôs-se novamente à escuta. Mais silêncio. Tentou convencer-se de que estava a ser pateta, mas continuava a sentir a presença de alguém. Não no andar dos serviçais, mas algures lá em baixo. Mais do que ouvir, sentia os passos. E se não fosse Erasmus nem Harold, ou mesmo alguém da vila? E se um gatuno que conhecesse a casa tivesse regressado, desconhecendo que agora estava habitada? E se um daqueles estranhos que pareciam estar sempre por perto tivesse entrado? Não queria ficar frente a frente com um homem daqueles. Também não queria ficar presa naquele sótão. Escutando com atenção, convencendo-se de que estava errada mas sabendo que tinha razão, desceu as escadas o mais silenciosamente possível. Fechou bem a porta atrás de si e fez pontaria para as escadas de serviço que levavam aos andares de baixo. No momento em que alcançou o primeiro piso, convenceu-se de que tinha inventado fantasmas do nada. Mesmo assim, passou rapidamente pelas portas em direção à escadaria principal, fazendo o mínimo barulho possível. A luz jorrava sobre a ombreira da porta mais próxima da escadaria. Tentou lembrar-se da planta da casa. Aquela porta conduzia a um quarto, como quase todas as divisões lá em cima, mas não era um aposento grande nem majestoso, de acordo com a sua memória. Há muitos anos que havia sido esvaziado de tudo. Mesmo assim, tentou manter-se em silêncio enquanto se aproximava. Espreitou cuidadosamente pelo umbral da porta. A memória atraiçoara-a. Não era um quarto pequeno. Era a entrada para um amplo quarto de vestir. Pior, o dono da casa ocupava-o naquele momento. E estava nu. Gareth encontrava-se de pé de costas para ela, sem ponta de roupa em cima. Parecia estar a preparar-se para se vestir. Peças de vestuário aguardavam em cima de uma cadeira e ele ocupava-se a desdobrar uma camisa. Poças de água


cintilavam no chão junto ao lavatório. Sentiu todos os centímetros do corpo tensos, a exigirem-lhe que saísse dali rapidamente e se pusesse em fuga. Mas a sua mente recusava-se a ouvir. Limitou-se a olhar fixamente com um fascínio ofegante. Já tinha visto o irmão nu, claro. Em adulto também, visto que cuidara dele. Mas por essa altura estava gasto e magro, não era nada semelhante àquilo. Aquele homem estava no seu auge, com ombros largos e fortes, músculos e pele firmes e protuberâncias rijas e redondas no lugar das nádegas. Achou aquela zona particularmente atraente, embora não desviasse os olhos das pernas. Gareth pôs a camisa de lado, e pegou nas calças. De repente, a mão dele imobilizou-se uns centímetros acima das peças de roupa. Uma perceção atravessou-o como uma onda. O perfil endureceu criando contornos perigosos e uma expressão severa na boca. Estendeu a outra mão na direção do toucador. Assustada, Eva deu meia-volta e apressou-se a regressar para o local de onde viera, as escadas de serviço. E rezou para que a porta do jardim lá em baixo estivesse destrancada.

Maldição. Gareth reconheceu o formigueiro que sentia no sangue. Era um aviso. Havia mais alguém em casa e não estava longe. Aproximou-se do toucador. No regresso, colocara ali o seu punhal enquanto se despia. Nunca viajava sem um, desde que fora vítima de um salteador nos seus tempos de estudante. A mão fechou-se sobre ele e virou-se. Não viu ninguém no quarto, nem à porta. Mas alguém tinha estado ali. Quase sentira a respiração do gatuno. Largou o punhal, puxou as calças para cima, tornou a pegar na arma e saiu do quarto. Diabos o levassem se ia permitir que intrusos entrassem livremente no chalé, especialmente estando ele lá dentro. Um confronto, uma captura e um aviso sério, e espalhar-se-ia a palavra de que a situação mudara. Chegaram-lhe aos ouvidos sons ténues das traseiras da casa. Quem fosse que tivesse invadido a casa descia agora as escadas de serviço, e nem sequer o fazia sorrateiramente. Não prosseguiu naquela direção. Em vez disso, desceu a escadaria principal, saiu para o exterior e deu a volta à casa. Mais ruídos lá atrás, na cozinha da cave. As janelas de baixo estavam sujas de mais para espreitar. Desceu as escadas até à porta submergida e colocou-se junto a ela. Com sorte, o gatuno não se servira de uma faca de cozinha. Ouviu o estrondo de uma porta a ser empurrada. O gatuno lançara-se contra


uma porta cujas dobradiças precisavam de óleo. À terceira tentativa, a porta abriu-se, escancarada. Gareth agarrou-se à figura que saíra disparada, fê-la dar uma volta e atirou-a contra a parede de pedra. Assim que o fez, percebeu que cometera um erro.


CAPÍTULO 7

E

va chocou pesadamente contra a parede de pedra. Um grito escapou-se dela e os olhos cerraram-se com a dor que sentira. Quando os abriu de novo, um Gareth atónito e furioso prendia-lhe um dos ombros contra a parede. O olhar de Eva cravou-se no punhal apontado ao seu peito. O peito dele, ainda nu, completava o resto da visão. – Eva! O que diabo... – O olhar de Gareth desviou-se dela para o punhal. Puxou a arma para baixo e afrouxou a força com que lhe agarrava o ombro. Todavia, não a soltou. – O que está aqui a fazer? Ela pensou depressa. – Fui dar um passeio e lembrei-me de ver se o Erasmus estava aqui. Tinha uma pergunta para lhe fazer. As pálpebras de Gareth semicerraram-se. – O estado da casa ainda não melhorou assim tanto que exija um vigilante quando tenho de me ausentar. Se tivesse ido à vila nem que fosse uma vez na minha ausência, ficaria a saber que ele não veio enquanto eu não estava cá. Pensar depressa não a ajudara. Nem tão-pouco pensar devagar. Não conseguia lembrar-se de outra razão para estar ali. – Veio até aqui para ver se eu já tinha regressado? – O olhar dele escureceu. Aprofundou-se. – É claro que não. – Não havia nada a fazer. – Disse que ia estar ausente pelo menos uma quinzena e pensei que talvez pudesse ver as melhorias que tinha feito enquanto estivesse ausente. – Tem por hábito entrar em casas alheias quando os proprietários estão


ausentes? Uma pergunta deveras infeliz. – Peço desculpa. Nunca devia ter entrado. – Não peça desculpa. Estou contente por ter vindo. – A mão dele largou o seu ombro. Finalmente. – Entre. Eu mostro-lhe as melhorias. – Um sorriso lento formou-se, mas ele não parecia mais amigável. – Há várias divisões que ainda necessitam de tecidos novos e coisas do género. Podia aconselhar-me nesse sentido. – Eu... realmente não posso... Isto é, não seria... apropriado... eu... As palavras morreram-lhe na garganta. Ele aproximara-se mais. Isso fez com que o nariz de Eva ficasse no máximo a quinze centímetros do peito dele. – Ora, Eva. Se achou apropriado entrar na casa e achou apropriado observarme a lavar-me... – Eu não o observei a lavar-se! – Correção. Observar-me a vestir. Ainda assim, depois disso, dificilmente pode ter objeções de ordem moral em relação ao facto de entrar em minha casa para me aconselhar a respeito de tecidos. Eva ficou mortificada por ele se ter apercebido de que o tinha visto antes de se vestir, por mais incompleto que fosse o vestuário que colocara. Devia fingir que isso não era verdade e reagir com fúria. Mas, naquele momento, por mais que tentasse chamar a si choque e indignação, em vez disso, deu por si a fazer esforços heroicos para não fixar o olhar no peito nu de Gareth, o qual lhe parecia estar praticamente a implorar por um exame deveras minucioso. Ela obrigou os olhos a erguerem-se acima do ombro direito dele, depois do ombro esquerdo e a seguir para o chão, para todo o lado, exceto para aquele rosto belo e meio-sorriso de regozijo privado. Porém, aquele peito continuou a desenhar-se na sua visão, atraindo o seu olhar como um íman atrai rebarbas de aço. Reparou no quanto os músculos pareciam tensos e duros e nas linhas firmes que se afunilavam no interior das calças. Perguntou-se como seria... Olhou de soslaio para o rosto dele. Gareth estava a observá-la a observá-lo. A expressão dele parecia intensa, séria e tão pecaminosa como as irmãs Neville a tinham prevenido. Baixou os olhos, ao mesmo tempo que sentia o rosto a escaldar. – Devia ir... Tenho de ir. Uma mão no queixo virou-lhe a face. – Não fique embaraçada. É normal estar curiosa. A única vergonha que existe é se todos os ter de e o dever abafarem o querer que ouvimos dentro de nós.


Ela conseguia sentir o cheiro do sabonete com o qual ele acabara de se lavar. Imaginou-o no quarto de vestir há poucos minutos. A mente foi preenchida por aquela imagem, pela sensação da mão dele no rosto de Eva e pela forma chocante como ansiava encostar as pontas dos dedos àquele corpo, para descobrir mais e talvez para sentir se o sangue dele pulsava tão insistentemente quanto o seu naquele momento. Ele inclinou-lhe o queixo para cima de modo a que ela o olhasse nos olhos. Olhos escuros, de uma profundidade inesgotável e repletos de vida, experiência e pensamentos que diziam respeito apenas a ela. O polegar de Gareth acariciou-lhe os lábios. Estes tremeram e pulsaram com o toque e a sensação invadiu-lhe o sangue. Aquilo soube-lhe tão bem. De forma terrivelmente maravilhosa. Ele baixou a cabeça e beijou-a na boca. A princípio, suavemente, mas tornouse quase imediatamente um beijo ardente. Foi como se uma pequena brecha fizesse a parede inteira desmoronar-se. Oh, que beijo aquele. Deixou-se desfrutar plenamente dele enquanto inspirava o seu perfume. Permitiu que o querer levasse a sua avante e que reagisse ao querer dele na mesma moeda. Não fez nada para pôr fim ao beijo porque não queria que acabasse. Cinco anos de dever desapareceram e ela tornou-se uma rapariga de novo, a redescobrir o sabor do fruto proibido. Não se opôs quando ele a abraçou. Não sentiu qualquer choque ao ver o seu corpo comprimido contra o dele de forma a sentir a pele de Gareth através das roupas e o calor dele a toda a sua volta. Ele aprofundou o beijo, dando origem a um assombro e a uma ousadia caóticos. Sucediam-se prazeres ao longo do seu corpo até Eva perder todo e qualquer sentido de decoro. Atreveu-se a abraçá-lo também. A sensação da pele de Gareth sob as palmas das mãos extasiou-a. Encostou as pontas dos dedos contra os músculos firmes sob a pele suave. Aquela pequena agressão tornou-o mais ousado. Ele apertou mais o seu abraço em resposta e incitou os lábios dela a separarem-se para que o beijo se pudesse tornar invasivo. Mais assombro, pelo deleite que sentia na forma como o tamanho e força dele a dominavam. A sensualidade dela, dormente durante tanto tempo, demasiado tempo, despertara violentamente, como se aquele contacto físico atiçasse as suas chamas. A testa de Gareth juntou-se à sua. Ele observou os dedos da sua própria mão a vaguearem pelo pescoço dela e ao longo do topo do vestido. – Surpreende-me, Eva.


– Preferia que o empurrasse para longe e partisse de rompante repleta de indignação? – Diabo, não. A não ser que me deseje a morte. Venha cá. – Conduziu-a para um banco colocado junto aos tijolos da casa e puxou-a para o seu colo. Os dedos dele abriram-se em torno da nuca para lhe segurar a cabeça num beijo febril e exigente. O prazer começou de novo, como se não tivesse existido uma pausa. A cabeça de Gareth inclinou-se e ele beijou-lhe o pescoço e a pele exposta pelo corpete. Eva começou a sentir arrepios a disparar de um ponto inferior e profundo do corpo até ter vontade de se contorcer. Carícias, firmes e experientes, pioraram a situação. Um toque num dos seios, leve como uma pena, fê-la soltar uma exclamação abafada. Outros, menos leves, fizeram a sua cabeça andar à roda. Aquilo sabia-lhe demasiado bem. De um modo completamente pecaminoso. Muito melhor do que a vaga excitação provocada pelos poucos abraços trocados com Charles, quando os seus seios se comprimiam no peito dele o suficiente para despertar aquelas sensações. As carícias de Gareth revelaram-se deliberadamente provocadoras. Eva sabia que, ainda que estivesse a render-se, o objetivo dele era subjugar a sua vontade. Não se importava. Não se importava. Surgiram-lhe na mente todos os dever, em fila, e o desejo dela empurrou-os para longe. Ela queria aquilo, o corpo queria aquilo assim como a sua alma, mas, sobretudo, a parte de si que controlava todos os seus sentidos exigia-o. Ele desabotoou-lhe a peliça e fê-la deslizar pelos braços dela de forma tão magistral que mal reparou nisso. Os fechos do vestido abriram-se sob as carícias de Gareth nas suas costas. A mesma mão puxou suavemente o tecido dos ombros e pelos braços enquanto a outra mão continuava a distraí-la acariciando os seios. Quando o tecido da sua camisa interior se deslocou, porém, Eva sobressaltouse, em choque. A realidade penetrou à força na consciência. Mas um beijo bem suave na face instigou-a a permanecer calma. – Quero ver o quanto é encantadora, Eva. E quero que conheça os melhores prazeres que existem. Vai permitir-mo agora. Não concordou nem tão-pouco se opôs. Permitiu-o, tal como ele lhe ordenara. Aterrada com a forma como a promessa de prazer a fizera vacilar, observou-o a empurrar a camisa interior para fora dos ombros até os seios se erguerem altos e nus acima das peças de roupa que se amontoavam junto à cintura. – Perfeito – murmurou ele entre dentes, baixando a cabeça para beijar um seio


e depois o outro. – É uma mulher linda, Eva. A lisonja despertou-lhe o bom senso. Uma ânsia dolorosa e intensa irrompeu dentro dela quando admitiu que talvez, quiçá, estivesse a ser uma tonta. Mas depois as pontas dos dedos dele começaram a brincar com os mamilos nus e Eva não pensou em absolutamente mais nada. Divinal. Delicioso. O corpo dela contorceu-se de facto naquele momento para tentar aliviar a necessidade palpitante que a torturava cada vez mais. Ele baixou a cabeça para a beijar de novo e depois usou a língua e os dentes para tornar a sua excitação insuportável. Ela agarrou-se ao ombro nu de Gareth enquanto sucessivas ondas de sensações incríveis subiam pelo seu corpo. – É virgem? – A pergunta insinuou-se-lhe ao ouvido enquanto o toque continuava a atormentá-la. Ela mal o ouviu. Mal conseguiu responder. Por fim, acenou com a cabeça. Pontas de dedos reviraram os seus mamilos até ficar sem fôlego e imóvel. A boca dele recomeçou a provocar-lhe uma excitação devastadora ao mesmo tempo que as carícias a reivindicavam por inteiro. As ancas e coxas, as nádegas e as costas. Toda ela. Uma letargia sensual engoliu-a. A necessidade palpitava dentro de si cada vez mais com uma ânsia dolorosa e insatisfeita. Um desejo ardente frenético invadiu a sua euforia. Este cresceu até absorver o prazer. A seguir, inequivocamente, ele deteve-se. As suas mãos imobilizaram-se, assim como o corpo inteiro. O corpo de Eva gritou de frustração, mas sob o seu caos silencioso, ouviu o mesmo que ele ouvira. O silêncio do dia estava a ser perturbado por ruídos, vindos do outro lado da casa. Horrorizada, olhou para si própria e para Gareth. A realidade invadiu à força a sua letargia. Ouviam-se mais sons agora. Gareth pôs-se de pé com ela nos braços, levou-a até à porta de casa e pousou-a no chão. – Venha comigo. Conduziu-a para a cozinha e depois subiu até ao primeiro piso. – Ninguém vai entrar, prometo-lhe. Vou ver o que está a acontecer. Suba e espere lá por mim. Ele avançou com passadas largas na direção da frente da casa. Ela subiu a correr para um dos salões, enfiando atabalhoadamente a camisa interior e o vestido ao mesmo tempo. Correu para a divisão que dava para a frente e olhou pela janela. Lá em baixo, os sons ouviram-se de novo. Abriu ligeiramente a janela. – Está de volta, senhor. Que surpresa. Não esperava por si tão cedo. – Era Erasmus quem falava. – Parece-me que perturbei o seu descanso. Peço desculpa.


Vim só trazer aquelas pedras que estão ali na carroça para o muro e vi estas coisas aqui. As instruções de Miss Russell de que as coisas levadas tinham de ser devolvidas devem ter chegado ao ouvido de mais alguns. Achei que as devia levar lá para dentro. – Não é necessário. Eu faço isso – disse Gareth. – Leve só as pedras para o jardim. – Vou levar a carroça pelo portão do jardim das traseiras e descarrego-a ali. Vai estar em casa durante uns tempos agora, senhor? Será melhor eu e o Harold virmos amanhã? – Posso partir de novo para fazer viagens curtas, mas podem vir ambos amanhã de manhã. Eu vou ter consigo e ajudo-o com as pedras. Eva baixou o olhar para o seu vestuário desordenado. A sua salvação por um triz deixara-a aturdida. E se Gareth não tivesse ouvido Erasmus e eles tivessem sido descobertos daquela maneira, os dois seminus? E se Erasmus não tivesse aparecido? Terminou de compor as suas roupas. Abotoou o vestido com dedos trémulos. Quando o barulho das rodas da carroça se tornou mais distante lá fora, saiu de mansinho da divisão e desceu as escadas.

Gareth tentou interessar-se pelo muro de pedra enquanto Erasmus explicava o que precisava de ser feito. Encontrara pedras semelhantes numa quinta de um pedreiro mais a sul, explicou ele, e decidira encarregar-se de as trazer. Durante todo esse tempo, a mente de Gareth continuava naquele banco com Eva ao colo. Os seus gritos espantados de prazer formavam uma melodia por trás do discurso monótono de Erasmus. Não tivessem eles sido interrompidos... Com o olho da mente, viu Eva completamente nua, com as pernas à volta das suas, os olhos a cintilar com um júbilo desinibido. Espreitou de relance para o banco junto à porta do jardim. Uma mancha castanha atraiu-lhe a atenção. A peliça de Eva. A fantasia desapareceu. A voz de Erasmus pareceu ressoar a toda a sua volta. A hora que acabara de passar apresentou-se diante dos seus olhos com uma objetividade implacável. Em que diabo estava a pensar? Em nada remotamente sensato, isso era óbvio, se é que pensara em alguma coisa. Não se conseguia recordar. Aquilo era uma mentira. Pensara bastante e tê-la-ia possuído se não tivessem sido interrompidos. Mesmo depois de a ter enviado lá para cima para se vestir, tinha todas as


intenções de se juntar a ela e desabotoar-lhe aquele vestido de novo. Aquela peliça castanha pairava ameaçadoramente no banco, visível pelo canto do olho. Se Erasmus a visse, seria um inferno. Para Eva. Sempre para a mulher. A sua própria reputação tornara-se há muito famosa por esse género de coisas, mas praticamente não sofrera represálias por causa disso. Imaginou-a no piso de cima, preocupada com aquela peliça, talvez a observálos de uma janela. A forma como havia aceitado o prazer deixara-o encantado. Incitara-o. Ainda assim, orgulhava-se do seu controlo. Não agia impulsivamente. Não colocava as mulheres em tamanho risco. Nem sequer se envolvia com mulheres como Eva Russell. – Deve levar um ou dois dias – explicou Erasmus, concluindo o que fora uma lição enfadonha a propósito da construção de muros. – Menos tempo com a ajuda do Harold. Gareth retirou metade do seu foco de atenção da área do corpo situada entre as virilhas. – Era bom ter o jardim seguro de novo. Erasmus anuiu. – Vou levar a carroça de volta agora, a não ser que queira que eu leve todas aquelas coisas que estão no pórtico. – Não precisa de fazer isso agora. Pode seguir o seu caminho. Erasmus caminhou até ao portão das traseiras do jardim. Gareth avançou a passos largos em direção à casa, agarrou na peliça e entrou. Elaborou um pedido de desculpa enquanto subia as escadas. Foi ao quarto de vestir, enfiou uma camisa e depois foi à procura de Eva. Estava ansioso por corrigir o seu inexplicável erro. Não conseguiu encontrá-la. Abriu de rompante a porta da última divisão em que procurou. Também estava vazia. Avançou até junto de uma janela. À distância, conseguia ver uma pequena forma castanha movendo-se velozmente ao longo da estrada onde esta fazia uma curva e se perdia de vista.


CAPÍTULO 8

E

va fitou com atenção o espelho. Ao lado do rosto, o reflexo expunha o caos que reinava no seu quarto. A maior parte da roupa que possuía estava pousada em cima da cama, à espera de que ela escolhesse as peças que levaria para Birmingham. Tinha estado demasiado agitada nos últimos dois dias para concluir a tarefa e agora teria de ficar acordada metade da noite a preparar tudo. Abriu uma frincha da gaveta do toucador e vislumbrou a carta de papel branco novo em folha no interior. Chegara naquela manhã, entregue por Eramus. Antes de a ler, aproveitou a oportunidade de pedir a Erasmus para manter a casa debaixo de olho enquanto ela e Rebecca estivessem ausentes. Em boa verdade, não havia nada para roubar. Porém, sentiu-se melhor sabendo que alguém viria ver a casa de tempos a tempos. Uma vez que Erasmus trabalhava para Mr. Fitzallen, passar por ali não lhe seria inconveniente. Mr. Fitzallen. Obrigara-se a pensar nele daquela maneira desde que fugira de sua casa. Fora um erro ter permitido a informalidade dos primeiros nomes. Um de muitos erros. Ele também retomara a formalidade naquela carta. Estimada Miss Russell, Assuntos de ofício obrigam-me a ausentar-me de novo durante vários dias. Quando regressar, far-lhe-ei uma visita, para trocar as palavras que o nosso último encontro nos exige.


Um seu criado, Gareth Fitzallen Partiu do princípio de que ele a iria visitar para pedir desculpa. Se aquele pensamento lhe provocou uma pontada tonta de desapontamento, não podia sentir-se culpada. Ele despira-lhe mais do que o corpo. Pusera a nu ânsias e necessidades que nem sequer sabia que existiam dentro de si. Preferia ardentemente que não o tivesse feito, para poder ter alguma paz de novo. Bastava-lhe pensar naquela hora com ele para se chocar de novo. Não obstante esse facto, a reprimenda longa e fria que dera a si própria enquanto se apressava a regressar a casa precisava de ser repetida uma e outra vez. Se se deixasse levar pelas memórias, as maravilhas e os prazeres iriam levar a melhor sobre ela e conduzi-la a fantasias muito pouco apropriadas. – Para onde estás a olhar? – Rebecca surgiu igualmente no reflexo, imediatamente atrás dela. – Para os meus olhos. – As lisonjas dele tinham de ser lembradas. Tinha de se obrigar a manter bem presente nos seus pensamentos a prova de que ele era um sedutor mentiroso. Sob aquelas mentiras, estava sepultada a humilhação da verdade. Seria o suficiente para a impedir de acreditar nele e se deixar influenciar? Rebecca retirou os ganchos do cabelo de Eva e este caiu pelas costas, livre. Rebecca pegou na escova. – São invulgares. Inconstantes. Às vezes verdes, outras vezes azuis, e outras, quase cinzentos. Acho que depende da luz. E do teu estado de espírito, é claro. Quando estás zangada, são nitidamente verdes, com faíscas douradas que parecem voar deles para fora. – Passou a escova ao longo de todo o cabelo de Eva. – Sempre invejei os teus olhos. – Isso é ridículo. Nunca irias trocar os teus olhos pelos meus. – Serás tu a melhor pessoa para o ajuizar? Os meus olhos são de uma cor azul ordinária. Quando os teus estão azuis, são da cor de uma joia de cor perfeita, límpida e pálida. Mas é a forma como eles mudam que eu invejo mais. Eva olhou de novo. Naquele preciso momento à luz da vela, não conseguia dizer de que cor estavam. Somente conseguia ver os reflexos tímidos da chama da vela. – Ainda não fizeste a mala – afirmou Rebecca, ainda a escovar-lhe o cabelo. – Isso significa que consegues arranjar espaço para o meu presente. – Presente? Que presente?


Rebecca pousou a escova. – Volto já. Alguns minutos depois, os passos de Rebecca ressoaram no soalho. Entrou no quarto de Eva, mas a única coisa que se conseguia ver eram os pés. O resto estava escondido atrás de um vestido que ela segurava no alto pelos ombros. Uma mulher devia usar aquele tipo de vestido para um jantar formal ou para o teatro. Feito de cetim mais prateado do que cinzento exibia enfeites compostos de pequenas contas brancas e renda na gola e mangas. Uma tira de renda de bom gosto decorava a parte inferior da saia. – Onde foste buscar isso? – exclamou Eva. – Deve ter custado uma fortuna. – Não me custou nada a não ser tempo. – Rebecca pousou-o na cama. – Usei um dos vestidos antigos da mãe e alterei-o, utilizei outro vestido para a saia de baixo e depois retirei a renda de outra peça de vestuário. Temos de fazer uma prova assim que chegarmos à cidade, mas creio que não serão precisos muitos ajustes. – As rendas e o tecido que estavam naquele malão estão destinadas ao teu guarda-roupa, não ao meu. Devias... – Eu não me esqueci de mim, Eva. Limitei-me a usar parte do que restou para isto. Se tivermos uma oportunidade de estar presentes num encontro social, de outra forma, não podias ir. Eva não tinha qualquer intenção de frequentar esse tipo de acontecimentos. Em todo o caso, seria melhor para Rebecca ter a prima de ambas ao seu lado. Acariciou o cetim. Abraçou Rebecca e deu-lhe um beijo. – É um presente maravilhoso. – Fico contente que tenhas gostado. – Rebecca fez um sorriso irreverente. – Vais fazer virar as cabeças de todos os presentes quando o usares. Ora, até é provável que te encontremos um pretendente antes de regressarmos a casa. Eva observou a irmã a abandonar o quarto e depois concentrou-se de novo nos seus preparativos de viagem, abanando a cabeça. A sua querida Rebecca estava a ver tudo ao contrário.

Vai até Chatsworth. Montley, o administrador da propriedade, falará contigo. Aquele era o conteúdo total da carta de Ives. Não precisava de mais explicações. Se tinha sido obtida uma primeira apresentação, a oportunidade não devia ser desperdiçada. Por esse motivo, Gareth cavalgara até ao Derbyshire e até à propriedade principal do património do duque de Devonshire.


Gareth aproximou-se da casa senhorial de Chatsworth ao final da manhã. Acabara de atravessar a cavalo extensões amplas de terreno quase tão grandes como alguns condados. Agora, uma das casas mais famosas do mundo assomava do outro lado do rio. Deteve o cavalo numa elevação para admirar o edifício e a sua disposição, assim como as evidências dos melhoramentos que estavam a acontecer em larga escala a mando do duque atual. Não foi capaz de prever que tipo de receção iria ter. Presumia que o administrador não fosse fingir possuir um estatuto social mais elevado do que o próprio Gareth. Já teria alguma experiência em lidar com filhos bastardos de duques, uma vez que o falecido duque de Devonshire, por sua vez, gerara igualmente dois. Os moços de estrebaria levaram o seu cavalo junto da casa. O mordomo levou o seu cartão. Dali a pouco tempo, foi conduzido a um escritório na parte traseira da casa onde o administrador da propriedade, Mr. Montley, estava sentado a uma secretária alta de valor incalculável. Uma mesa de leitura ao lado da secretária sustentava pilhas de livros de contabilidade. Concluídas as saudações, passaram para duas cadeiras com vista para o jardim das traseiras. – Devo explicar-lhe que não sou, na realidade, o administrador da propriedade – declarou Montley. – O meu cargo poder-se-á descrever melhor como um secretário especial. Com todas as suas propriedades, Sua Graça sentiu necessidade de ter alguém a supervisionar e coordenar todos os administradores das suas propriedades. – Se o senhor é o homem que sabe alguma coisa a respeito destes quadros que desapareceram, isso quer dizer que é o homem com quem eu preciso de falar. Um cabelo escuro cada vez mais raro e um par de óculos faziam Montley parecer mais velho do que os anos que efetivamente possuía; Gareth calculava que fossem trinta e muitos. Talvez fosse um amigo do duque e, por conseguinte, mais digno de confiança do que os administradores referenciados. Exibia um ar de nobreza e educação esmerada. O mais provável era ser o filho mais novo de algum par do reino, para o qual aquele cargo seria mais apelativo do que a Igreja ou o exército. – Eu sei o pouco que se sabe. Lamento que os acontecimentos efetivos que conduziram ao extravio dos quadros permaneçam desconhecidos. – Extravio. Eis uma palavra que ainda não tinha sido utilizada no que diz respeito a este assunto. – Acreditamos que quando o último duque morreu há nove anos e o seu


património estava em transição, estes quadros foram removidos inadvertidamente do local onde se encontravam guardados e enviados para outro lugar devido a algum tipo de mal-entendido da parte dos residentes da casa que os tinha em sua posse. Por outras palavras, a culpa não foi nossa. – Não se importa de partilhar comigo a razão pela qual acredita nisso? – Gareth serviu-se de todo o charme que conseguiu reunir para colocar aquela questão. Não tinha nada a ganhar em pôr Montley em causa. – É a única explicação lógica, sem dúvida. Além disso, o caseiro recorda-se do inventário realizado nessa altura e de um bom número de objetos removidos. As outras propriedades foram objeto de buscas numa tentativa de descobrir para onde foram enviados os quadros. Durante os últimos anos, desloquei-me pessoalmente a cada uma delas porque é inútil enviar uma lista de quadros para mordomos que não saberiam distinguir um Rafael de um Rubens. Gareth imaginou as muitas propriedades do duque de Devonshire, todas elas a abarrotar de obras de arte. Conseguia acreditar que tinha levado anos a passar tudo isso a pente fino. O duque possuía oito grandes propriedades e muitas outras mais pequenas. – Visitou cada uma delas? Invejo-o. O senhor sabe provavelmente mais acerca das coleções do duque do que ele próprio. Montley fez um gesto na direção da mesa. – Aproveitei a oportunidade para elaborar um catálogo completo. O inventário realizado por ocasião da morte do último duque, ainda que fosse exaustivo, exibia algumas ambiguidades e omissões. Se, por acaso, se estiver a perguntar se não se tratavam de omissões, mas a anexação inadvertida dos quadros desaparecidos na coleção pessoal do duque, posso garantir-lhe que eu sou bem capaz de distinguir um Rafael de um Rubens. Infelizmente, nenhum dos quadros que pertencia aos pares do reino patrícios de Sua Graça pôde ser localizado nessas casas. – Tem uma lista desses quadros na sua posse? O meu irmão procurou obter uma, mas está a deparar-se com alguma resistência. – Talvez alguém receie que a lista seja publicada, para embaraço de todos a que diz respeito, se a informação for divulgada. – Um olhar eloquente transmitiu a Gareth de forma eficaz que o duque de Devonshire não queria a lista a circular. – Sem essa lista, pouca ajuda lhe poderei dar. Ficará por sua conta nesta missão. – Talvez seja o melhor.


– O Príncipe Regente não concorda. Encarregou o meu irmão da investigação. Devido à morte do meu meio-irmão, estou aqui no seu lugar. Se o duque de Devonshire não quer mais ninguém envolvido a não ser o senhor, o melhor será comunicá-lo à Coroa para eu me poder ocupar dos meus outros afazeres. – Ele inclinou-se para a frente num gesto cúmplice. – Ninguém acha que existiu negligência da vossa parte. No entanto, depois de, porventura, quatro anos, permanece o mistério. Um novo par de olhos e métodos menos escrupulosos talvez possam trazer à luz novos factos. Montley riu-se. – Métodos menos escrupulosos? O quê, tenciona extrair informação à pancada dos criados? Gareth limitou-se a observá-lo em silêncio. Montley franziu o sobrolho. – Estou certo de que o seu irmão não aprovaria isso. – Não conhece bem o meu irmão, pois não? Montley denotou algum nervosismo. – Compreendo. – Aqueles quadros não ganharam pernas e saíram pelos seus próprios pés do local onde estavam armazenados. – Não. É óbvio que não. – Alguém sabe alguma coisa acerca disto. Essa pessoa não fez confidências a si. Talvez o faça comigo. Montley fitou a vista da janela durante um bom bocado. Por fim, ergueu-se. – Estou autorizado pelo duque a levá-lo à casa onde os quadros estavam armazenados. Não fica longe daqui.

A maior parte das famílias ficaria orgulhosa por ter Dunbar Green como a sua propriedade principal. Para o duque de Devonshire, porém, era uma propriedade obscura que ocupava um lugar assaz modesto na lista do seu património. Decerto que seria afetada negativamente pela proximidade a Chatsworth, que ficava a uma mera hora de viagem a cavalo, muito embora Gareth considerasse que fora provavelmente um refúgio secreto conveniente da casa grande para amantes ao longo dos séculos. Mais pequena, menos agradável à vista e menos feliz no seu arquiteto, Dunbar Green exibia igualmente alguns sinais de abandono. Montley reparou que Gareth observava as goteiras enquanto se aproximavam a cavalo.


– Há algum trabalho a fazer no sótão – mencionou ele. – Vamos tratar disso em breve. Neste momento, Sua Graça tem a atenção focada em planos para uma nova ala em Chatsworth. Sua Graça provavelmente não visitava aquela propriedade há anos, se é que alguma vez o tivesse feito. – Vive alguém aqui? Montley abanou a cabeça. – Ele pode vir a vendê-la. A propriedade chegou à posse dele sem qualquer vínculo de sucessão hereditária, quer acredite quer não. A flexibilidade que lhe foi oferecida no processo de alterar os investimentos da família da terra para lucros mais a par dos tempos atuais pode ser um argumento contra tornar a propriedade inalienável. – Se todos os herdeiros fossem assim tão sensatos, esse argumento podia tornar-se válido. Muitos outros colocá-la-iam na mesa de apostas se lhes dessem carta-branca. De acordo com o que se diz. – Ou as suas respetivas mulheres – declarou Montley com secura. Gareth partiu do princípio de que se referia em parte à primeira duquesa do falecido duque de Devonshire, cujas dívidas de jogo teriam sido ruinosas para quem quer que fosse, exceto para um punhado de pares do reino. Na qualidade de casa desabitada, Dunbar Green possuía poucos criados. O homem de cabelo branco que recolheu os chapéus de ambos à entrada parecia suficientemente velho para estar lá há muitos anos. Curvado, com um olhar esbranquiçado e escassamente alerta da presença de ambos, fixava os olhos no chão enquanto arrastava os pés para cumprir o seu trabalho. – Vamos subir ao sótão – disse Montley ao homem, ainda antes de conduzir o caminho até às escadas. – Peça para darem comida e água aos cavalos. O sótão ficava acima dos aposentos dos criados, com pequenas janelas em lucarnas sob as goteiras. Estavam ocupados pelos sobejos habituais da longa história de uma casa. Montley fez um gesto em torno de si. – Como pode ver, a maior parte da mobília e afins foi deslocada para esta ponta, de modo a ganhar espaço para armazenar os quadros deste lado. Gareth caminhou em frente e examinou o espaço. Julgou-o suficientemente grande para armazenar pelo menos uma centena de quadros emoldurados, se estivessem encaixotados e empilhados de frente para trás em longas filas contra a parede. O centro do espaço, sob a trave do telhado, teria altura suficiente para receber as telas maiores, de tamanho palaciano. – Imagino que tenham ficado chocados ao descobrir isto vazio – declarou


Gareth. – Essa é uma descrição deveras acertada. O acordo foi feito há vinte anos, claro está, e com a permissão do falecido duque. O duque atual nem sequer estava a par disso até receber uma carta do Príncipe Regente a informá-lo de que estavam para chegar homens para recuperar os artigos. – Algum dos tesouros do Príncipe faz parte do lote? – Ele possui uma casa junto à costa. Algumas obras selecionadas de Brighton foram incluídas, segundo me disseram. Deixaram os limites superiores da casa e saíram para o exterior. Gareth abarcou com o olhar a configuração do terreno em torno da casa. – Existem edifícios externos que não consigo ver daqui? Será possível os quadros terem sido deslocados para outro lado dentro da mesma propriedade? Montley abanou a cabeça. – Algumas casas de campo de criados e a casa do pastor da paróquia. Foram todas sujeitas a uma busca. – Avançou ao mesmo tempo que os cavalos estavam a ser trazidos de volta. – Creio que vou cavalgar um pouco, ainda assim – disse Gareth. – Do que está à procura? Diabos o levassem se sabia. Em todo o caso, já não havia mais nada a saber com Montley. – Bom, regresse quando se der por satisfeito. Vamos instalá-lo na casa e pode passar o serão na companhia da coleção, se desejar. Mas duvido que seja capaz de examinar nem que seja um décimo daquilo que está exposto ao público. – Conte comigo. Montley fez trotar o seu cavalo pela estrada fora. Gareth começou a montar o cavalo quando reparou no criado que lhes abrira a porta a olhar por uma janela. Subitamente, não lhe pareceu tão velho e com um olhar tão esbranquiçado. Voltando costas ao cavalo, Gareth regressou à casa. O criado franqueou a porta e pôs-se de lado para lhe dar passagem, sem quaisquer perguntas. – Queria dar-lhe uma palavrinha – disse Gareth. – A mim, meu senhor? – Piscou os olhos rapidamente, erguendo-os, confuso. – Sim. Parto do princípio de que está ao serviço desta casa há muito tempo. – Há quinze anos. Estava na Casa Chiswick até começar a ficar mais lento. Aqui é o local onde colocam aqueles que acumulam um bom número de anos de vida. Serei enviado para a reforma no próximo ano. Quinze anos. Isso significava que tinha vindo depois de os quadros terem sido


escondidos no sótão. – Quando morreu o último duque, houve alguma grande mudança aqui? – Mudança? – Movimento de bens da casa. Visitas a querer inspecionar o sótão ou espreitar sob o soalho. Ele riu-se. – A levar o que podiam antes de algum inventário poder ser realizado, quer dizer. – É a isso que me refiro. – Apareceu uma senhora. Levou uma almofada de um dos quartos de dormir. Uma lembrança de boas recordações, afirmou ela. Talvez tenha gozado nesta casa de uma estadia particularmente agradável. – Mais nada? Em todo o tempo que durou a fase de transição? O rosto dele transformou-se numa máscara plácida e abanou a cabeça. – Vamos lá. Não será penalizado por me contar. Ninguém iria contestar a sua reforma. O duque de Devonshire precisa de saber isso. Pergunto-lhe em nome dele. – Um dia, chegou a segunda duquesa. Fazia-se acompanhar de uma carroça grande. Explicou que o falecido duque lhe dera permissão para levar o que quisesse para a sua própria casa, de qualquer uma das suas propriedades. Creio que escolheu esta em particular porque não havia ninguém aqui para a contrariar. – O que levou ela? – Cadeiras e mesas, suponho eu. – Não sabe? – Descobri que tinha compromissos inadiáveis noutro lugar que me ocuparam durante a maior parte do período em que ela esteve aqui hospedada. Homem sábio. Não admira que tivesse durado tanto tempo ao serviço de um duque. Não podia relatar aquilo que não tinha visto, nem tão-pouco responder a perguntas caso estas lhe fossem colocadas. – Houve outras visitas do mesmo género durante a sua passagem por esta casa? – Algumas estadias de uma noite a meio de viagens mais longas, da parte de familiares ou nobres que não queriam impor a sua presença na propriedade principal. Houve um convívio social antes de o último duque ter falecido. Mr. Clifford trouxe alguns oficiais da Marinha seus amigos para um fim de semana de caça prolongado. Clifford era o bastardo do velho duque de Devonshire, cuja mãe era a mesma


mulher que depois se tornara a sua segunda duquesa. A mesma duquesa que saqueara a casa após a morte do marido. – Descobriu igualmente a necessidade de se ocupar noutro lugar durante essa altura? – Bom, sim, senhor. Como é que sabia? A minha tia idosa estava mal de saúde e uma vez que Mr. Clifford trouxera com ele os seus próprios criados, fiz uma pequena viagem para a ir visitar. – Houve outras alturas em que sentiu a necessidade de estar noutro lugar? – Devido ao estado de saúde da minha tia, aproveitava a oportunidade de a visitar sempre que as visitas chegavam a esta casa com o seu próprio pessoal doméstico. Gareth despediu-se, montou no cavalo e partiu para cavalgar ao longo da propriedade à procura de quem soubesse mais informações. Não gostava do facto de que duas das pessoas que agora teriam de ser interrogadas fossem a mulher do último duque e o seu filho bastardo. Se Ives suspeitara do rumo que aquilo tomaria e o tinha atirado para o meio da fogueira, tinha toda a intenção de lhe dar uma valente tareia quando se encontrassem de novo.


CAPÍTULO 9

I

r a Birmingham revelara-se uma tarefa complicada. Uma vez que também precisava de transportar o quadro, Eva alugou uma carroça para as levar até à cidade. Ela e Rebecca sentaram-se atrás, na esperança de que não chovesse e os seus chapeuzinhos se estragassem. A primeira paragem ao chegarem a Birmingham foi a loja de Mr. Stevenson. Baixo, calvo e de olhos esbugalhados, cumprimentou Eva com um sorriso mais rasgado do que o habitual. Ela presumiu que fosse porque a bela Rebecca se encontrava junto a si daquela vez. – Trouxe dez quadros – informou-o Eva. – Espero que os possa aceitar. Mr. Stevenson sorriu, encantado. – Com certeza. Na realidade... – E fez um gesto para as paredes da loja. Eva olhou em volta. Apenas três dos seus quadros adornavam as paredes e eram todos paisagens que pintara apenas com a inspiração dos seus próprios olhos e talento sofrível. – Os outros foram todos comprados no mês passado – explicou Mr. Stevenson, apreciando a surpresa dela. – Foi um comprador vindo de Londres que os levou a todos. E demonstrou interesse em mais. Julgo, Miss Russell, que encontrámos um cliente deveras lucrativo. – Porque haveria alguém de querer tantos quadros? É óbvio que me sinto grata e aliviada. Receava que estivesse quase sem espaço para os novos. – Posso estar enganado, mas desconfio que este cliente tenha a sua própria galeria e esteja a revendê-los lá. – A sério? Como se chama?


– Não disse. Não insisti com ele. Estava demasiado contente para me preocupar com isso. – Então como lhe vai dizer que tem mais? – Hei de arranjar maneira. Mas venha, venha. Tenho aqui o seu dinheiro e é uma quantia impressionante. Eva fez um gesto ao condutor da carroça para que trouxesse os quadros e depois seguiu Mr. Stevenson até ao escritório. Aí, com uma certa cerimónia, abriu um cofre e contou em voz alta as libras. Eva observava as notas à medida que o monte ia aumentando. Deixara ali dez quadros. O monte final perfazia vinte libras. Tinha recebido duas libras por cada quadro, bastante mais do que no passado, quando dez xelins tê-la-iam feito dançar de alegria. – Agora percebe porque estou tão empolgado com estes desenvolvimentos – explicou Mr. Stevenson. – Conto que me traga mais. O seu entusiasmo esmoreceu. Eva não fazia ideia se conseguiria trazer mais algum. A fonte de quadros para copiar passara a estar-lhe vedada. – O comprador não mostrou interesse pelas paisagens? – Receio que não, Miss Russell. Esteve a admirá-las, mas não eram aquilo que procurava. Eva guardou as notas na bolsa. – Compreendo. Obrigada, Mr. Stevenson. Parece que a nossa aliança deu, finalmente, frutos. Depois escrevo-lhe a avisar quando estiver para voltar com um novo lote. – Faça isso, faça isso. – Mr. Stevenson cobriu Eva de amabilidades enquanto acompanhava ambas à rua. – Ele estava a mentir – disse Rebecca imediatamente quando a porta da loja se fechou atrás delas. – Ele sabe o nome do tal cliente e já deve estar a escrever-lhe a dizer que tem mais quadros para ele. Só que tu não irás ver o dinheiro até lhe trazeres mais quadros, o que não poderás fazer. – Que vergonha, a perspicácia da minha irmã ultrapassa a minha – reconheceu Eva. – Fiquei de tal forma hipnotizada por todo aquele dinheiro que o meu bom senso me abandonou. – Que vais fazer? – Em relação a Mr. Stevenson, ainda não sei. Todavia, há uma coisa que tenciono fazer imediatamente. – Fez um gesto ao condutor. – Senhor, por favor, vá chamar-nos uma carruagem. Quando ela chegar, pode dar início à viagem de regresso a Langdon’s End.


Com vinte libras na bolsa, diabos a levassem se iriam chegar a casa da prima na parte de trás daquela carroça.

A prima Sarah, de cabelo ruivo, rechonchuda e cheia de vivacidade, recebeu ambas com simpatia e a melhor das hospitalidades. Ela e o marido, Wesley, viviam numa rua agradável de casas mais recentes, todas estas altas, elegantes e brancas. As características menos simpáticas de Birmingham, resultado das suas indústrias, não eram visíveis no bairro deles. No interior, cinco serviçais atendiam às suas necessidades, e outros dois cuidavam da carruagem e dos cavalos ao fundo de um grande jardim. A família adotara um elevado grau de requinte no seu quotidiano. Mr. Rockport podia sair de casa todos os dias para se dedicar a assuntos relacionados com comércio e os serões na cidade eram uma raridade, mas Eva ficara nostálgica da sua juventude desde o primeiro dia. Era como se tivesse viajado no tempo, antes das privações e frugalidades. Dos pequenos-almoços na sala de estar aos serões de jogos de cartas na biblioteca, muitas coisas na sua visita lhe pareceram dolorosamente familiares. – Tenho o dia todo planeado – anunciou Sarah na primeira manhã, enquanto oferecia mais chá a Eva depois de ela o ter recusado com pouca convicção. – Temos de ir às compras, claro, para eu lhes mostrar que não ficamos a dever nada a Londres. Regressamos cedo e jantamos uma refeição leve porque logo à noite vamos assistir a um recital de música. Rebecca bateu palmas de entusiasmo, para alegria de Sarah. Sarah simpatizara imediatamente com Rebecca e já confidenciara a Eva que uma preciosidade daquelas não deveria ser deixada a definhar em Langdon’s End. Durante uma conversa de cinco minutos na noite anterior, a prima tornara-se cúmplice na sua missão de encontrar um bom partido para Rebecca. Por norma, uma ida às compras deixaria Eva ocupada a pensar em razões para não comprar fosse o que fosse e a preparar desculpas que não revelassem o quanto a vida se tornara precária. Não obstante esse facto, com vinte libras guardadas na bolsa, não se sentia tão pobre e vulnerável. Podia não gastar nem um centavo, mas não ia sentir a vergonha injusta associada ao empobrecimento. – Logo à noite, vais ter de usar o vestido de seda prateado – lembrou-lhe Rebecca. Sarah fez uma espécie de beicinho. – Estava desejosa de lhe emprestar alguns dos meus vestidos. Vai levar um


deles, não vai, Rebecca? Alguns são próprios para raparigas da sua idade. – Logo se vê – disse Eva, antes que Rebecca voltasse a bater palmas novamente. – Espero, ao menos, que aproveitem os adornos de cabelo e as capas do meu armário. Rebecca virou-se para ela com olhos suplicantes. – Podemos lá recusar tamanha generosidade – cedeu Eva. Sarah tinha boas intenções e o desejo dela de não ser vista com as pouco elegantes primas do campo teria muito pouco que ver com a sua oferta. Voltou a lembrar-se disso várias vezes à medida que o dia ia avançando. Em particular, quando passaram à porta de uma chapelaria e Sarah insistira em entrar para que ela e Rebecca experimentassem chapeuzinhos novos com as abas mais em voga, repetiu-o para si mesma. – Têm de levá-los! – exclamou Sarah. – São perfeitos para o passeio de amanhã pelo parque. Eva calculou o seu custo provável e o sentido que faria depauperar as vinte libras dessa quantia. O seu chapeuzinho, de coroa alta e aba profunda, atraía muita atenção para os seus olhos. Estava a começar a gostar deles. Pareciam deveras impressionantes por baixo daquele chapeuzinho. Rebecca retirou o seu e pousou-o. – Neste momento, não temos dinheiro para chapeuzinhos novos, Sarah. Não me importo de usar os que trouxe, se a prima também não se importar. – Claro que não! Quer dizer, não tinha intenção de... Tinha esperança de oferecer-lho de presente, Rebecca. E a si também, Eva. Eva sorriu para Sarah. – Pode oferecê-lo de presente à Rebecca, se lhe aprouver. Não vejo mal nenhum nisso. – Desatou as fitas por baixo do queixo. – Quanto a este, vou pensar se o compro antes de partir. Saíram da loja meia hora depois, com Rebecca aos risinhos por causa do seu chapeuzinho novo, como qualquer rapariga faria. No caminho para casa, Sarah e Rebecca iam conversando sobre os modelos que tinham visto nas ruas, nas lojas e nas revistas. Só pelo facto de falar em roupas elegantes, Rebecca ficara mais animada, luminosa e bela do que nunca. – Lamento que não tenhamos um camarote – queixou-se Sarah nessa noite, enquanto a carruagem as levava ao teatro. – Está tão encantadora, Rebecca, que é uma pena não podermos exibi-la. Rebecca estava, de facto, encantadora. Engalanada num dos vestidos de noite


de Sarah, de um branco puro, com um decote não muito atrevido e enfeitado muito discretamente por delicados bordados beges, Eva não tinha dúvidas de que ela seria a mais graciosa das mulheres no teatro. A beleza da irmã não diminuía a aprovação que sentia pela sua própria aparência. Optara pelo vestido de seda prateado e o adorno de cabelo de penas da coleção de Sarah, juntamente com as luvas compridas de pele de cabrito que fora buscar à arca dos velhos adornos requintados da mãe. Sentaram-se na plateia, mas nos lugares da frente reservados aos mais privilegiados. Os elementos mais ruidosos da sociedade faziam-se ouvir nas suas costas, preparando as vozes para lançar ou não gritos de aprovação ao entretenimento que estava para vir. Jovens de todos os estatutos sociais vagueavam em pequenos grupos, admirando as mulheres lá em cima nos camarotes e lançando olhares mais atrevidos às que estavam sentadas nas cadeiras lá em baixo. Rebecca, sentada entre Sarah e Eva, atraía boa parte das atenções. Esta, com uma expressão serena, parecia não dar por isso. Tinham ido sem o marido de Sarah, que tivera um jantar de negócios nessa noite, e com a excitação chegaram cedo. O lugar ao lado de Eva continuava por reclamar à medida que a hora do espetáculo se ia aproximando. Contudo, subitamente, a figura de um homem parou em frente a ele. Eva estava a conversar com Sarah e apenas deu pela presença daquela pessoa pelo canto do olho. – Mr. Fitzallen! – A cabeça de Rebecca desviou-se da conversa e os seus olhos dirigiram-se para a esquerda. – Vê só quem está aqui, Eva. Eva não olhou de imediato. Viu Sarah a fazê-lo primeiro, de olhos muito abertos. Teve também de esperar porque ficara tão corada que teve receio que isso ficasse visível a todos, apesar da fraca luz a gás da sala de teatro. Por fim, lá se virou para o homem que a vira nua da última vez em que se encontraram. – Miss Russell. – Fez-lhe uma vénia. – Miss Rebecca Russell. – Que surpresa encontrá-las por aqui. – É verdade, uma enorme surpresa – conseguiu Eva balbuciar. – Isso quer dizer que a sua viagem chegou ao fim? – Regressei esta manhã e decidi passar a noite na cidade. A possibilidade de ouvir boa música atraiu-me. Eva apresentou Sarah e explicou que ela e Rebecca estavam de visita em casa da prima por alguns dias. – Está com amigos, Mr. Fitzallen? – perguntou Sarah. – Junte-se a nós, se não


for o caso. – Obrigado. É uma oferta generosa. Acho que vou aceitar. E sem mais palavras, Eva viu-o sentar-se na cadeira ao lado da sua, no momento em que os músicos entravam. No teatro, pouco silêncio se fez sentir, mas o barulho diminuiu. Gareth trocava palavras com Sarah, com o corpo num ângulo que quase o fazia tocar em Eva. Rebecca semicerrou os olhos na direção do palco, à espera que o espetáculo começasse. Sarah explicou a Gareth o negócio do marido. Por fim, a música teve início e a cantora surgiu a cantar com uma voz trinada o seu reportório de ópera. Gareth endireitou-se e olhou em frente. A cabeça de Sarah cruzou-se com a de Eva à frente do peito de Rebecca. – Quem é este cavalheiro? Eva sabia qual era a intenção de Sarah com aquela pergunta, ou seja, saber qual era a ascendência dele e fortuna. – É o filho bastardo do duque de Aylesbury. – Não! – Sim, e sem grande fortuna, por isso não comece já a fazer planos para a minha irmã. – Estou mais interessada em fazer planos para mim. Pode não ter grande fortuna, mas tem os melhores conhecimentos, a menos que a família o tenha rejeitado completamente. Tem de o convidar para jantar amanhã, para ele conhecer o Wesley. Convido mais alguns jovens para conhecerem a Rebecca. – Pelo bem da Rebecca, vou tentar, mas não conte com grande êxito da minha parte. – Eva não desejava verdadeiramente ter êxito. Era provável que Gareth pensasse que havia interesse da sua parte se lhe fizesse tal convite. Depois concentrou-se na récita, pelo menos até ouvir uma voz grave masculina ao ouvido. – Fugiu, Eva. Teve receio de ser vista em minha casa? – Sim. – Não, olhei e vi o meu corpo nu e fiquei completamente chocada com o meu comportamento. – Eu disse-lhe que nunca permitiria que isso acontecesse. Eva chamou a si a sua coragem. – Ainda assim, não podia ficar. O meu comportamento não tem desculpa. Tinha de sair, para recuperar alguma dignidade. Novamente aquela voz, ainda mais perto. Ainda mais baixa. – Quer dizer que está arrependida? Se estivesse arrependida, não o revivia todas as noites antes de adormecer,


nem tocava no meu peito para voltar a sentir um pouco daquele prazer novamente. – Sim. – Não gostou? – Não. Lamento. Receio não ser uma das suas mulheres sofisticadas de Londres. – Estou ciente disso. A sua partida apressada impediu-me de lhe pedir desculpa. A culpa é inteiramente minha. A senhora perdeu o controlo da situação e não podia confiar no seu discernimento. Nunca devia tê-la beijado ou deixar que as coisas fossem até tão longe. Era o pedido de desculpa que imaginara e que provavelmente merecia. Todavia, insurgiu-se contra a maneira como era descrita. – É muito generoso por assumir a culpa toda. Posso arrepender-me da minha irresponsabilidade, mas não fiquei tão descontrolada ao ponto de ter perdido a capacidade de pensar. Julgo que talvez tenha começado a acreditar nos boatos que dizem que é irresistível. – Boatos convenientes, no que a si lhe diz respeito. Estou impressionado por não lhes ter dado ouvidos. Embora a sua honestidade me deixe confuso. – Como assim? – Não perdeu o controlo, nem a capacidade de pensar, e no entanto permitiume liberdades de que agora se arrepende. Pode concluir-se que, apesar de eu não ser irresistível, talvez o prazer tenha sido. E contudo afirma que não gostou. – Estava curiosa. Com a minha idade, isso não é invulgar. – Ah. Compreendo. Nada. Nem mais uma palavra durante o que pareceu ser um longo período de tempo. Gareth assistia à récita. As mãos dele caíam sobre a cadeira junto às pernas. Um toque na coxa esquerda quase a fez dar um salto. O dedo da mão que estava escondida serpenteava pela anca dela acima, atravessando o vestido de seda prateado. Eva fitava a cantora, pensando no que fazer. – Está a mentir – sussurrou ele. – Está a tremer agora. Ou se calhar é da mera curiosidade que sente. Eva tremia realmente, tanto que Rebecca lhe lançou um olhar perplexo. O dedo continuava a acariciá-la, fazendo surgir nela pensamentos e desejos escandalosos ao imaginá-lo por cima da pele nua. – Tenho de insistir que pare – segredou ela. Ele teve piedade dela e parou.


A récita da cantora terminou e ela abandonou o palco. O ruído na sala de teatro aumentou com vários punhos batendo nas costas e braços das cadeiras em sinal de aprovação. – Acho que a Eva está com frio – disse Rebecca a Sarah. – Não para de tremer. Embora tenha pena de perder o resto do programa, acho que devíamos ir embora. – Valha-me Deus. Está doente, Eva? – Sarah olhou na direção dela e esticou-se para lhe verificar a temperatura no pescoço. – Realmente parece muito quente. Se calhar devíamos fazer como a Rebecca sugere. – Eu estou bem, a sério. Não vamos... – Seria uma pena se as senhoras perdessem o resto do serão. Não me importo de acompanhar Miss Russell a casa – ofereceu-se Gareth. Sarah não hesitou mais do que alguns segundos. – Era agradável poder ficar e vi algumas amigas a quem gostava de apresentar Rebecca. – Eu posso ficar – contrapôs Eva. – Não tenho frio nenhum. Eu estou bem, sinceramente. Sarah voltou a sentir-lhe a temperatura no rosto. – É melhor não arriscarmos, com as febres de primavera que por aí andam. Além disso, tem a cara muito corada, Eva. Aceite que Mr. Fitzallen a acompanhe ou eu e a Rebecca teremos de a levar. Rebecca tentou mostrar-se disposta a isso, mas a opção de ficar, uma vez na mesa, fê-la suplicar com os olhos por essa escolha. Eva pôs-se de pé. – Isto é ridículo. Eu não estou doente. – Receio que, se não for agora descansar, amanhã esteja muito doente – disse Sarah. – Deite-se assim que chegar. E peça ao cozinheiro que lhe prepare um caldo para a ceia. – Inclinou-se um pouco mais junto dela. – E, por favor, não se esqueça do pedido que lhe fiz por causa de amanhã. Gareth acompanhou-a até à coxia, assumindo uma expressão exemplar de preocupação solícita. Quem o visse julgaria que ela precisava de sais, pela maneira como a apoiava e guiava até à saída do teatro. O ar da noite soube-lhe lindamente. O teatro deixara-a algo encalorada, confessou a si própria. Ou, se calhar, fora o homem que estava ao seu lado. Parou e fitou Gareth por baixo de um candeeiro fixo à fachada do teatro. – É um homem deveras pecaminoso. – Deliciosamente pecaminoso, espero eu.


– Esta noite foi irritantemente pecaminoso. Não quero que me acompanhe até casa de Sarah. Vai chamar-me uma carruagem para eu me pôr a caminho. Gareth mandou um dos lacaios do teatro chamar uma carruagem de aluguer. Eva contemplou a noite, tentando ignorar a presença dele enquanto aguardavam. Quando a carruagem chegou, ele abriu-lhe a porta. Para sua consternação, Gareth subiu atrás dela. – Não vou permitir isso – exclamou Eva. – Saia. – Prometi que a deixava em casa da sua prima em segurança. Como sou um cavalheiro, vou cumprir a minha palavra. – Sentou-se à frente dela. – Como vê, não tem de ter medo de mim. Eu não importuno mulheres, muito menos as que estão doentes. – Que atencioso. – A sua prima tirou rapidamente conclusões acerca do meu caráter. Afinal de contas, confiou-a a mim. – A minha prima não o conhece. Ela simplesmente não queria vir embora. – A prontidão de Sarah em entregá-la a um estranho tinha, na realidade, outra explicação. Tal como as irmãs Neville, Sarah presumira que uma pessoa como Gareth nunca mostraria interesse em alguém como Eva. Nem sequer pelas razões mais básicas. Supôs que Sarah também presumira que ela teria juízo suficiente para impedir que um homem como Gareth se comportasse mal. Essa explicação alternativa apaziguou um pouco o seu orgulho. – Está doente, não é? O calor e os tremores não têm mais nenhuma outra causa, pois não? – Não só estou doente, como tenho a certeza de que é contagioso. – Eva deulhe a morada de Sarah. Gareth abriu a janela e indicou-a ao condutor. A carruagem avançava pela escuridão. Eva recusava-se a olhar para ele. Olhava fixamente pela janela do seu lado esperando parecer irritada e inatacável. Provavelmente, tentaria beijá-la dali a um instante. Quem sabe que coisas escandalosas seria este homem capaz de fazer numa carruagem escura? Se não tivesse cuidado, podia dar consigo meio despida novamente. Isso seria esplêndido, chegar a casa de Sarah nesse estado. Todo o seu corpo aguardava por um movimento dele. Um toque no joelho talvez fosse o primeiro a surgir. Depois, sentar-se-ia junto a ela. Mais meio quarteirão e o descarado ia abraçá-la e tentaria beijá-la. Dali a poucos minutos, estaria a lutar pela sua virtude. Sentia um formigueiro em todo o corpo ao imaginar todos os passos que ele


daria. A carruagem encheu-se de expectativa. A presença dele parecia crescer ao ponto de a oprimir de forma invisível. Os seios de Eva intumesceram, traindolhe a determinação com a prova da sua sensibilidade. Eva estava convencida de que aconteceria a qualquer momento. Se a provocara no teatro, agora que estavam sozinhos seria implacável. Quase não conseguia respirar com a expectativa que sentia e a mente preparava as palavras para o repreender. Olhou para ele de relance. Depois, virou-se e fitou-o na escuridão. Semicerrou os olhos com força, para ter a certeza do que estava a ver. Gareth adormecera. Teve vontade de lhe bater com a bolsa. A carruagem parou, acordando-o com o solavanco. Ele estendeu a mão para a tranca da porta. – As minhas sinceras desculpas, Eva. A minha única desculpa é ter passado a maior parte do dia em cima de uma sela. – Não precisa de se desculpar. Ele saiu e ajudou-a a descer. Dera três passos na direção da porta quando se lembrou do pedido de Sarah. Dada a generosidade da prima, seria ingrato fingir que tal se lhe varrera da memória quando não era verdade. – A minha prima pediu-me que o convidasse para jantar amanhã à noite. Será um pequeno grupo de pessoas, tenho a certeza de que achará aborrecidíssimo. Além disso, é uma viagem demasiado longa desde o Chalé Albany só por causa de uma refeição. Eu posso explicar que as viagens o fatigaram e... – Teria muito prazer em vir. – Não vale a pena. – Vou passar esta noite na cidade, na estalagem Kings Arms. Se não for às nove da noite, ela que mande dizer as horas. Eva ficou imóvel, sem poder fazer nada, tentando encontrar uma boa razão para ele mudar de ideias. Ele aproximou-se e ela deu um salto para trás. Apressou-se a chegar à porta não fosse ele beijá-la, se era esse o seu plano. Gareth deu uma risada baixinho. Eva ficou furiosa. Ele voltou-se para a carruagem. – Vá dormir, Eva, para recuperar da doença que a infetou esta noite. Eva correu para o quarto. Pediu um caldo, para que Sarah não ficasse a pensar que as suas instruções tinham sido ignoradas. Depois de o comer, foi deitar-se. Mas não lhe foi fácil adormecer. Uma imagem ocupava-lhe a cabeça e não lhe dava descanso. Nela, estava nua


na carruagem, enquanto Gareth lhe beijava os seios até delirar de prazer.

Gareth relaxava na sua cama na Kings Arms, questionando se a sua amizade com Eva Russell estaria a torná-lo um pateta. Bebericou o seu copo de vinho do Porto. Quanto mais bebia, mais imbecil se sentia. Planeara regressar ao Chalé Albany naquela noite, mas ali estava ele na estalagem, sem nenhum outro propósito além de ver o tempo passar até poder estar presente no mesmo jantar que ela. Era o género de estratégia aduladora que não colocava em prática desde os vinte anos para poder estar na companhia de uma mulher, e nessa altura a senhora prometera lições eróticas inimagináveis caso ele caísse nas suas graças. O grande prémio tinha compensado todas as inconveniências. Mas a situação não era a mesma naquele momento. O problema não era ele ser um pateta, mas o facto de Eva não o ser. Talvez fosse esse o seu fascínio. Era uma coisa diabólica, a qualidade que tornava uma mulher interessante para um homem ser também a qualidade que garantia que ele nunca a possuiria. Ela estava encantadora naquela noite com o vestido de seda prateado. Era uma mulher madura, não uma rapariguinha como a irmã, e segura de si. Tudo indicava que trouxera Rebecca à cidade para tentar arranjar-lhe um bom partido. O mais provável era ser Eva a receber uma proposta dali a pouco tempo. Gareth levantou-se, despiu-se e tomou banho. Sim, ela estava encantadora naquele vestido prateado. Mas não lhe prestara grande atenção. Tinha passado a maior parte do tempo no teatro a imaginá-la nua, a arquear-se para trás e para a frente às suas ordens enquanto a paixão a libertava de todas as inibições. Era uma fantasia inútil e não voltaria a embarcar nela no futuro. Pedira-lhe desculpa e ela proferira as palavras de desencorajamento apropriadas. Não sucumbiria à tentação de a provocar, ou de a namoriscar. Iriam ambos recuar, com dignidade, e tudo voltaria ao que era na semana anterior.


CAPÍTULO 10

S

arah cumpriu a sua palavra a respeito do jantar da noite seguinte. Eva apresentou Mr. Fitzallen com as suas relações aristocráticas e Sarah apresentou três jovens que podiam ser partidos adequados para Rebecca. Duas amigas de uma certa idade completavam o grupo à mesa. Estas últimas levavam a cabo os seus deveres sociais de forma silenciosa, educada e discreta. Eva permitira que Sarah lhe impusesse um dos seus vestidos de jantar. Não oferecera resistência durante muito tempo e desfrutou da sensação de enfiar o corpo na seda amarelo-pálida. A sua decisão de exibir o melhor aspeto possível não tinha nada que ver com o facto de Gareth Fitzallen ter aceitado o convite para se juntar a eles. Absolutamente nada. Há muitos anos que na sua própria casa Eva não desfrutava de uma refeição semelhante à que fora servida. Sarah não se poupou a despesas e até serviu sopa de tartaruga. Os criados rondavam de forma solícita os convidados e serviam bons vinhos. Wesley, o marido de Sarah, exibiu uma graciosidade social impressionante ao presidir toda aquela refeição. Os três cavalheiros convidados por atenção a Rebecca eram todos membros juvenis da indústria de Wesley – a moldagem de pequenos objetos numa variedade de metais. Durante os primeiros vinte minutos, todos eles pareciam mais determinados em falar entre si do que com qualquer uma das senhoras da mesa. Depois, Sarah assumiu o controlo da situação. Quase como batendo ao de leve na mesa para chamar a atenção, exerceu o seu privilégio de anfitriã para se dirigir a cada um dos convivas e colocar questões, incluindo sempre Rebecca nas conversas que se seguiam.


Eva observava tudo atentamente, para ver as reações à sua irmã. A constatação de que os três cavalheiros, na sua totalidade, ficaram impressionados, era óbvia. Seria preciso ser pateta para não reconhecer a beleza dela. Rebecca, por outro lado, parecia preferir o mais silencioso dos três, Mr. Trenton. Eva tinha esperança de que tal não acontecesse porque Mr. Trenton, com os seus grandes olhos escuros, cabelo escuro ligeiramente comprido e um vestuário algo displicente, parecia personificar um poeta francês. A sua concentração nas conversas em torno da mesa permitiu-lhe ignorar tanto quanto possível o homem sentado ao lado dela, colocado nesse lugar por Sarah, sem seu conhecimento. Sentado igualmente ao lado de Wesley, Gareth parecia mais do que satisfeito por conversar com o seu anfitrião. E era evidente que Wesley se revelava mais do que feliz em conhecer melhor um homem com as relações de Gareth. – Tem um admirador. O comentário em voz baixa chegou-lhe junto à orelha direita. Gareth aproveitara a distração do anfitrião, provocada pela insistência da mulher para que desse uma opinião a respeito do estado dos bancos. – Se está a falar de si próprio, agora não é a melhor altura... – Que presunção. Refiro-me a Mr. Bellows, do outro lado da mesa. Finge olhar para a nossa anfitriã, mas o olhar dele escapa-se na sua direção. Seria verdade? Não tinha reparado. – Ele é muito baixo para si – disse Gareth. – Embora tenha uma estatura média, parece alto quanto baste. – Pode arranjar melhor do que isso. – Ele está cá para conhecer a Rebecca, não a mim. – Em qualquer dos casos, devia saber que ele ocupou muito recentemente o seu cargo e o rendimento que aufere não pode ser superior a trezentas libras por ano. Mas é claro que aquele indivíduo que atraiu os olhos da sua irmã provavelmente ganha ainda menos do que isso. – Se a Sarah os convidou, estou certa de que possuem excelentes perspetivas e os seus respetivos futuros são promissores. – Ela convidou-os para servirem de disfarce do verdadeiro candidato. Mr. Mansfield ali ao lado vale pelo menos duas mil libras por ano. É proprietário da sua própria fábrica. Tem estado a observar a sua irmã com grande interesse, muito à semelhança da forma como um homem observa um cavalo num leilão. Aquelas não eram boas notícias. Dos três, Mr. Mansfield era o mais velho. Era pelo menos tão velho como Gareth, o qual Rebecca decretara ser «demasiado


velho». Além disso, dos três pretendentes, era aquele com maneiras menos polidas, ainda que o casaco parecesse dispendioso e o plastrão tivesse indubitavelmente passado pelas mãos de um criado pessoal. Com um rosto um pouco grosseiro, de uma estatura bem acima da média e uma postura naturalmente intimidante, jamais despertaria tanto o interesse de Rebecca como o poeta francês, que, felizmente, não reparara no quanto Rebecca o achara interessante. – Fui visitá-la quando regressei, tal como lhe prometera. – A voz de Gareth chegava-lhe aos ouvidos assaz baixa agora. Eva olhou diretamente em frente, fingindo escutar as conversas que se cruzavam à mesa. – Depois, o Erasmus explicou-me que tinha partido repentinamente. – Foi por isso que veio até Birmingham? Para fazer aquele pedido de desculpa? Isso podia ter esperado. Não tinha necessidade de se dar a esse incómodo. – A insinuação das palavras dele foi assimilada. – E eu não parti repentinamente. Esta visita estava planeada muito antes... há muito tempo. Seguiu-se uma pausa demorada, suficientemente prolongada para quase ter decifrado o contexto de uma troca de palavras entre Rebecca e Mr. Mansfield, na qual Rebecca parecia estar em desacordo com o cavalheiro a respeito de algo. Mr. Mansfield reagiu à rejeição veemente de Rebecca da sua opinião com calma e com uma expressão levemente divertida. – É uma mulher que me deixa confuso, Eva. Quase irritado – disse Gareth. – Esperava que os meus esforços para me comportar como um cavalheiro fossem recebidos com graciosidade ou alívio. Em vez disso, é tão brusca que me pergunto se eu lamento aquela indiscrição mais do que a Eva. Ela sentiu um rubor violento nas faces, sobretudo porque ele tocara na verdade embaraçosa de que não lamentara tanto quanto devia o que sucedera. Pior do que isso, ficara levemente magoada por ele se ter revelado tão previsível na sua própria reação. Culpa, pedido de desculpa e uma retirada completa: não esperava que um homem com a reputação dele fosse tão ordinário após uma indiscrição. Devia deliciar-se com aquele tipo de coisas. Tentou formular uma boa resposta incisiva, mas, nesse preciso momento, Wesley voltou a dirigir-lhe a atenção e a de Gareth focou-se no anfitrião. Mais abaixo na mesa, ouviu Rebecca dizer: – Duvido que exista alguma coisa pela qual o senhor e eu tenhamos uma simpatia comum, Mr. Mansfield. Do outro lado da mesa, Sarah deixou escapar um suspiro.


Wesley Rockport era um homem de negócios. Gareth conhecia bem esse tipo de homens. Os bem-sucedidos como Rockport adquiriam o verniz da classe nobre pouco a pouco. O seu anfitrião fazia isso há já alguns anos, por isso a diferença entre ele e um cavalheiro resumia-se apenas ao berço e ocupação. Que eram as únicas duas coisas que os cavalheiros afirmavam que importava. Homens realmente bem-sucedidos como aquele acabavam por aspirar aos hábitos e adornos da aristocracia. Quando isso acontecia, depois de terem construído ou comprado as suas propriedades e grandes casas e mobilado tudo de acordo com as instruções de um decorador profissional, dirigiam a sua atenção para a longa galeria vazia. Gareth não se fazia rogado em ajudá-los a encontrar obras de arte para preencher aquelas paredes. Todavia, Rockport não queria falar acerca de arte. Queria discutir questões relacionadas com o transporte por via marítima e seguros e sondar as ligações de Gareth a homens de negócios e mercados no continente. Gareth falou abertamente sobre tudo aquilo. Não tinha nada a perder ao fazê-lo. Não estava a revelar quaisquer segredos. Quem quer que viajasse, prestasse atenção, estivesse recetivo a novas amizades e colocasse questões saberia tanto quanto ele. Quando era solicitado por Rockport, dava-lhe grande parte da sua atenção. A maior parte do resto permanecia focada na mulher que estava ao seu lado. Uma porção ínfima desta, porém, reparava nos demais convivas do jantar e ouvia as suas conversas cruzadas. Aquela porção acabou por ouvir o loiro Mr. Bellows abordar Eva. – Está muito calada esta noite, Miss Russell. Espero que todas estas nossas conversas não estejam a fazê-la sentir-se inibida. – Antes prefiro ouvir a minha irmã, Mr. Bellows. Ela está bem mais informada a respeito dos acontecimentos do mundo do que eu. – Concordo, e de forma admirável. Porém, se me permite dizê-lo, há muito a dizer acerca de uma mulher calada, Miss Russell, tal como a senhora. – Não creio que alguém me descrevesse como calada, Mr. Bellows. O papel de observadora que desempenho esta noite não é comum em mim. – Parece-me que aquilo que Mr. Bellows quer dizer é que as mulheres se devem abster de verbalizar opiniões tão abertamente como a sua irmã. – Gareth não conseguiu resistir a interpor-se. – Essa é uma forma bastante antiquada de ver as coisas, meu senhor. Até o duque de Wellington tem senhoras das suas relações com as quais discute política. Bellows pareceu ficar desconcertado por um momento, mas recuperou a


compostura passados breves instantes. – Bom, sou um homem simples de ideias simples, não um duque, por isso as predileções de um duque não contam muito para mim. – Mais uma razão para admirar uma mulher que não é simples. Uma como a jovem senhora que defende as suas convicções em oposição às de Mr. Mansfield, por exemplo. Com o berço e inteligência dela, imagine os filhos que dará a um homem. E isso nem sequer contempla o facto de que ela é linda como um anjo e o tipo de mulher que faz com que homens de estatuto elevado invejem o seu marido, quem quer que ele venha a ser. Eva reposicionou-se de modo abrupto na cadeira. Ao fazê-lo, acotovelou bruscamente Gareth de lado. – A minha irmã tem muitas qualidades excelentes, sem dúvida. Longe de mim enumerá-las a todas para não correr o risco de julgarem ter demasiado orgulho nela. É muito generoso da sua parte fazê-lo por mim, Mr. Fitzallen. Porém, estou certa de que Mr. Bellows não precisa da sua orientação relativamente a essa questão. Possui uma tendência encantadora para achar que ninguém sabe o que está a pensar e que o senhor pode saber melhor o que vai dentro da cabeça dessa pessoa do que ela própria. – Terei ido longe de mais? As minhas desculpas, Bellows. Perdoe-me. Bellows mal o ouviu. A lição fora ouvida e engolida. Bellows voltou a atenção para Rebecca com uma expressão compenetrada e aproveitou uma pausa na conversa assim que a sua pequena contenda com Mansfield se encaminhou para um final amigável. Gareth voltou a atenção para o anfitrião. Aquele foi o fim de Mr. Bellows. * – Mr. Mansfield vale pelo menos duas mil libras por ano – explicou Sarah a Rebecca assim que ela, Eva e Rebecca ficaram sozinhas após os homens se terem retirado. Conduzia-as até à sala de estar no piso superior ao mesmo tempo que falava. – Ainda que ele valesse dez mil libras por ano, isso pouca importância teria para mim – declarou Rebecca. – Oh, teria sim, minha querida. Teria, sim. – Ele tem ideias bastante antiquadas. Acha que as mulheres não devem ter uma educação formal. – E quem acha isso, pergunto-lhe eu?


– Homens e mulheres progressistas. Eu. Eva seguiu-as, assim como à conversa entre ambas, até à sala de estar. As senhoras mais velhas refugiaram-se num canto a conversar. Sarah deixou-se cair num divã e bateu ao de leve numa almofada ao lado dela, chamando Rebecca. – Agora, minha querida, permita que esta velha mulher casada lhe explique uma coisa. Os homens jamais pensam como deviam quando os conhecemos. Ainda ninguém lhes apresentou uma perspetiva melhor. É nosso dever alargar a forma de pensar deles em relação a questões sobre as quais nunca se debruçaram. Faz parte do trabalho das esposas, compreende? É a nossa grande missão. Olhou para Eva à procura do seu assentimento. – A prima Sarah é a voz da experiência, Rebecca. Devias ouvir o que ela tem para te dizer. Rebecca fez uma expressão amuada e remexeu na saia distraidamente. – Achei Mr. Trenton mais atraente. Sarah suspirou. – Minha querida, Mr. Trenton é um escrivão no escritório do meu marido e é pouco provável que venha a ser mais do que isso. Não tem cabeça para os negócios. Só o convidei a ele e a Mr. Bellows porque seria demasiado óbvio se apenas convidasse Mr. Mansfield. – Continuo a gostar mais de Mr. Trenton. É uma pessoa cheia de alma. Escreve poesia. Sabia disso? – Oh, céus. – Sarah voltou-se para Eva, desesperada. – Rebecca, para além da opinião dele a respeito da educação feminina, e por favor, deixa-me lembrar-te de que o nosso pai partilhava da mesma opinião, assim como o nosso irmão, e por esse motivo, nenhuma de nós teve muito mais instrução para além da habitual para as mulheres deste tempo, para além disso, por que motivo Mr. Mansfield não conquistou as tuas boas graças? Rebecca refletiu na questão. – Ele é demasiado grande. – Demasiado grande? – exclamou Sarah. – É seguramente maior do que o escanzelado Mr. Trenton, mas não é de um tamanho monstruoso. – Ainda assim... é grande e suspeito que seja impaciente e grosseiro. Teria sempre medo dele. Até a forma como olha para mim me deixa pouco à vontade. Até Mr. Bellows é melhor do que ele, embora seja aborrecido. O olhar de Sarah fitou Rebecca de esguelha. A expressão dela já não revelava exasperação, mas compreensão. Pegou na mão de Rebecca.


– Não há motivo nenhum para ter medo de Mr. Mansfield, minha querida prima. Por baixo de toda aquela bravata masculina, ele é deveras amável. Se por acaso ele a visitar aqui, quero que aceda em recebê-lo. Eu estarei consigo, por isso não tem qualquer razão para se opor. Não devia descartar um homem que vale duas mil libras por ano e que provavelmente valerá muito mais do que isso no futuro com base num desacordo a respeito da educação das mulheres. Não concorda comigo, Eva? – Concordo, sim. Rebecca assentiu, mas soltou um suspiro monumental ao mesmo tempo. Quando os cavalheiros se juntaram às senhoras dali a pouco, Rebecca conseguiu levar a cabo uma conversa privada com o poético Mr. Trenton. Se Mr. Mansfield se importou ou sequer reparou em tal ocorrência, não deu mostras de tal. Em vez disso, conduziu Eva numa conversa acerca da família de ambas. – O Wesley informou-me que a senhora e a sua irmã vivem sozinhas. – Sim. Perdemos o nosso irmão há um ano. – Não têm mais família nas proximidades, com a qual pudessem morar? – Assim que colocou esta questão, apercebeu-se do seu erro. Olhou de relance para Sarah e corou. – Decidi não impor a nossa presença junto de Mr. e Mrs. Rockport. Eu era maior de idade e capaz de gerir o dia a dia. Nem sequer explorei a possibilidade de mudar para cá. Sinto muito apreço por Langdon’s End. É o meu lar. Gareth retirara-se de uma série de conversas prolongadas com Wesley e agora avançava despercebidamente para junto de ambos. – É uma vila encantadora, com um belo lago a oriente. Mas se continuar a crescer, será provavelmente absorvida por Birmingham. – Conheço-a bem. Visito-a com muita frequência. Uns amigos meus vivem lá. Mr. e Mrs. Siddle. Talvez os conheçam – disse Mr. Mansfield. – Não tive esse prazer – disse Eva. – E Mr. Fitzallen é novo na região. – Decerto que os dois se movem em círculos diferentes do que os Siddle – declarou Mr. Mansfield, como se tivesse acabado de cometer outro erro. – Não me tenho movido em qualquer tipo de círculos há já algum tempo. O meu irmão esteve doente durante anos antes de falecer e cuidar dele ocupava-me a maior parte do tempo. Mr. Mansfield franziu o sobrolho, num gesto compassivo. – Tuberculose? – Bala de pistola. – Espero que a mão que empunhava essa pistola tenha enfrentado a justiça.


– O meu irmão recusou-se a entregar essa informação, para minha consternação. – É uma história trágica – declarou Mr. Mansfield. – Não só porque ele pereceu ainda jovem, mas também por ter deixado duas irmãs que tiveram de tratar de si próprias sozinhas, sem qualquer proteção. – O olhar dele desviou-se para Rebecca. A conversa com o seu poeta havia perdido o entusiasmo inicial. Mr. Mansfield pediu licença e avançou vagarosamente na direção dela. – O que aconteceu realmente ao seu irmão? – perguntou Gareth. – Como acabei de dizer, ele nunca explicou. Nem sequer a mim. – Apesar disso, deve fazer uma ideia. Se o meu irmão chegasse a casa com uma bala de pistola dentro dele, eu procuraria saber o que pudesse. – Parece-me que é demasiado curioso a propósito dos assuntos da minha família. – Ora. Não sou Mr. Mansfield, ao qual quer dar uma boa impressão da sua família. Sou o seu amigo Gareth, que já a viu seminua. Então, acha que se tratou de um duelo? Ela preferia sobremaneira que ele não falasse da parte da nudez de forma tão descontraída, como se não fosse nada que justificasse manter segredo. – Não me parece que tenha sido um duelo, embora tenha deixado o médico acreditar nisso. – Isso explicaria a recusa do seu irmão em falar sobre o assunto. Não poderia fazer acusações sem se implicar a si próprio num crime. – Exatamente. Contudo, não consigo ver o Nigel envolvido num duelo. Posso estar a ser desleal para com a memória dele, mas suspeito que uma noite a andar de taberna em taberna e a embebedar-se com alguns amigos teve um desfecho nefasto por algum motivo. Ele saía muitas vezes de casa de noite nessa altura. – Era um dos exemplos da juventude desregrada de Langdon’s End, por outras palavras. – Sim. Acho que um desses amigos perdeu a cabeça com alguma coisa e baleou o Nigel. – É provável que tenha sido por causa de uma mulher. Ela voltou-se para ele. – Nem todos os homens passam o tempo inteiro atrás de mulheres. Nem toda a desventura dos homens começa com uma mulher. – Eis uma grande verdade. Não me devia ter precipitado com essa conclusão. Ele tinha opiniões políticas fortes que podiam ter levado a uma discussão mortífera? Convicções pelas quais arriscaria a vida em vez de ceder?


O olhar firme dele dizia-lhe que já tinha adivinhado a resposta. Nigel não possuía opiniões específicas de que tivesse conhecimento. O seu único objetivo fora desfrutar da sua juventude enquanto ela durava. A verdade era que Nigel estava mais interessado em andar na pândega com amigos do que se ocupar do património que já começava a tornar-se limitado. Há muito que ela tinha deixado de tentar explicar aquele ferimento. Seja como for, todos em Langdon’s End tinham chegado à mesma conclusão do que ela pouco tempo depois: de que a recusa do irmão em falar disso apenas confirmava a probabilidade de a história não lhe ser favorável. – Vai prolongar por quanto tempo a sua estadia em Birmingham? – perguntou ela, para mudar de assunto. Pensar em Nigel não a fazia sentir-se feliz nem tãopouco nostálgica. Uma amargura imperdoável manchava muitas das memórias, expressa pela hostilidade das palavras dele, originada pela sua enfermidade e pelos ressentimentos silenciosos da parte dela. – Pensei em ficar mais um dia, mas decidi regressar ao Chalé Albany amanhã. E a Eva? Ela olhou para onde Rebecca, hirta na ponta de um canapé, condescendia em conversar com Mr. Mansfield, sentado numa cadeira à sua frente. – Ainda não sei. Pelo menos mais outro dia. Talvez mais. Wesley aproximou-se de ambos nessa altura. A expressão de Gareth acolheu calorosamente o anfitrião. – Irei visitá-la quando regressar a casa, a não ser que me proíba. Continuamos amigos, espero – sussurrou Gareth, mesmo antes de Wesley se sentar numa cadeira do seu outro lado. – Não me parece que o deva fazer – sussurrou-lhe ela de volta. – Não o faça. Mas ele já se havia voltado para Wesley e Eva não sabia se a tinha ouvido.

Naquela noite, enquanto Eva se preparava para se ir deitar, Sarah entrou de mansinho no quarto de dormir. – Se a Rebecca deitar a perder esta oportunidade com Mr. Mansfield, ficarei deveras aborrecida, Eva. Escolhi-o com bastante ponderação e cuidado. – Estamos-lhe ambas tão gratas que estou certa de que nenhuma de nós a quer ver aborrecida. Porém, fala de uma oportunidade quando não existe absolutamente qualquer indício de que esse homem sinta uma preferência maior por ela do que a que ela própria exibe. Não creio que ele venha visitá-la. – Que disparate. Estará cá amanhã. Ele sabe que a partida de ambas está


marcada para daqui a dois dias. Se ele vier, tal como espero, tem de deixar a Rebecca aqui comigo pelo menos mais uma semana. Pode ficar também, é claro. – Eu devia regressar a casa. Tenho coisas a fazer lá. Mas se a Rebecca quiser ficar, terá a minha permissão. Satisfeita com os seus planos, Sarah voltou-se na direção da porta. – Continuo a achar que está a ser demasiado otimista em relação a Mr. Mansfield – disse Eva. – Ele fá-la sentir desconfortável, Eva. Estas foram as palavras dela. Quando ele olha para a Rebecca, ela sente-se desconfortável. Ela é demasiado jovem para saber o que está realmente a sentir. Oh, a Eva também não sabe, pois não? Confie em mim quando lhe digo que o desconforto dela não é um desconforto normal, mas um bom augúrio de possibilidades. – Compreendo aquilo a que se refere, Sarah. Porém, é do interesse de Mr. Mansfield que eu duvido. Entre outras coisas, é provável que tenha algum peso na opinião dele saber que ela não tem praticamente qualquer fortuna. Por outro lado, deixou bem claro esta noite que não aprova mulheres inteligentes e a Rebecca é extraordinariamente culta e bastante obstinada. – Oh, Eva, a prima é mesmo uma inocente. Ela tem uma beleza rara e é de uma boa família. Ele ia querê-la, ainda que ela fosse uma radical comprovada, uma mulher erudita e possuísse apenas um vestido. Nesta noite, a única coisa em que ele está a pensar é como poderá conquistar o prémio antes de a concorrência a sério perceber que está a decorrer um concurso. – Ela abriu a porta. – Se está a prever visitas, a que horas acha que chegarão? Queria comprar algumas telas e pincéis para levar comigo amanhã de manhã. – Ele vai chegar cedo, mas não demasiado cedo. Duas da tarde é o meu palpite. Porque quer materiais de pintura? Pinta alguma coisa? – É o meu passatempo favorito. Queria começar algumas paisagens daqui em breve. – Leve a carruagem, nesse caso. Não irei precisar dela amanhã. Depois de Sarah sair, Eva deitou-se na cama e fixou o olhar no dossel. Não tentava pintar uma paisagem há já mais de um ano, depois de se tornar óbvio que os clientes de Mr. Stevenson não tinham qualquer interesse nelas. A última visita que fizera à loja dele não a motivara grandemente para recomeçar a pintá-las. Ainda assim, sentia uma vontade ardente de pintar uma, embora não fizesse qualquer sentido financeiramente. Seria a sua própria criação, não a cópia da criação de outra pessoa. Sentia muito mais emoções fortes quando criava os seus próprios quadros. Copiar provocava-lhe melodias agradáveis no coração. As


suas próprias composições tocavam como sinfonias. Sentia a falta disso e uma vez que tinha dinheiro suficiente para comprar um pequeno número extra de telas, podia satisfazer esse pequeno capricho. O regozijo de Mr. Stevenson a respeito da grande venda recente assomou aos seus pensamentos. Assim como a imagem dele a juntar as vinte libras. Precisava igualmente de continuar com as cópias, isso era óbvio. O que significava que precisava de uma nova fonte de quadros, agora que Gareth vivia no Chalé Albany. Achava que sabia onde podia encontrar outros quadros que pudesse levar emprestados. Assim que regressasse a Langdon’s End, ia dar passos nesse sentido. Pensar nos quadros fê-la pensar naqueles que já levara emprestados o que, por sua vez, a fez pensar no dia em que devolvera o último. Soltou uma maldição ao mesmo tempo que o corpo ganhava vida no meio da noite, revivendo demasiado bem as sensações que Gareth lhe provocara. Não se atrevia a fechar os olhos porque, se o fizesse, via-o ali de pé, com o peito nu e, em seguida, sem qualquer peça de vestuário enquanto espreitava pela frincha de uma porta. A sensibilidade do corpo aumentou enquanto mãos criadas pela fantasia a acariciavam de modo assaz indecente. Ele atormentara-a no espetáculo musical depois de Eva afirmar que não tinha apreciado os beijos dele. Mesmo enquanto se desculpava, fez com que o corpo dela admitisse a sua mentira. Maldito fosse ele e a sua presunção. Gareth não se limitou a conjeturar o que ela sofria se permitisse o livre curso das memórias. Ele sabia.


CAPÍTULO 11

M

r. Mansfield visitou efetivamente a casa de Sarah às duas horas. Eva recebeu-o ao lado da prima e de Rebecca. O que se seguiu podia ser descrito generosamente como uma meia hora moderadamente confrangedora. O interesse dele em Rebecca era indiscutível. Dirigiu a maior parte da conversa para ela. Face a isso, ela não teve outra hipótese senão responder. No final da visita, as trocas de palavras tornaram-se menos formais e artificiais. Rebecca chegou mesmo a rir-se com um gracejo que ele tentou inserir a meio da conversa. Infelizmente, Rebecca tinha-se preparado para a visita e quando o ambiente se estava a tornar amigável, lançou-se numa palestra a respeito do que Voltaire e Rousseau tinham escrito acerca da educação. Durante vinte minutos, todos os presentes, exceto Rebecca, escutaram uma análise comparativa filosófica com sorrisos petrificados no rosto. Quando Sarah finalmente a interrompeu, afirmando: «Tem de me dar esse tipo de pensamentos elevados em pequenas porções, minha querida, e permitir-me digerir esta última passagem agora», Mr. Mansfield chegou a agradecer a Rebecca e prometeu refletir sobre o assunto. Apesar da paciência dele, de acordo com o relato posterior de Rebecca, tinha sido tudo uma perda de tempo. Naquele serão, Sarah colocou na mesa a sua ideia de Rebecca prolongar a estadia como sua hóspede. Rebecca apressou-se a aceitar, mas só porque, suspeitou Eva, tinha esperanças de que o poeta também a visitasse e porque qualquer coisa seria melhor do que regressar ao tédio de Langdon’s End. – Deixe-a comigo, Eva – disse Sarah discretamente quando trocaram beijos de despedida na manhã seguinte. – Podemos não ter uma proposta de casamento


nas mãos quando lha enviar de volta, mas estaremos muito perto disso, pareceme. Rebecca deixou-se ficar junto à porta da entrada, a observar a sua partida. Eva acenou-lhe da janela da carruagem. O seu pequeno malão, rolos de telas e caixas novas de pigmentos e pincéis seguiam viagem no topo do veículo. Alugara aquela carruagem para que Sarah pudesse usar a dela para levar Rebecca a passear pela cidade a fim de a exibir. Eva suspeitava que Sarah tencionava encontrar Mr. Mansfield por acaso. A quatro quarteirões da casa de Sarah, pediu ao condutor que a levasse à estalagem de mala-posta mais próxima. Lá, pediu que fossem retirados todos os seus bens e transferidos para uma carroça puxada por bois depois de saber que esta ia fazer uma entrega a Langdon’s End. Partiu de Birmingham como entrara, instalada na parte de trás daquela carroça, poupando dessa forma três quartos do custo do aluguer da carruagem. O crepúsculo instalara-se na altura em que a carroça se arrastou pesadamente pelo caminho de entrada da sua casa. O condutor descarregou rapidamente os seus pertences, largando-os sem cerimónia junto à porta da casa. Retomou o seu caminho segundos após ela lhe ter pago. Depois de abrir a porta de par em par, Eva curvou-se e empurrou as caixas e telas pela soleira da porta. Ficou imóvel enquanto os olhos se ajustavam às sombras que se aprofundavam no interior da casa. Um arrepio ameaçador de alarme disparou pelas suas costas até à cabeça. Semicerrando os olhos, avançou para junto das escadas e tateou aquilo que parecia ser uma grande sombra. A mão dela não encontrou qualquer obstáculo. O sexto degrau havia desaparecido, arrancado, revelando o espaço sob as escadas como uma boca aberta. O seu olhar circulou bruscamente pela biblioteca à sua esquerda. O que viu deixou-a a tremer. Dirigiu-se para um candeeiro e tentou acendê-lo. As mãos tremiam tanto que quase não foi capaz de o fazer. A luz espalhou-se pela divisão, revelando uma destruição horrível. O divã estava de pernas para o ar e os estofos tinham sido golpeados. O papel de parede fora arrancado. Até uma parte do soalho estava destruída e as tábuas haviam sido atiradas ao acaso à volta. A seguir, viu os quadros. Duas das suas paisagens decoravam aquela divisão, mas agora encontravam-se no chão. Correu para junto delas e olhou para baixo com horror. Alguém fora buscar a aguarrás da sua caixa de pintura e manchara os quadros de cima a baixo


com isso, estragando-os para sempre. Como se tal já não fosse suficientemente cruel, os restos da mistura de tintas tinham sido espalhados num deles, como se os criminosos que haviam feito aquilo achassem o ato engraçado. Eva começou a temer o que iria encontrar no resto da casa. Combatendo um choque que ameaçava paralisá-la, arriscou ir até às outras divisões. Foi recebida pelo mesmo caos em todo o lado. Pensou de imediato no seu quarto de dormir e no prego na trave por baixo das tábuas do soalho que segurava o saco do dinheiro. Correu na direção das escadas para ver se tinha sido vítima de roubo, bem como de vandalismo. Estacou subitamente com um pé no primeiro degrau. Uma tábua do soalho acabara de ranger por cima dela. O terror fez a pele arrepiar-se-lhe em todo o corpo. Não conseguia respirar. Escutou com atenção, à espera. A seguir, ouviu o mesmo ruído de novo. Uma passada, como se alguém tivesse transferido o peso de um pé para outro. Ela girou nos calcanhares, escapou-se da casa e desatou a correr o mais depressa que conseguia ao longo da estrada.

Com a saia bem subida, Eva correu tanto que começou a sentir dores no abdómen e a arquejar. O seu chapeuzinho caiu e perdeu-se no meio da escuridão da noite. Não se atreveu a olhar para trás para ver se alguém a tinha seguido, mas achou que ouvira mais alguém na estrada. No cruzamento com a estrada que conduzia a Langdon’s End, deteve-se por um momento, respirando com dificuldade numa tentativa de recuperar o fôlego. Fitou toda a extensão da estrada, ladeada de árvores e arbustos. A que velocidade seria capaz de correr aqueles quinhentos metros? Será que conseguiria fazê-lo sem desmaiar de imediato? A estrada à sua frente chamava por si. Dali a um minuto, chegaria à curva e o Chalé Albany ficaria à vista. Um cavalo relinchou ao longe atrás dela e Eva ficou apavorada. Sem discutir a sua escolha, sem pensar no que quer que fosse, desatou a correr de novo. Circundar aquela curva deu-lhe algum alento. O Chalé Albany ficou visível na escuridão crescente e achou ter visto um pouco de luz a uma janela. Ninguém ouviria nada se fosse intercetada àquela distância, mas sentiu-se confortada com aquela luz e redobrou o passo da corrida, pondo de parte o medo e o desorientação. Não seguiu pelo caminho. Em vez disso, fez uma corrida corta-mato sentindo-


se mais segura a cada passo que dava. Por fim, a casa começou a desenhar-se à sua frente. Só nessa altura é que parou, com uma respiração tão arquejante que teve receio de ficar agoniada. Um cavalo passou na estrada. Ela escondeu-se instintivamente atrás de uma das árvores. Seria o intruso da sua casa, que a havia seguido? Não tinha forma de saber. Ele ainda podia estar dentro da casa. Acalmou-se lentamente e encostou-se àquela árvore, usando-a para a amparar, de forma a não cair para o chão. Quando a sua lucidez regressou, deu-se conta da situação difícil em que se encontrava. Se Gareth continuasse a ser apenas um amigo, não hesitaria em bater-lhe ruidosamente à porta e expor todo o seu medo. O facto de ele se ter tornado algo mais fê-la hesitar e sentir-se relutante em apresentar-se na sua casa sem ter sido convidada. Precisava apenas de estar perto dele para se sentir em segurança, convenceu-se a si própria. Podia ficar junto àquela árvore, embora o orvalho primaveril se tornasse desagradável durante a noite. Se fosse muito silenciosa podia sentar-se nos degraus de pedra. O orvalho acordá-la-ia e nessa altura podia caminhar até Langdon’s End à procura de ajuda. Movendo-se sem fazer ruído, caminhou até aos degraus e sentou-se no primeiro. Apoiou as costas contra o muro e apertou a peliça contra si para sentir mais calor. Agora que o pânico diminuíra, sentia a frieza da noite a invadi-la até aos ossos. De repente, o espaço à sua volta ficou inundado de luz. Ergueu o olhar. Gareth estava na soleira da porta, com um candelabro na mão e a camisa a resplandecer com os reflexos das chamas. – Quem está aí? – A luz das velas desenhou um arco lento, encontrando-a finalmente. – Eva? O que diabo está a fazer sentada aí fora?

Eva limitou-se a fitá-lo fixamente. Os olhos dela pareciam extraordinariamente grandes e o rosto exibia uma cor pálida muito pouco saudável. Estava encolhida com os joelhos puxados junto ao peito. Parecia pequena, jovem e apavorada. Ele voltou-se, pousou o candelabro numa mesa perto da porta e depois regressou. Baixou-se e ajudou-a a pôr-se de pé. – O que se passa? Eva apoiou-se nele como se as suas pernas não tivessem força. Gareth abraçou-a. Os tremores do corpo dela não tinham nada que ver com ele. – Está a tremer. – Não estava assim tanto frio naquela noite. – Onde está a


Rebecca? Com uma inspiração profunda, ela recuperou a compostura. Deu um passo atrás, para fora dos braços dele. – Ela ainda está em Birmingham. Eu regressei hoje e... alguém esteve em minha casa enquanto estivemos fora. Vi as provas disso e... – Tapou as faces com as mãos. – Perdi a cabeça. Não há outra palavra para isso. Ele abraçou-lhe os ombros com um braço e incitou-a a andar. – Outra coisa não seria de esperar. Venha para dentro. Eva deixou-o conduzi-la até uma cadeira na biblioteca. Uma vez que continuava a tremer, acendeu um lume baixo na lareira. A seguir, serviu um dedo de brandy num copo e estendeu-lho. – Eu não tomo bebidas fortes. – Esta noite, sim. Beba. Manteve-se de pé a seu lado até ela o fazer. Eva fez uma careta depois de ingerir o líquido, mas um pouco de cor regressou à sua pele. Olhou em volta para as prateleiras vazias, as poucas cadeiras e a única mesa existentes na biblioteca. – Achei que ele ainda estava dentro de casa – disse ela. – Quem quer que fosse que lá tivesse entrado, isto é. Achei que o ouvi lá em cima, por isso desatei a correr e... – Fez um gesto impotente para si mesma. – E o Gareth era quem estava mais próximo. Achei que ele me tinha seguido. Posso ter imaginado essa parte. Não sei. Ela parecia mais igual a si própria agora. Muito mais, se se sentia obrigada a desculpar-se pela sua chegada a meio da noite. Escolhera sentar-se em pedras frias toda a noite para ele não a interpretar mal. – Como sabe que alguém invadiu a sua casa? Desapareceu alguma coisa? – Não conseguia imaginar o que os ladrões levariam. Tinha sobrado tão pouca coisa no interior daquela casa. – Ele... eles destruíram coisas. Atiraram objetos por todo o lado e despejaram aguarrás nos meus quadros. Arrancaram tábuas do soalho e rasgaram o papel de parede. Devem ter ficado muito zangados por não existir nada de valor para levar. Imagino que tenham soltado umas gargalhadas e achado aquilo muitíssimo divertido, estragar a casa de outra pessoa. – Provavelmente, eram homens que costumavam servir-se desta casa e quando viram que já não o podiam fazer, foram à procura de outra. Uma vez que a sua estava fechada e vazia, tornou-se vulnerável. – Talvez. – Ela franziu o sobrolho, refletindo sobre essa possibilidade. – Esta


região está a mudar. A cidade está cada vez mais próxima. Vejo desconhecidos a deslocarem-se pelos campos, nas estradas, caminhos e campos de passagem. Fui uma tonta ao pensar que a minha vida ia continuar igual. Acho que nunca mais irei sentir-me tão segura como antes. Aquele pensamento fê-la encolher-se sobre si própria de novo. O sobrolho cerrou-se-lhe sob um par de olhos tristes. Se a deixasse sozinha, iria reviver aquela invasão a noite inteira e ver a madrugada chegar com medo da sua própria sombra. – Agora está bem segura aqui, Eva. Amanhã iremos até à sua casa ver a dimensão dos estragos à luz do dia. Até lá, não deve pensar mais nisso. – Ele estendeu-lhe a mão. – Venha comigo. Ia mesmo agora procurar alguma coisa para cear. Pode ajudar-me. Deixou-se ser conduzida até à cozinha. Gareth acendeu alguns candeeiros e espreitou nas prateleiras. Sentia uma onda de calor junto ao ombro. Ela estava muito perto dele e também olhou para cima. A proximidade dela fez o seu sangue começar a fervilhar. Agora não, seu imbecil. – Aquele presunto deve ser bom – disse Eva. – Não comi nada o dia todo e aceitava um pouco disso, se mo oferecesse. Ele trouxe para baixo o presunto, queijo e um pouco de pão que não estava muito duro. Encheu copos grossos com cerveja de um pequeno barril que estava encostado à parede. – O Harold encarregou-se da tarefa de garantir que haja sempre provisões básicas. Ela encontrou pratos e facas. – Imagino que ele e o Erasmus tenham esperança de, um dia, poderem vir a trabalhar aqui a tempo inteiro. Quando contratar o seu pessoal doméstico, querem ser os primeiros da fila. – Isso não irá acontecer até algumas questões legais relativas à propriedade estarem resolvidas. Expliquei-lhes isso para não deixarem passar outras oportunidades que possam surgir. Eva sentou-se junto da mesa de trabalho de superfície áspera. Gareth sentou-se do lado oposto para não se sentir tentado a tocá-la. Ela cortou o presunto. – Estou surpreendida por ainda não ter os criados de que possa precisar. Parece ser o tipo de homem que faria esse género de coisa. Quando pensou em distraí-la com uma refeição, não esperava acabar a falar de si próprio.


– Nunca senti necessidade de ter criados. Moro sozinho e desloco-me com muita frequência. Eva concentrou-se afincadamente em cortar a sua porção do presunto. A curiosidade exalava dela tão claramente como o medo há menos de meia hora. – Pergunte o que quiser – disse ele. A faca dela voltou ao trabalho, cortando o queijo em pedaços do tamanho da boca. – Isso seria grosseiro da minha parte. – Está a perguntar-se como é que o filho bastardo de um duque vive, se não possui um meio de sustento óbvio. A faca cortou uma, duas, três fatias. – O meu pai deixou-me um rendimento razoável. Também desempenho o papel de intermediário em alguns negócios, Eva. De mediador. Por norma, uma das partes está em Inglaterra e a outra parte está no continente. Viajo até lá com frequência. – Foi por esse motivo que nunca se casou? Porque viaja tanto? Eis, inevitavelmente, o fim de toda a curiosidade de uma mulher. Ele riu-se. – A pergunta parte do princípio de que o casamento é uma boa ideia e uma realidade que devemos almejar. – Não é dessa opinião? – Creio que, em termos financeiros, oferece muitos benefícios, com a pessoa certa. Visto que não reúno as condições para ser considerada uma dessas pessoas, essa possibilidade nunca surgiu com uma mulher que, por sua vez, pudesse ser a escolha certa para mim. A verdade é que nunca pensei em casarme, nem uma única vez. – Nunca? Nem uma única vez? Mesmo que isso fosse impossível, nem sequer teve um pensamento fugaz a esse respeito enquanto estava com alguém que amava? O tom sincero dela cativou-o. Como explicar-lhe a sua posição? Ela precisava apenas de pensar naquela questão a partir de um ponto de vista diferente para perceber. Isso ia implicar deixar para trás as suas ideias antigas acerca da forma como o mundo espera que alguém encare aquelas questões. – Não. Nem uma única vez, Eva. No que diz respeito ao amor... O amor é, na realidade, desejo com uma capa mais bonita para justificar necessidades físicas. Alguns chamam-lhe amor porque chamar-lhe o que é realmente parece demasiado ignóbil e também porque promete longevidade depois de o desejo


inevitavelmente esmorecer. Um rubor subiu pelo pescoço de Eva enchendo-lhe o rosto de cor. Não com embaraço face ao assunto em questão, como seria o caso da maior parte das mulheres. A fúria fez-lhe brilhar os olhos. – É muito cínico. – Eu sou sincero, ao passo que muito poucas pessoas conseguem sê-lo a respeito destas coisas. – E o que aconteceu entre a sua mãe e o seu pai? Foi meramente desejo? – Era, sem dúvida, desejo e pouco mais. O duque mal a conhecia quando acordou aquele entendimento entre ambos. – Mas ele foi ficando, não foi o que me contou? Permaneceu ao lado dela depois de isso ter esmorecido, de acordo com a sua opinião. – Ele ficou porque ela se tornou uma amiga e uma confidente, assim como a única pessoa em quem ele confiava sem questionar. Ele ficou porque ela tornou muito fácil a possibilidade de ele ficar. Ele também ficou para vexar a sua duquesa, a qual acabou por vir a abominar. Se ele amava a minha mãe no fim, era como qualquer tipo de amor de família, e não um amor diferente e especial do modo que a poesia e os romances levam alguém a pensar. Eva ergueu-se e começou a arrumar a mesa com gestos abruptos e bruscos. Os pratos bateram uns contra os outros na pia. – Acho que está errado. – Empurrou o prato do presunto de volta para a prateleira. – Acho que as suas experiências afetaram seriamente a sua maneira de encarar estas coisas. – A minha experiência foi melhor do que a maioria. Eu vi uma relação melhor entre o duque e a minha mãe do que os meus irmãos viram entre ele e a mãe deles. – Não estou a referir-me a essa experiência. – Eva pegou no alguidar. – Se for buscar um pouco de água, eu lavo estes pratos. Ele ergueu-se e pegou no alguidar. A seguiu, pousou-o. – A que experiências se está a referir? Ela inclinou-se para trás e apoiou-se contra a pia. – Imagino que tenha tido muitas experiências que o possam ter afetado da pior forma. Era a isso que me referia. – Parecia estar a falar de alguma coisa em específico. Com uma expressão irritada, ela pegou no alguidar e tentou passar por ele. Ele não a deixou. – Irei dizer apenas isto, uma vez que jamais insultaria o meu anfitrião depois


de ter procurado refúgio na sua casa. A sua reputação seguiu-o até Langdon’s End. É tudo. – E que reputação é essa? – Foi dito que deixa as mulheres tão enfeitiçadas pelo prazer que elas perdem todo o juízo e fazem o que quer que seja para o manter por perto. – Ela enrubesceu ardentemente, mas também o olhou diretamente nos olhos. – A má-língua faz-me sentir tão lisonjeado quanto insultado – declarou ele. – Não sei se deva ficar zangado ou sentir-me envaidecido como um pavão vaidoso. Não há muitos homens que possuam a fama de fazer uma mulher perder todo o juízo com o prazer, afinal de contas. – Não sei como é capaz de brincar com o assunto. A reputação tem importância neste mundo. – A minha reputação é pecaminosa, isso é verdade, mas na melhor das formas. Prefiro ser conhecido por isso do que por alguém que é cruel, implacável ou desprovido de princípios. As sobrancelhas dela franziram-se. – Sim, estou a perceber o que quer dizer. No que diz respeito aos defeitos de caráter, os seus implicam o menor dos pecados. Ainda assim, satisfazer os nossos simples desejos sem qualquer moderação... e aliciar outras a fazer o mesmo... – Por vezes, os nossos desejos não são nada simples. Podem ser uma força enlouquecedora. Uma tempestade interna. Uma necessidade irresistível. – Inclinou-se até os olhos ficarem a centímetros dos dela. – Mas a Eva já sabe disso. – Tocou nos lábios dela com a ponta dos dedos. – Não sabe?


CAPÍTULO 12

E

va devia ter virado a cabeça, para que ele não lhe pudesse tocar daquela maneira. Só que aquela pequena carícia nos lábios quase a hipnotizara e a proximidade dele causara uma excitação terrível no seu corpo. Que não era, contudo, perigosa. O deslumbramento que sentia parecia-lhe maravilhosamente normal. Quase reconfortante, depois da maneira como a noite tinha começado. Os resquícios do medo que a haviam forçado a correr estrada fora iam desaparecendo enquanto desfrutava da atenção e sedução de Gareth. – Não vim aqui para isso. – Eva sussurrava as palavras, em vez de as pronunciar. – Eu sei. Gareth não parecia sincero, nem tão-pouco muito interessado. Talvez não acreditasse nela. Se calhar, presumia que ela teria ido até ali para aquilo, depois perdera a coragem e sentara-se nos degraus para decidir o que fazer. – A minha casa foi mesmo assaltada. Estou a dizer a verdade. – Não tenho dúvidas. – Então porque... Os lábios dele roçaram nos dela. – Não estou bem certo. Talvez porque a Eva sinta curiosidade e eu me sinta perigosamente tentado a esclarecê-la. – Eva sentiu um leve sorriso junto ao rosto e a respiração dele contra a sua pele provocava-lhe tremores de felicidade que desciam pelas costas. – Talvez porque uma mulher que diz o que pensa sem hesitar seja um desafio para mim. Se calhar, porque a sua coragem deixa entrever todo o tipo de paixões.


Eva tentou refugiar-se nas regras da sociedade, sem grande convicção. – Seria ignóbil da sua parte seduzir-me depois de eu vir até cá em busca de ajuda. Gareth inclinou a cabeça de modo a falar-lhe ao ouvido. Na realidade, já nenhuma parte dele tocava nela. Nem ao de leve. E, no entanto, parecia que abraçava o corpo despido de Eva, a julgar pela respiração ofegante que a dominava. – Não vou seduzi-la. – Não? Gareth abanou ligeiramente a cabeça. O cabelo macio passou ao de leve pelo rosto de Eva, pois baixara a cabeça de maneira a que os seus beijos invisíveis aquecessem o pescoço dela. Eva lutou contra a vontade de se contorcer em reação às provocações sensuais. – Vou desfrutar, todavia, da doce tortura que é desejá-la. A tentação é, em si, um prazer. – A respiração de Gareth voltou a rasar-lhe o ouvido e o pescoço. – A Eva está a sentir o que quero dizer. Está a senti-lo agora mesmo. Isso era evidente. Ele excitara-a ainda mais do que quando se tinham abraçado no jardim. Tinham tão pouco espaço a separá-los que bastava expirar para que os seios tocassem na camisa dele. Aquela curta distância implorava por ser anulada. – Julguei que um homem como o Gareth tirasse partido das circunstâncias – murmurou Eva. – Em vez de se contentar com uma doce tortura. Gareth olhou para as pontas dos dedos. Estas desenhavam vagarosamente uma linha ao longo do decote do vestido de Eva. A proximidade das mãos aos seios dela parecia ser exatamente a que devia para a enlouquecer. Entrou numa guerra perdida contra as suas convicções pois já antes fora acariciada por aquela mão, que também a despira e tinha sido maravilhoso. – Como já disse, podem chamar-me pecaminoso, mas tenho princípios. Há imensas razões para não poder possuí-la, esta noite acima de todas. A lista é longa. A Eva é inexperiente. Veio até cá para se sentir segura. Tomou uma bebida forte. Como é inocente, presume que eu faça a seguir o que é correto. Não seduzo mulheres que não estejam na posse das suas faculdades e que vão acordar arrependidas, Eva, mesmo que eu as deseje intensamente. A linha que estava a ser traçada fez, por breves momentos, contacto com a pele de Eva, como se fosse uma pequena carícia. A sensação atravessou-lhe o corpo. Depois daquele excelente discurso, era óbvio que ele ia recuar. Eva não conseguiria suportar aquilo por muito mais tempo. A expectativa fazia-lhe doer o corpo. Compreendia o que Gareth queria dizer quando falara no prazer da


tentação. No jardim, tinha provado, por instantes, a plenitude dessa promessa e agora a tentação arrastara para longe a prudência, a discrição e o que restava do decoro. – E se... E se não houvesse arrependimento? – perguntou Eva. – E se eu estiver farta de ser inexperiente e mais do que ligeiramente curiosa? Gareth contemplou-lhe o rosto, que olhava para cima. – E se eu estiver bem na posse das minhas faculdades e não existirem quaisquer expectativas? – Eva... – E se ser abraçada por si esta noite me parecer muito mais seguro e correto do que qualquer outra coisa? A expressão dele endureceu. As pálpebras baixaram. A sensualidade tornou-se uma energia palpável entre ambos. A expectativa que sentia aumentou ainda mais de tom. Parecia-lhe impossível voltar a desejar tanto que um homem a tomasse nos braços como naquele momento. Mas Gareth não o fez. Ao olhá-lo nos olhos, perdendo-se neles, percebeu, simplesmente percebeu, o momento em que a tentação perdera a batalha. Eva mal podia acreditar. Acabara de se oferecer a Gareth e ele ia recusá-la. Era suposto ele ser pecaminoso, caramba. Para piorar, Gareth sorriu como se ela fosse uma criança adorável e beijou-a na testa. Furiosa, Eva lançou os braços à volta do pescoço dele, forçou a cabeça dele a inclinar-se para baixo e beijou-o na boca. Encostou os seios contra o peito dele e todo o seu corpo regozijou de alívio. Surpresa. Alguma hesitação. De seguida, a inconveniente decência de Gareth voou nas asas de um desejo furioso. O seu abraço cingiu-a com tanta firmeza que o corpo de Eva se fundiu no dele. Com os dedos fortes segurava-lhe a parte de cima da cabeça para lhe arrebatar com beijos a boca, o pescoço e o peito. As mãos e os braços de Eva apertavam, agarravam, aprendiam e sabiam. Sim, pensava ela, Sim, sim, enquanto as mãos de Gareth lhe percorriam o corpo e a força do desejo a dominava. Ele falou-lhe baixinho ao ouvido. – Aqui não. – Ali, ou noutro lado qualquer, ela pouco se importava. Saíram dali, sem Eva perceber como. Sempre entrelaçados, continuando a partilhar abraços febris e beijos longos e intensos, subiram apressadamente as escadas como um furacão, chocando contra as paredes, atrapalhando-se com as roupas, cegos de impaciência.


Pura alegria quando o vestido se soltou a meio do segundo lanço de escadas. Pura euforia quando Gareth a empurrou contra a parede da escadaria e lhe baixou o vestido, a combinação e o corpete, até a mão quente poder voltar a tocar-lhe nos seios. Sim, quando sentiu novamente aquele prazer, bem melhor do que se lembrava. Sim, quando Gareth baixou a cabeça e a língua se moveu rapidamente. Já não conseguia andar com o vestido a arrastar pelo chão. Gareth pegou nela e carregou-a ao colo o resto do caminho até chegar a um quarto branco e castanho, espartano. Sentou-se na beira da cama e colocou-a de pé à sua frente. Eva deu consigo a fitar uns olhos escuros e um rosto transformado pela paixão. Intensa. Escaldante. Uma corrente de desejo atravessou-a até ao ventre. Gareth puxou-lhe a roupa para baixo até à cintura e desembaraçou-se rapidamente das fitas do corpete. O vestido e a combinação caíram pelas pernas abaixo e o corpete voou pelo ar, deixando-a nua de frente para ele. As mãos e os olhos de Gareth percorreram o corpo de Eva, desde os ombros aos joelhos. – É tão bela, Eva. – Puxou-a para si, segurando-a entre as coxas, pousou uma das mãos nas nádegas, a outra nas costas e depois beijou-a tão apaixonadamente que os joelhos de Eva quase cederam. A boca avançou depois para os seios dela. A língua e os dentes deram início a uma excitação devastadora enquanto as carícias reivindicavam as ancas e as coxas de Eva, as suas nádegas e costas. Todo o corpo. Eva deixou-se envolver por um entorpecimento sensual. A necessidade era cada vez mais vibrante, dolorosa e ávida. Uma sofreguidão frenética intrometeu-se na sua euforia. Não parou de aumentar até, por fim, absorver todo o prazer. A mão de Gareth deslizou por entre as coxas de Eva. Tocou-lhe bem no centro do prazer, onde todas as sensações se reuniam e pulsavam. Eva gritou, tal era a intensidade do que sentia, e quase recuou. Ele segurou-a, impedindo-a de o fazer, voltando a acariciá-la demoradamente. Eva sentia-se a enlouquecer por aquela agradável mistura de prazer e desejo lancinante. Gareth pegou nela e sentou-a nos joelhos de frente para si, com uma perna para cada lado. Ela olhou para baixo observando a mão que continuava a acariciá-la, só que desta vez oferecia-se a ele. E de forma escandalosa. Antes de fechar os olhos para controlar o delírio, reparou que também ele olhava para baixo. Eva quase chorou. Suplicou, argumentou, implorou misericórdia, o que quer


que fosse. – Já falta pouco. Muito pouco – respondeu Gareth. A mão continuou o seu movimento. A carícia deixou-lhe a cabeça às voltas. – Vai ficar agora a saber o que isto é, pois não estou certo de que seja possível quando a possuir. Gareth puxou-a contra o peito. Abraçou-a naquela posição enquanto aumentava deliberadamente a loucura dela, até Eva achar que ia desatar a gritar. E depois Eva gritou mesmo, junto ao ombro dele, no momento em que todo o seu desejo explodiu deixando libertar agradáveis sensações. Naquele momento, perdeu a noção dos outros sentidos, e apenas foi capaz de se recuperar a si própria lentamente enquanto se afundava, nua e estupefacta, nos braços de Gareth. Era incapaz de dizer quanto tempo tinham ficado assim, ela indolente nos seus braços com toda aquela glória a ressoar dentro de si. Por fim, Gareth levantouse, deu meia-volta e deitou-a na cama.

Gareth tirou a roupa e juntou-se a ela na cama. Eva continuava embalada pelo entorpecimento, mas não ao ponto de a impedir de observar Gareth a despir-se. – Venha cá. – Gareth chegou-se a ela. – Faça assim. – Posicionou-a de costas, por cima dele, com a cabeça por cima do ombro e o corpo exposto ao ar, ao olhar e mãos dele. Eva agitou-se um pouco, surpreendida por se ver assim, exposta. Gareth encostou o nariz à cabeça dela e acariciou-a dos lados até ela se deixar afundar contra ele. Isso fez com que as suas nádegas provocassem nele uma ereção. As ancas de Eva ergueram-se, abruptamente. Depois desceram novamente, experimentando cuidadosamente, à medida que o choque dava lugar à curiosidade. Eva mexeu-se de maneira a aninhá-lo entre as suas coxas. Gareth mudou-a subtilmente de posição, de modo a que a ponta do pénis pressionasse a púbis dela. Eva contorceu-se o suficiente para que um pico de desejo selvagem obliterasse os pensamentos de Gareth. – O Gareth é realmente pecaminoso – disse ela, arqueando-se, de forma sensual, contra ele. Ele beijou-lhe o ombro e o rosto. Os seios de Eva elevaram-se ainda mais, redondos e firmes e os mamilos escuros endureceram de novo. Gareth passoulhes os polegares ao de leve e toda ela se sentiu levitar. Acariciou-lhe novamente


os mamilos. Ela agarrou nos lençóis de ambos os lados das ancas dele e torceu o tecido com os punhos. Ele continuava a provocá-la e Eva sentiu o desejo voltar a inflamar-se. Balançou-se contra ele, com as coxas a acariciarem-lhe o pénis e a púbis a pressionar a extremidade. Gareth ficou ainda mais tenso e protuberante. O seu desejo tornou-se feroz. Conseguiu controlar-se o suficiente para evitar possuir Eva de imediato. Com cuidado. Devagar. Algumas réstias de lucidez revelavam as suas boas intenções, mas a cabeça era invadida por imagens eróticas, que o excitavam. Gareth virou Eva ao contrário e deitou-a na cama, de barriga para baixo. Ergueu-se apoiado num dos braços para poder observá-la enquanto lhe afagava as costas e as nádegas. Imaginou-a a pôr-se de gatas... Eva levantou a cabeça, como se fosse capaz de lhe ler os pensamentos. Gareth beijou-a de modo tranquilizador e passou a mão pelas curvas dela. – Deixe-se levar pelo prazer, Eva. Não pense em mais nada. Eva agarrou novamente o colchão. A sua respiração voltou a acelerar por causa dos beijos que desciam pelas costas. Soltou um pequeno gemido de júbilo quando as carícias de Gareth contornaram a abertura das nádegas para depois descerem e se afundarem entre as pernas dela. Quando lhe tocou nas pregas ainda intumescidas e macias, Eva não conseguiu parar de gemer, cedendo novamente ao abandono. O prazer de Gareth tornou-se mais intenso, crescendo pelo modo como agora controlava Eva. Tocou nela de maneira precisa e ela gritou. A mão de Eva cobriu instantaneamente a boca. Tornou a tocar-lhe, deliberadamente, e aquela mão quase não conseguiu abafar o grito seguinte. – Só eu consigo ouvi-la, Eva. Não tente negar o que está a sentir. De olhos fechados e com o rosto sereno a permitir que a paixão a dominasse, sacudiu a cabeça por momentos. – É tão maravilhoso que assusta. É chocante. Estou escandalizada por me estar a observar enquanto eu volto a... Enquanto eu... Gareth acariciou-a profundamente e ela ergueu as nádegas para que as mãos dele tivessem mais alcance. – Enquanto se entrega ao prazer e a mim? Eva anuiu. – Quer que eu pare? Eva mordeu o lábio inferior e fez que não com a cabeça. – Então destape a boca e deixe-se levar completamente. Quero que aceite


como tudo isto pode ser chocantemente maravilhoso. Eva deixou a mão cair. Gareth acariciava-a vagarosamente, observando como a paixão a tornara mais bela e radiante. Eva susteve a respiração quando ele lhe tocou no sexo. Inseriu primeiro um dedo, depois dois, no interior da sua passagem estreita e aveludada. Os lábios de Eva entreabriram-se para duas grandes inspirações. Gareth acariciou-a ainda mais profundamente. Eva agarrou no lençol a que se abraçara e gemeu. – Oh – murmurou Eva. – Oh, sim. Estava húmida, aberta e mais do que preparada. Gareth também já mal se aguentava, tendo levado ao limite a sua contenção. O corpo e cabeça imploravam-lhe por uma conclusão. Gareth voltou Eva de barriga para cima. Partilharam um beijo longo, profundo e incrivelmente erótico enquanto ele procurava combater a tempestade. Só que o beijo fez o oposto, e a sua mente fechou-se a tudo menos penetrá-la. Gareth lambeu e chupou os seios de Eva até os gritos dela aumentarem e se tornarem mais insistentes. Eva agarrou-se aos ombros dele, frenética e descontroladamente. Quando Gareth voltou a acariciá-la, os gritos de Eva transformaram-se numa longa série de exclamações de afirmação e frustração. Chegara a hora. Naquele momento. Só que... Gareth não perguntou. Nem sequer pensou. Os seus beijos iam descendo, pelo corpo dela abaixo, sem se preocupar se estava a chocá-la, sem pensar em nada a não ser o impulso primário que o guiava. Desceu mais ainda, até lhe beijar a púbis. Desceu mais ainda, até lhe afastar as pernas. Eva gritou. Mas não era de contentamento. Gareth percorreu o corpo dela com o olhar até a ver a observá-lo, de olhos esbugalhados. Gareth manteve a mão dentro nela, deixando que o prazer falasse por ele. – Eu nunca... Não sabia que... – Eva mal conseguia falar, tal era a sua agitação. – Isso parece verdadeiramente pecaminoso, mais do que o normal. Gareth instalou-se entre as pernas dela. – Vou esperar até que me peça. Só volto a acariciá-la quando voltar a pedir mais. – Não creio que... Eu jamais... Oh. – Aquele gemido suplicante surgiu quando Gareth lhe pressionou o clítoris. Ele sabia como levar uma mulher ao limite. Manteve-a naquele limiar até Eva se contorcer numa agonia gloriosa. Ele próprio sentiu mais do que a tortura normal e só se controlou por estar focado nas reações dela. – Eu... Eu... Por favor... Eu... – As palavras dela pareciam suspiros ofegantes.


– Quer mais, Eva? Eva olhou para baixo através de pálpebras muito pesadas. Os olhos exibiam uma loucura especial. O aceno foi hesitante, mas o suficiente. Gareth beijou-lhe a coxa tentando não deixar fugir da sua mente o que ainda restava de sanidade e contenção física. Depois voltou a cabeça e deu-lhe o mais íntimo dos beijos.

Oh. As sensações eram insuportáveis. Chocantes. Incríveis. Eva ficou tensa e o seu corpo recuou de tanta intimidade. O prazer derrotou rapidamente o retraimento. Estava num lugar que não pertencia àquele mundo e todo o seu corpo e mente imploravam por mais, por alívio, por uma eternidade de semelhante excitação sobrenatural. Eva olhou para baixo, observando o que Gareth estava a fazer, o que estaria a ver. Chocante. Escandaloso. Por entre o desejo intenso em que todo o seu ser estava focado, pairavam pensamentos dispersos. O que diria a mãe se soubesse. Como Charles nunca a desejara assim. Como ficariam surpreendidos os habitantes de Langdon’s End. Calando-os, dominando todas as outras vozes, estava aquela que a levara àquela cama. Aprende tudo. Absorve tudo. Talvez tenha de te durar o resto da vida. Algo mudou. De modo inequívoco, Gareth ficara subtilmente mais exigente, como se tivesse ouvido aquelas vozes e procurasse silenciá-las. O prazer também se tornara exigente, como acontecera da última vez, mas muitas vezes pior. Afastava todos os pensamentos da cabeça de Eva e obliterava todo o controlo. Eva já não era dona de si. Era Gareth, graças ao que fazia com ela. Levava-a a um desejo louco cada vez mais profundo, até nada mais existir. E mais profundo ainda. Na sua cabeça, soavam gemidos e gritos. Depois reprimiu-os a todos e a sua consciência exclamou, suplicou e tentou alcançar mais um maravilhoso final. O final não veio. Em vez disso, Gareth trepou por ela acima, até junto dos seus braços, o corpo dele alinhado com o dela, dominando-o. Fez pressão para dentro dela lentamente. Eva agarrou-se a ele no momento em que um novo fascínio e um novo choque se apoderaram dela. Não podia resistir a Gareth mesmo que quisesse. Ainda não controlava suficientemente o corpo para o fazer. Ele penetrou-a ainda mais profundamente. Eva sentiu-o distintamente contra a carne ainda sensível e intumescida dos beijos dele e no seu interior à medida que


o corpo se distendia para o receber. Lançou-lhe um olhar furtivo. Os olhos flamejantes de Gareth e a expressão tensa surpreenderam-na. Deu-se conta, simplesmente percebeu, que aquilo não seria o que ele habitualmente faria e que estava a obrigar-se a alguma contenção por sua causa. Eva fechou os olhos e não deu atenção ao desconforto que Gareth agora lhe causava. Permitiu-se senti-lo em pleno, como fizera até aí. Gareth chegou então ao fim, preenchendo-a. Ficou imóvel. Eva tornou a olhar para ele. Os olhos estavam fechados e parecia menos severo. Pôs os braços à volta do pescoço dele e fê-lo descer, de modo a que pudesse beijar-lhe o ombro e depois os lábios. – Sobreviveu? – perguntou Gareth calmamente. Eva anuiu e abriu os olhos. Fitou-o diretamente nos olhos. Se calhar, fora um erro. Naquele momento, percebeu os perigos reais do que fizera. O ato pecaminoso talvez não lhe assombrasse a vida, mas a intimidade sim. Permitir que ele a despojasse das reservas que possuía deixara-a vulnerável e exposta de outras formas. Ela agora sabia que poder era esse. Gareth mexeu-se, cuidadosamente. Uma tensão renovada atravessou-o. Apesar da sua ignorância, Eva percebeu. Alguns instantes depois, Eva também se mexeu, incentivando-o a encontrar o seu próprio prazer sem grandes preocupações. Ele reagiu penetrando-a com mais força. O desejo masculino dominou todos os seus sentidos. Ainda assim, mesmo no final, quando viu e sentiu o abalo esmagador dele, Eva percebeu que Gareth se estava a conter para não a magoar muito. Sentiu-o retrair-se momentos antes de a tensão explodir. Gareth deixou-se cair sobre ela, cobrindo-a, com o rosto comprimido contra o dela e o cabelo a roçar-lhe no rosto. Eva não se importou com o peso. Apertou o corpo contra o dele, absorvendo o seu calor. As pontas dos dedos tocavam a pele dele ao de leve enquanto guardava na memória a sensação de lhe tocar no corpo. Saboreou a intimidade que descobrira naquela noite – invasiva, até mesmo assustadora, mas igualmente maravilhosa.

Os dedos de Eva acariciavam-lhe as costas. Hesitantemente. Cuidadosamente, com receio de o incomodar. Deixou que ela o fizesse e desfrutou do toque suave, ao mesmo tempo que o abraço forte permitia que o êxtase se prolongasse mais do que o normal. Lentamente, Gareth voltou a si e reparou que a sua satisfação ganhara outras cores. Surpresa e alívio. Alívio por ter evitado brutalizar Eva. Surpresa por ter


estado tão próximo de o fazer. No passado, poucas mulheres tinham inspirado aquele apetite possessivo, e nenhuma chegara aos pés de Eva Russell. Gareth ergueu-se de modo a colocar o peso nos antebraços, e não nela para deixar de a esmagar. Olhou para baixo e deparou-se com uns olhos que cintilavam de... De que seria? Lágrimas? Que diabo, magoara Eva mais do que julgava. Afinal de contas, ela era virgem. Uma virgem. O que lhe tinha passado pela cabeça? Devia ser chicoteado. A verdade é que, por muito que tentasse, não conseguia sentir vergonha nem arrependimento. A sua única preocupação é se ela os sentia. Eva dissera que tal não aconteceria, mas o que sabia ela? Gareth acariciou-lhe o rosto e beijou-a. A expressão de Eva iluminou-se e depois tornou-se pesarosa. – Logo a seguir, como é o caso, o que se faz? – perguntou ela. – Normalmente, gosto de correr nu pelo jardim e brincar ao sátiro que persegue a ninfa. Por alguns instantes, Eva acreditou nele, e depois riu-se. – Mais brincadeiras maliciosas, é o que quer dizer. – Sim, mas fora dos jardins. No entanto, creio que não vai querer mais nenhuma esta noite, mesmo que sejam apenas moderadamente pecaminosas. – Gareth saiu de cima dela e deitou-se de costas. – E não é apenas por ter sido desflorada. Passou o dia a viajar. Deve precisar de dormir. Gareth estendeu a mão para o lençol. Ao fazê-lo olhou para aquele em que estavam deitados. À vista desarmada, não havia sangue, apesar de ter sentido o hímen a ceder. Puxou Eva para si e abraçou-a, tapou-os com o lençol e pôs-se à vontade com a cabeça dela no seu ombro e a mão dela no seu peito. – Se costuma passar a noite entregue a brincadeiras pecaminosas, isto vai ser muito aborrecido – comentou Eva. – Está a dizer que está desapontada por eu não voltar a abusar de si? – Não. Nesse aspeto tem toda a razão. Estou um pouco cansada e... dorida. Calculo que me ache muito aborrecida em comparação com outras mulheres que conheceu. É a isso que me refiro. Gareth olhou para o cimo da cabeça dela, aninhada por baixo do queixo dele. Eram necessárias algumas palavras tranquilizadoras, mas não eram aquelas que ele esperava que ela precisasse. Do que está a falar? Raios, a Eva foi incrível. Não, assim não podia ser. Gareth formulou cuidadosamente uma resposta.


Demorou algum tempo a ponderar as potenciais ramificações de cada palavra. – Eva, eu sou o seu primeiro amante e não o décimo. É um privilégio ter essa honra, sobretudo vinda de uma mulher que podia escolher o homem que quisesse. Eva não reagiu. De maneira alguma. Gareth reparou que ela estava totalmente imóvel. Adormecera. Lá se fora a sua declaração ponderada. Gareth também se deixou levar pelo sono. Prestes a adormecer, sentiu Eva mexer-se. Abriu os olhos e viu que ela o fitava com uma expressão emotiva, apreciando o que observava. A seguir, beijou-o no peito e aconchegou-se mais ao corpo dele para dormir.


CAPÍTULO 13

G

areth fitou o rosto e o cabelo desalinhado de Eva. A expressão dela parecia etérea à suave luz do norte. Amanhecera há duas horas e ele levantara-se para se lavar e vestir. Água fresca aguardava por ela no quarto de vestir. Não se teria importado de ficar na cama até ela despertar dos seus sonhos, mas partiu do princípio de que se sentiria mais à vontade se estivesse sozinha no despontar luminoso do dia. Abandonou o quarto e desceu as escadas, fazendo uma lista dos vários assuntos que tencionava tratar naquele dia. Um deles implicava cavalgar de volta a Chatsworth e fazer uma visita a duas propriedades vizinhas suficientemente próximas das propriedades do duque de Devonshire para que alguém nelas pudesse ter algum conhecimento da história dos quadros que em tempos foram lá guardados. Na melhor das hipóteses, agora só poderia partir dali a dois dias. Era possível que fosse preciso esse tempo para ajudar Eva a colocar a sua casa de novo em ordem e efetuar uma queixa formal a respeito da invasão de propriedade. A carta para Ives teria igualmente de esperar, mas tinha de ser enviada em breve. Por sua vez, uma carta de Ives para ele chegara no dia anterior e as suas inquirições indicavam que alguém, ou antes, Alguém o pressionara, por sua vez, para saber mais informações. Ives nunca afirmara que fora o Príncipe Regente quem solicitara aquela investigação, mas Gareth partira do princípio de que era ele o Alguém que estava por trás daquilo tudo. Irritou-o a ausência naquela carta de quaisquer notícias a respeito de Lance, da investigação e do ponto de situação do inquérito em torno da morte de Percy. O foco dele nos deveres por cumprir manteve os pensamentos acerca da noite


anterior à distância até entrar na cozinha e encontrar café acabado de fazer. Foi até à porta que dava para o jardim e olhou para fora. Harold viera até lá, por sua própria iniciativa e sem Erasmus. Estava a trabalhar no muro, a içar pedras para o lugar, terminando o trabalho que o próprio Gareth começara no dia anterior. A mente de Gareth disparou para a mulher que dormia no piso superior. Maldição. Andou às voltas na cozinha, a pensar velozmente. É claro que devia ter pensado em tudo aquilo na noite anterior, de modo veloz ou lento, desde que pensasse efetivamente no assunto. Rogou pragas severas a si próprio, mas ao mesmo tempo, todas as familiares racionalizações para ignorar as regras ganharam primazia. Os cavalheiros não seduziam senhoras inocentes, mesmo que essas inocentes se atirassem para os braços dos ditos cavalheiros... supostamente. O facto de poder identificar cavalheiros importantes que o tinham feito não importava. O facto de ter aprendido isso com o próprio pai que se deitara com uma virgem com a qual não podia nem queria casar-se tornava a lição ainda mais cómica. Para não falar do facto de que ele não era, oficialmente, um cavalheiro. Ele era uma não-pessoa e se existia alguma vantagem nisso devia ser a de não fazer caso de quaisquer regras de um cavalheiro. Porém, ali estava ele, com uma senhora na sua cama lá em cima e com a reputação dela nas mãos. Observou Harold. Grande, musculoso e loiro, Harold movia de forma metódica as pedras. Era provável que terminasse por volta do meio-dia. Harold devia estar a trabalhar na lida doméstica de uma casa, na função de criado particular ou criado de casa, não a fazer trabalhos pesados. Mas ali estava ele, a demonstrar o seu valor num momento assaz inconveniente. Melhor Harold do que Erasmus. Com Erasmus, o nome de Eva estaria na boca de todas as alcoviteiras da vila no dia seguinte. A tendência de Erasmus para a bisbilhotice tinha sido útil, mas havia alturas que exigiam discrição. Como aquele momento. Passou os dedos pelo cabelo e abriu a porta que dava para o jardim. Subiu as escadas que conduziam ao jardim e caminhou até ao lugar onde Harold trabalhava. Harold interrompeu o trabalho e aproveitou a oportunidade para limpar o rosto e mãos com um farrapo preso à camisa. – Não estava à sua espera hoje – disse Gareth. Harold anuiu.


– Disse que tinha começado a reerguer isto sozinho. Mencionou-o quando estava a servir-lhe o jantar ontem. Achei que era melhor se me ocupasse eu disso. Não há motivo para ambos darmos cabo das mãos. Gareth quase passou a palma da mão pela face para ver os estragos feitos às mãos e que tinham levado Harold a sentir-se obrigado a intervir. Será que Eva reparara nisso? – Que olho atento o seu – respondeu Gareth. – Fico contente por estar aqui. Aconteceu um pequeno desastre e preciso da sua ajuda. Harold franziu o sobrolho e pousou a pedra que acabara de erguer. – É algo que exige uma discrição absoluta – prosseguiu Gareth. – Estou certo de que quando estava no exército, houve alturas em que lhe foi pedido para se manter em silêncio acerca de questões importantes. – Muitas vezes. Não só a respeito de assuntos do exército. Sabia coisas particulares sobre o meu oficial, uma vez que o servia de forma próxima. Sei como manter a boca fechada, senhor, se é isso que me está perguntar. – Sim, é. Sei que tem esperanças de vir a tornar-se um criado particular um dia, quer seja a meu serviço ou de outro homem. A situação é muito semelhante à do seu oficial. Se não for possível confiar na discrição de um criado particular, ele é inútil. – Ninguém vai saber desse desastre, senhor. Nem sequer o Erasmus, que dá muito à língua, se é que me compreende. Ele é um bom amigo, mas gosta muito de falar. Gareth não tinha outra alternativa senão confiar que Harold mantivesse a sua palavra. – Na noite passada, ao escurecer, Miss Russell regressou a casa e descobriu que alguém a tinha invadido e destruído grande parte dela. Era possível que o intruso ainda estivesse lá. Ela achou que estava. Correu até cá em busca de proteção. Os olhos de Harold arregalaram-se. – Miss Russell? Ela ficou ferida? Se lhe tocaram nem que seja num fio de cabelo, mato o homem que fez isso quando o descobrir. O mundo transformou-se num inferno, se é que me permite dizê-lo, meu senhor, se uma mulher não é capaz de se sentir segura na sua própria casa. Fiquei transtornado, senhor, transtornado com esta notícia. Não é um desastre pequeno, mas um desastre enorme e deveras chocante. – Sim, pois, sendo que era de noite e não existiam alternativas, ela ficou aqui para se sentir em segurança. Está lá em cima no quarto que tem a cama nova que


acabei de comprar. Já percebeu o problema que enfrentamos, decerto. Era óbvio que sim. Com exceção de um olhar brusco e desconfiado, passou os minutos seguintes a ruminar, a coçar a cabeça e a fitar fixamente o muro. – Não tenho cabeça para estratégias, senhor. Ninguém me promoveu a oficial, no fim de contas. Mas acho melhor que quando ela falar com o magistrado, não mencione que ficou aqui. O meu silêncio não vai valer de nada se o magistrado começar a falar e, se ele o fizer, a reputação dela pode ser arruinada por nada mais do que recusar-se a arriscar-se junto dos criminosos que andam entre nós nos dias que correm. – Isso foi exatamente o que eu pensei. Ela tomou a atitude mais sensata, mas terá de fingir que tomou a mais estúpida e que não veio até mim informar-me do que aconteceu até hoje de manhã. – Eu posso ir alertar o magistrado. É muito provável que ele chegue à casa dela apenas daqui a algumas horas, uma vez que vive do outro lado da vila. Se acompanhar Miss Russell de volta... – Essa é uma boa estratégia. Talvez o melhor seja pôr-se já a caminho e Miss Russell espera pelo magistrado em casa dela. A expressão de Harold exibiu uma firmeza militar. – Só existe uma coisa que pode complicar o plano, senhor. Miss Russell... será que ela vai mentir? Pode recusar-se a fazer isso, sendo o tipo de mulher que é. – Tentarei convencê-la dessa necessidade. Harold encaminhou-se para o portão do jardim. Gareth dirigiu-se de volta para a casa. Era melhor que Miss Russell não manifestasse desagrado com a ideia de mentir. Decerto que ia entender o bom senso da mentira. Regressou ao quarto de dormir. Eva já estava acordada e ouviu-a no quarto de vestir. Deu meia-volta e atravessou a casa até ao único outro quarto com uma cama verdadeira. Puxou a colcha para trás, amarrotou os lençóis e até deu alguns saltos em cima do colchão com o traseiro para fabricar a impressão de que alguém dormira lá. Amarrotou uma toalha no quarto de vestir e depois atirou-a para o chão para consolidar a ilusão. Quando decidiu que as divisões convenceriam Harold que a boa Miss Russell tinha passado todo o tempo ali, foi à procura da senhora em questão. Encontrou-a vestida e arranjada no quarto de dormir. Estava sentada numa cadeira, com um ar calmo, mas talvez um pouco confuso. Ainda assim, Gareth achou que estava encantadora. Bonita, irreverente e tentadora, apesar de não ser essa a sua intenção. Parecia completamente capaz de decidir se desejava um homem e de lhe dizer isso, o que não era a Eva Russell que o mundo conhecia.


Provavelmente não era a Eva Russell que ela própria conhecia. Para evitar que o confrangimento crescesse entre ambos, aproximou-se com passos largos, ergueu-a com a ajuda dos braços e deu-lhe um beijo. Ela corou. – Espero que isso não seja embaraço – disse ele, afagando a face rosada dela. – Se for, não o vou permitir. – É claro que não. Nada de embaraços e nada de arrependimentos, tal como prometi. Sinto-me de facto um pouco estranha, como se estivesse a acordar lentamente de um sonho muito real. – Ela tocou com as pontas dos pés no tapete. – Fomos um pouco loucos na noite passada, não fomos? – Sim, completamente dementes. – Absolutamente loucos. – Sim. Os braços dela abriram-se num gesto de impotência. – Acho que toda a gente se devia permitir ser louco pelo menos uma vez na vida, não acha? – Com certeza. Eva tocou no cabelo. Alisou as mangas do vestido. – Devia regressar a casa. Estou com um aspeto horrível. Nem sequer trouxe uma escova comigo. Ele não reparara nisso. Não achava que ela tivesse um aspeto horrível, bem pelo contrário. A luz da manhã fazia a sua pele parecer irrepreensível e os olhos mutáveis de Eva tornavam-se azuis naquele momento. Parecia deliciosa, apesar do seu vestido prático. Quanto ao cabelo, Gareth não conseguia olhar para ele sem pensar no quanto parecia sedoso junto à sua pele. – Devia regressar a casa – disse ela de novo. – Preciso de... fazer muitas coisas. – Eu levo-a. Pedi ao Harold para ir chamar o magistrado. Tem de o deixar ver o que aconteceu para ele poder alertar outros proprietários e tentar encontrar o culpado. – O Harold... – O olhar dela voltou-se bruscamente para a cama. – Ainda bem que ele estava aqui. Não ia querer que esperasse pelo magistrado sozinha enquanto eu o ia buscar. Não fique com medo por o Harold a ter visto. Ele não entrou dentro de casa. Ele sabe que ficou aqui, mas acredito que será discreto. Aquilo apaziguou em grande parte os receios dela. Ainda assim, a perceção crescente do perigo que corria podia ser vista nos olhos dela. – Se ele não for discreto, não importa se na realidade tivesse ficado num


quarto fechado à chave toda a noite ou se fugi da minha casa com um assassino atrás de mim. Sou capaz de enfrentar o escândalo, mas receio que isso possa destruir as oportunidades da minha irmã. – Não haverá qualquer escândalo. Gareth conduziu-a pelas escadas abaixo e deixou-a sozinha enquanto foi colocar a sela e buscar o cavalo. Ela esperou junto à porta da frente por ele, com a bolsinha na mão. Ele conduziu o cavalo enquanto caminhavam juntos na direção da estrada.

Que estranho estava a ser aquele dia. Que estranho estar a caminhar ao lado de Gareth à luz do sol, com o seu cavalo possante marchando lentamente atrás de ambos. Ela fitava-o de relance de vez em quando. O coração continuava a dançar-lhe dentro do peito quando olhava para ele. Talvez sempre o fizesse. Se achava que a intimidade da noite anterior ia atenuar a excitação adolescente que sentira, enganara-se. Quando acordara, ao ver onde estava deitada e ao lembrar-se da noite, tivera um momento de pânico. Mas foi passando, à medida que as memórias se tornaram mais claras e foi sentindo o corpo fantasma dele a comprimir-se contra o dela. A pequena dor que ainda latejava profundamente dentro de si provocoulhe um sorriso, não consternação. Enquanto se lavava, perguntava-se se se tinha tornado tão pecaminosa quanto ele, para compartilhar prazer de forma tão despreocupada com um homem que não amava sem sentir qualquer tipo de culpa a seguir. Pecaminoso. Uma palavra interessante. Nada semelhante a malévolo. Mas bastante mais condenatória do que malicioso. Não se podia negar que a palavra pecaminoso insinuava muitas vezes um marginal que buscava os prazeres dos sentidos. Se pensasse bem, agora a palavra também se aplicava a si. Gareth dissera na noite passada que ela podia ter escolhido entre muitos homens se quisesse. Fora um gesto de grande gentileza que a comovera. Uma mentira generosa e atenciosa. Por outro lado, era mais do que certo que ele podia ter escolhido entre muitas mulheres. – Estou esfomeada – disse ela, quando tornearam a curva que fazia o Chalé Albany desaparecer de vista. – Devia ter-lhe dado alguma coisa para comer.


– Posso ir buscar um pouco de queijo assim que chegar a casa, isto se as pessoas que lá entraram não o levaram ou o estragaram. E também não nos podíamos demorar a tomar o pequeno-almoço esta manhã. Não seria conveniente o magistrado chegar a minha casa e descobrir que eu não estava lá. Gareth empurrou a porta, a qual Eva tinha a certeza de que não fechara quando desatara a correr. O seu malão, telas e outras coisas continuavam na soleira da porta, para onde as tinha arrastado. Ele entrou na casa. – É pior do que tinha dito, Eva. Ela seguiu-o pela divisão da frente e olhou em volta para a destruição que a recebera no dia anterior. Gareth avançou e apanhou um dos quadros do chão. Fitou-o com olhos zangados e a seguir pousou-o. Voltou para junto dela e pegoulhe nas mãos. – Vamos ver a dimensão dos estragos no resto da casa. Mas, antes disso, tem de pensar no que dirá ao magistrado a respeito da noite passada. Acho que devia dizer que passou a noite aqui e apenas me pediu ajuda de manhã cedo. Sei que não quer mentir, mas... – É, de facto, uma mentira, mas uma mentira que pode ser justificada. Se a verdade alguma vez vier ao de cima, será óbvio por que motivo a ocultei e penso que ninguém me irá censurar. Ele tomou o rosto dela nas mãos. – Uma vez que acho que não terei hipótese de fazer isto mais tarde... – A noite anterior ganhou vida no beijo que lhe deu. A seguir, conduziu-a até ao átrio da entrada e ajudou-a a subir as escadas. Ela foi até ao seu quarto de dormir e dirigiu o olhar para as tábuas do soalho dos cantos. Nada. Ninguém as tinha levantado. As sua moedas continuavam presas àquele prego. Na bolsinha, sentia o peso de mais moedas do que aquelas. Iria sobreviver àquela destruição porque tinha algum dinheiro. Estremeceu de horror ao pensar em como seria capaz de o fazer, caso as circunstâncias fossem diferentes. As tábuas estavam incólumes, mas tudo o resto não. Todas as camas do piso superior estavam de pernas para o ar. Os armários tinham sido esvaziados e o seu conteúdo espalhado em todas as direções. Uma área de arrumação por trás de uma porta baixa nos aposentos de Rebecca tinha a porta aberta de par em par e os malões haviam sido rebuscados. – Parece que andavam à procura de dinheiro ou valores – declarou Gareth. – Bastava-lhes entrar aqui para ficarem a saber que não existe nada disso cá dentro. Nem sequer temos mobília decente.


Mais do mesmo aguardava por eles no piso seguinte. Não existia qualquer mobília ali em cima, apenas alguns malões que guardavam as roupas e memórias da mãe ocupavam uma das divisões. Também estes haviam sido violados e, ao ver aquela agressão final, perdeu a compostura. Em soluços, deixou-se cair de joelhos e começou a juntar as peças antigas de seda e os sapatos que ainda guardavam os cheiros da sua infância de há muito. Nem a destruição dos seus quadros a magoara tanto como aquilo. Uma raiva assassina tomou-a de assalto. Encostou os vestidos ao rosto e libertou através das lágrimas a sua ira e frustração. Gareth ajoelhou-se a seu lado. Tirou-lhe as roupas das mãos, dobrou-as cuidadosamente e guardou-as de novo dentro do malão. – Não gosto da ideia de a Eva viver aqui sozinha. – É a minha casa. – Limpou os olhos com a mão. – Diabos me levem se alguém me vai obrigar a sair. – Ainda assim... – Aqueles que fizeram isto, quem quer que tenha sido, não me vão obrigar a ter medo de viver na única casa que sempre conheci. Não vão fazer isso. Ele não disse mais nada. Pôs-se de pé e ofereceu-lhe a mão para a ajudar a subir. Voltaram para a biblioteca e esperaram lá pelo magistrado.

Sir Thomas Pickford parecia ser um magistrado competente. Alto, esguio e com uma postura em tudo semelhante à do oficial que fora em tempos no exército, percorreu a casa de uma ponta à outra, registando a destruição. Regressou à biblioteca e colocou a única cadeira que havia perto do divã onde Eva aguardava. – Não os viu? – perguntou-lhe. Ela abanou a cabeça. – Nem sequer sei se foi um ou mais do que um homem. – É provável que tenham sido mais. Dois, pelo menos. As divisões lá em cima exibem um método cuidadoso. Esta aqui em baixo... – Fez um gesto à sua volta. – Quem fez isto foi uma mente diferente. – Era óbvio que ela não tem nada para roubar – afirmou Gareth. – Verdade, mas ainda assim eles procuraram, ao mesmo tempo que se divertiram. – Ele ignorou Gareth e fitou Eva com atenção. – Irritou alguém? Alguém pode ter feito isto num ato de despeito?


– Essa é uma pergunta estranha, Sir Thomas – disse Gareth. A ideia de que alguém pudesse querer magoar Eva era absurda. – Não é assim tão estranha, meu senhor. Olhe à sua volta. Não vemos coisas semelhantes neste condado, posso garantir-lhe. Oh, existem bastantes ladrões, mas isto... – Abanou a cabeça. – Bom, agora já viu. Confio que encontre os responsáveis. – Vou tentar, mas não existe nada que indique quem são eles ou onde estão, certo? Vou procurar saber informações e descobrir se alguém viu alguma coisa, talvez enquanto passavam na estrada ao escurecer. Vamos fazer tudo o que pudermos. – Ele voltou a atenção para Eva de novo. – Não foi sensato da sua parte esperar pela manhã para ir buscar ajuda, Miss Russell. Vai ficar aqui sozinha muito mais tempo? – A minha irmã regressa daqui a alguns dias. – Bom, tranque as portas. Não me parece que voltem, mas é melhor ter cuidado. Sir Thomas despediu-se e partiu a cavalo. Gareth começou a colocar o resto da mobília em ordem pela casa. Quando desceu dos quartos de dormir, descobriu Eva a limpar tinta dos quadros de paisagens. Sentira uma raiva sanguinária ao ver a forma como aqueles dois quadros tinham sido estragados. Não podia existir outra finalidade naquilo que não fosse a crueldade. Talvez Sir Thomas tivesse razão e alguém o tivesse feito por despeito. Eva reparou que ele estava a observá-la. – Posso usar as telas de novo – explicou. – Eram lindíssimas e bem-feitas. – Nem por isso. Eu sei que tenho um talento sofrível. Mas gosto de pintar. Também tenciono trabalhar nisso e melhorar. Gareth aproximou-se, retirou-lhe a tela das mãos e observou-a. Os vestígios da paisagem ainda conseguiam distinguir-se. – As pessoas com um talento sofrível pintam como todas as outras, Eva. Este quadro possuía um traço distintivo, basta ver a forma como usou a luz no chão e nas árvores. Não acredita o suficiente no seu talento. – Perdoe-me, mas... sabe do que está a falar? – Em boa verdade, sim. Sei. A arte é a única coisa que conheço muito bem. Fez um sorriso rasgado com o elogio dele e depois riu-se. – Creio que posso afirmar que não é a única coisa. A alusão maliciosa dela reconfortou-o. Parecia estar a recuperar do choque de


tornar a ver a casa naquele estado. Eva colocou o quadro de lado e estendeu a mão para a sua bolsinha. – Gostava que fizesse uma coisa por mim, se tivesse essa bondade. – Certamente, seja o que for. Retirou algumas notas de libra da bolsinha e estendeu-lhas. Os olhos dela faiscavam com centelhas de determinação. – Por favor, compre-me uma pistola e ensine-me a usá-la.


CAPÍTULO 14

D

epois de comprar uma pistola para Eva, Gareth deu um pequeno passeio por Langdon’s End. Parou na White Horse. Estava lá Erasmus, como era de esperar, que o cumprimentou com um sorriso de orelha a orelha. Gareth fez-lhe sinal para que se aproximasse da mesa, pediu duas cervejas e informou-o da situação de Eva. Erasmus mostrou-se tão chocado como Harold. Parecia uma reação genuína, o que significava que Harold mantivera a sua palavra, até no que respeitava ao amigo. Mais do que isso. Não só Harold não revelara a presença de Eva em sua casa naquela manhã como nem sequer mencionara o que a levara até lá. – Deve ter sido ontem – disse Erasmus. – Passei por lá todas as manhãs desde que a senhora partiu e não vi nada que parecesse errado na propriedade. Não fui lá hoje porque o Harold disse que ela já estava de volta quando me cruzei com ele na vila. – Como pode calcular, a senhora está com medo. – Gareth pegou no embrulho que colocara sobre a mesa. – Pediu-me que lhe comprasse uma pistola. Se isso a fizer sentir mais segura, é razão de sobra para o fazer. – Ela alguma vez usou uma arma? – Erasmus parecia incrédulo. – Não tardará a saber usá-la. Quero que andes de ouvidos abertos. Avisa-me se deres com alguma pista de quem for o responsável por isto. Indivíduos desta laia costumam vangloriar-se, sobretudo com um grão na asa. Erasmus anuiu. – Falarei também com Sir Thomas. – Fala primeiro comigo. O magistrado pode ficar com o que restar do patife


depois de eu lhe tratar da saúde. Gareth deixou uma moeda em cima do balcão para pagar a cerveja e saiu da taberna. Sabendo como Erasmus gostava de falar, em poucas horas ficar-se-ia a saber que Miss Russell tinha agora uma pistola em casa e que sabia usá-la. Presumia igualmente que iria espalhar-se que Mr. Fitzallen protegia a senhora e não ficaria à espera de um tribunal para se fazer justiça. Aquelas informações podiam ajudar, se o assalto à casa tivesse sido obra de indivíduos aproveitando uma oportunidade para roubar. No entanto, outra possibilidade invadira a mente de Gareth quando viu a destruição deliberada dos quadros de Eva. Antes de sair da vila, fez uma última paragem. Mr. Trevor levantou-se para o cumprimentar quando Gareth entrou no escritório do arquiteto. Ofereceu-lhe um conhaque e instalaram-se nos cadeirões junto à janela. – Os materiais para o telhado devem chegar esta semana – informou-o Trevor. – Logo que as obras comecem, não levará muito tempo a terminar o trabalho. Gareth permitiu mais alguns minutos de conversa sobre o Chalé Albany antes de avançar para o verdadeiro motivo da sua visita. – A casa de Miss Russell foi assaltada durante a ausência dela. Vai ouvir falar disso em breve, se ainda não o fez. – Mas porquê essa casa? Não existe lá nada de valor. – Quem a visse, não partiria do princípio de que não tivesse nada de valor. É uma bonita casa da pequena nobreza. Esta já não é uma aldeia isolada, mas sim uma vila em expansão e suponho que todo o tipo de gente passe por aqui. – Isso é terrível. Que atrevimento. Este não é um lugar onde as pessoas ponham trancas à porta, ou suspeitem de qualquer um que passe. Pelo menos, nunca foi assim no passado. Receio que depois disto isso possa mudar. – Sem dúvida que sim, se os pormenores forem divulgados. Não tendo encontrado nada, os intrusos deram largas à sua raiva ao destruir metodicamente o pouco que ali havia. Soalhos, paredes, mobiliário, loiças: assoalhada por assoalhada, todas as posses de Miss Russell ficaram em cacos. – Graças a Deus que nem ela nem a irmã lá estavam. Não é seguro duas mulheres viverem sozinhas à sombra de uma cidade como Birmingham. Ela deve estar apavorada. – Mais furiosa do que apavorada. No entanto, depois de ver aquela destruição, não consigo deixar de pensar que assustá-la poderá ter sido o objetivo. Há pormenores que parecem desnecessariamente cruéis e pessoais. Trevor pôs-se de pé, afogueado e alarmado com aquela ideia.


– Certamente que não. Quem poderia querer magoá-la? Ela não tem inimigos. Os habitantes da vila gostam dela e respeitam-na. – Os mais velhos sim. Os recém-chegados mal a conhecem. – Gareth observou Trevor, que agora olhava através da janela enquanto se adaptava a esta nova ideia. – Até que ponto o seu cliente quer aquela casa e a propriedade? Trevor virou-se para ele, estupefacto. – O que está a insinuar? Gareth limitou-se a olhá-lo em silêncio. – O meu cliente é um homem de negócios respeitável. Tem um rendimento de sete mil libras por ano graças ao seu trabalho árduo e aos negócios astutos que fez nos últimos dez anos. O que está a sugerir é insultuoso e despropositado. Gareth ergueu-se e olhou diretamente para Trevor. – Aposto que não sabe quase nada acerca desse homem, tirando a cara que ele lhe escolhe mostrar e a dimensão dos seus rendimentos. Enriqueceu com os negócios, o que não é condenável, mas ter sucesso em dez anos é demasiado rápido em qualquer ramo, por isso ele pode ser do género de homem que derruba tudo e todos os que se atravessarem no seu caminho. Como Miss Russell não lhe vende o que ele quer, se calhar tentou persuadi-la fazendo com que se sentisse insegura dentro da sua própria casa. – Essa acusação é ultrajante. Mesmo sem ter qualquer prova, está a difamar um homem... – Quem é ele? Diga-me e eu não demoro muito a descobrir se estou ou não errado. – Só por cima do meu cadáver. O senhor é um cavalheiro, tal como ele. Tanto quanto sei, seria igualmente capaz de derrubar quem se atravessasse no seu caminho. Não vou permitir que acuse o meu cliente quando aquilo que se passou foi provavelmente um crime fortuito. Gareth poisou o cálice de conhaque na mesa. – Se tiver sido um crime fortuito, não haverá mais nenhum. No entanto, se houver nova tentativa de assustar Miss Russell, voltarei cá. Se nessa altura não me der o nome dele, irei obtê-lo de outra forma, de modo a que eu e ele possamos ter uma conversa. Gareth dirigiu-se para a porta. – Isto está fora do seu alcance, Fitzallen. Ele tem advogados, dos melhores que o dinheiro pode comprar. Se o acusar, arruínam-no financeiramente. – Eu tenho um ainda melhor e, como é da família, não vai cobrar-me nem um centavo. Além disso, tem a reputação de ser implacável no que toca a homens


que ameaçam mulheres. Diga ao seu cliente que devia estar contente por ser eu a desconfiar dele e não o meu irmão.

A pistola já não parecia tão pesada nas suas mãos. Muito menos maciça do que na primeira vez que pegara nela e seguira desajeitadamente as indicações de Gareth sobre como carregar a bala e a pólvora. Também não lhe parecia tão difícil segurá-la firmemente, como achara das primeiras duas vezes em que a disparara. Fez pontaria à grande tábua de madeira que Gareth trouxera e encostara ao muro do jardim. – Agora? – Quando estiver preparada. Eva disparou. O estrondo atingiu-lhe os ouvidos. Surgiu fumo da ponta do cano. Desta vez, Eva não se assustou, embora tivesse a certeza de que nunca se habituaria àquele barulho. Espreitou para a tábua, procurando o destino da bala. Gareth tirou-lhe a pistola da mão. – Muito melhor, Eva. – A sério? Não vejo onde acertou. – Não acertou na tábua propriamente dita. O olhar de Eva dirigiu-se para o muro. Um terceiro buraco negro ficara visível, junto a outros dois. O muro podia ser de pedra, mas as balas de chumbo não faziam ricochete. Em vez disso, embutiam-se nele, transformando-se em lembranças eternas da sua boa pontaria. – Como pode dizer que foi muito melhor se continuo sem me aproximar de uma tábua do tamanho de uma porta de estábulo? – Porque desta vez ficou mais perto. – Um centímetro mais perto! – Eva recuperou a pistola, sentou-se e pegou no saco de pólvora. – Tem boa pontaria? – Não vai conhecer muitos melhores do que eu. Gareth não o afirmou com orgulho ou arrogância. Limitou-se a responder à pergunta. Eva colocou a pólvora no interior da pistola. – Demorou muito tempo a tornar-se assim tão bom? Gareth sentou-se ao lado dela, observando-a a carregar a arma. – Todos os verões, passava algumas semanas com o meu pai ali mesmo, no chalé. Para dizer a verdade, eram os únicos momentos que passava com ele. No


verão em que fiz doze anos, ensinou-me a disparar. Obrigava-me a praticar todos os dias, horas a fio. Cheguei ao ponto de odiar aquela pistola. Só tínhamos aquele tempo precioso e ali estava eu sozinho no jardim a disparar vezes sem conta. – Ele sabia que odiava isso? – Sabia. Por fim, quando já tinha a pontaria afinada e sabia recarregar rapidamente, o meu pai explicou-me que, devido às circunstâncias do meu nascimento, ia chegar o dia em que homens me iriam desafiar ou insultar e eu teria de os enfrentar, mas, se se soubesse que eu era um atirador exímio, menos indivíduos dariam esse passo. Um homem conhecido por nunca falhar o alvo não é alguém que os outros queiram enfrentar num duelo. Depois de carregar a pistola, Eva segurou-a nas mãos. – E o seu pai tinha razão? Saber disparar bem poupou-o a esses desafios? Gareth tirou-lhe a pistola das mãos. – Na maior parte das vezes. Nem sempre do modo que ele esperava. – Ergueu a pistola, mirou a tábua e depois voltou a baixá-la. – Mas é capaz de ter impedido que o meu irmão me matasse. Eva olhou para ele, surpreendida. Gareth contemplou a pistola. – Num desses verões, o meu irmão veio visitar-nos. Julgo que por essa altura o nosso pai começava a desconfiar quem era o Percy, mas nunca viria a adivinhar a realidade da situação e acho que ficou satisfeito por o ver ter este gesto de boa vontade para comigo. Certo dia, o meu pai saiu a cavalo pela propriedade e o Percy ofereceu-se para me ensinar como se travavam duelos. Explicou tudo, encenámos a situação, a marcação, tudo. De um momento para o outro, estávamos frente a frente e ambos tínhamos nas mãos pistolas carregadas. – Gareth olhou para Eva. – Olhei para ele e percebi, percebi instantaneamente, que a intenção dele era que houvesse um acidente trágico. – Tem a certeza? – A ideia deixou-a chocada. – O seu próprio irmão? – Tinha a certeza. Ele estava mesmo por baixo dos ramos mais afastados de uma árvore e um deles tocava-lhe na cabeça. Fiz pontaria a esse ramo, atingi-o, o ramo partiu-se e caiu em cima dele. Ele assustou-se tanto que tive tempo de recarregar. O Percy olhou para o ramo, depois para mim e decidiu que a lição tinha chegado ao fim. Gareth levantou-se e devolveu-lhe a pistola. – Eu tinha quinze anos. Ele tinha vinte. Vá, só mais uma vez. A luz está a desaparecer rapidamente. Às escuras nunca irá aprender a disparar. Eva desejou que houvesse mais horas no dia. Precisava de aprender a disparar


sem demora. Detestava sentir-se tão vulnerável na sua própria casa. Enquanto Gareth estivera na vila naquele dia, passara o tempo a limpar o resultado da destruição, mas estava sempre atenta às pessoas que se aproximavam da estrada ou que passavam junto ao jardim. Voltou a falhar. Gareth retirou-lhe a pistola da mão, bem como o saco de pólvora. – Não tem de ser capaz de acertar em coisa nenhuma, pois é improvável que venha a ter de disparar. Basta-lhe empunhar uma pistola para pôr os intrusos a correr daqui para fora. Sinto-me tentado a levar a pólvora comigo, não vá a Eva fazer algo precipitado ou magoar alguém por engano. – Não se atreva a levar a pólvora daqui. Prometo que não irei usá-la sozinha até saber manejar a pistola. No entanto, não vou permitir que me trate como uma criança sem juízo ou uma mulher tão estúpida que dispara contra o próprio pé. – Nunca disse uma palavra acerca de disparar contra o próprio pé. – Gareth acariciou-lhe o ombro, massajando-o com suavidade. Fizera-o várias vezes naquele dia, desde que chegara de carruagem com a pistola e aquela enorme tábua, com Harold nas rédeas. Era o tipo de toque reconfortante utilizado em pessoas de luto ou que se deixavam levar pela emoção. Caminharam lado a lado pelo jardim até à casa. A limpeza da casa e o treino com a pistola tinham-na distraído da atração dele, mas bastara-lhe caminhar junto a Gareth para que o encanto que ele exercia voltasse a atormentá-la. Cordas invisíveis entre ele e o corpo de Eva estreitavamse com puxões maliciosos e provocadores. Não sabia se Gareth o fazia de forma deliberada, ou se aquilo era apenas o resultado da sua existência. – Escreveu à sua irmã a contar o sucedido? – perguntou Gareth. – Tenho uma carta para pôr no correio amanhã, mas não inclui essa novidade. Não quero que ela se aflija, nem que encurte a estadia com a Sarah. Entraram na cave através da cozinha. Gareth acendeu uma lamparina e Eva avançou diretamente para a lareira. Estava uma panela ao lume. Harold devia têla trazido, com o mesmo gesto caridoso de quem leva comida a inválidos. – É um guisado – notou Eva. Guisado de vaca, a julgar pelo cheiro. Que boa surpresa aquela. O seu estômago fez ruídos de alegria. – Quer um pouco? Também parece haver pão fresco. Gareth respondeu retirando dois pratos de uma prateleira alta. Algumas horas antes, havia loiça partida espalhada pelo chão, mas nem tudo fora destruído. Gareth foi ao abrigo da nascente buscar água e depois sentaram-se os dois a partilhar a refeição. Eva reparou que ele observava o que ela comia.


– Tenho a sua aprovação? – perguntou ela. – Comi o suficiente para ficar cheia de força e não com uma doença nervosa? – Não ralhe comigo por me preocupar consigo. Embora não tenha sido fisicamente maltratada, a verdade é que foi atacada. O corpo precisa de um certo tempo para se recompor. – Eu estou bem. Desmaiei? Não. Chorei como uma desvairada? Não. Quer dizer, até chorei, mas sem histeria, por raiva, e não por tristeza. E também não perdi o apetite. Está a ver? – Eva levou mais uma colher de guisado à boca. Os olhos de Gareth concentraram-se nela. – Tem a certeza de que está bem? – Absoluta. – Completamente bem? – Totalmente. – Fico feliz por saber. Daqui em diante, não voltarei a preocupar-me. – Por mim, tudo bem. Eva pegou nos pratos e levou-os até ao lava-loiça para os lavar. Quando terminou, subiram ao andar de cima. – Amanhã podemos voltar a praticar com a pistola? – Se assim quiser, mas não muito cedo. Eva levou Gareth até ao salão de entrada, e depois à porta. – Prometo esperar até decidir vir. Eva deu-se conta de que ele já não caminhava junto a si. Deu meia-volta e viuo encostado à parede, de braços cruzados, a observá-la. – Não vai ter de esperar que eu chegue, Eva, porque esta noite não saio daqui. Gareth tinha boas intenções e Eva ficou encantada, mas não queria vê-lo a vaguear pela casa como um anjo protetor. – Não preciso que cá fique. Prometo não ficar acordada a noite inteira, a tremer de medo. – De qualquer forma, esta noite não vai ficar sozinha em casa. Não discuta comigo. Não vou ser dissuadido. – A sua intenção é ficar de guarda? Dormir no divã com a pistola a postos? – Era essa a minha intenção. No entanto, uma vez que está completa, absoluta e totalmente recomposta, pensei que a sua cama seria mais confortável. Não lhe pareceu que ele estivesse a dizer que deveria ser ela a dormir no divã. As implicações das suas palavras puseram-na imediatamente a imaginar as sensações, a recordar o êxtase. A tentativa de sentir indignação perante a declaração arrogante teve pouco êxito. O desejo transformou-se numa força viva


no espaço que os separava. Gareth aproximou-se dela, beijou-a e depois guiou-a até às escadas, que depois subiram juntos. – A minha intenção era refletir um pouco antes de voltarmos a fazê-lo – confessou ela. – Era o que devia fazer. – Reflita o que lhe apetecer. A partir de amanhã. – Não posso ter um caso amoroso consigo. Já devia saber isso. – O que eu sei é que a desejo e que a Eva me deseja. – Seja como for, devíamos... Gareth parou e puxou Eva para os seus braços. O beijo tomou-lhe a boca de assalto e ele não mostrou nenhuma da contenção da noite anterior. – Chega de devíamos. Agora não, ou ainda a obrigo a esperar até me voltar a pedir. Obrigo-a a implorar até desatar a gritar. – Seja como for, já contava com isso. – Aquilo saiu-lhe, passando por cima de todos os devíamos que tentavam imiscuir-se nos pensamentos dela. O olhar que Gareth lhe lançou deixou-lhe as pernas a vacilar. Num gesto rápido, pegou em Eva ao colo e galgou as escadas. Daquela vez foi diferente. Não havia desespero. Não havia choque. O seu corpo não foi atravessado por um tumulto de prazer. Em vez disso, este cercavaa em ondas, controlado pelas carícias e beijos hábeis de Gareth. Também nada de particularmente pecaminoso aconteceu. Ele possuiu-a cuidadosamente, quase docemente, e entrelaçaram-se num abraço que permitiu que Eva o mantivesse perto de si. Sentiu um prazer incrível, mas pouco delírio. Por outro lado, sentiu-o à sua volta e dentro de si, numa espantosa intimidade. Nem mesmo a energia poderosa do final obscureceu a sensação, antes pelo contrário, intensificou-a. E enquanto descansava no abraço dele, percebeu que esta era a mais perigosa das duas paixões que conhecera, porque era aquela que lhe tocara no coração.

Eva foi a primeira a acordar. Deixou-se ficar por uns instantes nos braços de Gareth, saboreando a calma e a tranquilidade. De seguida, libertou-se do abraço dele e levantou-se da cama. Vestiu uma camisa de noite e escapou-se pelas escadas. Caminhou rapidamente pelo trilho do jardim, de balde na mão, para ir buscar água. Quando abriu a porta do abrigo da nascente, estacou. Alguém tinha lá estado desde a última vez que usara a nascente e não fora


apenas para ir buscar água. A pá e a enxada já não estavam por cima da caixa grande onde guardava as ferramentas de jardinagem. Tinham sido atiradas para o chão. Ao espreitar para o interior da caixa, reparou que o seu conteúdo fora reorganizado aleatoriamente. Eva passou os olhos pela pequena cabana. Nada fora partido ou destruído, mas desconfiava que os invasores da casa também tinham ido até ali. Gareth tinha visto aquilo quando fora buscar água no dia anterior. Provavelmente, não se apercebera de que havia algo de anormal. Um arrepio que lhe subiu pelas costas deu-lhe a resposta. Se o abrigo da nascente fora revistado, era porque alguém andara à procura de algo específico, e não se aproveitara apenas de uma casa vazia para ver o que encontrava. Eva carregou o balde de volta para a cozinha e aqueceu-o junto à lareira. Depois levou-o até ao andar de cima, para o quarto de vestir, lavou-se e vestiuse. De regresso à cozinha, preparou uma frigideira de modo a poder fritar alguns dos ovos que Gareth trouxera da vila no dia anterior. Pôs a mesa. Desde que começara a cozinhar para si, levar a comida toda até à sala de jantar deixara de fazer sentido. Como já tinha tudo preparado para cozinhar o pequeno-almoço, dirigiu-se à biblioteca. As telas e as tintas novas continuavam a um canto no chão. Retirou de uma gaveta um pequeno martelo e começou a retirar um dos quadros destruídos de uma moldura sem ornamentos. O seu plano era usar as telas novas para as cópias e reutilizar as telas destruídas para o seu próprio trabalho. A ideia de criar uma composição a seu gosto, de permitir que a sinfonia tocasse, deixou-a entusiasmada. Iria até ao lago fazer uns esboços, e talvez pintar uma panorâmica que incluísse a margem ocidental do lago – uma vista do pôr do sol, com bandas roxas e cor de laranja a deslizar pelo céu e árvores que faziam grandes sombras na água. O resultado seria muito melhor do que o quadro que fora destruído. Tinha a certeza absoluta. Eva olhou para baixo e contemplou o rolo de lonas. Para aquelas, precisava de encontrar quadros para copiar. Mas quadros de qualidade, de modo a que o cliente de Mr. Stevenson os quisesse. Começou a passar aguarrás com um pano no quadro, terminando o que os intrusos tinham começado. O quadro secara muito bem, por isso remover toda a tinta não iria resultar. Contudo, Eva conseguira reduzir a paisagem a uma sombra do que fora antes. Uma nova demão de tinta devia ser o suficiente para a tapar. Sons vindos de cima revelaram-lhe que Gareth tinha acordado. Eva limpou as mãos e pôs a tela a secar num pequeno cavalete. Se lhe falasse nos quadros


armazenados, será que a deixaria usar alguns? Evitou abordar o tema. Se não quisesse mentir a Gareth, Eva não conseguiria evitar uma confissão ao abordar essa questão. O seu comportamento só poderia levá-lo a tê-la em menos conta. Ele considerava-a uma senhora, uma mulher boa e honesta. E não uma ladra que pegara em cadeiras para vender e quadros para copiar. Ou o género de pessoa que deixara passar o tempo sem lhe falar dos quadros no sótão porque tinha a esperança de arranjar maneira de levar mais alguns no futuro. Até admitir que os copiara a envergonhava. Gareth tinha elogiado as suas paisagens. Eva não queria contar-lhe que nos últimos dois anos usara principalmente o pouco talento que tinha para reproduzir sem originalidade a arte de outros pintores. Era como descobrir que um indivíduo inteligente se limitava a repetir observações que outras pessoas verdadeiramente interessantes haviam proferido antes. – Ficou pior do que estava. Eva levantou a cabeça e viu-o a um metro de distância. Vestia um colete por cima da camisa e não tinha o plastrão. Gareth olhou para a paisagem fantasmagórica no cavalete. – Estava destruído e agora já posso reutilizar a tela. Tenho planos para ela. – Tornou a colocar a garrafa de aguarrás na caixa das tintas e fechou a tampa. – Grandes planos, pelo aspeto daquele rolo. Gareth referia-se aos novos materiais. Aquelas telas têm outro propósito, que pode passar por copiar quadros da sua coleção. – Quando acha que a sua irmã regressará? – perguntou Gareth. – Se está a perguntar por estar preocupado que eu fique sozinha... – Preferia que estivesse sozinha. Assim eu podia cá ficar todas as noites. Se mo permitisse. Permitir-lho-ia? A pergunta implícita ficou a pairar, à espera de uma resposta. Que não era a resposta que estava no seu coração. Essa gritava com alegria de modo afirmativo. O resto de Eva refreou-se, tentando não se deixar convencer pelo poder sensual da presença de Gareth. Pensa. Tens de pensar, mesmo que não queiras. – Não conto que ela regresse antes do próximo sábado, a menos que haja mudança de planos. Gareth apontou para as telas novas. – Tenho de ir ao Derbyshire amanhã, mas depois vou a Londres. Podia vir comigo. Devia ver as obras de arte que há lá e outros locais. As pessoas já terão


começado a chegar para a temporada social, por isso os parques devem estar animados. Eva nunca tinha ido a Londres, mas a sua imaginação tinha-a criado nos pensamentos muitas vezes. Era maior do que Birmingham, e em muitos sentidos melhor. Com grandes parques cheios de carruagens e pessoas elegantes. Milhares de lojas. Edifícios magníficos. E, claro, arte por toda a parte. As mais belas obras de arte dos melhores artistas. – Não tenho um guarda-roupa adequado para Londres – salientou Eva. – Encontraremos maneira de lho arranjar. O cabelo despenteado circundava o rosto incrivelmente belo de Gareth, deixando de fora algumas madeixas atraentes que caíam sobre as sobrancelhas. Os olhos por baixo daquelas sobrancelhas captaram a atenção dela. Refletiam charme e boa disposição, mas também uma intensidade sensual. Eram os olhos de um malandro, mas ainda possuíam a alegria e o brilho travesso que se vê nos olhos de rapazinhos endiabrados. Pensa. Tens de pensar antes que isso deixe de ter importância. – Espero que não se esteja a oferecer para me comprar um guarda-roupa. Jamais podia aceitá-lo. – Eva pôs-se de pé e virou-se na direção das escadas. – Nem tão-pouco podia ir a Londres sem a Rebecca. Compreende, ela sonha com isso há muito tempo. – Custou-lhe imenso dizer aquilo. Acabara de lhe passar por baixo do nariz a mais deliciosa das refeições, mas não podia ceder ao seu desejo. – Ela também pode vir. Escreva-lhe já hoje. Convide também a sua prima. Assim ninguém vai desconfiar. Eva ficou surpreendida com Gareth. – Se a Sarah vier, fará realmente as vezes de uma dama de companhia. Ela leva muito a sério os seus deveres. – Não pretendo seduzi-la em Londres, se é nisso que está a pensar, Eva. Estou apenas a planear a diversão que lhe prometi quando nos conhecemos. – Então concorda que, quando formos a Londres, pomos um fim ao nosso caso amoroso? – Se é isso que deseja, com certeza. Se não tem expectativas em relação a mim, eu não as posso exigir a si. Palavras muito verdadeiras. Muito sensatas. Eva perguntou-se se haveria alguém no mundo com uma visão tão fria das relações entre homens e mulheres como Gareth. – Vou escrever à Sarah a perguntar-lhe, mas não sei se o marido dela...


– Ele também pode vir. Diga-lhe que posso apresentá-lo a algumas pessoas que ele gostará de conhecer. Tranquilize a sua prima, não será necessário reservar quartos de hotel. Podem ficar todos na Casa Langley. – A Casa Langley? – Era a casa do meu pai em Londres. Agora pertence ao meu irmão. É a residência do duque de Aylesbury. Eva olhou-o, espantada. – Então, está decidido. – Gareth sorriu com um contentamento beatífico e desapareceu.


CAPÍTULO 15

G

areth montou a cavalo, regressou ao Chalé Albany depois do pequenoalmoço e começou a escrever uma carta a Ives para o informar da conversa que tencionava levar a cabo no Derbyshire. Mencionou igualmente que tomara a decisão pretensiosa de convidar alguns amigos para ficarem hospedados na casa da família em Londres durante uma quinzena. Não uma semana, como julgara Eva. Lá fora no jardim, Erasmus e Harold trabalhavam no muro. Juntou-se a eles e enrolou as mangas da camisa para cima. – Há notícias do magistrado, senhor? – perguntou Erasmus. – Ainda não, mas ainda é cedo para se saber alguma coisa. – Gareth ergueu uma das pedras grandes. – Ele não descobriu nada que o pudesse ajudar? – Na casa, não. Quem quer que tenha sido, não deixou ficar nada para trás que nos conduzisse a ele. – A vila está em polvorosa à conta disso. Só se ouvia falar disso esta manhã. – Não atires mais achas para a fogueira – declarou Harold. – Não queremos que todos os patifes no raio de oitenta quilómetros saibam que existem mulheres a viver ali sozinhas, pois não? Erasmus deteve-se a meio do gesto de erguer uma pedra. – Nunca pensei nisso. – Nunca pensas em grande coisa antes de dar à língua, o problema é esse – disse Harold. – Se alguém der à língua de volta, quero ficar a saber – afirmou Gareth. – Essa


é a única oportunidade de o magistrado encontrar os culpados. Se alguém que souber de alguma coisa falar. Depois de uma tarde a terminar de construir o muro com Erasmus e Harold, dispensou-os depois de lhes pedir que levassem água para cima para um banho. Passou meia hora dentro de água, fazendo um plano mental dos quartos da Casa Langley, a fim de decidir quais poderiam oferecer privacidade e discrição. Montou a cavalo e regressou a casa de Eva ao final da tarde. Quando se aproximava da propriedade, o estalido inconfundível de uma pistola rebentou no ar. Esporeou o cavalo para entrar a galope e lançou-se furiosamente pela estrada abaixo até chegar à porta dela. Não havia mais cavalos presos no exterior. A única coisa que saía da casa era silêncio. Rogando uma praga, abriu a porta com um pontapé e chamou por ela. Mais silêncio. Caminhou com passadas largas até às traseiras da casa, olhou pela janela e rogou uma praga de novo, desta vez dirigida a ela. Eva estava sentada num banco de pedra, a carregar a pistola. Mesmo da janela, conseguia ver que tinha falhado a tábua grande de novo com o último tiro. Maldição. Dissera-lhe para não fazer aquilo sozinha, sem a supervisão dele. Ela pôs-se de pé e fez pontaria. Orgulhosa. De costas direitas. Determinada. Olhou para o rosto dela. Afogueado. Olhos brilhantes. Pálpebras semicerradas. Conhecia aquele olhar. Aparentemente, usar uma pistola excitava Miss Russell. * Ela não tinha qualquer desejo de magoar ninguém. A própria ideia aterrorizava-a. Porém, quando segurou na pistola à sua frente e fez pontaria, não conseguia negar a satisfação visceral que sentia no seu potencial mortífero. O contraste com aquilo que sentira naquela noite em que desatara a correr pela estrada provocava-lhe uma sensação estonteante. Apontou a arma o melhor que sabia e depois puxou o gatilho. O som, agora familiar, feriu-lhe os ouvidos. Olhou imediatamente para os grandes pontos pretos onde as suas tentativas anteriores tinham embatido. Não eram visíveis quaisquer pontos novos. Só depois olhou para a tábua e viu o buraco que esta exibia. Radiante com o seu progresso, sentou-se e começou a carregar a arma de novo.


Uma sombra abateu-se sobre o colo dela. Uma mão surgiu por cima da sua, impedindo-a. Ergueu os olhos para Gareth. Ele não parecia contente. A sua expressão severa provocava-lhe um nó agridoce no estômago, na expectativa da noite que se seguia. O Gareth zangado parecia-se muito com o Gareth à luz das velas, enquanto se movia dentro dela. – Acertei na tábua. – Eva apontou para lá, bastante satisfeita consigo própria. – Disse-lhe para não usar a pistola se eu não estivesse presente. – Sim, mas não estava cá e a pistola estava, por isso eu... – Podia ter-se ferido. – Mas não foi o que aconteceu. Lembrei-me exatamente como o fazer, da mesma forma que me ensinou. – Desobedeceu-me e quebrou a sua promessa. – Ele ficou imóvel, de braços cruzados a fitá-la severamente. – Esqueci-me da promessa. Nem sequer me consigo lembrar de a ter feito. E, veja, acertei na tábua. Ele olhou de relance para lá. – Estou a ver que sim. Isso não a desculpa, mas, sendo assim, ponho de parte a minha intenção de a deitar no colo para lhe dar umas palmadas. Dar-lhe umas... Mas que ideia! A mera sugestão era... Ela agitou-se. Céus, nunca esperara que uma ameaça daquele tipo lhe provocasse aquela reação. Gareth sentou-se ao lado dela no banco, como se estivesse decidido a cumprir aquela ameaça. Tirou-lhe a pistola das mãos. – Parecia bastante confiante com ela. – Muito mais do que ontem. Assustou-me, nessa altura. – E agora? – De início, também me assustou, mas quando a ergui para fazer pontaria... gostei mais do que devia. – Ele estava sentado perto dela, mas não o suficiente. Eva sentiu o perfume do sabonete que usara. Gareth olhou fixamente para a tábua e ela para o perfil dele. Gostava que se virasse para o poder beijar. – Gostou disso como? O que quer dizer com isso? Tentou comunicar por palavras a emoção forte que sentira, mas, naquele momento, a expectativa daquilo que a aguardava em breve no quarto ocupavalhe todos os pensamentos. – Tornei-me mais forte. – Sentiu-se poderosa. – Sim, de uma forma deveras empolgante. Senti-me viva, forte e poderosa. Ele olhou para ela.


– Isso deu-lhe prazer? Mais uma ideia surpreendente, mas... algo semelhante ao prazer insinuara-se naquela reação vertiginosa. Sensações muito semelhantes a sensações do foro sexual acompanhavam aquele poder. Estas regressaram naquele momento e mesclaram-se com a excitação latente que Gareth instigava. Ao fitá-lo nos olhos, conseguiu ver que também ele estava excitado. Já o estava quando surgira no jardim. Os olhares de ambos encontraram-se durante um longo, arrebatador e silencioso assentimento. Ela olhou de relance para a casa e depois para ele. – Não está cá ninguém – disse ele. – Pode sentir-se viva, forte e poderosa aqui mesmo. Ela assentiu com a cabeça. Não queria esperar. Já sentia o corpo inundado de prazer. Lançou os braços à volta do pescoço dele e beijou-o com força. Comprimiu os seios contra o peito dele para que este os torturasse. O beijo tornou-se intenso e esfomeado entre ambos. Ele pôs-se de pé e agarrou-lhe um braço. – De joelhos, Eva. Ela não compreendeu, mas saiu do banco e colocou-se de joelhos à frente dele. – Levante a saia. Ela obedeceu, mas foi preciso algum esforço da sua parte. Subiu-a acima dos joelhos e depois ainda mais alto. – E, agora, a combinação. Eva puxou-a para cima, para o monte de tecido que estava agora junto à cintura. O ar fresco do final da tarde circulava por entre as ancas e coxas. Deliciou-se com o quanto estava a ser indecorosa. Gareth deu um passo atrás e olhou para a nudez dela. Para a púbis e coxas. O calor que irradiava do seu olhar e a expressão firme da boca diziam-lhe que o desejo o torturava tanto quanto a ela. – A sua sensualidade também é poder, Eva. Sinta prazer nessa parte. Neste momento, faria o que quer que fosse para a possuir. O que quer que fosse. – Fitou-a. – Percebe? Eva compreendia, pensou. Em grande parte. Percebeu o que ele quis dizer a respeito do poder, pelo menos. Era uma sensação arrebatadora, saber que ele a desejava tanto. E também a excitava de uma forma insuportável. – Não precisa de fazer mais nada para me possuir, Gareth. Ele deu a volta em torno dela. Eva olhou para trás e viu-o a ajoelhar-se atrás dela. Inclinou-a para a frente até ela ficar apoiada nos braços e joelhos e subiu-


lhe a saia e combinação um pouco mais, deixando-lhe as nádegas totalmente expostas. A seguir, houve uma pausa. Eva teve vontade de gritar, impaciente. A espera trazia consigo a sua própria tortura erótica. Por fim, acariciou-a duas vezes, apenas. Penetrou-a num movimento lento que a preencheu por completo. Um gemido de prazer quase inaudível acompanhou o movimento. Mais uma pausa, com ele dentro dela, preenchendo-a como nunca fizera antes. Carícias espalhadas pelas suas nádegas. Ajustou a posição das pernas dela e depois empurrou-lhe gentilmente as costas para baixo até tocar na erva. – Tem de me dizer se a magoar. Ela percebeu rapidamente ao que ele se referia. Aquilo era diferente, selvagem, primitivo. Ele entrou nela uma e outra vez, profunda e intensamente até lhe parecer que o próprio ventre ganhava vida. Também sentia o prazer de forma diferente. Mais poderosa. Mais confiante. Sim, pensou de cada vez que ele a penetrava. Sim, quando o prazer acelerou em torno dele, com uma profundidade imensa que a atormentou a querer mais e mais. Sim, mesmo até à violência frenética do final, quando a libertação do prazer lhe provocou ondas de êxtase incandescentes ao longo de todo o corpo.

Eva atou as fitas do chapeuzinho. Enfiou as luvas. Pegou no caderno de esboços encadernado a pele e enfiou-o debaixo do braço. Após decidir que estava tão apresentável quanto era capaz, saiu de casa para fazer a sua primeira visita social após anos de interrupção. Parou em Langdon’s End para enviar as suas cartas a Rebecca e Sarah. Devia receber uma resposta no dia seguinte, o mais tardar. Confiava que Sarah encontraria uma forma de convencer Wesley a autorizá-la a acompanhar as primas a Londres. Não era o tipo de convite que uma esposa como Sarah aceitaria bem, se tal lhe fosse negado. Gareth abandonara a sua cama antes do amanhecer naquele dia. Já estaria em viagem, rumo a norte para aquele encontro que tinha. Uma viagem de um dia, provavelmente. Dois no máximo, havia dito ele quando fizera uma despedida assaz doce ao enlouquecê-la de prazer três vezes seguidas, numa rápida sequência de acontecimentos, primeiro com a mão, a seguir com a boca e depois com o membro. Mal conseguira encontrar forças para se despedir dele. A separação efetiva de ambos ficou impregnada pela nostalgia. Quando regressasse, iriam viajar até Londres. Naquela manhã, na escuridão antes do


amanhecer, o caso amoroso entre ambos tinha terminado. Era inevitável, aquilo. O facto de ter continuado tanto tempo fora arriscado. A mágoa abalou-lhe o coração quando pensou nisso, encontrando apenas alívio na certeza de que iam continuar amigos. Amigos especiais, que haviam partilhado uma intimidade de que poucos amigos jamais se aproximam. Agora, sorria para si própria enquanto caminhava pelas ruas, cumprimentando pessoas que a tinham conhecido toda a vida. Será que conseguiam ver o quanto mudara? Sentia-se tão diferente que se perguntava se seria capaz de se reconhecer há apenas um mês, caso se cruzasse consigo própria no caminho. Apresentou-se na casa das irmãs Neville. A criada levou o seu cartão, um dos cinco que lhe restavam (manda fazer cartões novos imediatamente para que fiquem prontos a tempo da viagem para Londres, apontou na lista mental de coisas a fazer). A mulher regressou e encaminhou-a para a biblioteca. Jasmine e Ophelia esperavam-na, sentadas precisamente nos mesmos lugares da última vez em que lhes fizera uma visita. Ophelia parecia radiante ao vê-la. Jasmine fitou-a com uma curiosidade evidente. – Estou impressionada por a ver a andar por aí – declarou Jasmine após cumprimentos muito breves terem sido oferecidos e recebidos. – Ouvimos falar da sua experiência terrível. A maior parte das mulheres ter-se-ia recolhido na cama durante uma semana. Eva conteve a tentação de fazer uma piada a respeito do quanto desfrutara da sua cama nas últimas duas noites. – Foi um choque, é claro, mas fiquei a salvo, por isso está tudo bem. – Dizem que Mr. Fitzallen mandou chamar o magistrado. – Ele é o meu vizinho mais próximo e teve a bondade de me ajudar. Revelouse um bom amigo. – Que bom para si. – O tom de Jasmine insinuava desconfiança, ainda que o rosto não o mostrasse. – Certamente que sim – concordou Ophelia. – E que bom também que a Rebecca não tivesse voltado junto consigo. Odeio pensar o que dar de caras com um cenário daqueles lhe faria. Os jovens são tão facilmente impressionáveis. Podia ter começado a temer cada rangido do soalho. – A Rebecca é demasiado corajosa para se tornar um ratinho assustado de repente – afirmou Jasmine. – Não partas do princípio de que toda a gente possui o teu temperamento, irmã. Estou sempre a dizer-te isso, no que diz respeito ao bom, assim como aos teus defeitos. – Estou bastante consciente disso. Tu, por exemplo, não partilhas praticamente


nada do meu temperamento e somos irmãs. – É um facto que não possuo a tua tendência para a fraqueza feminina, e digoo com satisfação. – Não creio que ser mulher seja um defeito. Se julgas que sim, esse é um dos pontos em que os nossos temperamentos não se alinham. – Espero que a Rebecca não fique demasiado alarmada quando souber o que aconteceu – disse Eva, relembrando-as da sua presença. Gostava de assistir a uma boa discussão como qualquer outra pessoa, mas a visita daquele dia tinha outra finalidade. Chá, por exemplo. A criada trouxe-o e todas partilharam desse prazer. Eva ponderou em usar algum do dinheiro de Mr. Stevenson para comprar algum para si, se tudo corresse bem nesse dia. – O que tem aí? – Os olhos de Jasmine semicerraram-se ao pousarem no caderno de esboços de pele que Eva pousara a seus pés. Eva não conseguia acreditar na sua sorte por Jasmine ter mudado o assunto da conversa para a arte. – É o meu velho caderno de esboços. Vou passear pelo lago, escolher uma paisagem para pintar e depois fazer os primeiros esboços. – A Rebecca disse-nos que pintava. Tem algum talento? – Confesso que não tenho mais do que um talento sofrível, mas dá-me prazer. – Tenho a certeza de que é muito talentosa – declarou Ophelia delicadamente. Jasmine estendeu a mão. – Com a sua licença. Vamos ver. Deixar Jasmine ver o caderno de esboços não fazia parte do plano. Os esboços não só revelavam a sua vida na altura em que desenhava com frequência, como também documentavam o pouco que fizera nos últimos dois anos. – O propósito dele não é ser visto – disse ela. – Um caderno de esboços é como um diário, repleto de pensamentos privados. – Está repleto de imagens, não palavras. Se não suporta a ideia de alguém ver o seu trabalho, jamais será bem-sucedida como artista – declarou Jasmine. – Miss Russell não quer que vejas o caderno de esboços dela, Jasmine – disse Ophelia com exasperação. – Nem tão-pouco disse que procurava o sucesso enquanto artista. Ela pinta porque isso lhe dá prazer. – Ela diz que não procura o sucesso porque todas as mulheres dizem e pensam isso. É-nos inculcada a ideia de não ter ambições. Ela pode ser genial, e não apenas sofrível, sem estar consciente disso. Como o saberá? Em vez de dar início a uma nova discussão, Ophelia aceitou a admoestação de


Jasmine. Contrariada, olhou para Eva. – Não o mostre, se não desejar que seja visto. Por outro lado, a minha irmã é uma grande entendida em arte. Tem muitos amigos artistas, alguns deles famosos. Se por acaso for genial, ela saberá identificá-lo. Identificando uma oportunidade, Eva olhou ostensivamente à volta para as paredes da biblioteca. – Escolheu os quadros que aqui estão, Miss Neville? – Sim, fui eu. Alguns. O meu pai e o pai dele compraram muitos deles. – Ouvi dizer que os estudantes de arte são encorajados a copiar os seus pares mais talentosos. Pergunto-me se isso me ajudaria a melhorar. – Isso depende do facto de ser possível melhorar ou não. Não vale a pena copiar obras de arte magníficas se nem sequer for capaz de desenhar decentemente, por exemplo. Eva baixou o olhar para o caderno de esboços. Tinha esperança de que as irmãs Neville lhe abrissem a casa e as obras de arte da mesma forma que tinham facilitado o acesso da biblioteca a Rebecca. Não previra que teria de se provar merecedora desse privilégio, como se estivesse a candidatar-se à função de pintora de retratos de ambas. Ela ergueu o caderno de esboços. – Na minha opinião, desenho bastante bem. Mas pode tirar as suas próprias conclusões. – Estendeu-o a Jasmine. Jasmine abriu o livro em cima do colo. Ophelia mudou de lugar para se sentar ao lado dela. Da cadeira onde estava sentada, Eva conseguia ver que páginas estavam a ver. Jasmine avançou rapidamente pelas primeiras páginas, as mais infantis feitas há muitos anos. Porém, deteve-se exatamente onde devia: no primeiro esboço feito quando Eva era mais madura e confiante. As páginas começaram a ser lentamente folheadas. As paisagens, as flores, o galopar dos cavalos durante os dois anos em que esteve obcecada por isso. Há muito tempo que ela própria não tirava tempo para examinar cuidadosamente os seus trabalhos, por isso observava-os de forma tão objetiva como as irmãs o faziam. Mais uma pausa. Uma pausa longa. Jasmine e Ophelia olhavam com grande interesse para um retrato feito a lápis. O coração de Eva caiu-lhe aos pés. Era um desenho que fizera de Charles numa tarde de verão despreocupada no jardim. Ele parecia mais libertino no seu retrato do que nas memórias que tinha dele. Nunca usara o plastrão atado de forma tão displicente como estava retratado. O


cabelo loiro quase nunca soprava ao sabor da brisa. – Não o reconheço – disse Jasmine. – Ele deixou Langdon’s End antes de se mudarem para cá. Há mais de cinco anos. – Para onde foi? – perguntou Ophelia. – Para a América. – Só depois daquela guerra estúpida acabar. Que grande idiotice – murmurou Jasmine entre dentes. – Lutar contra os franceses e os americanos ao mesmo tempo. Se eu pudesse votar, nunca mais tornaria a votar no Partido Conservador. Ophelia ergueu o olhar diretamente para os olhos de Eva. A expressão comunicava uma compreensão especial, assim como compaixão. A irmã mais nova tinha visto mais naquele desenho do que Eva se dera conta que estava presente. Jasmine continuou a folhear sem se deter no resto: os desenhos que se tornaram menos ambiciosos e limitados a pequenas perspetivas da sua própria propriedade durante os anos em que cuidara do irmão. Tornaram-se igualmente menos frequentes até, um dia, o caderno de esboços ter sido guardado numa gaveta durante um ano inteiro sem ser tocado. – Céus, o que é isto? Uma série confusa de edifícios preenchia as duas páginas abertas no colo de Jasmine. Uma nostalgia apoderou-se dolorosamente do coração de Eva. – Esses desenhos não são meus. O meu irmão, no período da sua doença, distraiu-se dessa forma durante alguns dias. Essas paisagens peculiares foram o resultado. Perdeu interesse por isso pouco tempo depois. – Talvez tenha partido do princípio de que se a senhora o conseguia fazer, decerto que ele também era capaz. Mas o talento não se estendia a toda a família. – Ela passou rapidamente à frente. – Sofrível, tal como disse. – Jasmine fechou o caderno quando já não havia mais nada a não ser páginas brancas. – Mas não de forma irremediável. Um talento muito pouco instruído. Se viveu aqui toda a sua vida, teve muito poucas oportunidades de ver arte verdadeiramente boa, por isso como poderia aprender? Acho que devíamos convidar Miss Russell para tirar partido dos nossos quadros, irmã, para poder experimentar fazer algumas cópias e aprender. Também existem volumes com gravuras, Miss Russell. Reproduzem o melhor dos melhores exemplos de arte. Com exceção das cores, é claro, mas pode aprender muito ao estudar as composições.


– É extremamente generosa. A minha irmã e eu faremos uma visita a Londres muito em breve e terei oportunidade de ver os mestres uma vez lá, mas não é o mesmo do que permitir-me o tempo necessário para os estudar verdadeiramente. – Londres! Vai oferecer uma temporada social à Rebecca? – perguntou Ophelia. – Isso está acima das nossas possibilidades. Porém, faremos uma viagem com a minha prima e o marido. Eles vivem em Birmingham. É lá que a Rebecca tem estado... de visita à casa deles. – O melhor será esperar até ao outono – declarou Jasmine. – Em breve, a cidade estará repleta de jovens dândis e assim que virem a Rebecca, vai arrepender-se de a ter levado para lá. Ora, o vosso grupo sentir-se-á nada mais, nada menos, do que um pouco melhor do que ratos a passear num campo cheio de gatos selváticos. Ophelia olhou de relance para a irmã e depois cruzou um olhar com Eva. – Estou certa de que a minha irmã lhe dará algumas cartas de apresentação para artistas. Não é assim, Jasmine? – Creio que sim, para a minha irmã não amuar – respondeu Jasmine. – Invejo-a, Miss Russell – disse Ophelia. – Sempre gostei de estar em Londres durante a temporada social. – Não tenho dúvidas que sim. – A voz de Jasmine estava plena de segundos sentidos. Ophelia ficou ruborizada. Eva bebeu o seu chá.


CAPÍTULO 16

A

maior parte das investigações que levaram Gareth a levar a cabo uma viagem de cavalo até ao Derbyshire tinham ocorrido por carta. Durante o jantar em Chatsworth por ocasião da visita de Gareth, o secretário especial do duque, Mr. Montley, fornecera alguns pormenores até então desconhecidos. A informação mais interessante fora o nome da empresa de transporte contratada para levar todos aqueles quadros para norte do país: a Underhill’s de Ramsgate. Por sua vez, o seu pedido de informações junto da Underhill’s teve como resultado o nome dos condutores das parelhas que transportavam as carroças. A Underhill’s manteve esses registos à boa maneira inglesa e chegava ao ponto de ter a informação das vilas e paróquias de origem desses homens. Após mais algumas cartas, Gareth conseguiu saber a localização atual de dois desses homens. Tinha como destino a aldeia de Bellestream com o intuito de fazer uma visita a Mr. Ogden, que se mudara para o norte do país para viver numa antiga propriedade da família depois de um boi lhe ter partido uma das pernas há dois anos, pondo um ponto final irreversível aos seus dias de condutor de parelhas. A propriedade consistia num pequeno chalé num terreno próximo dos limites da aldeia. A terra que ladeava o caminho até à porta exibia os primeiros rebentos do jardim a redespertar. Mr. Ogden veio à porta e fitou Gareth com curiosidade e desconfiança. Completamente calvo, mas com sobrancelhas espessas sob um par de olhos pequenos, Ogden parecia um homem robusto com uma cintura de tamanho considerável que o seu colete tinha dificuldade em cingir. O boi que o havia


enfrentado devia ser deveras corajoso. Gareth entregou-lhe o seu cartão e Ogden passou bastante tempo a examiná-lo com atenção antes de o convidar a entrar. O dono da casa coxeou até uma divisão próxima da porta e os dois homens instalaram-se em cadeiras numa sala de estar repleta de estampados e folhos. Ogden olhou em volta como se nunca tivesse visto o lugar antes e se tivesse subitamente apercebido de quão deslocado parecia ali no meio. – A minha tia viveu aqui até falecer – explicou, com um sorriso rasgado. Dois dentes estavam em falta. Outro pontapé de boi, quiçá. – Os meus dias de rédeas nas mãos tinham acabado, por isso mudei-me para cá. – É dos seus dias de rédeas nas mãos que eu quero falar. Fui enviado por um representante do Parlamento para o auxiliar numa investigação levada a cabo pela Câmara dos Lordes. – Foi enviado pela Câmara dos Lordes? Bom, pois isso explica o despropósito de um cavalheiro aparecer a bater à porta do meu chalé. Os lordes estão a investigar o estado miserável das estradas? Posso encher-lhe bem os ouvidos a esse respeito. – Informá-los-ei da sua vontade e competência para fornecer informação a respeito das estradas. Neste momento, porém, a investigação diz respeito ao transporte de um grande número de caixas feito pela empresa Underhill há cerca de vinte anos. Informaram-me de que foi um dos condutores de parelhas. Esta viagem começou perto de Ramsgate, na propriedade de um dos lordes e terminou no Derbyshire, na propriedade de outro lorde. Havia cinco carroças. A mão colossal de Ogden bateu com violência no joelho. – Recordo-me bem disso. Eram caixas difíceis de manobrar, todas de tamanhos diferentes. Fomos avisados de que ficaríamos com a cabeça a prémio se abríssemos alguma, como se depois de estarmos sentados numa tábua o dia todo, a nossa vontade fosse meter o nariz na carga que levávamos. Houve muitas ameaças e reparos para não nos demorarmos, desviarmos ou abandonarmos as carroças. Tínhamos de dormir no meio das caixas e mudar a água às azeitonas à vez. – Alguém fez perguntas em relação à carga, antes de partir ou ao longo do caminho? – Aquilo deu azo a algum interesse, é verdade. É inevitável quando cinco carroças grandes se arrastam pesadamente pela estrada em fila. Mas, uma vez que nada sabíamos, não tínhamos nada do que falar. – Ora. Não adivinhou o que era? O tamanho e forma daquelas caixas deve ter


inspirado algumas especulações junto de um homem experiente como o senhor. Ogden fez um sorriso rasgado. – Se é o meu palpite que quer... Fizeram-me lembrar uma ocasião em que transportei um espelho enorme da costa para Londres. Era de um tipo especial, do género que os reis têm nos palácios e não uma coisa feita de metal polido ou pequena e curva. Era grande e plana e tão alta como um salão de baile, encaixotada quase da mesma forma como aquilo que levava naquela viagem. Por isso, disse a mim mesmo, talvez isto seja uma carga de espelhos, todos de tamanho diferente, que o lorde quer para a sua casa senhorial. – As sobrancelhas dele ergueram-se, expectantes, à espera para saber se tinha razão. – Foi muito perspicaz e ficou muito perto da verdade. – Era uma explicação simples e quase plausível, não obstante o facto de não fazer qualquer sentido. Quem iria mandar transportar cinco carroças de vidros de espelhos em tamanho secretismo? A resposta fora dada assaz prontamente, também, como se Ogden a tivesse preparado, à espera do dia em que lhe fosse colocada. – Tenho de lhe fazer algumas perguntas complicadas agora. Seria uma grande ajuda se lhes respondesse direta e claramente. Não arranjará sarilho de qualquer espécie se uma das respostas não for a que deve ser considerada correta. Compreende? Ogden assentiu em concordância. – Ficou de facto próximo das carroças durante todo o percurso? Afastou-se nalgum momento dos outros? – Como eu disse, quando tinha de mudar a água às azeitonas. – Mais tempo do que isso. Ogden soltou uma pequena risada. – Bom, às vezes tinha de fazer mais qualquer coisa para além de mudar a água às azeitonas, senhor. – Com certeza. Mais tempo do que isso. O tempo suficiente para alguém ter, de alguma forma, adulterado um determinado plano relativo a essa carga. Ele abanou a cabeça. – Não é possível. – Abanou-a de novo, vigorosamente. Uma das mãos esfregou o joelho. Gareth esperou. Ogden remexeu-se desconfortavelmente. – Bom, houve aquela noite... – murmurou entre dentes. – Não abandonei o meu posto, atenção. Um dos outros foi até uma taberna buscar cerveja e regressou com um belo e pequeno barril e bebi mais do que a minha conta, digamos. Rastejei para debaixo da minha carroça para dormir e curar a


bebedeira. Fiquei morto para o mundo. Ficámos todos, creio eu, até bem depois do amanhecer. E ali estava ele, o elo perdido na corrente de secretismo, subterfúgios e planos cuidadosos. Um barril de cerveja havia deitado tudo a perder e agora não havia forma de saber se as caixas que tinham chegado ao Derbyshire tinham sequer quadros no interior. Um daqueles lordes devia ter acompanhado as carroças ou enviado um homem de confiança com condutores. Era provável que a perspetiva de se arrastar todos aqueles dias por estradas poeirentas com bois não fosse apelativa para qualquer um dos cavalheiros, portanto todos se tinham convencido de que isso era desnecessário, desde que fossem feitas ameaças suficientes. Esta pequena investigação de Ives acabara de tornar-se mais difícil. – Os outros condutores, Mr. Ogden, eram seus amigos? – Entendemo-nos razoavelmente bem depois de um dia ou assim, mas eu era um estranho para os outros. Eles trabalhavam todos para o Underhill. Foram buscar-me a Margate porque precisavam de um homem a mais. Depois desse serviço, não me dispensaram, por isso devem ter gostado da minha cara. Gareth não tinha mais nada para lhe perguntar. Pôs-se de pé com a intenção de partir e Ogden fez o caminho de volta até à porta a coxear. – O que estava dentro daquelas caixas, se me permite a pergunta, senhor? – Quadros. O rosto de Ogden toldou-se, surpreendido. – Não me diga. Macacos me mordam. Todo aquele trabalho por um monte de quadros. – É inacreditável, não é? Ogden abanou a cabeça, com espanto. Gareth regressou ao seu cavalo, sem acreditar por um segundo que Ogden ignorasse o conteúdo daquelas caixas.

– Que grande surpresa – declarou Gareth quando entrou na biblioteca do Chalé Albany e encontrou Ives lá sentado. – Tinha esperança de chegar antes de rumares a norte para falar com aquele condutor, para te fazer companhia. Quando descobri que já tinhas partido, decidi esperar aqui. Gareth serviu brandy para os dois e depois sentou-se e contou a Ives o seu encontro com Ogden. Ives não ficou contente por ficar a saber acerca daquele barril de cerveja.


– Diabos. – Sim. Ives refletiu nisso durante uns instantes, com o sobrolho livre de rugas, mas os olhos distantes. – Não podemos pôr de parte uma troca, mas seria um plano deveras elaborado, planeado antecipadamente por alguém que soubesse de tudo. E dependeria do facto de aqueles homens se embriagarem ao ponto de dormirem durante todo o tempo necessário para isso. Não gosto que essa possibilidade exista, mas julgo que é pouco provável. – Eu parto do princípio de que um ou mais deles faziam parte do plano e de que aquele barril de cerveja não foi um acidente. Se eram assalariados do Underhill, podiam ter ouvido falar de alguma coisa muito antes de tomarem as rédeas daquela carga. Dessa forma, já não é assim tão pouco provável. – Quando vieres a Londres, vamos pôr-nos a cavalo até Ramsgate para falar com o próprio Underhill. Agora que abriste esta nova frente na guerra, temos de ver que género de homem ele é. Quando fazes tenções de estar lá? – Tenciono iniciar a viagem depois de amanhã. Ives fixou longamente o seu brandy. – E quando irão chegar os teus convidados? – No dia seguinte, creio eu. Ives voltou o olhar para ele com um leve sorriso cúmplice. – Qual delas é o teu alvo? A mulher casada? Por favor, não me digas que é a jovem inocente. Até mesmo nós temos os nossos critérios e tu sempre disseste que as rapariguinhas te aborreciam. – Nada temas, não tenciono lançar um escândalo que implique a Casa Langley. – Então, não se trata da rapariguinha. Sendo assim... Gareth fitou-o, com uma expressão carrancuda. – O meu alvo é o marido, a verdade é essa. Wesley Rockport tem um negócio que está a crescer muito depressa. Está no ponto em que os homens começam a comprar cultura. – Nesse caso, estás a planear longos passeios pela galeria da Casa Langley para o deixar impressionado ao ponto de criar a necessidade de ter a sua própria coleção de arte. – Não tenciono dizer seja o que for a respeito disso. A galeria vai falar por si. – Por favor, tem atenção ao facto de que eu e o Lance podemos estar presentes parte do tempo que lá estiverem hospedados. O Lance irrita-se por ser obrigado a levar uma vida rural e pode insistir em vir até à cidade de novo.


– Eu mantenho-os todos fora do vosso caminho. – Insisto em conhecê-los, especialmente se as senhoras forem bonitas. – Com certeza – disse Gareth calmamente. – São ambas bastante bonitas, mas não fazem o teu género. Nem tão-pouco quero que o marido te desafie para um duelo. Estes industriais não são como nós. Amam verdadeiramente as suas mulheres e reagem mal quando alguém tenta seduzi-las. Ives não se deixou abater pelo conselho, mas a curiosidade fê-lo baixar as pálpebras de novo. – O duque de Devonshire deve vir à cidade por ocasião da temporada social – declarou Ives, mudando de assunto. – A mãe estará certamente lá, assim como o irmão bastardo dele. Vou pedir ao Prinny1 que prepare o terreno para podermos falar com esses dois. – Se o podes fazer, não precisas de mim. – Gostava que estivesses presente. Desse modo, podemos comparar as nossas reações e perceções mais tarde. Quero ter a certeza absoluta de que as diligências posteriores nesse sentido têm uma razão de ser antes de as colocar em movimento. – Ives pôs-se de pé e espreguiçou-se. Olhou em volta na divisão esparsamente mobilada. – Tens uma cama a mais aqui, não tens? – Tenho uma a mais. É tua, se a quiseres. – Mas não há criados. Maldição, devia ter trazido um de Merrywood. – Há um criado de casa que vem durante o dia. Vais ter de te deitar sem ajuda, mas ele pode servir-te de manhã. Deve haver água suficiente lá em cima. Ele leva sempre a mais antes de sair. Ives esfregou o rosto, sentindo a barba áspera que lhe começava a escurecer o maxilar. – Ele consegue barbear alguém sem lhe retalhar a pele? – Sim. Ao contrário do Percy, não procura fazer sangue sempre que tem uma arma afiada na mão. Ives deteve-se. A mão caiu-lhe do rosto. – Foi o Lance quem te contou? – Fiquei a saber pela satisfação presunçosa do Percy. Ives pegou na mala e dirigiu-se para a porta. – Vou procurar essa cama a mais. – Olhou para trás por cima do ombro. – Poucas coisas te passavam despercebidas, para alguém que só nos via algumas vezes por ano, Gareth.


Londres. Eva mal conseguia reprimir o seu entusiasmo quando a carruagem passava a última portagem. Pela janela, podiam ver-se os últimos campos a dar lugar aos arrabaldes da cidade. Rebecca estava colada à porta da carruagem, com a cabeça junto à janela para não perder pitada. Wesley e Sarah encontravam-se de frente para elas no espaço exíguo. – Acha que o duque vai lá estar? Presente na casa, isto é – perguntou Sarah. – Não sei. – Acho que o mais provável é não estar enquanto lá estivermos – declarou Wesley num tom neutro, sem uma ponta de ressentimento. Ele podia vestir-se como um cavalheiro e possuir um rendimento que excedia o de muitos deles, mas a sua voz dizia que sabia que duques não socializam com pessoas do estatuto dele, ou sequer reconhecem tal conhecimento. Tanto ele como Sarah estavam esplêndidos. Sarah usava um conjunto de carruagem creme em voga com adornos com uma bonita cor azul da Prússia. O casaco de Wesley possuía um corte impecável. Tinham chegado a Langdon’s End há dois dias para levar Rebecca e Eva a Londres na sua carruagem requintada. Os malões atados ao telhado levavam uma boa parte do guarda-roupa de Sarah. – É para todas nós – explicara Sarah. – A criada particular de Sarah viajava lá em cima também, ao lado do criado de Wesley. Entraram em Londres com estilo. A carruagem abrandou para um passo de caracol e atravessou ruas ladeadas por casas altas e lojas movimentadas. Os bairros da cidade foram ficando cada vez mais requintados até entrarem num com casas independentes de um tamanho espantoso próximas de um grande parque. Mais uma viragem e detiveram-se junto de uma casa situada numa esquina, que ocupava a maior parte do seu quarteirão. – Oh, Eva, olha. – Rebecca afastou-se da janela para que Eva e Sarah pudessem pasmar também. Escadas exteriores em curva conduziam até à porta principal e, acima desta, erguiam-se quatro pisos. Wesley baixou a cabeça para olhar também. – Vais ficar extremamente mal-habituada quando isto acabar, Sarah. Não serei capaz de te sustentar no estilo ao qual te vais acostumar. Sarah deu uma risadinha e deu-lhe um beijo na face. – Bom, Wes, meu amor, podes compensar-me de outras formas. O olhar que se atravessou entre os dois deixou entrever o que acontecia entre


ambos atrás das portas do quarto. Eva perguntou-se se se daria conta disso há um mês... Um pequeno exército de criados marchou para fora da porta. Alguns lacaios ajudaram-nos a descer da carruagem enquanto outros desciam os malões para o chão. Homens pegavam nas rédeas do condutor da carruagem. Todos os serviçais usavam libré. Eva absorveu toda aquela atividade como uma série de imagens fascinantes. Inclinou a cabeça para trás examinando atentamente a casa e, a seguir, aqueles que estavam perto dela. – Bem-vindo, Rockport. Estou a ver que sobreviveu à viagem numa carruagem com três senhoras. A cabeça dela ergueu-se bruscamente. Gareth estava a cerca de um metro e meio de distância, a cumprimentar Wesley. Inclinou a cabeça para Sarah, Rebecca e, por fim, para ela. Quando todos se encaminharam para a casa, ele conseguiu colocar-se ao lado dela. – Receio que nos podemos vir a perder ali dentro – disse ela com uma gargalhada ao mesmo tempo que subiam as escadas de pedra. – A Eva pode perder-se, mas fique descansada porque eu não me perco. Mais criados. Mais atividade. Um lacaio levou Wesley consigo com o seu criado particular na sua peugada. Uma governanta chamada Mrs. Summers conduziu os restantes pela longa escadaria e depois subiram mais um piso a seguir. Aproximaram-se de uma porta dupla. Vozes masculinas ouviam-se lá perto. Mrs. Summers abriu as portas para revelar uns aposentos de tamanho impressionante. Sarah mordeu o lábio inferior e tentou parecer pouco impressionada, mas os olhos dela arregalaram-se ostensivamente. – Mr. Rockport está ao seu lado – declarou Mrs. Summers, inclinando a cabeça na direção das vozes. Caminhou até uma sala de estar adjacente dirigindo-se a uma porta que ficava na parede oposta. – Este quarto, menina, é para si – disse a Rebecca, abrindo completamente a porta para revelar um quarto de dormir digno de uma princesa. Sarah e Rebecca estavam fora de si, prestes a desatar numa dança de puro regozijo. Sussurravam palavras uma à outra enquanto apontavam para os cortinados, os estofos de seda, a magnífica escrivaninha da sala de estar e as vistas do jardim pela janela das traseiras. – A sua criada ficará num quarto por cima deste – disse Mrs. Summers a Sarah. – Alguém virá buscá-la e levá-la até lá depois de ela ter tido tempo de a


instalar. – Voltou-se para Eva. – Se tiver a bondade de vir comigo agora, Miss Russell. Eva abandonou os bonitos aposentos na peugada de Mrs. Summers. Caminharam até deixar para trás as escadas. Atravessaram um corredor. Passaram por outro patamar de escadas até chegar a uma porta situada num canto. Não eram portas duplas. Era uma porta pequena de aspeto bastante vulgar. Mrs. Summers convidou-a a entrar. Eva fora contemplada com um apartamento como Sarah. Talvez não fosse tão grande, mas possuía uma bonita luz e uma série de três grandes janelas numa das paredes a partir das quais se podia ver o parque. – Informaram-me de que desenhava – disse Mrs. Summers. – Achei que a luz do norte da sala de estar lhe iria agradar. – Ficarei esplendidamente bem instalada. Obrigada. – Vou pedir a uma mulher para vir ajudá-la. – Depois daquelas palavras, Mrs. Summers abandonou os aposentos. Eva não esperou pela criada. Desfez a mala que trouxera e depois vagueou pela casa até encontrar o caminho de volta até aos aposentos de Sarah. Encontrou todos os companheiros de viagem a deliciarem-se com o luxo dos seus alojamentos. – Para onde foste? – perguntou Rebecca. – Tens de experimentar a minha cama. Deita-te lá, por favor. Não vais acreditar na qualidade. Vai ser como dormir em cima de nuvens. – Os meus aposentos são na outra ponta deste andar. Podes vir vê-los, mas vamos precisar de desenrolar um novelo de lã para conseguires encontrar o caminho de volta. – Oh – disse Sarah, com um entusiasmo esmorecido. – Espero que sejam tão agradáveis como este. Se não forem, não serei capaz de desfrutar tanto deles. – São absolutamente deliciosos. – Eram encantadores, na verdade. Espaçosos e repletos de uma luz serena. – Vamos usar esta sala de estar para nos reunirmos – declarou Sarah. – Pertencerá a todos nós. – Obrigada. Isso será conveniente. Caso contrário, era possível que jamais vos visse. O meu apartamento fica bastante fora de mão. Que amável da parte de Gareth pedir a Mrs. Summers para colocar Eva num quarto com uma luz tão bonita. Que amável e que conveniente. 1 Alcunha pela qual era conhecido o rei Jorge IV de Inglaterra pelos seus súbditos, o qual foi igualmente Príncipe Regente de 1811 a 1820. (N. da T.)


CAPÍTULO 17

P

or sugestão de Gareth, decidiram ir todos dar um passeio pelo parque depois das quatro horas. Sarah e Rebecca levaram mais de uma hora a preparar-se. Enquanto Eva esperava por elas na sala de estar, irrompiam do quarto de Rebecca conversas femininas e gargalhadas. Para além de pedir à serviçal que lhe tinham atribuído para lhe arranjar o cabelo e de ter vestido a sua melhor peliça de lã azul-clara, Eva não fizera qualquer esforço especial. Quando a irmã e a prima assomaram finalmente do quarto de dormir, contemplaram-na ambas de modo crítico, partilhando de seguida um olhar sagaz e expressivo. – Esqueci-me de uma coisa – exclamou Sarah, batendo com a mão na testa. – Vou buscá-la ao meu quarto. – Correu até à porta na outra ponta da sala de estar, entrou de rompante e regressou com um chapeuzinho nas mãos. Era o que Eva tinha experimentado na casa de chapéus de senhora naquele dia em Birmingham. – Gostei tanto dele que o comprei – explicou Sarah. – Mas fica muito melhor em si, Eva. Porque não o usa hoje? A fita azul-escura vai fazer sobressair lindamente a peliça. – Sim, Eva. Porque não o levas emprestado? – incitou Rebecca. Eva desatou as fitas do seu chapeuzinho e aceitou o que Sarah segurava. Estavam a preocupar-se demasiado para nada. Era Rebecca quem ia ser exibida para atrair um bom marido. Os seus planos anteviam outro caminho dedicado à arte, não ao matrimónio. Na realidade, o trabalho sério de um artista exigia independência. Quando se viu ao espelho com o chapeuzinho, teve de admitir que continuava a favorecê-la tanto quanto se lembrava. Através do reflexo, reparou igualmente


no alívio de Rebecca a ser comunicado a Sarah com outro olhar expressivo. Eva percebeu que Sarah não lhe tinha emprestado o chapeuzinho para a tornar mais atraente aos olhos de potenciais pretendentes. Ao invés, a prima e a irmã não queriam chegar ao parque na companhia de uma Eva tão pobremente apresentada. A porta da sala de estar abriu-se e Gareth e Wesley entraram. – França ou Holanda? – perguntava Wesley. – A economia francesa continua a ressentir-se da guerra. – Há dinheiro suficiente, mas as indústrias ainda não recuperaram, por isso talvez seja a melhor opção. Mas devia ir até lá para ver como estão as coisas. Wesley voltou a sua atenção para a mulher. – Estarás pronta, Sarah? – O que achas? – Sarah fez uma pirueta na ponta dos pés. – Pronta e encantadora, diria eu. Eva concordou com o elogio. O conjunto de Sarah em tons verdes e amarelos evidenciava o seu cabelo ruivo. Colocara um chapéu adorável que se inclinava quanto baste por cima dos caracóis cuidadosamente reunidos. O vestido de musselina amarelo-pálida de Rebecca parecia outro com a peliça da mesma cor. O chapeuzinho realçava a inocência dela e chamava a atenção para o rosto adorável. – Serei a inveja de todos os homens no parque – declarou Wesley, oferecendo um dos braços à esposa e o outro a Rebecca. A Eva foi apresentado um braço diferente. – Não, eu é que serei – segredou-lhe Gareth ao ouvido. * – São todas tão belas – disse Eva. Voltava a cabeça de um lado para o outro observando as senhoras nas carruagens e ao longo do passeio. Gareth caminhava a seu lado, atrás de Wesley e das outras duas mulheres. – São mais ricas do que belas – afirmou ele. – Alguma seda, um pouco de maquilhagem, um vestido atraente e um chapéu: elas esforçam-se bastante para criar a ilusão. – Pode ser que sim, mas algumas destas mulheres são inegavelmente belas e o Gareth sabe disso. – À sua maneira, todas as mulheres são belas, Eva. Ela sorriu com pesar e abanou a cabeça.


– Mr. Fitzallen, o senhor é um sedutor. Não vale a pena negá-lo. – Sou demasiado arrogante para o fazer. É algo natural em mim. Devia haver mais pessoas a tentarem ser assim. A sedução é o óleo da engrenagem da sociedade. – Isso parece-me filosófico. Tenha cuidado ou ainda peço à Rebecca que se junte a nós e nos explique o que todos os sábios desde Platão disseram sobre o assunto. Mais à frente, a jovem em questão fazia virar muitas cabeças no parque. – Terá passado muito tempo a adormecer o interesse de Mr. Mansfield com os seus discursos enquanto esteve em Birmingham? – A Sarah receia que sim. Por norma, a minha irmã não é uma pessoa maçadora, por isso julgo que terá sido intencional. Suspeito que quando o poético Mr. Trenton a visitou, ela não tenha sequer mencionado Platão ou Rousseau. – Estou certo de que daqui a um ano já a terá casado, a menos que a ideia não seja do agrado dela. – Espero que sim. Não quero que eu e ela fiquemos como as irmãs Neville. – Eva brindou-o com relatos das rixas entre as irmãs, imitando a voz estridente da mais velha e a aguda da mais nova, até desatarem os dois a rir tanto que continuar a conversa se tornou impossível. – Quando Rebecca se casar com o homem respeitável que a Eva e Sarah escolherem, o que fará? – perguntou Gareth quando conseguiram voltar a falar. Os olhos dela iluminaram-se. – Tenciono aperfeiçoar a minha técnica. O Gareth disse que eu tinha talento e a Jasmine Neville concordou, mas tenho imenso trabalho pela frente e muita coisa para pôr em dia. A Jasmine deu-me uma carta de apresentação para a Mary Moser. Acredita? Escrevi-lhe quando não passava de uma rapariguinha e ela respondeu, por isso tenho-a na conta de uma pessoa amável, mas sinto-me nervosa por ir visitar uma pintora tão famosa. – Na galeria da Casa Langley está um dos quadros dela. Pode examiná-lo para depois lhe fazer perguntas. – Acha que também posso examinar os outros? – Passe lá o tempo que quiser. Desenhe, se lhe apetecer. Vou pedir à governanta que destranque as portas, se lhe pedir. Não me parece que vá roubar algum quadro. Eva lançou-lhe um olhar estranho e depois deu uma gargalhada. – Deus do céu, com certeza que não. Posso ser muito dedicada ao disegno,


mas não estou de olho nas obras dos velhos mestres da família Aylesbury. – Visto que prometeu portar-se bem, vou tentar arranjar-lhe entrada noutras coleções privadas. Novo olhar estranho. Subitamente, mais à frente, Rebecca deteve-se. Deu meia-volta e correu na direção de Eva. – Esconde-me. Eva pegou na mão da irmã. – Mas que...? – Ele está aqui. Que pouca sorte. Gareth avistou a origem da inquietação de Rebecca. Deu um pequeno toque com o cotovelo a Eva e chamou a atenção dela para Sarah e Wesley. Um homem acabara de os cumprimentar e conversavam naquele momento com ele. Era Mr. Mansfield. Gareth duvidava que a vinda de Mansfield a Londres fosse uma coincidência. – Não podes ser mal-educada – pediu-lhe Eva. – Estou certa de que não tardará a ir-se embora. Caminharam até Sarah, que irradiava alegria. – Veja só quem também está cá, a Rebecca. De olhos baixos, Rebecca cumprimentou-o e fez-lhe uma pequena vénia. – A Sarah fez muito mal ao pedir-lhe para vir – sussurrou Eva. – A Rebecca está bastante aborrecida e eu não a censuro. – A sua prima é bastante obstinada, não tenho dúvidas disso. Não era apenas obstinada. Sarah estava decidida a provar que era capaz de superar a maior parte das mães da alta sociedade no que dizia respeito a juntar uma rapariga com um homem. De alguma maneira, e a Gareth escapava-lhe precisamente como, Sarah e o marido caminhavam uns passos à frente de Rebecca e Mansfield e, por sua vez, Eva e ele próprio seguiam-nos uns passos mais atrás, deixando Rebecca sozinha a conversar com Mansfield. O que, por ressentimento, ela não tencionava fazer. – Meu Deus, ela está mesmo muito aborrecida – segredou Eva. – O parque é um prazer rústico em plena cidade, não concorda? – perguntou Mansfield. – Para quem vive na cidade, presumo que seja um prazer – respondeu Rebecca. – Como vivo no campo, não aprecio particularmente o descanso que proporciona. – A Natureza é, com certeza, uma experiência revigorante e recebida sempre


com agrado – continuou Mansfield. – Dizem-me que há poetas e filósofos que acreditam que a contemplação pode conduzir a uma experiência transcendental. Eva agarrou o braço de Gareth. – Transcendental? – repetiu ela. – Ele tem andado a ler – murmurou Gareth. – Sem dúvida que sim – respondeu Rebecca, imitando a voz de uma precetora. – É uma ideia antiga que voltou a surgir recentemente. Passou por vários períodos de popularidade e deriva dos filósofos neoplatónicos que foram os primeiros a desenvolvê-la pouco depois da queda de Roma. Um dos seus defensores foi Dionísio, o Areopagita, cuja obra sobreviveu levando ao ressurgimento durante o século XII... Eva revirou os olhos. Gareth fingiu enrolar uma corda com um nó à volta do pescoço à qual depois dava uns puxões. Eva reprimiu uma gargalhada até ficar com os olhos marejados de lágrimas. Em seguida fez o gesto de carregar uma pistola com bala e pólvora e apontou-a para si. Desfrutando do parque bastante mais do que o pobre Mr. Mansfield, Gareth e Eva caminharam lentamente atrás de Rebecca que não parava de falar, oferecendo a Mansfield uma detalhada lição sobre neoplatonismo ao longo da História.

Depois de se preparar para se ir deitar, Eva pôs-se a ler um livro. Preparava-se para desfrutar do sono dos justos. Merecia um prémio por se ter portado bem naquele dia. Passear com Gareth no parque revelara-se muito mais difícil do que previra. Sempre soubera que o caso amoroso dos dois só poderia ser temporário e que cada dia que passava aumentavam para ela riscos incalculáveis. Mas o que Eva não previra fora que pôr-lhe um fim fosse tão difícil. Quanto mais riam e gracejavam naquele dia, menos ela o via como um amigo. Se ele lhe tivesse pegado na mão e a arrastado dali para fazer o que bem lhe apetecesse com ela, Eva não sabia se encontraria forças para lhe resistir. Não que ele tivesse feito algo remotamente parecido, nem tão-pouco mostrado vontade de o fazer. Sim, tinha havido alguns sorrisos, olhares moderadamente provocadores e outras tantas insinuações sobre paixões passadas, mas, no geral, Gareth parecia ter engolido a promessa que fizera, assim como a renovada «amizade» de ambos sem qualquer vestígio de indigestão. Apesar do cansaço, Eva tentou focar os pensamentos no livro. Receava que


quando se enfiasse na cama, também lá estivesse o fantasma de Gareth. Esse fantasma podia invadir-lhe o espírito e excitar-lhe o corpo, levando-a a pensar que voltar a abraçar o homem de carne e osso compensaria todos os riscos. Uma pancada suave na porta sobressaltou-a. Olhou nessa direção e toda a expectativa que sentira antes com Gareth brotou do passado. Teria de o repreender por ter quebrado a promessa, sem dúvida. Teria de o mandar embora. No entanto, o coração implorava que a porta se abrisse, ele entrasse de rompante e a puxasse para os braços destruindo os argumentos e as boas intenções com um beijo. A porta abriu-se uns centímetros. Depois mais um pouco, até ficar entreaberta. Eva agarrou-se ao livro com tanta força que a mão lhe doía. Uma cabeça espreitou e olhou em redor. – Eva? Caiu-lhe o coração aos pés. Não era Gareth. Fora Rebecca quem viera ao seu encontro. Rebecca viu-a sentada na cadeira e entrou. – Quase me perdia, mas acabei por me lembrar do caminho. Queria estar contigo a sós, sem a Sarah por perto. Eva deu uma palmadinha na cama junto à cadeira. Rebecca sentou-se e empurrou o seu longo cabelo negro por cima dos ombros. Usava uma camisa de noite, sem um roupão ou xaile. Exibia um ar gracioso e inocente. – Espero que não venhas queixar-te de Mr. Mansfield, Rebecca. A Sarah insiste que não mexeu um dedo para que ele estivesse em Londres na mesma altura que nós. Rebecca inclinou a cabeça. Franziu o sobrolho. – Nunca achei que a Sarah estivesse envolvida, nem que ele tivesse vindo para Londres atrás de mim. Fazer isso significaria que seria minimamente romântico e eu acho que ele não tem uma pinga de romance no corpo. Eva quase defendeu Mr. Mansfield, mas deixou-se ficar calada. Surpreendia-a que Rebecca acreditasse realmente que aquela tarde fora uma total coincidência. A irmã conseguia ser muito estúpida, para alguém tão inteligente. – O que é isso que aí tens? – perguntou Eva. Rebecca trouxera consigo uma bolsa muito parecida com aquela que estava pendurada num prego em casa, sob o soalho. Rebecca abriu a bolsa e despejou uma pilha de moedas. – Estão aqui sessenta xelins. Ele deve-te ainda mais do que isso. Mr. Stevenson, quero eu dizer. Fui ter com ele à loja no dia antes de partirmos e os


teus quadros já lá não estavam. Disse-me que alguns tinham sido vendidos, mas que outros estavam em casa de clientes, a ser considerados para compra. Acho que estava a mentir e que pensou que ao dar-te este dinheiro conseguiria ganhar tempo antes de te dar o resto. Eva aproximou-se e fez um monte com as moedas. – Falaste à Sarah nos quadros? Rebecca abanou a cabeça. – Tínhamos entrado numa loja nessa mesma rua e eu disse-lhe que precisava de apanhar ar. Aproveitei a oportunidade para ir a correr à loja de Mr. Stevenson. – A quem vendeu ele os quadros que admitiu ter vendido? – Seriam três, se ele tencionava pagar-lhe o mesmo que antes. Tinha-lhe levado nove. – Levou-os aquele vendedor de quadros de Londres. É por isso que acho que Mr. Stevenson está a mentir. Ele disse que o homem ficaria com tudo o que fizesses. Mr. Stevenson deve ter-lhe escrito logo a dizer que tinha mais à disposição. As irmãs admiraram as moedas. Eva sentiu-se quase rica. – Que sorte, Rebecca. – É uma pena não ter futuro. Se calhar devias contar a Mr. Fitzallen que levaste os quadros emprestados e os copiaste. Agora que são amigos, talvez ele não se importe e te deixe levar mais emprestados. – Eu não os levei emprestados. Isso pressupõe a permissão do dono. Eu roubei-os. É possível que tê-los devolvido possa atenuar o pecado, mas não deixa de ser um roubo. E admito também o roubo das cadeiras? Isso foi um roubo descarado, por muitas desculpas que tente arranjar chamando-lhe outra coisa. – Se calhar, é melhor não mencionares as cadeiras. – É tudo a mesma coisa, na minha opinião. Se eu disser que levei alguns quadros, porque deverá acreditar que os devolvi a todos, quando tantas outras coisas desapareceram da casa? Não posso censurá-lo por ter dúvidas. Não se pode confiar numa pessoa que se serve do que não é seu, mesmo que seja temporariamente, e não se esqueça de devolver o que levou. Rebecca tocou nas moedas com o dedo. – Suponho que se formos poupadas, o que temos agora dará para vários meses. No entanto, acabaremos por gastá-lo todo. E depois? Eva tinha esperança de que, por essa altura, Rebecca já se tivesse casado com um bom partido e gozasse do apoio do marido. Provavelmente, esse marido não permitiria que a irmã da mulher vivesse na pobreza, embora Eva não apreciasse


a ideia de se tornar a irmã dependente. Nem tão-pouco era essa a sua intenção, agora que Mr. Stevenson lhe proporcionara uma forma de se sustentar a si própria tão bem. – Não te deves preocupar. Posso ter descoberto uma alternativa – tranquilizoua Eva. – Miss Neville disse-me que eu podia copiar alguns dos seus quadros. Há alguns que parecem bastante bons. Julgo que o cliente de Londres de Mr. Stevenson é capaz de gostar deles. A expressão de Rebecca desanuviou-se. – Isso é maravilhoso. Também fico contente por estares a tornar-te amiga das irmãs. Eu sabia que irias gostar delas assim que as conhecesses melhor. – Pôs-se de pé e foi até à porta. – Vou espreitar todas as galerias por que passarmos enquanto cá estivermos. Acho que Mr. Stevenson está a receber muito mais do que diz por aqueles quadros. E era o que tu receberias também, se pudesses mostrá-los diretamente a esse homem. Eva concordava, e era por isso que Mr. Stevenson nunca iria permitir que descobrisse o nome do vendedor de quadros. A possibilidade de Rebecca o encontrar durante a estadia delas ali... Londres era uma grande cidade, cheia de ruas e estradas e inúmeros vendedores de quadros. O mais provável era regressarem a Langdon’s End desconhecendo o nome desse vendedor, tal como quando tinham partido.

No dia seguinte, Gareth levou os convidados ao Museu Britânico. A excursão revelou-se educativa mas também cansativa para todos. Apenas Rebecca permaneceu fascinada até ao fim e Gareth desconfiava que ela teria pedido para ficar mais tempo, se Sarah não se tivesse queixado dos pés doridos. Eva deu sobretudo atenção às obras de arte, especialmente as peças gregas em mármore. Sarah gracejou de modo pouco subtil sobre o quão educativas aquelas esculturas de nus masculinos podiam ser para pessoas inocentes como as primas. Eva sorriu serenamente por ser objeto de troça de Sarah e continuou a analisar mais de perto ainda os baixos-relevos e as estátuas, lançando um novo olhar a Gareth que mostrava as razões particulares de ambos para acharem as insinuações de Sarah tão engraçadas. O mordomo chamou Gareth à parte quando ele e os convidados regressaram a casa. – É melhor eu levar os seus convidados para a sala de estar ou para o salão de refeições, senhor – informou-o ele. – O duque e Lorde Ywain chegaram


enquanto esteve fora e estão na biblioteca. O conde de Whitmere está com eles. – Nesse caso, leve-os para a sala de estar. Acompanhe-os lá acima e ofereçalhes bebidas. Juntar-me-ei a eles depois de me encontrar com os meus irmãos. Gareth encontrou os irmãos recostados nos divãs da biblioteca, ainda de casacos de montar vestidos. Lorde Whitmere, um velho amigo de Lance, também aparentava ter vindo a cavalo. – Calcule a minha surpresa ao encontrar estes dois na estrada – exclamou Whitmere, depois dos cumprimentos. – Que estranho acaso. Loiro, robusto e atlético, Whitmere começara por parecer um espelho luminoso para a presença negra de Lance. Infelizmente, não era. Ele e Lance costumavam encontrar-se em períodos de estouvadice. Se o acaso os tinha juntado, isso não era bom prenúncio. – Eu disse-te que ele era capaz de vir cá ter, Gareth. – Ives fez um gesto na direção de Lance. – Ei-lo, em toda a sua magnificência ducal. – Assim é – disse Lance preguiçosamente, arrastando a fala. – Gareth, explica ao Ives que devo participar na temporada social, para não dizerem que me fui esconder em Merrywood por causa da culpa que sinto. – Ele tem razão, Ives. – Estamos de luto. Um luto profundo. Serei o único a lembrar-se disso? – Enfio uma braçadeira preta e não danço muito – retorquiu Lance. Ives abanou a cabeça. – Não teria tantas dúvidas a esse respeito se da última vez que ele passou a noite na cidade não tivéssemos ficado muito perto de um duelo para lhe proteger o bom nome, Gareth. Lance encolheu os ombros. – Se isso voltar a acontecer, apontem-me na direção dele. Não quero que nenhum de vocês lute por minha causa, quando posso eu fazê-lo de bom grado. – De demasiado bom grado – disse Ives a Gareth, severamente. Gareth não precisava de ser alertado. A verdade é que Lance estava com péssimo aspeto. Se tinham vindo até ali a cavalo, não tinham trazido criados particulares e, a não ser que o criado particular o barbeasse, Lance não se dava a esse trabalho. Uma barba hirsuta escurecia-lhe a parte de baixo do rosto, fazendo a cicatriz parecer um riacho a serpentear através de uma floresta. As sobrancelhas pesadas podiam ser uma consequência da bebida, ou pior ainda. A preocupação de Ives mostrava que ele se inclinava para aquela última possibilidade. Às vezes, Lance passava por períodos taciturnos. Melancolias, como lhes chamava o pai, embora a palavra fosse imprecisa em vários sentidos.


Lance não ficava triste ou ansioso durante essas crises. Ao invés, tornava-se alegremente indiferente a quase tudo e a quase todos à sua volta. Exibia igualmente uma indiferença destemida em relação à própria vida. Num estado desses, realmente travaria um duelo de bom grado. Whitmere observou Lance e tirou as suas próprias conclusões. Certamente que estava a antecipar umas semanas maravilhosas a vaguear no inferno na companhia do seu velho amigo. – O Ives disse-me que te falou dos convidados que tenho aqui em casa – disse Gareth. Lance anuiu de forma quase impercetível. – Um comerciante de Birmingham, a mulher e as duas primas dela, explicoume ele. – Não receies que eles sejam uma maçada. Dificilmente vais vê-los ou dar pela presença deles. Estão no terceiro piso, longe dos espaços públicos e dos vossos apartamentos. – Não me importo de os ver. Aliás, se estão cá, devia ir cumprimentá-los. Esta é a minha casa. – Lance sentou-se. – Onde estão eles? – Isso pode esperar até estares mais apresentável – afirmou Ives. – Pareces um salteador. – Prefiro fazê-lo agora. – Pôs-se de pé e fitou Gareth, à espera de uma resposta. – Estão na sala de estar – respondeu Gareth. Subiram até lá, com Whitmere na sua peugada. Lance ganhava vida a cada passo que dava. Era uma lamentável reviravolta. Gareth tinha-se preparado para explicar dali a instantes que o irmão estava doente. Exceto aos próprios pares, não se podia apresentar inesperadamente um duque, um conde e um lorde sem que isso gerasse reações fortes. As apresentações que Gareth fez de um duque de Aylesbury desgrenhado e com a barba por fazer caíram em saco roto perante as três pessoas boquiabertas que olhavam para Lance. Wesley balbuciou algo incoerente. Sarah e Rebecca fizeram uma vénia discreta e desajeitada. Apenas Eva soube apresentar-se convenientemente. Para piorar a situação. Lance decidiu fazer o papel de anfitrião, por razões que só ele conhecia. Convidou as senhoras a sentarem-se e depois sentou-se também. Wesley escolheu igualmente um lugar. Gareth permaneceu de pé, assim como Ives, que não parava de lançar olhares penetrantes a Gareth como se estivesse a dizer que ninguém achava aquela situação mais estranha do que o próprio irmão de sangue de Lance.


Além de ficar a saber por intermédio de Wesley uma ideia geral do negócio dele, Lance presenteou-os ao longo de dez minutos com a mais fútil das conversas fiadas. Depois levantou-se, pediu licença e saiu da sala. De caminho, pediu a Gareth que fosse ter com ele novamente à biblioteca. Whitmere seguiuos. Ives demorou-se nos cumprimentos antes de sair. No piso de baixo, Lance foi buscar cálices e serviu três whiskies. Ofereceu um a Gareth, outro a Whitmere e bebeu o terceiro. – A mais nova é encantadora. É uma joia perfeita, só que dolorosamente inocente e demasiado jovem. Nunca serviria. – Não. Nunca – concordou Whitmere. – Servir para quê? – perguntou Ives, aproximando-se deles vindo da porta. Lance encolheu os ombros. Regressou ao divã, deixou-se cair, curvando o corpo e depois esticou as pernas. Gareth lançou-lhe um olhar carrancudo. – Servir para quê? Lance bocejou. – Seria boa ideia levar uma senhora ao baile DeVere na semana que vem, para deixar claro que sou indiferente às histórias que contam de mim. Pensei que uma das tuas convidadas me podia servir de companhia, uma vez que não estou na disposição de suportar a companhia das mulheres de que habitualmente me sirvo. Mas como disse, a rapariga é demasiado jovem. Iam espalhar-se boatos e ainda me via com obrigações que não tenciono aceitar. – Permite-me que repita. Não vais a baile nenhum – declarou Ives. – Estás de luto profundo. – E se mesmo assim fores, não vais levar nenhuma das mulheres que estão lá em cima – disse Gareth com firmeza. – Nenhuma delas serve para tua companhia. Não são o teu género. – Que rico amigo me saiu, Fitzallen – disse Whitmere. – A negar às senhoras um baile tão agradável. Não lhe vão agradecer por isso. Lance parecia ter perdido o interesse. Fechou os olhos. Ives fez um sinal a Gareth. – Deixa-o dormir. Vamos até ao jardim acertar as horas das nossas reuniões. – Não nos podemos esquecer da outra. – A voz pouco elevada de Lance prendeu-lhe a atenção. – Referes-te a Mrs. Rockport? – perguntou ele. – Não, à outra irmã. Eliza... Edith... – Eva. Para ti, Miss Russell.


– Que nome encantador. À sua maneira, também é bonita. Tem uma postura serena e uns belos olhos. – Sentou-se. – Tive uma ideia. O Whitmere pode levar a rapariga e eu levo a irmã. – Isso parece-me esplêndido. Só lhe peço que me dê algum tempo com a mais velha. Parece ser uma rapariga ousada e gostava de ter companhia para a temporada. A sugestiva entoação na palavra companhia provocou pensamentos assassinos em Gareth. Aproximou-se do lugar onde Whitmere estava sentado e inclinou-se sobre ele. – Se aquelas senhoras não servem para o meu irmão, muito menos servem para si. O caminho até elas passa por mim e eu proíbo-o. Há vários anos que não dou uma tareia a um conde, mas estou preparado para o fazer, por isso não duvide da minha determinação a este respeito. – Gareth olhou por cima do ombro. – Ives, quem foi o último conde a quem dei uma tareia? Não me vem agora à cabeça o nome dele. Ives coçou a cabeça e refletiu de modo dramático. – Deixa-me ver. Não o último visconde nem o último barão, mas sim o último conde... Ah, já sei. Foi o conde Whitmere, não foi? Numa manhã de verão à beira do lago Serpentine. Whitmere reposicionou o corpo na cadeira, com o rosto sem expressão e olhou para todo o lado menos na direção de Gareth. – Não deixe que o ameacem, Whitmere – disse Lance. – Ele só fez isso porque tentou tomar liberdades com a amante dele. Estas senhoras não passam de amigas de um amigo. Ele jamais irá avante com isso. Whitmere olhou lugubremente para Lance. – Quanto a ti – disse Gareth a Lance –, se estás determinado a soltar as máslínguas por ir ao baile, podes dançar uma vez com cada senhora, mas só se te barbeares e estiveres sóbrio. Lance riu-se com vontade. – Pareces um precetor. Ele não parece um precetor, Whitmere? – Ou um vigário. Vai admitir isto? Por amor de Deus, estou quase a... Quase... – Decidiu procurar consolo para a indecisão no conhaque. – Não vou lutar com ele por causa de umas mulheres do campo que mal conheço e que ele decidiu proteger, por um inexplicável impulso. Em todo o caso, havemos de descobrir melhores coisas para fazer do que ir ao baile. Whitmere piscou os olhos. – Como é que passamos de eu acompanhar uma joia preciosa e a atraente irmã


mais velha dela ao baile, a não ir de modo algum? Lance começou a pensar em voz alta em melhores coisas para fazer. Ives atraiu a atenção de Gareth, deu meia-volta e caminhou em direção às portas do terraço. Gareth seguiu-o, fingindo não ter ouvido Lance a imaginar uma partida que envolvia a carruagem de outro duque e uma grande quantidade de estrume de cavalo.

– O que foi aquilo? – perguntou Ives assim que chegaram ao jardim. – Apesar de não te pareceres muito com um precetor, tornaste-te muito severo de um momento para o outro. Gareth não fazia ideia do que se tinha passado. Só sabia que ter ouvido Lance e Whitmere falarem de Eva o deixara furioso. Até naquele momento tinha de se controlar para não dar um murro numa coisa qualquer. – Não me agradaram as insinuações daquela conversa de ela é capaz de servir. Sabes como aqueles dois são quando estão juntos e o Lance está numa das suas fases. Afinal de contas, tenho alguma responsabilidade para com aquelas senhoras. – Com certeza. – Nem tão-pouco elas precisam do Lance e do Whitmere para as levar ao baile. Lady DeVere enviou um convite diretamente a Miss Russell, por exemplo. – Foste tu quem tratou disso, não foste? Que bela surpresa, embora a ideia de chegar sozinha ao baile talvez a assuste. – Eu acompanho-a. Ao contrário de ti e do Lance, não preciso de fingir que estou de luto. – O Whitmere ainda é capaz de ir, apesar de o Lance acalentar a esperança de, em vez disso, poderem comportar-se como colegiais travessos. Espero que não armes nenhum escândalo se ele convidar Miss Russell para dançar. Ela atraiu-lhe a atenção, não há dúvida. – Posso adverti-la acerca das intenções pouco honradas dele, mas não vou armar escândalo algum. Ives deu uma gargalhada. – Diabos me levem, pareces mesmo um vigário. De onde vem essa conversa de intenções honradas? – Sem retirar um grande sorriso no rosto, o olhar tornouse penetrante. – Qual é a relação desta mulher contigo? É tua amante? Que diabo de pergunta inesperada. – Não. – Esta era a mais pura das verdades, no momento presente, embora o


seu corpo não tivesse aceitado muito bem esta nova ordem das coisas. – Nesse caso, se calhar, devias deixar que a senhora tirasse as suas próprias conclusões acerca do Whitmere. Ela parece sensata e madura. É pouco provável que não perceba as verdadeiras intenções dele, sejam elas quais forem. Ainda irritado, mas menos inexplicavelmente sombrio, Gareth obrigou-se a pensar noutras coisas. – Diz-me lá que reuniões são essas, para eu poder tomar providências de modo a manter os meus convidados ocupados sem mim durante essas horas.


CAPÍTULO 18

E

va colocou a carta de apresentação dentro da bolsinha e depois dirigiu-se para a sala de estar de Sarah. Todos eles iriam ficar por sua conta naquele dia. Gareth tinha assuntos a tratar com Lorde Ywain, por isso não podia acompanhá-los pela cidade. Fora tomada a decisão de aproveitar a oportunidade para se dedicarem aos seus respetivos interesses. Wesley planeava visitar alguns homens de negócios que conhecia. Sarah queria ir às compras e levaria a sua criada como companhia. Rebecca escolhera fazer companhia a Eva enquanto esta fazia uma visita a Mary Moser, uma pintora que há muito admirava. – Tem de levar a carruagem – disse Sarah quando Eva chegou. – A Sarah tem mais probabilidades de trazer embrulhos. A Rebecca e eu vamos pedir a um lacaio para chamar uma carruagem alugada. – Vou concordar, mas apenas se prometer ter cuidado e enxotar qualquer jovem que comece a seguir a nossa joia perfeita. – Ela abriu o rosto num sorriso radiante para Rebecca. – Não restam dúvidas de que todos eles reparam nela e alguns olham-na com demasiada ousadia para o meu gosto. – Eu posso enxotá-los sozinha, Sarah – disse Rebecca. – Não vejo muita coisa nos jovens que se passeiam pelas ruas que seja apelativo para qualquer rapariga. – É um facto que não parecem ter a solidez de Mr. Mansfield – declarou Sarah enquanto atava o seu chapeuzinho. – Nem tão-pouco a alma artística de Mr. Trenton – disse Rebecca. Sarah abanou a cabeça, exasperada e depois olhou em volta à procura da bolsinha.


– Onde é que terei... Um bater na porta interrompeu-a. A criada dela apressou-se a ver quem era. Uma carta branca foi entregue pela luva branca de um lacaio. Com uma expressão de surpresa, a criada levou-a até junto de Eva. Eva examinou a carta. Nunca vira nada semelhante àquilo. O papel devia ser da melhor qualidade. Espesso, pesado e opulento, com uma superfície de um tecido primoroso que podia confundir-se com veludo sob os dedos. Um elaborado brasão estampado decorava o exterior. Com Rebecca e Sarah a olharem por cima dos ombros, abriu-a. Uma caligrafia requintada havia escrito um convite pessoal para Miss Russell estar presente num baile oferecido pelo conde e condessa DeVere na semana seguinte. – Bom, macacos me... – murmurou entre dentes Sarah numa voz repleta de assombro. – Acha que foi cometido um engano e que o convite se destinava a Rebecca? – É claro que não foi cometido qualquer engano – disse Rebecca. – Julgo que uma condessa sabe que se endereçar uma carta a Miss Russell, esta será entregue à irmã mais velha. Eva não estava assim tão certa disso. Um engano fazia mais sentido do que ter recebido aquilo. – Tens de ir – disse Rebecca. – Não sei se devo ou se quero. Não faz qualquer sentido ter recebido isto. Não conheço estas pessoas e elas não me conhecem a mim. – Alguém esteve por trás disso, nesse caso – disse Sarah. – Mr. Fitzallen, talvez. – Se for verdade, tens realmente de ir, Eva – declarou Rebecca. – Seria indelicado recusar, após toda a hospitalidade que ele nos ofereceu. E trata-se de um baile de um conde. – Mas nós nem sequer estaremos cá na próxima terça-feira. – Agora, teremos de estar – disse Sarah. – Não faço ideia do que irá vestir. Eu trouxe um vestido de baile, para o caso de ser necessário. Porém, não será o mais adequado para uma ocasião como esta, por muito que nos esforcemos em melhorá-lo. Uma ponta de irritação intrometeu-se no assombro de Eva. Decerto que Gareth sabia que ela estaria mal preparada para um convite daquela natureza. Dificilmente poderia ir a um baile levando a sua peliça azul. Eva pôs-se de pé, puxou a aba do chapeuzinho e calçou as luvas.


– Decidirei mais tarde o que fazer. Não consigo pensar agora. Vem, Rebecca. – Vou saber se alguma modista aceita trabalhos urgentes – exclamou Sarah nas costas delas enquanto caminhavam na direção das escadas. – E vou procurar renda e coisas do género nos armazéns. – Que maçada e disparate – murmurou Eva entre dentes.

A casa em Upper Thornhaugh Street era bonita, ainda que modesta. Eva entregou o seu cartão e a carta de apresentação de Miss Neville à criada que veio à porta. Ela e Rebecca esperaram um bom bocado até a mulher regressar. – A minha senhora irá recebê-las, mas não poderá ser uma visita demorada. A excitação de Eva crescia a cada degrau que subia nas escadas. Não foram levadas a uma sala de estar ou a uma biblioteca. Em vez disso, a criada abriu a porta de um quarto de dormir. Uma mulher idosa ocupava um grande cadeirão ao lado da cama, coberta por um cobertor. Quem quer que a visse teria a certeza de que estava doente, mesmo sem o cheiro semelhante a uma enfermaria que se opunha à brisa primaveril que invadia timidamente o quarto por uma janela entreaberta apenas alguns centímetros. A criada puxou duas cadeiras para perto. A mulher idosa ergueu os olhos da carta de Miss Neville. Um sorriso forçado formou-se-lhe nos lábios. – Bem-vinda, Miss Russell. Quem é a sua acompanhante? Eva sentou-se na sua cadeira e apresentou Rebecca a Mary Moser, uma das únicas duas mulheres que tinham sido aceites como membros da Academia Real das Artes até aquele momento e uma das suas fundadoras. Embora se tivesse casado anos depois de a sua reputação como artista se ter estabelecido, todos se referiam a ela pelo nome de solteira. Os olhos de Mary semicerraram-se enquanto observava atentamente Rebecca. – Encantadora. Veio para Londres para a temporada social, minha jovem, para partir os corações dos homens com quem se cruza? Rebecca abanou a cabeça. – Viemos para ver a arte e as vistas. Em todo o caso, não gostaria de partir o coração a ninguém e tenho esperanças de que a minha forma de pensar e caráter despertem pelo menos tanto interesse como o meu rosto a um homem. Mary soltou uma pequena risada e abanou a carta no ar. – Acho que a Jasmine a tem influenciado. Como se tem dado ela na sua opção de residência rústica? Anda a aterrorizar os conterrâneos com as suas opiniões fortes?


– Continua a ser um elemento bastante original – respondeu Eva. – Estamoslhe ambas muito gratas pela sua generosidade. – Ela diz que a Eva é uma artista. Com quem estudou? – Apenas com uma precetora talentosa, mas eu trabalho sozinha. Penso que fiz alguns progressos. Executei cópias de bons quadros e Miss Neville ofereceu-me outros da sua própria coleção para poder continuar a estudar. Um sorriso deveras cortês assomou no rosto de Mary enquanto Eva falava. Era o género de sorriso que surgia quando uma conversa tomava um rumo aborrecido. – Com certeza que não se recorda de mim – acrescentou ela depressa. – Escrevi-lhe uma vez. Há oito anos. – Eu escrevi-lhe de volta? – Sim. Deu-me um conselho. Advertiu-me do quanto era difícil uma mulher ser pintora. Do quanto o casamento iria colocar em risco qualquer carreira desse tipo. E da realidade que as melhores formações não estariam disponíveis. – Escrevi isso tudo, foi? A última parte é verdade. Estudos do corpo humano, por exemplo, não estão disponíveis. Acredita-se que somos todas demasiado pudicas para desenhar a forma nua a partir da realidade, especialmente a do corpo masculino. É um disparate, claro. No entanto, sem o rigor desse tipo de exercícios, as figuras humanas vão parecer sempre um pouco como bonecas de algodão. No que diz respeito à primeira parte, não achou um conselho estranho, tendo em conta que eu própria me havia casado? – Confesso que não sabia disso na altura. A cabeça grisalha dela apoiou-se na cadeira. Os olhos fecharam-se. – Passadas semanas, soubemos ambos que tínhamos cometido um erro. Arranjámos amantes e sobrevivemos. Porém, dei esse passo numa fase tardia da vida. Já me tinha tornado tudo o que seria enquanto artista nessa altura. – A cabeça dela endireitou-se e olhou para Eva. – Não é casada. Colocou essa hipótese de parte por causa daquilo que lhe escrevi? Não me parece que eu queira uma decisão tão permanente da sua parte na minha consciência durante os meus últimos dias de vida. – Afianço-lhe que o meu estado civil não teve nada que ver consigo. Na verdade, quase me casei. Uma vez que não o fiz, porém, as suas palavras influenciaram-me a ver os benefícios inerentes à minha situação. Não procuro uma fama semelhante à sua. Só tenho esperança de melhorar para poder criar numa tela ou num quadro o que vejo dentro da minha cabeça. Eva foi alvo de um longo olhar depois daquelas palavras. A seguir, Mary


começou a tossir. O ataque de tosse tornou-se violento, afetando-lhe o corpo inteiro. A criada veio até junto dela para a acalmar e deitou um pouco de remédio de uma pequena garrafa num copo que segurou junto aos lábios da sua senhora. O remédio atuou depressa. O corpo sob o cobertor relaxou. A cabeça grisalha recostou-se indolentemente. A criada fitou Eva com um olhar significativo. – Vamos deixá-la agora – declarou Eva, pondo-se de pé. – Foi muito amável em aceder a receber-nos. Os olhos de Mary abriram-se. – Vai estar em Londres quando a Grande Exposição abrir as suas portas? – A voz dela chegou ofegante e pouco clara. – Nessa altura já não estaremos cá, lamento dizer. – Que pena. Faça as suas cópias da coleção de Jasmine e desenhe com frequência. Contrate um homem para lhe servir de modelo, se conseguir encontrar um disposto a posar sem roupa. Com o tempo, vai melhorar, se possuir o talento que a Jasmine julga que a Eva possui. É um objetivo meritório. – Obrigada. Nós saímos sozinhas. De volta à rua, ela e Rebecca fizeram uma pausa. – Acho que ela está a morrer – afirmou Rebecca. – Eu também acho. Caminharam pela rua, dominadas por pensamentos. Pouco a pouco, o sol e a brisa aliviaram-nas dos devaneios tristes. – Eva – disse Rebecca, com um sorriso irreverente. – Qual dos homens de Langdon’s End achas que irá posar nu para ti?

Assim que Gareth ficou na presença da duquesa de Devonshire, decidiu que não se importava nem um pouco que Ives estivesse a seu lado. Perguntou-se se Ives sentia o mesmo em relação a ele. Com alguma dificuldade, baniu dos pensamentos o assunto que o absorvera toda aquela manhã e a maior parte da noite anterior. Precisava de obter respostas da duquesa através do charme, não abordá-la com a taciturnidade que sentia. O facto de ter saído de casa sem ver Eva não ajudara. Não estava acostumado a sentir ciúme e os efeitos deste tiveram repercussões desagradáveis. Afirmar que a segunda mulher do falecido duque sabia perfeitamente qual era o seu estatuto elevado seria um eufemismo. Estava regiamente sentada numa cadeira de estofos azuis escolhida para beneficiar o seu tamanho e forma. Os


olhos dela contemplaram ambos de uma forma muito semelhante à forma como as rainhas medievais possivelmente olhavam para os seus servos. Considerando que Ives era o filho legítimo de um duque e um lorde por direito próprio, tal exigiu uma grande dose de petulância da parte dela. Mas, por outro lado, aquela mulher chegara àquela cadeira depois de executar um jogo muito longo e deliberado. A atitude de Ives ao cumprimentá-la foi exatamente no tom respeitoso acertado sem cair na deferência. O sorriso débil dela sugeria que gostaria de ter visto esta última. – Viemos até si para discutir um assunto de interesse pessoal para o Príncipe Regente – declarou Ives. – É possível que nos possa ajudar num inquérito levado a cabo a pedido dele. – Com esse tipo de preâmbulo, suponho que terei de o ajudar se puder. – Isto diz respeito a alguns artigos armazenados numa das propriedades do seu falecido marido. Na casa junto a Chatsworth, a norte. No seguimento de algumas questões colocadas aos criados lá residentes, o meu irmão soube que pode ter algum conhecimento a respeito desses artigos. – Ives voltou-se para ele, fazendo-lhe um sinal para se juntar à conversa. Antes de o poder fazer, a duquesa fitou o corpo dele de cima a baixo com um olhar cortante. – O senhor deve ser o bastardo. – Sou, sim. – O seu pai e o meu marido tinham uma espécie de amizade, grandemente baseada naquilo que tinham em comum a esse respeito. Conhece o meu primeiro filho? Ele escolheu uma carreira na Marinha. Segundo soube, a sua vida tomou outros rumos. – O sorriso sabedor dela insinuava bastante nas últimas palavras cuidadosamente pronunciadas. – Ocasionalmente, ocupo-me com atividades menos prazerosas. Tais como este inquérito. – Inquira, nesse caso. Ele repetiu o que soubera acerca da visita dela à casa após a morte do último duque. Apesar do seu esforço para não sugerir nada de incorreto, ela sentiu-se insultada. – Confio que não seja ousado ou estúpido ao ponto de me acusar de desviar esses artigos que procuram. – Apenas nos perguntamos se os homens que estavam ao seu serviço tiveram algum motivo para subir ao sótão e, caso fosse esse o caso, se fizeram algum comentário acerca do seu conteúdo.


– De facto, eles subiram. Havia uma bonita mesa de Itália que não foi encontrada na divisão em que deveria estar, por isso enviei dois homens procurála lá em cima. Não me lembro de nenhuma conversa depois. O que poderiam eles ter dito? – Nada de alarmante – respondeu Ives. – Talvez tenham mencionado que era difícil procurar a mesa por causa de um grande número de caixotes que lá estavam? Ou, quiçá, fosse referido que era peculiar que o sótão estivesse praticamente vazio. – Se tiveram motivos para deslocar caixotes, comentários relativos ao peso, quer fossem muito pesados ou estranhamente leves... – sugeriu Gareth. Ela pareceu refletir genuinamente acerca disso. – Eles demoraram realmente um bom bocado a descer e nunca conseguiram encontrar aquela mesa. Um deles não estava muito contente porque esfolara uma mão. Ouvi-o a queixar-se aos outros de todas aquelas malditas caixas. Será possível que ele se estivesse a referir aos caixotes de que falam? – Possivelmente – respondeu Ives. – Entre os bens que aqueles homens levaram a seu pedido estavam quadros? – Era uma pergunta que tinha de ser feita e Gareth decidiu lançar-se ao fogo. – Apenas um Angelica Kauffmann que eu admirava há muito. Não era do agrado do duque, por isso baniu-o para lá. Disse-me que seria meu, se o quisesse. Ives concedeu-lhe o seu sorriso mais amável. – Foi mais do que generosa com o seu tempo. Vamos deixá-la para poder dar atenção às suas outras visitas. Lá fora, Ives bateu no ombro de Gareth com uma mão. – Saíste-te muito bem. Estava a tentar arranjar uma forma de perguntar que quadros tinha ela levado, sem usar uma palavra como levado. – A lista tinha algum Kauffmann? Já tens na tua posse uma lista por esta altura, verdade? Era um inferno se alguns daqueles quadros estiverem pendurados à vista de todos naquela casa e nós não soubéssemos disso. – Recebi finalmente uma lista. Não há nenhum Kauffmann. Vamos beber alguma coisa ao Black Horse. Vou dar-ta e também te vou preparar para o teu próximo encontro. O próximo encontro, na manhã do dia seguinte, era com Mr. Clifford, o primeiro filho da senhora que tinham acabado de deixar. Parecia que Ives decidira não estar presente. Sentaram-se na taberna de cerveja na mão. Ives passou uma folha de papel


velino para o outro lado da mesa. Ambos os lados exibiam três colunas. A primeira continha nomes de artistas. A segunda mostrava os títulos ou descrições de quadros. A última coluna exibia o nome dos proprietários. – Impressionante – disse Gareth. – Os artistas? – Os proprietários. Vejo que o Príncipe Regente não está nesta lista. Pensei que tinhas dito que esta ideia tinha sido dele, em parte. – Ele estava convencido de que seria desastroso se se soubesse que esvaziara as paredes de Brighton com medo de uma invasão. Uma vez que esta não chegou a acontecer, alguns dos amigos dele agora veem-no como uma atitude duvidosamente perspicaz. – Os homens conseguem ser tão imbecis. – Gareth murmurou entre dentes aquela verdade eterna ao mesmo tempo que a sua atenção se voltava para a porta. – Lá vem o Lance. Disseste-lhe para se encontrar aqui connosco, não foi? – Ele não tinha nada para fazer esta manhã, o que nunca promete nada de bom. – Ele, mais do que ninguém, não precisa de uma ama. Deixa de ser a ama dele. Ives acenou com o braço para atrair a atenção de Lance. – Também achei que as coisas não acabaram da melhor forma ontem. E tu passaste o dia todo abespinhado. – E concluíste que eu queria beber cerveja com ele? Deixei de te considerar um advogado inteligente. – Acabara de lançar aquela última tirada quando Lance se sentou numa cadeira à mesa deles. – Pelo menos, deste-te ao trabalho de te barbear hoje – disse Gareth. – Tendo em conta que não te pareces com um camponês acabado de sair de uma carroça do centro do país, podes sentar-te connosco. Ives tentou dirigir-lhe um olhar apaziguador, mas Gareth não estava com disposição para fazer a vontade a qualquer um deles. Lance levou uma mão ao rosto. – Odeio ser barbeado. Pensei em não me dar mais a essa maçada e deixar crescer a barba. Talvez se tornasse uma nova moda. Não uma barba longa e encaracolada. Uma barba bem aparada, como as que os espanhóis costumavam ter. – Não és, nem nunca foste, um líder da moda, por isso mais ninguém iria deixar crescer a barba e, na melhor das hipóteses, ias parecer um excêntrico. Nem sequer o Ives ia querer ser visto contigo. Lance olhou para Ives. – Ele tem razão?


– Não deixes crescer a barba – respondeu Ives. – Por favor. Lance fez uma expressão sombria. – Se um duque não pode deixar crescer a barba para os outros o imitarem, de que vale ter esse título? – Queres que te enumere as vantagens desse título? – retorquiu Gareth. – Podemos começar pelo rendimento obsceno de que irás gozar deste momento em diante. Lance fez um sorriso contrariado. – Por vezes, esqueço-me de que és um irmão bastardo, Gareth, e tudo o que isso implicou na tua vida. A fúria que se estava a acumular ao escutar a petulância de Lance abrandou com aquele comentário de afeto fraterno. Contra a vontade de Gareth. Lance pegou na folha de papel velino e leu-o. – Alguém está a planear uma exposição gigantesca? Ives lembrou-o dos quadros desaparecidos. – O Gareth e eu estamos envolvidos numa investigação que lhes diz respeito. – Oh, isso. – Lance semicerrou os olhos quando os focou na lista dos lordes. – Que cobardes. – Eles apenas queriam proteger os seus bens mais estimados – declarou Ives. – Então, os franceses podiam ficar com os seus cavalos, as suas mulheres e filhas, os seus criados, mas não os quadros? – Possivelmente, as mulheres, filhas, criados e cavalos seriam enviados para longe assim que os franceses desembarcassem nas praias inglesas – disse Gareth. – Peço desculpa por ter alterado a ordem. Tenho a certeza de que porias os cavalos primeiro sem qualquer consideração pela importância dos teus parentes, não é assim? – Para os diabos com a ordem. Foi ignóbil fazer isto quando os camponeses e pescadores estavam a receber instrução militar nos campos, a prepararem-se para entregar as suas vidas. Estes homens nunca poderiam enviar nada para norte do país, muito menos quadros. Ives empurrou o copo de Lance para mais perto dele, encorajando-o a beber. A mente de Gareth matutou no acesso de fúria de Lance. – Estou a pensar – disse ele. – Partimos do princípio de que os quadros foram roubados pelo lucro material. Pela mão de ladrões, ou, no máximo, de um colecionador louco. E se, em vez disso, tivessem sido levados para infligir um castigo? Talvez alguém que soubesse do plano sentisse o mesmo que o Lance e procurasse garantir que estes lordes se iam arrepender desta decisão, de uma


forma ou de outra. – Tendo em conta o estado de espírito geral no país nessa altura, é possível – disse Ives. – Suponho que teríamos de investigar primeiro os lordes que possuem propriedades perto da costa e que não estão nesta lista. – Vou deixar-te falar com eles, se não te importares – disse Gareth. – Não consigo pensar numa forma de abordar o assunto sem os insultar e diabos me levem se me vou deixar morrer ao teu serviço. Lance bateu levemente na folha de papel com a mão. – Vocês veem as coisas de forma tão séria. Primeiro, o motivo era a ladroagem, agora é o patriotismo. Não estão a ver o motivo mais provável. Ives ergueu as sobrancelhas e ficou à espera. – Foi uma partida – explicou Lance. – Não conseguem ver o quanto isto é cómico? Toda aquela preocupação, cuidado e secretismo por causa de uma série de malditos quadros. Havia uma guerra a acontecer e os lordes desperdiçavam as suas faculdades mentais nisso? Consigo imaginar um bando de dândis a decidir que seria diabolicamente engraçado fazer aqueles quadros desaparecer. – Ele riuse e bateu com a palma da mão na folha de papel. – Imaginem as expressões deles quando souberam que tinham desaparecido todos. Hum, não, Napoleão não levou as vossas obras de arte, mas alguém levou. Perdão, meus senhores. Ives olhou para Gareth. Depois, olhou para Lance, que continuava distraído pela hilaridade da situação. Gareth sabia o que Ives estava a pensar. Lance sempre gostara de pregar partidas. – Lance – começou Ives cuidadosamente –, por favor, diz-me que não viste as possibilidades cómicas há dez anos e... – Se o tivesse feito, estaria a rir à gargalhada agora, ao ver-vos aos dois a percorrer toda a Inglaterra para tentar encontrar aqueles quadros. Oh, esperem... eu estou a rir às gargalhadas. – E foi o que fez a seguir, ruidosamente. As pálpebras de Ives desceram. – Isto deixou definitivamente de ser considerado engraçado. Pergunto-te de novo... – O que achas? – Os olhos de Lance ganharam vida com um sentido de humor diabólico. Gareth deu-se conta de que Ives estava prestes a perder as estribeiras. – Maldição! Se sabes alguma coisa, diz isso ao Ives agora. Deixa de ser um imbecil. Lance não gostou de ouvir aquilo. Que duque gostaria? Ou que rufia gostaria?


Porém, parou de os arreliar. Pegou de novo na folha de papel velino e depois deixou-a cair, num gesto displicente. – Nunca me passou pela cabeça dar a estes pares do reino uma boa lição. Tanto pior. – Podes jurar isso? – perguntou Ives. – Tenho de jurar? Isso é um insulto. – O teu sentido de humor tem andado estranho ultimamente. Lance lançou-lhe um olhar de poucos amigos. A seguir, encolheu os ombros. – Muito bem. Juro que não tive nada que ver com isto e não sei nada acerca desta história. Ives soltou uma expiração audível. Voltou-se para Gareth. – Agora em relação ao dia de amanhã, quando te fores encontrar com o Clifford. Aborda o assunto de imediato. Ele serviu na Marinha e não vai ter muita paciência para dissimulações. As questões iam acabar por lhe ser colocadas, por isso não há motivo para as adiarmos. – Porque vai ele vai interrogar o Clifford? – perguntou Lance. – Ele é muito bom a falar de homem para homem e é isso que é preciso. – De bastardo para bastardo, penso que é a isso que te referes – disse Lance. – Já te cruzaste com ele? – Várias vezes, de passagem. – A situação dele é dolorosamente infernal. Imagina que o património Aylesbury é pelo menos três vezes maior do que é na realidade. Depois imagina que, apesar de seres um bastardo, tinhas exatamente os mesmos pais que eu e o Percy e que a única razão para que todas aquelas terras e bens não fossem tuas após a morte do teu pai foi porque tiveste o infortúnio de nascer antes de a tua mãe se tornar a mulher legítima dele. Enquanto segundo filho, provei uma pequena gota daquilo que o Clifford bebe todos os dias e é uma bebida bem amarga. – Tenho a certeza de que ele se adaptou à ideia – declarou Ives. – Aqui o Gareth também teve de fazer o mesmo. Gareth esperava parecer estar de acordo com aquela certeza. A verdade é que conhecia bem aquele sabor amargo. Todos os bastardos de lordes o conheciam. Por norma, não remoía na sua fortuna, mas, por vezes, a bílis revoltante do que fora engolido azedava-lhe a boca. – Miss Russell acedeu em estar presente naquele baile? – perguntou Lance descontraidamente. – O Ives disse que conseguiste deitar a mão a um convite


para ela e tencionas acompanhá-la em pessoa. Gareth fulminou Ives com o olhar, que fez questão de não reparar nisso. – Eu não estava presente quando recebeu o convite, por isso ainda não sei se o irá aceitar. – Ela não vai aceitar – declarou Lance. – Vai querer ir. Qualquer mulher iria querer. Mas ela não vai aceitar. – Sabes isso assim com tanta certeza? Lance acenou com a cabeça. – Isto ocorreu-me na noite passada. Independentemente de quem seja o seu acompanhante ou mesmo que este não exista, ela não irá ao baile. Não tem um vestido de baile e adorno de cabelo adequados. Posso apostar nisso. Gareth fitou-o em silêncio. Lance tinha razão. Ela não tinha vestuário apropriado. Isso faria diferença para ela. Faria diferença para qualquer mulher. Uma das sobrancelhas de Lance ergueu-se. – É claro que te podias oferecer para lhe comprar um vestuário e acessórios adequados. Ainda há tempo para isso. Permitir esse gesto, porém, possui determinadas implicações. Duvido que ela ignore isso. Por isso, não irá aceitar o presente. Não, não o aceitaria. Já o havia recusado quando ele abordara pela primeira vez a ideia daquela visita a Londres. Lance exibia um prazer presunçoso no modo como encurralara Gareth naquele assunto em particular, mas também alguma curiosidade. – Então, o que vai fazer o vigário? – Não se vai oferecer para lhe comprar um vestido, isso é óbvio – disse Ives. – Todavia, num gesto impulsivo de noblesse oblige, tu irás fazê-lo.


CAPÍTULO 19

–E

stou a gostar imenso disto – afirmou Rebecca enquanto ela e Eva passeavam por uma pequena rua na City de Londres. De ambos os lados, estavam rodeadas de todo o tipo de tipografias, assim como algumas livrarias. – É agradável passar uma tarde, só nós as duas, a seguir qualquer caminho que quisermos. – Muito agradável, embora tenha uma confissão a fazer a respeito do caminho que escolhemos. Não estamos a seguir pelo caminho que queremos. Estamos perdidas. Rebecca soltou uns risinhos e desataram ambas às gargalhadas. – Completamente perdidas ou apenas razoavelmente perdidas? – perguntou Rebecca depois de recuperar o fôlego. – Uma vez que me vejo atrapalhada em responder a essa pergunta, suponho que a resposta deve ser completamente perdidas. O plano era fazer uma visita à casa de leilões de Mr. Christie. Dizem que faz leilões com regularidade e a galeria dele está muitas vezes repleta de obras à venda. Rebecca olhou para o céu. – A tarde está a avançar. Devíamos tentar encontrá-la em breve, se queremos fazer-lhe uma visita. Eva levou a mão à bolsinha. Um peso satisfatório no fundo desta deslocou-se, fazendo pequenos sons metálicos. O lado maravilhoso do dinheiro era que podia resolver problemas como aquele. – Vi carruagens de aluguer no último quarteirão. Vamos usar uma de novo. O condutor deve saber o caminho, mesmo que nós não saibamos.


Meia hora depois, entraram na casa de leilões. Era um salão grande e quadrado, com um teto bem alto. No centro do teto, uma grande secção com a forma de um quadrado erguia-se ainda mais, com janelas a toda a volta que permitiam que a luz incidisse nos quadros pendurados nas paredes em baixo. – Olha para todas estas cores – exclamou Rebecca, fitando com atenção os quadros mais próximos da porta. – Nem todos são de grandes mestres, pois não? Este aqui não é muito melhor do que as tuas paisagens. E não é tão bom, na minha opinião. Eva concordou, apesar de nem ela nem Rebecca serem peritas em arte. Sentiuse reconfortada com o pensamento de que embora o fruto dos seus esforços jamais pudesse competir com os melhores expostos naquelas paredes, por outro lado não seriam objeto de troça. Outros clientes percorriam a divisão, passeando-se pela abundância de quadros. Ela e Rebecca detinham-se de vez em quando junto daqueles que mais gostavam. Eva examinou minuciosamente alguns para ver como um determinado efeito era alcançado com o pincel. Estava num desses momentos quando Rebecca lhe agarrou com força num braço. – Eva. Ali à frente. Não é o... Eva endireitou-se e olhou para onde a irmã apontava. Na parede oposta à porta, exatamente no centro, uma natureza-morta estava pendurada ao nível dos olhos. Não passava despercebida a ninguém. O olhar dela esquadrinhou minuciosamente o cálice de vidro retratado, o prato de porcelana azul e a fruta madura. O seu coração começou a bater com tanta força que a cabeça começou igualmente a latejar. Conhecia aquela composição muito, muito bem. Pintara-a há quatro meses na sua biblioteca. – Não pode ser – sussurrou. Elas aproximaram-se apressadamente para o observar com mais atenção. Tal como uma assinatura, uma artista conhece o seu próprio traço representado. Aquele quadro era indubitavelmente da sua autoria. Eva sentiu-se agoniada. – Não compreendo. – Não? – De sobrolho carregado, Rebecca olhou em volta na divisão e depois avançou em passo de marcha até junto de um homem que estava num dos cantos. Falou com ele e apontou para a natureza-morta. Ele, por sua vez, abriu um opúsculo e apontou para uma das páginas. Rebecca regressou com o opúsculo nas mãos.


– Não vais ficar surpreendida por saber que o teu nome não está nesta lista. Segundo a casa de leilões, este é um trabalho do artista holandês Cuyp, que viveu há duzentos anos. Eva examinou a página do opúsculo. – Eu devo ser uma copista melhor do que pensava. – Essa foi a única coisa que te passou pela cabeça? Eva, Mr. Stevenson está a enganar-te. Achei que ele tinha agido de forma deveras suspeita quando te deu aquele dinheiro todo. Mas ele está a dar-te dez xelins para depois os enviar para cá para serem vendidos por esse valor multiplicado muitas vezes. Aquele homem disse que esperavam que ele fosse arrebatado, e julgo que isso significa vendido, por pelo menos três centenas. Trezentas libras? Eva teve dificuldade em assimilar a ideia. Quando o fez, o seu estômago começou de novo a dar voltas. – Rebecca, ele vai vender-se por tanto dinheiro porque está a ser vendido como um quadro de Cuyp. E não um quadro meu. – Mas foste tu que o pintaste. Devias receber mais do que dez xelins em troca por isso. Rebecca não se dera conta do maior dilema naquela questão. O aspeto moral. Se partissem dali sem dizer uma palavra, alguém seria ludibriado no leilão. – Há mais algum? – Ela voltou-se para olhar para a parede que ainda não tinham visitado. – Que eu consiga ver, não. – Talvez isto tenha sido um erro. – Ah. Aquele ah era um reflexo dos seus próprios pensamentos. Estimada Mary Moser, escrevo-lhe para lhe agradecer a forma e os conselhos amáveis com os quais me recebeu. Infelizmente, encontro-me neste momento na prisão de Newgate enquanto aguardo julgamento por furto e falsificação depois de ter sido envolvida num esquema para vender quadros falsificados da autoria de grandes mestres... Aproximou-se do homem que estava no canto. Ele cumprimentou-a com cortesia, mas o seu olhar transferiu-se de imediato para Rebecca quando esta também avançou para o lado da irmã. – Tenho de lhe explicar que se cometeu um erro. – Eva apontou para o quadro e depois para o opúsculo. – Aquele quadro não é da autoria de Cuyp. – Estamos plenamente convictos de que é. E é um belo exemplo da sua arte. – Não, não é. Estou mais convicta de que não é mais do que os senhores estão


convictos de que é, porque fui eu que pintei aquele quadro. Ele fez um sorriso cortês. Os olhos dele brilharam, divertidos. – Certamente que sim, menina. E foi tudo o que ele disse. Nada mais. Não acreditou nela, mas não a ia insultar ao discordar dela, por isso limitou-se a sorrir e continuou a sorrir. O que a fez ficar ali como a pateta baralhada que ele a julgava ser. Agarrou no braço de Rebecca e avançou a passos largos para o meio do salão. O que deveria fazer? – Ele acha que não eras capaz de o pintar porque és uma mulher – declarou Rebecca. – Não, ele acha que eu não o fiz porque acredita que foi Cuyp quem o pintou. – Ela voltou-se para olhar de frente o quadro. – De facto, parece esplêndido ali, àquela luz. Bem melhor do que parecia na nossa biblioteca. – Um inapropriado ardor de orgulho fê-la ruborizar-se. – Se contasses isto a Mr. Fitzallen, talvez ele os pudesse convencer. – O que lhe poderia dizer? Que houve um extraordinário desenrolar de acontecimentos? Que levei um quadro da propriedade dele sem autorização, o copiei, vendi a cópia em Birmingham e agora, eis que este apareceu à venda num leilão em Londres como o quadro original? Por que motivo devia ele acreditar que não fui cúmplice deste esquema e fiz as cópias com este fito desde o início? – Porque és amiga dele? E porque lhe estás a dizer a verdade? – O magistrado que vai ser chamado não será meu amigo. Não consegues ver o que isto parece? Fiz aquelas cópias em segredo. Ninguém sabe disso exceto tu. Até isso será suspeito agora. – Achas que os outros que vieram para Londres estão igualmente a ser vendidos como originais, noutros lados? – perguntou Rebecca. Aquela ideia fez com que o estômago de Eva ficasse perigosamente agoniado. Rebecca deu-lhe um pequeno abraço e bateu-lhe levemente no ombro. – Apenas sabemos de um único quadro com toda a certeza. Quem quer que o compre possui provavelmente uma coleção enorme que inclui outras falsificações e jamais o saberá. Especialmente se o original continuar naquele sótão. O melhor, porém, é jamais contares a Mr. Fitzallen a respeito dos quadros lá em cima. As irmãs aproximaram-se da porta para sair. Eva olhou para trás para o quadro. Este resplandecia no meio da luz, irradiando o seu próprio brilho. Aquele cálice parecia tão real que alguém podia recear que se partisse. Apesar da sua preocupação em relação ao uso indevido do quadro, o orgulho


deixava-lhe o coração mais leve. Talvez Jasmine Neville tivesse razão e as mulheres não fossem ensinadas a ter ambição suficiente. Talvez ela, Eva Russell, possuísse mais talento do que reconhecia a si própria e devesse aspirar não só a melhorar, mas também a ser excelente. No mínimo, agora podia fazer-se uma afirmação. Se a Christie’s apresentava o seu quadro como um Cuyp, ela não era apenas uma copista sofrível. Era uma copista extraordinariamente boa.

Gareth conduziu o cavalo para fora da cidade de Londres e depois espicaçou-o para começar a galopar. A velocidade serviu, em parte, de escape à frustração que crescia dentro dele. Suportara mais uma noite inquieta, incrivelmente tentado a percorrer a casa até ao lugar onde ficava o quarto de Eva. Não previra ficar tão afetado pelas circunstâncias atuais entre ambos. Ela possuía uma idade apropriada para sentir curiosidade, de forma assaz agressiva, e ele escolhera mostrar-lhe e ensinar-lhe. Se ela tinha voltado costas ao prazer mais cedo que ele esperava, ou desejava, admitiu a si próprio, isso não devia afetá-lo tanto quanto sentia naquele momento. A verdade era que se arrependia de ter providenciado o convite de Eva para o baile DeVere. Quando o fizera, antecipara o deleite dela para com o seu presente e uma noite agradável a observar o seu deslumbramento. Nunca lhe ocorrera que outros homens pudessem competir pela sua atenção. Não porque ela não merecesse esse tipo de atenções, mas porque, tinha de admitir a si próprio agora, na cabeça dele, o lugar dela era junto dele. Ela era dele. A admiração flagrante de Whitmere a Eva deixou claro o quanto ela podia ficar deslumbrada. Aquele baile estaria repleto de lordes e herdeiros. Todos eles cavalheiros, com uma ascendência sólida e extensos patrimónios e títulos de nobreza. Oh, sim, era importante não se esquecer dos títulos de nobreza. Um título de nobreza levava a melhor sobre tudo, não era assim? Imaginou os filhos da nobreza a fazerem fila, a convidarem Eva para dançar, a procurarem cair nas suas boas graças. Naquele salão de baile, no meio daquelas pessoas, ser um bastardo faria diferença a um nível raro, se olhássemos para o resto da sua vida. Por outro lado, não os podia ameaçar a todos como fizera com Whitmere. Nunca antes invejara os irmãos. Pelo menos, não os invejara grandemente. Não com a intensidade taciturna que sentia agora ao estar prestes a amaldiçoar as circunstâncias do seu nascimento. Por sua vez, a culpa que isso provocou apenas


reforçou o seu mau-humor. Durante toda a vida tivera esperança de que pudesse reconhecer um dia nos seus meios-irmãos uma verdadeira família na sua essência, ainda que legalmente não fosse possível. Naquele dia, Lance tinha, sem pensar duas vezes, dado um grande passo nesse sentido. Por vezes esqueço-me de que és um bastardo. Bastou a memória daquelas palavras para obrigar a sua montada a seguir a passo e ficar imóvel imerso em pensamentos. Maldição, conseguia ser um verdadeiro idiota às vezes. Só um imbecil desperdiçava a vida zangado com aquilo que podia ter acontecido. Nem tãopouco as suas circunstâncias o tinham deixado empobrecido e ignorado. Podia ser um bastardo, mas era um bastardo reconhecido. Com Percy fora do caminho, os irmãos já tinham começado a aproximar-se. Deu meia-volta ao cavalo e cavalgou de volta para a cidade num passo mais lento. Entregou as rédeas do cavalo e entrou na Casa Langley. Quando perguntou se Miss Russell já regressara, o mordomo respondeu que sim e que estava no jardim naquele momento. Nas traseiras da casa, olhou por uma janela. Eva estava sentada num banco com vista para o fundo do jardim. Parecia estar a desenhar. Na cabeça, viu-a no seu próprio jardim. Obrigada a fazer o trabalho de um serviçal por necessidade, a artista dentro dela descobriu alegria nessa tarefa, não humilhação. Suspeitava que a mulher bem-nascida também. Ao preservar aquele jardim, também preservara a mulher que nascera para ser. Abriu a porta e saiu para se sentar ao lado dela. Eva voltou-se ao ouvir o som de passos a aproximarem-se. Quando o viu, o alívio suavizou-lhe a expressão. – Oh, é o Gareth. – Estava à espera de outra pessoa? – Ele sentou-se ao seu lado e inclinou a cabeça para ver o que ela havia desenhado. – De Mr. Geraldson. Ele enviou-me um bilhete a pedir-me para falar com ele aqui antes do jantar. – O secretário do Lance? – Sei que parece estranho, mas... – Pousou o caderno de esboços no banco entre ambos. – Esta manhã chegou um convite endereçado a Miss Russell. Vai haver um baile na próxima terça-feira. Acho que a destinatária era a minha irmã, mas... – Não era. A destinatária era a Eva. – Foi o Gareth que esteve por trás disso? Para eu poder ter uma noite magnífica?


– Fui. E também para eu poder ter o mesmo. Vou acompanhá-la, se concordar. Espero que tenha aceitado o convite. – Ainda não o fiz. Não vim realmente preparada para uma coisa desse tipo. Nem o guarda-roupa de Sarah me consegue oferecer uma escolha adequada. Seja como for, quando regressei, Mr. Geraldson enviou-me um bilhete a pedir-me para se encontrar comigo aqui fora para discutir uma questão relativa ao baile DeVere. O duque também estará presente? – Nenhum dos meus irmãos estará presente, devido ao facto de estarem de luto. Creio que Mr. Geraldson lhe vai oferecer um presente: um vestido de baile novo. O meu irmão referiu que podia recusar o convite porque não tinha trazido o guarda-roupa necessário. – Isso é extremamente generoso da parte dele, tendo em conta que somente o vi uma vez na minha vida e apenas por alguns minutos. – Ele tem um coração generoso. Não ficaria surpreendido se Mr. Geraldson lhe propusesse mandar fazer um vestido e depois enviar-lhe a conta. – Não tenho a certeza se isso é apropriado. – Não me diga que está a ser picuinhas de novo? Ela riu-se e depois assentiu. – O duque de Aylesbury nem sequer vai estar presente nessa noite. Não vai dançar consigo e certamente que não irá agir como se lhe devesse alguma coisa em troca do vestido. De certa forma, o presente nem sequer vem da parte dele, Eva. Pense nele como um presente da Casa Aylesbury. Ela refletiu nisso, quase convencida. – Sabe mesmo como convencer uma mulher, Gareth. – Espero sinceramente que sim. Porém, a escolha é sua. Ficarei orgulhoso de lhe dar o meu braço, independentemente do que usar. – Uma parte dele, a parte que ainda carregava alguma da irritação que o levara a dar aquela corrida a galope, esperava que ela recusasse o vestido. Se parecesse fora de moda, metade dos homens da fila que imaginara desapareceriam. – Vou pensar sobre isso. – Ela desviou o olhar para o jardim. – Gareth, será que todos os duques têm homens como Mr. Geraldson, que discutem assuntos como este por eles, para que os duques não o tenham de fazer pessoalmente? Assuntos que podem ser vistos como um tanto ou quanto inapropriados ou até bastante inapropriados? – Parece-me que sim. Porém, este vestido é uma questão menor e, tendo em conta as circunstâncias, não a vai comprometer. Agora, se um homem lhe oferecer uma carruagem, um cavalo e carta-branca para gastar em joias, pode


muito bem suspeitar que ele está a tentar comprá-la. – Fez uma piada em torno daquilo. Eva riu-se, mas o olhar dela ficou sério. – Foi assim que se passou com a sua mãe? Um outro Mr. Geraldson apresentou uma proposta. – Foi. Tinha sido melhor se tivesse sido o meu pai a estar presente. O homem dele não era um adversário à altura da minha mãe. Ela sabia o que valia e a negociação foi renhida. – Imaginou Eva a guardar a informação na cabeça. Eternamente curiosa, provavelmente achara o protocolo fascinante. – O seu dia foi bom? – perguntou ela, mudando de assunto. – O meu foi. Bom, parte dele foi. Visitei a Mary Moser, a famosa pintora. Miss Neville deu-me uma carta de apresentação. Acredita que ela me recebeu? – Não tinha conhecimento de que ela ainda vivia em Londres. – Lamento informá-lo de que ela está bastante doente. Ainda assim, foi capaz de levar a cabo uma conversa. Falámos acerca de arte. Ela deu-me alguns conselhos, de novo. Já o tinha feito há alguns anos quando lhe escrevi. Conselhos sensatos, percebo melhor agora. – De que tipo? Trabalhe arduamente, desenhe diariamente, mantenha os pincéis limpos? Eva deu-lhe um pequeno toque brincalhão com o cotovelo. – Nada de tão aborrecido. Disse-me que precisava de desenhar a partir da vida real. Sabe o que isso significa? – Os olhos dela cintilaram com um sentido de humor travesso. – Sei, pois. Talvez possa subornar a sua irmã para... – Oh, isso não irá resultar. Tenho de desenhar a forma masculina a partir da vida real. Jamais poderei concretizar todo o meu potencial de outra forma. – Ela cruzou os braços e bateu levemente no queixo com uma expressão pensativa. – Pergunto-me a quem irei pedir isso e de que forma o poderei convencer? Ao Erasmus? Um punhado de moedas deve ser capaz de o conquistar. – Ou a Mr. Trevor, o arquiteto. Creio que ele ficaria feliz por cair nas suas boas graças. – Por causa da propriedade, quer dizer. – Por causa das possibilidades escandalosas. – Mr. Trevor? Que disparate. Nem sequer há nada de escandaloso nisso. Seria como olhar para uma estátua. Ou uma fonte. Ou uma jarra. Um artista apenas analisa a forma e não alimenta especulações lascivas quando está a trabalhar com base num modelo real. – Como sabe isso, se nunca o fez? – Ele não acreditava minimamente que os


artistas nunca se sentiam tentados pelos seus modelos. Essa parte de um homem não desaparecia quando ele pegava num pincel. – Simplesmente, sei. Já tive a experiência de desenhar outras coisas e da forma como a mente trabalha enquanto está tão absorvida por algo. – Que outros conselhos lhe deu Mary Moser? – Relembrou-me que o matrimónio e a arte não se dão bem juntos. Já me tinha escrito o mesmo quando era mais nova e não acreditei nela. Estava certa de que seria diferente comigo. Depois, quando tive de cuidar do meu irmão, trabalhei cada vez menos nos meus quadros e acabei por parar completamente. Estava demasiado ocupada. Não tinha qualquer tempo que sentisse que era só meu. Passa-se o mesmo quando alguém se casa. Os deveres forçam o afastamento de todas as outras ambições. – Eva não parecia nada triste. – Quem diria que o meu estado civil no singular seria vantajoso para os meus planos. Gareth não viu com bons olhos a forma como ela aceitara o ditame de Mary Moser, por razões que não foi capaz de identificar. – Decerto que podia ser diferente, tal como pensou quando era mais nova. Com o homem certo isso podia acontecer. – Espero que não vá sugerir Mr. Trevor de novo. – Queira Deus que não. Provavelmente dar-lhe-ia dez filhos, nenhum serviçal e teria ciúmes do seu talento. Teria de ser um homem que estivesse a par do seu plano e o aceitasse. – Parece quase sério, Gareth, e deveras sentimental para um homem tão cínico em relação ao casamento e à sua finalidade. Ele parecia efetivamente sentimental. – Existem poucos homens como aquele que descreve. Além do mais, se por acaso travasse conhecimento com um desse tipo, ele teria de ser assaz abastado para me desobrigar dos deveres que a maior parte das mulheres têm a seu cargo, exceto as mais ricas. – Ergueu o rosto para o sol que se punha. – E ainda assim... se pensar nisso, as mulheres com maior liberdade para a arte são mulheres como a sua mãe. Ela não tinha qualquer outro dever para além de manter o seu pai feliz e nem para isso era solicitada o tempo inteiro. Mulher inteligente. Tinha razão, é claro. Para uma mulher que estivesse à procura quer de segurança material quer de independência, ser amante de um homem abastado era uma situação ideal. Isso não queria dizer que tencionava concordar com ela. Não após aquele maldito conde de Whitmere ter referido que precisava de companhia depois de a ter conhecido. – Não me parece que a Eva fosse feliz com esse tipo de vida – declarou. – É


demasiado picuinhas e tem demasiado receio dos riscos, os quais, decerto se recorda, incluem acidentes como eu. Ela procurou a mão dele e apertou-lha. – Não creio que nenhum pai se fosse arrepender de um acidente como o Gareth. Um tossir discreto vindo de trás interrompeu-os. Ele soltou a mão de Eva e depois voltou-se e viu Mr. Geraldson parado junto à casa, posicionado discretamente de forma a não poder escutar a conversa entre ambos. Eva voltou-se igualmente. – Acha que ele me vai tratar com condescendência a respeito deste vestido ou referir-se a ele como um ato de caridade? – Nada disso. Terá uma postura correta em todos os sentidos, muito formal e o respeito estará presente em cada uma das suas palavras. – Gareth pôs-se de pé. – Ainda me sinto dividida. Não tenho a certeza do que fazer. Se o deixasse levar a sua avante, o orgulho iria fazê-la recusar. Isso iria poupálo a alguns dissabores, mas tornaria a noite mais pobre para ela. – Vou decidir por si – afirmou. – Aceite o vestido e vá ao baile com estilo, Eva.


CAPÍTULO 20

passou num turbilhão de acontecimentos. Eva mal teve tempo para Asemana desenhar, entre excursões até à City e visitas à modista. Madame Tissot, a modista em voga recomendada por Mr. Geraldson, por norma contava com várias semanas para concluir um vestido de baile. Para um duque, porém, ela abria uma exceção. Três das suas costureiras foram colocadas ao serviço daquele vestido em particular assim que Eva escolheu o estilo e o tecido. Nas provas diárias, ela assistia ao conjunto a ganhar forma. Sarah e Rebecca insistiram em acompanhá-la sempre. A excitação de ambas superava a dela. Percebeu que todas estariam presentes naquele baile, ela em pessoa, e elas nas suas imaginações. Não via muito Gareth. Ele acompanhou-os ao teatro uma das noites e o seu irmão, Lorde Ywain, juntou-se a eles. Organizou a visita de todos à magnificente biblioteca de um marquês que ele conhecia e à coleção de arte de um conde. Houve um serão em que foram todos até aos Vauxhall Gardens e se sentaram numa pequena divisória a comer presunto antes de passear pelos espaços e ver os diferentes entretenimentos e fogos de artifício. Alguns dias, porém, apenas se encontravam ao jantar. Finalmente, no dia anterior ao baile, teve algum tempo para si. Depois de regressar da inspeção final do vestido junto de Madame Tissot, escusou-se de prosseguir com uma ida às compras com Sarah e Rebecca e voltou para casa. Uma vez no quarto, afastou os cortinados tanto quanto possível para a serena luz do norte preencher a divisão. Juntou alguns objetos numa natureza-morta que compôs numa mesa próxima


de uma das janelas para que a luz incidisse na composição do lado esquerdo. Depois de se instalar, começou a desenhar. Dali a nada, as suas observações absorveram-na e os movimentos suaves do lápis no papel fizeram-na entrar numa espécie de transe. – Já chegou? Ergueu o olhar. Gareth estava junto ao seu ombro. – O vestido? Está cá? Tinha esperanças de o ver. – Vai ser entregue amanhã de manhã. – Terei de esperar até amanhã à noite, nesse caso. – Ele deu um passo em frente e inclinou a cabeça para ver o desenho dela. – É só aquela natureza-morta. Não é complicada, mas uma forma é uma forma e a prática nunca é de mais. – Creio que isso é verdade. Ele deixou-se estar junto do ombro dela, a observá-la. Ela sentiu a sua presença imediatamente atrás da cadeira. O calor dele, a sua energia... Enquanto Gareth os acompanhava pela cidade, havia outras pessoas ao lado, que de certa forma diluíam aquele efeito ou pelo menos a distraíam dele. Agora, no silêncio, sentiu o ar tornar-se pesado com palavras que ficavam por dizer e desejo não confessado. Perguntava-se se ele também sentia o mesmo. Talvez fosse diferente para ele ali em Londres, onde estava no seu elemento. Tinha muitos amigos ali. Cumprimentavam-no no parque e por toda a cidade. Os homens paravam para trocar algumas palavras e as mulheres sorriam-lhe à distância. O charme dele abria muitas portas, até mesmo para ela. Duvidava que todos os que visitassem Londres pudessem ter o privilégio de conhecer a coleção de belas-artes de um conde ou folhear os inestimáveis manuscritos com iluminuras de um marquês. Esforçou-se por se concentrar no desenho, mas a proximidade dele atormentava-a. – Creio que ainda não lhe agradeci pelo vestido. – Não fui eu que lho ofereci. – Só o aceitei por sua causa. Foi deveras empolgante pedir para me fazerem um vestido e ser-me dito para não me preocupar com o custo. Foi amável da sua parte fazer tudo isso por mim. – Vou sentir prazer em vê-la nele, Eva, e só lamento que o presente não possa ter vindo de mim. Porque isso iria insinuar determinadas coisas, ainda que ambos soubessem que agora já não existiam motivos para insinuações. As regras da sociedade


tornavam tudo uma verdadeira trapalhada. Ela pousou o lápis e fechou o caderno de esboços. Não conseguia aguentar ficar ali sentada daquela forma, com ele tão próximo de si. Em consequência, Gareth afastou-se uns passos dela. – Ainda há tempo para uma volta no parque, creio eu. – Ele aproximou-se da porta do quarto. – Gostaria de me fazer companhia? – Não faça isso. – As palavras irromperam sem pensar. – Por favor, não saia. Ele baixou o olhar para a mão, que agarrava o puxador da porta. – Apanhou-me desprevenido, Eva. – Eu sei. Mas não quero que se vá embora. Se o fizer, ficarei aqui sozinha, a pensar, a lembrar-me... – Ela pôs-se de pé e pousou o caderno e o lápis na cadeira. – O que quer de mim? – Ele parecia exasperado. – Não tenho a certeza. Mas não quero passear consigo com todas aquelas pessoas por perto. Estou sempre a partilhá-lo agora. Tivemos pouco tempo juntos, em comparação com aquele que tínhamos em Langdon’s End. Ele voltou-se para ela. – Nessa altura, éramos amantes. É assim que as coisas são quando se é amigo de alguém. Vemo-nos com frequência na companhia de outros amigos. Ela aproximou-se dele. – Tem de ser dessa forma? Não podemos ter tempo juntos como aquele que tivemos no jardim na semana passada? O meu tempo fica mais pobre quando não está e só tem metade da alegria quando estão outros connosco. – Mais pobre? Mais pobre? – Ele começou a percorrer o quarto com passadas longas. – Eva, exigiu-me uma promessa e eu mantive-a. Porém, enlouqueço quando estou consigo. Será que consegue imaginar o inferno que isto tem sido? Eu não sinto apenas falta da sua companhia, diabos. Eu desejo-a ardentemente. Vivo louco de desejo enquanto faço o papel de guia na cidade e de bom vizinho. Por isso, não me peça para lhe dar atenção em privado e proporcionar-lhe uma fonte de distração para o seu tempo não ficar mais pobre. – Eu não preciso de distração. Não é isso. Eu preciso... – Estendeu o braço e juntou a palma da mão ao peito dele. Calor humano. Precisava de calor humano. Fechou os olhos e saboreou a conexão que se criara sob a mão. – Eva, corre o sério risco de ser tomada à força, diabos levem a honra. Retire a mão e afaste-se. Ela abriu os olhos e olhou para a mão. – Não a posso retirar. Está presa. – Ela moveu-a ao longo do peito dele, sob o


casaco. – Oh, veja. Consegue mexer-se. Não está completamente presa. Está apenas demasiado pesada para a conseguir erguer. – Ela subiu-a, acariciando o ombro dele, sentindo todos os ossos e músculos que lhe davam uma forma tão apelativa. Ele tolerou o toque dela, exibindo mais estoicismo do que ela desejava. O que tinha acontecido ao «diabos levem a honra»? Aproximou-se um pouco mais para que o cheiro dele lhe preenchesse os sentidos e a mente. Os lábios dela pairavam a poucos centímetros do seu queixo, atormentando-o. Eva arrastou a mão entre os dois ainda mais para baixo. A barriga dele ficou tensa quando ela passou sobre ela. A ereção dele roçou as costas da mão dela. Ela fechou os dedos à sua volta através das calças. – Maldição, Eva. – Os dedos dele enrolaram-se no cabelo dela, segurando-lhe a cabeça contra o peito. Virou-lhe a cabeça para o rosto se erguer e tomou-a com um beijo repleto do desejo ardente que fora referido. Ele latejava na mão dela, tornando-se maior e mais duro. Ela abraçou-o com o outro braço e deslizou os dedos para baixo até estes contornarem a protuberância firme das suas nádegas. A excitação rompeu à sua volta intensamente, permeada pelo contentamento de regressar a um local familiar. Mais uma vez. Pouco mal pode advir disso. Os corpos de ambos entrelaçaram-se, unidos por uma paixão temerária, beijos desesperados e abraços ávidos. Ela queria mais. Mais proximidade. Puxou o casaco dele para baixo e ele despiu-o com um encolher dos ombros. As suas peças de roupa também a incomodavam. Queria que ele a tocasse completamente, sentir a pele dele junto da sua e o corpo dele a dominar por completo o dela. Libertou um braço para tentar desapertar o vestido nas costas. – Não há tempo para isso. – Ele empurrou-a para ela cair em cima da cama. Ajoelhou-se ao lado e levantou a saia e a combinação dela. – Venha para junto de mim. Mais perto. Sabia o que ele tencionava fazer. – Não. – Sim. – Eu vou gritar. – Tape a boca. – Ele próprio a deslocou, erguendo as ancas dela e posicionando-as junto à ponta da cama. Eva não resistiu. Não queria fazê-lo. Afastou os joelhos e esperou, sufocada, pelo primeiro beijo. Toda ela aguardava, reclamando, ansiando, latejando. Quando este chegou, soltou um resmungo de alívio e depois de espanto com a forma como as sensações destruíram todos os sentidos. Gemeu, mais uma vez.


Os gemidos transformaram-se num grito suplicante. Com a última réstia de sanidade, cobriu a boca com a palma da mão. Não fez barulhos audíveis depois disso. Estes ficaram dentro dela. Tornando-a frenética. O prazer não parava de aumentar e os olhos pareciam sair das órbitas com a intensidade das sensações. O grito de êxtase permaneceu igualmente dentro dela, multiplicando o seu efeito, prolongando o auge intenso do delírio. Eva retornou ao mundo e abriu os olhos. Gareth estava de pé diante dela, com olhos ardentes, excitado, dominando-a por completo com o poder do seu sexo. Ela soergueu-se com a ajuda dos braços e estendeu a mão para soltar as peças de roupa dele da cintura para baixo. Quando estas caíram no chão, ela acariciou-lhe o falo. – Beije-me. Percebe o que quero dizer com isso? Durante um instante, ela não percebeu. A seguir, ergueu o olhar para ele. Ele virou-a ao contrário. – Em todo o caso, já estou demasiado avançado. – Ele não fez mais pedidos. Não deu mais instruções. Moveu-a como quis, até ela ficar ajoelhada, de costas baixas e ancas erguidas. Subiu as roupas dela de novo até lhe expor as nádegas e as pernas. Ele fê-la esperar. Acariciou-lhe as nádegas. – É um inferno desejá-la assim tanto. – Pressionou a ereção entre as coxas dela, mas não no interior dela. Tocou e fez pressão naquele ponto deveras sensível. Ela cerrou os dentes para tentar controlar a trepidação da vontade que bramia em todo o corpo. – Quando estiver a dançar no baile, lembre-se de como se sente neste momento, Eva. Lembre-se do bastardo que consegue fazê-la chorar de desejo. Ele entrou nela, atormentando-a com a sua lentidão. Atormentou-a uma e outra vez até ela chorar realmente, silenciando os sons com a roupa da cama. A seguir, a delicadeza desapareceu e ele possuiu-a da forma mais intensa que se lembrava até outro êxtase lhe rebentar em todo o corpo num cataclismo de sensações vociferantes. Eva deixou-se cair na cama. Ele não. O seu torpor foi invadido por sons. Ergueu o olhar e viu-o a trancar a porta. Regressou e sentou-se na cama. – Malditas botas – resmungou entre dentes. Puxou-as para fora. Despiu a camisa e as calças e depois voltou-se e desabotoou-lhe o vestido. Quando estavam os dois nus e deitados lado a lado, ele começou de novo a paixão.


Gareth deitou-se de costas depois de as convulsões de prazer abrandarem. Respirou fundo e abriu os olhos. Sombras longas dançavam na parede mais próxima. A luz do lado de fora das janelas mostrava o crepúsculo a assomar a este, mas raios alaranjados inflamavam o céu a ocidente. A janela emoldurava todo aquele cenário como se fosse um quadro. Ao lado dela, de costas e com a cabeça voltada para o lado oposto, Eva observava o mesmo, como se estivesse a memorizar a cena. Ele voltou-se de barriga para baixo e colocou um braço por cima dela. Ela virou a cabeça para ele. Os narizes de ambos quase se tocavam. – Obrigou-me a seduzi-lo de novo – declarou ela. – Não me parece justo. Eu é que devia ser seduzida. – Eu não quebro as minhas promessas, a não ser que seja forçado a isso, como hoje. – Mas o Gareth é que devia ser o malévolo, não eu. É o Gareth quem tem uma determinada reputação. – Não de um libertino. Não de um canalha. – Não. De irresistível. Parece-me que tornei a provar a veracidade disso. – Não me deite as culpas, se sabe que não deve ter o que quer e decide agarrálo, apesar disso. Eva voltou a cabeça para olhar para as janelas de novo. – É agradável estarmos assim deitados. Suponho que não o podemos fazer durante muito mais tempo. Ele sentia-se demasiado confortável para se mexer. – O jantar é só daqui a algumas horas. Ele estava prestes a fazê-lo quando ela falou de novo: – Estou um pouco receosa com a noite de amanhã. Sinto-me mais inquieta a cada hora que passa. Mesmo com aquele vestido, posso não ser capaz de me adaptar a um acontecimento tão elegante. Ela tinha medo de não servir. Isso fê-lo lembrar-se da avaliação de Whitmere em como ela serviria perfeitamente. – Quando olha para um espelho, não sei o que vê, Eva. Não é aquilo que eu vejo desde que quase a atirei ao chão com o meu cavalo naquele dia, isso é óbvio. – O que viu naquele dia, para além de uma solteirona zangada no meio de uma poça de lama? – Vi uma mulher que se conhecia bem a si própria e que teve a presença de


espírito para repreender um desconhecido. Uma mulher encantadora com olhos que mudavam de cor. Uma senhora corajosa que não mentiu a si mesma a respeito das ideias muito pouco próprias de uma senhora que lhe entraram na cabeça durante aquela troca de palavras. – Não se devia ter apercebido dessa última parte. Pensei que tinha sido muito boa a esconder isso. – Se os meus próprios pensamentos não tivessem seguido o mesmo caminho, podia ter sido bem-sucedida. Mas quando duas pessoas partilham uma atração sexual tão poderosa e tão imediata, é impossível escondê-la. Ela encostou os lábios aos dele. – É igualmente impossível negá-la, ao que parece. É muito injusto que tenha de o fazer. Na sua mente, Gareth começou a compor palavras tranquilizadoras de que não esperava que ela cometesse aquele lapso de novo, mas uma sensação deliciosa de descanso conduziu-o ao silêncio. Isso e o facto de que estaria a mentir.

A luz do norte, serena, agora acinzentada e cada vez mais carregada, mostrava o perfil de Gareth com uma clareza intensificada. Formaram-se sombras subtis, quase indistintas, cuja imitação exigia um leve toque com o giz. Eva ocupava a cadeira que puxara para o lado da cama, mais perto dos pés, para se poder desafiar com uma perspetiva mais profunda. Gareth estava deitado de barriga para baixo, destapado, com o braço que a abraçara ainda estendido por cima do espaço onde estivera deitada. A folha do caderno de esboços mostrava o perfil dele e naquele momento estava a tentar tornar a figura real. Examinou longa e afincadamente o rosto dele e, a cada momento que passava, a artista desaparecia para dar lugar à mulher. Via aquele rosto por cima de si no meio do seu próprio frenesim de prazer, severa e sensual, não calma e quase suave como naquele momento. Via uma expressão amável, com um sentido de humor fruto da intimidade, nos olhos dele quando a arreliava. Olhou para baixo e deu-se conta de que não fazia quaisquer marcas no papel há já algum tempo. A luz iria desvanecer-se em breve e teria de o acordar para abandonar o quarto. Terminou a cabeça, mas não em pormenor. Desenhou de modo eficiente para ficar com o suficiente para evocar uma memória do quanto ele parecia belo naquele momento. A seguir, passou para os ombros, esforçandose para reproduzir a complexidade daquela parte da anatomia ao longo das zonas mais claras e das sombras.


Tinha concluído os ombros e grande parte das costas quando a luz se tornou inútil. Pousou o caderno de esboços e o giz na mesa onde estava a naturezamorta e foi até junto da cama. A seguir, tocou-lhe no ombro. – Chegou a altura de ir. O jantar é daqui a menos de uma hora. Ele soergueu-se na cama, esfregou os olhos e estendeu a mão para agarrar na roupa. Dez minutos depois parecia o mesmo homem que entrara no quarto. Elegante. Confiante. Irresistível. Ia parecer o mesmo na noite do dia seguinte, mas melhor. E ela ia entrar naquele baile guiada pelo braço dele. O seu presente para ela seria uma noite de que se lembraria para sempre, um presente que poucas mulheres poderiam receber. Mas a memória que jamais desapareceria seria a daquele momento, enquanto o observava a alisar as dobras das calças na escuridão do quarto. Jamais se esqueceria da emoção que se apoderara de si. Desejo, era aquilo que ele lhe chamava. Tempestuoso e irresistível, mas, ainda assim, apenas desejo. Transitório. Não o amor que os poetas descreviam. Isso era uma ilusão, inventada para embelezar a luxúria ignóbil. Talvez. Faltava-lhe experiência para contra-argumentar ou reprimi-lo e controlá-lo. Era uma coisa maldita, o coração humano. Não fazia o menor sentido, nem se deixava disciplinar. Levava alguém a amar aquilo que o podia destruir e não sabia a diferença entre alegria e sofrimento.

Na manhã seguinte, depois de a conversa com Clifford não resultar em nada de interesse, Gareth partiu a cavalo rumo a Ramsgate com Ives para falar com o proprietário da empresa de transporte que levara os quadros para o norte do país. O homem parecia razoavelmente honesto e ele e Ives concordaram que se alguma coisa errada acontecera em trânsito, era provável que ele não estivesse envolvido. Quando regressaram a casa a meio da tarde, esta estava tranquila. Não restavam dúvidas de que os preparativos para o baile estavam em marcha. Duvidava que Eva deixasse os aposentos de Sarah antes da altura de entrarem na carruagem. Os seus próprios preparativos teriam de esperar. O mordomo informou-o de que Lance lhe deixara uma convocatória para se dirigir à sua presença. Ele subiu e encontrou Lance a ser preparado para o dia. Estava outro homem no quarto de


vestir, a bebericar vinho com um ar impaciente. Gareth conhecia-o. O visconde Demmiwood era amigo de Lance até se ter casado e ter colocado de parte os seus hábitos mais estouvados e devassos. Os últimos anos não tinham sido generosos com o visconde. Enquanto Lance aparentava ser um jovem mais velho, Demmiwood parecia-se mais com um velho ainda jovem. Uma cintura avantajada sinónimo de uma vida confortável fazia esticar o seu colete. Os caracóis loiros que lhe caíam para a frente por cima da testa não conseguiam ocultar umas entradas visíveis de cabelo. Naquele momento, a sua testa exibia uma tonalidade rosa e uma camada de suor que indicavam o desconforto que o visconde estaria a sentir. Não parava de cruzar e descruzar as pernas. Lance interrompeu o ato odiado de fazer a barba para saudar Gareth. – Já conheces o Demmiwood. Ele contou-me uma história extraordinária. Disse-lhe que tu e o Ives deviam ouvi-la, mas o lacaio que enviámos aos aposentos dele tornou a dizer que ele não estava em casa. – Fomos ambos para fora da cidade. Ele já deve estar de volta. Manda-o chamar de novo. – Não tenho tempo para isto – afirmou Demmiwood. – Tenho de me ir preparar para o baile DeVere. – Tal como o Gareth – respondeu Lance. – Não há tempo a perder, nesse caso. Conte-lhe, Demmiwood. O visconde pousou o vinho. Gareth concentrou nele a sua atenção. – Há dois dias, um vendedor de quadros que tem a reputação de, por vezes, deitar as mãos a quadros de excelente qualidade, escreveu-me e pediu-me para me vir visitar. Tinha uma coisa muito especial, disse ele. Cuidadosamente escolhido. Foi deveras reservado, como se não se atrevesse a ser específico porque outros podiam ficar ao corrente antes de mim, caso os pormenores fossem conhecidos. Pelo empolgamento dele, intuí que devia ser um Gainsborough. Eu, tal como o meu pai antes de mim, sou amplamente conhecido por ser um colecionador do seu trabalho. Encontrar obras que não sejam retratos é difícil, claro. – Nesse caso, ficou interessado. – Certamente que sim. Posso não ter o olho do meu pai, mas sabe-se que sou um conhecedor. Na realidade, Demmiwood era conhecido por ser um alvo fácil. A sua prontidão em gastar bom dinheiro em trabalhos sofríveis era do conhecimento geral, pelas piores razões. Reunira uma das melhores coleções de arte de


segunda qualidade de Inglaterra. Gareth já se sentira tentado a desfazer-se junto dele dos restos menos satisfatórios de uma das coleções cuja venda fora mediada por si, mas não o fez por respeito à amizade antiga que Demmiwood mantinha com Lance. – Então, encontrei-me com esse homem. Ele mostrou-me isto. – Demmiwood estendeu o braço para o lado do divã no qual estava sentado e ergueu um pequeno quadro com uma moldura de gesso dourada. – «Gainsborough», declarou ele. Numa situação normal, ficaria radiante. Porém, bastou olhar para ele uma vez para saber que havia qualquer coisa errada. – É uma falsificação, isso é certo. Uma falsificação muito boa, mas uma falsificação, ainda assim. – Eu disse-lhe que o Gareth era bom – declarou Lance. – Ele descobre um problema a quinze passos de distância. – Não é apenas uma falsificação – declarou Demmiwood, com uma agitação crescente. – É uma cópia. O original costumava estar pendurado na galeria da minha propriedade. Este é o meu pai. – Ele apontou para uma das figuras. – Este é um retrato dele e dos irmãos quando eram mais novos. Gareth aproximou-se, pegou no quadro e foi até junto de uma janela para o examinar à luz do sol. – É uma coisa dos diabos – disse Demmiwood. – Ser-nos oferecida uma cópia falsificada do nosso próprio quadro! – Acusou o vendedor de quadros de tentativa de fraude? – Não o fiz. Engoli a minha afronta e pedi-lhe que o deixasse comigo durante alguns dias enquanto decidia. Não o quis alertar para o facto de que descobri o esquema dele para embarcar à pressa num paquete qualquer. – Felizmente que não o alertou. Disse que este quadro costumava estar pendurado na sua galeria... – A casa senhorial do Demmiwood fica no Sussex, pois claro – afirmou Lance, com uma expressão eloquente. – O Gareth sabe tudo acerca dos quadros desaparecidos, Demmiwood. – Então, talvez não fique surpreendido por saber que o original fazia parte deles. Foi embalado e enviado para longe para ficar a salvo, ou assim pensámos todos. E agora, isto. – A mão dele fez um gesto floreado na direção do quadro que estava nas mãos de Gareth. Gareth passou o polegar ao longo do canto inferior esquerdo. Ainda estava pegajoso. O quadro não fora pintado há muito tempo. O mais provável era que tivesse sido há apenas alguns meses.


O que significava que quem quer que fosse que tivesse pintado aquilo tivera o original à sua disposição muito recentemente. Fora o primeiro erro de quem quer que fosse que roubara aqueles quadros. Com alguma sorte, seria tudo o que era preciso. – Quando é que esse vendedor de quadros espera ter o quadro de volta? – O quadro ou o meu dinheiro deveriam chegar às mãos dele amanhã. Perguntei-me se o podia obrigar a dizer-me o paradeiro do original, mas depois de ponderar essa hipótese, duvidei que ele sequer admitisse esse crime, muito menos dar informação que pudesse fazer com que fosse degredado. Gareth voltou a pousar o quadro ao lado do divã. – Dê-me o nome dele, por favor. E deixe isto aqui por agora, caso seja preciso. Já na posse daquela informação, Gareth foi para os seus aposentos e escreveu um bilhete a Ives informando-o da necessidade de fazer uma visita a um vendedor de quadros na manhã seguinte. Depois disso, leu durante duas horas, até o criado de casa que lhe estava destacado na Casa Langley chegar para o ajudar a vestir-se. Às dez da noite, deixou os aposentos, desceu as escadas e serviu um pouco de xerez numa divisão contígua ao átrio de entrada. Não teve de esperar muito. Dali a nada, um contido alvoroço sussurrante ecoou pelas escadas. Ouviu risinhos, murmúrios femininos e um «Cabeça erguida agora!». Foi até ao átrio de entrada e olhou para a escadaria. Viu de relance seda de cor clara e reflexos tremeluzentes do cabelo ruivo de Sarah e do rosto jovem de Rebecca. Deram a volta ao patamar das escadas e continuaram a descer. Eva estava resplandecente num vestido de seda de tom róseo adornado com pequenas pérolas e uma renda de valor inestimável. Um adorno condizente com duas penas enfeitava-lhe o cabelo castanho encaracolado e um xaile aveludado estava enrolado em baixo nos braços. Ela pareceu descer a flutuar para ir ao seu encontro. Bela. Com uma postura digna de uma rainha. Ela também sabia isso. Irradiava contentamento. Ele tomou-lhe o braço. – Está assombrosamente bela, Eva. Quando ela entrou na carruagem, reparou em algo inesperado. Entrelaçado nos caracóis, quase escondido pelo adorno de penas, uma mancha de cor contrabalançava todos os brancos e cremes, muito à semelhança da forma como algumas violetas fazem com que um jardim noturno branco pareça muito mais rico. A artista juntara uma fita simples ao cabelo, de modo a variar a paleta de


cores somente o indispensável para evitar parecer previsível. Uma fita de cor lilás.


CAPÍTULO 21

E

va conseguiu não ficar boquiaberta e soltar uma exclamação de espanto como uma servente, mas o baile DeVere revelou ser tudo o que qualquer mulher podia sonhar num baile. As velas, os vestidos, os músicos, o salão de jantar: memorizou tudo o que viu para poder contar a Sarah e Rebecca. Gareth reivindicou a primeira dança, na qualidade de seu acompanhante. Ela sentiu tanto prazer nisso que não conseguiu parar de sorrir. A seguir, Gareth apresentou-a a outras pessoas. A bastantes outras pessoas. Alguns dos cavalheiros também a convidaram para dançar. Depois do quarto, procurou Gareth, mas não o conseguiu encontrar. Decidiu ir procurar uma cadeira perto da parede. Mal se sentara quando se aproximou outro cavalheiro. Ela já o conhecia. Era o conde de Whitmere, ao qual fora apresentada no seu primeiro dia em Londres. – Miss Russell! Bem me parecia que era a senhora. – Fez-lhe uma vénia e depois olhou em volta. – Estou a ver que o Aylesbury acabou por não vir. – Não. Foi Mr. Fitzallen quem me acompanhou. – Para depois a abandonar? Bom, o que seria de esperar? Ele tem muitas amizades a quem dar atenção, se é que me percebe. – Ele sorriu de forma confidencial. E insinuadora. – O Aylesbury era da opinião que lhe devia fazer a vontade esta noite, mas escolhi fazer a minha própria vontade. Estou deveras contente por isso. – Mais um sorriso, repleto de lisonja eloquente. Aquele conde estava a namoriscar com ela. Para o conde de Whitmere, namoriscar incluía falar bastante sobre si próprio. Ela deixou-o fazê-lo, perguntando-se se existiria alguma etiqueta social especial


para evitar a companhia de um par do reino. – Sente-se mais repousada? Gostava de dançar? – perguntou ele finalmente. – Seria uma grande honra para mim. – Mr. Fitzallen... – O Fitzallen deve ter cinquenta ex-amantes aqui, minha cara senhora. Por razões que desconheço, todas elas continuam suas amigas. Atrevo-me a dizer que não o voltará a ver até a noite chegar ao fim. – Estendeu-lhe a mão. Ela aceitou-a e juntaram-se aos pares da dança seguinte. Eva sentiu alguma obrigação de participar mais ativamente na conversa. Enquanto a contradança os juntava, fez-lhe algumas perguntas a respeito da sua propriedade. Ele colocou-lhe algumas acerca da sua família. Quando a dança chegou ao fim, ele já não a aborrecia tanto quanto antes. Para sua surpresa, um dos outros homens a quem fora apresentada convidou-a para uma dança. Lorde Whitmere cedeu o seu lugar, com um ar pesaroso. – Talvez a veja mais tarde, Miss Russell. Daquela vez, enquanto dançava, reparou que Gareth fazia o mesmo. A sua parceira nunca tirou os olhos dele. A senhora era uma mulher de cabelo muito claro de uma beleza incrível, e o seu olhar comunicava demasiado para um local público. A expressão dela é igual àquilo que eu sinto, por vezes. Aquilo fê-la lembrar-se do comentário de Lorde Whitmere a respeito das amantes de Gareth e da altura em que Jasmine Neville descrevera como as senhoras bem-nascidas jamais queriam abrir mão dele. De súbito, não se sentiu mais esplendorosa ou bela, mas assaz vulgar. E igualmente pateta. O que vivera com Gareth não era absolutamente especial para ele. Ela era apenas mais um caso amoroso numa longa fila deles, desfrutado por um homem que pressupunha vir a desfrutar de muitos mais. Que estúpido da parte dela ter-se esquecido disso. Um jovem simpático, próximo da idade dela e com uma aparência muito jovem, pensou Eva, pediu-lhe para a acompanhar durante o jantar. Por isso, Eva sentou-se ao seu lado enquanto ele a presenteava com uma conversa a respeito dos seus cavalos. Depois disso, enquanto estava sentada num banco perto dos músicos a ouvilos a tocar, Lord Whitmere voltou a convidá-la para dançar. Daquela vez, foi diferente. Não conseguia identificar porquê ou como, mas a atenção dele parecia mais focada nela. A conversa continuou a ser de circunstância, mas não conseguia livrar-se da sensação de que estava em curso algum tipo de avaliação, como se ele procurasse determinar se Eva estava à


altura e era merecedora do seu tempo. O olhar dele deixava-a pouco à vontade, ainda que se mostrasse tão amigável e atencioso como antes. Quando estiver a dançar no baile, lembre-se de como se sente neste momento, Eva. Lembre-se do irmão bastardo que consegue fazê-la chorar de desejo. Ela lembrava-se, e uma sensação nostálgica fervilhante aqueceu-lhe o sangue nas veias. Porém, sempre que via Gareth, ele estava a conversar com outra mulher, deixando claro que o seu sangue aquecia por muitas mulheres e não apenas ela. – Vai manter-se em Londres muito mais tempo? – perguntou Lorde Whitmere quando a conduzia de volta ao seu lugar, depois da dança. – Não, pelo contrário, muito pouco tempo. – Que pena. Com um pouco mais de tempo, creio que a senhora e eu nos podíamos tornar grandes amigos, Miss Russell. – O sorriso dele, confiante e condescendente, dizia muito mais do que isso. Ele referia-se a uma amizade semelhante àquela que Gareth e ela mantinham. O conde tinha intenções desonrosas. Eva quase se riu com aquelas palavras. E com o choque que sentiu. Quem era ela para se sentir insultada? Já abandonara a sua virtude, num gesto ousado, e nem sequer se sentia culpada por causa disso. Será que ele adivinhara isso? Será que considerava mulheres solteiras de uma certa idade um alvo fácil? – Decerto que a vida naquela vila que me descreveu não se compara com a excitação da capital durante a temporada social – declarou. – Peço-lhe que pondere ficar pelo menos mais uma semana. – Não gostaria de abusar da hospitalidade que me foi oferecida enquanto hóspede. – Ah. Sim, compreendo. Um pequeno problema, porém, para o qual existe sempre uma solução. Irei pensar no assunto. – Ele fez-lhe uma vénia, beijou-lhe a mão e afastou-se.

Whitmere estava de pé, junto dos músicos, fitando Eva com atenção. Por sua vez, Gareth fitava Whitmere com atenção. Aproximou-se dele. A atenção do conde estava tão complemente focada nela que não reparou em Gareth até este falar. – Disse-lhe que lhe dava uma tareia, Whitmere. Ela não é para si. – Então, para quem é? Para si? Vá dançar com ela três vezes e declare-se, se é isso que se passa.


Gareth olhou para Eva. Um jovem a quem Gareth a apresentara estava sentado ao lado dela naquele momento, falando com uma expressão séria. – Ela tem planos que não envolvem qualquer um de nós. – Eu, pelo menos, não me oporia a planos. Teria todo o prazer em ajudá-la com esses planos, na verdade. Eis o que receara, claro como água. A verdadeira tentação que homens como Whitmere representavam. Dinheiro suficiente para aliviar uma mulher, quer fosse sua esposa ou amante, de todas as suas obrigações para poder perseguir os seus próprios interesses. Eva já tinha compreendido isso. – Está a perder o seu tempo – disse ele, em todo o caso. – Ela é de origem nobre da cabeça aos pés. Se fizer uma proposta, vai insultá-la. É por isso que lhe vou dar uma tareia. Whitmere soltou uma pequena risada. – Nesse caso, dê a tareia que desejar. Diga-me só onde e quando. Porque, embora a proposta não tenha sido concretizada, as negociações foram postas em marcha e ela não pareceu minimamente insultada. Ficou surpreendida e curiosa, mas não insultada. Afastou-se, extraordinariamente satisfeito consigo próprio. Gareth dirigiu-se para junto de Eva. Queria repreendê-la. Avisá-la. Mas decerto que ela entendera qual era o tipo de interesse de Whitmere. – Concede-me a honra de uma dança, Miss Russell? – perguntou, interrompendo o sério e jovem Mr. Pierpont. Pierpont ficou ofendido e franziu o sobrolho. Gareth fitou-o, impassível, até este baixar os olhos. Eva aceitou a sua mão e ele conduziu-a na direção dos músicos. – Aquilo foi um pouco indelicado – comentou ela. – Ele estava a aborrecê-la. Tomei a atitude mais cavalheiresca possível. – Que simpático por ter reparado. Que ele me estava a aborrecer, isto é. A sua chegada provocou um sobressalto em ambos. Quase me tinha esquecido de que estava aqui. – Sempre que a procurei, a sua atenção estava tomada por outros. Ela exibiu um sorriso falso enquanto dançavam. Quando a música parou, escondeu um bocejo atrás da mão enluvada. – Sei que estes bailes por vezes duram até de manhã, mas gostaria de me ir embora quando o senhor quiser. – Nesse caso, vamos já, se quiser. Ele não tinha pena de se retirar. Acompanhou-a até ao átrio de entrada e depois saiu para dizer a um criado que chamasse a carruagem. Quando regressou, não


conseguia ver Eva. Depois, reparou numa ponta do vestido dela visível atrás de um pedestal que sustentava uma estátua antiga. Deu um passo para o lado e viu Eva profundamente absorta numa conversa com o conde de Whitmere.

Eva ergueu os olhos para o conde. O canto por trás da estátua não era completamente privado. Duvidava que tê-lo seguido até ali fosse julgado escandaloso. Porém, as implicações das palavras dele não podiam ser outra coisa senão isso. – Se estiver de acordo, escreva-me e eu peço ao meu secretário para se ocupar disso de imediato. Ela não sabia o que dizer. Se existia uma etiqueta social para uma situação daquele género, ninguém lhe tinha dito qual era. Nem tão-pouco ele fora explícito. Deixaria isso para o secretário, supôs ela. Sorriu de forma evasiva e contornou o pedestal. A cerca de vinte passos de distância, Gareth estava parado a observá-los. Lorde Whitmere agiu como se absolutamente nada incorreto se estivesse a passar. Fez-lhe uma vénia. Acenou com a cabeça a Gareth. A seguir, regressou ao baile. Gareth colocou o braço dela sob o dele e conduziu-a para o exterior. – Espero que ele não a estivesse a importunar atrás daquela estátua. – Não estou certa de que importunar seja a palavra certa. – Como assim? Instalaram-se na carruagem e esta começou a mover-se pela rua abaixo. – Ele tentou persuadir-me a ficar na cidade pelo menos mais uma semana ou quinzena. Ou mais tempo ainda. – Para poder desfrutar do prazer da companhia dele, suponho eu? – Sobretudo para aprofundar os meus estudos artísticos e conhecer artistas importantes e outros conhecimentos. Ao ouvi-lo falar disso, parece não haver outro sítio onde um artista gostaria de estar. – Existem vantagens nisso, é verdade. Não é uma vantagem insuperável. Nem tão-pouco os homens pedem a mulheres para ficarem na cidade apenas por razões altruístas. Penso que sabe disso. – Sim. – Para além de uma tensão marcada no tom de voz, Gareth não parecia zangado nem ciumento. É claro que não. Se ela não podia ter quaisquer expectativas em relação a ele,


Gareth também não as teria em relação a ela. Gareth seria muito justo no que a isso dizia respeito. Então, por que motivo lhe apetecia bater a Whitmere? – Atrás da estátua, ele estava a propor uma solução para o problema de exceder a minha estadia na casa do seu irmão. Uma alternativa, caso escolhesse ficar. Uma das suas propriedades está vaga. Uma casa do lado norte da praça Cavendish. Está disposto a arrendar-ma por uma renda muito razoável. – Razoável a que ponto? – Um xelim por mês. Devo escrever ao seu secretário, um tal Mr. Hoburn, a respeito disso. Silêncio. Ausência de fúria. Ausência de maldições. Gareth continuou sentado ao seu lado, como se estivessem a discutir o tempo. Após um instante, Gareth comentou, ainda naquele tom impassível e pouco comprometedor: – Um acordo vantajoso. Eva prendeu a respiração. Sentiu o coração agoniado, zangado e terrivelmente desapontado. A carruagem deteve-se diante da Casa Langley. Lutando contra as emoções, conseguiu manter a compostura ao entrar na casa com ele. No átrio de entrada, Gareth fez um gesto para o criado da noite sair. – Era uma das mulheres mais belas ali presentes esta noite, Eva. – Avançou para a beijar. Ela deu um passo atrás. – Sabia o que ele estava a ponderar a meu respeito, não sabia? Brincou a propósito de um homem me tentar comprar com uma carruagem, criados e joias, mas não se tratava realmente de uma brincadeira. Eva sentiu lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. Apesar de todos os elogios, sentiu-se insultada, mas por Gareth, não Whitmere. – Vocês os dois conspiraram em conjunto isto tudo? Contou-lhe o que se passou entre nós para que ele soubesse que eu já não era uma inocente? Estava a desempenhar o papel de proxeneta? A fúria que deflagrou nos olhos dele fê-la retrair-se. – É isso que pensa? – Não sei o que pensar. A expressão dele suavizou-se. Estendeu uma mão para ela. Eva desviou-se para fora do seu alcance e caminhou aos tropeções, cega pelas lágrimas. – Não me toque. Não faça isso.


Subiu as escadas a correr. No cimo do terceiro patamar, recompôs-se e limpou os olhos. A seguir, entrou na sala de estar de Sarah. Sarah dormitava numa cadeira. Rebecca adormecera com um livro nas mãos noutra cadeira. Com a entrada dela, acordaram ambas. – Foi maravilhoso? – perguntou Rebecca. – Conseguiste manter a compostura? Conheceste outros duques? O príncipe da Coroa estava lá? Sarah passou para um divã e bateu ao de leve nos estofos ao seu lado. – Tem de partilhar connosco todos os pormenores, todos os momentos e todas as palavras. Eva sentou-se e removeu o adorno de penas. A seguir, contou-lhes tudo o que se passara. Partilhou a sua noite com elas, mas não todos os pormenores, todos os momentos nem todas as palavras.

– Que coisa dos diabos – disse Ives enquanto ele e Gareth atavam os cavalos a postes na rua Strand. – Alguém se tornou descuidado. Ou impaciente. – Vamos ver se conseguimos extrair informação por meio do charme. – E se não conseguirmos? – Nesse caso, podes ameaçá-lo utilizando os teus melhores argumentos legais, enquanto eu faço o mesmo de forma ilegal. Ives fez um sorriso de orelha a orelha. – Fico chocado que insinues o uso de violência para obter informação. – Que belas palavras vindas de ti. Pelo menos, isto não passa de uma insinuação. – Ou assim o dizes agora. Nesse dia em particular, aquilo era verdade. Se aquele homem lhes desse o mínimo dos trabalhos, provavelmente daria uma tareia ao pateta de boa vontade. Queria dar uma tareia a alguém por qualquer motivo naquele momento. A discussão com Eva, a mágoa dela e as suas acusações não paravam de lhe ecoar dentro da cabeça. Achou que tinha sido terrivelmente magnânimo. Tentara não se intrometer no caminho dela e, por causa do seu sacrifício, Eva voltara-se contra ele e acusara-o de praticamente a vender a Whitmere. Entraram na pequena galeria de quadros de Mr. Longinus Parala. Esta era uma versão em miniatura de uma casa de leilões ou da galeria de uma grande propriedade e estava repleta de obras de arte. As paredes abarrotavam de quadros e caixas exibiam estampas e aguarelas. Gareth fingiu examinar estas


últimas, mas, na verdade, o seu olhar saltava rapidamente de um quadro para o seguinte. Ives avançou furtivamente para o seu lado. – Não vejo nenhum dos outros quadros aqui. E tu? – É difícil dizer. Este aqui pode ser uma cópia de um Constable. Havia um na lista. Quando um inventário indica tratar-se apenas de uma paisagem, porém, é difícil saber qual é. Um cavalheiro sentado numa requintada secretária de madeira marchetada num dos cantos ignorou-os durante um bom bocado. Depois, como se tivesse dado subitamente conta de que tinha companhia, voltou-se, ergueu os óculos do nariz afilado e pousou-os no cimo da cabeça, no meio do cabelo preto. Depois de ter esquadrinhado de forma crítica as pessoas e o vestuário de ambos, um sorriso irrompeu-lhe no rosto magro e alongado. – Estimados cavalheiros. Posso auxiliá-los de alguma forma? – Pôs-se de pé e aproximou-se de ambos. Vestido de cinzento dos ombros às peúgas, quebrava esse hábito nos pés, onde sapatos de cor escarlate formavam pontos coloridos surpreendentes. – O senhor é o proprietário? Mr. Parala? – perguntou Ives. – Sou, sim. – É italiano? O nome Parala? O seu sotaque sugere isso, assim como o seu apelido. – É, sim. Nasci em Génova. Ives sorriu. Gareth conseguia ler-lhe os pensamentos. Aquele Parala podia ter antepassados de Génova, mas sob o sotaque exagerado conseguia ouvir-se a cadência melodiosa dos nativos da Escócia. Talvez o vendedor de quadros acreditasse que os Demmiwood partissem do princípio de que um negociante de arte italiano conhecesse melhor o seu ofício, muito à semelhança da forma como se partia do princípio de que as criadas francesas das senhoras sabiam arranjar melhor o cabelo do que as inglesas. Ives foi até à porta e trancou-a. – Espero que não se importe. Gostaríamos de ter uma conversa privada consigo. – Para jogar pelo seguro, correu as cortinas da janela. Quando voltou, entregou o seu cartão a Parala. Parala olhou com atenção para o cartão na súbita penumbra da galeria. Voltou bruscamente a cabeça para fitar Ives. Depois, olhou para Gareth. – Ele é o irmão legítimo do duque de Aylesbury e um advogado que fez um juramento para fazer cumprir a lei – declarou Gareth, apontando para Ives. – Eu


sou o irmão bastardo, nascido fora da lei. Ele é o cavalheiro. Eu não sou. Ele vai fazer perguntas educadas. Se não gostarmos das suas respostas, de seguida vou fazê-las eu à minha maneira. – Que subtil – murmurou Ives. Os olhos de Longinus Parala arregalaram-se, alarmados. – Estou certo de que não sei... Isto é, parece-me que isto é altamente irregular. – Altamente irregular – tranquilizou-o Ives. – O meu irmão consegue ser demasiado impaciente e grosseiro. Bom, que outra coisa seria de esperar? Porque não se senta? Isto não vai demorar muito. Parala cometeu o erro de se sentar na cadeira de novo. Isso fez com que tivesse de olhar para cima na direção de Ives e Gareth, lá no alto. Ives perguntou-lhe acerca do Gainsborough oferecido a Demmiwood. – Um belo espécime – disse Parala. – Pensei nele de imediato. Acho o trabalho de Gainsborough demasiado sentimental, mas ainda existem pessoas que apreciam o seu estilo. – Onde o adquiriu? – Não tenho liberdade para o dizer. Ives olhou para Gareth. – Ele não tem liberdade para dizer. – Isso é terrivelmente inconveniente. Ives usou o seu tamanho para ameaçar o vendedor de quadros. – Liberdade. Uma palavra interessante. Se não nos disser onde obteve aquele quadro, a sua própria liberdade vai ser suspensa durante muitos anos. Pode até vir a acabar na forca. O visconde de Demmiwood está preparado para testemunhar sob juramento que o senhor lhe ofereceu uma falsificação. – Falsificação? Como se atreve ele a acusar-me disso? – Porque se trata de uma falsificação – respondeu Gareth. O olhar alucinado de Parala desviou-se dele para Ives e depois de volta para ele. – Parece muito convicto disso. – Estamos completamente convictos disso. – O quadro nem sequer está totalmente seco – disse Gareth. – Oh, céus. Oh, credo. – Parala cruzou os braços, empurrou os sapatos de cor escarlate sob a cadeira e encolheu o corpo contra o assento. – Não fazia ideia. Têm de acreditar em mim. Não havia uma assinatura, mas isso é comum. O estilo falava por si. – Onde o adquiriu? – perguntou Ives de novo.


O rosto de Parala retorceu-se de fúria. Voltou-se para a secretária. Pegou na pena e escrevinhou umas palavras. – O canalha. O patife. Pôr-me em risco dessa forma... Espero que ele seja enforcado. Aqui está o nome dele e a morada do estabelecimento. Chama-se Horace Zwilliger. Diga-lhe que foi o seu velho amigo Longinus que vos enviou.

– Temos de ir imediatamente – disse Ives assim que saíram da galeria de Parala. – Não podemos arriscar que este Zwilliger fuja. Gareth não queria ir imediatamente. Queria regressar à Casa Langley, ir à procura de Eva e dizer-lhe tudo aquilo que devia ter dito na noite anterior. Ives partiu a cavalo. Gareth seguiu-o de má vontade. Chegaram depressa ao endereço fornecido por Parala. Aquele revelou uma pequena casa colada a um bordel nos casebres miseráveis de St. Giles. – Aparentemente, não lucrou muito com os seus crimes – comentou Gareth. – Não te deixes enganar por isto. Já intentei processos contra senhores do crime que valiam centenas de milhares de libras e que se escondiam no meio desta imundície. É uma camuflagem excelente. Tens uma pistola? – Ives baixou a mão para a sela e ergueu uma pequena pistola do interior de um bolso que lá estava. – Ao contrário de ti, não cavalgo pela cidade armado. Mas, por outro lado, não atraio a mesma atenção que tu. – Gareth olhou em volta com uma expressão eloquente. Vários homens tinham parado no meio da rua e olhavam agora fixamente para Ives. – Eles conhecem-te. Ives desceu do cavalo com um salto e atou-o, sem fazer qualquer esforço para esconder a pistola. – Não tenhas receio. O sujeito do outro lado da rua escapou à corda da forca devido aos meus esforços. Quando a causa é justa, nem sempre intento processos. Uma vez que ele me deve a vida, julgo que pode vigiar estes cavalos para que não se afastem. Gareth assumiu a dianteira até à porta da casa. Ives continuou com a pistola na mão. Quando a porta se abriu, Ives entregou o seu cartão com uma mão enquanto apontava a arma com a outra. Escusado será dizer que lhes foi concedida a entrada. Mr. Zwilliger parecia estar próximo da meia-idade. Com olhos estreitos, uma constituição possante e cabelo negro, daria um bom proprietário de taberna. Ouviu as apresentações de ambos de forma bastante calma, mas nunca tirou os


olhos da pistola. Por fim, apontou para ela. – Isto será necessário, cavalheiros? Sou um amante da paz. Sei que a vizinhança não é a melhor, mas... – Existem provas de que cometeu um crime capital – disse Ives. – Sou sempre cuidadoso quando me encontro com esse tipo de homens. – Eu não cometi qualquer crime. Gareth falou-lhe do Gainsborough falsificado. – Partimos do princípio de que existem mais. Zwilliger reagiu com choque. – Isso é terrível. Estou arruinado. É verdade que eu negoceio obras de arte, por vezes. Não sou um grande perito, mas o meu espírito crítico é razoável. Tal como os demais, dependo da honestidade daqueles que me vendem artigos. Saber que fui enganado, defraudado e implicado de tal forma... – Ficou ruborizado, agitado e quase desatou a chorar. – Não o deixes sair daqui. – Gareth empurrou-o para o lado e entrou com passadas largas para uma sala de estar mal iluminada. Não havia qualquer quadro ali, nem sequer nas paredes. Inspecionou todo o piso térreo e depois subiu. Um monte de quadros estava encostado à parede de uma das divisões. Ele chamou por Ives. Quando Ives e Zwilliger chegaram, Gareth pusera de parte alguns dos quadros. Ives fitou-os e ergueu a pistola de novo. – Estes são... – Não. São falsificações. Todos eles. Mas, tal como o Gainsborough, julgo que estes são cópias daqueles que procuramos. – Fulminou Zwilliger com o olhar. – Onde estão os originais? – Juro que não sei do que estão a falar. Eu comprei esses quadros, assim como o Gainsborough e vários outros bonitos trabalhos a um homem de um estabelecimento bastante respeitado. Se são falsificações, então fui roubado. – Quantos são? – No total, foram-me vendidos vinte – declarou Zwilliger. O número pecava por defeito. Maldição. – Estes e o Gainsborough contam doze. Onde estão os outros? – Ele começou a examinar rapidamente outro monte. – Não estão aqui. Cinco foram vendidos a um vendedor de arte de Greenwich. Dois foram vendidos a um cavalheiro. E o último coloquei-o a leilão. Ives fez um gesto com a pistola.


– Não pode vender estes nem mudá-los de lugar. Vou enviar homens para os virem buscar daqui a algumas horas e é melhor que estejam aqui todos. É melhor que o senhor também esteja aqui. O magistrado irá decidir se é tão inocente como afirma. – Juro... – Vai ter tempo suficiente para jurar o que quiser. Mas agora diga-nos quem lhe vendeu estes quadros. – O proprietário de uma papelaria em Birmingham. Estava lá de visita à minha irmã e dei por acaso com a loja dele que tinha à venda todos estes quadros. Também tinha outros, mas não eram tão requintados nem da autoria de nomes tão ilustres. Comprei-os a todos, é claro. Londres é um mercado melhor para esse tipo de coisas. – Birmingham. Que conveniente – disse Ives. – Nem sequer vais ter de ficar numa estalagem para terminar isto, Gareth. Com as missões do dia concluídas, Ives insistiu em pagar-lhe bebidas e o jantar. Gareth comeu depressa e falou pouco. Se Ives reparou nisso, não fez qualquer comentário. Separaram-se às nove da noite, com Ives a insistir que se encontrassem cedo de manhã para localizar as falsificações que andavam a monte. Gareth regressou à Casa Langley. A sua intenção de falar com Eva foi frustrada. Quando perguntou por ela, soube que as senhoras se tinham retirado cedo para poderem fazer as malas em antecipação da viagem de regresso a casa que as aguardava na manhã seguinte. Confortou-se com um pouco de whisky na biblioteca. Fora melhor assim, supôs ele. A maior parte do que tencionava dizer-lhe não devia ser dito. O pouco que restava era melhor ser ouvido em Langdon’s End.


CAPÍTULO 22

E

va abriu a porta de casa lentamente. Espreitou para dentro, quase à espera de a ver saqueada de novo. Rebecca empurrou a porta até esta se abrir completamente e passou à sua frente. – Vamos desfazer as malas depressa e ir até à aldeia. Quero ver se chegou algum correio enquanto estivemos fora. Rebecca subiu, mas Eva passeou pela casa, deixando a familiaridade impregnar a sua alma. Não tinham estado fora muito tempo, mas, ainda assim, os espaços pareciam-lhes um pouco estranhos. Não era a casa. Nada mudara ali. Ela, porém, havia mudado e não só devido ao baile e outras experiências. O seu coração mudara. Olhou pela janela, para o lugar onde ela e Gareth haviam saciado o desejo que sentiram no jardim. Aquela devia ter sido a última vez. Quando dera início àquele caso amoroso, partira do princípio de que seria breve. Achou que ele o tornaria breve, sendo ele como era e sendo ela como era. Uma aventura passageira para ele e uma oportunidade de conhecer a carnalidade de uma mulher para ela. Seria apenas isso. Simples. Tão simples que ficou espantada com a sua própria sofisticação. Mas naquele momento... já não era assim tão simples. Nunca lhe passara pela cabeça que o risco para a sua reputação seria o menor dos seus problemas. Nunca estivera à espera de vir a amá-lo e de sentir um sofrimento real porque ele nunca a amaria. Que mulher sensata faria tal coisa? Desceu até à cozinha para ver que provisões precisava de comprar. Conseguia


ouvir Gareth a dizer que o amor romântico não existia, que era algo inventado para criar uma desculpa para satisfazer um desejo sexual que passaria com o tempo. Não tinha utilizado exatamente aquelas palavras, mas avisara-a devidamente. Ela compreendera-o muito bem. Talvez para ele aquilo já tivesse passado, ou estivesse a passar. Não a tinha seduzido. Não existira qualquer intenção desonrosa. Ela tivera de o seduzir no seu próprio quarto. E ele estivera disposto a colocar-se de lado e permitir que outro homem se oferecesse para a sustentar, caso se tornasse sua amante. Que amigo não iria ceder perante tais circunstâncias pragmáticas, se surgisse uma oportunidade desse género? Rebecca esperava-a lá em cima, impaciente para caminhar até à aldeia. Elas deixaram a casa. – Pergunto-me se Mr. Fitzallen já regressou – comentou Rebecca. – Achas que já estará de volta? – Como poderei saber? Pode ter viajado para outro destino qualquer. Podemos não o ver durante semanas. O que nos importa saber se ele está de volta ou não? – Estava apenas a fazer conversa, Eva. Não tens de te abespinhar por causa disso. – Apontou-lhe para o braço. – Trouxeste o teu caderno de esboços. Estás a planear parar durante o caminho para desenhar? Não à ida, espero. – Pensei que depois de fazermos uma visita à estação de correios e antes das nossas compras, podíamos visitar as irmãs Neville. Tu podes ler e eu posso desenhar. Elas têm umas bonitas estatuetas, de uma qualidade notável, que me podem manter ocupada durante cerca de uma hora. – Isso parece-me uma ideia engraçada. Acho que vou desfrutar melhor do tempo que lá passar se estiveres comigo. Que palavras doces. Comovia-a saber que Rebecca queria passar mais tempo consigo. – Por vezes, a Jasmine consegue ser deveras maternal – prosseguiu Rebecca. – Se estiveres presente, não creio que dê conselhos que não lhe tenham sido solicitados. – Ela faz isso com frequência? E eu que sempre a achei tão tímida no que diz respeito às suas opiniões. – Não podemos prever qual será a sua opinião. Pode surpreender-nos e isso pode ser aborrecido. – Que opinião surpreendente ela te deu e que te deixou aborrecida? Rebecca corou. – Não fui muito esperta, pois não? Não devo ser, se adivinhaste que houve


uma opinião desse género recentemente. Escrevi-lhes e ela respondeu-me há dois dias. – E o que foi que ela disse? Espero que tenha sido que jamais te deves tornar uma cortesã, por muito que Londres te tenha deslumbrado. – Escrevi à Ophelia enquanto estava em Londres e, a par de lhe contar os lugares onde estivemos, também mencionei que travei conhecimento com Mr. Mansfield e Mr. Trenton na casa da Sarah e a forma como Mr. Mansfield apareceu depois em Londres. Escrevi que Mr. Trenton era muito mais do meu agrado, mas que a prima Sarah não parava de me empurrar para Mr. Mansfield. A Jasmine escreveu-me de volta com uma longa preleção a esse respeito. Achei isso um pouco atrevido porque não fora a ela que eu fizera confidências. – Espero que ela não te tenha aconselhado a colocares completamente de parte a ideia do matrimónio. – Não tomou qualquer posição relativamente ao matrimónio, mas tomou uma posição em relação a Mr. Trenton e a Mr. Mansfield. Para minha surpresa, exprimiu a sua preferência de modo bastante decisivo pelo segundo. Advertiume contra ligações comprometedoras com escritores e poetas em particular. As observações dela eram muito... assertivas. – Julgava que Miss Neville via os escritores com bons olhos. – Era isso que seria de esperar, não era? A insistência dela neste assunto levame a questionar todos os seus conselhos. Eva ficaria contente por ver Rebecca menos influenciada pelas irmãs Neville, mas não à conta da revolta contra um conselho sensato. Não havia cartas a aguardar por Rebecca na estação de correios. A boa disposição dela esmoreceu. Refugiou-se no silêncio enquanto caminhavam até à casa das irmãs Neville. As senhoras em questão receberam-nas. Eva descobriu que elas não faziam cerimónias com Rebecca. Não se demoravam para a conversa de quinze minutos obrigatória. Em vez disso, Ophelia indicou-lhes a biblioteca com um gesto após as saudações formais e as irmãs continuaram os seus afazeres. Durante duas horas, Rebecca leu e Eva desenhou uma das estatuetas, uma pequena peça de bronze que retratava Hércules a lutar contra a Hidra. Embora a escala fosse pequena, o escultor modelara as formas de modo tão profissional como se tivessem três metros de altura. O exercício fora desafiante para ela, visto que ambas as figuras se torciam a meio da ação. Uma criada trouxe-lhes limonada e bolinhos, pousou o tabuleiro numa mesa e convidou-as a servirem-se. Eva colocou de lado o caderno de esboços e juntou-


se a Rebecca à mesa. – Elas têm os melhores bolos – disse Rebecca, pegando num. – Se não gostasse da biblioteca delas, provavelmente continuava a visitá-la só por causa disto. Enquanto partilhavam aquela pequena refeição, Rebecca falou a Eva do livro de mitologia que estava a ler. Enquanto o fazia, Miss Neville entrou na biblioteca. Não vinha juntar-se a elas. Em vez disso, avançou a passos largos até à estante diante da mesa onde se encontrava a peça de bronze de Hércules. – Acho, em especial, a história de Júpiter e Dánae peculiar – declarou Rebecca. – Ele visitava muitas vezes as suas amantes sob formas diferentes, para escapar à deteção da sua mulher, Juno. Com Leda, por exemplo, transformou-se num cisne. – Não me parece que valha a pena refletir muito acerca disso – afirmou Eva. Na estante, Miss Neville tirou um livro, folheou-o e devolveu-o ao lugar. – Não, mas pelo menos faz algum sentido anatómico se refletirmos sobre isso, por mais escandaloso que seja esse pensamento. – O melhor mesmo é não o fazer. – Eva perguntou-se exatamente o quanto a irmã conhecia acerca do sentido anatómico da união entre dois amantes. Parecia mais do que se deveria esperar de uma inocente de dezanove anos. Miss Neville encontrara o livro que queria. Deu meia-volta para partir. A seguir, deteve-se, inclinou a cabeça com curiosidade e aproximou-se do Hércules. – Sim. Bom, com Dánae, Júpiter assumiu a forma de um chuveiro de ouro. Como é que um chuveiro de ouro pôde engravidar uma mulher? Eva mal a ouviu. Em vez disso, a sua atenção fixou-se em Jasmine Neville, que se curvara na direção da cadeira que Eva usara enquanto desenhara. A seguir, endireitou-se, com o caderno de esboços de Eva nas mãos. – Suponho que, como era um deus, podia fazer com que o ouro fizesse tudo aquilo que ele desejasse – meditou Rebecca, depois de bebericar um pouco de limonada. Miss Neville começou a folhear as páginas do caderno de esboços, tal como fizera na sua última visita. Eva esperava que ela aprovasse os desenhos mais recentes, os que tinham sido feitos em Londres. Os que tinham sido feitos em Londres. Eva levantou-se de um salto e lançou-se na direção de Jasmine, quase tropeçando num banco pelo caminho. Correu para junto da sua anfitriã, com a mão estendida, preparada para agarrar no caderno antes de Jasmine poder chegar


a um desenho em particular. Foi demasiado tarde. Viu-a a voltar a página e revelar o desenho de um homem nu e adormecido. Reparou na reação de Jasmine. Sobrancelhas erguidas, olhos semicerrados, cabeça inclinada. Em seguida, aqueles olhos fitaram-na. Fitaram-na diretamente. Fitaram diretamente a sua alma. – Estou a ver que andou ocupada com os seus estudos enquanto esteve na capital, Miss Russell. – Sim. Fiz um bom número de desenhos. De esculturas e etc. – Pegou no caderno de esboços, fechou-o e enfiou-o debaixo do braço. – O etc. parece ter inspirado os seus melhores esforços. Será que Jasmine reconhecera o etc.? Eva não concluíra a cabeça e o rosto em pormenor e o ângulo do rosto tornava-o irreconhecível, em todo o caso. Tinha essa esperança, mas a expressão franca nos olhos de Jasmine sugeria que havia uma pessoa em Langdon’s End que agora sabia a verdade. – Também fiz uma visita a Mary Moser. Agradeço-lhe a sua carta de apresentação. Ela recebeu-nos e perguntou por si. Disse-me para arranjar uma forma de desenhar a partir da vida real. – Eva esperava que Jasmine interpretasse aquilo como uma explicação satisfatória para o desenho. Um pequeno sorriso fugaz sugeriu que Jasmine achara a desculpa engraçada. – O que achou da saúde de Mary? – Não era a melhor, lamento dizer. Creio que ela espera ver o fim em breve. – Obrigada por me dizer isso. Vou escrever-lhe de imediato. – Seguiu-se mais um olhar objetivo e direto e outro de relance para o caderno de esboços antes de Miss Neville abandonar a divisão. Eva regressou à mesa. – Já acabaste de comer os bolinhos todos? Temos de ir terminar os nossos recados. Durante a hora seguinte, enquanto compravam comida e artigos vários, Eva tentou habituar-se à ideia de que a sua reputação, o seu mundo inteiro, estava agora nas mãos de uma mulher conhecida por ter opiniões comunicadas sem reservas, ideias radicais e uma atitude indiferente para com a forma como a sociedade exige um preço elevado a comportamentos proibidos.

Gareth regressou ao norte do país numa das carruagens de Lance. Levava uma carga que jamais podia ser transportada a cavalo.


Não regressou ao Chalé Albany de imediato, por muito que fosse essa a sua vontade. Tencionava fazer uma visita a Eva o mais depressa possível. Não estivera presente quando ela deixara a Casa Langley há três dias. Ele e Ives passaram o dia a localizar os quadros que Zwilliger pusera à venda. A seguir, dedicaram uma grande parte do tempo a delinear uma estratégia que podia levar aquela investigação à sua conclusão de forma célere e bem-sucedida. Seria bom deitar aquilo para trás das costas. Tornara-se uma intrusão e uma distração. Preferia ficar perto de Langdon’s End e passar os dias com Eva. Não necessariamente a dar largas à paixão que sentia. Isso talvez tivesse vindo demasiado cedo. Queria explicar-lhe o seu pragmatismo cruel. Queria questionála igualmente a respeito da sua pintura e dos seus planos, e se existia a possibilidade de querer viajar para terras distantes. Se ela não quisesse que ele continuasse como seu amante, podia continuar a ser um amigo verdadeiro. Ela não parecia ter muitos amigos desses. Assim como ele. A carruagem serpenteou pela cidade, passando por casas e lojas e entrou no centro, onde estabelecimentos comerciais e bancos enchiam as ruas. Na extremidade dessa zona, as lojas tornaram-se mais escassas e os edifícios maiores e menos distintos. Abundavam chaminés. Ali estavam as fábricas onde a indústria de Birmingham prosperava. O condutor levou-o até uma dessas estruturas. Gareth tinha de fazer duas visitas naquele dia. Aquela prometia ser a mais agradável das duas. O processo de entrar na fábrica era muito semelhante ao de lhe ser concedida entrada numa casa de estatuto superior. Um homem à porta questionou-o a respeito da finalidade da sua visita. Gareth entregou-lhe um cartão e disse-lhe que Mr. Rockport o esperava. Muito à semelhança de uma visita social matinal, foi conduzido até ao senhor da casa. Wesley Rockport saudou-o no seu escritório. Mobilado de forma a imitar o escritório de um cavalheiro, tinha estantes que exibiam filas de livrosmestre encadernados com bom gosto; Gareth conseguiu ver, com um olhar, alguns volumes pesados versados em Direito. Achou mais interessante uma mesa comprida colocada ao mesmo nível de uma grande janela para que a luz a pudesse inundar por completo. Filas e mais filas de pequenos objetos de metal alinhavam-se na superfície da mesa, exibindo os produtos que tinham pago os ornamentos e mobília daquela divisão. Rockport reparou no seu interesse e fez-lhe um sinal para a ver mais de perto. Em conjunto, viram e tocaram nos objetos expostos. – Estas fivelas são o meu maior orgulho. São de aço. De fabrico muito


dispendioso. Tenho vinte homens que as conseguem forjar mais depressa do que a maioria e quatro que trabalham os estilos a seu gosto. É uma fraqueza minha. Estas de latão vendem-se por muito menos, é claro, mas o volume é gigantesco e as margens são impressionantes. A produção de fivelas de aço remontava há uma geração, quando os artesãos criavam quase tudo o que era feito e comprado em Inglaterra. Porém, tal como as fiações que estavam a substituir as tecelãs que trabalhavam nas suas casas, os métodos modernos tinham modificado a indústria de Rockport, alterando o estilo, a qualidade e até mesmo a necessidade desse tipo de técnicas. Um preço baixo, um volume gigantesco e margens de lucro impressionantes eram as imagens de marca de um processo de fabrico bem-sucedido naqueles tempos. Gareth ouviu com atenção o resto da exposição, ao mesmo tempo que Rockport apontava para os arreios, dobradiças e fechaduras, acessórios de metal, facas e puxadores de portas. Todos eles pequenos objetos de metal, cada um com uma finalidade amplamente estabelecida que satisfazia uma necessidade. Rockport convidou-o a sentar-se numa cadeira confortável. Ofereceu café e brandy e, para si, pediu que lhe trouxessem apenas café. Parecia agradado com o facto de Gareth ter mostrado interesse no seu negócio. Gareth gostava de Wesley Rockport. Tinham-se dado bem enquanto acompanhavam as senhoras pelas ruas de Londres. Quando Wesley lhe pedira para fazer uma visita à sua fábrica assim que regressasse ao norte do país, ele concordara. Partira do princípio de que havia uma razão. Tinha esperança de saber qual era depois de o café chegar. Com efeito, depois de beber a sua chávena de café, Wesley pousou-a e focou toda a sua atenção em Gareth. – A Sarah não fala de mais nada a não ser da generosidade da sua família. Receio que as visitas a Londres se tornem uma expectativa pessoal de agora em diante. – As minhas desculpas, embora me parecesse que também conseguiu encontrar muito com o qual se ocupar. – Na verdade, sim. Visitei muitos dos nossos clientes enquanto lá estive. Fiquei a saber algumas coisas interessantes, relativamente às suas necessidades futuras e problemas presentes. Fiquei a saber, por exemplo, que as nossas encomendas dos fabricantes de carruagens diminuíram porque o homem que contratei para os visitar não se dignou a fazê-lo muitas vezes e estava bêbedo na maior parte das visitas que fez. – Pelo menos, agora já pode retificar a situação.


– Já o fiz. Fiz menção a isso para explicar que a parte mais difícil deste negócio é ter de depender de outros. Isso é sempre um risco. As referências e etc. apenas são válidas até certo ponto. Gareth fez um aceno de concordância. Gostava de poder consultar um relógio. Ainda tinha aquela outra paragem para fazer e queria regressar ao Chalé Albany ao cair da noite. – Julgo que sabe o motivo pelo qual me queria encontrar consigo – declarou Rockport. – Espero que a sua vinda signifique que não se sinta adverso à ideia e eu tenha pelo menos uma pequena hipótese de o convencer. Gareth não fazia a menor ideia do que o homem estava a falar. – Adverso à ideia. Que palavra tão forte. Não me sinto adverso a muita coisa neste mundo, na realidade. – Vou ser bem claro, nesse caso. Preciso de alguém que represente isto – fez um sinal na direção da mesa – e a mim, no continente. Não para levar fivelas para vender, como se faz aqui. Posso enviar amostras para as companhias que conheço. Não lojas ou algo semelhante, mas homens que as pudessem distribuir lá. – Se pode enviar amostras e já identificou distribuidores... – O que eu preciso é de um administrador. Um homem para analisar os contratos lá e tratar do recebimento dos carregamentos. Um homem para mediar o acordo em meu nome. Eu não posso fazer isso. Sou preciso aqui e não conheço as línguas. Existem indivíduos que posso contratar, que se oferecem para este tipo de serviço, mas segundo sei, também se apresentam bêbedos junto dos clientes, se é que me entende. O senhor tem conhecimento de como estas coisas se processam. Deu-me uma bela lição sobre isso naquele primeiro jantar em que fomos apresentados. Cheguei à conclusão que é o homem mais indicado para o fazer, se for possível persuadi-lo. Gareth não sabia se devia sentir-se lisonjeado ou insultado. Apesar dos elogios a respeito do seu vasto conhecimento em matérias comerciais e carregamentos marítimos, Rockport acabara de o convidar para se dedicar ao comércio. – Não me parece que gostasse de viver no continente. – Nem teria de o fazer. Este tipo de contratos não são assinados todos os dias, nem todos os meses. Quando um estivesse prestes a ser concluído, podia embarcar num paquete, tratar disso e regressar. Pelo menos, ouça-me até ao fim antes de recusar. Gareth concordou em ouvi-lo até ao fim. Rockport lançou-se numa descrição mais pormenorizada do que aquela situação implicava. Quanto mais ele falava,


menos Gareth conseguia fingir que, na verdade, se parecia extraordinariamente com a forma como ele intermediava a venda e compra de coleções de arte. O seu conhecimento de empresas de transporte e carregamentos por via marítima, de contratos e conhecimentos de embarque, de pagamentos internacionais e créditos, provinham dessa atividade, sem dúvida. Sem tais experiências, jamais poderia ter discutido as matérias relacionadas com o negócio de Rockport com este e muito menos ter-lhe dado «uma bela lição» a esse respeito. – Agora, estou certo de que se sente curioso a respeito da retribuição – afirmou Rockport. – Isso não será necessário. Lamento dizer que não sinto desejo de me tornar um assalariado, mesmo de um negócio tão esplêndido como o seu. Não estou acostumado a isso e seria um mau funcionário. Rockport esboçou um sorriso rasgado. – Bom, isso parece-me ótimo, se para si também o for. Estava preparado para o recompensar generosamente, caso fosse necessário. Se preferir independência, para poder representar outros além de mim, conheço vários homens que gostariam de falar consigo acerca disso, noutras indústrias, é claro. Não ia querer alguém que fosse meu concorrente... Podemos chegar a um acordo em relação a uma comissão e despesas. Por exemplo, dois por cento do valor de venda? Exatamente como nas coleções de arte. Rockport ergueu-se e foi até à secretária. Depois de remexer no meio dos papéis, regressou com uma carta na mão. – Deixe-me ver. Este sujeito francês quer cinquenta. – Ele fechou os olhos e refletiu. – Cinquenta a dois por cento seriam... – Manifestamente insuficientes para custear o valor da viagem, ou o seu tempo, penso eu. Rockport olhou para ele, espantado. A seguir, desatou às gargalhadas. – É mesmo um cavalheiro da cabeça aos pés, não é? Acha que faço tudo isto por encomendas de cinquenta fivelas de latão ou cinquenta dobradiças de ferro? – Ele inclinou-se para a frente e estendeu-lhe a carta. – Este francesinho quer cinquenta vezes doze dúzias. A dez xelins cada unidade. Isso é mais barato do que ele consegue mandar fazê-los lá. Vai revendê-los facilmente a onze xelins por unidade e as lojas que, por sua vez, os irão vender, fá-lo-ão a treze xelins por unidade e dar-se-ão por satisfeitas. Gareth fez as contas na cabeça. A comissão por mediar aquela transação em particular ultrapassaria as oitocentas libras. Dava mais dinheiro e menos trabalho do que algumas daquelas coleções de arte que demoravam meses a negociar.


E existiam outros como Rockport que precisavam de um administrador desse tipo. Um cavalheiro jamais se deixaria persuadir, independentemente do lucro, é claro. – Irei pensar no assunto e dar-lhe-ei a minha resposta daqui a uma semana. Rockport ergueu o seu copo de brandy. – Espero que tome a decisão acertada.

A loja de artigos de papelaria era um local estranho. Estreita e funda, estava situada numa boa localização no centro da cidade. O proprietário decidira tomar o máximo partido dessa vantagem ao juntar aos seus produtos de papelaria uma variedade heterogénea de outros artigos. Gareth passeou por entre livros e amostras de tecidos, alfinetes e linhas, estampas e pentes. Uma das estantes exibia até brinquedos de madeira, do género que são feitos por artesãos rurais. No interior da loja, no fundo desta, espiou Mr. Stevenson a ajudar uma mulher a escolher artigos de papelaria. Gareth esperou até a cliente ser atendida. Depois de esta sair, Mr. Stevenson voltou um olhar interrogador para o único outro potencial cliente que estava dentro da loja. Gareth pediu para ver canetas. – Vai querer penas ou os artigos mais recentes? Pessoalmente, prefiro estes últimos, mas alguns cavalheiros preferem artigos de escrita tradicionais. – Stevenson colocou uma caixa com uma série de canetas em cima do balcão. Gareth remexeu nestas. – Foi Mr. Zwilliger quem me recomendou a sua loja. Disse que tem artigos excelentes. Pediu-me para lhe perguntar se tem mais daqueles quadros. Quadros bons, como aqueles que ele comprou. – Tão cedo? Céus, ele esteve cá há uma mera quinzena de dias. O mercado em Londres deve estar em alta. – É por causa da temporada social. As classes altas estão em peso na capital com dinheiro para gastar e o estado de espírito geral é de boa disposição. É a melhor altura para vender obras de arte. Stevenson mirou Gareth cautelosamente. – Se tivesse mais alguns quadros em breve, seria o senhor que os compraria em nome dele? – Sim, se forem da mesma qualidade. – Posso garantir a sua qualidade. O que não posso garantir é se existem mais


disponíveis neste momento. – Quando o saberá? – É difícil saber. Posso mandar saber, se desejar. Gareth perguntou-se se devia continuar com o plano que ele e Ives tinham concebido. Se aquele homem estava a dizer a verdade e parecia que sim, uma vez que falava sem qualquer dissimulação, não era a mente que estava por trás daquela fraude. Era a pessoa que lhe trazia os quadros. Gareth tirou um cartão e pousou-o em cima do balcão. Também colocou um dos cartões de Ives junto ao seu. – Stevenson, tenho estado a induzi-lo em erro. Não vim a mando do seu comprador de Londres. Nem tão-pouco ele irá comprar-lhe o que quer que seja. Está na prisão de Newgate a aguardar para saber o seu destino pelo crime de vender falsificações. Falsificações que diz ter comprado a si. – Falsificações! Não, deve estar enganado. Vendi-lhe simplesmente quadros bonitos. – Vendeu-lhe cópias de qualidade superior de trabalhos da autoria de artistas reconhecidos e velhos mestres. – Reconhecidos... velhos mestres... está enganado, meu senhor, e eu não admito ser acusado desta forma. Gareth esperou até Stevenson se ter recomposto. – Talvez tenha sido ludibriado pela pessoa que lhe entregou os quadros, assim como pela pessoa que os comprou. – Certamente que sim! Julgo que sim! Se o que diz é verdade, isto é deveras chocante. – Ele deu meia-volta e estendeu o braço para uma estante atrás do balcão a fim de ir buscar um leque de papel. – Dê-me o nome do homem que lhe forneceu os quadros e irei descobrir a verdade, estou certo disso. Stevenson abriu o leque e agitou o ar perto do rosto ruborizado. Isso desviou a atenção de Gareth do rosto para o leque. E para a parede atrás do leque, do balcão e de Mr. Stevenson. O olhar dele vagueou até à estante e depois subiu. – Não foi um homem – afirmou Stevenson, esforçando-se por falar normalmente. – Foi uma mulher. Quem podia acreditar que uma mulher faria uma coisa destas? O que vai ser deste mundo, pergunto-lhe? E se ela afirmar que não sabia de nada e que a culpa é toda minha? Quem irá acreditar em mim quando disser que me limitei a colocar alguns quadros à venda na minha loja para ganhar alguns xelins? O magistrado? É pouco provável. Isto é...


Gareth mal o escutava. O olhar dele iluminara-se ao passar por um pequeno quadro que estava pendurado no alto da parede como se fosse uma segunda escolha. Mostrava a vista de um campo, com uma grande árvore de um dos lados e uma ruína do outro. Semicerrou os olhos, focados nele. As exclamações de Stevenson tornaram-se um zumbido que quase não penetrava nos seus ouvidos. Gareth achou que reconhecera a paisagem ou antes, a mão que a pintara. Os olhos estavam quase certos, mas os instintos tinham a certeza. Vira o fantasma de algo semelhante no chão de uma casa saqueada. Não podia ser. E se assim fosse, devia ser uma circunstância de forma alguma relacionada com aquelas falsificações. – O nome dela – vociferou rispidamente, interrompendo Stevenson. – Diga-me o nome dela ou irá fazer companhia ao seu cúmplice em Newgate. – Na prisão de Newgate? Eu sou um homem de Birmingham! – Diga-me o nome dela, maldição, ou será um homem morto não tarda muito. Stevenson parecia prestes a desmaiar. Gareth estendeu os braços por cima do balcão e agarrou-lhe as lapelas do casaco para ele não cair prostrado antes de responder. – O nome dela. – M... Miss Russell. Grandessíssima maldição. Reprimiu a custo o impulso de esmurrar o proprietário da loja no nariz por se atrever a declarar precisamente aquele nome entre todos os outros nomes que existiam no mundo. O homem apercebeu-se disso. Os olhos dele arregalaram-se, alarmados. – Eva, creio que o nome dela é Eva. – Falou depressa entre arquejos curtos. – Julgo que mora em... Isto é, estou certo de que ela... – Todo o rubor se esvaiu do rosto dele. Desfaleceu e tornou-se um peso morto. Escorregou para fora das mãos de Gareth e caiu desamparado no chão por trás do balcão. Gareth foi até às traseiras da loja com passadas largas, trouxe um pouco de água e voltou. Atirou-a para a cara de Stevenson e depois foi-se embora no meio dos arquejos e gemidos, enquanto este recuperava a consciência.


CAPÍTULO 23

S

im. Ali mesmo. Aquele era um bom lugar. Eva estendeu um pequeno cobertor na pequena colina. Sentou-se e instalou-se confortavelmente. O lago alongava-se à frente dela e o sol começara a pôr-se à sua esquerda, lançando sombras que se quebravam e formavam à medida que a superfície da água se movia. Uma fila de casas desfigurava a margem do lago mais próxima, onde a vila começara a estender-se na direção do campo, mas iria deixá-las de fora. Abriu o caderno de esboços e folheou-o até encontrar uma folha limpa. Ia precisar de um caderno novo em breve. A mão deteve-se quando uma das páginas revelou o desenho de Gareth. Como fora a intenção dela, os poucos traços que assinalavam o rosto dele revelaram ser suficientes para reviver a memória de o observar àquela luz tão bela. A nostalgia apertou-lhe o coração enquanto se recordava daquele dia. Emoções mais tristes magoaram-na quando os pensamentos se voltaram para a noite do baile. Será que ele já regressara ao Chalé Albany? Não vira Erasmus ou Harold na vila quando caminhara até lá, por isso, talvez tivesse regressado. Ainda assim, não a visitara. Depois do que Eva lhe dissera na última vez que se tinham visto, não o podia censurar. Era pelo melhor. Eles jamais podiam ser apenas amigos. Não quando o seu estômago dava pequenas voltas quando o via. Não quando ansiava pela intimidade e pelo prazer mais do que se preocupava com a reputação e futuro. Se ele ainda a desejasse, ela iria ceder, de bom-grado, e talvez até encorajar isso, tal como fizera da última vez. E depois, com o tempo, iria saber-se que eles eram


amantes e ela seria alvo de desprezo, Rebecca jamais encontraria um marido e... Eva encontrou uma página limpa. Começou a desenhar a paisagem, tendo em mente a intenção de usar os traços e notas para a ajudar a planear um quadro. O tempo passou velozmente. O sol que de súbito lhe incidiu diretamente nos olhos alertou-a para o tempo que se demorara ali. Deixou de divagar e fitou a página com atenção. O desenho havia captado bem a perspetiva, assim como a forma e as sombras daquele aglomerado de árvores na margem esquerda. Uma árvore mais próxima, mesmo abaixo do local onde se encontrava, fora retratada em mais pormenor, especialmente a forma como os ramos enquadravam parte da paisagem. – Impressionante. Será um quadro? Olhou por cima do ombro. Gareth estava de pé atrás dela, suficientemente perto para ver o desenho. O seu estômago começou a dar voltas. O coração encheu-se-lhe de tanta emoção que, por breves instantes, a deixou sem fala. – Sim – respondeu. – É por isso que não está bem acabado. – São notas e lembranças, quer dizer. Não se trata de um esboço final. – É a isso que me refiro. – Ela fez menção de se erguer. Ele ofereceu a mão para a ajudar. Eva tentou não deixar que o toque momentâneo a afetasse, mas foi isso que aconteceu. – O que está aqui a fazer? – Fiz uma visita à sua casa. A sua irmã disse-me que tinha vindo para aqui. Decidi que devia precisar de uma boleia para casa. – Não acho sensato passar pela vila no mesmo cavalo em que estiver montado. – Não é a cavalo. Venha comigo. Vou mostrar-lhe. Levou-a até ao caminho que se estendia ao longo daquela margem do lago. Uma carruagem elegante com um par condizente de cavalos estava ali parada. – Tive de tratar de uns assuntos que tornavam uma carruagem necessária – explicou ele. – Agora o Lance tem pelo menos quatro, por isso trouxe esta emprestada. Ele deteve-se e voltou-se para ela. – Antes de darmos mais um passo, quero explicar-lhe uma coisa, Eva. A minha mãe era a filha de um mordomo e ela própria teria seguido o serviço doméstico se não tivesse caído nas boas graças do meu pai. Não era uma má vida e era uma vida respeitável. Ela nem sequer o conhecia. Ele era o duque que ela via de relance por vezes. Mas ela aceitou o que ele lhe ofereceu porque lhe permitia a ela e aos filhos virem a ter uma melhor segurança material do que qualquer outra coisa que ela conhecesse. Por isso, não julgo esse tipo de acordos nada


escandalosos. – Sim, já mo tinha explicado. Eu compreendo. Ele desviou o olhar, com as mãos nas ancas, exasperado com ela. – Não gostei da ideia, se é isso que pensa. Não encorajei o Whitmere. Muito pelo contrário. Mas a Eva tinha-me exigido essa promessa, por isso não tinha o direito de interferir com a sua decisão. – Com certeza. Não tem de se explicar. Não o devia ter acusado daquela forma, ou ter agido de maneira tão emocional. Estava cansada e envergonhada. Por favor, não pensemos mais no assunto. Ele conduziu-a à carruagem e ajudou-a a entrar. Ela olhou pela janela enquanto avançavam pelas ruas de Langdon’s End. A vila parecia diferente quando vista do assento de uma carruagem dispendiosa. Ao chegar à estrada que ligava as propriedades de ambos, a carruagem não voltou à esquerda na direção da dela. Em vez disso, rumou à dele. – Não se preocupe. Não tenho intenções desonrosas. Quero mostrar-lhe uma coisa. Apesar de uma alegria pura ressoar dentro de si, acreditou nele. Não podia chamar frio ao Gareth que estava ao seu lado naquele dia, mas permanecia distante de uma forma subtil, mas inconfundível. – Fez algum melhoramento espantoso? O telhado está acabado? – Não iria raptá-la por causa disso. Isto é bem mais interessante. Enquanto estive em Londres, comprei algumas obras de arte. As paredes do chalé estão muito vazias, não acha? Decidi adquirir alguns quadros que se adequam à sua história e à linhagem cujo sangue percorre as minhas veias. Vai gostar deles e pode vir estudá-los, se desejar. Se for deveras simpática, talvez a deixe copiá-los da mesma forma que os alunos das academias artísticas copiam os velhos mestres. Um sopro de inquietação fez a nuca arrepiar-se-lhe. – Isso implicaria passar bastante tempo no Chalé Albany. – É uma casa grande. Não me incomodaria. Se estiver com receio de que possa vir a gerar falatório, pode trazer a sua irmã ou uma amiga. Não tinha pensado na possibilidade de um falatório. Tinha esperança de ver alguns lampejos maliciosos nos olhos dele indicando que tencionava tê-la na sua casa vulnerável aos seus poderes. À chegada a casa, ele ajudou-a a sair. – Os quadros estão na biblioteca. Irei ter consigo daqui a um minuto. – Gareth foi até junto do condutor.


Entrou em casa e encaminhou-se para a biblioteca. E estacou. De frente para ela, em cima de cadeiras, da prateleira da lareira e encostados contra as paredes, estavam os quadros que Gareth trouxera de Londres. Os quadros dela. Caminhou apressadamente entre um e outro, com esperança de que estivesse enganada, sabendo que não estava. Ficou parada no meio deles, incapaz de pensar. Ele sabia. Ele devia saber. Aquilo não podia ser uma mera coincidência. A não ser que ele se tivesse cruzado com o homem que os havia comprado a todos a Mr. Stevenson... – São bastante bons, não acha? Eva girou sobre si. Gareth estava junto à porta, com o ombro encostado à ombreira, a observá-la. Propositadamente. Sombriamente. Nunca o receara antes, mas, por um instante, naquele momento, isso aconteceu. – A maior parte deles veio de um Mr. Zwilliger em Londres. Afirmou que eram da autoria de mestres como Gainsborough e Cuyp. – Apontou para os três rapazes na fonte e para a natureza-morta que ela vira pela última vez na Christie’s. – Ou este Carraci. Atribuiu um bom nome a cada um deles. Foi um belo negócio. – Pagou os valores que artistas desse género exigem? – Isso teria sido estúpido. Afinal de contas, todos eles são falsificações. – Avançou para junto dela. – Não são, Eva? Ela queria morrer. Sim, ele sabia. Adivinhara a verdade e suspeitava o pior. – A intenção não era tornarem-se falsificações. Nunca esperei que alguém se iludisse dessa forma. Não sou assim tão boa. – É muito boa. A maior parte das pessoas ter-se-ia iludido. – Eram exercícios e uma forma de ganhar alguns xelins. Eu pintava uma cópia, entregava-a a um homem em Birmingham e ele tentava vendê-la e dava-me metade do dinheiro, caso o fizesse. Nunca disse que eram da autoria de quaisquer mestres. Não creio que ele o fizesse também. Disse que eram meus e ele vendeu-os como se fossem do estilo de um mestre específico, mas não da sua autoria. Porém, percebo o que isto parece. Se acha que estava conivente com este Mr. Zwilliger, não estou certa de conseguir provar que não estava. Ele despiu o sobretudo, lançou-o para uma cadeira e sentou-se no divã. – Sente-se aqui comigo, Eva. Quero que nos entendamos de forma clara e que não existam mal-entendidos. Ela obedeceu, com uma sensação nauseante que a abalou até ao fundo da


alma. – Eva, está a dizer que não fazia ideia de que as suas cópias estavam a ser vendidas como originais? Absolutamente nenhuma? Nunca pensou que isso podia acontecer? – Não eram suficientemente boas para isso. Eu via-as sempre ao lado dos originais e a diferença entre ambos era óbvia. – Ela hesitou, mas decidiu prosseguir. – Vi, de facto, um desses numa casa de leilões, atribuído a Cuyp. Disse-lhes que tinha sido eu a pintá-lo, mas o homem ignorou-me como se eu fosse tonta e estivesse baralhada. E sim, admito que quando isso aconteceu, me ocorreu que talvez, depois de terem sido vendidos, tenha havido um malentendido. – Essa é a palavra errada. Isto foi deliberado. Na sucessão de acontecimentos entre a sua entrega dos quadros e a minha descoberta deles, alguém decidiu apresentá-los como originais com pleno conhecimento de que isso não correspondia à verdade. Eva fixou o olhar no colo, demasiado envergonhada para olhar para ele. Não queria ver os pensamentos dele nos seus olhos. A melhor desculpa que tinha para lhe dar era a estupidez e a ignorância. Era o fim do seu caráter irrepreensível. E aquilo não ia melhorar. Iam surgir mais perguntas que a colocariam numa posição cada vez pior. Perguntou-se se Sarah acolheria Rebecca, caso Eva fosse presa. Provavelmente, sim. A falsificação era um crime grave. Podia ser degredada. Perguntava-se se falsificar quadros implicava a mesma pena do que falsificar documentos e coisas semelhantes. Já tinham sido enforcados homens por esse motivo. Esse pensamento provocou-lhe um calafrio que lhe desceu pelas costas. – Eva, a forma como os quadros apareceram à venda em Londres como originais pode esperar para ser esclarecida. Neste momento, preciso que me diga onde estão os originais. Olhou para ele, surpreendida. – Não sabe? Pensava que sabia. Por que outro motivo compraria exatamente os mesmos quadros? – Porque tenho andado à procura dos originais e estas cópias podem ser uma forma de os encontrar. Sentiu vontade de rir. A expressão sombria dele, absolutamente desprovida de humor, impediu-a. – Como veio a copiar estes quadros em particular, Eva? – Porque eram os únicos que me estavam disponíveis. Os originais estão todos


aqui mesmo, Gareth. Estão lá em cima no sótão.

Merda. Os quadros tinham estado mesmo debaixo do nariz dele todo aquele tempo. Sentiu-se um idiota. E porque não colocá-los ali? Aquela era uma casa em ruínas e abandonada. Quem saberia? Gareth seguiu Eva pelas escadas acima até ao último piso que albergava os aposentos dos criados. Apenas subira até lá algumas vezes para vistoriar os estragos responsáveis pelo mau estado do telhado. As alas mais recentes da casa tinham telhados mais recentes, por isso ninguém tentara procurar no sótão. Levou Gareth até ao final do corredor de passagem. De um dos lados, num recanto oculto ao lado da parede do último quarto, mostrou-lhe uma porta estreita. Soltou o ferrolho. Atrás dessa porta, havia um lanço de escadas que conduzia a um sótão que se estendia ao longo de um dos acrescentos ladeando a parte principal da casa. Filas de quadros sucediam-se nas paredes, com os da frente envolvidos em lonas ou serapilheira. Eva foi até junto de um monte e ergueu o pano. Os rapazes de Gainsborough divertiam-se em torno de uma fonte. – Estes são os que eu copiei. – Apontou para as obras mais pequenas alinhadas atrás daquele primeiro quadro e depois para um grupo semelhante de quadros pequenos ao lado. Ele inclinou-se e examinou-os rapidamente. As cópias que estavam lá em baixo tinham os seus originais ali. Todavia, tinham sido feitas mais uma mãocheia de outras que não tinham sido compradas por Zwilliger. – Só copiei os mais pequenos. – Não me parece que um juiz se vá importar com o tamanho deles. A cabeça dela pendeu, abatida. – Ia explicar somente que as escolhi porque era demasiado trabalhoso mover os maiores. Ele atirou a lona para trás de uma fila de quadros maiores. Puxou cada um deles para a frente a fim de ver os temas. Le Nain, Claude, Poussin, Vasari: o tema claro de cada um permitiu-lhe riscá-los mentalmente da lista de obras de arte desaparecidas que havia memorizado. Não olhou para os restantes. Contou-os, partindo do princípio de que estariam todos na lista. Trinta e um. Não chegava.


Eva continuava em silêncio, com os braços à volta do corpo e a cabeça pendente. – Porque não me disse que isto estava aqui, Eva? – Eu levei-os, não foi? Tirei-os do lugar sem permissão. Estava a levar aquele para casa no dia em que nos conhecemos. – Ela apontou para o Gainsborough. – Ainda assim, devolveu-os. – Se eu confessei isso, por que motivo não deve partir do princípio de que sou capaz de roubar? Por que motivo deve pensar que os devolvia a todos? Desapareceu muita coisa desta casa. Gareth deu-se conta de que não era o que ele pensava, mas o que ela pensava sobre si própria que lhe estava a pesar mais. Era a mente dela que associava a utilização dos quadros a um roubo. – Levou mais alguma coisa? Ficou com um, por exemplo, ou... – Cadeiras. Levei cadeiras. Vendi-as, do mesmo modo que vendi a nossa própria mobília. – Eva parecia extremamente desgostosa consigo própria. – Eram cadeiras boas, por falar nisso. Pesadas. Demorei uma hora a levar cada uma delas para casa porque tinha de fazer muitas paragens para descansar. Eram de madeira e bem construídas. Algumas tinham pormenores trabalhados... – Eu perdoo-lhe pelas cadeiras, Eva. Se surgirem questões a respeito destes quadros, não vamos mencioná-las a ninguém. Ela não olhou para ele. – Obrigada. Mas agora vai saber para sempre que eu sou uma ladra, não vai? Ele puxou a lona de volta para cobrir os quadros. – Pelo menos, não é aquela de que ando à procura. Estes quadros não são meus, Eva. Foram roubados há anos e o meu irmão e eu andámos a investigar esse roubo nas últimas semanas. Tenho de escrever ao Ives para lhe dizer que um terço deles já apareceu. Eva ergueu finalmente a cabeça. Dirigiu o olhar para os quadros tapados. – Não vão achar estranho que os quadros desse roubo tenham sido encontrados na sua própria casa, Gareth? A palavra estranho dificilmente fazia justiça às possíveis reações, deu-se ele conta. Todo o tipo de especulações podiam ser feitas a respeito daquela peculiar reviravolta de acontecimentos e nenhuma delas o faria ser visto com bons olhos. Lembrou-se como todos tinham ficado aliviados por ser capaz de provar que estava fora do país quando Percy morrera. Não podia fazer o mesmo em relação à altura em que os quadros haviam desaparecido. As potenciais ramificações daquela descoberta invadiram-lhe os pensamentos.


Bom, para o diabo com aquilo tudo. Estava prestes a descobrir o quanto Ives o considerava seu irmão de verdade.

– Acredita em mim? Que eu fiz as cópias sem qualquer intenção de vender falsificações? Eva formulou a pergunta depois de terem regressado à biblioteca. – Evidentemente. – A palavra «evidentemente» não existe nesta história, Gareth. Eu não posso provar isso. Eva continuava a parecer embaraçada e deveras infeliz. Deixou de parte as suas próprias preocupações e abordou as dela. – Nem todas as suas cópias foram parar às mãos do Zwilliger. O que aconteceu às outras? – Mr. Stevenson vendeu algumas a pessoas em Birmingham. – Se for necessário, falaremos com essas pessoas para saber o que acham que compraram. Porém, para mim é óbvio que a Eva e o Stevenson lidaram com o assunto de forma honesta. Foi o Zwilliger que julgou ter tropeçado numa oportunidade quando abriu a porta da loja do Stevenson. – Óbvio? – A sua angústia é sincera, assim como a dele. O Zwilliger parecia estar a desempenhar um papel num palco. Algumas centelhas de bom humor reluziram nos olhos dela. – Talvez eu também esteja a desempenhar um papel. Que coisa encantadora e ignorante para se dizer. – Eva, depois daquilo que partilhámos, não existe nada que possa esconder de mim. Ela fez um sorriso retorcido. Quase triste. – Existem muitas coisas que escondo de si muito bem, Gareth. – Ela fitou longamente as cópias dela e depois virou-lhes as costas. – Vou retirar-me agora. A Rebecca deve estar a perguntar-se o que foi feito de mim. – A carruagem está à nossa espera. Disse ao condutor para a manter a postos. Ela não falou na curta viagem até casa. A atitude e o silêncio dela não o encorajavam a abraçá-la e a oferecer-lhe consolo. Eva não permitiu que ele a ajudasse a sair e fê-lo sozinha, de forma um tanto ou quanto inábil. – Agradeço-lhe por me ter escutado, Gareth, e não se ter limitado a pensar o


pior de mim. – Jamais podia pensar o pior de si, Eva. – Pode não o ter feito, mas não tinha a certeza. Nem tão-pouco a pode voltar a ter, não é? Ela deu meia-volta e caminhou até casa. Ele não disse ao condutor para prosseguir de imediato. Estava indeciso se devia segui-la e não se ralar com a compostura dela. Deixara Londres com coisas para lhe dizer. Coisas importantes. Depois das revelações daquele dia, podia passar-se muito tempo até as poder dizer. Todavia, podia sossegar os receios dela. Bem melhor do que fizera até ali naquele dia. Ergueu o trinco e abriu a porta. Não tinha qualquer experiência em importar-se realmente com os sentimentos de uma mulher. Isso fazia-o sentir-se desajeitado. Ela merecia mais dele naquele dia do que aquilo que lhe dera. De repente, a voz dela irrompeu pelo ar, a gritar pelo nome dele. Eva surgiu à porta da casa, sem vestígios da anterior compostura. Chamou pelo nome dele de novo, desesperadamente, e depois desapareceu. Lançou-se para fora da carruagem e correu na direção dela.


CAPÍTULO 24

G

areth entrou de rompante na casa. Ouvi-lo trouxe alguma sanidade de volta. Eva chamou-o da biblioteca. Estava de pé perto da janela da frente, com um pedaço de papel nas mãos. As mãos tremiam-lhe tanto que a folha esvoaçava como a asa de um pardal. Ouviu os passos dele e virou-se, assustada e furiosa. – O que devo eu fazer? Não percebo o que ela quer. Não sei o que eles querem. – Eva desejava parecer calma, mas em vez disso ouviu o tom agudo e angustiado da sua voz. – Ela, quem? – A Rebecca. Desapareceu. Deixou-me isto, mas não consigo perceber o que quer dizer. – Eva começou a chorar, depois bateu com o pé no chão com força, cerrou os olhos e usou toda a sua força de vontade para impedir que as lágrimas lhe caíssem. Gareth tirou-lhe o papel das mãos e abraçou-a. Mantendo-a aconchegada no seu corpo, leu a carta por cima do ombro dela. O seu calor inundou-a de conforto. Encostada a ele, Eva permitiu-se ser frágil, e acreditou que em resultado disso a sua força regressaria e que não iria sucumbir ao caos que lhe ameaçava o espírito. – Diz aqui que eles a obrigaram a escrever que querem de volta o tesouro que o seu irmão levou. Que quer ela dizer com isto, Eva? – Não sei. – Eva respirou fundo. – Ele não tinha nada. Não possuía tesouro algum. Caso contrário, teria vivido assim? É um disparate. Uns tontos quaisquer devem ter ouvido um boato estúpido, e agora... – Olhou para cima no momento em que um pensamento se atravessou no meio da sua preocupação. – Acha que estes podem ser os mesmos homens que destruíram esta casa quando estivemos fora?


– Julgo que sim. Parece que alguém andava à procura de alguma coisa. Talvez seja o tal tesouro que estes homens querem. – Gareth ficou a pensar naquilo. – É uma palavra estranha. Tesouro. Não foi dinheiro ou outro eufemismo. Tesouro sugere algo de precioso e valioso. – Voltou a olhar para a carta, e leu-a em voz alta. Minha querida irmã, Disseram-me que tinha de escrever rapidamente. Falo dos homens que me cercam e conduzem o que escreve a minha pena. Chegaram esta tarde, dizendo que tinham vindo buscar o que o nosso irmão lhes tinha deixado. Quando expressei o meu desconhecimento, insistiram em entrar. Têm a certeza de que sabes do paradeiro daquilo a que se referem. Eu espero que sim, porque tenho de os acompanhar até lhes levares este tesouro ou os levares à sua localização secreta. Quando estiveres pronta a fazê-lo, deverás deixar uma carta ao proprietário do Four Swans em Henley. Aquele que julgo ser o líder acabou de me pedir que escrevesse que tens a palavra dele em como eu não serei molestada. Tão-pouco me farão mal se concretizares o acordo que o nosso irmão tinha com ele. Ele promete inclusivamente que poderás ficar com a parte do Nigel, como inicialmente acordado. No entanto, se te dirigires ao magistrado, não receberás nada, eu incluída. Expliquei-lhes que és uma mulher sozinha no mundo, pouco dada a atos de valentia e que farás o que puderes, sobretudo se for para receberes o teu quinhão. Eva, não te preocupes muito comigo. O líder parece um tanto ou quanto inteligente e bastante educado. Quanto à minha segurança e virtude, tenho os meus próprios meios de me proteger. A tua irmã que te adora. – Que quer ela dizer com os seus próprios meios de se proteger? – perguntou Gareth. – Se bem conheço a Rebecca, deve achar que a retidão e a lógica dos seus argumentos morais irão convencê-los. – Mal tinha acabado de falar quando outra possibilidade lhe veio à cabeça. Não podia ser. Certamente que não.


Eva libertou-se dos braços de Gareth e correu pelas escadas acima na direção dos seus aposentos. A arca que guardava o guarda-roupa de inverno estava aberta. Ajoelhou-se e vasculhou-o, na esperança de estar enganada. Gareth foi no seu encalço. – Desapareceu – disse Eva. – A pistola desapareceu. Devem ter deixado a Rebecca ir buscar algumas peças de roupa, ela entrou aqui à socapa e levou-a também. A pólvora, as balas: desapareceu tudo. – Podem ter sido os raptores dela a levá-las, em vez da Rebecca. Talvez sim, mas Eva não era dessa opinião. – Espero que a Rebecca não seja estúpida ao ponto de tentar usá-la. Ela nunca disparou uma pistola antes, Gareth. É provável que a carregue mal e se mate. Umas mãos firmes e meigas ajudaram-na a pôr-se de pé. – Ela não é estúpida, e provavelmente limitar-se-á a esconder a arma debaixo do colchão. Se isso a fizer sentir-se menos vulnerável e assustada, até é bom que a tenha levado. Agora, venha comigo. Vamos regressar ao Chalé Albany. Comemos qualquer coisa por lá, e vamos concentrar-nos em resolver o mistério deste tesouro. Eva permitiu que ele a guiasse até à carruagem. Uma vez em casa de Gareth, até deixou que ele fosse buscar comida para os dois. Se tivesse ficado por sua conta, não teria comido nem se incomodaria com a conversa de circunstância que ele manteve para a distrair durante a refeição. Ter-se-ia sentado na biblioteca, a olhar para a carta de Rebecca e a sentir-se inútil. Depois do jantar, Gareth acendeu as lamparinas da biblioteca. Sentou Eva no divã – não há outra maneira de descrever a forma como a levara até ali, virandoa e colocando-a no seu lugar. Em seguida, recolheu todos os quadros e guardouos. Por fim, serviu uma bebida que estava numa garrafa de cristal e levou-lhe o copo. Eva pegou nele e Gareth sentou-se a seu lado. – Conhaque de novo? – Está a precisar. Está pálida, e os seus olhos parecem feitos de vidro. – A última vez que fiquei sob sua proteção e me deu conhaque, acordei na sua cama. Corro novamente esse perigo? Gareth puxou-lhe a mão para cima, de forma a que o copo lhe tocasse nos lábios. – Sim. Não agora, nem esta noite, mas sim. Eva bebericou.


– Uma coisa posso dizer a seu favor, Gareth. Avisa sempre com antecedência as suas intenções. – Menos do que isso seria ignóbil. Gareth esperou que Eva acabasse o conhaque, depois tirou-lhe o copo da mão e pô-lo de lado. Submergiu-a num caloroso abraço e cingiu-a com força enquanto a bebida espirituosa desfazia lentamente os nós no corpo dela. – Fale-me um pouco mais do seu irmão. – Era muito bonito. Tal como a minha irmã, saía à nossa mãe. Acho que isso o estragou. Nada era suficiente para ele. Havia discussões com o nosso pai por causa das dívidas dele. Quando recebeu a herança, as coisas pioraram, como já lhe contei. – Tinha amigos nas redondezas? Eva percebeu que as perguntas tinham um objetivo. – Sim, neste condado e nos condados vizinhos. De vez em quando, passavam por aqui jovens de famílias como a nossa, ou mais abastadas. Na maioria das vezes, combinava com eles noutro sítio. Aperaltava-se e ia passear, todo janota, num cavalo que lhe custara muito dinheiro. Calculo que passassem o tempo a fazer aquilo que os homens fazem quando estão juntos sem mais ninguém à volta. – Depois, certa noite, chegou a casa com uma bala dentro dele e nunca mais voltou a sair a cavalo. Alguns desses amigos se mantiveram leais? As memórias de Eva recuaram ao início da enfermidade do irmão. – Alguns, no princípio, sim. Mais tarde, já não. Mas, nessa altura, ele já tinha mudado. Detestava a maneira como o ferimento o tinha afetado. A bala rasgara coisas no seu interior e o cirurgião rasgara ainda mais. Depois disso, ficou corcunda, não conseguia andar direito e ia-se esvaziando de forças como a água escorre para a areia. Por fim, deixou de se mexer completamente. Uma febre levou-o. Já não lhe restavam forças para a combater. Eva aconchegou-se um pouco mais enquanto falava. Entristecia-a falar no irmão. No final, já quase não havia amor entre eles. Os ressentimentos mútuos digladiavam-se silenciosamente no ambiente gélido do quarto de Nigel. Eva devia ter sido mais amável e ter feito mais por ele. Devia igualmente ter feito mais por Rebecca. Rebecca... – O que vou eu fazer, Gareth? – Vai deitar-se, de forma a ter a cabeça fria amanhã. – Gareth pôs-se de pé, ajudou Eva a levantar-se e acompanhou-a às escadas. Levou-a aos seus aposentos.


– Julguei que tivesse dito que esta noite não. – Eu disse que esta noite não havia perigo. Vai dormir melhor aqui do que numa cama estranha. Não a acordo quando entrar. Antes de sair, beijou-a docemente. * Gareth serviu-se de mais um conhaque. Não será preciso dizer que mal dormiu naquela noite. Voltou a ler a carta de Rebecca. Nada de magistrados. Por ele, tudo bem. Não queria magistrados a intrometerem-se nos seus procedimentos legais quando encontrasse aqueles homens. Eles estavam a ser temerários. Precipitados. Aquele tesouro devia ter um grande valor para eles. O rapto era um crime punido com enforcamento. O rapto de uma mulher da pequena nobreza, de uma inocente, faria o país inteiro exigir que fossem afogados e esquartejados. Gareth não tinha um plano, mas sabia que iria precisar de ajuda. Sentou-se e escreveu uma carta a Ives, contando-lhe que encontrara alguns dos quadros. Instava-o a vir até ao norte, por essa razão e por outro problema adicional. Terminava dizendo a Ives que era melhor deixar para trás os livros de Direito. Atirou-se para o divã, fechou os olhos e pôs-se a contar os dias. Se o tesouro ou a sua localização não fossem descobertos no prazo de três dias, teria de se organizar um resgate tosco e perigoso. O melhor era encontrá-lo, de forma a obter um engodo. Se houvesse escolha, a astúcia e o planeamento ultrapassavam de longe a violência e derrame de sangue. A sua mente deixou-se cair aos poucos num estado de sonolência. Os acontecimentos e imagens dos últimos dias misturavam-se uma e outra vez de forma aleatória. Uma frase da carta de Rebecca estava sempre a surgir. Expliquei-lhes que és uma mulher sozinha no mundo, pouco dada a atos de valentia, e que farás o que puderes, sobretudo se for para receberes o teu quinhão. Tinha sido uma rapariga esperta, ao insinuar uma aliança que os faria baixar a guarda. Ela sabia que Eva era bastante corajosa, mas que não iria enfrentar isto sozinha. Gareth pôs-se a imaginar Rebecca a falar de filosofia e de teorias políticas radicais até que aqueles homens pagassem a Eva para a levar. Sorriu ao pensar nisso, mas era evidente que não ia ser assim tão simples. O sono acabou por chegar, mas mais tarde acordou sobressaltado e de forma


abrupta. Sentou-se e esfregou os olhos. Surgiram-lhe na cabeça ideias díspares, que se alinhavam e impunham a sua presença até Gareth já não ser capaz de as negar. Um jovem ressentido pela fortuna desfalcada. Um grupo de amigos a cavalgar pelo campo. Um tesouro pelo qual valia a pena morrer. Um ferimento de pistola, com o fito de matar. Um quadro limpo com aguarrás, de forma a revelar pinceladas ocultas. Paredes destruídas, soalhos arrancados, degraus removidos... Gareth olhou para o teto. E um esconderijo secreto com quadros valiosos, ao fundo da estrada onde o jovem morava.

Na noite seguinte, Eva acordou antes do amanhecer com o peso e o calor de Gareth nas suas costas. Adormecera cobrindo-a com o braço que a enlaçava. Na noite anterior, não chegara a vir, por isso surpreendeu-a a presença dele. Virou-se cuidadosamente, de maneira a não o acordar. Moveu-se até ficar de frente para Gareth, com o nariz a tocar no peito dele, o seu corpo contra o dele, e a respiração dele no seu cabelo. Colocou a palma da mão na anca dele. A intimidade descontraiu-a. Naquelas duas noites, o sono tinha sido errático, mas agora pairava como uma nuvem suave. Quando Eva tornou a acordar, a luz atravessava os cortinados. Deixou-se ficar deitada, sem querer perturbar aquele sossego. Quanto mais o fizesse, mais tempo havia antes de o dia voltar a trazer consigo aquela preocupação aflitiva. Gareth encostou o rosto à cabeça dela, causando-lhe um formigueiro no couro cabeludo. Eva perguntou-se se iria tentar mais alguma coisa. Não se importaria. – Acho que o meu irmão chega hoje – informou-a ele. – É melhor voltar para minha casa. – Não a quero lá sozinha. É mais sensato o Ives ficar numa estalagem na vila. – Sabendo que eu cá estou, isso não faz grande sentido. – De qualquer modo, além do Ives, só o Harold é que iria saber. Como o Gareth tinha pedido ao Erasmus que fosse fazer coisas para outro lado, ele não ia estar na propriedade. – O Ives fica mais à vontade na vila. Esta casa é demasiado modesta para ele. – Gareth voltou a encostar o rosto à cabeça dela. – Eva, acho que sei onde está o tesouro. Eva olhou para cima, inclinando a cabeça de modo a conseguir ver a cara dele. – A sério? – Abraçou-o e apertou-o com força, tal era a emoção. – E onde é que está? Podemos ir buscá-lo quanto antes?


– Acho que não vai gostar de saber, Eva. Abstive-me de lhe dizer ontem, mas estou convencido de que tenho razão. O tom da voz dele, muito amável e suave, fez desaparecer a alegria de Eva. – Diga-me. Posso não gostar, mas rezo para que esteja correto. Gareth contou-lhe a estranha história de um grupo de aristocratas que empacotara alguns quadros e os enviara para norte, e de como esses quadros desapareceram pouco tempo antes de eles os reaverem depois da guerra. – Os quadros que estão no meu sótão são uma parte deles. Talvez um terço. – Eram esses os quadros de que andava à procura? – Sim. A pergunta agora é como chegaram ali. Por agora, é essa a única questão, embora haja outra ainda: onde estão os restantes? – Tem medo de que alguém julgue que foi o Gareth quem os roubou? E que guardou alguns deles aqui? – Esse perigo existe sempre. Claro que não os roubei. Mas acho que sei quem foi. – Gareth virou Eva de barriga para cima, e apoiou-se no braço para a contemplar. – Um tesouro, Eva. Aqueles quadros valem muito dinheiro. Quando invadiram a sua casa, retiraram os degraus para ver o que havia naquele espaço por baixo. Destruíram as paredes para ver se ocultavam algo. Estes homens não andavam à procura de uma coisa pequena, como joias. Ou mesmo dinheiro. E dirigiram-se ao sótão, ao seu sótão, porque não lhes passou pela cabeça que aquilo de que andavam à procura estivesse no meu. Eva acompanhou o raciocínio de Gareth. – Quer dizer que acha que o tesouro que irá salvar a minha irmã está neste momento por cima de nós. Que os quadros são o tesouro. – Sim. – Quem me dera que tivesse razão, mas não acho que tenha. Se estiver certo, isso significa que o meu irmão estava envolvido nisso e que os colocou lá. Ele não era um gatuno. Gareth acariciou-lhe o rosto. – Pode ter sido uma partida que deu para o torto. Ele pode ter discordado, e ter sido alvejado enquanto tentava impedi-los, e depois não conseguiu pensar numa maneira de devolver o que tinha sem se implicar. Eva fitou-o. – Passou todo o dia de ontem a arranjar estas desculpas, não foi? Não acho que acredite em nada disso. Talvez devesse partilhar aquilo em que de facto acredita. Gareth deixou-se cair de costas ao lado dela. Eva ficou contente. Naquele momento não lhe apetecia olhar para ele.


– Parece-me que o seu irmão e alguns amigos souberam onde os quadros estavam guardados. Acho que descobriram como chegar a eles e levaram-nos para outro sítio, esperando pelo fim da guerra, de modo a poderem vendê-los no estrangeiro. Penso que o seu irmão ficou nervoso devido à situação financeira em que se encontrava, agarrou no que estava no sótão e colocou-o aqui porque já não morava cá ninguém. Terá levado mais do que aquilo a que tinha direito. Quer tenha sido nessa altura, ou quando foi desmascarado, creio que foi alvejado por um guarda ou um cúmplice. Provavelmente, por este último. E por causa do ferimento, não podia vender fosse o que fosse. Os quadros ali ficaram, a um quilómetro e meio de distância. – É essa história que vai contar ao seu irmão? – Sim. Eva sentou-se e virou-se de modo a ficar de costas para Gareth. Esticou o braço e pegou na roupa. – Vai manchar o bom nome do meu irmão sem ter qualquer prova de que estes quadros sejam o tesouro que procuram. Vai colocar a minha irmã em perigo por causa de uma teoria rebuscada. Deslizou para fora da cama para se vestir noutro lado. A mão de Gareth no seu braço travou-a. – A Eva lembra-se como foram destruídos os seus quadros? As paisagens que pintara há tantos anos? Recorda-se que foram apagados com aguarrás? Alguém quis certificar-se de que não tinha pintado por cima de alguns destes quadros e os escondera à vista de todos. – Isso foi um comportamento destrutivo por parte de criminosos. – Deram-se a muito trabalho para quem quer apenas destruir. Com uma faca seria mais rápido e recompensador. – Quando o Nigel morreu, já só lhe restava o bom nome. Está enganado em relação a ele. Só rezo para que o seu irmão consiga mostrar-lhe como o seu raciocínio está errado, já que não me quer dar ouvidos. – Eva sacudiu o braço, soltando-o. Agarrada à roupa, caminhou a passos largos até encontrar outros aposentos para se manter longe de Gareth.

Assim que Gareth ouviu o som dos cavalos, percebeu que Ives não viera sozinho. Abriu a porta e viu dois garanhões a galopar pelo caminho de entrada acima. Os cavaleiros refrearam as rédeas e apearam-se. – O Lance insistiu em vir – justificou-se Ives. – Pôs na cabeça que havia


aventura à vista, e a cidade já andava a aborrecê-lo. Ao que parecia, Lance ansiava por uma aventura violenta. Trazia amarrados à sela três pistolas e um mosquete. Depois de o cumprimentar com um aceno, começou a removê-los. Atirou as pistolas uma por uma a Gareth e depois levou o mosquete até à porta. – Pediste ao Ives para não trazer os livros de Direito. Eu sei o que isso significa, mesmo que ele finja não saber. – E entrou em casa. Harold tirou as pistolas das mãos de Gareth. – Vou limpá-las, senhor. Mas primeiro vou à vila para informar na estalagem que vão ser necessários dois quartos, em vez de um apenas. – És um bom homem. – Gareth dera apenas a informação básica a Harold, cuja reação ao rapto fora violenta e dramática. Coisas daquelas não aconteciam em pacatas vilas inglesas. – A senhora vai passar mais esta noite cá, senhor? – Até a irmã regressar, ela vai permanecer aqui. Gareth dirigiu-se à biblioteca. Ives já se encontrava deitado no divã. Lance vagueava pelo primeiro piso, espreitando atrás das portas, avaliando a propriedade. – É melhor do que me lembrava. Quando era mais novo, achava esta casa velha e bafienta, mas agora parece bastante confortável – disse quando se juntou aos irmãos. – Devias tê-la visto há dois meses – gracejou Gareth. – Nem o telhado estava em bom estado. – Só ficou confortável porque o Gareth tem feito as melhorias de que te falei – lembrou Ives. – É melhor gastar o metal assim do que em advogados sanguessugas – declarou Lance. – Isto não é nada de pessoal, Ives. – Desculpas aceites. Lance atirou-se para cima de uma das cadeiras, e contemplou os ornatos do teto. – Ainda bem que nunca me inclinei para este chalé. De outra maneira, tendo em conta o terreno de caça que incluía, talvez tivesse a tentação de... – Tentação a que, porém, não cederás, uma vez que já se disse ao solicitador para esquecer o assunto – interrompeu-o Ives. Era a primeira vez que Gareth ouvia falar naquilo. Noutras circunstâncias, teria celebrado. Mas naquele dia, estando Eva invisível e Rebecca em perigo, a sua reação limitou-se a permitir que um cantinho da sua alma retirasse alguma


satisfação de ser oficialmente um proprietário. Gareth foi buscar vinho do Porto e conhaque e disse aos irmãos para se servirem. – Antes que perguntem, só há um serviçal e está a tratar das vossas armas e cavalos. – Não me importo de o fazer sozinho. – Lance serviu-se de uma boa dose de vinho do Porto. – Então, quem é que nós vamos matar? Ives fechou os olhos e abanou a cabeça. – Com certeza que ninguém. – Espero que ninguém – corrigiu Gareth. Isso chamou a atenção dos irmãos. Primeiro, contou-lhes a descoberta dos quadros e o envolvimento involuntário de Eva na produção de falsificações. O fim da primeira metade da história foi acolhido com um longo silêncio. – Se o Stevenson, o dono da loja, vendeu quadros a famílias de Birmingham, temos de descobrir quem são e contactá-los para saber os detalhes das transações – retorquiu Ives. – Isso prova que nem ele nem Miss Russell tentaram fazer passar as obras por originais. – Foi exatamente isso que eu pensei – concordou Gareth. – Ninguém me perguntou a opinião – começou por dizer Lance. – Seja como for... – Já sabíamos que, de qualquer modo, podíamos contar contigo para a dares – disse Ives. – É o que vou fazer. Não que seja preciso chamar a atenção de nenhum dos dois para o facto de ser fundamental encontrar quanto antes o resto dos quadros roubados. Caso contrário, aqui o Gareth torna-se um conveniente alvo de acusações. Já temos que chegue disso, por isso o melhor era que qualquer revelação sobre ele estar na posse de um terço destas obras só surgisse no momento em que os meus patrícios lordes do reino estiverem a celebrar o regresso de todas as outras. – Não que tenhamos dúvidas acerca de ti, claro – disse Ives a Gareth. – De modo algum – reforçou Lance. – Evidentemente. – Já em relação à senhora... – Ives levantou o sobrolho. – Está a dizer a verdade. Eu conheço-a e ela nunca soube de nada, do início ao fim. – justificou Gareth. – Repito, se encontrarmos os quadros, essa questão torna-se irrelevante – afirmou Lance. – Mas já é irrelevante. Sou eu que o estou a dizer. Já o falecido irmão dela


talvez não o ignorasse. – Gareth descreveu a invasão por duas vezes da casa de Eva e deixou-os ler a carta de Rebecca. – Como podem ver – concluiu ele –, agora temos uma linha que nos leva aos homens que executaram o roubo. Se os encontrarmos, encontramos também os restantes quadros. Fez-se silêncio. Lance e Ives deram um gole nas bebidas. – O meu plano é simples. Primeiro precisamos de trazer a rapariga de volta. Vou deixar uma carta no Four Swans de maneira a tratar desse assunto e recuperar os quadros. Vocês os dois ficam à espera na estalagem e seguem quem vier buscar a carta de volta para o esconderijo. Assim que a rapariga esteja a salvo, fazemos-lhes uma visita e reavemos o resto da coleção. Ives pousou o copo, pôs-se de pé e caminhou até à janela, embrenhado nos seus pensamentos. – Onde está a senhora agora? – Aqui mesmo. No jardim, creio eu. – O melhor, a partir de agora, será sabermos com toda a certeza onde ela está. Foi sensato impedi-la de sair daqui. – Eu não a impedi de sair daqui. Trouxe-a até cá para a proteger. – Sejam quais forem as tuas razões, foi uma jogada prudente. Gareth não deu importância à expressão no rosto de Ives. Era o tipo de sobrolho carregado que era habitual observar por baixo de uma peruca branca no tribunal quando estava ao serviço da Coroa como procurador. – Ele acha que interpretaste as provas de forma errada, Gareth – explicou Lance, olhando também fixamente para Ives. – Confesso que eu me interrogo de igual modo. Se calhar a senhora não é assim tão inocente. Ela está no epicentro de tudo o que nos contaste. Não finjas que não reparaste nisso. – À primeira vista, pode parecer que sim, mas o papel dela foi involuntário em todos os aspetos. Se não confiam no meu julgamento a esse respeito, o melhor é regressarem a Londres. Não quero ter de passar o tempo a protegê-la, não só de vocês os dois como também dos outros. – Se não encontrarmos o resto dos quadros... – Então terás de manter o nome dela longe de tudo isto, Ives. Que as suspeitas recaiam sobre mim, se assim tiver de ser. Ives e Lance entreolharam-se. Ives não insistiu mais naquele ponto. – Suponhamos que ficamos a saber onde está o resto dos quadros. Estás a pensar ir lá bater à porta e pedi-los de volta?


– E porque não? – Devíamos ignorar o que está escrito na carta, e ir falar com o magistrado. – Se o informarmos, ele vai querer trazer cinquenta homens com ele. Essa notícia vai espalhar-se depressa e ainda acabamos de mãos vazias. Ives esfregou o sobrolho. – Podemos não querer cinquenta, mas era aconselhável levar mais de três. – Olhou para Lance em busca de aprovação. Lance encolheu os ombros. – Tenho cinco pistolas comigo. Espero rendição imediata, se formos todos bem armados. Ives suspirou. – A senhora que se junte a nós para redigir a carta.

Gareth encontrou Eva no jardim. Estava sentada num banco antigo junto à parte reconstruída do muro. Tinha o caderno de esboços pousado no colo, por abrir. – Já chegaram? – perguntou ela, sem desviar o olhar do jardim, contemplando um pequeno pomar que havia nas traseiras. Havia flores a desabrochar nas árvores de fruto. Mais alguns dias de calor, e uma nuvem branca e cor-de-rosa iria surgir lá atrás. – Estão à nossa espera na biblioteca. Precisamos que escreva a carta que vamos deixar na estalagem. Eva não respondeu, nem olhou para ele. Gareth ficou à espera. – Nenhum deles questionou as cópias que eu fiz? – perguntou ela. – Não. Confiam no seu caráter tanto quanto eu. – Está a mentir. Tenta proteger-me denegrindo para isso o meu irmão. Gareth sentou-se ao lado dela no banco. – Quer que eu faça de si a criminosa, Eva? Deseja assim tanto poupar o nome do seu irmão? – Colocou a mão sobre a dela. – Farei o que conseguir para impedir que o papel dele seja conhecido, mas eles nomearam-no como cúmplice através desta jogada temerária. Não vou fingir o contrário, só por ser conveniente ou para pôr fim à sua frieza para comigo. Eva pestanejou. Os olhos dela fixaram-se nos arbustos e nas flores, e depois em coisa nenhuma. – Estou zangada consigo, por me obrigar a enfrentar a verdade. – Tentei arranjar alternativas. Ontem à noite tinha boas desculpas para


oferecer. – Parece que já nos conhecemos bem de mais para eu acreditar nelas. Estou tão envergonhada, Gareth. Por ele e por mim. Ter de enfrentar agora o duque e o Lorde Ywain... – Eles só sentem compaixão e preocupação consigo, Eva. E também alívio, por podermos resolver isto rapidamente e a sua irmã voltar para casa. – Gareth levantou-se, continuando a segurar-lhe a mão. – Venha lá escrever a carta. – Pegou no caderno de esboços e pô-lo debaixo do braço. Por fim, Eva olhou para ele. Enquanto caminhavam na direção da casa, agraciou-o com um sorriso discreto e pesaroso. – Quem diria que, ao ir em busca de uns momentos de prazer pecaminoso, encontraria um amigo tão bom. Gareth beijou-lhe a mão de modo tranquilizador. Quem diria.


CAPÍTULO 25

E

va estava sentada na biblioteca, tentando ler. Havia três lamparinas acesas, por isso se alguém espreitasse lá para dentro veria que estava sozinha. Veria igualmente dez quadros encostados às paredes, cujas cores brilhavam como joias derretidas. O plano era simples e, assim esperava ela, nada perigoso. Eva fora sozinha até à taberna com a carta, deixara-a ao proprietário e nada de desagradável acontecera. Na carta admitia que tinha o tesouro, expressava alívio por finalmente alguém o vir buscar e declarava que, evidentemente, o trocaria pela irmã. Os homens viriam naquela noite buscar os quadros que excediam o quinhão do irmão. Se não trouxessem Rebecca com eles, Eva ameaçara fazer um grande alarido. Tentou controlar os receios, mas a sua confiança ia ficando abalada à medida que o tempo passava. Por muito que estivesse sempre a lembrar-se de que não corria perigo, que havia três homens lá fora a andar de um lado para o outro e a vigiar tudo, não conseguia manter-se calma. Se Rebecca não estivesse no meio de tudo aquilo, talvez fosse diferente. Se Rebecca não tivesse levado a pistola, tê-la ali à mão também podia ter sido útil. Era impossível dizer quanto tempo teria de esperar. Tentou retomar a leitura. Lera dez páginas quando ouviu lá fora um ligeiro alvoroço. Vozes baixas e passos silenciosos aproximaram-se da casa. Eva inclinou-se para a frente de modo a ver o átrio. A porta abriu-se e surgiu o vestido amarelo de Rebecca. Seguiram-se três pares de botas. Eva pôs-se de pé e Rebecca correu na direção dela. Enquanto se abraçavam, Rebecca sussurrou:


– Tenho a pistola debaixo do xaile. Eles não. Não têm pistolas, quero eu dizer. Eva olhou por cima da irmã para os três homens. Noutras circunstâncias, um deles podia ser confundido com um cavalheiro, mas a bebida tornara-lhe a pele avermelhada e os olhos vazios, embora devesse ter apenas trinta anos. Os outros dois eram trabalhadores. Eva reconheceu o mais entroncado como um dos estranhos que avistara na zona nos últimos dois meses. A presença do terceiro, mais baixo, deixou-a chocada. – Erasmus? Está envolvido nisto? – exigiu ela saber. Ele brindou-a com um dos seus sorrisos francos. – Estou só a garantir que ninguém se magoa, Miss Russell, muito menos a senhora e Miss Rebecca. Estes sujeitos às vezes esquecem-se das boas maneiras. – Calculas a minha surpresa ao vê-lo quando me tiraram da carruagem que me levou daqui – disse Rebecca. – Estou muito desapontada consigo, Erasmus. – A vida prega partidas destas, menina. Isto é, pode desapontar as pessoas – afirmou ele. O cavalheiro ignorou-os a todos enquanto observava os quadros de perto. – Chamam-lhe Crawley – segredou Rebecca. – Fico toda arrepiada quando ele olha para mim. Naquele momento, Mr. Crawley examinava os quadros como se percebesse aquilo que estava a fazer. Eram os originais, e não as cópias que Eva fizera, caso os gatunos tivessem bom olho para a arte. – Onde estão os outros? – perguntou ele. – Era suposto haver mais. Cerca de vinte. – Os outros pertencem ao quinhão do meu irmão, disseram-me que podia ficar com eles. – Os quinhões não são uma questão de número, mas de valor. Estes aqui são os mais pequenos, não perfazem um terço do valor, por isso o restante não lhe pertence todo a si. Para começar, nem sequer concordei com essa proposta. Vou precisar dos outros também. – O meu irmão insistiu em que o resto era nosso. Ele foi muito claro a esse respeito quando me revelou a localização das obras de arte no seu leito de morte. Por isso, arranjei maneira de os vender. A expressão de Crawley tornou-se grave. – Vendeu-os? Isso não foi nada sensato. – O que eu disse foi que arranjei maneira de os vender. Isto é recente, e, segundo sei, ainda não foram vendidos. – Então volto a perguntar-lhe, Miss Russell. Onde estão os quadros?


– Espero que ainda estejam na posse do intermediário que irá facilitar a venda. Mr. Gareth Fitzallen. Os olhos descorados de Crawley começaram por revelar perplexidade, e depois humor. – Fitzallen! O rafeiro do Aylesbury? Que notícia esplêndida. Calculo que tenha de voltar à cidade para poder ter uma conversa com ele. Receio é que a sua irmã tenha de me acompanhar até que o seu quinhão seja de facto justo. Gesticulou na direção do camponês robusto que se mantivera em silêncio ao longo de toda aquela troca de palavras, e na de Erasmus. – É melhor vir, Miss Rebecca – disse Erasmus. – Não me parece. Daqui não saio. Crawley suspirou com exasperação, e fez um gesto na direção de Rebecca enquanto olhava para o homem grande. As botas pesadas deram dois passos. Eva enfiou a mão no xaile enrolado e retirou a pistola. – Nem eu nem a minha irmã seremos reféns neste mal-entendido. Vá falar com Mr. Fitzallen, se assim o entender. Não precisa de ir até Londres, uma vez que ele vive ao fundo da estrada. É lá que está o resto do quinhão do meu irmão, à espera do transporte para a costa. A pistola travou o matulão, que pareceu confuso ao ver a arma. Franziu o sobrolho para Crawley, como se as regras de um jogo qualquer tivessem mudado inesperadamente sem aviso. Crawley olhou para Eva e depois para a pistola. – Ainda estou para ver uma mulher acertar no alvo com uma pistola dessas. Diabos, as mulheres nem sequer sabem carregá-las. – Pratiquei até não poder mais, depois de vocês me terem destruído a propriedade. Posso esquecer isso se as nossas negociações chegarem ao fim de forma justa, senhor, mas não permitirei que a minha irmã fique à mercê de um estranho, sobretudo depois de concluir que a honra desse homem é bastante duvidosa. Crawley deixou transparecer uma sensação desagradável, malévola e perigosa. Eva empurrou Rebecca para trás de si e empunhou a pistola o mais firmemente que foi capaz. – O Fitzallen tem um comprador no continente? – perguntou Crawley. – Tem, sim. Levou algum tempo a arranjar, mas agora já está tudo tratado, foi o que ele me disse. Crawley parecia ter ficado a pensar no assunto. Era difícil dizer. O seu rosto inexpressivo e os olhos vazios tornavam impossível adivinhar-lhe os pensamentos e considerações.


– Ele vive ao fundo da estrada, não foi o que disse? – Não chega a um quilómetro. Não tem como se enganar. O Erasmus leva-o até lá. Ele conhece a casa bastante bem. – É melhor que não esteja a mentir-me. Se a casa estiver vazia ou os quadros tiverem desaparecido, não vou preocupar-me com a honra de ninguém, muito menos a minha. – Que desilusão, Mr. Crawley – disse Rebecca. – Depois de todas as nossas conversas sobre ética, é muito desanimador ouvi-lo fazer uma ameaça tão grosseira. Crawley revirou os olhos e depois apontou para Eva. – A senhora vem comigo e deixa-a aqui com as suas ideias reformadoras. Preciso que diga a Mr. Fitzallen que concorda com o que eu pedi. – Virou-se para o grandalhão. – Tu ficas aqui com ela, Wiggins. – Diabos, eu também não quero ficar a ouvi-la! – Então não ouças. Só não deixes que ela ou estes quadros saiam daqui. Eva passou a pistola para as mãos de Rebecca. Rebecca sorriu para o grandalhão e sentou-se. Ele sentou-se também, esmagando a cadeira. Não parecia satisfeito. Enquanto saía, ouviu Rebecca falar. – A questão da bondade e da maldade resume-se a possuirmos ou não almas, Mr. Wiggins. Se não for caso disso, então o tema da bondade não tem qualquer significado. Quando lhe pedi a sua opinião acerca deste assunto, nunca chegou a responder. Permita-me que o elucide com os argumentos de vários filósofos acerca desta matéria.

– Ela alterou o maldito plano – resmungou Ives, enquanto ele e Gareth montavam os cavalos. Tinham ouvido a conversa de Eva com Crawley encostados à parede da casa, debaixo de uma janela. – O dela é melhor – declarou Gareth. – É genial. Ele agora vem ter connosco diretamente. Se eu fizer tudo bem, vamos descobrir onde estão os outros quadros. De certeza que ele vai querer que eu os inclua nesta venda ao estrangeiro, se possível. Ives estendeu o braço e pegou na rédea, de modo a impedir que Gareth avançasse. – Vamos lá ver se nos entendemos. Nem o Crawley nem o outro magricelas


saem daqui. O Lance trata do grandalhão assim que o caminho estiver livre, mas não acredito que o matulão saiba o que queremos. Não sei o que pretendes fazer, mas nenhum deles vai sair daqui esta noite. Gareth concordou, embora isso limitasse as suas opções. Se estivesse por sua conta, aliciá-lo-ia com uma venda rápida no estrangeiro da coleção inteira de quadros escondidos de modo a chegar aos restantes. No entanto, Ives receava que Crawley fugisse. Ele pressupunha que Ives acreditava que, caso fosse necessário, Crawley podia ser obrigado a falar. Gareth tinha a certeza de que Erasmus falaria. Estava grato pelos seus bons instintos que tinham mantido Erasmus na ignorância em relação a este assunto e longe do Chalé Albany na maior parte da última quinzena. Arrancaram estrada acima a galope, sabendo que não tardaria a seguir-se uma carruagem. Crawley deixara-a ao fundo da estrada e dirigia-se agora à casa. Enquanto cavalgava, contava os passos de Eva até à carruagem. Ele e Ives deram a curva no momento em que previra que a equipagem se pusesse a caminho. – Eu trato dos cavalos – disse quando alcançaram o chalé. – Entro pelo jardim e subo até lá acima, de modo a não ficar longe da biblioteca. Deixa a porta aberta para que eu consiga ouvir. Gareth entrou na biblioteca, acendeu duas lamparinas, pegou num livro e despiu a sobrecasaca. Guardou a pistola na gaveta de uma mesinha que havia por perto. Tinha acabado de se instalar para começar a ler quando ouviu a carruagem chegar. Ouviram-se passos apressados vindos de baixo nas escadas. Não eram de Ives. Harold surgiu vestindo o casaco a correr e penteando o cabelo com os dedos. Espreitou para a biblioteca. – São os seus irmãos, senhor? Ou visitas? Gareth praguejou. Esquecera-se completamente que Harold passara lá a noite, para melhor poder servir o duque e o lorde que viriam de visita durante o dia. – Creio que são visitas. – Tinha de decidir rapidamente se confiava em Harold, ou se o mandava para baixo para Ives se encarregar dele. – Preciso que não se mostre surpreendido quando abrir aquela porta. Acompanhe-os até aqui e depois desça. Lorde Ywain está lá em baixo. Faça o que ele disser. Como bom soldado que era, Harold não mostrou sequer surpresa ao ouvir aquela estranha ordem. Endireitou-se e saiu. A porta abriu-se. Escutaram-se os sons abafados de uma conversa. Erasmus deu uma gargalhada. Seguiram-se passos e Eva entrou na biblioteca, seguida por


Erasmus e outro homem. Eva apresentou o estranho como Mr. Crawley. – Crawley? – repetiu Gareth. – O senhor não será por acaso primo do visconde Demmiwood? – Sou, sim. E eu também sei quem o senhor é. A senhora informou-me que tem em sua posse alguns dos quadros dela. Devido a um infeliz mal-entendido, alguns dos meus quadros foram levados por engano com esses. – Que diabo está para aí a dizer? – Gareth franziu o sobrolho para Eva. – Isto é extremamente irregular, Miss Russell. Tivera Mr. Crawley dado conta disto quinze dias mais tarde, e teria sido difícil e caro reaver o espólio. – Não o censuro por estar aborrecido, Mr. Fitzallen. Também estou aliviada por termos dado conta disto em boa hora. Gareth sorriu para Crawley. – Os quadros já estão em caixotes para serem despachados, mas se me disser quais são os seus, eu... – Um momento. Parece-me que o senhor arranjou um comprador para todos os quadros. Não vale a pena alterar os seus planos. Mas quando receber o pagamento, separe uma parte para mim. – Isso simplificaria certamente o assunto. – Gareth convidou Eva e Crawley a sentarem-se, e depois regressou ao seu cadeirão. – Ora bem, quais são os seus? O olhar de Crawley desviou-se para as garrafas de cristal pousadas numa das estantes. Depois retomou a atenção. – O Annibale Carracci é um deles. Há ainda a paisagem de Claude, e a Dánae de Ticiano. Gareth reprimiu a vontade de estrangular o homem. Acabara de identificar três dos quadros mais valiosos. Para além dos outros dez que ele achava que Eva iria devolver, o mais provável era deixá-la com um quinhão tudo menos justo. – De certeza que concorda com isto, Miss Russell? – perguntou-lhe ele. – Claro que sim. Mr. Crawley sabe melhor do que eu como foi dividida a coleção. – Eva olhou para o outro lado. Os olhos diziam apenas Não tem importância. Recorda-se? E não tinha, de facto, lembrou ele a si próprio. – Então, assim seja. Crawley mordeu o lábio superior por uns momentos. – O colecionador estaria interessado noutros quadros? É que eu tenho mais, sabe? Obras valiosas. – Tenho a certeza de que sim. No entanto, se tem mais obras desta qualidade, faria melhor em vendê-las aqui em Inglaterra. Foi só por falta de elementos


suficientes quanto à proveniência dos quadros que aconselhei Miss Russell a vender no estrangeiro. – Eu também preferia a venda rápida de todos eles de uma vez, tal como a senhora está a fazer. Gareth fingiu refletir sobre o assunto. – A minha intenção era embarcar estes quadros rapidamente. Não haverá tempo para escrever a confirmar se ele também está interessado nos seus. Eu julgo que sim, mas... – Se os acompanhar, envio igualmente os meus e faço a viagem consigo. Se este colecionador não quiser os quadros, há de haver outro que queira. – Certamente. Se são tudo aquilo que diz, estou certo de que haverá quem os queira. – Mr. Fitzallen apenas serve de intermediário nos melhores artigos – afirmou Eva. – Foi altamente recomendado. Veja bem, nunca discutimos detalhes até ele ter visto os quadros. – O que Miss Russell está a dizer é verdade. Teria de ver o que tem em sua posse. A coleção está aqui perto? – Gareth tinha esperança que Ives estivesse a escutar com atenção e compreendesse como estavam muitíssimo próximos de serem conduzidos ao resto das obras de arte. – Está a um dia de viagem. Talvez dois. – Os olhos de Crawley voltaram a semicerrar-se demoradamente na direção das garrafas de cristal. – Seria mais fácil se eu trouxesse vários quadros até cá. Não era próximo o suficiente. Maldição. – É dono de todos sem quaisquer obrigações? Não existem encargos patrimoniais? Certa vez, perdi quase um ano com uma coleção que afinal exigia a morte do pai do sujeito até poder ser vendida. – Neste caso, todas as mortes necessárias já ocorreram. – Crawley achou aquilo muito engraçado. Eva lançou-lhe um olhar perigoso. – Está a falar do meu irmão? A alegria de Crawley desvaneceu-se. – Não, cara senhora, não estou. Eva não acreditou nele. Gareth também não. Crawley contraiu-se nervosamente. Pôs-se de pé. – Vou manter-me em contacto, Fitzallen. Conto que faça o mesmo. Assim que os quadros forem vendidos, podemos chegar a um acordo. Se tudo correr bem, depois falamos dos outros.


– Espero que a minha residência seja poupada a mais intrusões – rogou Eva. Crawley encarou-a e fez-lhe uma vénia. – Tem a minha palavra. – Deu meia-volta para se ir embora, mas deteve-se. A saída estava bloqueada. Era lá que se encontrava Ives, de pistola em punho. Crawley girou sobre si próprio, procurando desesperadamente com o olhar outra saída. Gareth abanou a cabeça e exibiu a sua pistola. Ives aproximou-se, agarrou firmemente no ombro de Crawley e forçou-o a sentar-se na cadeira. – Antes de ir a algum lado, temos muito mais perguntas a fazer acerca dos quadros. Através da porta, era possível observar Harold avançando para a entrada de pistola em punho e uma expressão dura no rosto. – Gareth – disse Eva. – O Erasmus ficou na carruagem. Gareth dirigiu-se à porta no momento em que Harold fez pontaria para uma figura que corria na escuridão. – Não o mate, Harold. – Se é essa a sua ordem, senhor. Ouviu-se o estrondo de um tiro, seguido de um grito de choque e dor. Gareth e Harold caminharam poucos metros até onde Erasmus se contorcia de dores no chão, agarrado à perna. – Partiram-ma, desgraçados! – gritou ele. – Contenta-te por te ter restado a vida para te queixares – disse Harold. – No exército, dávamos outro tratamento aos traidores. A razão por que Mr. Fitzallen decidiu poupar-te ultrapassa-me. Gareth agachou-se e levantou Erasmus pelo braço. – Quis mantê-lo vivo porque ele gosta de falar. Não é verdade, Erasmus?


CAPÍTULO 26

realmente falou. Durante o tempo em que Harold lhe limpou a E Erasmus perna, a enfaixou e colocou uma tala na cozinha, despejou tudo o que sabia a Eva e a Gareth. Infelizmente, chegara tarde ao esquema e não sabia o nome de todas as pessoas envolvidas. Eva presumiu que Lorde Ywain estaria a convencer Mr. Crawley a fornecer esses pormenores no andar de cima. Ao invés, ouviu contar como Nigel recrutara Erasmus para o ajudar a reaver alguns bens guardados a certa distância dali, como conduziram uma carroça até lá ao longo de quase três dias e como a carregaram com inúmeros caixotes. Ficou a saber que apareceu outro homem quando estavam a ir-se embora, que trocou tiros com Nigel, o qual foi atingido por uma bala de lado. – Fartou-se de rogar pragas – disse Erasmus enquanto observava Harold a tratá-lo de modo muito pouco gentil. O suor humedecia-lhe o cabelo, resultado do medo e da dor. – Primeiro amaldiçoou aqueles que esperavam que ele ficasse eternamente à espera que a mercadoria se transformasse em dinheiro, e que depois lhe mentiram ao dizer que tinha desaparecido e que já não havia nada para vender. Ele percebeu que era mentira, foi o que me disse, e precisava do dinheiro. Eva queria acusá-lo de faltar à verdade, mas naquele momento Erasmus estava demasiado assustado para mentir. Sentia-se descoroçoada. Nigel era cúmplice no roubo dos quadros, tal como Mr. Crawley sugerira. – Ajudaste-o a guardar os caixotes quando regressaram a Langdon’s End? – perguntou Gareth. Erasmus abanou a cabeça.


– Ele deixou-me na outra ponta da vila. Eu disse que era melhor ajudá-lo, que com aquele ferimento ainda se matava a arrastar de um lado para o outro os caixotes mais pesados. Não me deu ouvidos. Transportar os caixotes até ao sótão deve ter feito o ferimento piorar, pensou Eva. Possivelmente, terá acabado por o matar. – Como é que chegaste a este homem hoje? – quis saber Gareth. Erasmus ficou completamente ruborizado. – Cruzei-me com eles da primeira vez que foram a casa de Miss Russell. Ela tinha-me pedido que passasse por lá todos os dias para ver como estavam as coisas, e nessa manhã estavam lá esses dois homens. Wiggins, o grandalhão, e o outro. Deram-me cinco xelins e continuaram o que estavam a fazer. Eu não fazia ideia de que estava relacionado com os caixotes daquela outra noite. Expliqueilhes que não havia nada para roubar, mas eles não quiseram saber e eu não consegui impedi-los. Depois, no dia seguinte, avistei Mr. Crawley na vila com o Wiggins, que apontou para mim, e lá apareceram mais cinco xelins na minha mão. – Reconheceste Mr. Crawley da noite em que ajudaste o Nigel Russell? – Não o vi lá. Mas é possível que lá estivesse. Eu estava na carroça com o gado às ordens de Mr. Russell, não é verdade? Nesse momento, Harold puxou a corda para segurar a tala no sítio. Erasmus gritou de dor. – Diabos, não tens de tentar matar-me! Somos amigos, por amor de Deus. – Amigos? Andas há anos com um sorrisinho na cara por causa de um grande segredo e agora descubro que era isto. Meu amigo é que não és, se andas metido com patifes da laia destes que estão lá em cima. – Harold voltou a puxar a corda por precaução. – Isto vai ter de servir até o cirurgião remover a bala. Não tarda estás em forma para ir para a forca. – A forca! – O que julgas que acontece a quem rapta raparigas de casa delas, idiota? – Eu não a raptei. Insisti em ir também para ela não ficar assustada. Imaginei que o Wiggins pudesse ter ideias e eu podia mantê-la a salvo. – Diz isso em tribunal, pode ser que acreditem mais em ti do que eu. – Harold afastou-se, repugnado. Gareth ofereceu o braço a Erasmus. – Agora vais ter de te levantar e vir cá para fora. As perguntas ainda não acabaram. Eva também foi ajudar Erasmus. Em conjunto, ela e Gareth ajudaram-no a


caminhar até ao jardim. Já lá estava Mr. Crawley, com uma expressão dura e determinada. Harold estava por perto, de pistola a postos. Lorde Ywain colocarase a vinte passos de distância, com a pistola pousada no banco ao seu lado. Quando os viu surgir, aproximou-se. – Não abriu a boca. Não disse nem uma palavra. Além disso, há qualquer coisa nisto tudo que o diverte. – Não ganha nada em cooperar – disse Gareth. – Afinal de contas, revelar a localização dos outros quadros era prova de que os tinha levado. – Mas nós precisamos dessa informação. Gareth examinou a expressão de regozijo de Crawley. – Ele só está à espera de ouvir que o libertas depois de reavermos os quadros. A localização deles é a única cartada que tem, mas é um trunfo. O rosto de Lorde Ywain endureceu. – Estás a sugerir que eu... – Não finjas que não o fizeste antes, se fosse a única forma de saberes o que precisavas. Lorde Ywain olhou para Eva. – Lamento que tenha de nos ouvir regatear com a justiça, sobretudo tratandose de negar justiça à sua família, se optarmos por isto. Basta uma palavra sua e nós contentamo-nos apenas com uma parcela dos quadros desaparecidos. Eva olhou para Crawley. Ele já decidira levar o jogo até ao fim. Interrogou-se se teria sido uma bala da pistola dele que a condenara a cinco anos de uma penosa escravidão ao lado de um Nigel amargo e melancólico. Isso agora importava? Eva queria que aquilo terminasse. Queria o assunto concluído. Queria que Crawley e os quadros desaparecessem. Queria a sua vida de volta, de modo a poder olhar para o futuro e não para o passado. – Se conseguir obrigá-lo a sair de Inglaterra, não me interessa a que acordo chega. Mas se ele ficar em liberdade, o Erasmus e os outros dois também ficam. – Vê se consegues descobrir quem eram os outros cavalheiros – acrescentou Gareth. – Duvido que ele te diga, mas tenta. Lorde Ywain caminhou na direção de Crawley. – Não tem de aceitar isto – disse Gareth a Eva. – Podemos tentar arrancar-lhe a informação com uma tareia. – O seu irmão nunca concordaria com isso. – Não conhece muito bem o meu irmão. Eva teve de sorrir. – A minha generosidade não é pura, confesso-o com vergonha. Espero que, se


mostrarem misericórdia a Mr. Crawley, eu seja capaz de receber o mesmo. Conto que à luz de tanta ladroagem, o seu irmão não se importe muito que eu tenha copiado aqueles quadros com boas intenções, ou que os tenha forjado deliberadamente. – Acho que ele já se esqueceu completamente disso. – Talvez, por agora. Mas não tardará a lembrar-se. – Ele não vai querer saber disso. Não faz parte da missão dele. – Gareth pegou nela pela mão e afastou-a dos outros. – Não tardarão a partir. Quando tal acontecer, não se vá embora. – A minha irmã... – Eles que a levem para casa das irmãs Neville. Ela hoje devia fazer coisas normais, em vez de passar as horas restantes do dia a recordar-se do seu suplício. – Puxou-lhe a mão para cima e beijou-a. – Fique aqui comigo. Eva cerrou os olhos para que nada a distraísse daquele beijo que a acariciara como o toque de um pincel aveludado. Sentiu dentro de si um contentamento de prazer, lembrando-a de que a sua própria normalidade fora maravilhosa recentemente. – Receio que, ao concordar com isso, volte a ficar em perigo – disse ela. – De qualquer modo, fique. O ligeiro sorriso de Gareth e o seu olhar terno prometiam o melhor dos perigos. – Vou entrar agora – retorquiu Eva. – Invente as desculpas que quiser por mim.

– Que coisa dos diabos! – exclamou Ives. Não parecia satisfeito com a conversa com Crawley. – Ele apenas acha que sabe onde está o resto dos quadros, e mesmo assim tem só uma ideia geral. Segundo ele, depois de terem roubado e guardado os quadros, o líder informou-os de que um incêndio os destruíra a todos. O Crawley ficou desconfiado, mas de facto a localização estava reduzida a cinzas quando lá foi dar uma vista de olhos. – Como sabia que o Nigel tinha ficado com alguns? – Só descobriu que alguns dos quadros tinham escapado quando, há três meses, se cruzou por acaso com uma das cópias de Miss Russell numa casa que visitou em Birmingham e percebeu que o Nigel teria levado parte deles antes do incêndio, ou depois, se o incêndio tivesse sido um embuste. Quanto à localização geral onde ele suspeita que os quadros estejam agora guardados, não ma vai facultar. A menos que, além de o libertarem, lhe paguem uma maquia simpática.


– Isso não vai acontecer. – Pois não. Também não vai facultar os nomes dos outros cavalheiros envolvidos, embora tenha dito que o líder já morreu. Entrega de bom grado o Wiggins e os outros da laia dele, claro. A propósito, tudo começou como uma brincadeira. O Crawley soube da transferência dos quadros ao ouvir por acaso o Demmiwood falar no assunto. Ele e uns amigos destas partes, uns anos depois de o último duque de Devonshire ter morrido, arranjaram uma desculpa para afastarem o mordomo e levaram tudo dali para fora novamente. – Imagino que a certa altura tenha deixado de ser uma brincadeira. Provavelmente quando um deles soube do valor de alguns dos quadros antigos. – Começaram a discutir por causa disso. Alguns deles, como o Russell e o Crawley, queriam desesperadamente vendê-los. À época, eram ambos jovens e estavam endividados. Outros, incluindo um cavalheiro anónimo que tinha uma influência considerável sobre os restantes, o tal líder de que o Crawley fala, não queriam. É por isso que o Crawley acha que o incêndio foi um embuste. O mesmo cavalheiro certificou-se de que conseguia levar a sua avante dizendo-lhes que não havia nada para vender por esse motivo, mas o Nigel acusou-o de estar a mentir. Quando, recentemente, o Crawley deu de caras com uma das cópias de Miss Russell, isso era a prova de que os quadros ainda existiam algures e ele presumiu que a cópia significava que ela sabia onde estavam. Gareth supunha que esse cavalheiro anónimo saberia que era mais fácil falar do que fazer uma grande venda de quadros. Crawley também iria perceber isso rapidamente. Se não tivesse sido confiada esta missão a Ives e ele não tivesse arrastado para ela o seu irmão bastardo, será que alguma vez Crawley teria abordado Mr. Fitzallen para o ajudar com a venda? – Porque estás a sorrir? – quis saber Ives. – Por causa de um pouco de ironia hipotética. Portanto, parece que está tudo o mais resolvido possível. – Em troca da sua liberdade, Mr. Crawley vai conduzir-me ao local onde os quadros estavam anteriormente guardados. Vá-se lá saber porquê, desatou a rirse com essa ideia. – E se averiguássemos se o matulão do Wiggins também sabe? Nesse caso, já não terias de negociar. O Lance pode ter aterrorizado tanto o Wiggins que ele contou tudo o que sabia. – É boa ideia. Vamos até lá descobrir. O Erasmus pode ir no cimo da carruagem, a senhora vai no interior, o Crawley pode ir a pé, e tu e eu levamos os nossos cavalos.


Ives começou a afastar-se. – Acho que deixo o resto contigo – disse Gareth, travando-o. – E creio que a senhora está a descansar. Está exausta, visto ser de natureza delicada. Ives deu meia-volta e voltou para trás. – Sentiu-se a desfalecer? – O drama deixou-a completamente desfeita. – E tu tencionas ficar para trás para olhar pela saúde dela? – Alguém tem de o fazer. – Ela tem uma irmã. O que fazemos com ela? – Levem-na para junto de amigas na vila. As irmãs Neville. Ela vai gostar. Ives deu uma leve risada. – Pelo bem das senhoras, e da sua reputação, a minha intenção é que ninguém na vila saiba deste rapto. Posso contar também com a discrição delas? – Miss Russell é a discrição em pessoa. Estou certo de que a irmã também saberá ver que é o mais certo a fazer. Ives tornou a afastar-se. – Regressarei quando tudo estiver terminado e digo-te onde encontramos os quadros que conseguirmos reaver, se encontrarmos algum. – Melhor ainda, escreve-me uma carta.


CAPÍTULO 27

da primavera deslizava sobre Eva, fazendo crescer as suas expectativas. Abrisa Eva ficou imóvel e escutava os sons que entravam igualmente pela janela que abrira de par em par. Ouviam-se vozes e botas deslocando-se pela casa em direção à parte da frente. Depois, o som de cavalos a relinchar e a pisotear e a porta de uma carruagem a abrir-se. Erasmus exclamou de dor e Harold reclamou com ele. De seguida, a carruagem pôs-se em movimento e o ruído que fazia ia diminuindo gradualmente. Eva estava à escuta, a aguardar. Por fim, ouviu passos de botas no soalho do piso de baixo caminhando lentamente em direção à biblioteca. Uma interrupção, e depois mais passos aproximando-se da escadaria. Imaginou Gareth a reparar no seu chapeuzinho pousado na cadeira do átrio. As botas subiram pelas escadas. O som de cada passada excitava-a ainda mais. Afastou o lençol que a cobria, para que ele percebesse logo que ela desejava todo o perigo que ele fosse capaz de proporcionar. Mas Gareth não entrou nos seus aposentos. Em vez disso, dirigiu-se ao quarto de vestir. Eva ouviu-o lá dentro, a andar de um lado para o outro. Gareth fê-la esperar muito tempo. Entretanto, o desejo dela aumentava até já se sentir tão quente que o seu corpo se excitava com as carícias frescas e suaves da brisa. Por fim, entrou no quarto, com o cabelo húmido do banho e os olhos cheios de uma profunda paixão. Tal como ela, também estava nu. Nu, belo e excitado. Gareth aproximou-se e ficou de pé junto à cama. – Está impaciente.


– Sim. – De qualquer modo, acho que vou obrigá-la a esperar. – Acariciou-lhe o rosto de lado com as pontas de dois dedos. A lenta carícia prolongou-se pelo maxilar e depois pelo pescoço. A respiração de Eva acelerava à medida que ele lhe tocava mais abaixo ainda, por cima do volume dos seios. Quando lhe beliscou o mamilo firme, as costas arquearam-se em reação àquela magnífica sensação. Gareth demorou-se aí até Eva começar a contorcer-se e a gemer, desistindo de tentar controlar o prazer. – Eva, acabaram-se os pedidos para deixar de lhe tocar, ou para nos refugiarmos na amizade. Acabou-se a intenção de sermos bem-comportados e cautelosos. Ela já não queria discutir. Concordava com tudo. Só que agora já não era apenas o seu corpo que acatava a ordem. O coração anuía igualmente, confiante e seguro de que o amor não lhe dava outra alternativa. Não valia a pena negar aquilo que se tornara o centro do seu mundo. As pontas dos dedos de Gareth voltaram a serpentear pelo corpo de Eva abaixo. Apesar da maneira como toda a consciência dela desfrutava daquele prazer, também queria que ele conhecesse a mesma doce tortura. Eva aproximou-se e usou as suas próprias carícias suaves na ereção de Gareth, percorrendo o pénis dele de cima a baixo com os dedos. Imaginara-se a fazer amor com ele várias vezes desde o último encontro em Londres. Via-se a si própria a fazê-lo devidamente e com grande sofisticação. Não o visualizara assim, de modo tão passivo, quase lânguido. Em sonhos, fora a deusa Vénus. Passou as pernas para o outro lado e sentou-se na beira da cama. Tomou-o nas suas mãos com mais intencionalidade. Passou uma das mãos à volta do pénis e usou a outra para lhe acariciar a ponta. – Assim? – Sim. – A voz dele surgiu, entrecortada e grave. – Raios, sim. Eva gostou daquele tom na voz dele. Adorava tê-lo de pé de frente para ela, de pernas bem abertas tentando não cambalear. Adorava como ele a deixava aprender sozinha, o que fazia os dentes dele rangerem e as palavras saírem como maldições sussurradas. Gareth aproximou-se ainda mais e alcançou a zona abaixo dos braços dela de modo a provocar-lhe os seios. A excitação e a impaciência voltaram a dominá-la. Tremia de descontrolo. Eva beijava-lhe a barriga enquanto o acariciava. Beijava-


o numa demonstração de gratidão pelo prazer e tantas outras coisas. E pareceulhe muito natural desviar os beijos para a ponta da ereção dele. A reação de Gareth mostrou-lhe o quanto ele desejava aquilo. Os seus gemidos discretos orientavam as explorações de Eva. A espiral de tensão que ele sentia tornou-se tão forte que, de súbito, ela se viu a cair novamente na cama. Gareth afastou-lhe as coxas e levantou-lhe ambas as ancas até ficarem paralelas ao leito. Penetrou-a três vezes. De todas elas, lançava a cabeça para trás e cerrava os olhos como se sentisse o mesmo que ela, que esta união aliviava uma fome insuportável. De seguida, prendeu-lhe as pernas à volta das ancas e possuiu-a, observando-a enquanto gritava, e implorava por mais.

– Devia voltar para casa. A Rebecca está sozinha. – Ela está de visita em casa das irmãs Neville. O Harold depois trá-la de volta e fica à espera. Não precisa de ir já. – Planeou tudo muito habilmente. – Também achei. Eva sentou-se e deslocou-se para a beira da cama. – Por fim, tenho fome. Vou buscar comida para nós. – Estendeu o braço para a combinação e vestiu-a. – Eu também vou. Está um dia bonito. Comemos lá fora ao sol. – Gareth dirigiu-se ao quarto de vestir e vestiu qualquer coisa. Quando regressou, Eva estava a olhar para si própria nua, e depois viu-o a ele apenas de calças vestidas. – Ninguém nos vai ver lá fora ao sol, mas não deixa de parecer pecaminoso. – A Eva gosta de tudo o que seja pecaminoso, por isso deve agradar-lhe. E assim desceram as escadas. Gareth reparou que o chapeuzinho e o caderno de esboços dela estavam no átrio e pegou neles de caminho. Colocou-lhe o chapeuzinho na cabeça. – Assim fica com a tez protegida. Eva levou a mão ao chapeuzinho, voltou a fitar a combinação, e riu-se. Na cozinha, pôs-se a preparar um tabuleiro para levar para o exterior. Gareth passava indolentemente as páginas do caderno de esboços, virando-as para trás e para a frente. Encontrou um desenho que fizera dele enquanto dormia. Devia têlo feito naquela tarde em Londres. Era bastante bom. Tal como as cópias dela, mostrava um bom olho e uma mão firme. Se lhe dessem uma oportunidade, era provável que Eva se tornasse uma grande artista.


Continuou a virar as páginas, até que uma delas revelou um desenho muito estranho. – O que é isto? Eva olhou para trás. – Oh, isso. Foi o Nigel que o fez. Existem aí mais uns tantos. Enquanto estava a convalescer, o Nigel revelou-se um paciente demasiado irrequieto. Nem dormir conseguia, mas era incapaz de dar grandes passeios nem descansava o suficiente para ler. Sugeri-lhe que tentasse desenhar. Esse foi o fraco resultado. No entanto, manteve-o ocupado por muitos dias. – Estendeu o braço para os pratos. Gareth enfiou o caderno de esboços debaixo do braço, pegou no tabuleiro e seguiu Eva em direção ao jardim. Almoçaram numa mesa rústica por baixo de uma árvore em flor. Gareth tentava decifrar os estranhos desenhos de Nigel enquanto comia presunto e ovos cozidos. – Acho que é uma paisagem – disse ele. – Uma paisagem primitiva. Os mapas antigos eram feitos deste modo. Eva esticou-se para ver. – Talvez. Ele não tinha qualquer formação. Uma criança desenharia assim, misturando as perspetivas dessa maneira. No entanto, agora que fala nisso, julgo que isso é a vista da nossa janela das traseiras. Isso deve ser o muro ao fundo do jardim e estas devem ser as árvores. Gareth virou a página e viu mais do mesmo, só que muito mais elaborado. Aquela paisagem tinha edifícios. Talvez fosse uma memória. Continuou a avançar, até ao trabalho mais recente de Eva. Ela andara ocupada. No entanto, enquanto analisava os desenhos dela, havia algo acerca do desenho de Nigel que não lhe saía da cabeça. De repente, percebeu do que se tratava. Regressou ao segundo desenho. Gareth conhecia aquele lugar. Identificara a casa, os muros, os lagos e as colinas. Os anexos estavam corretamente alinhados. Até havia uns cavalinhos toscos no pasto certo junto à margem da folha. – Eva, o seu irmão conhecia alguém ligado à família do meu pai? – Julgo que não. – Aproximou-se e espreitou por cima do ombro dele. – O que o faz dizer isso? – Porque isto se parece com Merrywood. Até o desenho da casa é uma interpretação infantil dela, com o telhado esconso e a cave com pedras rústicas. – Se assim o diz. Sempre achei que ele estava a tentar reproduzir as minhas paisagens, com resultados infelizes. Não fora a casa principal que atraíra a atenção de Nigel. Ao invés, a


reprodução dos anexos revelava um enorme cuidado nos pormenores e posicionamento. Incluíra igualmente a leste algumas casas de campo arrendadas e até desenhara os caminhos que conduziam a elas. Traçara o mapa da propriedade razoavelmente bem. Numa das casas de campo não se viam carroças nem galinhas por perto. Era possível que estivesse vazia. Nigel agraciara esta casa com uma linha grossa por baixo. À esquerda desta, na mesma estrada, aparecia outra casinha de campo, mas apenas com metade do telhado e paredes enegrecidas, como se tivesse sido destruída por um incêndio. Gareth olhou fixamente para a casa de campo. Um dos cavalheiros envolvidos no roubo morrera recentemente. Era aquele que tinha grande influência sobre os outros. Aquele que provavelmente inventara um incêndio de modo a convencer os companheiros de que os quadros tinham desaparecido e estavam indisponíveis para venda. Seria o mesmo que era dono da casa de campo arrendada que se via do edifício principal, que ele se esquecera de reconstruir ou consertar durante mais de cinco anos? Gareth lembrou-se de ter reparado naquela monstruosidade ao aproximarse de Merrywood. Percy, seu ladrão velhaco. Não era de admirar que Crawley tivesse achado tão divertido que fossem ele e Ives a tentar localizar os quadros. Como iria rir-se quando, após ter obtido tudo o que conseguisse atraindo-os com a promessa de mais informação, acabasse por conduzir Ives à sua própria residência de família como o local mais provável onde encontrar o resto da coleção. Eva ergueu-se e dirigiu-se a uns arbustos. Alguns bolbos precoces desabrochavam em flor junto às hortaliças. Dobrou-se para arrancar parte deles. A combinação subiu-lhe pelas costas enquanto o fazia, revelando a parte de baixo das suas nádegas protuberantes. Gareth fechou o caderno de esboços, muito mais interessado agora no erotismo encantador da amante. Iria escrever a Ives pedindo-lhe que procurasse em Merrywood e nas casinhas de campo quadros que a família não devia ter. Não tinha de dizer mais nada a Ives. Fazendo mais algumas perguntas era provável que viesse a lume que Nigel e Crawley de vez em quando pegavam nos cavalos para beber em tabernas rurais com Percy, duque de Aylesbury, um homem conhecido por causar dor e mágoa nos outros apenas para seu próprio contentamento perverso.


CAPÍTULO 28

–E

stá muito calada, Eva. Era suposto esta viagem ser divertida para si, mas tem passado muito tempo embrenhada nos seus pensamentos, e está novamente a fazê-lo. Eva desceu à terra. Apertou a mão do homem que viajava a seu lado na carruagem. – Peço desculpa. Recebi uma carta da Sarah imediatamente antes de me ter vindo buscar. – Más notícias? – Não exatamente, embora a Sarah não esteja em si. Parece que Mr. Trenton as tem visitado com frequência agora que a Rebecca está novamente em Birmingham. – O poeta. – Sim. O pior, no entanto, é que Mr. Mansfield deixou de aparecer completamente. A Sarah tem a certeza de que a Rebecca arruinou as hipóteses que tinha com ele. – Se o homem não caiu nas boas graças da sua irmã, a Eva não iria querer que ela se casasse com ele, pois não? A vida é demasiado longa para estarmos num casamento que não queremos. Era bem verdade. Eva não tinha críticas a apontar à resposta. Além disso, jamais iria querer que Rebecca fosse uma daquelas rapariguinhas que se visse tão-somente a tolerar o leito conjugal. Não quando ela própria sabia quão maravilhoso isso podia ser. – Mas Mr. Trenton? – Eva suspirou. – Serei assim tão horrível por desejar que


a minha irmã se case com um homem que tenha pelo menos uma fortuna modesta e perspetivas decentes? – A Rebecca ainda é jovem. Ela também há de acabar por discutir filosofia com Mr. Trenton, e aí será o fim do namorisco. Eva riu-se. O duque contara a Gareth que quando chegara a casa dela, tinha encontrado Wiggins à beira das lágrimas, agarrado à cabeça, enquanto Rebecca dissertava. Wiggins confessara a Lance que preferia ser enviado para as galés do que passar mais um minuto que fosse a ouvi-la. – Estamos a chegar à vila – notou Gareth, apontando para o exterior da janela. – E é agora que me vai dizer que vila é? Todo esse sigilo é muito estranho. – É Coventry. Quando passarmos junto ao centro histórico, imagine Lady Godiva a cavalgar vagarosamente. Por respeito, todos os habitantes se retiraram e fecharam as janelas, para que o gesto em nome do povo não se revestisse da humilhação que o marido pretendia. A carruagem conduziu-os àquelas ruas, desembocando de seguida numa outra ladeada por casas elegantes. Parou em frente a uma delas que parecia ser o género de residência de um mercador abastado. Contava três andares, era feita de pedras de um branco imaculado e tinha um pequeno jardim na parte da frente rodeado por uma cerca de ferro e um portão. Gareth abriu a porta da carruagem e saiu. – Quero que conheça uma pessoa. Eva aceitou a mão dele e juntou-se a ele no passeio. – Quem? – A minha mãe. Eva fincou instintivamente os pés. – Devia ter-me avisado. – Devia, mas não o fiz. Levou a mão ao cabelo, de modo a assegurar-se que não tinha ficado muito despenteado pela indiscrição que tivera lugar na carruagem uma hora antes. – Dadas as circunstâncias, não devia ter sido pecaminoso. Ela vai perceber logo quando colocar os olhos em nós. – Eva examinou-o e não encontrou quaisquer provas. – Pronto. Quando colocar os olhos em mim. – Não se preocupe. Uma mãe conhece o seu filho. Se ela perceber, vai pôr as culpas em mim e não pensará mal de si. Entraram em casa pela porta que um criado abrira. Um lacaio escoltou-os à sala de estar. À chegada, uma mulher contemplou-os. Não era preciso ninguém dizer que se tratava da mãe de Gareth. Eram muito parecidos. Não era uma


mulher bonita. Talvez nem sequer bonita de uma maneira normal. Mas os olhos e cabelos negros, a boca franca e o rosto esculpido criavam um semblante impressionante e memorável que podia tornar aborrecida e superficial a beleza mais previsível. Ergueu o sobrolho ao ver Eva. Aquela visita também parecia ser uma surpresa para ela. – Mãe, gostaria de lhe apresentar Miss Eva Russell, uma vizinha. Miss Russell, esta é a minha mãe, Miss Johnson.

– Ela não é apenas uma vizinha. – A mãe de Gareth fez aquela afirmação assim que Eva saiu da sala de estar. Ao ouvir que a casa tinha um belo jardim, pedira para o ir ver, após ser sujeita a um interrogatório severo durante o qual a mãe dele lhe perguntou sobre a família, vida, educação e várias outras dúvidas maternais. – Pois não. – Nunca trouxeste uma das tuas amantes para me conhecer. – Pois não. A mãe bebeu o que restava do seu chá. Gareth aguardou. – Ela quase não tem dinheiro. As propriedades da família estão muito desfalcadas e o que existe tem de ser partilhado com a irmã. A Eva tem estado recolhida há já alguns anos, e apesar de ser atraente, não é uma grande beldade como algumas das mulheres com quem estiveste. Se a lista de defeitos tivesse vindo de outra pessoa qualquer, Gareth teria respondido duramente. No entanto, ela estava apenas a ser mãe. Gareth tinha a felicidade de Eva não ter uma que pudesse apontar-lhe o que ele tinha em falta. – Ela serve-me. A mãe deu uma gargalhada. – Durante algum tempo, todas elas te serviram. – Acho que me vai servir durante muito tempo. Por muito e bom tempo. A mãe pareceu um pouco desanimada. – Vim cá dizer-lhe que a propriedade agora é minha. O Lance desistiu do requerimento. A casa é minha, bem como a propriedade, tal como desejava o meu pai. O rosto dela iluminou-se de alegria. – Nunca pensei que este dia chegasse. Fico feliz por ti, e feliz por os desejos do Allen terem sido respeitados.


– Lá para o verão já deve estar habitável. Gostava que a mãe fosse conhecer o Chalé Albany durante o outono, para ver como ficou. A mãe ficou em silêncio. A expressão do seu rosto era insondável. – Chalé Albany? – Acho que não lhe cheguei a contar. Foi o nome que lhe dei. – Os teus irmãos não se importam? – Eles não têm nada que se importar. No entanto, nenhum deles pareceu chocado ou descontente por causa disso. A expressão orgulhosa da mãe estremeceu. Os olhos encheram-se de lágrimas. Gareth aproximou-se, sentou-se ao lado dela e tomou-lhe as mãos nas suas. Ela fungou e limpou os olhos com um lencinho delicado. – Obrigada. É uma honra, Gareth. – Recompôs-se, e segurou as mãos dele com força. – Se engravidares aquela rapariga, tens de agir corretamente. – Sim, mãe. – Não terás desculpa nenhuma, e não é admissível uma linhagem de bastardos na família. Gareth deu uma gargalhada. – Sim, mãe. Ela deu-lhe uma palmada no ombro. – Para com isso. Fico feliz por gostares dela. Caso contrário, nunca a terias trazido cá. Vai ter com ela, e ponham-se a caminho. Gareth levantou-se, depois inclinou-se e beijou-lhe a cabeça. – Vemo-nos em breve. Já estava quase a chegar à porta quando a mãe voltou a falar. – Gareth, achas que há alguma hipótese de um dia a engravidares de facto? De um dia eu vir a ter um neto? Ele sorriu, e dirigiu-se ao jardim.

– Acho que nos devíamos casar, Eva. Eva pestanejou, olhou para baixo e viu a cabeça escura de Gareth aninhada entre as coxas dela. O que ele lhe fez em seguida arrancou-lhe um gemido que ecoou pelo jardim. – Eu... Isto é muito... – Eva tentou falar, apesar da loucura e espanto que sentia. Gareth repetiu o que tinha feito. Ela quase desmaiou. Quando sentiu os pensamentos mais claros, estava agarrada à relva, tentando recuperar o fôlego. – Pare com isso! Precisamos de conversar.


– Só um momento. Seria má educação deixá-la assim. Claro que não parou. Nunca parava. Com uma eficácia alarmante, fê-la atingir o orgasmo sem aviso, e depois mudou de posição e deitou-se junto a ela. Eva precisou de vários minutos para se acalmar, depois segurou-lhe no rosto e fitou-o. – Esta deve ser a proposta de casamento mais invulgar que uma mulher jamais recebeu. – Obrigado. Pareceu-me original. – No entanto, não será fácil contar os pormenores aos amigos quando eles perguntarem. Ele ajoelhou-se, Eva? Ficou à espera de um pôr do sol glorioso? Na verdade, não, Sarah. Pediu-me em casamento enquanto a língua dele explorava de modo escandaloso as minhas partes íntimas. Gareth pregou-lhe um beijo na face. – Ao menos, nunca irá esquecer-se. Não. Jamais. – Julguei que não acreditava no casamento, exceto por razões práticas. Casarse comigo não ajudará o crescimento da sua fortuna, portanto isto não faz qualquer sentido. Gareth passou o dedo pelo queixo dela. – Dei-me conta de que as minhas opiniões acerca desse assunto foram irrefletidas. Acerca do casamento, e também do amor. – A sério? Acerca do amor também? – Sobretudo acerca do amor. Como deve calcular, fiquei perplexo ao perceber quão enganado estava. – E quão enganado está? Gareth deu uma gargalhada. – Não me vai facilitar a vida, pois não? – Depois de todos aqueles discursos no passado, vou querer ouvi-lo retratar-se completamente. – Não é uma retratação. É um codicilo. Um acrescento. Eva ficou à espera. – Tudo o que eu disse naquele dia continua a ser verdade, numa situação normal. No entanto, se uma pessoa tiver muita sorte, é possível que um homem possa sentir um amor muito especial por uma mulher. Uma espécie de amor que afete da melhor maneira possível o prazer, e que seja maior do que este, ou do que qualquer outra coisa que tenha a ver consigo próprio. A garganta dela ardia. Depositou-lhe um beijo nos lábios.


– E se esse homem tiver mesmo muita sorte, a mulher sentirá o mesmo amor por ele – acrescentou Gareth. – Sente, Eva? Ela anuiu. – Sim. Sinto, sim. – Então quero ter a certeza de que é minha para sempre. Quero casar-me consigo. Eva não sabia o que dizer. Não tinha preparado uma resposta, uma vez que não esperava ouvir a pergunta. – Se se tratasse apenas de amor, aceitaria do fundo do coração, Gareth. Estou completamente apaixonada por si, contra todos os meus instintos e mesmo contando ficar com o coração partido. – Não haverá corações partidos. Juro-lhe. Não posso censurá-la por não acreditar em mim, mas nunca irei magoá-la de maneira alguma. – Depois de tantos anos a portar-se mal, acha realmente que consegue parar? – Juro que o farei. Claro que continuarei a poder portar-me mal consigo. Não me desejaria, se eu fosse demasiado bonzinho. – Se nos casarmos, aquilo que fizermos deixará de ser pecaminoso. Gareth deu uma gargalhada, e tocou-lhe levemente no nariz com a ponta do dedo. – A Eva é adorável, e, no mínimo, ainda bastante inocente. Sobram imensas coisas para fazermos que vai achar bastante pecaminosas, mesmo estando nós casados. – Sim? – Não começámos sequer a explorar a paleta de prazeres que irá conhecer. Eva deu uma gargalhada, e beijou-o. – Acho que está a tentar subornar-me. – Pense antes nisto como a negociação de um acordo. Eva trepou por Gareth acima, de modo a aconchegar-se nele ainda mais, com a orelha de encontro ao seu peito e o corpo moldado ao dele. – Então, estamos de acordo? – Gareth não a largava. – Queria que soubesse que encontrei uma maneira de levar o seu plano em frente. Eva ficara demasiado feliz para pensar nos planos que tinha e em como o casamento não se enquadrava neles. – Imagino que tenha de os alterar ligeiramente. – Nem por isso. O Rockport propôs-me que eu o representasse nos negócios dele no continente, tal como fiz muitas vezes com coleções de obras de arte. Se pelo menos metade do que ele disse se concretizar, teremos todos os serviçais de


que necessitar. Uma vez por ano podemos passar algum tempo em Londres, para que possa igualmente estudar arte. Ou então podemos ter uma casa em Birmingham e tem lá aulas com um professor. Eva ergueu-se e contemplou-o. – Vai aceitar trabalhar para o Wesley? – Não exatamente. Irei, no entanto, continuar a fazer aquilo que faço há muitos anos. – Sabe que não precisa de se casar comigo para me ter, não sabe? Gareth aproximou-se e pegou-lhe no rosto com as mãos em concha. – Já se esqueceu da parte mais importante? Amo-a, Eva. Não a quero como amante. Quero que possamos viver juntos para a possuir sempre que quiser e de modo a termos um lugar no mundo onde estejamos juntos. – Baixou-lhe a cabeça e beijou-a. – Diga que aceita casar-se comigo, Eva. Ainda não o fez. Não devidamente. Eva limpou os olhos repletos de lágrimas. – Sim, aceito. Sim. Gareth desapertou os botões das calças. – Então ofereça-se agora a mim, antes que eu morra de desejo por si. Ela ajudou-o a libertar-se da roupa, depois ergueu-se e voltou a baixar-se, recebendo-o dentro de si. Durante uns momentos, nenhum dos dois mudou de posição, mantendo-se imóveis na primeira união da sua vida em comum. Eva saboreou cada instante, a fim de recordar para sempre aquela sensação. De seguida, Gareth fez-lhe carícias pelas costas abaixo, descendo cada vez mais para que os dedos a explorassem de modo verdadeiramente escandaloso. Os seus olhos cintilavam perversamente na direção dela. Eva virou-se para trás, retirou-lhe a mão com uma palmada e depois cavalgouo, exultando de prazer.


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