Domenica de rosa aquele verão na toscana pt

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Ficha Técnica Título original: SUMMER SCHOOL Título: Aquele Verão na Toscana Autor: Domenica de Rosa Capa: Maria Manuel Lacerda Tradução: Margarida Luzia ISBN: 9789892311753 Edições ASA é uma chancela do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201 © 2008, Domenica de Rosa e Edições ASA II, S.A. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.asa.leya.com www.leya.pt


Para Alex e Juliet


CAPÍTULO 1 Preparativos 31 de Julho atricia O’Hara, mais conhecida por signora O’Hara, ou Patrizia, ou a inglesa do castello, afasta o cabelo húmido da cara, tentando concentrarse na sua lista. Embora a cozinha seja fresca, lá fora o calor é de tal forma intenso que parece querer irromper pelas janelas. A sua escrita, de um negro intenso que contrasta com a alvura do papel, pulsa desagradavelmente na página.

P

A fazer 1. Falar com o Aldo sobre as beringelas 2. Toalhas no quarto amarelo 3. Limpar piscina – Matt? Suspirando, Patricia detém-se. O ponto de interrogação a seguir ao nome do seu filho adolescente é significativo, profético até. Hoje em dia, a relação entre os dois parece confinar-se a um infindável rol de perguntas: «Onde vais? Quando voltas? Com quem? Quanto? Tomaste as devidas precauções?». Como as respostas do filho a estas questões são invariavelmente (e com sorte) um grunhido, ou um chorrilho de imprecações surpreendentemente eloquente, não admira que os pontos de interrogação pareçam flutuar, quais fantasmas, em torno da cabeça do filho de dezasseis anos. Efectivamente, eles reduzem-se com facilidade a duas questões: «O que vais fazer?» e «Com quem?». Patricia julga saber a resposta à segunda pergunta. Como seria de prever, Matt travara amizade


com os dois únicos delinquentes juvenis de San Severino. Enquanto a maioria dos rapazes italianos locais degustava o almoço de domingo com a respectiva família e dispunha flores nas campas dos seus bisnonni, Graziano e Elio andavam de mota, tomavam drogas e frequentavam concertos de heavy metal em Milão. E ambos tinham de se tornar os melhores amigos de Matt! O seu «pelotão», como ele certa vez os designara, sem qualquer traço de ironia, ilustrava bem isso. «Três rapazes não constituem um pelotão», protestara ela. Mas Matt, sem a menor paciência para a incrivelmente embaraçosa estupidez da mãe, já tinha saído do quarto. Até mesmo as beringelas são um problema, ainda que menos grave. Aldo, o seu chef, é exímio a preparar beringelas – melanzane em italiano: salpicaas com sal e azeite e coloca-as no grelhador, cortando-as depois finamente para fazer um molho para a massa, ou assa-as com tomates e serve-as com parmigiano para um almoço ligeiro perfeito. Mas este ano, uma das hóspedes, Cathe​rine Ferris-Merry, de Brighton, afirma ser «alérgica a beringelas». Patricia torna a suspirar, pressionando as mãos contra a superfície fresca de mármore da tábua de cortar. Embora tenha já setenta e cinco anos, Aldo continua a ser conhecido como o melhor chef daquela parte da Toscana, sendo, contudo, um homem de opiniões dogmáticas, não menos inflexíveis por serem expressas com olhos reluzentes e um charmoso e sorridente esgar. Por exemplo, o Aldo não acredita em alergias nem intolerâncias alimentares. Não acredita em vegetarianismo, na dieta de Atkins, nem em preceitos kosher. «Non esiste», diz ele, sorrindo docemente, enquanto corta cebolas com uma reluzente mezzaluna. «Non esiste», diz ele, servindo porco marinado em leite a um rabi de visita. Mas Catherine Ferris-Merry existe efectivamente e pagou três mil euros (excluindo o voo) por um curso de escrita criativa de duas semanas no maravilhoso cenário rural da Toscana, durante o qual desfrutará de deliciosas refeições cozinhadas pelo charmoso chef local. E se não gosta da porra das beringelas, não devia ter de as comer. Ao lado da sua lista de afazeres, está uma lista impressa dos hóspedes para o Verão. Patricia estuda-a, ainda que, após várias semanas de fervorosos preparativos, já quase a tenha decorado.


Nome: Catherine Ferris-Merry Idade: 39 Profissão: consultora de escrita publicitária e mãe Morada: Brighton Alergias: beringelas, cogumelos, cafeína, pão com glúten e não posso comer muitos lacticínios porque senão incho! Razões para se inscrever no curso: Para libertar a escritora que sei existir em mim! Nome: Anna Valore Idade: 38 Profissão: mãe a tempo inteiro Morada: Brighton Alergias: nenhuma Razões para se inscrever no curso: A minha amiga Cat sugeriu-o e eu pensei: porque não? Nome: Sam McClusky Idade: 44 Profissão: ex-corretor da Bolsa, agora desempregado Morada: Londres Alergias: nenhuma Razões para se inscrever no curso: Para escrever um bestseller Nome: Sally Hamilton Idade: na casa dos cinquenta Profissão: paisagista Morada: Salisbury Alergias: frutos secos Razões para se inscrever no curso: Frequentei todos os cursos do Jeremy – para mim ele é a Escrita Criativa


Nome: Mary McMahon Idade: 74 Profissão: ex-funcionária pública Morada: Londres Alergias: nenhuma Razões para se inscrever no curso: Para visitar a Toscana e para tentar fazer progressos na minha escrita Nome: Jean-Pierre Charbonneau Idade: 45 Profissão: advogado Morada: Paris Alergias: vinho italiano Razões para se inscrever no curso: Para afinar a minha escrita Nome: Dorothy Van Elsten Idade: 61 Profissão: dona de casa Morada: Vermont, Estados Unidos da América Alergias: frutos secos, marisco, carne vermelha Razões para se inscrever no curso: Encerrar um capítulo da minha vida escrevendo sobre a minha infância Ao olhar para o efectivamente impressionante rol de alergias de Dorothy Van Elsten, Patricia não sente nenhuma da irritação que regista perante as de Catherine Ferris-Merry. Talvez, pensa ela honestamente, tal se prenda com o facto de ter visto, pelas respectivas fotografias, que Catherine é uma morena incrivelmente bonita enquanto Dorothy tem o cabelo cinzento e um ar maternal. E Catherine tem apenas menos cinco anos do que Patricia. Além disso, Dorothy é americana e talvez ache normal os americanos terem alergias e falarem em «encerrar capítulos». Mas lá bem no fundo, Patricia sabe que a razão se prende com o facto de Dorothy vir acompanhada pelo marido, Rick. Infelizmente, Dorothy apenas o descreve como empresário


«no ramo do petróleo», mas, secretamente, Patricia decidiu que ele é um multimilionário benevolente que irá investir no Castello della Luna, salvando-a da bancarrota. Se assim for, promete a si própria, ignorará o incrédulo olhar de Aldo e banirá para sempre o marisco do castello. Já enfastiada com a lista, Patricia levanta-se e prepara-se para ir procurar as toalhas do quarto amarelo. Duas jovens, ambas croatas, estão a ajudá-la com os preparativos, mas estão ocupadas a fazer as camas e a limpar as casas de banho. Além disso, e embora sejam encantadoras, o seu inglês (tal como o seu italiano) é bastante limitado, o que faria com que Patricia demorasse provavelmente meia hora para lhes explicar o que procura. Julga ter visto as toalhas em falta na casa da piscina. Contrariando as regras da casa, terão sido lá deixadas por algum hóspede recente. Ao transpor a porta das traseiras é momentaneamente ofuscada pela luz branca. É meio-dia e o sol está abrasador. Embora Patricia use apenas um vestido leve sem mangas, fica de imediato inundada em suor, sentindo-o pingar desconfortavelmente pelas costas abaixo enquanto avança pelo sinuoso caminho que desce até à piscina. O Castello della Luna está construído na encosta de uma montanha. De frente parece baixo e atarracado, demasiado pequeno para a impressionante entrada ladeada por pinheiros-mansos. Mas nas traseiras estende-se colina abaixo, com os inúmeros terraços a transbordarem de buganvílias, hera e rosas selvagens. É um castelo genuí​no, construído no século XIII e restaurado no século xix. Os anteriores donos acrescentaram dez das quinze casas de banho existentes e construíram uma piscina no último terraço. Dez anos antes, Patricia e o seu marido Sean haviam-se apaixonado pelo edifício assim que o tinham visto, convertendo-o então numa graciosa versão da sua antiga glória, redesenhada para albergar um máximo de vinte hóspedes de cada vez. O esforço do empreendimento acabara por ser desastroso para o casamento e o casal divorciara-se três anos antes, mas Patricia continua ali, a oferecer cursos recheados de adjectivos – romântico, inspirador, maravilhoso, de parar o coração, autêntico –, mas parcos em pormenores sobre o que os hóspedes irão efectivamente fazer ao chegarem ao seu romântico, inspirador, etc., destino.


O caminho que desce até à piscina está inundado por lavanda. Distraidamente, Patricia esmaga uma flor entre o polegar e o indicador e inspira o inebriante e condimentado odor. Nos respectivos quartos, os hóspedes irão encontrar lavanda fresca nas gavetas e uma única flor delicadamente pousada sobre o conjunto de boas-vindas. E Catherine será certamente alérgica a isso, aposta Patricia. As toalhas amarelas estão de facto na casa da piscina, atiradas numa pilha negligente sobre as espreguiçadeiras, e, deitada numa delas ao lado da piscina está Myra Hamdi. Myra frequentara um dos primeiros cursos organizados por Patricia – «Descobrir o Artista que há em Nós» – e tornara-se uma amiga. Agora passa os verões no castello e, em troca das férias gratuitas, ensina ioga e técnicas de relaxamento, ajudando também Patricia a entreter os hóspedes. Este último aspecto é crucial, pois, embora Patricia seja incrivelmente organizada e sempre cortês, não tem muito jeito para socializar: para as conversas íntimas, as confidências, os «oh, aconteceu o mesmo comigo, sei exactamente como se sente». Myra, pelo contrário, tem genuíno interesse pelos outros, parecendo de facto gostar de conversar sobre os amigos e a família dos hóspedes e as inexplicáveis razões por que ainda não conseguiram alcançar a fama. Amanhã estará pronta para receber, tranquilizar e cativar os candidatos a escritores; mas, por agora, está deitada ao sol, esbelta, serena e besuntada em protector solar. – Espero que estejas a usar factor quarenta – diz Patricia, parando para enfiar a ponta do pé na água, tão reluzente e azul que quase parece sólida, como tinta. – Claro, querida – responde Myra sem abrir os olhos. – Viste o Matt? Queria que ele limpasse as folhas da piscina. Myra abre os olhos pequenos, escuros e brilhantes. Todos os seus movimentos são ágeis e concisos, como os de um pássaro. – Creio que saiu de mota. – Com este calor! – Os miúdos não sentem o calor como nós – diz Myra, que não se importaria de passar os dias ao sol como um lagarto.


– Ele já não é um miúdo – diz Patricia, sentindo-se irracionalmente zangada. – Tem dezasseis anos. E prometeu ajudar. – Não é hoje que começa o novo faz-tudo? – Só chega às três. E não sei como será. A agência pode perfeitamente enviar outro tontinho como o do ano passado. – Eu gostava do fulano do ano passado. – Myra, ele fornicou com um colchão insuflável. Myra solta uma gargalhada enquanto se estica na espreguiçadeira. – Estou certa de que serão muito felizes juntos. Tu preocupas-te demasiado. Eu limpo a piscina. Não vale a pena suares as estopinhas. Aquela é sem dúvida a frase menos apropriada para o verão toscano, reflecte Patricia, regressando caminho acima após ter aceitado, agradecida, a oferta da amiga. Matt O’Hara, também conhecido por Matteo, ou Mattino, e por Lupo (o lobo), ou por vezes, para a mãe, por Matthew, espreguiça-se na erva alta no sopé da colina. Ao seu lado está a respectiva motorizada, deitada, ainda a vibrar baixinho. Se ficar absolutamente imóvel, consegue distinguir, por cima do barulho dos grilos, os sons do castello a preparar-se para os hóspedes que chegarão no dia seguinte. O zunido de mosquito da Vespa de Aldo à medida que vai subindo, a custo, a íngreme curva da entrada, o zumbido dos aspersores da rega no relvado e, ao longe, a voz da mãe a dar ordens. Ela é exímia a dar ordens. Faz tudo o que ele certa vez viu num programa sobre assertividade. Fala com calma, designa prioridades, permite que os outros pensem que foram eles a ter inicialmente as ideias, e nunca, nunca se esquece de agradecer. O problema é tudo soar tão falso. Matt prefere o jeito do pai, que se esquece das coisas até ao último instante e depois entra em pânico e perde as estribeiras. Pelo menos é real. Pelo menos não faz os outros pensar que o desapontaram com uma ninharia que parece importante. Efectivamente, quando o pai entra em pânico, fica de tal forma agradecido por qualquer forma de ajuda que os outros acabam por se sentir bem consigo próprios. Matt recorda-se bem de quando o pai perdera o bilhete de


regresso no Verão; ficara de tal forma impressionado com Matt por este ter encomendado um bilhete novo através da Internet que foram os dois jantar fora num restaurante indiano com direito a garrafa de vinho e tudo. E mesmo quando o pai acabara por encontrar o bilhete inicial no bolso das suas calças de ganga acabadas de lavar, já não importava. Já tinham ido jantar fora. A mãe nunca perde nada. Tem as suas listas (item n.º 1: interferir de todas as formas possíveis na vida do Matt), o seu calendário com os dias cuidadosamente riscados, o seu itinerário, com todos os instantes dos detestáveis cursos apontados, o seu Blackberry, qual reluzente mantinha de apoio, sempre a seu lado. E, caso alguma vez perdesse alguma coisa, formaria imediata e eficientemente uma equipa de busca. «Matt, tu vais para o andar de cima. Myra, começa pelo rés-do-chão. Aldo, ficas com as cozinhas.» A sua mãe, conclui tristemente Matt, é óptima a delegar. Mas nem sempre fora assim. Matt gosta de afligir a mãe fingindo não se recordar de nada do que viveu antes do seu décimo aniversário – «De que adiantou proporcionar-te todas aquelas experiências», lamenta-se ela, «se tu não te lembras de nada?» Mas a verdade é que Matt se lembra de quando chegaram a Itália. Tinha seis anos e recorda-se de morarem num apartamento em Sinalunga: o mercado com galinhas vivas dentro de cestos, o parque infantil onde se podia andar de pónei num minúsculo e malhumorado Shetland, o elevador com portas de vidro e um acolchoado banco de veludo verde. Recorda-se de quando inicialmente foram viver para o castello, acampados em três quartos enquanto vários operários impassíveis arrancavam as tábuas do chão e infestavam os tectos com fios multicoloridos. Depois fora maravilhoso, um verdadeiro paraíso. Matt lembra-se de encontrar um porco-espinho nos bosques, quase do tamanho de um pequeno cão. Lembra-se do Natal, com uma árvore que parecia tocar o céu e estranhos bolos de castanha. Lembra-se da neve e de descer a colina de trenó com o pai, enquanto a mãe corria ao lado deles com o riso a ecoar atrás dela no ar frio. Tudo mudara com a chegada dos primeiros hóspedes. Então, o castello


deixara de ser o paraíso. Era arrumado e compartimentado e gerido exclusivamente em função dos outros. Matt recorda-se de que o pai adoptara uma nova forma de andar, com as pernas ligeiramente arqueadas, a cabeça deferentemente inclinada para o lado, enquanto carregava malas e escutava as infindáveis queixas sobre o ar condicionado, a comida, o calor – por amor de Deus, estavam em Itália, em Agosto! – a falta de verdadeiro chá inglês. Fora então que a mãe se aperfeiçoara a dar ordens. «Sean, o toalheiro do Quarto Azul não está a funcionar. Matt, podes ir comprar o The Times para Mr. Lessiter? Aldo, por favor, menos alho nas bruschette.» E Matt não era tolo. Via perfeitamente que o pai começara a aperfeiçoar técnicas para se esconder dos hóspedes. Tinha uma série de esconderijos: o telheiro da lenha ao fundo do caminho, a divisão ao lado da cozinha onde Aldo guardava o seu vinho caseiro, a casa de banho que os hóspedes não usavam, aquela com o assento de madeira rachado – o pai desaparecia sempre lá dentro no dia em que o jornal The Guardian chegava de Inglaterra. Matt via que a mãe acabava por arcar com quase todo o trabalho. Via que o pai não estava propriamente a apoiá-la, escondendo-se no telheiro da lenha enquanto ela conversava durante horas acerca de aguarelas com algum idiota enfadonho. Mas quando o pai partira, o castello deixara simplesmente de ser um lugar divertido. Já não era um lar. Era apenas um negócio. E os hóspedes! Matt considera-se uma pessoa razoavelmente tolerante – não obstante a opinião contrária da mãe –, mas, meu Deus, as alminhas que vêm para o castello conseguiriam enlouquecer a própria Madre Teresa. Que espécie de gente gasta milhares de libras para ter aulas numa casa velha no campo? Se ele tivesse milhares de libras, compraria uma mota nova e daria a volta ao mundo ou algo do género. Não ficaria na certa sentado num terraço, a beber vinho e a falar da luz. E afinal, que conversa era aquela sobre a luz? Havia luz em todo o lado. Quem os ouvisse julgaria que moravam todos no fundo de um poço ou algo assim pela forma como repetiam incessantemente, «Ah, a luz!» Haja paciência! Os escritores eram os piores de todos. Os pintores ao menos costumavam ser divertidos. Certo ano, uma série deles embebedara-se e tinham feito uma


orgia – ou pelo menos era o que Matt suspeitava pelas conversas que ouvira entre a mãe e Myra. Elas não lhe tinham contado a ele, naturalmente. Ainda no ano anterior tinha havido um fulano fabuloso que fazia esboços, que bebia uma garrafa de grappa por noite e que estava sempre a falar de sexo – tudo lhe servia de inspiração, desde prosciutto melone aos pistões da mota de Matt. Mas os escritores – a única coisa que gostavam de fazer era ficarem sentados a queixarem-se da trabalheira que era escrever livros. Trabalheira! Até parecia que eram construtores ou assentadores de tijolos ou lutadores de wrestling. Limitam-se a escrever palavras e a lê-las em voz alta, vozes estupidamente pretensiosas enquanto se queixavam dos editores – «Eles só querem os livros óbvios. Só querem campeões de vendas.» Obviamente, dah! E Matt reparara também que nenhum deles estava verdadeiramente interessado nos outros. Faziam perguntas acerca dos livros dos companheiros, mas todos tinham uma espécie de olhar petrificado como se estivessem apenas à espera da vez para falarem de novo acerca de si próprios. E se alguém se mostrava interessado na sua escrita, ficavam logo agitados, como se essa pessoa estivesse a tentar roubar-lhes as ideias. Alguns tentavam falar com ele, mas Matt sabia que era apenas por lhes agradar a ideia de poderem vir a ter um rapaz adolescente num dos seus romances. Quem diria que o Uma Agulha no Palheiro teria tanta influência. E Jeremy, o professor, era um verdadeiro idiota. A mãe diz que ele é um grande escritor, mas Matt procurara-o no Google e só encontrara meia dúzia de livros de sua autoria, tendo o último sido publicado há imenso tempo. Era verdade que havia muita coisa sobre a excelência desse derradeiro livro, que tinha o poder de transformar a vida de quem o lia, que era uma verdadeira obra de arte e coisa e tal, mas, efectivamente, ele não escrevera nada em vinte anos e andava por ali a dizer aos outros como deviam escrever. E, imagine-se só, também achava que isso dava imenso trabalho. «É esgotante», dizia ele todas as noites, escondendo-se dos hóspedes no escritório da mãe. «Eles querem tudo de mim.» Bem, talvez fosse verdade, pois certa vez Matt apanhara Jeremy e uma das hóspedes a «fazê-lo» na casa da piscina, mas na altura Jeremy não parecera propriamente contrariado. E visto que a mulher ainda não publicara nada, Jeremy não


devia ser grande coisa como professor. Todos eles pensam que vão escrever o livro, aquele que vai vender milhões e torná-los ricos e famosos. Bem, perdoem-me a ignorância, mas J. K. Rowling já não o fez? Falar mal de Harry Potter era uma das ocupações preferidas dos hóspedes. Bem, de qualquer forma, nenhum deles vai escrever o livro, pois será Matt a fazê-lo. Já vai a meio, mas não o irá mostrar a ninguém. Muito menos a Jeremy. O escritório de Patricia situa-se imediatamente a seguir ao salão principal. Ao contrário do resto da casa, com os seus tectos abobadados e alvenaria meticulosamente restaurada, a sala é assumidamente moderna. Armários de arquivos de aço revestem as paredes, a secretária é uma peça clássica da IKEA datada de 1981, adornada com um reluzente portátil, um bloco de apontamentos e um antigo frasco de pesto repleto de canetas – todas a funcionar. Não há fotografias nem molduras, excepto se contarmos com o screen saver que mostra Matt, com dez anos de idade, a mergulhar na piscina. A água é de um azul tal que por vezes Patricia quase sente vontade de lamber o ecrã. Agora, porém, está sentada de testa franzida perante um documento intitulado «escritacriativaAgosto07». Patricia percorre-o com um dedo profissional, com um ouvido nos sons do corredor, onde as raparigas estão a limpar o chão de pedra. Chegada 17.00/19.00 Chegam os hóspedes e instalam-se 19.30 Bebidas e crostini no terraço 20.30 Jantar no Salão Grande O Salão Grande é, efectivamente, uma das três salas existentes, mas Salão Grande é muito mais sonante e a verdade é que tem uma vista maravilhosa sobre o vale – as luzes de Siena conseguem-se discernir ao longe. Terá de se certificar de que há sumo de laranja para além do prosecco, pois há sempre alguém que não bebe vinho. Estaria Jean-Pierre Charbonneau a brincar acerca do vinho italiano? À cautela talvez seja melhor encomendar algum


Chablis. Champanhe é que ele não vai beber. E tudo porque a Itália venceu a França no mundial de futebol. Primeiro Dia 07.30 Meditação e alongamentos (opcional) 08.00/09.30 Pequeno-almoço 10.00 Sessão de escrita 13.00 Almoço Tarde: Tempo livre para a escrita 18.00 Visita a San Severino Patricia sabe por experiência própria que é preferível marcar as visitas para a manhã ou para a tardinha, quando o tempo fica mais fresco – tem más memórias de hóspedes a desmaiarem na piazza em Siena. Revê então o itinerário da visita de um dia a Roma (terceiro dia), com alguma ansiedade, uma vez que é Aldo quem vai conduzir. As tardes estão educadamente rotuladas de «Tempo para a es​crita», mas, efectivamente, a maioria dos hóspedes irá dormir ou descontrair junto à piscina. Será então que Patricia ficará mais inquieta. Não gosta que os hóspedes deambulem pela propriedade. Gosta de os ter seguros e confinados: a escrever, a comer ou a fazer alongamentos. Alguém irá certamente esgueirar-se até à cozinha e interpelar Aldo acerca das suas técnicas culinárias – o que de nada servirá, já que, educadamente, Aldo irá fingir que não compreende – ou invadir o seu escritório queixando-se da falta de almofadas hipoalergénicas. Segundo Dia 07.30 Meditação e alongamentos (opcional) 08.00/09.00 Pequeno-almoço 09.30/11.30 Visita a vinhedo vizinho Aquilo devia entretê-los o resto do dia, pensa ela com soturna satisfação.


Quem conseguir assistir à sessão de escrita da tarde após passar a manhã a provar o Chianti de Gennaro merece, no mínimo, um prémio literário. Patricia detém-se mais uma vez, sentindo um vulto entrar na divisão. Mas não é Myra, nem Matt ou Aldo. Nem Ratka ou Marija, e sim um vulto muito mais gracioso e comedido. Um vulto absolutamente seguro de que vai ser bem recebido. Um grande gato amarelo avança porta adentro e deita-se numa mancha de sol. O gato olha para Patricia. Patricia devolve-lhe o olhar. – Ratka! – chama ela e a jovem croata loura aparece à porta. – Sì? – inquire ela prudentemente. – De onde veio este gato? – pergunta Patricia em italiano. – Gatto? – repete Ratka com uma expressão vazia enquanto o animal começa a lamber as patas traseiras. – O gato – aponta Patricia. – Viste-o entrar? – Não – responde Ratka. – Estamos a trabalhar muito. – Importas-te de o levar lá para fora? – pede Patricia. – Sou alérgica a gatos. Mal acaba de falar, pensa, inquieta, em Catherine Ferris-Merry. «Serei realmente alérgica a gatos?» interroga-se ela. Sean tinha um gato quando os dois se conheceram e este fizera-a efectivamente espirrar. Mas fora mais o hábito que o bicho tinha de se sentar no peito de Sean e olhar em adoração para os seus olhos que a levara a sugerir que talvez fosse melhor pensar em realojá-lo… Sem uma palavra, Ratka pega no gato – que é quase demasiado grande para caber nos seus braços – e deixa o escritório. Patricia regressa ao seu itinerário. Na cozinha, Aldo está a picar cebolas e salsa. A sua mezzaluna, uma reluzente faca em forma de cimitarra, cintila para a frente e para trás sobre a tábua de mármore. Está a preparar polpettine – almôndegas – para o dia seguinte. No balcão, perto de si, está uma tigela contendo uma mistura de carne picada de vitela e porco, pão ralado e queijo. Depois irá juntar-lhes as cebolas e a salsa, acrescentar um ovo e criar as almôndegas perfeitas, que


cozerão lentamente no sugo do dia seguinte. Aldo já preparou o sugo – fica melhor se passar a noite a descansar no frigorífico – e a peperonata – pimentos, alho e tomates refogados. Enquanto trabalha, trauteia baixinho. O rádio está ligado – notícias sobre um rapto em Mo​dena, um incêndio florestal em Nápoles e um casamento de celebridades perto do lago Como – mas Aldo não o ouve. Desde que esteja a cozinhar, sente-se feliz. A cozinha é o território de Aldo, embora a presença de Patricia seja tolerada, de má vontade, para esta poder preparar as refeições para si e para o filho. É um espaço medieval no nível inferior da casa, com grossas paredes de pedra, uma lareira gigantesca, uma mesa de madeira rústica, um desconfortável banco corrido de costas altas e ervas aromáticas penduradas nas traves do tecto. E embora equipada com um sofisticadíssimo fogão e um frigorífico de estilo americano, a cozinha continua a parecer poder ser usada por cozinheiros a prepararem um banquete de boas-vindas para o senhor do castelo – impressão esta que mais nítida se torna quando Aldo tem caça pendurada do tecto. Patricia pensa muitas vezes que é uma pena os hóspedes não a verem, mas tal é de facto impossível. A porta das traseiras, que dá para a horta, abre-se e Aldo, sem levantar os olhos do seu trabalho, diz: – Ciao, Mattino. Na porta, as sombras reorganizam-se, formando a figura de Matt, extremamente acalorado e a transpirar, com o capacete da mota na mão. – Onde está ela? – pergunta Matt. – Lá em cima – responde Aldo. – Podes entrar. Matt suspira profundamente e senta-se. Confia plenamente em Aldo, que conhece desde os seus oito anos. Quanto ao cozinheiro, a presença de Matt é uma pequena consolação pela perda da filha – e do neto – que emigraram para a Austrália há cinco anos. Matt abre o frigorífico americano, tira uma garrafa de água e bebe sofregamente. – Água em demasia faz mal – diz Aldo, mantendo-se fiel à sua velha superstição. Matt solta um grunhido.


– Para ti, tudo o que é bom faz mal – diz o rapaz, pegando numa flor seca de funcho e cheirando-a. – Finocchio – afirma, sorrindo. – É a cara do Jeremy. Aldo ri-se, mostrando uns surpreendentes dentes brancos. Fi​nocchio, ou funcho, é calão italiano para homossexual. Tanto ele como Matt continuam a acreditar, apesar das inúmeras provas em contrário, que Jeremy é maricas. – Patate al finocchio – diz Aldo. – Para servir com polpettine. Matt torna a suspirar. – Se lhes fizeres todas essas delícias, acabarão por não querer ir embora. Porque não lhes servimos hambúrgueres do McDonald’s ou algo do género? Aldo sorri, mas lá bem no fundo não aprova o uso na sua cozinha da palavra começada por «M». Ainda tem pesadelos com o hóspede americano que punha ketchup – que trouxera na sua própria mala, naturalmente – no seu spaghetti carbonara. São três horas da tarde. Matt está no duche, esperando que a mãe não ouça a água a escorrer pelo ralo. Aldo está a etiquetar as suas garrafas de vinho. Patricia está a fazer a contabilidade, com a cabeça entre as mãos. Myra está a dormir ao lado da agora imaculada piscina e o gato está a ressonar no telhado. Até o próprio castello está adormecido. O relógio soa pesadamente no hall, uma mosca solitária zumbe bem alto perto das traves do tecto, o rádio de Aldo ecoa como uma voz do outro mundo. Portanto, Patricia sobressaltase quando o seu pesadelo de receitas versus despesas é interrompido por pancadas na porta da frente. Por um tresloucado instante pensa que é o gato, regressando para exigir cama e comida. Agita-se então impacientemente. A verdade é que, à excepção dos hóspedes, ninguém usa a porta principal nem a pesada aldraba com cabeça de leão. Descalça, Patricia atravessa o hall de entrada baronial – com armaduras e tudo – e abre a maciça porta reforçada, deparando-se então com o homem mais belo que alguma vez viu, parado na luz dourada da tarde. – Buona sera – diz a aparição. – Sou o Fabio. Vim por causa da vaga de


trabalho. Blogue da Cat www.whatsnewpussycat.com 31.07.07 Bem, amigos, fi-lo finalmente! Inscrevi-me num curso de escrita criativa. Há já algum tempo que pensava no assunto. Têm-me carinhosamente dito que os devaneios que escrevo nesta página merecem ser publicados. «Melhor do que O Diário de Bridget Jones», afirmou alguém (e não era um parente). «Os teus diários de Mamã Maravilhosa seriam um sucesso de vendas imediato», disse outra pessoa (também não era um parente – juro!). Bem, quanto a isso não sei, mas o que sei é que escrever é hoje algo que tenho absolutamente de fazer. Sabem como é: levantar, fazer ioga, preparar as lancheiras com o almoço das crianças (porque o Maridinho Inútil não faz ideia do que eles gostam e certa vez chegou mesmo a dar queijo à nossa filhinha que é alérgica a lacticínios), levá-las à escola (muitas vezes ainda de pijama vestido – tudo bem, são os de seda da Boden, mas mesmo assim!), voltar para casa, arrumar a casa antes da Edna chegar (haverá alguém neste mundo que não arrume a casa antes da empregada de limpeza chegar?), e escrever, escrever, escrever. Por vezes o Maridinho Inútil chega a casa e inquire sobre o teor do jantar e eu respondo que não faço a mais pequena ideia, que passei o dia a escrever. E então ele ri-se e leva-me a jantar na nova brasserie em St. James Street. A sério! Tudo menos ser ele próprio a cozinhar. Efectivamente, foi o próprio MI que sugeriu que eu fizesse este curso. «Tu mereces», disse ele. E, muito francamente, amigos, é verdade, eu mereço, tal como merecem as demais mães trabalhadoras deste mundo! Duas semanas na Toscana com pessoas que pensam como eu, aprendendo a melhorar a minha escrita e a torná-la mais comercial. Agora, honestamente, não é por eu ter estudado inglês em Cambridge que sei tudo o que há para saber sobre escrita. Muito pelo contrário! Posso estar mais avançada do que algumas pessoas do curso, mas estou certa de que haverá outras com as quais poderei aprender. Nunca se esqueçam, amigos, podemos aprender com qualquer pessoa! A sério, a Edna, por exemplo, diz


cada coisa! Ela é que devia escrever um livro (mas, infelizmente, é quase iletrada – vê-se aflita para escrever um recado a pedir para comprar mais detergente). Portanto, amanhã estou de partida! Com a Anna a reboque, a minha amiga do peito, parto para quinze dias de sol na Toscana. E ainda por cima vamos ficar num castelo medieval! O professor é o Jeremy Bullen, autor de Mergulho de Barriga (que foi adaptado ao cinema e teve a participação do maravilhoso Bill Nighy), portanto, estou desejosa de o conhecer. Estou desejosa de tudo. É claro que estou preocupada por deixar o Sasha e a Star com o MI, mas penso que a experiência será benéfica para os três! E a minha própria Mamã Maravilhosa (com setenta bonitas primaveras) estará a postos, pronta para ajudar. Por isso, tudo se há-de arranjar. E, de qualquer forma, já é tempo de o MI aprender como é a vida real – longe do protector ventre corporativo que ele apelida de trabalho. Toscana – aqui vou eu!


CAPÍTULO 2 Viagens 1 de Agosto nna Valore pára, impotente, defronte da prateleira assinalada «Leituras de Verão» numa das lojas da cadeia W. H. Smith do aeroporto de Gatwick. O que comprar para ler num curso de escrita criativa? Nada demasiado óbvio – Anna afasta-se da pilha de livros com quintas toscanas nas capas, oliveiras e garrafas de Chianti artisticamente dispostas. Nada demasiado leve – pesarosamente, Anna pousa um livro que, em reluzentes letras prateadas, se propõe revelar-lhe «os verdadeiros segredos do coração de uma mulher». Nada demasiado sério – afinal de contas, ela quer divertirse. Talvez algo da autoria de Anne Tyler. Não houve alguém que a apelidou de melhor autora de língua inglesa? As suas personagens são sólidas, e não protótipos engraçados com nomes com significados opostos, nem deprimentes violadores bolivianos. Cat deambula pela loja e, sem qualquer surpresa, Anna repara que ela fez as escolhas literárias perfeitas. Algo humorístico mas leve, algo clássico (percebe-se pela lombada) e algo de um autor italiano. Porque não pensou ela nisso? Aquela é a altura ideal para pôr em dia as leituras de autores italianos como, como… A mente de Anna esvazia-se. Será Franco Zeffirelli um escritor ou um realizador? E não será Lampedusa uma marca de vinho? Cat tem também o visual perfeito. Enverga umas calças de ganga pretas, uma T-shirt branca justa e uma camisola com capuz preta amarrada descontraidamente em torno da cintura. Anna, de calças de ganga azuis e ténis, sente-se desarranjada e gorda. O seu casaco é demasiado quente, mas estava frio de manhã, quando saíram de Brighton. Naturalmente, Cat

A


limitara-se a enrolar-se na sua pashmina rosa-choque, agora guardada na sua mala, enquanto Anna tiritara de frio dentro do seu casaco. E nem sequer era um casaco, era quase um anorak. – Oh, já li esse – diz Cat, apontando para o livro de Anne Tyler. – É óptimo. – Francamente, Cat – suspira Anna. – Haverá alguma coisa que ainda não tenhas lido? É super desencorajador para os restantes mortais. – Desculpa! – exclama Cat, dando-lhe um rápido abraço com o único braço que tem livre. – Vou então comprar dois cappuccinos no Starbucks, está bem? Temos imenso tempo antes do voo. «Eu odiaria a Cat se ela não fosse tão simpática», pensa Anna enquanto avança por entre as prateleiras à procura de O Bandolim do Capitão Corelli. Numa outra livraria de aeroporto, Jeremy Bullen perscruta, soturno, a fila dos «bês». Tem um ódio especial pelos autores que o precedem e o sucedem no alfabeto. Maeve Binchy, William Boyd, Emily Brontë, Bill Bryson, Dan Brown. O raio do Dan Brown! Duas prateleiras inteiras da porra d’O Código Da Vinci. Ah, ali está ele. Mergulho de Barriga, de Jeremy Bullen. Dois miseráveis exemplares! Jeremy pega num dos livros e afaga-o afectuosamente. «Uma obra de arte», grita a citação da capa. «Um livro notável», concorda o crítico na contracapa. Apesar de saber que estas recomendações entusiásticas foram escritas há mais de vinte anos, Jeremy sente-se reconfortado. Afinal, pensa ele, arrumando de volta o livro na prateleira com a capa virada para a frente, talvez já só haja dois exemplares. Talvez os restantes tenham sido comprados. * As escolhas literárias de Mary McMahon foram feitas há semanas. Mary requisitou dois livros da biblioteca – OBandolim do Capitão Corelli e uma história da Toscana – e encomendou um terceiro do seu clube literário. É um volume requintadamente ilustrado que combina uma história de procura de casa, operários italianos pouco recomendáveis e deslumbrantes pores-do-


sol com autênticas receitas toscanas. Mary adora cozinhar, ou melhor, adora comer. Vivendo sozinha, sentir-se-ia tonta se preparasse risotto con calamari e pomodoro. Porém, não se importaria de comer se fosse outra pessoa a cozinhar. Mas como em Streatham não se encontram propriamente muitos chefs italianos, o melhor que pode fazer é ler acerca do assunto. Efectivamente, há mais de um mês que Mary tem tudo pronto. O táxi está reservado – uma despesa extra, mas àquela hora o comboio seria bastante penoso –, a mala está pronta e, pela primeira vez na vida, comprou protector solar. Teve algumas dúvidas quanto ao factor que deveria comprar: a rapariga da loja recomendou 40 para peles claras, mas Mary sente que gostaria de ficar ligeiramente bronzeada – os jovens ficam sempre com um ar tão saudável. Portanto, decidiu-se pelo factor 35. A brochura dizia que havia uma piscina e resolveu comprar dois fatos de banho, para um poder secar en​quanto usa o outro. Mary adora nadar. Duas vezes por semana, frequenta a piscina em Tooting, sulcando a água de um lado para o outro com o seu crawl frontal surpreendentemente musculado. Alguns anos antes tinha um grupo de amigas, outras nadadoras idosas como ela que depois do exercício costumavam ir tomar café e comer uma fatia de bolo juntas – é incrível como a natação dá fome. Mas, uma a uma, as nadadoras tinham abandonado Londres para irem viver em lares de terceira idade ou bungalows algures na costa. Mary ainda recebe postais de Natal de Joan em Eastbourne e Shirley em Southport, mas agora nada sozinha. Para Mary, é absolutamente inacreditável que ela tenha mais de setenta anos – «setenta e quatro», repete para si própria, tentando habituar-se à ideia. Talvez se tivesse a sua própria família, filhos e netos, os anos se tivessem parcelado ordeiramente: nascimentos, casamentos, baptizados, aniversários. Mas quando se está sozinha, quase não há como distinguir um ano do seguinte: e é um verdadeiro choque constatar que subitamente o tempo nos apanhou e ali estamos nós, velhos, mas sentindo-nos estranhamente iguais a quando tínhamos dezoito anos. Quando Mary sulca a água cheia de cloro da piscina, a sensação contra os seus braços é exactamente a mesma dos seus tempos de escola, quando ia de férias para Brighton e usava um fato de banho com uma sainha e tentava


nadar até tão longe quanto os rapazes. Certa vez nadara entre os pontões por uma causa humanitária. Ganhara uma taça de prata em forma de rosa e ainda a tem algures. Nesse mesmo ano beijara Bobby Preston na casa de Sherry e pensara: «É agora, é assim que tudo começa». Casar com Bobby não estava de todo nos planos de Mary – ele tinha uma maçã de Adão desconcertantemente grande, que balançava enquanto ele falava – mas pensara que era assim que começava todo um ciclo: primeiro os beijos, depois o namoro, o casamento, os filhos, tudo isso. Só que tal não acontecera, e ela não sabia explicar porquê. Sempre pensara que acabaria por encontrar alguém, talvez no ano seguinte, mas não fora o caso. Por vezes ouve raparigas a conversar no autocarro: «Oh, deixei-o, agora estou com o Steve.» «Depois acabei com o Dave e comecei a sair com o Tony.» «O Harry foi o meu primeiro marido, mas agora estou com o Terry.» E nunca lhes parece ocorrer que depois de Steve, ou de Dave ou de Harry, possa não haver mais ninguém. Poderá chegar uma altura em que simplesmente não conhecerão mais homens, ou pelo menos homens que possam estar interessados nelas. Porque lhe acontecera a ela? Ela era bonita quando era nova. «Uma verdadeira rosa inglesa», costumava dizer o pai, o que não lhe agradava nada por saber que era uma referência à sua pele pálida e faces rosadas. Mas, certa vez, um dos trabalhadores do pai oferecera-lhe uma rosa dizendo que o animava olhar para ela. O pai ficara furioso e quisera despedir o homem mas a mãe dissera: «Dei​xa-o em paz, as raparigas têm de ter admiradores». Admiradores! Era bom era. E agora aqui está ela, com setenta e quatro anos de idade, solteira e raramente beijada – só tinha havido dois depois de Bobby, e ambos, cada um à sua maneira, haviam sido insatisfatórios. Talvez fosse por causa do seu trabalho. Mary era inteligente, fizera o liceu e depois passara o exame exigido para trabalhar na função pública. E progredira bastante na carreira, mais do que a maioria das mulheres – mas, claro, não precisou de interromper a carreira para ter filhos. Viajara bastante, sobretudo em Inglaterra, mas certa vez tivera a sorte de ir à América. Mary tivera o seu próprio escritório, uma secretária, poderia ter


tido um carro de serviço, mas nunca aprendera a conduzir. No entanto, sem saber bem como, chegara a um ponto em que lhe estavam a dar palmadinhas nas costas e a desejar-lhe uma feliz reforma e Mary pensara: «É só isto?» Oh, Mary conhecera muitos homens: os irmãos dos outros, os primos e os amigos. E havia também os homens do trabalho. Dera-se bem com alguns; não era tímida e por vezes as pessoas diziam que era espirituosa. Mas, de alguma forma, nunca conseguira ultrapassar a fase da conversa social nas festas. Era como se todas as outras pessoas conhecessem a palavra passe que transformava um conhecido num namorado e ela não. E, a dada altura – mas mais tarde do que se pensaria –, tivera de aceitar que não estava destinada ao casamento. Mary não é infeliz. Tem recursos suficientes – a sua pensão de funcionária pública é bastante generosa –, um simpático apartamento numa zona residencial, amigos – embora eles estejam a desaparecer a um ritmo alarmante – e a sua escrita. Mary mantém um diário desde a adolescência e há muitos anos que anda a tentar escrever um livro. Só Deus saberá porquê, pois não conhece mais ninguém que escreva, mas é algo que lhe dá de facto prazer. Nunca pensara em publicar até certo dia, quando ouvira a sobrinhaneta afirmar, num tom indiferente, «Depois do meu ano sabático, sou capaz de escrever um livro». «Escrever um livro?» inquirira Mary. «Queres então ser escritora?» Sempre pensara que Caitlin queria ser médica, mas a verdade era que nunca fora muito chegada aos filhos ou aos netos da irmã. «Oh, não», respondera Caitlin. «Mas poderei escrever um livro, acerca das minhas viagens, compreende?» E pronto, fora o suficiente. Se Caitlin, que terminava todas as frases com um ponto de interrogação e não sabia que, no livro, Mr. Darcy não nadava com a sua vaporosa camisa branca, se Caitlin ia escrever um livro, então ela, Mary, que andava a escrever o seu desde os trinta anos, estava apostada em publicá-lo. Não ia deixar mais nada passar-lhe ao lado. Anna e Cat estão sentadas na sala de embarque do aeroporto, prontas para seguir viagem. O seu voo será certamente o próximo a ser anunciado – todos os que o precedem têm já à frente o número da respectiva porta de


embarque – e ali ficam elas, agarrando casacos e malas e livros, prontas para avançar assim que o número mágico surgir. O Steve de Anna aflige-se imenso com os aviões. Se ali estivesse, teria insistido para que Anna e as crianças ficassem de pé ao seu lado em frente dos monitores informativos. E assim que o respectivo número surgisse, tê-los-ia conduzido numa correria pelos corredores e pelas escadas, de forma a ser o primeiro a chegar à porta de embarque. «Porquê?», perguntava sempre Anna. «Não há ne​nhum prémio por sermos os primeiros. E teremos de esperar de novo quando lá chegarmos.» Mas agora, sem Steve a correr à sua frente e sobrecarregada com a bagagem de mão – é ele quem carrega sempre tudo – Anna sente-se ligeiramente perdida. Mas também reconfortada por estar com Cat. Cat viaja constantemente, mencionando casualmente junto ao portão da escola que foi passar o fim-de-semana a Nova Iorque, que vai a Paris fazer compras de Natal, que leva as crianças à Disneylândia na Florida quase todas as férias. Naturalmente, Justin, o marido de Cat, ganha muitíssimo bem, tem a sua própria empresa e guia carros que fazem Steve arfar e correr para o computador para provar que são um mau investimento e péssimos para o meio ambiente. Mas Cat nunca é ostensiva em relação ao dinheiro. Está a sempre a elogiar a qualidade da roupa vendida no Asda – embora ela não as use, repara Anna – e a mencionar a compra de brinquedos em segunda mão por instituições de caridade. Cat está sempre a dizer que é uma mãe como outra qualquer. Mas, claro, basta a maneira como se veste para a distinguir das demais… – Ali está ele! – exclama Cat, agarrando-lhe o braço. – Porta trinta. Vamos embora. Mesmo sem Steve a galopar à sua frente, Anna dá por si a correr para conseguir acompanhar as longas e bem exercitadas pernas de Cat. Porque será que Cat a faz sempre sentir-se como uma criancinha gorda que tem de correr para a acompanhar? Anna sabe que não é gorda. Ganhou algum peso depois de ter o Jake, mas continua a vestir o 40 na maioria das lojas. O problema é Cat vestir o 36 e também ter tido duas crianças. Foi justamente graças aos filhos que as duas se conheceram, num grupo para crianças que já frequentavam. Anna estava lá com Tom. O filho tinha dois anos e ela já


estava grávida de Jake, passando todo o tempo enjoada. Sasha, o filho mais velho de Cat, estava na fase de correr de um lado para outro e Star, a mais pequenina, ainda estava no canguru. Star devia ter apenas uns dez meses, mas a elegância de Cat, com umas calças de ganga azuis artisticamente rasgadas, era tal que fazia qualquer pessoa chorar de inveja. Talvez fosse por isso que nenhuma das outras mulheres parecia dar-se com ela. Mas Cat não parecia importar-se. Em vez disso, falava constantemente com Sasha como se ele fosse um adulto – «O que achas de irmos ao parque esta tarde, Sash? Ou preferes ir ao Starbucks tomar um leitinho?» E, à hora do lanche, em vez de deixar Sasha comer papa e um biscoito como todas as outras crianças, desencantara uma caixa de plástico com palitos de cenoura. Anna ficara incrivelmente impressionada, sentindo-se também envergonhada por Tom, que engolia biscoitos como se o mundo estivesse prestes a acabar. Por que razão Cat resolvera escolhê-la como amiga é algo a que Anna nunca saberá responder. Mas, a verdade é que após a primeira e agoniante cantoria – «Atirei o pau ao gato» –, sentadas num chão desconfortável com vinte crianças aos berros, Cat virara-se para ela com um sorriso rasgado e propusera: «E se fôssemos lanchar a minha casa? Bolinhos de peixe orgânicos para as crianças e um copo de vinho para nós. Que tal?» Anna aceitara quase antes de Cat concluir a frase. E, apesar de Tom ter cuspido os bolinhos de peixe orgânicos e de a casa de Cat a fazer sentir-se literalmente agoniada de inveja, as duas continuam amigas. As crianças andam na mesma escola primária, católica, embora Cat tivesse tido de fingir que frequentava a igreja. Sasha e Star são apenas ligeiramente mais velhos do que Tom e Jake, mas noutros aspectos estão a anos-luz de distância. O facto não parece incomodar Anna que, naturalmente, espera que Sasha e Star sejam mais inteligentes, o que é óptimo. Sasha sabe dizer olá em dez línguas e, embora falte com frequência às aulas devido a alergias ou viagens de férias, já lia Harry Potter enquanto Tom se debatia com as histórias para crianças de A Chave Mágica. Star é uma verdadeira princesinha, anda no ballet e tudo, usando sempre algo cor-de-rosa e reluzente. Star leva por vezes Anna a pensar que gostaria de ter uma filha, o que talvez faça com que Jake seja sempre um pouco maroto com a menina. Mas Cat reagira


incrivelmente bem quando ele a fechara na casinha de brincar… Cat também é mais inteligente do que ela. Bem, mas tal já seria de esperar; Cat estudou em Cambridge e Anna frequentou o politécnico de Anglia – que agora já é uma universidade. Não deixa de ser engraçado que Steve a considere uma verdadeira intelectual pelo mero facto de ela ter estudos superiores – ele abandonou a escola aos dezasseis anos – e por ter conseguido publicar alguns dos seus contos. Francamente! Ele devia ler o livro de Cat, que é absolutamente brilhante e muito engraçado. Mas não faz de todo o género de Steve, que só gosta de livros que falem de Hitler ou do Titanic. Anna espera que nem todos os participantes do curso sejam tão inteligentes como Cat. – Achas que haverá aqui mais alguém? – pergunta Cat, quando por fim se sentam junto à porta de embarque. – Alguém como? – inquire Anna estupidamente, tentando enfiar o casaco na sua mala de mão. Está simplesmente a ferver após a correria pelos corredores. – Mais alguém do curso – diz Cat, olhando em volta para as soturnas filas de cadeiras de plástico. – Este é o único voo de hoje para Pisa. Poderão estar aqui outros escritores. Anna segue o olhar de Cat em torno da sala de embarque. Há várias famílias, com as mães a perderem lentamente a infindável luta entre subornos e gritaria, alguns jovens italianos mais barulhentos do que se imaginaria possível, um empresário de ar presunçoso com um computador portátil e um par de velhinhas a viajarem sozinhas. – Não me parece – conclui Anna. Mas, efectivamente, dois outros aspirantes a escritores seguem no mesmo avião. Mary acaba de verificar, uma vez mais, o conteúdo da sua mala de mão – passaporte, carteira, óculos sobresselentes, livro de palavras cruzadas, caneta, informação sobre o curso, pastilhas de mentol – e está agora a ler O Bandolim do Capitão Corelli sem prestar grande atenção. Tem o coração a bater de tal forma que está surpreendida por ele não ter accionado os alarmes de segurança. Passaram-se dez anos desde a última


vez que andou de avião – as férias são normalmente passadas com a irmã em Norfolk ou algures na costa inglesa – e nunca, jamais, fez algo assim tão ousado. Ir para a Toscana frequentar um curso de escrita criativa. Escrita criativa! É quase como ser um escritor de verdade. Mary espera que o seu romance inacabado não pareça demasiado fraquinho quando comparado com o brilhantismo do trabalho dos demais. «São bem-vindos autores publicados e não publicados», dizia a brochura. E se todos os outros forem autores publicados? Mary está convicta de ter lido algures que os participantes não se deveriam preocupar com o respectivo nível de desenvolvimento literário – resolve então tirar as suas notas para confirmar. – Desculpe? Uma mulher está a debruçar-se sobre ela. Tem o cabelo vermelho-vivo e enverga um blusão de ganga mas não parece assustadoramente jovem. Na verdade, pode ter qualquer idade. – Vai para o curso de escrita criativa? No Castello de la Luna? – Sim – responde timidamente Mary. – Que maravilha! Eu também. – A mulher estende-lhe a mão. – Chamo-me Sally Hamilton. – Mary McMahon. – McMahon. É irlandesa? – Bem, o meu pai era. – Adoro os Irlandeses. Estou convencida de que tenho uma alma irlandesa. Mary não sabe muito bem como responder a uma tal afirmação. Mas, felizmente, Sally não espera pela resposta. – Já fez algum dos cursos dele antes? – De quem? – Do Jeremy Bullen. É ele o orientador do curso. É absolutamente brilhante. – Foi ele quem escreveu Mergulho de Barriga, não foi? – inquire Mary, que se informara antes de partir. – Já o leu? – Não – admite ela. – É fabuloso. Transforma a nossa vida – afirma Sally Hamilton, olhando-a


intensamente com uns pálidos olhos azuis, contornados a rímel negro. Nervosamente, Mary sorri-lhe. – Porque não nos sentamos juntas no avião? – sugere Sally. – Palpita-me que vamos ser almas gémeas.


CAPÍTULO 3 Diário de Mary, 1 de Agosto Cheguei. Parece um sonho. Tudo isto me parece um sonho. Quando avistámos a torre de Pisa através das janelas da carrinha, quase senti vontade de gritar. Era inacreditável que algo que eu conhecia apenas de postais estivesse efectivamente ali. Enorme contra o azul intensíssimo do céu, com os carros a buzinar à sua volta. Mas, excepto eu, mais ninguém pareceu reparar; a Sally continuava a falar acerca do Jeremy Bullen e as duas raparigas estavam entretidas com os respectivos telemóveis, enviando mensagens aos maridos, suponho eu. Mas o Aldo voltou-se e sorriu para mim, como se compreendesse. No aeroporto de Pisa foi um verdadeiro choque perceber que as duas raparigas elegantes que vinham no avião pertenciam de facto ao nosso grupo. Creio que elas ficaram igualmente surpreendidas ao ver-me – com a minha mala de viagem antiquada e sapatos práticos. Uma delas, a Cat, parece uma modelo – morena, com o cabelo ondulado e uma figura incrível. A outra, a Anna, também é bonita, mas não é tão vistosa – tem o cabelo castanho-claro e um rosto simpático e sardento. Ambas parecem boas raparigas, mas creio que simpatizo mais com a Anna. Não sei bem porquê. Talvez se prenda com o facto de a Cat ter contado uma série de histórias engraçadas acerca dos seus filhos, Sasha e Star (hoje em dia as crianças têm nomes verdadeiramente extraordinários!), mas a Anna parecer sentir mais saudades dos seus. Suponho que, por não ter filhos, tenho tendência a romantizar a relação: e a ideia de uma mãe querer efectivamente passar tempo longe da prole – e a Cat confessou desejá-lo – me parecer, de alguma forma, pouco natural.


Quando chegámos ao aeroporto, fomos recebidas por um simpático italiano chamado Aldo que, num inglês macarrónico, nos anunciou ser o chef do castello bem como o «velador». Suponho que pretendesse dizer zelador, mas creio que prefiro «velador». A Cat começou a falar com ele em italiano – ela parece ser bastante inteligente – mas ele respondeu-lhe sempre no seu inglês engraçado. Aldo tem um rosto magnífico, de traços fortes e olhos muito azuis rodeados de sorridentes rugas de expressão. Deve ter, pelo menos, a minha idade, mas pegou nas malas como se elas não pesassem nada. «Estou disforme», repetiu ele várias vezes. Julgo que devia querer dizer que estava em forma. O Aldo não é nada disforme. O castello é realmente maravilhoso. Quando o vi pela primeira vez, tive outro acesso de incredulidade. Saímos da estrada principal e avançámos aos solavancos por um caminho acidentado e depois avistámos um enorme portão ornamentado, com as duas metades abertas e presas por pesadas pedras. A entrada parece prolongar-se infinitamente: é ladeada por árvores e vêem-se extensos campos amarelados pelo sol. Depois, de repente, surge o castello – extremamente sólido e cinzento, com torres verdadeiras e maravilhosas flores roxas a crescerem por todo o lado. Tenho de descobrir o seu nome, pois neste aspecto, sou uma verdadeira citadina. O meu quarto fica numa das torres e é verdadeiramente luxuoso. Pela primeira vez na vida, tenho uma cama de dossel! Tenho também uma casa de banho privativa, toda em tons de azul, como se estivéssemos no fundo do mar. Tudo cheira maravilhosamente a lavanda e limões. Passei uma eternidade agarrada às toalhas, a cheirá-las bem juntinho ao rosto. Felizmente ninguém me podia ver. Tenho também uma secretária com um computador portátil – que luxo; em casa tenho apenas um PC velhinho –, um sofá de veludo amarelo e dois armários espaçosos. As minhas poucas roupas parecem perdidas lá dentro. Depois de ter lavado a cara e trocado de roupa – optando por um vestido mais leve, pois sentia-me quente e suada depois da viagem, embora a carrinha tivesse ar condicionado –, decidi explorar um pouco. O meu quarto dá para a entrada, mas, quando cheguei às traseiras do castello, tive


outro choque. Havia três socalcos abaixo de mim e, no último, como nas revistas, estava uma maravilhosa piscina. A água reluzia ao sol e parecia cair pela borda como se estivesse prestes a transbordar colina abaixo. Desejei ardentemente deslizar para dentro dela, mas não queria estragar o cabelo antes do jantar. Amanhã, no entanto, será a primeira coisa que farei mal acorde. Mas, enquanto observava, vi emergir uma figura por entre as árvores que ladeiam a casa. Um homem louro, de calções de banho e toalha na mão. Mergulhou na piscina e percorreu a sua extensão debaixo de água. E eu fiquei ali parada, cheia de inveja. Quase conseguia sentir a água, o choque súbito do mergulho, o sol contra o meu rosto enquanto emergia. O homem nadou mais um pouco e depois saiu. E, não se dando sequer ao trabalho de se secar, partiu de novo por entre as árvores prateadas. Serão oliveiras? Talvez… Em seguida, deambulei por mais alguns corredores. É uma casa enorme – com o chão em pedra, os tectos em madeira e uma infinidade de degrauzinhos. Mas todas as portas estavam fechadas e eu não queria ir parar onde não me competia, a algum recanto privado. Portanto, e com alguma dificuldade, dei meia-volta e regressei ao meu quarto. Só falta uma hora para as «bebidas e crostini no terraço». É uma ideia entusiasmante, mas também assustadora. Não estando de todo entusiasmada nem assustada, Patricia arruma os copos no terraço. Sente-se cansada e ligeiramente aborrecida, embora não saiba porquê. Tudo está a correr conforme previsto. Os Van Elsten chegaram de manhã e ambos lhe pareceram pessoas bastante razoáveis. Rick Van Elsten parece ser particularmente simpático, com um riso texano franco. Se ele é ou não suficientemente simpático ao ponto de enterrar um milhão no Castello della Luna é outra conversa. Após um almoço ligeiro, os Van Elsten foram descansar para recuperar da diferença horária, deixando Patricia livre para se preparar para as chegadas da tarde. O que estragara tudo fora o francês, Jean-Pierre Charbonneau, que chegara


ao meio-dia, roncando pela entrada acima num carro desportivo alugado, exigindo café e sanduíches e um copo de vinho branco «algo fresco e não muito doce, mas não Orvieto». Patricia ficara irritada assim que o vira: era alto, estava a começar a perder cabelo e vestia com elegância, envergando uma camisa azul e calças desportivas. Olhara depois em volta para o – indiscutivelmente impressionante – hall de entrada e, com um sorriso trocista dissera, «Ah, o Salão Grande. Têm armaduras e tudo. Sempre dá atmosfera». A inferência era que o castello fora excessivamente restaurado, que não era autêntico, sendo até kitsch. E o seu inglês era exasperantemente perfeito. – Também há uma masmorra – dissera Patricia com mais frieza do que normalmente gostava de usar ao falar com os novos hóspedes. – Mas, infelizmente, é lá que guardamos o vinho. – Vinho italiano – afirmara o francês, estremecendo. – Que pitoresco. Mas ele não pudera queixar-se do seu quarto, uma das melhores suítes, com varanda privada e tudo. Comentara até a beleza da vista, as colinas de tons ocres e amarelos sob o sol do meio-dia, os ciprestes quais sentinelas ao fundo no horizonte. – Aquilo é Siena? – perguntara ele, apontando para uma colina distante, onde torres se elevavam aos céus como um cenário de uma representação renascentista do Paraíso. – Sim – respondera Patricia, sucinta. – É uma cidade belíssima. – Quer isso dizer que aprova as cidades italianas? Jean-Pierre Charbonneau sorrira então, revelando uns dentes muito brancos. – Eu adoro a Itália. Mas não suporto os Italianos. Jean-Pierre Charbonneau deixara-a de mau humor porque, apesar de se queixar frequentemente de Itália, Patricia não suporta ouvir o seu país de adopção ser criticado por estrangeiros. Sobretudo por um francês que, repara ela, não se importa de guiar um Alfa Spider e vestir Gucci. A chegada das inglesas tinha sido um alívio. Mary McMahon era encantadora e estava maravilhada com tudo. Era uma senhora baixa, já de


certa idade, com cabelo curto louro-acinzentado e uma figura de menina. Sally Hamilton era já uma cara familiar de cursos anteriores. Sally dera-lhe um abraço e desencantara um raminho fragilizado nas profundezas da sua mala. «Um framboeseiro», declarara ela. «Perfeito para a horta das traseiras.» Sally dedica-se profissionalmente à jardinagem. As mulheres mais novas também são simpáticas. Catherine Ferris-Merry (Cat) não é o monstro que ela imaginara, embora seja irritantemente atraente. Anna Valore é uma mulher doce e tímida, que já começa a ficar cor-de-rosa sob o sol italiano. – Valore – afirmara Patricia. – Quer isso dizer que é italiana? – O meu pai era italiano – respondera Anna, corando. – Ou melhor, os pais dele. Mas infelizmente eu não falo italiano. – Disparate – dissera Aldo, que parecia estar a demorar a retirar-se. – Fala muito bem. Cat soltara uma gargalhada. – Isso era eu, Aldo. É engraçado, não é? A Anna é quem tem ascendência italiana, mas eu é que falo a bendita língua. Mas Aldo não se rira. Pegara antes na mala de Mary e começara a levá-la para o andar de cima. – Eu posso fazer isso – protestara Mary. – Não – respondera Aldo com um trejeito do seu bigode. – Não custa nada. Eu estou disforme. Agora, dispondo as cadeiras de vime em conjuntos agradáveis, Patricia interroga-se sobre a interacção futura do grupo. Por vezes os hóspedes combinam incrivelmente bem, forjando amizades de anos. Mas às vezes é mais complicado, o que significa um acréscimo de trabalho para ela, para Myra e para Jeremy. Myra é exímia em fazer desabrochar os mais tímidos – irá sentá-la ao lado de Anna ao jantar – mas Jeremy só fala efectivamente com quem acha interessante. Quase não tem paciência para as suas fãs, como Sally – mas elas não parecem importar-se. Patricia solta então um suspiro. Jeremy deve estar a chegar, logo, será melhor certificar-se que Mergulho de Barriga está virado para a frente na prateleira da biblioteca. Sam McClusky também já não deve demorar. Vem de carro do lago


Como, onde tem estado a passar férias. Patricia espera que ele seja menos embirrante que Jean-Pierre Charbonneau. Efectivamente, é bastante raro ter dois homens solteiros num curso de escrita criativa – e ela espera que as mulheres compreendam a sorte que têm. Aqueles cursos são com frequência eventos integralmente femininos, o que lhes confere uma certa leveza jovial mas reduz bastante as oportunidades de terem um verdadeiro romance italiano de Verão. Bem, de qualquer forma, o mais certo é os dois apaixonarem-se por Cat, que é casada. Que desperdício. O som de passos suaves interrompe então Patricia. Fabio está na entrada, trazendo consigo uma mesa de cavalete. – Desculpe – diz ele, no seu italiano letrado. – O Aldo disse que talvez precisasse disto. – Ah, sim, obrigada, Fabio – responde Patricia, apercebendo-se de que está a soar atrapalhada. «Poderá ele ser assim sempre tão bonito?», interroga-se ela, esperando não demorar muito a habituar-se. Fabio pousa a mesa e Patricia cobre-a com uma toalha de linho branca. Está agora pronta para receber os pratos de crostini reluzentes que aparecerão como que por magia mais tarde e que Ratka concordou em servir. Patricia levanta os olhos sobre a varanda. De forma quase imperceptível, com ligeiríssimos laivos azuis no céu e um odor a jasmim que se eleva dos terraços mais baixos, o dia começa a findar. Tem de se certificar de que as luzes da piscina estão acesas – de noite a água fica tão cativante. Deve ter pronunciado estas palavras em voz alta, pois Fabio oferece-se para ir acender as luzes por ela. Patricia vê-o então a virar costas, sorrindo, continuando ainda a parecer-lhe incrivelmente bonito. Cat está entusiasmadíssima com a perspectiva do serão. Irá usar o seu vestido vermelho sem costas. Felizmente já está bastante bronzeada dos quinze dias que passou em Dordogne. E espera sinceramente que haja homens no curso. Não que alguma vez tenha pensado em ser infiel a Justin, mas a verdade é que prefere a companhia dos homens. As mulheres conseguem ser extremamente más e triviais. Como aquelas vacas do grupo


infantil que não paravam de mugir sobre o preço dos iogurtes no supermercado. E quando ela tentara falar da sua experiência degustativa na Grécia com verdadeiro iogurte grego, tinham-na ignorado. Ainda bem que a Anna lá estava. Cat não sabe ao certo porque gosta tanto de Anna. Ela é muito apagada comparada com as suas amigas de Cambridge, mas, de alguma forma, essas amizades universitárias estonteantes acabaram por não durar e agora Anna é de facto a sua única amiga. Anna é bondosa e divertida e uma amiga leal. E defendera Cat quando uma daquelas cabras do centro infantil a difamara – Cat, que estava a aquecer leite de soja na cozinha, ouvira tudo. A franca reverência de Anna tranquiliza a alma de Cat. Anna admira-a, e a verdade é que tal lhe confere uma certa responsabilidade em relação à amiga. Tem de se certificar de que Anna consegue fazer algo da sua vida. Deus sabe que não conseguirá qualquer tipo de ajuda do estúpido do marido. Ele não lhe dá valor – o mais certo é querer que ela seja apenas uma dona de casa apalermada. Bem, veremos. Fora Cat quem sugerira inscreverem-se no curso e será Cat a salvar Anna da sua rotina suburbana. Cat sorri ao olhar-se ao espelho. Quando os convidados se sentam para jantar, Sam continua sem chegar. Matt está igualmente desaparecido. Jeremy atrasara-se para as bebidas antes do jantar. Ignorara as boas-vindas de Sally e instalara-se imediatamente ao lado de Cat, que estava fabulosa com um vestido vermelho e o cabelo preso. De vez em quando Patricia ouvira-o discursar sobre «a vacuidade da vida cultural moderna» e «a falta de credibilidade do mundo editorial inglês». Ao menos, como Cat andara em Cambridge – facto que ela já deixara escapar várias vezes – conseguiria lidar com aquele género de coisa. Myra, reparara Patricia com satisfação, sentara-se junto a Anna e Mary, tagarelando animadamente acerca da Toscana. Assim Patricia ficou livre para conversar com os Van Elsten e Sally ficou a entreter um aborrecido Jean-Pierre. Durante o jantar, as coisas correm um pouco melhor. Jean-Pierre consegue ser bastante divertido a denunciar a condução dos Franceses e Myra fá-los rir com descrições das suas tentativas de andar de Vespa. Há um momento


um nadinha embaraçoso, com Dorothy Van Elsten a pretender dar graças quando os outros ti​nham acabado de provar os rigatoni ai peperoni, mas a situação é rapidamente controlada pela experiente Patricia, que diz uma breve oração em italiano, suficientemente étnica para não incomodar os ateus presentes mas igualmente santa para satisfazer Dorothy. E, as​sim que ela termina, Matt faz uma entrada discreta. – Onde estiveste? – não resiste a mãe a perguntar. – Pensei que me ias ajudar esta tarde. – Estive ocupado – responde Matt de forma evasiva. – A fazer coisas. – Este é Matthew, o meu filho – anuncia Patricia aos comensais. – É um pouco esquivo. Mary olha para cima e, reconhecendo o nadador louro, sorri. De forma um tanto circunspecta, Matt retribui-lhe o sorriso. O rigatoni e o polpettine que se seguem estão absolutamente perfeitos e, pela enésima vez, Patricia agradece a Deus – em italiano e em inglês – por ter Aldo. Os hóspedes podem pensar que vêm para o castello para aperfeiçoar a sua técnica literária, mas a memória duradoura que levarão consigo será a perícia culinária de Aldo. Não há no mundo seminário de narrativa criativa que perdure na mente tanto quanto as pappardelle com melanzane e peperoni de Aldo – ele é por vezes irascível, mas vale o seu peso em ouro. É tradição Aldo aparecer na sala de jantar quando o café está a ser servido, para conhecer os hóspedes e receber os seus elogios. De início, Patricia sentira-se um pouco incomodada com a situação. Parecera-lhe um exagero, como se estivesse a exibir uma exótica personagem italiana para divertimento do público que comprara o bilhete. Matt acha, e di-lo com frequência, que é aviltante para Aldo estar rodeado de mulheres arrulhando: «Oh, ele é mesmo um amor, não é?». Mas Aldo parece bastante agradado com a atenção e, com o seu resplandecente avental branco, é uma figura curiosamente digna, educado mas não servil, sublimemente confiante nas suas capacidades. E hoje está em excelente forma. Todos os hóspedes elogiam a sua comida, até mesmo Jean-Pierre. Dorothy Van Elsten desfaz-se em aplausos,


pedindo-lhe para se sentar ao seu lado e lhe dar todas as receitas – Aldo fica temporariamente surdo nessa altura. – Viveu sempre na região, Aldo? – pergunta ela. Os americanos são exímios em fixarem nomes. – Sim – responde Aldo. – Nasci em San Severino. O meu pai era o padeiro da terra. – O padeiro! Ena! Aposto que lhe ensinou todos os seus segredos, hum? – Ensinou-me algumas coisas – diz Aldo com modéstia. – E aposto também que o Aldo conhece todos os segredos deste lugar. Diga-me: será que está assombrado? Eu sou médium e tenho uma sensação estranha em relação ao castello. Aldo olha para Patricia. – Sim, há uma lenda. – Oh! Conte-nos! – rogam pelo menos quatro vozes. Aldo inspira fundo e inicia o seu relato. Sub-repticiamente, Patricia apaga as luzes, deixando apenas as velas acesas. – Em tempos viviam no castelo um conde e uma contessa. A contessa era muito bonita mas o conde era velho e não era um homem bom. Era um homem cruel. A contessa apaixonou-se por um rapaz da terra. Muito bonito, com cabelo louro como um inglês. Todas as noites ela procura-o na Torre Norte e ele atravessa o bosque, cavalgando no seu cavalo. Um belo cavalo branco. Mas o conde descobre. Fica furioso e manda os seus homens apanharem o rapaz, o amante da sua mulher. Apanha-o mas não o mata. Não, é ainda mais cruel. Põe o rapaz numa jaula e pendura-a na Torre Norte. A contessa tem de ver o amado morrer lentamente. A contessa não consegue aguentar. Uma noite, vai até à torre e atira uma flecha e mata ela própria o amante. Ela não quer que ele sofra ainda mais. E depois atira-se da torre. Mata-se. – Aldo dá um gole no seu copo de vinho e olha lentamente em volta. – E dizem que quando a lua está alta, podemos ver o rapaz a cavalgar em direcção ao castelo, com o luar a reluzir no seu cabelo louro. E, quando a luz da lua toca na Torre Norte, pode ver-se a jaula a ba​lançar de um lado para o outro e ouvir-se os gritos da contessa a cair para a morte. Um coro de «ohs» e «ahs» recebe a história, mas Patricia surpreende-se


por se sentir genuinamente abalada. Naturalmente, já ouviu muitas vezes o conto de Aldo. É uma componente estabelecida do serão da primeira noite. Mas esta foi a primeira vez que escutou o pormenor da lua e Patricia tem um medo irracional da lua. Tem sempre o cuidado de fechar bem as cortinas para que nenhum fiozinho de luar caia sobre a sua cama – e quando vê a lua cheia, e embora não seja católica, benze-se. Patricia julga saber de onde vem o seu medo. Estará relacionado com a sua infância, mas a infância de Patricia é um lugar que ela nunca, nunca revisita. – Quem está a dormir na Torre Norte? – pergunta alguém. – Eu – responde animadamente Mary. – Talvez seja melhor ter cuidado. – Não se preocupe, querida – afirma Dorothy. – Se não for susceptível, não ouvirá nem verá nada. Mas se fosse eu quem estivesse nesse quarto, não iria pregar olho. – Dormi nesse quarto durante vários anos – diz Patricia num tom reconfortante. – Quando eu era… quando o meu marido vivia connosco. E nunca vimos nada. – É apenas uma típica história apócrifa – diz Cat, erguendo o seu copo de modo a que o vinho reluza à luz das velas. – Tem todos os elementos tradicionais: o marido mais velho, ciumento, a esposa infiel, o jovem amante. Até mesmo o cavalo branco e a torre iluminada pelo luar. – Exactamente – murmura Jeremy, cheio de admiração. – Mas, como sabemos, há apenas seis tipos de arquétipos: cerco, conquista, da pobreza à riqueza, renascimento… – E dizem – afirma Aldo, elevando ligeiramente a voz – que nas noites de tempestade podemos ouvir o cavalo branco a galopar em direcção aos portões, o ranger da porta a abrir… E, como que a seguir a deixa, a porta da sala de jantar abre-se com um gemido, mostrando a silhueta de um homem recortada contra a entrada. Dorothy solta um grito e alguém empurra violentamente para trás uma cadeira. A chama de uma vela ondula e apaga-se. – Perdão – afirma o homem de tez morena e figura robusta que segura uma mala de viagem. – A criada abriu-me a porta. Chamo-me Sam McClusky.


De: Anna Valore Data: 1 de Agosto de 2007, 23.40 Para: Steve Smith Assunto: Olá borracho Olá, amor. Foi óptimo encontrar o teu e-mail à minha espera quando regressei ao meu quarto. É um quarto maravilhoso, com uma enorme cama de casal. Quem me dera que aqui estivesses para a partilhares comigo! Este lugar é realmente fabuloso. Lembras-te de teres dito que castello devia ser apenas a palavra italiana para bungalow pré-fabricado? Bem, é de facto um castelo, com torres e tudo. E fica numa propriedade magnífica cheia de oliveiras e lavanda por todo o lado. Há uma piscina fantástica e campos de ténis e até um ginásio. Não que eu me vá pôr a fazer desporto, obviamente! A proprietária, Patricia, é muito simpática. É super organizada, mas no bom sentido. Deve estar na casa dos quarenta, mas é muito elegante e atraente. Tem um filho chamado Matthew que tem cerca de dezassete anos. Os professores são uma americana adorável e um inglês um tanto emproado chamado Jeremy Bullen. Felizmente ignorou-me até agora. Tem estado muito entretido a conversar com a Cat! Todos os outros hóspedes parecem simpáticos. Há uma velhinha amorosa chamada Mary que, imagina só, está a escrever uma história de detectives. Há outra mulher chamada Sally que já frequentou vários cursos no castello e que parece conhecer muito bem o Jeremy. Há um casal de americanos simpáticos, a Dorothy e o Rick. A Dorothy é toda New Age e disse-me que eu tenho uma aura muito bonita! Mas eu só conseguia pensar no que tu haverias de dizer! Há um francês chamado Jean-Pierre (JP). De início não gostei muito dele, mas durante o jantar acabou por se mostrar bastante engraçado (a comida é fantástica!) O último hóspede, o Sam, chegou dramaticamente depois do jantar, logo a seguir ao Aldo (o chef) ter acabado de contar uma arrepiante história de fantasmas. Coitado do Sam. Todos nós saltámos quando o vimos e a Dorothy chegou mesmo a gritar. Aparentemente, ele teve um furo na auto-estrada e atrasou-se. O Aldo preparou-lhe algo de comer e todos bebemos mais café e licores para nos


refazermos do choque. Eu bebi uma grappa. Como o Tom diria, era absolutamente «repugnanta». Oh, tenho imensas saudades vossas! Tenho de admitir que fiquei um pouco em baixo quando cheguei e vi a piscina e pensei que os rapazes iriam adorá-la. E no quanto tu irias adorar a comida – e a cama de casal! Estou cheiinha de culpa por estar aqui a pavonear-me em todo este luxo, enquanto tu te levantas cedo para levares o Tom ao futebol e o Jake às aulas de natação. A Cat diz que eu mereço estas férias, mas eu não sei se será de facto assim. Bem, já deves estar farto da minha tagarelice. Quase te consigo ouvir dizer, «Bem, agora já aí estás, portanto relaxa e aproveita». É o que vou tentar fazer. De manhã já devo estar bastante mais animada. Abraça e beija os miúdos por mim e diz-lhes que lhes comprarei presentes fantásticos (sei que tanto tu como o Tom querem camisolas da selecção italiana!). Amo-te. A. xxxxxxx


CAPÍTULO 4 Primeiro Dia 2 de Agosto s escritores não escrevem sobre pessoas que conhecem. Escrevem sobre o que conhecem das pessoas – afirma Jeremy, fazendo uma pausa expressiva e olhando em volta para os participantes do curso ali reunidos. – Ou pelo menos é essa a minha humilde experiência. A primeira sessão do curso decorre numa das várias salas de estar do castello. Os participantes sentam-se em sofás e cadeiras e não por detrás de secretárias. Jeremy deambula de um lado para o outro em frente das janelas abertas. Do exterior emana um burburinho de grilos e a pesada sensação de calor dourado, mas a sala está equipada com ar condicionado. Efectivamente, Anna sente até um certo frio com a sua T-shirt e saia de algodão. Cat, com um colete sem mangas e uns calções minúsculos, não parece incomodada. Quando ela cruza as suas longas e bronzeadas pernas, Anna repara que tanto JP, como Sam e Jeremy olham para ela. – Mas já chega de falar de mim – diz Jeremy de forma pouco convincente. – Alguém fez o exercício que vos propus por e-mail? Escrever duzentas e cinquenta palavras sobre vocês próprios, e dizer-nos algo que nunca tenham contado a ninguém? Sally ergue de imediato a mão mas, após fingir olhar para a audiência, Jeremy afirma: – Cat. Porque não começa? – Porque tenho de ser a primeira? – inquire Cat, fazendo beicinho, mas não hesitando em retirar umas folhas da sua pasta. Atirando o cabelo para trás, começa.

–O


– O meu nome é Catherine, mas a maioria das pessoas trata-me por Cat. De início odiava o diminutivo, mas agora até gosto bastante dele. Os gatos são belos e elegantes, mas também têm garras, como o meu marido salienta tantas vezes! Os miúdos adorariam ter um gato, mas infelizmente sou alérgica aos ditos cujos, logo terão de se contentar comigo! «Vivo em Brighton com o meu marido Justin e os meus filhos, Sasha e Star. A nossa casa é uma verdadeira monstruosidade vitoriana, enorme e com imensas escadas, cheia de correntes de ar, mas nós adoramo-la. Antes de casar tinha um emprego ultramoderno em publicidade mas devo admitir que por vezes me aborrecia. Sou perfeitamente feliz como mãe a tempo inteiro mas por vezes sinto-me frustrada por estar sempre acompanhada de gente cuja idade mental não ultrapassa os dez anos – o que, no caso dos meus filhos, denota precocidade, obviamente! As minhas cogitações sobre o tema converteram-se num blogue que, por sua vez, se transformou num livro: Um Ano na Vida de Uma Mamã Maravilhosa. Ainda não foi publicado, mas, depois deste curso, vou iniciar uma nova vida como escritora. Algo que nunca partilhei com ninguém? Bem, quando andei em Cambridge, namorei com uma pessoa bastante famosa. Não vou mencionar nomes, naturalmente, mas há laços com a realeza! Mas onde é que já se viu uma princesa chamada Cat?» – Obrigada, Cat – afirma Jeremy. – Estou a ver que futuramente teremos de fazer uma vénia quando a encontrarmos. Quem se segue? Antes de ele ter tempo de escolher outra pessoa, Dorothy levanta-se e, aclarando nervosamente a garganta, dirige-se à assembleia com um tom de voz nítido mas estridente. – O meu nome é Dorothy e fui maltratada em criança. Éramos sete irmãos e crescemos na miséria no Missouri. Eu era a mais velha e, por alguma razão, a minha mãe nunca me amou. Costumava bater-me com cintos e fios eléctricos e até mesmo com uma perna da mesa. Eu tinha de fazer todo o trabalho e não me era permitido comer com os meus irmãos. Tinha de comer no alpendre, com as galinhas. A minha mãe nunca batia nos outros filhos. Só em mim. Não sei por que razão, mas devido ao facto, durante anos debati-me com problemas de auto-estima. Quando tinha dezasseis


anos, fui violada por um amigo da família mas a minha mãe culpou-me a mim e pôs-me fora de casa. Prostitui-me durante algum tempo mas depois encontrei Deus. Ele conduziu-me até San Antonio, onde conheci o meu segundo salvador, o meu marido Rick. Embora agora tenha uma boa vida, nunca encerrei por completo esse capítulo da minha existência porque nunca consegui perdoar à minha mãe. Ou a mim própria. Por isso, estou a escrever um livro. Para contar a verdade. Para esclarecer tudo. E resolvi começar por vocês. É tudo. Um silêncio profundo preenche a sala. Até mesmo os grilos no exterior parecem ter sossegado. Patricia, que chegou a tempo de ouvir o final do discurso de Dorothy, está imobilizada na entrada. Jeremy vocifera mentalmente. Como diabo poderá ele comentar aquilo? – Vamos almoçar – acaba então por dizer. – Foi inacreditável – diz Patricia a Myra enquanto levantam a loiça do almoço. – Ela simplesmente leu o texto. Como se nos estivesse a dar a previsão meteorológica ou algo do género. Toda aquela terrível e chocante realidade. – Passados tantos anos, talvez ela tenha sentido que precisava de contar a alguém. – Bem, ela está a escrever um livro acerca do assunto, logo, deduzo que queira contar ao mundo inteiro. – Hoje em dia as histórias de maus-tratos estão bastante em voga – diz Myra, enfiando o dedo numa tigela com azeite. – É capaz de vender. – Cala-te – diz Patricia num tom sério. O almoço é sempre um buffet servido no terraço inferior, com vista para a piscina. E hoje Aldo excedeu-se: bruschetta, tomates recheados, finíssimas fatias de carpaccio acompanhadas por rúcula, pequenos crostini com paté e azeitonas. Os hóspedes comeram com apetite, tendo manifestamente recuperado da bomba lançada por Dorothy. A própria Dorothy denotara calma e compostura. Elogiara efusivamente a comida, mas ficara bastante desiludida por não encontrar Aldo de novo. «Adoro o Aldo! É uma alma ancestral verdadeira e sábia.» Mas Aldo nunca aparece durante os almoços


semanais. Tem um quarto seu no castello, onde descansa antes de iniciar os preparativos para o jantar. E as sestas de Aldo são sagradas. A meio do almoço o gato fizera uma nova aparição. Esperara até todos estarem a olhar para ele e depois sentara-se e começara a limpar laboriosamente os bigodes. – É realmente maravilhoso – afirmara Mary. – Como se chama? – Não sei – respondera Patricia –, não é meu. É um gato vadio. Seria imaginação sua ou o gato detivera-se e olhara para ela? – Então temos de lhe dar um nome – dissera Cat, que estava resplandecente, sentada entre JP e Jeremy. – Cat – sugerira Jeremy. – Oh, que tontice! – exclamara Cat, fingindo dar-lhe uma palmada. – Como se diz gato em italiano? – inquirira Mary. – Gatto – respondera Patricia. – Embora a alcunha seja Misha. É como bichano, julgo eu. – Misha – exclamara Sally, chamando o animal. O gato ignorara-a. – Creio que é um gato irlandês – dissera então Cat. – Porquê? – inquirira Jeremy, sorrindo de forma insinuante. – Não sei, é apenas um palpite. É um verdadeiro malandro. Deve saber que eu sou alérgica, mas agora está a roçar-se nas minhas pernas. Jeremy parecera compreender perfeitamente o animal. – Patrick? – sugerira alguém. – Brendan? – Declan? – Sean – decidira Cat. – Acho que se chama Sean. E assim Patricia ficara com um gato baptizado com o nome do ex-marido. Depois do almoço, Dorothy, Rick e Sally tinham-se retirado para os respectivos quartos enquanto Cat, JP, Sam, Anna e Mary anunciaram que iam nadar. – Ouvi-a nadar esta manhã, Mary – dissera JP. – Deve gostar bastante da água.


– Adoro nadar – respondera Mary, sorrindo. – Podemos fazer uma corrida – sugerira JP. – Deixe a Mary em paz – dissera Cat, soltando uma gargalhada. – Meta-se antes com alguém do seu tamanho. Eu aceito o desafio. Pertenci à equipa da minha escola, Mary. Não se preocupe. – E Cat sorrira amavelmente para a mulher mais velha. – A minha mãe nada todos os dias. Duas piscinas de bruços e não molha sequer o cabelo. Faz muito bem, Mary. Mary sorrira, mas não respondera. O sol brilha com a máxima intensidade e as árvores tremeluzem com o calor. Patricia consegue ouvir o grupo a rir enquanto se aproxima da piscina. Ela própria adoraria ir dar um mergulho, mas nunca usa a piscina quando lá estão hóspedes. Eles não a querem sempre colada a eles. Tomará um duche refrescante depois de arrumar a loiça do almoço. Será igualmente bom. – Levo isto? – pergunta Fabio, aparecido do nada e gesticulando para os pratos. – Sim. Obrigada, Fabio. Observando as elegantes costas que se afastam, Myra exclama: – Ele é tão sensual. – Não tinha reparado – diz Patricia num tom empertigado. – Oh, não brinques! – A sério. Ele é suficientemente novo para ser meu filho. – E meu também. Mas podemos sempre sonhar. «Mas os sonhos não levam a lado nenhum», pensa Patricia, descendo os degraus para a cozinha e tentando não pisar Sean que, de forma irritante, não pára de deambular entre as suas pernas. Ao pé da piscina, Cat, com um minúsculo biquíni cor-de-rosa, atormenta JP por causa do desafio. – Não sabe com quem se meteu, JP. As raparigas de St. Martha, como eu, são fantásticas a nadar. – Andou num colégio de freiras? – inquire Sam. – Porque pergunta? – interpela Cat, olhando-o por cima do ombro.


– Tem ar disso, é só – responde ele, sem sorrir ao dizê-lo. Anna acha-o uma presença bastante soturna, com o seu rosto pesado e moreno e olhos vigilantes. Mas Cat ri-se. – E que ar é esse? Sim, andei de facto num colégio de freiras. E então? – Eu também andei num colégio de freiras – diz JP –, mas elas chamaram a polícia. Todos se riem e Cat e JP assumem os respectivos lugares para a corrida. «A Cat está incrível» pensa Anna, interrogando-se se alguma vez terá confiança para despir a sua T-shirt. Os competidores mergulham então. Cat nada bem, mas JP, em​bora mais espalhafatoso, não tarda a tomar a dianteira. E vão a meio do comprimento da piscina quando mais alguém entra na água. Uma figura com uma touca de banho austera e um crawl incrivelmente rápido apanha-os, ultrapassa-os e, executando uma reviravolta exemplar, inicia o regresso. É Mary. Jeremy está no seu quarto a contemplar os sete manuscritos empilhados à sua frente. Pedira exemplos do trabalho mais recente dos alunos e pode constatar de imediato que eles variam consideravelmente em extensão e, com toda a certeza, em qualidade. O de Mary McMahon deve ter quase cem mil palavras, ordenadamente contidas numa pasta azul com as palavras «Barclays Bank» impressas na frente. Sam McClusky entregou três textos, cada um com menos de cinco mil palavras. «Tentei todos os géneros existentes», escreveu ele na sua nota introdutória, «mas não pareço conseguir avançar muito em nenhum deles». O de Cat tem uma encadernação profissional, o de Anna parece ter a página 5 suja com Marmite e o de Sally – meu Deus, o de Sally é-lhe tão familiar como as críticas de Mergulho de Barriga. Jeremy, naturalmente, tem um dos melhores quartos do castello, com uma varanda que dá para a piscina. Infelizmente, tal significa agora que está a ser distraído pelo barulho de risos e chapinhar de água. «É sem dúvida um dos sons mais evocativos do mundo», pensa ele, «o chapinhar de água num


dia quente». «Mas também um dos mais solitários, quando não podemos juntar-nos a ele, com cada gargalhada a sublinhar o nosso estatuto de forasteiros». Jeremy pensa então: «Isto é bastante bom, deverei registá-lo?» Mas, mal pega no seu bloco, pensa: «Quando escreverei um romance em que haja uma piscina? Não sou nenhum Alan Hollinghurst». E, pensando bem, também não há muitos risos nos seus romances. Assim, resolve aumentar o ar condicionado, fechar as persianas e concentrar-se nos romances embrionários que tem pela frente. Por razões óbvias, pega primeiro no de Cat. Céus, ela é mesmo gira. E tem um corpo fantástico também. Jeremy imagina esse cor​po, elegante e molhado, a emergir da piscina e agita-se desconfortavelmente na cadeira. Tem uma taxa de sucesso com as senhoras bastante razoável neste curso. Normalmente, só precisa de sugerir que elas precisam de alguma tutoria pessoal – ajuda se o romance em questão for picante e/ou confessional – e, após alguns serões a partilharem uma garrafa de vinho, chega lá. Jeremy abre sofregamente o manuscrito de Cat. É quase certo que ela precisará de várias sessões individuais de tutoria. Mas, meia hora depois e suspirando, Jeremy pousa Um Ano na Vida de uma Mamã Maravilhosa. Não é que seja horrível. Não está mal escrito, tem algumas piadas boas e observações inteligentes, só que tudo aquilo, cada palavra, já foi feito antes. A heroína, desorganizada mas absolutamente adorável. O maridinho inútil, os filhos que debitam verdades universais à hora de deitar – «Se amas o papá, porque discutem tanto?» Até mesmo o amiguinho maricas – bem, afinal, ela vive de facto em Brighton – e a sogra excêntrica. Jeremy sente-se como se já tivesse lido acerca destas pessoas centenas, se não milhares de vezes antes. E, Deus do Céu, nem sequer é o seu género. Não adianta. Nem mesmo o equivalente a um ano de noites passadas no terraço conseguiria modificar suficientemente o livro de forma a ser publicável. Merda. Em seguida Jeremy pega no tomo de Mary McMahon. Não tem grandes expectativas. Mary parece ser uma velhinha adorável, mas as velhinhas adoráveis escrevem sempre romances sentimentais, ou então acerca de gatos. Jeremy é igualmente alérgico a gatos e, quando pensa em romances


sentimentais, é apenas como subgénero literário anunciado numa prateleira de livraria – prateleira essa que também não incluirá os seus livros. O seu casamento acabou há mais de vinte anos e nenhuma das suas frequentes aventuras conseguiram alcançar a categoria de romance – poucas evoluíram além do mero passatempo. Portanto, é com mais um suspiro que Jeremy abre a lata de Coca-Cola e começa a ler o manuscrito de Mary. O Caso do Estrangulador de Streatham Hill. O que é isto? Cinquenta páginas depois, Jeremy ainda hesita, mas em boa medida reviu já a sua opinião acerca de Mary McMahon. A acção passa-se na zona sul de Londres durante os anos cinquenta e a época é evocada com grande mestria: as lojas de esquina, o cinema, a singela e caseira textura da vida. O herói, o inspector Frank Malone, é uma personagem interessante, um misantrópico polícia irlandês que participa em corridas de pombos e cisma com a falecida esposa. A in​triga é demasiado convoluta – passado algum tempo, Jeremy desiste de a tentar seguir – mas existe um rol enorme de personagens, um tanto Dickensianas e grotescas até, mas todas descritas com uma certa fogosidade que Jeremy não associa à figura maternal de sapatos confortáveis. Em geral, é o tipo de épico demasiado ambicioso que Jeremy esperaria de um aluno universitário inteligente. Ela precisa de cortar e aparar e livrar-se de umas cinco intrigas secundárias, mas há ali de facto qualquer coisa. Jeremy não perde muito tempo com a tentativa de Sally Hamilton. Intitulada Castração, é um thriller bastante violento passado num futuro desolador. Há ali ecos do seu próprio trabalho – a obsessão pela tortura, pelas funções corporais e uma tendência para uma irónica narração na primeira pessoa – mas, basicamente, é muitíssimo aborrecido. Estremecendo, Jeremy pousa o trabalho, interrogando-se sobre o que diabo poderá dizer que já não tenha repetido cem vezes antes. Vai-te embora e arranja outro passatempo? Arranja outro destinatário para as tuas fantasias? Sam McClusky é igualmente frustrante. Nenhum dos seus manuscritos – um thriller ao jeito de Dan Brown, uma Rankinesca história de detectives e uma comédia ao estilo de Nick Hornby – é inteiramente mau. Ele é bastante


bom a captar a essência do género e tem algumas boas tiradas humorísticas, mas é por de mais óbvio que McClusky perde rapidamente o interesse. E se o próprio autor perde o interesse, como diabo pode o leitor persistir? Uma introdução fantástica, algumas linhas de intriga interessantes, al​guns engodos e McClusky desiste para começar outro livro. Jere​my conhece bem o género. «Para serem escritores», diz ele por vezes à sua classe nocturna em Putney, «têm de acabar alguma coisa». É óbvio que Sam McClusky nunca conseguirá passar do primeiro capítulo. Pega então com interesse na pasta de JP. Na noite anterior identificara o francês como o seu potencial rival no grupo. Atraente, sarcástico, notoriamente inteligente – Jeremy embirrara com ele assim que o vira. Deseja portanto que ele seja um péssimo escritor. Espera um thriller ou então uma história de amor escrita como monólogo interior do género «oh-como-sou-inteligente-e-sensível». Mas depara-se com uma história infantil. Jeremy revira as páginas para se assegurar de que não há enganos. Sim, é de facto uma história infantil. A História de Louis, o Leão. Credo. Jeremy odeia livros infantis. Desde o aparecimento da porra do Harry Potter que qualquer idiota acha que pode escrever uma história para crianças. Mistura-se simplesmente um feiticeiro, uma infância infeliz, lugares com nomes estúpidos e, abracadabra, fica-se com um milhão de libras no banco. «Se é assim tão fácil», sente ele vontade de dizer, «porque será que mais ninguém o conseguiu?», «Porque não o faço eu próprio?», pensa Jeremy. E, naturalmente, como qualquer tolinho pode prever, o próximo Harry Potter, por mais mítico que seja, não será um feiticeiro adolescente com óculos. Mas também não vai ser Louis, o Leão. Jeremy desiste poucas páginas depois. Louis é um rapazinho, não um leão, muito tímido e com medo de tudo. A sua personagem preferida é – naturalmente – o cobarde leão de O Feiticeiro de Oz. A história de como Louis ganha coragem, com a ajuda de um gato falante chamado Caruthers, é algo que Jeremy dispensa alegremente. E perde ainda menos tempo com as escassas e confessionais páginas de


Dorothy Van Elsten, Inocência Abusada. Tolstoi pode ter dito que todas as famílias felizes são iguais, mas a experiência de Jeremy diz-lhe que todas as famílias disfuncionais são absolutamente idênticas. Pai ausente? Confere. Mãe abusiva? Confere. Criança sensível a tremer sob os cobertores? Confere. Estranho que leva um raio de esperança à vida da criança? Confere. Fuga, trauma, terapia, catarse. Confere, confere, confere, confere. Jeremy solta um gemido exasperado ao tirar outra Coca-Cola do frigorífico. É deprimente pensar que, de todos os livros, o de Dorothy é o que tem melhores hipóteses de ser publicado. A tarde já vai adiantada quando Jeremy pega no último manuscrito. Os banhistas deixaram a piscina e os únicos ruídos são o retinir de pratos na cozinha e as rãs arbóreas a coaxar no olival. Patricia não tardará a reunir os hóspedes para a visita de final de tarde a San Severino. Jeremy não se importa de todo de a perder. San Severino é uma vilazinha adorável situada numa encosta, mas, quando já nos deliciámos com a vista e nos sentámos na praça a beber cerveja estupidamente cara, não há mais nada a fazer. Terminará portanto a leitura dos manuscritos, beberá um whisky e dormirá uma sesta antes do jantar. Se a comida não fosse tão boa, talvez tivesse desistido do curso há anos. O último manuscrito pertence a Anna Valore. E Jeremy abre-o sem pinga de entusiasmo. Chama-se Há Sol Entre as Nuvens e conta a história de uma inteligente e sensível rapariga de um meio social operário que vai para a universidade e conhece um simpático e fútil rapaz da classe alta. Até aqui é um verdadeiro cliché, mas no entanto… tem algo. Talvez seja a ingénua mas perspicaz voz da heroína. Talvez sejam as descrições espantosamente acutilantes das vivências da classe alta. Como é natural, a história não vale nada, mas Anna Valore tem inegavelmente um vestígio de talento. Jeremy fecha os olhos, tentando visualizar Anna. Até então ela figurara apenas na sua mente como amiga de Cat. Tem um rosto agradável, sardas, uma figura bastante razoável por baixo das roupas horríveis. E um riso surpreendentemente gutural. Jeremy sorri para si próprio. Ou muito se engana ou irá conhecer bastante melhor Anna Valore.


San Severino é uma vila situada numa encosta, empoleirada num pináculo de rocha sobre campos de girassóis e folhas de tabaco. Ao longe parece um tanto ameaçadora, com muralhas de pedra íngremes, torres com ameias e frinchas seteiras estreitas. Mas, quando a carrinha transpõe o arco talhado na rocha e começa a subir as ruas íngremes e sinuosas – todas elas com o sinal «senso unico» – as maravilhas começam a aparecer: pequenos pátios com fontes intricadamente esculpidas, um melro numa gaiola a cantar de uma janela alta, paisagens de cortar a respiração vislumbradas por entre portas, casas aparentemente construídas umas sobre as outras, com as respectivas varandas e estendais de roupa em espiral, em direcção ao céu. Aldo estaciona a carrinha perto da piazza principal, um semicírculo calcetado no ponto mais alto da vila. Um dos lados está cheio de lojas, mas do outro avistam-se quilómetros e quilómetros do vale abaixo: os campos de girassóis, o lago, as colinas, púrpuras ao fim do dia, e a ondulante faixa de asfalto que se perde na distância. – Meu Deus! – exclama Dorothy, pegando na sua máquina fotográfica. – A vista é simplesmente de morrer. – E muita gente morreu por ela – diz Aldo. – Há pouco tempo houve aqui uma grande batalha. – Na Segunda Guerra Mundial? – inquire JP. – Não, creio que foi em mil quatrocentos e quarenta. Uma batalha entre Florença e Milão. Anna, sentada na muralha de pedra ainda quente do sol, pensa como é fácil imaginar os exércitos renascentistas a marcharem pelo vale sombrio e os habitantes de San Severino a refugiarem-se no cimo da colina, preparados para defenderem a sua terra ou morrerem a tentar. – Tenho de comprar alguns postais – diz Dorothy ao seu lado, com a câmara de vídeo a gravar. Também Sam está a fotografar desenfreadamente, com uma máquina de aspecto bastante caro. – Mas ainda agora chegámos – diz Cat, rindo. – Eu prefiro sentir os lugares em vez de tirar fotografias ou enviar postais. – Ai sim? – diz Dorothy num tom neutro, ainda a gravar. – Bem, suponho que somos todos diferentes.


Patricia conduz o grupo para as mesas exteriores de um dos cafés. E, com a ajuda de Aldo, providencia as bebidas enquanto os hóspedes se sentam, sentindo ou fotografando, segundo o gosto de cada um. Cat e Anna ficam sentadas com Mary e JP. Dorothy, Rick, Sam e Sally ocupam outra mesa. – Onde estará o Jeremy? – pergunta Cat, fazendo uma flor com o guardanapo de papel. – Ele ficou no castello a ler os nossos guiões – diz JP, fazendo uma careta. – Credo, que pensamento infeliz – diz Anna. – Não creio que perca muito tempo com o meu. – É sobre o quê? – pergunta JP. – Oh, é apenas uma história universitária entediante. Bem, politécnica, para ser mais exacta. – Francamente – exclama Cat. – O que importa se foi um politécnico? Muitos desses cursos são muitíssimo bons. Bem, seja como for, eu acho o teu livro fabuloso. Precisa de ser trabalhado, naturalmente, mas quem é que não precisa de fazer o mesmo? Ainda tens aquelas notas que eu te compilei? – Oh, sim – responde Anna. – Fizeste sugestões excelentes. Mas sabes… por vezes dá-me vontade de deitar tudo fora e começar de novo. – Sei bem o que isso é – diz Mary, que não tem falado muito mas cujos olhos, absorvendo agora a piazza que começa a encher para a noite, os edifícios medievais, a vista sobre as colinas, estão arregalados de satisfação. – E o seu livro, Mary? Do que trata? – pergunta Cat. – É uma história policial – afirma Mary. – Passada em Londres. – Ah, pretende então ser a próxima Agatha Christie? – inquire Cat, sorrindo para Aldo, que chega com as bebidas. – Eu adoro a Agatha Christie – diz inesperadamente Aldo, sentando-se ao lado de Mary. – Adoro a Mrs. Marple. – Oh, também eu – diz Mary. – É Miss Marple – corrige Cat, rindo. – Ela não é casada. – É outra das coisas que temos em comum – afirma jovialmente Mary. – Eu não sou grande fã da Agatha Christie – diz Cat. – Prefiro a P. D. James. Intelectualmente, ela é mais estimulante.


CAPÍTULO 5 Segundo Dia 3 de Agosto abio oferece-se para levar os hóspedes para a prova de vinhos. Patricia fica encantada. – Tens carta de pesados? – pergunta ela. – Sim – responde Fabio. – Adoro guiar. Aldo também adora guiar, mas normalmente os seus passageiros não costumam partilhar o seu entusiasmo. Aldo não fica nada satisfeito por Fabio conduzir a sua adorada carrinha, mas pelo menos fica com mais tempo para preparar o almoço. Contudo, no dia seguinte não deixará Fabio ser o motorista. Aldo adora a viagem a Roma. Cat, Anna, Mary, Sally e Sam manifestam interesse em ir à prova de vinhos. JP fica para trás – «Provar vinho italiano? Voluntariamente? Devem estar loucos!» – Jeremy alega ter muito trabalho e Dorothy não bebe – «Passei anos nos Alcoólicos Anónimos». Patricia também fica em casa. Está assoberbada de trabalho e Myra não se importa nada de ir no lugar dela. Partilha uma relação de entusiástico flirt com Gennaro, o dono da vinha, que está sempre a pedi-la em casamento. Fabio contorna habilmente as curvas apertadas que os fazem subir as colinas. Cat não consegue deixar de reparar nos seus antebraços morenos enquanto ele roda o enorme volante. É de facto muito bonito, sendo de longe o homem mais bem-parecido do grupo, embora, de um ponto de vista intelectual, JP tenha possibilidades e Jeremy seja agradavelmente atencioso. Sacudindo o seu cabelo negro, Cat sorri para Anna. – Estás a gostar até agora?

F


– Oh, sim – responde Anna, olhando pela janela na direcção do castello, que ainda se avista, aninhado por detrás dos pinheiros-mansos. – Isto é maravilhoso. – É, não é? Já estive montes de vezes na Toscana mas este é de longe o lugar mais bonito em que já fiquei. – O que achas do curso? – pergunta Anna, baixando ligeiramente a voz, embora Mary e Sally estejam a conversar animadamente sobre Marcello Mastroianni e não consigam ouvir uma única palavra. Sam, contudo, está sentado relativamente perto, em pose meditativa e silenciosa. – Parece-me bom – afirma Cat. – O Jeremy parece ser bastante inteligente. Estou mortinha por falar melhor com ele acerca do meu livro. – Acho-o um pouco empertigado – diz Anna. – Mas é óptimo conhecer todos os outros escritores. É fascinante pensar que todas estas pessoas diferentes estão a escrever livros de géneros completamente diferentes, mas que todas vieram parar ao mesmo lugar du​rante as mesmas duas semanas. Creio que acabaremos por nos influenciar tanto uns aos outros quanto o próprio Jeremy nos influenciará individualmente. – Hum – murmura Cat. – Não me parece, por exemplo, que a Sally me possa influenciar por aí além. – Talvez não – afirma Anna. – Mas é muito simpática. – Não estamos aqui para fazer amizades – admoesta Cat num tom falsamente severo. – Estamos aqui para trabalhar. Não te esqueças que não estamos de férias. Mas, quando descem da carrinha, trocando o ar condicionado pelo escaldante sol da manhã, é difícil lembrarem-se disso. Fabio estaciona o veículo sob uma enorme pérgola. Diante deles estendem-se hectares e hectares de vinha e, sobre a colina, avista-se um edifício de pedra atarracado rodeado de arcadas. Gennaro, um homem de meia-idade bem-parecido de calças de ganga e camisola da selecção italiana, espera-os junto à pérgola, recebendo-os com ruidosas saudações de boas-vindas e abraçando Myra, que levanta no ar, descalçando-lhe as sabrinas prateadas. – Myra! Queres casar comigo? – Um dia, Gennaro. Lá chegaremos – diz Myra, apanhando o seu chapéu.


– Um dia digo-te que sim. E então arrepender-te-ás. – Ah, ah! – exclama Gennaro. – Nunca me arrependerei. Myra apresenta os visitantes, seguindo-se uma rodada de cumprimentos e elogios exagerados. Até mesmo Sam é apelidado de «típico galã inglês». – Sou escocês – murmura Sam, sem no entanto parecer aborrecido. Gennaro condu-los por uma vereda pedregosa por entre as vinhas. Os aspersores da rega estão a trabalhar e, ocasionalmente, recebem uma agradável borrifadela de finas partículas de água. E a roupa seca num instante. O dia está mesmo estupidamente quente. – Esta casta chama-se Sangiovese – explica Gennaro. – São as melhores uvas do mundo. – São usadas para fazer Chianti? – pergunta Sam, limpando o suor da testa. – Sì. E Brunello. Sangiovese significa sangue de Júpiter. É uma casta que só se usa para os melhores vinhos, para os mais ricos. – Não sei se quero beber sangue – diz Cat, rindo e piscando o olho a Gennaro. – Ah, ah! – ri o italiano. – O meu vinho é o verdadeiro néctar dos deuses. Anna admira a forma como Cat parece não ser minimamente afectada pelo calor, mantendo-se fresca como uma alface no seu vestido branco e lenço verde. Anna tem a certeza de que, ao contrário da amiga, está com o rosto afogueado e suado. Deixa-se ficar então para trás, na companhia de Mary e Sally, que continuam a falar sobre estrelas de cinema dos anos cinquenta. É tudo muito bonito mas Anna anseia por alcançarem a casa. O sol está a queimar-lhe a cabeça e doem-lhe os pés. Gennaro leva-os por fim até um pátio rodeado de arcadas abertas, semelhante a um claustro. E aí, à sombra e dispostos sobre uma longa mesa, há chá, café e água mineral, bem como pratos de azeitonas e queijo pecorino, cortado em finíssimas lascas translúcidas. – Primeiro bebemos o chá como verdadeiros ingleses – diz Gennaro. – Depois visitamos as caves, vemos os barris de carvalho, e por fim provamos o vinho. Anna, bebendo sofregamente a sua água mineral, ficaria perfeitamente


satisfeita ali sentada à sombra, mas, ao ver Mary, que facilmente terá mais trinta anos do que ela, levantar-se entusiasmada, sente-se demasiado envergonhada para pedir para ficar para trás. – Nesta vinha – afirma Gennaro – produzimos o melhor Chianti do mundo. Gallo Nero. Alguém sabe o que significa? – Bem, «nero» é negro – adianta Cat. – Brava. Bem, Gallo Nero significa galo negro. Anna repara na expressão de Mary e tem de se conter para não rir. Atrás de si, Sam tosse ruidosamente. – Galo negro – afirma Gennaro, sorrindo. – O galispo negro que escolhe as galinhas, certo? – Ah, um galispo – exclama Sally. Sam tosse ainda mais alto. – E agora – diz Gennaro – vou levar-vos para as nossas caves, onde poderão ver o galo negro com os vossos próprios olhos. – Mal posso esperar – murmura Sam, enquanto seguem Gennaro através da soleira em arco da porta baixa. Patricia espera passar uma manhã descansada. Ficara ligeiramente desalentada quando soubera que Dorothy, Rick e JP tinham optado por ficar em casa mas, como o casal de americanos se retirara para o quarto após o pequeno-almoço, acabara por se confortar com a ideia de que todos iriam simplesmente descansar ou até mesmo – talvez – aproveitar o tempo livre para escrever. Depois de ajudar Ratka a levantar a loiça do pequeno-almoço, Patricia retira-se para o seu escritório para terminar o itinerário da visita do dia seguinte a Roma. O restaurante onde normalmente param para almoçar fecha em Agosto, logo, precisa de encontrar uma alternativa. O novo estabelecimento foi recomendado por Aldo, o que significa que a comida será excelente, mas quem sabe se ficará algures numa cave imunda. Aldo acha que, num restaurante, só a comida importa, mas Patricia sabe que os hóspedes esperam cestos pendurados, garrafas de Chianti e vista para o Tibre. Enfim, quem sabe se Aldo não capota a carrinha na auto-estrada e


eles não chegam sequer a Roma. E tendo em mente esta ideia obscuramente reconfortante, Patricia senta-se para abrir a correspondência. Vários folhetos publicitários de restaurantes locais, um postal de uma amiga da Nova Zelândia, um catálogo de uma loja onde comprou um par de calças há cinco anos e… uma carta do seu banco. Patricia estuda o envelope: a oficiosa janela transparente, a grafia irritantemente precisa do seu nome, «Signora P. A. O’Hara», o presunçoso carimbo da data no canto superior direito. Patricia não é dada a procrastinar, mas todas as fibras do seu ser anseiam por enfiar a carta numa gaveta e, de preferência, pregá-la com pregos a mantê-la fechada durante vinte e cinco anos. No ano anterior pediu um empréstimo a curto prazo e sabe que chegou a altura de o pagar. Isso é claríssimo; o que não lhe parece nada claro é de onde sairá o dinheiro para o fazer. Apenas a lembrança de Sean a deitar alegremente os extractos bancários para a lareira – «Para que precisamos nós que eles nos digam que estamos falidos?» – a leva a abrir o envelope e a ler o seu breve mas letal conteúdo. – Mrs. O’Hara? Patricia? Patricia ergue os olhos e depara-se com dois visitantes completamente indesejados. Sean, o gato, entrou na sala e está sentado a lamber as patas junto à janela enquanto Jean-Pierre Charbonneau está parado à porta, com um secador de cabelo na mão. – Sim? – diz Patricia, afastando o cabelo do rosto e tentando parecer profissional. – Está tudo bem? Eu queria apenas perguntar… creio que os fusíveis deste secador fundiram. – Com certeza. – Patricia levanta-se. – Eu mudo-lhe a ficha. – Deixe. Não tem importância – diz JP, agitando uma impaciente mão gaulesa. – Espero que não sejam más notícias… – acrescenta, apontando para a carta. Como é óbvio, é monumentalmente petulante da parte dele comentar a sua correspondência privada, mas Patricia não lho pode dizer. Tenta então responder-lhe num tom jovial que, no entanto, acaba por sair estridente e hesitante.


– São apenas questões monetárias. O castello é um lugar dispendioso. Sem ser convidado, JP avança pela sala adentro e senta-se na cadeira à frente da secretária, ainda com o fio do secador incongruentemente pendurado na mão. – Deve ganhar bastante com estes cursos. Três mil euros por duas semanas. Patricia olha-o friamente. – Faz alguma ideia das minhas despesas? – riposta ela. – A co​mida, a bebida, este malfadado castelo. Em Abril tive de arranjar o telhado, metade das árvores precisam de ser cortadas e a Torre Norte tem de ser rebocada antes do Inverno. JP sorri. – Suponho que a culpa seja do fantasma. Mas agora a sério… – diz ele inclinando-se para a frente. – Este lugar está meio vazio. Eu tenho uma suite gigantesca só para mim. «Mas não te ouço queixar», pensa Patricia. JP levanta-se e, passando por cima de Sean, aproxima-se da janela. Por momentos permanece imóvel, bloqueando a luz, mas depois afirma num tom quase zangado: – Este lugar é incrível. De uma beleza extraordinária. Devia ter a casa cheia todo o ano. Devia estar a recusar hóspedes. – Bem, estamos ocupados a maior parte do ano – diz Patricia na defensiva. – Vem sempre muita gente para la vendemmia, a colheita das uvas. Fazemos excursões de provas de vinhos. – Cala-se então, esperando algum comentário sarcástico, mas JP não abre a boca. Continua parado junto à janela, com o rosto oculto pela sombra. – E temos cursos de arte e de cerâmica. Só fechamos em Fevereiro e Março. É quando fazemos as reparações necessárias. – Então porque só há oito pessoas neste curso? – pergunta JP. – Bem – suspira Patricia. – Os escritores gostam de paz e sossego. Tento não ter a casa cheia. E, para ser honesta, a escrita criativa não dá grande dinheiro. JP suspira sonoramente.


– Lá isso é verdade. Mas e os maridos, as esposas, os companheiros? Porque não oferecer-lhes uma taxa reduzida? Podia oferecer-lhes uma segunda semana a metade do preço. – É uma ideia – diz Patricia lentamente. – E não estaria a usar mais quartos. Mas as pessoas não vêm para cá para fugirem dos maridos e das esposas? – inquire ela olhando para JP, mas ele limita-se a rir. – A minha ex-mulher não viria na certa a correr para me ver. Mas pense, por exemplo, naquelas duas raparigas adoráveis, a Catherine e a Anna. Creio que os respectivos maridos se sentiriam tentados. Eu sentir-me-ia com certeza. «O que significava aquilo?» pensa Patricia, depois de JP sair. «Que ele se sentiria tentado se fosse casado com Cat ou Anna ou que já se sente tentado por elas?» Mas depois, sentando-se na secretária para pesquisar alguns endereços, pondera: «Para que quereria um homem quase careca um secador?». Diário de Mary, 3 de Agosto Oh, meu Deus, espero não me ter desgraçado. Fizemos uma visita fantástica a uma vinha próxima. O dono era um italiano adorável chamado Genaro (será que está bem escrito?). Ele era muito charmoso e disse que eu parecia a Helen Mirren (infelizmente, não é verdade, mas é uma ideia agradável!). Bem, seja como for, foi muito interessante e ele mostrou-nos as suas caves e pudemos provar uma série de diferentes Chianti. Normalmente não aprecio vinho tinto, mas aqueles eram deliciosos – alguns eram muito leves e quase efervescentes, outros encorpados e suaves como chocolate negro. Depois sentámo-nos num comprido terraço, coberto por videiras, e almoçámos optimamente – salame, queijo, azeitonas e um delicioso pão estaladiço. Depois regressámos a casa na carrinha (tive uma longa conversa com a Anna, ela é de facto uma óptima rapariga). O dia estava muito quente e, quando regressei ao meu quarto, atirei-me simplesmente para cima da cama e adormeci de imediato. Algumas horas depois, quando acordei, estava cheia de sede. Foi com certeza do vinho tinto. O problema


foi que no meu pequeno frigorífico só havia água mineral com gás, CocaCola e pequenas garrafas de vinho – não havia água sem gás. A água com gás provoca-me indigestão e eu não queria passar o jantar a sofrer. Portanto, pensei que o melhor seria ir à procura de água da torneira. E foi esse o meu pior erro. Depois de me enganar várias vezes nos corredores, dei por mim a descer um longo lanço de escadas ao fundo do qual encontrei a cozinha – enorme, com o chão de pedra e uma colecção de ervas suspensas do tecto. Pensei que estava vazia, portanto, precipitei-me para o lava-loiça e enchi com água o meu copo de escovar os dentes. E estava a beber a água quando ouvi um barulho atrás de mim. Virei-me e deparei com o Aldo! Fiquei tão envergonhada! Recordo-me bem de a Patricia dizer, quando chegámos, que a cozinha era «o território do Aldo». Ela disse-o a rir, mas a insinuação foi clara – os invasores não serão tolerados. E ali estava eu, invadindo o seu território! Ele estava a empunhar uma espécie de cana com peixes (tinha, obviamente, acabado de os apanhar) e a sua expressão não era de todo amigável. Eu desfiz-me em desculpas (em inglês) e ele sorriu e disse que não fazia mal. Depois, conforme ia a passar por ele para sair, ele perguntou-me se eu gostava de peixe. Respondi que sim, que gostava bastante, e ele mostrou-me o que apanhara – dez peixes brancos, enormes e achatados. Chamou-lhes solia (mais uma vez, estará bem escrito?) – creio que significa solha. Mostrou-me então como os ia cozinhar, imitando o gesto de os salpicar com farinha e de os fritar. Mostrou-me também uma tigela onde estava a misturar frutos secos de um tom esverdeado (seriam pinhões?) com alho, azeite e anchovas. Eu disse-lhe que o meu tio fora peixeiro (na verdade, o que eu disse foi «pescador») e a informação pareceu encantá-lo. Ele disse que conseguia perceber que eu gostava mesmo de comida. Espero que isso não signifique que ele me acha gorda ou gulosa. O Aldo foi encantador e deu-me uma garrafa grande cheia de água fresca e biscoitos de amêndoa, mas eu espero não ter cometido nenhum


erro grave. Seria terrível se a Patricia ficasse aborrecida comigo. Espero que o Aldo não lhe conte.

De: Anna Valore Data: 3 de Agosto 2007, 23.34 Para: Steve Smith Assunto: Olá borracho Ainda bem que o Tom se divertiu tanto na casa do Sebastian. Eles são boas pessoas, não achas? Adorei a tua descrição da «camaradagem entre pai e filho» com o Jakey. Como conseguiste tirar a bola do telhado? Tenho de admitir que, apesar do castelo e tudo o mais, adoraria ter estado aí. Mas hoje o dia foi bastante bom. De manhã fomos visitar uma vinha. Estava demasiado quente para mim (tivemos de andar quilómetros e tu sabes o quanto eu gosto de exercício!) mas o lugar era realmente bonito e prepararam-nos um almoço fantástico com muito queijo e vinho. O dono era uma jóia de pessoa – não se cansou de galantear a Cat, naturalmente! Ah, e já agora, o melhor Chianti tem um galispo negro – não perguntes! No caminho para casa tive uma longa conversa com a Mary, a senhora mais velha do curso. Afinal, ela é muitíssimo interessante, teve um cargo importante na função pública, viajou por toda a Inglaterra, e sabe imenso sobre livros e história. E diz que anda a escrever o seu livro há trinta anos! Isto fez-me sentir bastante patética, pois acho sempre que trabalho no meu há séculos mas, efectivamente, só deve ter passado um ano. Ela diz que o problema é acrescentar constantemente mais coisas, o que levou a que nem ela própria consiga agora seguir o enredo (é uma história policial e parece deveras interessante). Bem, o melhor aconteceu à noite. Quando regressei ao meu quarto, tinha um bilhete do Jeremy (o professor do curso) a convidar-me para uma bebida antes do jantar. Temi o pior – que ele lera o meu livro e achava que eu não era suficientemente boa para frequentar o curso – mas ele foi muito


simpático. Tomámos uma bebida na sua varanda e ele disse que achava o meu livro bastante promissor! Mal consegui acreditar! Quer dizer, ele é um autor a sério e um professor muito experiente. Se ele acha que eu tenho algum talento… Ele disse que a história não tinha grande consistência (toda aquela tralha acerca do Piers e da universidade) mas que gostava do meu estilo e da heroína. Disse até que achava que eu conseguiria escrever algo bastante mais ambicioso! Sinceramente, quando saí do quarto dele, estava nas nuvens. Quer dizer, bem sei que tu achas que eu sei escrever mas, sejamos honestos, tu não és propriamente imparcial! O Jeremy é a primeira pessoa que fala comigo como se eu fosse uma verdadeira escritora. Ele disse coisas como: «talvez isto não seja suficientemente comercial para o mercado em geral» e «é um pouco como a Donna Tartt, mas sem os assassinatos». Meu Deus, pensar sequer que eu posso ter um mercado ou ser vagamente parecida com a Donna Tartt! Ele deu-me uma série de ideias e quer repetir a nossa conversa daqui a alguns dias. Julgueio de facto mal. Pensei que ele era superficial e pretensioso, somente interessado em si próprio e em insinuar-se junto das alunas mais atraentes (a Cat!) mas ele foi super simpático e prestável. A Cat ficou contentíssima por mim, mas também disse que provavelmente ele teria uma sessão particular com todos os hóspedes. Aposto que em breve será a vez dela e depois eu já não irei! Hoje ao jantar (comemos um prato espectacular de peixe) a Patricia disse que ia fazer uma oferta especial na próxima semana para «amigos e família». Parentes dos hóspedes poderão vir para cá a metade do preço. Bem sei que não temos condições para o fazer, mas eu fantasiei de facto em mostrar-te o castelo e a propriedade – e a minha cama de casal! Tenho muitas saudades tuas. A Cat diz que o Justin é de tal forma inútil que nem sequer lerá o e-mail da Patricia. Ela diz que ele deve ter plantado os miúdos a semana inteira em frente da Play Station – ora aí está uma vantagem de não ter uma! Bem, agora tenho de ir, pois estou a cair de sono. Um milhão de abraços e beijos para os miúdos e, obviamente, para ti.


AmanhĂŁ vamos a Roma! Amo-te A xxxx


CAPÍTULO 6 Terceiro Dia, Roma 4 de Agosto o tempo dos romanos – diz Patricia – cinquenta mil pessoas conseguiam entrar no Coliseu em dez minutos. Sam, olhando para a aparentemente interminável fila à frente do grupo, pergunta: – O que sabiam eles que nós não sabemos? – A América ainda não tinha sido inventada – diz JP num tom rabugento, quando uma família de calções aos quadrados passa ao lado deles. Patricia gostaria que JP se abstivesse de alardear os seus preconceitos. Pessoalmente, ela gosta dos Americanos; são hóspedes normalmente educados e atenciosos. E também não quer que Dorothy se sinta ofendida, ou Rick, o seu marido, o qual pode ou não ser um multimilionário barão do petróleo texano à procura de oportunidades para novos investimentos. – Efectivamente – diz Cat, sorrindo – a América estava onde sempre esteve. Os europeus é que ainda não a tinham encontrado. – Descoberta por Cristoforo Colombo – afirma Aldo, atrás do grupo. – Um italiano. Patricia interroga-se com frequência por que razão Aldo, outro acérrimo crítico da América, tem tanto orgulho em Cristóvão Colombo. – Na verdade, Aldo – faculta a resplandecente Cat – creio que foram os vikings quem… – Olhem para isto – interrompe Aldo, agitando uma mão com um sentido de posse na direcção dos gigantescos arcos do Coliseu. – É uma das maravilhas do mundo. Construído há mais de dois mil anos. Quando Roma

–N


dominava o mundo. Mesmo envergando uma camisa havaiana e calças de algodão, Aldo, com o seu nariz adunco e olhos ardentes, parece ter saído simplesmente do Senado para assistir a uma boa luta de gladiadores. É um fã absoluto dos Romanos e até apoia a Roma, um dos clubes de futebol da capital – algo impensável para um toscano. E é por isso que insiste sempre em fazer aquela viagem; para encher os ouvidos dos hóspedes com histórias do seu amigo Júlio César. Anna, a derreter com o calor, refugia-se na sombra de um edifício alto. A relva seca pelo sol em frente do Coliseu está coberta por uma massa efervescente de gente: turistas a tirarem fotografias uns aos outros; vendedores oferecendo uma estonteante variedade de coliseus em miniatura, pequenos lobos e uma infinidade de fotografias do Papa; guias turísticos de guarda-chuvas no ar para reunirem os seus rebanhos tresmalhados; e até mesmo vários homens vestidos de gladiadores exortando os visitantes a tirarem fotografias com eles. Pensando que os filhos a adorariam ver com um verdadeiro gladiador – ainda que com óculos de sol de marca – Anna pergunta a Patricia se tem tempo para tirar uma fotografia. Patricia, que aguarda a chegada da guia do grupo, responde contrariada que têm todo o tempo do mundo. – Oh, então, Anna – exclama Cat. – Não vais embarcar nessas tolices turísticas, pois não? É um verdadeiro roubo. – E por que diabo não? – explode Sam. – Se é o que ela quer. Um silêncio chocado emudece o grupo. Todos olham para Sam que, com o rosto afogueado do calor, responde com uma expressão carrancuda. Anna, envergonhadíssima, sente vontade de se dissolver por completo. Pensar que foi por sua causa que Sam falou daquela maneira com Cat! Mas Cat limitase a franzir o seu narizinho perfeito numa careta trocista. – Oh, deixe-se de resmunguices, Sam – diz ela. – A Anna é uma rapariga crescida. Pode fazer o que quiser. Extremamente desconfortável, Anna avança em direcção aos gladiadores. O calor atinge-lhe a cabeça e por baixo da sua saia de algodão sente as coxas a colarem. «Uma rapariga crescida». O que quereria Cat dizer com


aquilo? Aldo junta-se a ela para recordar aos gladiadores que é italiano e não se deixará enganar. – Una fotografia – diz, sorrindo, um solícito gladiador desdentado. – Sì, sì. Após uma breve e tensa troca de palavras, Aldo faz o preço pedido descer para metade e Anna não tarda a encolher-se entre dois gladiadores, brandindo uma espada sem grande convicção. – Bella, bella – exclamam os gladiadores, atirando-lhe beijos, não parecendo ressentidos com as tácticas implacáveis de Aldo. – Obrigada – agradece-lhe Anna, quando regressam para junto do grupo. – É um prazer – diz Aldo. – Aquela Caterina saiu-me cá uma cabra invejosa. Anna julga ser mais prudente ignorar o comentário. A guia chega por fim e o grupo ultrapassa apressadamente a transpirada fila de turistas, entrando na obscuridade do Coliseu. Dorothy queixa-se por ter de passar a mala por uma máquina de raios X semelhante às dos aeroportos. – É a lei – diz Aldo num tom impressionante. Em seguida, sobem por degraus escuros e íngremes, emergindo depois na claridade ofuscante da própria arena. «É fácil», pensa Anna, espreitando por cima dos corrimões, «imaginar o lugar ecoando com o clamor da multidão, o imperador, resplandecente na sua toga púrpura, levantando-se para cumprimentar os gladiadores que avançam para a morte: «Nós que estamos prestes a morrer, saudamos-te, César.» A guia direcciona-os então para uma enorme cruz. – Este lugar foi consagrado como santuário dos mártires cristãos que aqui pereceram – diz a rapariga. Dorothy cambaleia de forma dramática. – Estou a senti-los – declara ela. – Sinto os seus espíritos in​quietos. – Se alguém sentir o meu espírito inquieto – murmura Sam a Anna –, doulhe um estalo. – Este lugar está fortemente assombrado – diz a guia, como seria de esperar. – Em mil quinhentos e trinta e quatro, o escultor Benvenuto Cellini


realizou aqui uma sessão espírita e consta que conjurou demónios incandescentes. Seguiu-se uma terrível praga que só passou após um touro ter sido sacrificado ao Diabo. Apesar do calor do dia, Anna sente um arrepio de frio. Mas, ao seu lado, Sam afirma: – E agora estamos sujeitos a uma praga de tretas. Credo, estou farto destas palermices espíritas. – Chiu – murmura Anna, olhando para Dorothy mas esta, apoiada por Rick, está entretida a espreitar através das grades para o labirinto de túneis inferiores. – Aqui, por baixo do palco – diz a guia –, estavam as jaulas dos animais selvagens e os mecanismos para os espectáculos. Era possível inundar toda a arena e encenar magníficas batalhas navais. – Os Romanos – entoa Aldo – eram engenheiros exímios. – É verdade – diz a guia, sorrindo, uma bonita rapariga italiana com o cabelo espetado. – Mas não nos podemos esquecer que este era um lugar brutal. A passagem entre os bancos era apelidada de vomitoria porque imensa gente vomitava durante os espectáculos. O chão da arena era coberto com areia para impedir que os gladiadores escorregassem no sangue. – Consigo cheirar o sangue – anuncia Dorothy. – A mim cheira-me a esturro – diz Sam, chegando-se para o lado para deixar passar um grupo de turistas japoneses que dispara furiosamente as respectivas câmaras, qual bando de pássaros ruidosos. Matt, il lupo, está encostado à sua mota na piazza em San Severino. Graziano, il leopardo, e Elio, il leone, estão ao seu lado, comendo gelados. As alcunhas, inicialmente inventadas quando os três andavam na scuola elementare, têm agora – pelo menos nas suas mentes – uma ressonância sinistra. São «nomes de guerra», pseudónimos para homens desesperados que têm de abrir mão das verdadeiras identidades, tributos aos espíritos animais que lhes estão subjacentes. Imitando os animais, o trio veste quase sempre cabedal, embora hoje esteja demasiado calor e os três estejam de calças de ganga e T-shirts. A de Matt anuncia que ele é o filho do anticristo.


– Turistas estúpidos – diz Elio, apontado para as famílias inglesas de expressão perdida que fazem fila na gelateria. – Vamos encurralá-los. «Encurralar» turistas, rodeá-los de mota, entoando insultos em dialecto, é um dos desportos estivais preferidos do trio. Os turistas ingleses, na sua maioria famílias de classe média que alugam villas nas proximidades, ficam sempre deliciosamente aterrados. Já os Holandeses, para grande desgosto do pelotão, parecem apreciar. – Está demasiado calor – diz Matt, limpando as mãos nas calças de ganga. – Vamos antes ao lago nadar um pouco. – Avião às três da tarde – diz repentinamente Graziano, e os três viram-se para ver passar uma esbelta rapariga italiana com umas calças de ganga brancas e um top de atar ao pescoço. Ela passa por eles muito devagar, hesitando no passo devido às sandálias de salto alto. – Está mesmo a pedi-las – diz Elio. – Podes crer – concorda Graziano. Matt sabe que Graziano, caso não seja impedido, embarcará agora numa lúbrica descrição de uma das suas aventuras sexuais. Matt ignora se essas histórias (que inevitavelmente envolvem ménages à trois e noviças) são ou não verdadeiras. Mas sabe que são incrivelmente aborrecidas. – O castello hoje está vazio – apressa-se então a dizer. – Podíamos ir até lá e ver o canal Kerrang na televisão. Os outros dois alegram-se de imediato. O castello, com os seus jardins esculturais, ar condicionado, piscina e televisões enormes, é para eles uma espécie de terra prometida. Infelizmente, está quase sempre cheio de turistas estúpidos. – Não há amebas? – inquire Elio, usando uma das alcunhas menos ofensivas para os hóspedes. – Foram todos passar o dia a Roma – responde Matt, imitando uma afectada pronúncia inglesa. – Oh, vejam, é o Coliseu! Oh, meu Deus, é mesmo antigo, não é? Oooh, vejam, é o Vaticano! Vejamos se podemos beber chá com o Papa. Não se assemelha de todo a um nativo inglês, mas faz sempre rir os outros. – Então e o Aldo? – pergunta Graziano.


Embora adore Matt, Aldo não aprova de todo Graziano ou Elio. – Também foi. É ele quem conduz a carrinha. – Deus os ajude – exclama Elio. Matt solta uma gargalhada. – Ele comprou um crucifixo enorme para pendurar no espelho retrovisor. O mais provável é nem sequer conseguir ver a estrada. Vamos lá, então. Matt está prestes a subir para a mota quando vê uma figura familiar a caminhar na sua direcção. É um homem jovem, magro e elegante, com umas calças de ganga desbotadas e uma imaculada camisa branca. Mas só passados alguns momentos se apercebe tratar-se de Fabio. – Ciao – diz Fabio sorrindo ao passar por Matt. – Ciao – murmura Matt. – Quem é? – pergunta Elio quando Fabio desaparece numa loja de roupa nas imediações. – O novo ajudante – responde Matt. – Credo, se ele tem dinheiro para fazer compras ali, devem estar a pagarlhe muito bem – afirma Graziano, apontando para a montra da loja, onde uma profusão de roupa de marca está disposta de forma elegante. – Não sei nada sobre ele – diz Matt, sentindo-se inesperadamente irritado. Mas a sua resposta perde-se na explosão de ruído à medida que as motas despertam. Depois do Coliseu, os escritores admiram o Fórum Romano. A guia aponta para a Casa das Virgens Vestais e para o Templo de Júlio César, onde Marco António leu aos amigos, romanos e conterrâneos, o seu testamento. Atravessam o Campodoglio, passam pela estátua de Marco Aurélio e pelo «bolo de casamento», o reluzente monumento de mármore à unificação italiana. Um aviso no monumento pede aos visitantes para respeitarem a chama eterna e não comerem, beberem ou sentarem-se nele. Mary, bebericando a sua água mineral sem gás, sente-se de imediato culpada, sendo contudo graciosamente tranquilizada por Aldo de que o aviso se destina apenas a americanos. Dorothy, que está a ter grande dificuldade em suportar o calor, está misericordiosamente ausente.


Resolvera sentar-se debaixo de uma árvore, abanicando-se com Um Guia para a Roma Antiga. Seguindo Patricia, o grupo atravessa depois dez faixas de rodagem, seguindo para a Piazza Navona, onde deverão almoçar. Du​rante o percurso, Patricia indica o Foro del Argentina, uma réplica perfeita de um fórum edificado abaixo do nível da rua e reservado exclusivamente aos gatos. Com os cuidados de voluntários, os gatos vivem num paraíso de colunas derrubadas e estátuas sem cabeça. – Oh, é amoroso! – exclama Dorothy, inclinando-se sobre o corrimão para cumprimentar com um gorjeio um grande gato malhado sentado sob um cipreste. Um mais pequeno, de pelagem preta e branca, sobe fastidiosamente os degraus do que outrora fora sem dúvida um templo. Um gato amarelo estica-se nos próprios degraus do dito tempo. – É tão bom que haja gente a cuidar deles – diz Dorothy. – Não sei se será – afirma Patricia. – Normalmente, os gatos conseguem desenvencilhar-se bem sozinhos – acrescenta, pensando em Sean, o gato que, apesar dos seus esforços em contrário, é agora um membro efectivo do castello. Ratka, ao contrário do que o seu nome indica1, está particularmente embevecida, tendo comprado para o animal um cesto engalanado com fitas que, até à data, ele ignorou por completo. Deixando para trás o fórum dos gatos, o grupo serpenteia por ruas secundárias em direcção à Piazza Navona. Mary, com os sapatos a magoála, deixa-se ficar ligeiramente para trás e vê igrejas cobertas de hera apertadas entre pequenos estabelecimentos repletos de garrafas empoeiradas, uma loja que vende paramentos de padre e outra com milhares de rosários, pendurados na entrada como teias de aranha. Olhando para cima, avista vertiginosos campanários; a dada altura, jura ela, vê um veado com as hastes de bronze a reluzirem ao sol, e depois uma torre medieval quadrada igual às das ilustrações das cartas de tarot. E fica de tal forma deslumbrada e desorientada que, quando o grupo vira e de repente a piazza surge à sua frente, Mary cambaleia e quase cai. Mas Aldo surge de imediato ao seu lado.


– Sente-se bem? – Sim – responde ela, agarrando-lhe o braço enquanto olha em volta. O espaço à sua frente parece estar repleto de pedras retorcidas: dríades, deuses com barbas esvoaçantes, cavalos com crinas ondulantes e serpenteantes caudas de sereias. E em volta destas incríveis esculturas, que ela vê agora serem fontes, estão centenas e centenas de turistas. Aqui e ali figuras humanas recobertas com panos dourados fingem ser estátuas, baixando-se de forma repentinamente desconcertante sempre que uma moeda cai dentro das suas latas de colecta. O efeito do conjunto é maravilhoso, aterrador e estranhamente surreal. – É fantástico – sussurra Mary. Aldo enche, ufano, o peito. – No tempo dos Romanos era um estádio, para as corridas de quadrigas. Agora é a piazza mais famosa de Roma. – Fantástico – repete Mary que, apercebendo-se de que ainda está agarrada ao braço de Aldo, se apressa a largá-lo. Tal como Patricia suspeitara, o restaurante recomendado por Aldo não fica na piazza principal e sim escondido numa rua secundária escura. A comida, porém, é soberba e os escritores parecem apreciar a calma e a sombra depois das emoções da manhã. Todos comem e bebem um nadinha mais do que a conta e, quando saem para a luz escaldante da tarde são um grupo sonolento e algo titubeante. O plano é fazerem algumas compras na Via Veneto antes da derradeira paragem do dia – o Vaticano. Anna e Cat, animadas pelas marcas de prestígio, mergulham entusiasticamente nas elegantes boutiques. JP e Sam parecem igualmente atraídos pelo eixo do mal composto pelas lojas Gucci, Versace e Dior. Sally, Patricia, Dorothy, Rick e Aldo optam por se sentar num café vizinho onde ficam a tomar café e digestivi. Mas Mary sente-se inquieta. Não quer fazer compras – nunca compreendeu verdadeiramente o prazer consumista – e sente que explodirá se comer ou beber mais alguma coisa. Sabe também que se não caminhar um pouco depois do almoço não tardará a ficar indisposta. Um dos piores contratempos da passagem dos anos – conclui ela então, anunciando a sua intenção de ir dar um pequeno passeio – é a forma como os nossos corpos


parecem arranjar novas e embaraçosas maneiras de nos deixarem ficar mal. Mary avança por entre as centenas de pessoas que carregam sacos de compras, com ar ligeiramente culpado, sentindo-se cada vez mais quente. Está sequiosa, mas não quer parar para beber água no meio da rua. Tem o estômago ominosamente às voltas e os pés doem-lhe como nunca. Anseia por encontrar um lugar onde se possa sentar sozinha, beber um pouco de água e recuperar o equilíbrio. Um café está fora de questão, pois não fala italiano e tem verdadeiro pânico dos elegantes empregados de mesa que deslizam, cheios de confiança, por entre as mesas das esplanadas. Onde poderá uma senhora de idade sentar-se, descalçar os sapatos e desapertar em paz o cinto? A resposta surge-lhe ao alcançar o fim da rua – uma igreja com uma fachada trabalhada e um frade à porta. Mary passa pelo frade, que a ignora, e mergulha no interior sombrio. Está tão escuro que, a princípio, não consegue distinguir nada. A única luz existente provém de meia dúzia de velas que ardem no altar. Mary avança em direcção a uma cadeira, senta-se e descalça os sapatos. Oh, a frescura maravilhosa da pedra sob os seus pés! Pega então em duas drageias Gaviscon e engole-as com água mineral – não sabe ao certo se é permitido beber nas igrejas, mas o lugar parece estar deserto. Sentindo-se muitíssimo melhor, Mary recosta-se no assento e fecha os olhos. E deve ter adormecido, pois acorda sobressaltada, deparando-se com uma fila de pessoas, lideradas pelo frade, a passar ao seu lado. Mary calça de imediato os sapatos e agarra na mala. Aquelas pessoas devem estar numa visita guiada. Talvez não seja permitido entrarmos numa igreja e sentarmonos apenas para descansar os pés. Decide portanto seguir a procissão. Poderá sempre pagar ao frade quando sair e, ao menos assim, encontrará a saída. O frade transpõe uma pequena porta e a procissão, com Mary atrás, desce umas escadas apertadas. Emergem então numa sala longa e estreita com chão de terra. A luz é muito fraca e só passado algum tempo é que Mary se apercebe de que parecem estar numa capela subterrânea, com as paredes revestidas por ornados desenhos góticos a ouro e o que lhe parece ser


marfim. Candelabros oscilantes iluminam centenas de pedras redondas incrustadas nas paredes. O frade está a falar para o grupo em italiano e Mary aproxima-se para examinar as pedras. São tão uniformes e estão tão cuidadosamente dispostas que há certamente um propósito que lhe escapa, como olhar para uma daquelas imagens mágicas dos jornais de domingo. No extremo oposto da sala, as pedras estão dispostas em arcos e entre os arcos estão… O coração de Mary quase pára. Entre os arcos estão os esqueletos de três frades, envergando hábitos idênticos ao do guia. E então, com um gemido de terror, Mary compreende que as pedras são efectivamente caveiras, centenas, milhares de caveiras, empilhadas umas sobre as outras de forma a criar monstruosas e lúbricas torres. Olhando para cima, vê que também o tecto está decorado com caveiras e outros ossos, dispostos num padrão macabro de círculos, arcos e quartos crescentes. Olhando para a abóbada da capela, vê um esqueleto inteiro, segurando uma gadanha de ossos. Apercebe-se então de que os próprios candelabros são feitos de ossos, projectando na luz fraca sombras enormes e disformes. No instante seguinte, o ar enche-se de um medonho e espectral cântico. O guia volta-se para Mary e afirma algo, apontando para ela com uma mão quase tão ossuda como uma das dos seus colegas na parede. Mary abre a boca para explicar que não compreende mas não consegue falar. O frade avança na sua direcção. Atrás dele, no tecto, Mary consegue distinguir os seus irmãos esqueléticos com os seus esgares medonhos. Ouve então uma porta fechar-se atrás de si. Está encurralada. Está prestes a tornar-se vítima de um terrível culto. Os seus ossos decorarão em breve o tecto, ao lado da figura do fatídico Ceifeiro, com os olhos vazados a contemplarem eternamente o chão. E Mary solta um grito. – Está tudo bem, Mary – diz atrás dela uma voz maravilhosamente familiar. Mary volta-se e depara-se com os garridos tons de azul e verde de uma camisa havaiana. Sente Aldo pôr o braço em torno dela e ouve-o falar com o guia. Com uma singela gargalhada o frade carrega num interruptor e o cântico espectral pára. Aldo está agora também a rir, falando muito depressa em italiano. Conduzindo Mary com um braço, deposita algum dinheiro na mão do frade. O religioso ensaia um gesto de pomposa recusa,


guardando no entanto o dinheiro de forma quase simultânea e misteriosa. Aldo guia-a então escada acima, através de uma pesada porta de carvalho – a porta que ela ouvira fechar-se – ao longo da igreja escura e, por fim, para o exterior, para a luz do dia. Na Via Veneto, com a multidão elegantemente trajada passando, apinhada, em seu redor, Mary vira-se para Aldo, num misto de riso e choro. – Que lugar era aquele? – pergunta ela. – É o cemitério dos frades capuchinhos – responde Aldo, sorrindo. – Capuchinhos? A princípio, a única coisa que lhe ocorre é a bebida de café, salpicada de chocolate, mas depois pensa nos macacos e então lembra-se que os macacos tinham recebido o nome de uma ordem religiosa – ou seria ao contrário? Tanto os macacos como os frades – e o café – eram conhecidos pelo formato na parte de cima das cabeças. – Um mosteiro? – Sim – responde Aldo, continuando a guiá-la por entre a multidão. Mary não se importa de todo que ele esteja a controlar o passo. Efectivamente, acha-o até bastante repousante. – Os frades são enterrados na cripta – diz Aldo. – E usam os ossos para fazer as paredes. – É horrível! Aldo encolhe os ombros. – Muitos turistas visitam o lugar. Até o acho bastante bonito. Mas não é para mim. Eu prefiro a luz do sol. O par está agora na Piazza di Spagna. À sua frente há degraus repletos de flores e pessoas a rir e a conversar. Na base dos degraus está uma fonte de mármore, com a água a reflectir o azul profundo do céu. – Também eu – diz Mary, respirando fundo. – Também eu. – Mary! – exclama Patricia, correndo na sua direcção com uma expressão preocupada. Mary vê então Sally, JP e Sam sentados nos degraus baixos ao lado da fonte. Cat e Anna estão a refrescar os pés na água. Dorothy e Rick registam tudo avidamente com a sua câmara de filmar. – O que lhe aconteceu?


– Perdi-me – diz Mary. – Mas o Aldo encontrou-me. – Ainda bem – exclama Patricia. – Vamos então para o Vaticano. Creio que por hoje já passeámos o suficiente, não acha? Três horas depois, o grupo está a regressar pela SS2 – a «ess ess due» – em direcção a Siena. E à medida que o sol se põe sobre a Itália, há um sentimento tangível de calor humano e amizade dentro da carrinha. Cat está a ouvir o seu iPod e Anna está a dormir, mas Sally e Dorothy estão a conversar baixinho. No banco de trás, JP, Sam e Rick entretêm-se com um complicado jogo de cartas que Aldo lhes ensinou. Na frente da carrinha, Patricia e Aldo conversam em italiano. De vez em quando Mary escuta o nome Matteo e compreende que se deve tratar de Matthew, o filho de Patricia, aquela simpática mas enigmática figura que por vezes vê nadar de manhã cedo ou a desaparecer à noite de motorizada. Mary foi convidada para o jogo de cartas, mas declinou o convite – embora adore jogos de cartas e, em casa, seja uma exímia jogadora de whist. Agora, porém, prefere estar sentada a olhar pela janela, revivendo mentalmente as imagens do dia enquanto a paisagem passa de subúrbios a colinas, depois a florestas de pinheiros e por fim a montanhas. Mary vê os arcos e as sombras do Coliseu – «conjurou demónios incandescentes… um touro ter sido sacrificado ao Diabo…» – o branco resplandecente do bolo de casamento, um gato amarelo majestosamente deitado nos degraus de um templo. À medida que as sombras se tingem de violeta e, nas montanhas, as luzes se acendem nos castelos, Mary vê estátuas ganharem vida e fazerem-lhe vénias. Vê paredes feitas de ossos humanos e figuras com paramentos avançarem na sua direcção. Depois, enquanto paira com agrado entre o sono e a consciência, vê o garrido abraço de uma camisa havaiana, a sua fulgência technicolor a ofuscar as sombras do dia. 1 Rat, em inglês, significa «ratazana». (N. do E.)


CAPÍTULO 7 Quarto Dia 5 de Agosto enredo – diz Jeremy – é uma parvoíce. O enredo não é vida. O enredo está repleto de coincidências; a vida não. Por exemplo, eu nunca encontrei por acaso a minha ex-mulher numa farmácia de serviço. Nem quereria encontrar. – E detém-se à espera das gargalhadas, escassas no ar da manhã. – Mas os enredos estão sempre repletos deste género de ocorrências. O Dickens é o pior de todos. O homem que traiu Miss Haversham tem de ser o mesmo homem que traiu Magwitch. Naturalmente. Quem encontra Oliver Twist por acaso na rua? O seu avô. Naturalmente. Mas tal nunca acontece com a Jane Austen. Os seus enredos servem as personagens e não o contrário. Há mais verdade num dos monólogos de Miss Bates do que em toda a obra de Dickens. – Mas se nunca houver coincidências – objecta Anna –, a história nunca avançaria. Precisamos de gente a chocar com gente, para fazer as coisas acontecer. Anna interroga-se se Jeremy ficará irritado pela interrupção, mas ele limita-se a rir. – Muito bem dito, Anna. «Gente a chocar com gente» é, de facto, a própria essência da ficção. Eu só vos peço para não serem demasiado óbvios, é só, para não serem demasiado século dezanove. Nada de heróis a galoparem em cavalos brancos, nada de heranças repentinas, nem propostas de casamento de última hora. Anna não consegue imaginar nada disso num romance seu, o que, subitamente, a deixa algo triste. A verdade é que prefere Dickens a Austen.

–O


O pequeno público de Jeremy está um pouco inquieto. É do​mingo e Dorothy e Rick foram a San Severino. JP está na missa. Os restantes estão a participar com indiferença numa sessão de escrita. Como o dia estava maravilhoso, Jeremy sugerira que realizassem a sessão sob as árvores do jardim principal. Em teoria, a ideia parecia interessante, mas na prática as árvores revelaram-se irresistíveis ímanes de mosquitos e os bancos de madeira, tão bonitos ao longe, eram duros e desconfortáveis. Anna e Cat não tardam a sentar-se na relva e, passados alguns minutos, Sally junta-se a elas. As três parecem, pensa Sam com amargura, discípulas perante Jeremy, o guru barbudo. – Dickens vendia livros – diz ele. – Não é isso que interessa? O público gosta de uma ou outra coincidência. – Mas deverá o público ter sempre o que quer? – inquire distraidamente Jeremy, vendo a Vespa de Aldo a subir o caminho. Espera que o cozinheiro prepare algo especial para o almoço. Está mesmo a apetecer-lhe uma boa refeição, um ou dois copos de vinho e depois uma longa sesta. – É a lei da oferta e da procura, não é? – diz Sam, virando-se de modo a que o sol não lhe bata nos olhos. – Falou como um verdadeiro homem de finanças – afirma Jeremy, sorrindo. – Ex-homem de finanças – corrige Sam. – Li algures – diz Mary, sentada com as costas muito direitas num dos desconfortáveis bancos de madeira – que um escritor devia coleccionar coincidências. – Paul Auster tinha um livro de coincidências – admite Jeremy. – Escreveu sobre elas em The Art of Hunger. Mas isso é material mais avançado. O que eu quero que façam é que tentem livrar-se da trama. Escrevam algo como uma corrente de consciência, deixem-se levar pelas palavras. E, por amor de Deus, evitem finais felizes. – Mas sobre o que havemos de escrever? – pergunta Mary, pegando no seu bloco de apontamentos. – Escrevam sobre a vossa visita a Roma – sugere Jeremy. – Comecem com a viagem de ontem e vejam onde ela vos leva. Nada de planeamento ou


estrutura. Escrevam simplesmente. Anna deita-se na relva. E vê um carreiro de formigas a dirigir-se para o sítio onde antes entornara o seu sumo de laranja. O dia parece estar demasiado quente para se incomodarem com estilo ou estrutura ou qualquer espécie de trabalho. A relva está amarelada e cheira a ervas aromáticas – impiedosamente, as formigas avançam, marchando ao seu lado. Também Cat está esticada sobre a relva. Descalçou as sandálias e revira um pé moreno, fazendo cintilar as unhas vermelhas. – Eu uso muitas vezes as correntes de consciência na minha escrita – diz ela. – Sou bastante experimental. «Aposto que sim», pensa Sam. – Inovem constantemente – diz Jeremy. – Não se deixem ficar obsoletos. Cat sorri para ele, pestanejando de forma sedutora. – Em que é que está a trabalhar agora? – pergunta ela. O almoço de Aldo corresponde completamente às expectativas de Jeremy. Depois da refeição, os hóspedes vão descansar para os respectivos quartos. A tarde anuncia-se pesada e luminosa, o ar está praticamente compacto, mantendo suspensos os mosquitos que zumbem, o odor a lavanda, o ruído dos grilos. Jeremy deixa-se cair na cama. Bebeu grande parte de uma garrafa de Chianti e espera, portanto, adormecer de imediato. Mas, como borboletas presas numa caixa, sente a mente repleta de palavras que irremediavelmente chocam com os lados do seu cérebro. Uma frase em particular parece pairar, inatingível, durante algum tempo, explodindo depois em itálico na sua consciência. Em que é que está a trabalhar agora? Jeremy vira a cabeça, tentando encontrar na almofada uma área fresca. Em que é que está a trabalhar agora? O ar condicionado faz um zumbido incomodativo, Jeremy começa a coçar uma picada de mosquito na perna e apercebe-se de que esfolou a pele. Em que é que está a trabalhar agora? Levanta-se e tira do frigorífico uma garrafa de Coca-Cola, bebendo com tanta avidez que o pegajoso líquido lhe escorre pelo queixo abaixo. Despese e vai para a casa de banho. Um duche é certamente a solução. Um duche frio e depois uma sesta revigorante. Mas a água a martelar contra as portas


de vidro repete a mesma cantilena. Em que é que está a trabalhar agora? Em que é que está a trabalhar agora? Desde Mergulho de Barriga, editado há vinte anos, que Jeremy não produz uma linha de ficção. Acontecera tão devagar que tinham passado vários anos até que ele se atrevesse a proferir as palavras «bloqueio criativo», até mesmo para si próprio. Mergulho de Barriga fora um enorme sucesso e durante muito tempo houve direitos estrangeiros para vender, prémios para receber, discursos para dar, críticas sobre outros autores menos afortunados. Depois surgira a escrita do guião, em colaboração com um lacónico americano chamado Tom Bates. Nos momentos mais tenebrosos, Jeremy interroga-se se Tom Bates não será de facto o responsável pela sua incapacidade de escrever. É verdade que aprendeu imenso com Tom. Jeremy é um autor verboso, Dickensiano nos floreados, nunca usando uma palavra onde pode inserir um parágrafo e várias citações de Molière. Tom, de lápis em punho, corrigia todas as manhãs no hotel de Beverly Hills as melhores tiradas de Jeremy. «Livra-te disso», dizia ele. «Ninguém fala assim.» – Será que não as podíamos usar em voz off? – suplicava Jeremy. – A voz off é para idiotas – respondia Tom. E, passado cerca de um ano, quando Jeremy se sentara em fren​te ao computador, querendo iniciar o seguinte e estrondoso sucesso, foram as palavras de Tom que ouvira mentalmente: «Livra-te disso. Ninguém fala assim». O argumento de Mergulho de Barriga fora premiado com um Globo de Ouro e nomeado para um Óscar mas, ainda assim, Jeremy acabara por não perdoar totalmente ao seu colaborador. Quando lera anos mais tarde que Tom Bates, um reputado argumentista de Hollywood, fora encontrado morto num quarto de hotel com uma overdose maciça, uma parte de Jeremy sentira vontade de dizer, «Bem feito, seu americano presunçoso», enquanto o seu lado altruísta compunha uma mensagem sentida para a viúva de Tom. Naturalmente, a culpa não fora apenas de Tom. Parte do problema fora o aplauso universal que Mergulho de Barriga recebera. Os dois primeiros livros de Jeremy tinham recebido poucas, mas respeitosas, críticas – mas Mergulho de Barriga fora louvado até mais não. Jeremy não tardara a


decorar todas as críticas: «Um talento impressionante… uma obra que muda as nossas vidas… reescreve o argumento existencial para o século vinte.» Mas conforme se sentava em frente ao computador, e em contraponto à voz de Tom, conseguia ouvir a reacção ao novo volume ainda por escrever: «Decepcionante… sofre quando comparado com… Bullen perdeu a mestria». Jeremy não suportava tal pensamento. Não suportava a ideia de manchar o seu magnífico feito. Não suportava a ideia de usar Mergulho de Barriga para castigar o seu fraco sucessor, «Do autor de…». Não suportava a ideia de ouvir os outros dizerem que talvez ele só conseguisse produzir um único livro bom. Era preferível fazê-los esperar – se necessário para sempre – pela ilusória sequela perfeita. Mas há outro problema. Jeremy não consegue imaginar uma intriga. Oh, sim, ocasionalmente surgem-lhe ideias. Por vezes chega até a escrevê-las – artista assombrado por musa da infância; homem casa com a irmã sem o saber; Wilkie Collins conhece a mulher de branco – mas não consegue encontrar a centelha, esse elemento oculto, que fundirá num todo as suas ideias, transformando-as num livro. Quando lhe propuseram que leccionasse escrita criativa, parecera-lhe ser a solução perfeita. Estaria a ganhar dinheiro – Mergulho de Barriga continuava a render-lhe direitos de autor, mas Jeremy gosta de viver bem – e a dar-se com gente interessante. Poderia inclusivamente, entoara na sua mente uma vozinha ignóbil, encontrar novas ideias. Mas embora fossem razoavelmente interessantes, os aspirantes a escritores pareciam ser incapazes de ter uma única ideia original. Jeremy cansa-se depressa de confissões túrgidas e cópias descaradas dos últimos sucessos de vendas. O dinheiro fá-lo continuar, bem como o massajar do ego e a oportunidade de dormir com jovens mulheres que de outra forma não estariam interessadas num homem de meia-idade com uma barba e uma forma de vestir duvidosa. Mas, para o autor de Mergulho de Barriga, mal podem esperar para despir as cuecas. E por tudo isto, Jeremy é muito procurado como orientador. É um crítico astuto, tem grande carisma pessoal e ainda parece reter uns pozinhos do estrelato dos tempos de Hollywood. Pode escolher os trabalhos que mais lhe convêm e, quando Patricia lhe propusera a liderança do seu curso de escrita


criativa, aceitara de imediato. Afinal, a Toscana não se comparava ao centro educativo para adultos de Watford. Mas, após quatro anos a falar sobre enredos sob o escaldante sol italiano, até mesmo aquilo começara a perder o encanto. Jeremy não se importaria nada de desistir, mas, depois, o que faria durante todo o Verão? Jeremy está deitado nu entre os lençóis frescos. E pensa que trocaria tudo, até mesmo o seu amado Globo de Ouro, por uma única ideia original. Patricia está sentada no escritório. Nunca bebe álcool ao almoço mas, ainda assim, a tarde sonolenta está a começar a afectá-la. A sala é fresca, mas ela sabe que o calor está lá fora, à espera para atacar. O facto de ser domingo parece tornar o dia ainda mais pesado, mais indolente, do que o costume. No hall os ponteiros do relógio marcam ritmadamente o tempo e Sean ronrona na cadeira das visitas. Aparte isso, reina o silêncio. Gostaria de poder ir para o seu quarto e dormir toda a tarde – não sabe bem porquê, mas ultimamente não tem conseguido dormir grande coisa – ou então dar um salto até à piscina e nadar um bocado. Mas não, tem de trabalhar. Os hóspedes estão todos a dormir, Matt está fora, algures, a fazer das suas. É a altura ideal para verificar as marcações de Outubro para o curso de prova de vinhos. Patricia acede então à página em questão. Ainda há vários lugares por preencher. Terá de enviar um e-mail a antigos hóspedes e colocar algo no site. Sean, que era óptimo com computadores, costumava gerir o website, mas agora a página é administrada por um génio de computadores adolescente em San Severino. Irá escrever um texto e enviá-lo por e-mail a Lorenzo. «Aninhado nas belas colinas toscanas…» Credo, que espécie de palavra é «aninhado»? Parece um cruzamento entre um nome de uma bebida e uma mãe-galinha. «As belas colinas toscanas constituem um enquadramento requintado para…» Requintado? Mais uma palavra de caixa de chocolates… «constituem um enquadramento requintado para o Castello della Luna, um genuíno castelo do século treze, requintadamente – não – cuidadosamente restaurado de forma a incluir todos os luxos da vida moderna».


Só que, pensa Patricia, o duche da casa de banho do Quarto Azul pinga e o aquecimento central faz ruídos esquisitos durante a noite. Será que irá ser preciso ter o aquecimento ligado em Outubro? Talvez, as noites podem já ser frias. Ou então poderá acender a lareira do Salão Grande. Os hóspedes parecem gostar disso. Talvez devesse incluir algo, algures, acerca de lareiras crepitantes. E também deveria referir no site a oferta especial para as famílias dos hóspedes. As pessoas gostam sempre de aceder à página quando os seus familiares estão no castello. Talvez Lorenzo possa fazer uma janela pop-up com a promoção ou algo do género… Patricia continua a escrever durante cerca de meia hora. Belo… requintado… autêntico… beijadas pelo sol… deslumbrantes vilas nas colinas… montes ondulantes… olivais… vinhedos famosos… medievais… encorpado… magnífico. Não reflecte de todo a sua vi​vência na Toscana mas, do lado de lá da janela, os clichés estão todos presentes: ondulantes, beijadas pelo sol, magnífico. É de facto bonito e isso ajuda. Às vezes. Patricia espreguiça-se. Que se lixe, vai mesmo dar um mergulho rápido e depois iniciar os preparativos para o jantar. Aos domingos servem sempre uma refeição ligeira. Corre escada acima até ao quarto, veste o seu fiel fato de banho azul da Speedo por baixo de um roupão turco de praia e dobra a toalha. Detém-se depois no corredor à porta do quarto, à escuta. Silêncio absoluto, excepto o martelar ritmado de um dos teclados. Quem estará a trabalhar num domingo à tarde? Só pode ser Mary ou JP. Mary parece levar muito a sério a sua escrita – estará ela realmente a escrever o mesmo livro há trinta anos? E JP parece levar tudo a sério. Enfiando a toalha debaixo do braço, Patricia apressa-se a descer as escadas. Mas, ao chegar à piscina, tem um choque. JP está deitado de barriga para baixo numa das espreguiçadeiras, parecendo estar a dormir. Patricia hesita. Uma parte de si diz-lhe para desaparecer em bicos de pés sem ser vista, mas o sol bate impiedosamente nas costas e cabeça de JP. E ela não quer que ele acabe no hospital com uma insolação. – JP? – chama ela tocando-lhe ao de leve no ombro. Sonolento, o francês vira a cabeça na sua direcção.


– Não deve dormir ao sol – diz Patricia. – É perigoso. JP pestaneja como se pretendesse focá-la melhor. Os seus olhos são castanhos com pestanas surpreendentemente longas. – Mrs. O’Hara. – Sim – anui pacientemente Patricia. – Tem de sair do sol. Ou então enfiar uma T-shirt e pôr um chapéu. JP senta-se e leva a mão à cabeça, fazendo uma careta. – O sol ainda está muito forte – acrescenta Patricia. – Sobretudo quando se é quase careca. – Eu não disse isso. JP agarra então a camisa e veste-a. – Não era intenção minha adormecer – afirma ele. – Bebi demasiado vinho ao almoço. – Pensava que não gostava de vinho italiano – diz Patricia, abespinhada. – Fiz um sacrifício – responde ele, olhando para ela. Com o roupão turco amarelo parece repentinamente mais nova, menos séria. Tem o cabelo desgrenhado e os pés nus. – Veio nadar? – inquire ele, pegando numa garrafa de água. – Bem, sim – admite Patricia, um pouco na defensiva. – Não costumo fazê-lo quando tenho hóspedes mas… JP aponta para o estático corpo de água azul. – Faça favor. O tom dele não lhe agrada. Parece estar a convidá-la para nadar na sua própria piscina. E, além disso, está a olhá-la com demasiado interesse, semicerrando os olhos. Mas, por outro lado, a água está de facto incrivelmente tentadora. E de repente, decide-se. Despe o roupão e, extremamente consciente da singeleza do seu velhinho fato de banho, mergulha na piscina. Oh, que delícia, a sensação da água fresca a fechar-se por cima da sua cabeça! Patricia deixa-se deslizar debaixo da água até perder o fôlego e, quando emerge, está quase no outro extremo da piscina. JP está agachado na borda a olhar para ela. – Está boa? – pergunta ele, sorrindo. – Fantástica.


Patricia fica a flutuar de costas. Quando fecha os olhos, consegue ainda ver borrões de luz, pontos negros contra o vermelho. Quando os abre, JP continua a olhar para ela. – Porque não entra também? – desafia ela. – É capaz de ser boa ideia – responde ele, levantando-se. Patricia fica à espera de um espalhafatoso mergulho machão mas de repente JP olha para cima. Ligeiramente desconcertada, Patricia segue-lhe o olhar e depara-se com Matt, suado e sujo nas suas calças de ganga e T-shirt, parado no lado oposto da piscina. Tem o capacete na mão e, obviamente, acaba de descer da sua mota. Patricia nada então até à borda. Não se pode zangar como deve ser com o filho, a flutuar dentro de água. – Onde tens estado? – pergunta ela. – Na casa do Graziano – grunhe Matt, olhando para ela. – O que estás a fazer, mãe? – A nadar – retruca Patricia. – O que te parece? – Mas tu nunca nadas quando há hóspedes. – Está calor – diz JP, que recuou para a sombra. – Deixa a tua mãe em paz. Matt volta-se para ele. – Alguém falou consigo? – Matt! – exclama Patricia, içando-se para fora da piscina. – Pede já desculpa! Matt olha para ela de cabeça baixa, permanecendo calado. – Está muito calor para andar de motorizada – diz JP num tom conciliatório. Matt ignora-o. Patricia embrulha-se na sua toalha. – Almoçaste com o Graziano? – Sim. – Podias ter avisado. Estava à tua espera. – Aposto que não faltou gente para te divertir – diz Matt, lançando a JP um olhar antipático. Patricia hesita, sem saber se deve repreender Matt pela sua falta de


respeito ou se a deve relevar. Uma parte de si sente-se sempre tão aliviada ao vê-lo, ileso e em segurança, depois de ele ter saído de mota, que fica relutante em provocar uma zanga. Mas ele está de facto a ser desnecessariamente grosseiro. – Porque não continua a nadar? – pergunta JP a Patricia. – Torno a entrar, se você também entrar. Matt olha para JP e de novo para a mãe e, com três descontraídas passadas, atira-se, completamente vestido, para dentro da piscina. As Sete Luas de Jaconda por Lupo O’Hara Capítulo Dez «Chegou o momento», pensa Hengest. Agora que a lua está no sétimo círculo, é chegada a hora. É o seu destino livrar Jaconda daquela terrível ameaça, daquele estranho serpentário, aquele Grenouille das terras de Eye Fall. Ainda antes de os portentos lhe entregarem a mensagem, já ele a sabe. «O filho de Erin deve matar o filho de Eye Fall.» Sabe-o, e no entanto hesita. Grenouille é astuto: tem um criado pessoal que prova toda a sua comida antes desta lhe tocar os lábios e dorme sempre com a Espada do Poder ao seu lado. Espalha pó sagrado à volta da sua cama. Hengest sabe que se transpuser o círculo sagrado também ele será pó. Na lua nova, Hengest e toda a gente da casa saem para caçar à lua. Procuram o Veado Prateado de Melchior. Grenouille acompanha-os, montado no seu corcel verdoengo, Sicorax. Hengest, montado no fiel Ducati, segue-o de perto. «Os portentos mostrar-lhe-ão o caminho», pensa ele, acariciando a sua afiadíssima espada. – Agora, pelos poderes sagrados, mostrem-me como livrar Jaconda deste homem. E assim o meu real pai será vingado.


CAPÍTULO 8 Escrita Roma por Anna Valore É difícil tentar escrever de uma forma diferente, é como experimentar uns sapatos novos ou mudar de penteado, parece estranho até nos habituarmos. Fico a querer pôr pontos finais, não consigo evitá-lo, foi assim que me ensinaram na escola. Aquelas freiras eram assustadoras, a irmã Anthony, com a sua correia, não seria tolerada nos dias de hoje, e ainda bem, e o Steve e eu nunca batemos nos rapazes embora eu ache que já estive mais perto de o fazer do que ele, mas pudera, sou quem está com eles em casa todo o dia, tudo parece perfeito quando ele chega a casa, os miúdos já de pijama, «Papá! Papá!», a correrem escadas abaixo, a mulherzinha na cozinha, o cheiro a empadão. O casamento perfeito, só que nós não somos casados. Estou a desviar-me do assunto, mas não é esse o intuito da corrente de consciência? Da cidade eterna ao empadão de carne em três simples passos. Portanto – Roma. O calor, é essa a primeira sensação, quase sentimos o chão borbulhar sob os pés, como se andássemos sobre um vulcão, perigoso mas também excitante. Mas o calor suga-nos a energia; esgueiramo-nos de sombra em sombra, como um vampiro, com o suor a escorrer-nos pelo pescoço, as roupas moles e pegajosas. Apenas a Cat parecia não ser afectada, fresca e perfeita com os seus calções e top de alças (foi uma pena não a terem deixado entrar no Vaticano, nunca pensei que fossem tão severos nos dias de hoje) e o Aldo, com a sua espectacular camisa havaiana, parecia não sentir de todo o calor. Mas eu sentia-me


pessimamente, sabia que estava toda vermelha e suada. O Sam tirou-me uma fotografia e eu estou literalmente roxa, parecendo ter uns quinhentos quilos. O calor e a luz, o sol a reflectir no mármore, o céu de um azul vivo e ofuscante, como um vidro colorido. Em tempos todas aquelas ruínas teriam estado cobertas de mármore. Como seria Roma então? Insuportavelmente clara e muito garrida, imagino eu, a Disneylândia do mundo antigo. O Aldo não iria gostar disso. Para ele, Roma é absolutamente perfeita. É curioso, não imagino sentir o mesmo em relação a Londres, sobretudo Wembley, onde nasci. A antiga grandeza de Wembley. Meu Deus. Calor e luz e todos aqueles edifícios fantásticos, uns a seguir aos outros, como um filme passado a correr. Ruína em cima de ruína, colunas antigas erguendo-se de modernos blocos de apartamentos, um templo construído sobre um fórum edificado por cima de um cemitério pagão. Camadas e camadas do passado. Até o Vaticano foi construído sobre um templo pagão. A irmã Anthony não iria gostar nada disso. Acendi lá uma vela, em frente da Pietà, é uma escultura enternecedora, a mãe com o filho morto nos braços, como pode o mármore ser tão humano? Será que ainda acredito? Disse que sim para conseguir que os rapazes entrassem para o colégio de St. James the Great. Pensei então que Deus me castigaria por isso e depois pensei, bem, afinal de contas acredito, logo está tudo bem. St. James o Melhor que a Maioria, como o Steve lhe chama. Talvez eu acredite mais nas listas de desempenho do que em Deus. É um pensamento sensato. Não estou a progredir grandemente com Roma, mas talvez esse seja de facto o objectivo do exercício. É estranho darem-nos trabalhos de casa. Fui sempre muito conscienciosa com os trabalhos de casa, ficava a estudar pela noite dentro enquanto a minha mãe e o meu pai (que nunca compreenderam verdadeiramente o trabalho escolar) me pediam para descer e ficar a ver televisão com eles. Mas eu era uma verdadeira pedante, dizia coisas como «Estou a estudar para o meu futuro em vez de ficar com os olhos quadrados de tanto ver televisão». E agora o meu pai está morto e


eu gostava de ter visto mais televisão com ele, aconchegada no sofá com uma chávena de cacau na mão, vendo Charlie Fairhead lidar com um surto de peste bubónica ou algo do género. Fi-lo sentir-se estúpido, fui condescendente, e daria tudo para poder recuar no tempo. É por isso que nunca farei o mesmo ao Steve. Nunca o farei sentir-se inferior a mim porque isso não é verdade. Como pessoa, ele é muitíssimo melhor do que eu, é melhor pai do que eu sou mãe e é incrivelmente esperto, só que não tem consciência disso. Tal como o meu pai. Talvez o Steve seja um substituto do meu pai. A verdade é que o conheci apenas um mês após a morte do meu pai. Tal nunca me ocorrera antes. Suponho que o Steve seja estável e reconfortante, tal como o meu pai. Mas também é muitas outras coisas. É divertido e sensual e forte. Efectivamente, tenho pensado muito no quão sensual ele é. Talvez seja do calor e da comida e do vinho, e por dormir sozinha naquela enorme cama vazia. Ele não é uma figura paternal de todo. Bem, de facto afastei-me bastante de Roma. Se todos os caminhos vão dar a Roma, poderão todas as correntes de consciência fazer regredir ao rio da infância? Debater.

Roma por Sally Hamilton O sangue escorre das pedras do Coliseu. Sangue vivo, vermelho, pulsando de membros decepados e corpos decapitados. Os grunhidos de um gladiador que sente o pé do adversário no pescoço, pronto para lhe calcar o rosto, esmagando os ossos, reduzindo-os a pó, arrancando um olho com um punho de metal enquanto o outro olho mira em volta estarrecido, para a multidão que aplaude, o polegar do imperador virado para baixo. O sangue escorre para o Fórum onde Marco António declamou sobre o corpo morto de César. Shakespeare não nos fala do sangue, mas ele está lá,


manchando a toga alva de um vermelhão profundo. Amigos, Romanos e Compatriotas. A questão é que ele não o disse. Ou será que disse? Os peritos apenas nos dizem que Marco António leu o seu testamento. Shakespeare inventou o resto. Não importa. As suas palavras perduram juntamente com um milhão de histórias, mitos e lendas. E é o César de Shakespeare que eu vejo, com o medo a transformar-se em desespero ao ver o seu preferido, o seu filho ilegítimo, avançar para ele com um punhal. Et tu Brute? César cai, em seguida. As virgens vestais, emparedadas num templo de luxúria e hipocrisia. Num instante, poder e glória, ao lado do imperador nos jogos, conhecendo os segredos dos corações de todos os homens. No instante seguinte, traídas pelas pulsões do sangue, e é a morte lenta, enterradas vivas, o terrível barulho da terra a encher a campa viva, os gritos por socorro, a terra nos olhos e na boca, as derradeiras inspirações de ar, o pior momento quando se sabe finalmente que já não há escapatória. As artérias a rebentarem, o coração a explodir, o sangue a encher o mundo. Sangue. Sempre mais sangue. A estátua de Giordano Bruno no Campo dei Fiori. O padre que se virou para o Diabo. O qual, conjuntamente com Benvenuto Cellini, conjurou o Diabo nas ruínas do Coliseu. Bruno foi queimado vivo. Ouvindo as chamas crepitar sob os seus pés, sentindo o terrível calor a subir pelo seu corpo, sabendo que em breve lhe transformaria o sangue em fogo líquido. Na multidão, alguém ergue um crucifixo, agita a cruz sagrada perante o rosto contorcido de Bruno. Ele estica uma mão. Irá ele beijar a cruz, confessar os seus pecados? Não, com uma rosnadela atira a cruz ao chão onde ela arde juntamente com a sua pira funerária. E, com um terrível grito e um cheiro a vísceras queimadas, Bruno entrega-se ao Diabo. Uma visita de um dia a Roma. Pizza, pasta, gelados, turistas, Versace, Prada, o Papa. Morte, tortura, mutilação. Roma por Sam McClusky


Ela é linda mas não sabe. Não faz a mais pequena ideia. Prefere antes admirar a sua amiga medonha e carrancuda, a que tem as mamas que parecem pequenos punhais. Mas ela… toda ela é curvas suaves e sorrisos lentos e tímidos. Tem o cabelo lindo, longo e ondulado como uma estátua da Madona. Quando tem calor, afasta o cabelo dos olhos. Quando está aborrecida, brinca com uma madeixa, torcendo-a e retorcendo-a num dedo. Ao pé da piscina, levanta distraidamente o cabelo, só porque sente o pescoço quente, revelando uma deslumbrante curvatura, suficientemente vulnerável para fazer chorar um homem adulto. Os seus olhos são azuis e enchem-se de lágrimas quando ela menciona os filhos. Por vezes franze a testa e sorri ao mesmo tempo, uma combinação de partir o coração. Como se não se permitisse ser completamente feliz. Eu quero fazê-la feliz. Cobri-la de presentes e perfume e flores. Para ver as covinhas aparecerem nas suas faces rosadas. Para ver o seu narizinho enrugar-se e as sardas (oh, meu Deus, aquelas sardas!) desaparecerem enquanto ela cora. Quando ela se inclina na minha direcção, sinto um cheiro a perfume e pasta de dentes e algo mais, algo pungente, como limão. Ela come o limão das suas bebidas, casca e tudo. Certa vez deixou cair um caroço e eu apanhei-o e imagino-o a transformarse numa árvore, ali mesmo, nas profundezas húmidas das minhas calças de ganga. Como é mesmo aquela canção acerca do limoeiro e do fruto impossível de comer? Não é para ela. Estou a olhar para uma fotografia sua. Ali está ela, deliciosamente insegura, à frente do Vaticano. Teve uma educação católica, diz-me ela. Apanho-a a benzer-se defronte da Pietà (não tem grande efeito em mim, tolices sentimentalistas). Ela cora ao ver-me observá-la. Não faz ideia do que eu sinto por ela. Defendi-a quando ela quis tirar uma fotografia com aqueles gladiadores ridículos. Pensei então que ela poderia ter adivinhado, mas ela continuou a comportar-se da mesma forma, rindo das minhas piadas, oferecendo-se para me tirar uma fotografia em frente ao Coliseu. «Detesto fotografias de pessoas», disse eu. «Só gosto de vistas.» Mas mesmo assim tirei-lhe uma fotografia. Tem o rosto afogueado, o cabelo


solto, os olhos semicerrados por causa do sol. Consegue-se perceber levemente o contorno das suas pernas, iguais às da Lady Di, através da saia fina. É engraçado, embora já tenha visto as suas pernas, várias vezes na piscina, a visão do seu contorno vago dá-me um tesão tremendo. Meu Deus, ela é linda. É inacreditável que eu esteja assim tão apanhado passados tão poucos dias. Mas ela é casada, passa o tempo a falar do «Steve e dos rapazes». Bem, eu também sou casado ou é como se fosse. Já estou com a Jenny há cinco anos, tivemos altos e baixos mas continuamos juntos. Mas ela nunca compreendeu o que me levou a desistir do emprego na cidade para ser escritor. Ela gosta da cidade, gosta das disputas e das querelas, dos almoços, da adrenalina dos negócios. E continua nesse mundo, enquanto eu fico sentado em casa a matutar se devo ou não fazer com que o meu narrador seja maricas. Mas a Anna compreende. Ela própria escreve. Até já teve algumas histórias publicadas. Ficámos todos muito impressionados quando soubemos, ainda que, como é costume, ela tenha minimizado a coisa, afirmando tratar-se apenas de uma revista feminina sem importância. A rainha cabra da Cat concordou logo. «São mais conhecidas pelos padrões de tricô do que pelo gosto literário.» Vaca. Odeio-a. Quero proteger a Anna da safadeza da Cat (uma gata que é uma cabra, e esta hã? Atrevo-me a afimar que isto diz algo acerca de analogias animais depreciativas quando aplicadas às mulheres, mas não deixa de ser verdade; ela também é ardilosa como os gatos), da luxúria do Jeremy e da indiferença do JP. Quero abraçá-la e cingi-la e afagar-lhe o cabelo. Quero fazer amor com ela uma e outra e outra vez até ela gritar o meu nome bem alto e não voltar a mencionar o Steve. Credo, não posso mostrar isto ao Jeremy, pois não? Postais Queridos Tom e Jakey,


Isto é o Coliseu onde os gladiadores costumavam lutar. Enviei-vos uma fotografia minha com alguns gladiadores verdadeiros. Empunhei uma espada e tudo! Também vi o Vaticano, onde vive o Papa. Digam ao papá que ele não estava em casa. Estou cheia de saudades vossas, mal posso esperar por vos voltar a ver. Com muito amor Mãe Querida Stacy, Estamos a ter umas férias muito culturais aqui na Itália. Esta é a vila mais próxima de onde estamos – é muito antiga, parece saída de um livro. Os participantes do curso são todos muito simpáticos e estamos hospedados num castelo verdadeiro! Um beijo grande para ti, para o Harvey e os rapazes. Mãe e Pai Querida Joan, Ontem vi um fórum (em Roma) onde vivem centenas de gatos vadios. E não pude deixar de pensar no quanto o Bolinha de Neve iria gostar. A estadia está a ser muito boa e tenho nadado todos os dias. Espero que estejas a conseguir nadar alguma coisa este Verão. Afectuosamente Mary Queridos, Este é o fórum onde os Romanos costumavam ter os mercados e os templos. É fantástico – é como recuar no tempo. Estou a gostar imenso, a trabalhar muito (escrever é super trabalhoso!) mas tenho saudades dos meus bebés! Montes de beijos


Mamã Olá Jen querida – Chamam a este edifício o bolo de casamento e creio que percebes porquê. Roma é maravilhosa, mas demasiado quente. Espero que os Gregos te estejam a tratar bem. Com amor Sam X Querida Mãe, O curso está a correr muito bem – como sempre, o Jeremy está em excelente forma. Este ano há gente muito simpática. Espero que a sua artrite não esteja muito mal – quando regressar dou aí um pulo para a visitar. Com muito amor Sally Simon – olha-me só para os tintins deste tipo! Estou no meu habitual retiro toscano, a ensinar escrita criativa a um bando de incompetentes. Ouviste alguma coisa em relação à produção radiofónica de Mergulho de Barriga? Cumprimentos Jeremy


CAPÍTULO 9 Quinto Dia 6 de Agosto ortanto, tem de confiar mais nos seus leitores, e não pedir desculpas quando se desviar do assunto. Acredite que os leitores querem saber o que lhes quiser contar. Lembre-se do que eu disse sobre os enredos. As personagens valem mais do que as coincidências. Não estou interessado em enredos com estruturas bonitinhas. Mas ter-me-ia interessado saber mais acerca da irmã Anthony, ou sobre o seu pai. Jeremy sorri, recostando-se na cadeira. Anna retribui o sorriso, embora se sinta algo constrangida por o seu trabalho estar a ser discutido de forma tão pormenorizada. Não consegue recordar outra ocasião em que alguém se tenha concentrado tanto na sua pessoa. Excepto Steve, naturalmente, mas ele só se concentra realmente nela na cama, o resto do tempo a relação dos dois é casual, de camaradagem, beijos rápidos nas despedidas e mensagens de texto apressadas durante o dia. Os rapazes adoram-na, mas não lhe ligam nenhuma, como seria de esperar. Mas, sobretudo, nunca ninguém olhou para a sua escrita daquela forma, examinando-a como se ela valesse a pena ser examinada, falando dela como se fosse um texto de leitura obrigatória. É uma experiência inebriante, mas também assustadora. Os dois estão sentados na varanda do quarto de Jeremy, a beber vinho branco gelado. São sete da tarde, portanto, a bebida é apropriada, mas o dia está ainda quente e, lá em baixo, ouve-se gente na piscina e os risos flutuam até eles, sedutores e distantes. Aldo está a preparar um churrasco e o pungente odor do fumo da ma​deira mistura-se com os habituais cheiros do final da tarde a lavanda e limão. No céu, lá bem alto, um avião marca

–P


lentamente um rasto branco num azul cada vez mais profundo. O que leva Anna a pensar em viagens, a pensar no seu lar. Dá então um golinho no seu vinho. – Mas eu pensei que o intuito era descrever Roma. Jeremy suspira interiormente. Anna está a ser um nadinha obtusa para o seu gosto. Mas, a cavalo dado não se olha o dente, e a sua era a única peça sobre Roma que valia a pena ler. Cat escrevera uma terrível história sardónica do ponto de vista de um gato; Mary portara-se bem, mas perderase a divagar sobre a porra de uma cripta; o de Sally era horrível e JP e Sam não se tinham dado ao trabalho de entregar coisa alguma. Jeremy inclina-se na direcção de Anna, permitindo que a sua mão se detenha brevemente sobre o seu braço nu. Ela hoje está muito bonita, envergando um vestido vermelho sem ombros que revela já um ligeiro bronzeado. E também mostra as maminhas. – O que é Roma para si? – pergunta ele num tom provocador. – Como diz, se todos os caminhos vão dar a Roma, poderão todas as correntes de consciência fazer regredir ao rio da infância? Uma metáfora inteligente, já agora. Talvez um pouco excessiva para o contexto. Não se esqueça de que a Anna que está a escrever poderá não escolher esse recurso. Iniciou o texto com metáforas caseiras, coisas de mulheres, sapatos e penteados. Talvez a Anna que está a escrever seja uma criatura mais prosaica, e não a mulher muitíssimo inteligente que está aqui sentada à minha frente. Extremamente consciente de si própria, Anna cora agora de orelha a orelha. «Muitíssimo inteligente». Jeremy Bullen, autor de Mergulho de Barriga – «um dos livros mais geniais alguma vez escritos em língua inglesa» – acha-a muitíssimo inteligente! – E como poderei saber qual das Anna está a escrever? – inquire ela, esperando que a pergunta não seja muito estúpida. Jeremy solta uma gargalhada. – Quem poderá dizer? Nós somos o que dizemos. Não há nada para além do texto. Anna sorri educadamente, embora não compreenda o que ele está a dizer. – Mas os leitores não querem saber de mim – diz ela. – Querem saber o


que vai acontecer a seguir. Na história, quero eu dizer. – Quem decide o que acontece a seguir? – pergunta Jeremy, recostando-se de novo nas sombras. – Bem, é o autor, naturalmente. – Ai sim? Nunca teve uma personagem que decidisse por si própria o que pretendia fazer, quase como se a desafiasse a si, a sua criadora? – Hum – murmura Anna, pensando no seu romance, onde Sophie, a sua narradora, insiste em dormir com o melhor amigo de Hugo, em detrimento do que isso possa fazer à estrutura da obra. – Isso acontece nos seus livros? – pergunta ela. – Deus do Céu, claro que sim! – exclama Jeremy, rindo-se. – As minhas personagens fodem, peidam-se, masturbam-se e morrem quando lhes apetece. Não me ouvem. Instala-se o silêncio. As palavras «fodem, peidam-se, masturbam-se e morrem» parecem pairar, de forma constrangedora, no ar parado e perfumado. E como que a dissipá-las, Jeremy agita uma mão no ar. – Nós pensamos que somos os autores – diz ele –, mas somos meros veículos da linguagem. Colocamos a caneta sobre o papel, mas quem sabe o que sairá? Por vezes o texto assume o comando. E é por isso que não pode ser muito meticuloso em relação à estrutura. – Eu gosto de livros onde as coisas acontecem de forma ordeira – diz teimosamente Anna. – Num dos livros do Harry Potter, aquele que tem o «vira tempo», tudo encaixa de forma tão inteligente. Deu-me um gozo enorme lê-lo. Jeremy engasga-se com o vinho. Não pode acreditar que Anna tenha acabado de citar um livro da saga Harry Potter como exemplo de arte literária. Talvez ela não seja tão atraente quanto ele pensara. – Nos livros infantis – diz ele por fim – talvez as coisas sejam diferentes. Mas eu estou a falar de literatura. – Os livros do Harry Potter não são só para crianças – protesta Anna. – Comecei a lê-los em voz alta para os rapazes, mas agora compro-os para mim própria. E adoro-os. Jeremy estende a mão sobre a mesa e toca ao de leve na de Anna.


– E se eu lhe elaborasse uma lista de leitura? – sugere ele num tom doce. – Uma lista de livros para pessoas adultas? Anna hesita. Quer defender o seu querido Harry Potter e li​vros com fins estruturados, mas não sabe muito bem por onde começar. Afinal, Jeremy deve ter razão. Afinal, é ele o tutor, um autor publicado. – Seria óptimo – diz ela então. Patricia quebrou a sua regra de não confraternização com os hóspedes. Desta vez não está dentro da piscina, mas está sentada numa mesa próxima sob um guarda-sol, descontraindo serenamente, para todos os efeitos. O facto de os outros ocupantes da mesa serem Dorothy e Rick explica em parte o lapso, mas o dia tem estado extremamente quente, até mesmo para os padrões italianos, e Aldo também está por perto, acendendo o lume na grande churrasqueira de pedra. Fabio está a ajudá-lo – uma tarefa inglória – carregando a lenha, cortando os vegetais, esmagando alhos, despejando azeite e vinho. Com a sua T-shirt e calças de ganga imaculadamente brancas, não parece ter calor, nem está suado, apenas atento e interessado. E até agora Aldo ainda não lhe atirou nenhuma panela nem questionou a sua sanidade mental e/ou linhagem. Algo inédito. Cat está deitada de bruços numa espreguiçadeira, com as alças do biquíni desapertadas para não ficar com a marca nas costas. JP, sentado perto por baixo de um guarda-sol – Patricia estava certa em relação ao escaldão – imagina-a a levantar-se subitamente e deixar cair o biquíni. Não está de todo interessado na rapariga nem nas suas opiniões literárias, mas está, deve confessar, ligeiramente interessado nos seus seios. Dentro da piscina, Matt flutua deitado num colchão. Sempre que se aproxima da borda da piscina, indolentemente, faz pressão na borda com o pé, sendo de novo impulsionado para o centro. Segundo as regras da casa, Matt não devia usar a piscina quando têm hóspedes, mas há algo hipnótico no movimento do colchão, na forma como deriva lentamente para o lado e de repente é impelido para o centro que deixa Patricia relutante em lhe pedir para parar. E depois da forma como ele falou com JP no dia anterior, não lhe apetece provocar o filho. Matt nunca antes falara assim com um


hóspede. Normalmente limita-se a ignorá-los. O que lhe terá passado pela cabeça? Além disso, e embora não o admita nem mesmo para si própria, Patricia gosta de observar Matt, de ver o seu corpo magro e bronzeado a voltejar na água azul. Por vezes ele chega tão perto que quase o consegue tocar. Não que ela o fizesse, naturalmente. Há pouco, porém, oferecera-se – de forma algo brusca – para lhe espalhar protector solar nas costas e ficara chocada com o prazer que sentira ao passar as mãos pelas suas costas, pelos ombros largos, a espinha ossuda coberta de penugem loura. Patricia lembra-se bem que Sean tinha a mesma penugem nas costas, o mesmo corpo esguio. Era de facto uma pena que, no seu caso, o conjunto fosse estragado pelo facto de ele ser um idiota inconsequente. Sam está sentado na mesma mesa. Tem um boné de baseball na cabeça e não parece estar a apreciar o calor. Patricia e os Van Elsted estão a beber chá, mas Sam tem uma garrafa de cerveja Peroni e está a esvaziá-la rapidamente. Patricia e Dorothy estão a discutir o Ferragosto, a festa da Assunção, um dia muito festejado por toda a Itália. Há sempre uma festa em San Severino e Patricia organiza um jantar especial num dos restaurantes. Há comedores de fogo, acrobatas e crianças vestidas de bobos. A noite termina com fogode-artifício e é normalmente o ponto alto das visitas dos hóspedes. – E quando é? – pergunta Dorothy. – No dia quinze. Quinta-feira. – No dia dos meus anos – afirma repentinamente Fabio, parado ao lado da piscina a observar o colchão de Matt, que se imobiliza junto dele. Em silêncio, Fabio baixa-se e empurra o colchão de volta para o meio do espelho de água. Dorothy pisca-lhe o olho. – Leão. O rei da selva. Fabio não diz nada, mas JP exclama impacientemente: – Não me diga que acredita nesses disparates? – Acredito, pois – afirma Dorothy com a maior das calmas. – Sou uma típica Peixes. Sou sensível e artística e não gosto de conflitos. E sou


ambivalente em relação a comer peixe. Quando é o seu aniversário, JeanPierre? – Dez de Novembro. – Ah, Escorpião. É um signo muito forte. Tem uma carga sexual muito grande. Patricia é forçada a esconder um sorriso ao ver JP debater-se entre a satisfação perante a descrição de Dorothy e o total desprezo que sente pelo conceito da astrologia. Ela própria tem sentimentos contraditórios em relação ao assunto. Sean também era Leão e ela, Patricia, é Virgem. E embora não acredite nos signos, grande parte das características – generoso, sociável, extrovertido para o Leão e arrumada, picuinhas e organizada para a Virgem – estão, no caso deles, irritantemente certas. Rick rompe então o silêncio, inquirindo com o seu charmoso sorriso assimétrico: – O que é a Assunção? – É quando a Virgem Maria ascende ao Céu – responde Patricia. – É um dia muito importante para os católicos. – Não concordo com tanto culto a Maria – afirma Dorothy. – Os católicos parecem pô-la acima do Nosso Salvador. – Ela é a mãe de Deus – diz JP de forma um tanto agressiva. – Isso é importante, não acha? – As mães são sempre importantes – diz Dorothy num tom sombrio. – Mas nem sempre pelas razões certas. Patricia, que concorda com ela, tenta pensar em como mudar de assunto. Surpreende-a bastante que JP, que descarta a astrologia com tanta sobranceria, fale da relação entre Deus e a Sua mãe como se fosse um facto estabelecido. Os Franceses, tal como os Italianos, não levavam a religião muito a sério. Mas ele fora à missa no dia anterior, lembra-se ela então. Para surpresa de todos, é Fabio quem fala. O empregado está agora a empilhar a lenha com grande cuidado na churrasqueira enquanto Aldo acende o carvão. – Por vezes o pai não compreende – diz ele. – Então pedimos ajuda à mãe. Ninguém parece saber responder às suas palavras. Patricia não acha


correcto Fabio imiscuir-se nas conversas dos hóspedes, mas não o quer repreender em frente de todos. Dorothy parece ter muito mais para dizer sobre a iniquidade das mães. É Sam quem quebra, por fim, o silêncio. – O que raio está ele a fazer lá em cima com ela? – exclama ele subitamente, pousando a garrafa de cerveja com força na mesa. A conversa fica de novo suspensa enquanto todos tentam descortinar quem é «ele», mas depois JP (quem diria) afirma de forma conciliatória: – Está a ensiná-la. É para isso que serve o curso, não é verdade? – Será? – interpõe Sam num tom amuado. – Mas não o vejo a ensiná-lo a si. Ou a mim. – Bem – diz JP calmamente –, eu não escrevi nada sobre Roma. E o Sam? – Escrevi. Não. Isso não interessa. O que interessa é que ele está claramente a favorecer a Anna em detrimento dos restantes. Patricia resolve intervir. Aquele género de situação não é novidade e ela sabe que é imperativo travar as sementes da discórdia antes que elas se transformem em revolta. – O Jeremy é muito consciencioso em relação às tutorias individuais – diz ela com convicção. – Terá com certeza tempo para sessões privadas com todos. Ele é muito profissional. Terá de falar com Jeremy antes do jantar, pensa ela, sorumbatica. É bom que ele arranje tempo amanhã para uma sessão individual com Sam McClusky. Mas Sam continua com uma expressão cismada. – Ela nem sequer gosta muito dele – murmura ele. Patricia está prestes a falar quando Matt provoca uma distracção ao cair do colchão e Cat se levanta de um salto para ver, segurando de forma muito inadequada o biquíni sobre o peito. Diário de Mary, 6 de Agosto Hoje esteve muito calor. Depois do almoço, tivemos uma sessão de escrita com o Jeremy e depois fui logo para o meu quarto e adormeci. É muito decadente, dormir assim à tarde, mas acordei a sentir-me de facto


revigorada, como se tivesse dormido durante dias. Eram sete horas, os outros estavam todos na piscina, o jantar era só às nove, portanto, resolvi ir dar uma volta, com a intenção de subir as colinas. Foi bastante duro, o chão estava coberto de pedrinhas, algumas até muito bonitas, pareciam quartzo ou um mármore mais tosco. Havia árvores baixas e arbustos prateados, mas estavam bastante afastados uns dos outros, por isso podia caminhar pelo meio deles. Depois de uns cem metros, cheguei a um portão de madeira, fechado com um aro retorcido, semelhante a uma coroa de espinhos (um pensamento curioso para mim, uma agnóstica). Abri o portão e dei por mim a seguir por outro carreiro, mais íngreme, com degraus baixos. Tento manter-me em forma com a minha natação e indo a pé para todo o lado, mas estava ofegante quando cheguei ao cimo da colina. Mas valeu bem a pena. A vista era fantástica: colinas, roxos e azuis à luz do entardecer, árvores, resolutas e negras como se tivessem sido desenhadas a tinta permanente, ao fundo as enevoadas torres de Siena e o céu, raiado de rosa e amarelo com ocasionais borrões de azul profundo. Quem me dera ser pintora para o poder registar, ou então melhor escritora para lhe fazer justiça. Esta noite o Aldo preparou um churrasco maravilhoso. Foi completamente diferente de um churrasco inglês, daqueles que o Alan e a Sue fazem todos os anos, com hambúrgueres ressequidos, ketchup e salada murcha. O Aldo grelhou costelas de vaca, costeletas de borrego, fatias finíssimas de porco e de vitela. Atirou para o lume enormes talos de rosmaninho, o que fez com que cheirasse maravilhosamente bem; as carnes estavam marinadas em alho, limão e vinho. Também grelhou vegetais – pimentos, courgettes e beringelas. Estavam deliciosos, tostadinhos e salgados por fora, tenros e a saber a alho por dentro. A Cat declarou ser alérgica a beringelas, mas o Aldo disse que ela devia estar tola. Creio que ela terá ficado ligeiramente ofendida, embora tenha reagido bastante bem, tendo experimentado até um bocado de beringela que o Jeremy lhe ofereceu com o seu garfo. Acompanhámos as carnes com salada e grandes bocados de pão italiano.


Quando deixar a Toscana vou estar do tamanho de um elefante. O Aldo já deve ter percebido que sou uma glutona, pois não pára de me dar coisas novas para provar – um azeite especial que é produzido numa quinta vizinha, um queijo muito forte e esfarelado, um copo de limoncello que me deixou bastante zonza. Fiquei sentada ao lado do Jeremy durante o jantar (comemos ao pé da piscina). Até agora não simpatizara muito com ele (parecia concentrar-se quase exclusivamente na Anna e na Cat – não que eu o censure), mas esta noite ele foi deveras afável. Fez uns comentários muito elogiosos acerca do inspector Malone e foi até bastante simpático em relação ao meu estranho texto sobre Roma. Ofereceu-se para conversarmos em particular «para eliminar a palha». Amanhã vai receber o Sam, mas eu serei a seguir. É muito excitante. A piscina estava deslumbrante, toda iluminada, incrivelmente convidativa. O Aldo disse que, se alguém fosse nadar, morria na certa, por nadar de barriga cheia (ele parece adorar fazer estas previsões sinistras), então a Cat sugeriu nadar à meia-noite amanhã. Eu adoraria nadar à meianoite, mas estou certa de que o convite não se estende à minha pessoa.


CAPÍTULO 10 Sexto Dia 7 de Agosto a hora mais quente do dia. Os hóspedes tomaram uma refeição leve no terraço e a maioria está agora nos respectivos quartos, deleitando-se com o ar condicionado. Sam está sentado à frente do computador, mas não está a escrever, ainda que dentro de minutos vá ter uma das famosas «tutorias privadas» com Jeremy. Está antes a ver as suas fotografias, um desfile de paisagens e vistas, em constante mudança: o castelo, a piscina, as colinas com vários tipos de luz e atmosferas, a vinha de Gennaro, um grande plano do famoso Chianti Galo Negro, o Coliseu, o fórum, um gato amarelo deitado nos degraus de um templo, as ruelas secundárias de Roma, apinhadas de turistas e repletas de igrejas, a Piazza Navona, o restaurante de Aldo, a Via Veneto, a escadaria da Piazza di Spagna e, por fim, Anna, afogueada e constrangida defronte da Basílica de São Pedro. Sam pára a imagem e aproxima com o zoom o rosto da rapariga. Os pixéis fundem-se à medida que aumenta a imagem, pairando-lhe sobre a boca como se quisessem apanhar uma palavra proferida pelos lábios entreabertos. Os lábios dela são lindos, macios e serenos. Sam diminui a imagem até o rosto voltar a estar focado: o cabelo revolto, a expressão ansiosa, os olhos semicerrados, as sardas. E assim, imobilizada no ecrã, naquele instante, Anna é sua e só sua. Sam suspira. Inscreveu-se naquele curso porque, aos quarenta e quatro anos, surpreendera-se a si próprio ao ficar obcecado com pensamentos de mortalidade. Seria aquela vida tudo o que podia almejar? Uma carreira de sucesso, uma companheira atraente, um apartamento elegante num armazém recuperado em Clerkenwell? Sim, seria a resposta de Jenny – o que mais

É


poderiam querer? Apartamentos maiores, férias melhores e roupas elegantes para desviar as atenções dos efeitos do envelhecimento. Nenhum dos dois desejara ter filhos, logo, o caminho mais convencional para a imortalidade estava-lhes vedado. O que faz um homem se quiser ser recordado? A resposta ocorrera-lhe certa noite ao navegar na Internet à procura de um maior e melhor pacote de férias nas Caraíbas. Dera um salto rotineiro ao site «Amigos Reencontrados» para se assegurar de que continuava a ser o mais rico entre os finalistas do seu ano e encontrara uma nova entrada de Tom MacDonald, um rapaz de rosto bexigoso que recordava do nono ano. Segundo a entrada do antigo colega, o mesmo acabara de publicar um quarto policial de sucesso com o pseudónimo de Don Willis. Uma pesquisa rápida no Google ao nome Don Willis produzira uma miríade de imagens de volumes grossos e reluzentes com títulos como O Código de Hitler. Pareciam ser uma porcaria, mas a verdade era que Tom MacDonald, um rapaz que era sempre o último a ser escolhido nas equipas da escola e costumava coleccionar acessórios do Action Man, conseguira aquilo que Sam não conseguira. Don Willis perduraria no tempo depois de o bexigoso Tom MacDonald desaparecer da memória dos homens. Consultando de novo a entrada de «Amigos Reencontrados», Sam constatara que Tom conseguira ter quatro filhos. Logo, assegurara igualmente essa imortalidade. Sam é um homem que acredita piamente nas suas capacidades. E é também um homem de decisões rápidas. No mesmo mês, pedira a demissão e informara uma assombrada Jenny de que iria escrever um livro que seria um sucesso de vendas, vários até, assegurando assim um lugar na história. Afinal, quão difícil podia ser? Se o MacDonald Bexigoso conseguira, Sam seria igualmente capaz. Mas o código provara ser de difícil decifração. Observado por uma descrente Jenny – que explica o sucedido como uma crise de meia-idade –, Sam sentara-se à frente de um portátil novo, munido com uma pilha dos últimos sucessos de vendas, preparado para fazer a sua fortuna. Mas, embora cada tentativa comece de forma suficientemente interessante e Sam seja um escritor fluente e divertido, a tarefa começa sempre a emperrar após os primeiros capítulos. O problema são as personagens. Sam constrói-as


cuidadosamente, apoiando-se nos perfis das dez personagens ficcionais mais bem-sucedidas do ano, mas, de alguma forma, elas parecem nunca ganhar vida. Sam descreve a sua aparência – as mulheres são sempre louras e os homens têm feições cinzeladas – e inventa-lhes uma breve história. Mas, daí em diante, elas recusam-se a cooperar. Parecem ser incapazes de falar naturalmente ou executar o mais simples dos actos sem se atrapalharem umas às outras. Fazê-las entrar e sair simplesmente de cena é, por si só, um pesadelo. Como pode ele fazê-las apaixonarem-se, terem desejos e medos, resolverem enigmas complexos baseados na arte renascentista? Este curso parecera-lhe a solução perfeita. Pode descobrir o segredo para criar personagens memoráveis, regressar a casa e escrever um livro que permanecerá durante anos no topo da lista dos mais vendidos. Mas, em vez disso, apaixonou-se, como se fosse uma personagem de um ridículo romance feminino. Nem sequer é o género certo. Sam fecha a imagem de Anna e abre um ficheiro chamado sucesso de vendas n.º 4. Trabalhará cerca de uma hora antes da sua sessão com Jeremy. Mas, dez minutos depois, o rosto de Anna ocupa de novo o ecrã. JP está deitado na cama com as portadas fechadas, mas não está a dormir. O escaldão incomoda-o e está com dor de cabeça. Um mosquito zumbe algures no quarto e, infelizmente, sabe que assim que fechar os olhos o insecto atacará, empanturrando-se com o seu requintado sangue francês. Deverá ele introduzir um mosquito em Louis, o Leão? Podia usar a palavra italiana «zanzara», um perfeito e onomatopaico nome para uma personagem irrequieta, implacável e irritante. Talvez um paparazzo – mais uma maravilhosa palavra italiana, capturando na perfeição os disparos das máquinas fotográficas, a efémera e atropelante natureza da fama. JP suspira. Ainda não saboreou a fama em primeira mão, mas, enquanto advogado, encontra-a com frequência nos seus clientes, apanhando um cheirinho desse mundo de altas octanas. Barbara, a sua ex-mulher, é uma aspirante a actriz. Ela quer a fama, anseia por ela, persegue-a ainda arduamente após dez anos de pequenas participações cinematográficas e anúncios de lingerie. Barbara


pensa mais em ser famosa do que no filho de ambos, pensa tristemente JP: a criança, o epónimo Louis, que JP corteja com tanta obstinação quanto Barbara alguma vez revelou a perseguir um papel numa telenovela diurna. É para Louis que JP escreveu o seu livro. O rapazinho adora as histórias de Louis, o Leão, e suplica por capítulos novos. JP gravou inclusivamente várias histórias de Louis lidas por si para as muitas, muitas noites em que não está presente para as ler pessoalmente. Se Louis, uma criança atenta e com bom discernimento, gosta tanto das histórias, elas devem ter algo de bom, pensa JP. E por mais esperto que seja enquanto advogado, não lhe ocorre que Louis só adora as histórias por adorar o pai. Deitado na cama, ouvindo o zumbido do mosquito enfraquecer gradualmente até achar que o seu requintado sangue francês está a salvo, JP pensa em Patricia e na sua expressão quando ela olha para o filho, o caprichoso Matt. Ela adora-o, pensa ele, apesar de ele ser agora um adolescente temperamental com mau feitio e buço. Ela ama-o tanto quanto ele ama o perfeito Louis de sete anos. JP pensa no marido de Patricia; ela nunca o menciona, onde estará ele? Ela deve ter tido Matt quando era muito nova. No dia anterior, junto à piscina, com aquele vestido amarelo, parecia ter uns dezoito anos. JP recorda a sua figura esguia com o fato de banho desportivo, bem cavado nas pernas e com alças cruzadas nas costas, evidenciando os ombros ossudos. Parecia ter perdido, com a roupa, a sua inacessibilidade habitual e olhara para ele de uma forma que parecera convidativa. Ou seria imaginação sua? Se ao menos o motoqueiro do filho não tivesse aparecido naquele momento tão interessante. E JP geme, descontraindo os seus ombros queimados. Mais uma vez, Patricia está no escritório, tentando ignorar o gato Sean que está sentado em cima da secretária a ronronar sonoramente. Verifica então o seu e-mail. Ninguém respondeu ainda à sua oferta de uma segunda semana. Enfim, valeu a pena tentar. Gostaria de não ter mencionado as suas dificuldades financeiras a JP, mas ele mostrara-se incrivelmente compreensivo. O francês é de facto um enigma. À primeira vista corresponde ao sarcástico e reservado advogado que efectivamente é, mas


há ali mais qualquer coisa. No dia anterior, junto à piscina, parecera-lhe estranhamente vulnerável, e não apenas devido às óbvias marcas vermelhas que tinha nas costas. Irritara-a ao comportar-se de forma senhorial em relação à piscina, mas depois sorrira de uma forma desconcertantemente apelativa. E olhara-a de forma tão intensa, como se estivesse a tentar compreendê-la. Patricia não quer que os hóspedes a conheçam demasiado bem – o seu objectivo tem sido sempre uma distância amigável. Mas porque será que tem a sensação de que JP poderá ultrapassar essa barreira e destruir completamente a sua paz de espírito? Afinal, quem é ele? Patricia não sabe nada acerca dele. Olha para o ecrã do computador inocente e azul sentindo uma vontade enorme de o procurar no Google. Para não o fazer, clica no itinerário da segunda semana. Oitavo Dia 07.30 Meditação e alongamentos (opcional) 08.00/09.30 Pequeno-almoço 10.00 Sessão de escrita 13.00 Almoço Tarde: Tempo livre para escrita 18.00 Visita a Siena Nono Dia 07.30 Meditação e alongamentos (opcional) 08.00/09.30 Pequeno-almoço 10.00/12.00 Visita ao mercado de San Severino 13.00 Almoço 14.00/16.00 Sessão de escrita 16.00/20.00 Tempo livre 20.00 Jantar Depois do jantar, possibilidade de assistir ao filme Viagem Sentimental, com Josie Lawrence e Miranda Richardson. Patricia não gosta particularmente daquele filme. É uma história super romântica de um grupo de pessoas de férias em Portofino antes da Primeira


Guerra Mundial. Todos os casais são devidamente emparelhados graças aos poderes regeneradores do sol italiano, não há pontas soltas nem realidades inconvenientes – como ex-maridos ou filhos adolescentes. Porém, o filme tem-se revelado extremamente popular com hóspedes anteriores e Jeremy costuma delinear à volta do filme uma tarefa criativa um tanto irónica. O décimo e o décimo primeiro dias correspondem ao fim-de-semana, logo tudo é um pouco mais descontraído. No décimo segundo dia há uma sessão especial em que os escritores são encorajados a lerem em voz alta os respectivos trabalhos. No décimo terceiro dia há um banquete preparado pelos participantes de um curso de culinária de uma propriedade vizinha. No décimo quarto dia há a festa do Ferragosto e no décimo quinto dia os hóspedes regressarão a casa. Patricia espreguiça-se, acariciando mecanicamente o gato com uma mão. A meio da quinzena parece sempre que o curso é interminável, mas a experiência anterior ensinou-lhe que, a partir do décimo dia, o tempo passará a correr e que no final sentirá saudades genuínas de algumas pessoas. Já gosta de Mary e de Anna e passados tantos anos já criou uma amizade com Sally. Sente alguma vergonha por não simpatizar com Cat e é neutra em relação a Sam. E o júri não sabe o que decidir sobre JP. As várias horas a fixar o ecrã do computador deixaram-na com uma ligeira dor de cabeça e decide ir até à cozinha preparar um chá. Uma chávena de chá a meio da tarde foi um dos hábitos ingleses que nunca perdeu, ainda que, misteriosamente, tenha um sabor diferente em Itália. Patricia cruza então o hall, seguida de perto por Sean, que também gosta de petiscar a meio da tarde. Quando come​ça a descer as escadas que conduzem à cozinha, vê uma figura ao fundo, a bloquear a claridade. Não pode ser Aldo, que deve estar a fazer a sua sesta, mas é demasiado grande e florido para ser Matt ou Fabio. – Dorothy? Em camisa de dormir, Dorothy Van Elsten vira-se, parecendo ligeiramente transtornada. – Oh, que susto, Patricia. Espero que não se importe. Apetecia-me imenso um chá e já usei todos os saquinhos que tinha no quarto.


– As mentes mais brilhantes pensam da mesma forma – diz Patricia, avançando em direcção à cafeteira. – Ia precisamente fazer um chá para mim. Porque não me faz companhia? Anna e Cat estão ao pé da piscina. Anna está deitada sob a sombra de um guarda-sol, mas Cat está estendida ao sol. A sua mãe tem sangue malaio e ela bronzeia-se muito facilmente – a sua pele está sempre um nadinha dourada, até mesmo no Inverno. Anna está deitada de costas a ler um livro de Anne Tyler. Anne Tyler escreve tão bem, com tanta facilidade. Anna gostaria muito de escrever assim. Jeremy sugeriu que ela abandonasse Há Sol Entre as Nuvens «ou, pelo menos, o pusesse de lado por uns tempos» e começasse algo novo. O problema é que por mais que queira, não consegue imaginar outro enredo. A vantagem da história do seu encontro na universidade com Piers é o facto de, exceptuando um ajuste ou outro, as personagens já existirem. Fez Sophie, a protagonista, mais bonita do que ela e muito mais inteligente. E ficara ligeiramente surpreendida com o impulso de fazer Hugo mais estúpido que Piers, o seu duplo real. Que estranho – deve haver ainda uma parte de si que continua zangada com Piers. – Quem achas que virá nadar esta noite? – pergunta Cat, sentando-se e espalhando protector solar nas longas pernas. – Vais mesmo fazê-lo? – retruca Anna, virando-se de costas. – Tomar banho à meia-noite? – Porque não? – diz Cat, com um sorriso endiabrado para a amiga. – Vai ser divertido. – O JP deve aparecer – afirma Anna. – E acho que devíamos convidar a Mary. Ela adora nadar. – Oh, não me parece que seja algo que ela aprecie – diz Cat. – É coisa de gente nova. – Gente nova – repete Anna, cabisbaixa. – Isso inclui-nos? – Anna! – exclama Cat, lançando-lhe um olhar consternado por cima dos enormes óculos de sol. – Nós ainda somos novas. Ainda não temos quarenta anos. – Mas terei dentro de dois anos.


Cat, que fará quarenta anos dali a seis meses, fica calada. Depois acrescenta: – Achas que o Sam virá? – Não sei – responde Anna. – Creio que nunca o vi na piscina. – Pois não – diz Cat, rindo-se. – Mas eu gostaria muito. Aposto que tem um belo corpo. Anna pensa em Sam. A verdade é que nunca reparou no seu corpo. Ele é mais baixo do que Steve, pensa ela, e também mais encorpado. Não consegue imaginar mais nada a seu respeito, mas consegue ouvir bem a voz dele na sua cabeça. É grave e tem uma ligeiríssima pronúncia escocesa, sobretudo nas consoantes. – Ele é simpático, não achas? – diz ela, um pouco hesitante, ao lembrar-se de que Sam foi grosseiro com Cat por causa dos gladiadores. – Sim – responde Cat, tornando a rir. – Sabes que mais? – diz ela. – Querme parecer que ele está caidinho por mim. – O Sam? Cat olha para a amiga. – Não fiques tão surpreendida. Ele tem sido um pouco rude comigo e isso costuma ser sempre um sinal. – Ai sim? Cat solta uma gargalhada. – És mesmo ingénua, Anna. Aposto que nunca reparaste se um homem gostava de ti. – Bem, que eu saiba ninguém gosta. – Excepto o Steve. – Sim – diz Anna com pouca convicção. – Excepto o Steve. Cat observa-a com atenção. – Está tudo bem com o Steve? – Sim. – Anna ajusta a sua espreguiçadeira de forma a ficar sentada também. – É que… tenho saudades dele, é só. – Eu sei – diz Cat esticando a mão e dando uma palmadinha na da amiga. – Eu também sinto a falta do Justin, mas tu tens de… – e cala-se. – O que é?


Anna segue o olhar de Cat até ao outro lado da piscina. Fabio está de pé, empunhando uma rede de cabo comprido, obviamente prestes a limpar a piscina. Tem vestidas umas calças de ganga desbotadas e mais nada. O seu peito é liso e bronzeado. Ao vê-las, o rapaz fica constrangido. – Peço imensa desculpa – diz ele. – Ignorava que estava alguém… Anna aprecia mentalmente a proficiência do seu inglês. «Ignorava que estava alguém» não parece ser uma frase simples. Ela não faz ideia de como a dizer em italiano. Mas Cat responde-lhe em italiano. – Non c’è problema – diz graciosamente. – Come sta, Fabio? – Bene, grazie – responde cautelosamente o rapaz. – Gosta de trabalhar aqui? – pergunta Cat, mudando para inglês. «Por minha causa», pensa Anna, agradecida. – Sim – responde Fabio, enfiando cuidadosamente a rede na água – O trabalho não é difícil e a signora O’Hara é muito boa. E em seguida, com grande facilidade, iça a rede com um só braço. Ao contrário dos halterofilistas, os seus músculos são longos e magros como os dos nadadores. – Mas é isto que quer fazer toda a vida? Ser um biscateiro? Fabio endireita-se. E afasta o cabelo espesso e escuro do rosto. – Talvez não para sempre – diz, por fim. – Podia ser modelo – sugere Cat, sorrindo. – Ou actor. Fabio sorri. – Não me parece. Preferiria ser piloto de automóveis. Cat solta outra gargalhada. – Bem, acho que todos os homens italianos querem ser pilotos. – Também acho – anui Fabio num tom sério, parecendo hesitante entre continuar o trabalho ou ir embora. – Fabio – exclama Cat de repente – o que acha de dar um mergulho hoje à meia-noite? Patricia pousa na mesa chávenas, pires e um prato com biscoitos de


amêndoa feitos por Aldo. Está ciente de que aquele é o momento ideal para falar com Dorothy, mencionar talvez as suas dificuldades financeiras. Mas agora que as duas estão ali na intimidade da cozinha, sente dificuldade em iniciar a conversa. Não que Dorothy pareça constrangida. Bem pelo contrário. A americana reclina-se na cadeira, sorrindo e olhando em volta para a reluzente cozinha, as panelas de cobre por cima do fogão, o banco de madeira, as réstias de alhos e ervas aromáticas, o forno das pizze, as facas de cozinha profissionais ordeiramente arrumadas por tamanho. – Este espaço é maravilhoso – diz ela. – Sim – concorda Patricia, junto à cafeteira eléctrica trazida de Inglaterra. – É uma das partes mais antigas do castelo. As paredes têm um metro de espessura. Dorothy estremece de satisfação. – Tem uma aura antiga – afirma ela. – Tantas refeições, tanta energia positiva. Mas também há aqui tristeza. Alguém foi infeliz nesta divisão. Patricia pensa em si própria, depois de Sean ter partido, sentada à mesa de madeira a pensar: «Bem, acabou-se; vou ter de passar o resto da minha vida sem ele». E lembra-se também de como, apesar de Matt, apesar de tudo, naquele preciso instante, uma vida sem o seu preguiçoso e inútil marido não lhe parecera valer a pena. A cafeteira apita e ela despeja a água para dentro do bule. E fica irritada por sentir as mãos a tremerem ligeiramente. O gato esfrega-se na sua perna e ela baixa-se para o afagar. Endireitando-se, pergunta então no seu melhor tom profissional: – Está a gostar da estadia? – Estou pois – exclama Dorothy, trincando com entusiasmo um biscoito de amêndoa. – Esta casa é maravilhosa e eu adoro Itália. – E como vai a sua escrita? Está a progredir? – Está a ir bem – diz Dorothy, inclinando-se para a frente numa atitude conspiratória, o que proporciona a Patricia um desconcertante vislumbre do seu peito sardento. – O meu livro escreve-se praticamente sozinho. – Ai sim? – responde Patricia, reclinando-se ligeiramente. – Já ouvi outros autores afirmarem o mesmo. A história ganha vida própria…


Dorothy abana a cabeça. – Não. O que eu estou a dizer é que é um processo quase inconsciente. Antes, quando ainda estava nos Estados Unidos, consultei um terapeuta, um homem maravilhoso que me ensinou a explorar as minhas memórias reprimidas. Acredita que eu quase bloqueei os horrores da minha infância? Tive de empreender uma viagem de autoconhecimento. Tive de mergulhar em mim própria, no meu passado, e confrontar o que lá encontrei. – Deve ter sido difícil – diz Patricia num tom cuidadoso. – Difícil? – exclama Dorothy com uma gargalhada. – Foi uma verdadeira tortura. Foi como um parto. E eu sei bem do que falo. Passei horrores para dar à luz a minha filha Stacy. Insisti em fazer cesarianas com os outros dois. Não, isto foi uma espécie de parto invertido. Resumindo, foi como se me tivesse parido a mim própria – afirma, dando mais uma dentada no biscoito. – E as memórias voltaram? – Sim. Depois da terapia com o Ivan, lembrei-me de tudo. De repente, como uma avalancha. E registei tudinho. – Na altura? – Bem, gravei a maior parte em cassete. Quando comecei a escrever, afligia-me que não soasse muito bem. Não andei muito tempo na escola, sabe? Foi por isso que resolvi inscrever-me. Para transformar num livro as minhas memórias. Mas o Jeremy tem sido um amor. Disse que não importava que o livro estivesse mal escrito, que ainda assim teria enorme sucesso. Patricia consegue perfeitamente imaginá-lo a dizer tal coisa. «Obrigadinha, Jeremy», pensa ela. «Estas pessoas pagaram três mil euros pelo curso e tu dizes-lhes que não precisavam de ter vindo. Não podias ao menos corrigir-lhe os erros?» Em voz alta, Patricia pergunta: – Costuma vê-la? A sua mãe, quero eu dizer? Dorothy suspira. – Não, querida. Perdoei-lhe, naturalmente. Ela é uma pessoa muito perturbada. – Perdoou-lhe? Depois de tudo o que ela fez?


– Bem, o Senhor diz-nos para perdoar setenta vezes sete. Mas, embora eu a tenha perdoado, ser-me-ia demasiado penoso vê-la. – E os seus irmãos e irmãs? – Também lhes perdoei. Por fecharem os olhos aos abusos. – Mas dá-se com eles? – Não, querida. Segue-se um silêncio, mas depois Patricia acrescenta, limpando com o dedo as migalhas dos biscoitos: – Não conheci a minha mãe. Nem o meu pai. Fui criada por pais adoptivos. – Ai sim? – diz Dorothy, inclinando-se de novo para a frente e pondo uma mão sobre a de Patricia. – Eu sabia que tínhamos uma ligação. Eu sabia! Patricia arrepende-se já de ter falado. Gostaria de poder levantar-se, colocar as chávenas na máquina de lavar e voltar a ser a anfitriã perfeita. E por um segundo vê aquela divisão, o castello, toda a sua vida, estilhaçandose em milhares de fragmentos coloridos. Vê-se soterrada pela avalancha, como a Alice a desaparecer sob as cartas de jogar quando acorda do seu sonho. Inspira fundo, procurando ancorar-se assim ao presente. – Sim – diz num tom jovial. – Os meus pais adoptivos não eram… muito bons para mim. – E consultou alguém? – pergunta Dorothy com avidez. – Um terapeuta? – Não. – Mas tem de o fazer, minha querida! Quando penso em todo o bem que o Ivan me fez. Eu tinha uma dor enorme, compreende, escondida sob a superfície. E, perdoe-me por o dizer, sinto que há algo parecido em si. Por instantes Patricia imagina-se deitada num sofá numa sala fresca e escura. Uma divisão de estilo nórdico, serena, muito distante da luz e da cor febril de Itália. Imagina-se a falar com um terapeuta sombrio, relatando-lhe as noites em que o luar se insinuava sobre a sua cama. Imagina-se a falarlhe de Sean e de como o seu amor despreocupado parecera oferecer um escape perfeito do passado. Até ele a deixar. Afinal, o seu amor também era circunstancial. Patricia olha para Dorothy, que a observa com atenção, quase com avidez,


e força-se a sorrir. – Oh, eu estou bem – afirma. – Mais chá? Sam e Jeremy estão sentados na varanda do quarto do tutor sob a protectora sombra de um toldo às riscas. Porém, de alguma forma, apesar das joviais riscas brancas e verdes e da garrafa de vinho aberta sobre a mesa entre os dois, a atmosfera é inteiramente profissional. Talvez isso se deva à presença do computador portátil, das tabelas e ficheiros amontoados à frente de Sam, ou talvez seja da caneta vermelha e dos manuscritos corrigidos que estão à frente de Jeremy. Talvez seja apenas devido à atitude dos dois homens, que estão rigidamente sentados em cadeiras mais propícias ao descanso, conversando de forma hesitante, com frases curtas e entrecortadas. Não há quaisquer resquícios dos gracejos trocistas tão característicos das sessões com Anna. – Portanto, como está a ver – diz Sam, apontando para uma tabela – trinta por cento dos livros na lista dos cem mais vendidos são thrillers, dez por cento são relatos torturados, outros dez por cento autobiografias de celebridades e os restantes são livros ligados a programas de televisão e de auto-ajuda. Jeremy, que está não só abismado mas também interessado em semelhante abordagem do mundo editorial, inclina-se para ver. Como sempre, os seus olhos percorrem a lista à procura de títulos publicados pelo seu editor. A sua atitude em relação ao seu editor é a de uma criança outrora adorada que foi suplantada por irmãos mais novos, agora os preferidos. Jeremy ressente-se de qualquer autor que seja publicado pela mesma chancela. E se eles forem também publicados pelo seu editor – agora perto da idade da reforma – o seu ciúme é quase insuportável. – É isto então que o motiva a escrever um thriller? – inquire Jeremy. – Bem, sim – responde Sam, dobrando a sua tabela. – Achei que seria a melhor opção. Tive a infelicidade de ser abençoado com uma infância feliz, pelo que culpo os meus pais, portanto não posso seguir o caminho da querida Dorothy e escrever um relato do estilo «foi tudo horrível mas mesmo assim consegui sobreviver». Não sou famoso e nunca apareci na


televisão. Logo, um thriller era o único estilo que sobrava. Jeremy parece não saber muito bem o que dizer. – Mas quer escrever um thriller? – pergunta por fim. – É claro que quero – responde Sam. – Abdiquei de um emprego muito bom para ser escritor. – Pelos excertos que me deu – diz Jeremy, remexendo nas páginas à sua frente – fiquei com a impressão de que tem imensas ideias boas mas que, de alguma forma… perde o fôlego. Sam suspira e, pela primeira vez, recosta-se ligeiramente na cadeira. – É verdade – afirma. – Começo cheio de entusiasmo, quase consigo cheirar o dinheiro, mas depois, após alguns capítulos, não sei o que acontece, perco o interesse pelas personagens. – Creio que perde o interesse – diz Jeremy num tom afável – porque as personagens não são reais. Sam abespinha-se. – Reais? Como assim, reais? – Não são reais – explica Jeremy – porque as inventou por interesse. Não se desenvolveram de forma orgânica, a partir da sua mente, da sua experiência. É curioso – afirma ele, falando agora mais para si próprio – mas quase nunca resulta, escrever por encomenda. Deveria resultar. Deveríamos ser capazes de seleccionar um género, estudar as suas características e escrever o livro perfeito. E por vezes as pessoas escrevem de facto assim. Mas esses livros quase nunca vendem. Os verdadeiros campeões de vendas, os sucessos inesperados, como O Bandolim do Capitão Corelli ou Breve História dos Tractores em Ucraniano, são sempre livros escritos com o coração. São impossíveis de prever, não adianta analisá-los, são simplesmente óptimos livros. Sam permanece calado. Consegue ouvir as vozes de Cat e Anna junto à piscina, mas elas estão demasiado longe para perceber o que estão a dizer. E, após algum tempo, Sam olha para Jeremy, que está a servir-se de um copo de vinho. – Foi assim que escreveu Mergulho de Barriga? – pergunta ele. Jeremy dá um gole no vinho antes de responder.


– Sim – diz por fim. – Os meus primeiros dois livros não valiam grande coisa, eram altamente estilizados e ambicionavam muito ser engenhosos. Mergulho de Barriga é diferente; é desordenado, inexorável, estranho. Eu estava a viver em Los Angeles há um ano e achava a cidade muito estranha. A minha mulher deixara-me. E consolava-me com uma série de beldades plásticas. Eu próprio cheguei, inclusivamente, a fazer uma cirurgia à barriga, daí o título. Escrevi como um possesso. Não fazia ideia de que alguém o quereria publicar. – No entanto, teve imenso sucesso. Jeremy solta uma gargalhada seca. – Teve imenso sucesso, mas eu não escrevi nada entretanto. – Mas vai escrever – diz Sam sem grande convicção. Jeremy sorri, talvez o primeiro sorriso genuíno em toda a semana. – Sim – diz ele. – Só preciso de uma ideia. – Bem-vindo ao clube – afirma Sam, pegando por sua vez na garrafa de vinho.


CAPÍTULO 11 Sexto dia, noite como estar num colégio interno, pensa Anna. Não que ela tenha frequentado um desses estabelecimentos, mas, quando era pequena, lera volumes suficientes de O Colégio das Quatro Torres para saber que havia festas nocturnas. Efectivamente, não havia mesmo um banho nocturno num dos livros da colecção? Numa piscina idílica, talhada nas rochas da Cornualha? Bem, planear com Cat o banho nocturno parece ter feito as duas regredir à adolescência. Não param de rir, usam palavras de código no meio das conversas e evitam o contacto visual directo com os restantes conspiradores, Sam e JP. Naturalmente, não há qualquer razão para serem sigilosas em relação aos seus planos. Não é proibido nadar à noite. Patricia ficara certamente encantada por elas estarem a apreciar tanto a estadia, solicitando a Aldo que lhes providenciasse chocolate quente para depois do banho. Mas talvez seja por isso que elas querem manter o assunto secreto. Tudo é mais divertido quando é proibido. Qualquer pessoa que tenha sido educada como católica sabe-o bem. E Cat também quer manter os planos em segredo em relação aos «adultos», ou seja: Mary, Sally, Dorothy e Rick. E a sua convicção que apenas eles, os conspiradores, são jovens e livres é curiosamente sedutora. Estar no castello tem ainda outras parecenças com os tempos de escola. Para começar, há os mesmos grupos sociais inconstantes. Pertencerá JP ao divertido bando de Anna e Cat ou a um clube mais sério com Patricia e Sally? Mary e Dorothy, por causa da idade, deveriam ser emparelhadas, mas porque passa Mary mais tempo a conversar com Anna, Matt ou Aldo? Estará Sam na equipa dos rapazes com JP e Jeremy ou no grupo das raparigas com Anna e Cat? Cat é claramente a rapariga mais popular da

É


escola e Anna a sua fiel sombra. Por vezes, e de forma constrangedora, Anna é também a preferida do professor. Sally está apanhadinha pelo professor, Sam é alternadamente bruto e cortês, JP está a ficar conhecido pelos seus apartes cáusticos e todos gostam de Rick, com o seu jeito afável e pronúncia texana. Anna frequentou uma escola normal – ainda que católica – mas recorda-se bem da atmosfera efervescente, a forma como um breve vislumbre de alguém num corredor podia garantir a felicidade do dia. Lembra-se de que se saíssemos de facto com alguém, fora do círculo mágico da escola, o seu encanto esmorecia de imediato. E deve ser por isso que, no castello, Anna acha Sam estranhamente fascinante. «Se eu o conhecesse em casa», diz resolutamente a si própria enquanto se arranja para o jantar, «não teríamos nada em comum». «Ele seria um escocês taciturno que gosta de jogar golfe e de esquiar. O Steve e eu não teríamos nada para lhe dizer.» O que diabo pode ela vestir? Quando fizera a mala para a viagem, Anna não contara mudar de roupa todos os dias para jantar. Cat parece ter uma interminável provisão de graciosos vestidos de Verão, mas Anna já usou o seu único vestido elegante e sujou-o com molho de tomate. Tem duas saias compridas floridas, mas também já as vestiu. Terá de usar as calças brancas de algodão – estão um pouco justas, mas tentará não respirar muito – e uma T-shirt preta. Ao menos já está ligeiramente bronzeada, pelo que o preto não a fará parecer demasiado deslavada. Anna penteia o cabelo – que, com tantos banhos de piscina e duches, anda um pouco rebelde – e coloca uns brincos compridos – um presente de despedida de Steve. Oh, como ela gostaria que ele estivesse ali. Terá ele saudades dela? Nos seus e-mails não se cansa de falar do tempo maravilhoso que está a passar com os filhos, e Anna sente-se, naturalmente, feliz por eles estarem bem, mas não se importaria nada de sentir que, por detrás da pose de Pai do Ano, Steve está cheio de saudades suas. O problema em relação a Steve é ela nunca saber o que ele está a pensar. Anna sabe que ele a ama, mas ele quase nunca o diz. Por seu lado, Anna por vezes acha que não pára de o repetir: «amo-te, amo-te, tenho saudades tuas, beijos, beijos, beijos». Di-lo sempre que se despede ao telefone e Steve


limita-se a rir, acrescentando por vezes – e já é uma sorte – «Também eu». «Também te amas?» pergunta ela, e ele torna a rir. Steve é assim: descontraído, de riso fácil, capaz de lidar com tudo. Quando Cat sugerira aquelas férias, Steve não dissera nunca que não seria capaz de tomar conta dos filhos durante duas semanas. Muito pelo contrário, apoiara-a a cem por cento, dizendo que seria bom para ela, uma verdadeira oportunidade para sair de casa e largar um pouco os rapazes, fazer algo por si própria. Anna sabe que tem muita sorte – só de imaginar o que os maridos de amigas suas teriam dito! O único problema é que… gostaria que ele tivesse dito que nunca conseguiria fazê-lo sem ela. «Não sejas ridícula», diz severamente a si própria. «Este curso é uma oportunidade única». «É claro que o Steve te ama; mas não precisa de dizêlo a toda a hora. Odiarias se ele andasse sempre em cima de ti como o Justin faz com a Cat.» Anna olha-se então ao espelho. Fica bem se não se esquecer de encolher a barriga. E espera que Cat não use nada muito espectacular esta noite. Mas Cat, resplandecente com um vestido verde sem mangas, é a primeira pessoa que vê quando chega ao terraço para o ritual dos aperitivos préjantar. E imediatamente Anna sente-se masculina e mortiça com o seu par de calças. Aceita um copo de prosecco de uma impassível Ratka e avança na direcção da amiga. – Que vestido lindo – afirma. – Oh, é só dos saldos da Zara – diz Cat, como se isso fizesse alguma diferença. Anna senta-se no parapeito baixo do terraço, que continua quente do sol do dia. Em baixo, ao longe, a piscina cintila, sedutora. – Ainda queres fazer aquilo que sabemos? – pergunta Cat com os olhos a brilhar. – O nosso ohnab ad aiem etion? – responde Anna, falando ao contrário. – Claro que sim. – Mebmat ossop ri? – pergunta Sam, magnífico numa camisa vermelha. Também ele está bronzeado e, com o cabelo puxado para trás, parece um chefe mafioso de férias.


– Pensava que só as raparigas sabiam falar ao contrário – diz Anna. – Os rapazes também sabem essas coisas – afirma Sam. – Mas não se preocupem. Até temos sociedades secretas e as nossas próprias palavras de código. – Não acredito – exclama Anna. – Os rapazes só jogam futebol. Eu tenho dois filhos, por isso sei do que estou a falar. – Ah, é uma criatura sexista, Miss Valore – diz Sam, inclinando-se para apanhar uma azeitona. – Eu sou um indivíduo extremamente sensível que gosta de fazer bolos e ver filmes sentimentais. – De qualquer forma, nem todos os rapazes gostam de futebol – acrescenta Cat. – O meu Sasha prefere tocar o violoncelo ou ler. Tom, um dos filhos de Anna, pisara certa vez acidentalmente no violoncelo de Sasha e ela sente-se repreendida. – Os seus filhos parecem ser perfeitos, Cat – diz Sam com uma pontinha de escárnio na voz, mas Cat parece não reparar. – Bem, suponho que seja por eu passar sempre tanto tempo com eles. Nunca os plantei em frente da televisão para poder fazer o que bem entendia. Ao contrário do inútil do meu marido – diz ela, rindo. – Quem me dera poder ser plantada em frente de uma televisão – confessa Anna. – Estou com saudades de ver o Big Brother. * Durante o jantar – tomates recheados seguidos de truta assa​da no forno – a conversa recai de novo sobre os maridos. Cat está a descrever o seu casamento. A mãe de Justin pretendera que ela usasse as rendas de família, mas ela insistira em desenhar o seu próprio vestido, e Myra fá-los rir a todos ao descrever o desespero da mãe para que ela se case – «desistiu dos médicos e já está a considerar os homens do lixo». Patricia descreve-lhes a sua fuga com Sean para casarem. – «Uma cena digna de Gretna Green. As nossas testemunhas estavam bêbedas, o fato do Sean ainda tinha a etiqueta e a lua-de-mel foi uma viagem de autocarro para Glasgow». – E o seu casamento, Anna? – pergunta Sam, arrancando um bocado do pão caseiro de Aldo. – Aposto que estava linda.


Anna imobiliza-se com a boca cheia de truta e pimentos. Do outro lado da mesa vê Sam, com os seus inquiridores olhos escuros, Cat, denotando algum enfado, Patricia, de sobrancelhas ligeiramente arqueadas, Dorothy, sorrindo amavelmente, e JP com uma expressão cínica e divertida. – Não sou casada – diz ela. É Cat a primeira a reagir. – Não sabia disso – diz Cat num tom manifestamente zangado. – O Steve e eu estamos juntos há quinze anos, mas nunca chegámos a casar. Nunca discutimos o assunto. – Mas, ao dizê-lo, Anna apercebe-se de que não é propriamente verdade. – E porque haveriam de o fazer? – interpõe descontraidamente Patricia. – Se não está partido… – Mas nunca disseste nada – acrescenta Cat, parecendo ainda algo contrariada. – Bem, eu não uso o apelido do Steve… – Achei que isso se devia à tua escrita. – Credo, não – exclama Anna, rindo-se. – Embora suponha que Valore seja um apelido mais memorável do que Smith. – Se o apelido dele é Smith – diz JP num tom resoluto –, jamais deverá casar com ele. Todos se riem, mas Cat continua a olhar de forma estranha para Anna, quase como se ela tivesse tomado a liderança numa corrida invisível. Depois do jantar os hóspedes costumam demorar a ir para os respectivos quartos. Tomam café e licores, conversam e por vezes jogam às cartas. Mas esta noite todos parecem querer deitar-se cedo. Cat começa a bocejar por volta das dez horas. Naturalmente, Patricia sabe o que se passa. Ouviu-as planear o banho nocturno e sabe também que, por razões delas, Cat e Anna querem manter a incursão secreta. Patricia acha-o um pouco injusto em relação a Mary, que é de longe a melhor nadadora do grupo, mas mantém-se em silêncio. E, para variar, não lhe desagrada recolher-se mais cedo. Poderá trabalhar ainda umas duas horas antes de se deitar. Quando o último hóspede – Sally – sobe para o quarto, Patricia serve-se de


um brandy e vai para o escritório. Decide analisar bem as contas e pensar em novas formas de poupança. Mas, ao sentar-se em frente ao computador, não fica surpreendida ao ver os seus dedos tomarem outro rumo sobre o teclado. Eles abrem os seus ficheiros de imagens, clicando numa pasta intitulada «passado fotográfico». E então, enchendo o ecrã, está uma imagem do castello da primeira vez que o viram, magnífico mas coberto de mato, com uma árvore a crescer para fora de uma das torres. Ali está Matt, com seis anos de idade, com um martelo de brincar. E ali está Sean, rindo enquanto empurra o filho num trenó no meio da neve. E de novo Sean, em cima de um escadote pintando desajeitadamente. E ali está ela com o marido, sentados na borda da piscina vazia, segurando latas de Coca-Cola e sorrindo alegremente para a câmara. Quem terá tirado a fotografia? Talvez Matt, a julgar pelo ângulo ligeiramente torto e os sorrisos dos pais. E ali está a fotografia que inconscientemente estava a procurar: ela e Sean no seu dia de casamento. Sean com o seu fato novo e uma gravata penosamente colorida, e ela com um vestido creme e uma rosa no cabelo. Há vinte anos. Patricia tinha vinte e quatro anos e Sean vinte e dois. Era mais jovem do que ela, como ele gostava de salientar, um rapaz objecto. E, naquela fotografia, ele parece de facto um rapazinho, sorrindo ansiosamente dentro do fato de casamento, com o braço em torno da sua noiva. Eram os dois tão jovens, sabiam os dois tão pouco. Patricia conhecera Sean em Londres quando estava a terminar a universidade. Sean andava na faculdade de Belas-Artes e, para o provar, costumava ter tinta no cabelo. Fora numa festa num cavernoso apartamento de uma amiga na zona sul de Londres. Patricia lembra-se da tinta a descascar nas paredes, o cheiro a humidade, a luz da única e despida lâmpada existente a incidir no cabelo de Sean à medida que ele se inclinara para ouvir o nome dela. O cheiro a terebintina e sabão, o brilho nos seus ousados olhos azuis. – Patricia. Não te costumam chamar Pat? – Não, nunca. – A mim sim – dissera ele, num tom que ainda denunciava o sotaque da


sua Dublin nativa. – Mas é assim mesmo, já estou habituado. E fora assim que tudo começara. Tinham ficado juntos durante toda a festa, partilhando uma garrafa de vinho branco doce. Depois tinham regressado a casa de autocarro e Sean cantara «American Pie» de uma ponta à outra, tendo recebido os aplausos dos restantes passageiros. Chegados ao apartamento de Patricia, a rapariga descobrira que se esquecera das chaves e os seus colegas estavam ainda na festa. Patricia recorda-se de Sean a subir ao telhado e a esgueirar-se por uma janela aberta. Lembra-se de o ver – uma silhueta recortada contra o céu – e de se interrogar se não deveria estar mais preocupada. Sean estava bêbedo, o telhado era alto e instável. Mas, mesmo então, Patricia sabia que Sean não era homem para cair. Tinham feito amor nessa mesma noite. E fora uma revelação para Patricia, que até à data só tivera relações sexuais por parecer ser algo que era esperado da sua pessoa. Mas então descobrira o prazer de estar na cama com a pessoa amada, permanecendo os dois de tal forma entrelaçados que de manhã ninguém sabia muito bem quais eram as pernas de quem. Sean fazia amor como tudo o resto, com alegria e generosidade, com toda a sua alma e coração. E Patricia apaixonara-se por ele antes de essa primeira noite terminar. Casaram-se dois anos depois, assim que Sean terminou o curso. Os pais de Sean, embora fossem simpáticos, achavam que era prematuro e, naturalmente, Patricia não tinha ninguém para dar palpites. «Uma órfã», dissera alegremente Sean ao descobrir. «Que excitante». Quando os pais dele sugeriram que esperassem um ano, Sean e Patricia apanharam um autocarro para a Escócia, pretendendo ir para Gretna Green, o tradicional destino escocês para casais em fuga. Mas, em vez disso, casaram numa vilazinha nos arredores de Glasgow, com dois bêbedos locais como testemunhas. E Patricia lembra-se de como as ruas cinzentas se tinham transformado ao beijar Sean à porta do registo. Ele era o seu marido. Só que Sean já não é o seu marido. Patricia recorda-se bem do dia, quatro anos antes, quando tinham estado naquela mesma sala, os dois vibrando de raiva. Estivera a acusá-lo de não ajudar o suficiente em relação aos cursos, um refrão entediante e recorrente. Lá porque o dizia a toda a hora, gritara


Patricia, não significava que não era verdade. Vira as sobrancelhas de Sean levantarem-se no início da sua diatribe e sabia que ele reduziria tudo, com um humorado encolher de ombros, a um «ralhete». É extraordinário como as queixas de uma mulher, se forem suficientemente prolongadas, são sempre reduzidas a ralhetes. Aquela sobrancelha levantada fora a gota de água. – O que queres de mim? – perguntara Sean, com aquele familiar e enfastiado charme. – Não te quero de todo – gritara Patricia. – Ficaria melhor sem ti. Desaparece! E Sean desaparecera. Patricia ainda tem dificuldade em acreditar. Depois de anos a não fazer caso do que ela dizia, parecia que Sean escolhera aquele preciso momento para a levar a sério. Fizera uma mala e deixara o castello nessa mesma noite. E, exceptuando alguns encontros melindrosos relacionados com as visitas a Matt, Patricia não o vê desde então. O divórcio fora finalizado três anos antes e agora que o filho já era suficientemente crescido para visitar o pai sozinho, Patricia interroga-se se alguma vez tornará a ver Sean. Sabe que ele regressou a Londres, que está a dar aulas de Arte, que tem namoradas – «Uma mulher qualquer», diz Matt, «Não sei. Sim, é claro que partilharam o quarto». «Quem diria», pensa Patricia, lembrando-se da resplandecente noiva com o vestido creme barato, «que o amor poderia acabar assim». Está bem melhor sem ele, diz a si própria. Sean encarava tudo como uma grande anedota e ela, melhor do que ninguém, sabe que a vida é muito séria. Patricia abre os ficheiros da contabilidade. Enquanto a anfitriã franze a testa perante as colunas de números, Cat e Anna esgueiram-se para a piscina. Movem-se em silêncio, mantendo o simulacro de secretismo, até Cat se virar para Anna e sussurrar: – Porque não me disseste que tu e o Steve não eram casados? – Porque não me perguntaste – responde Anna, sussurrando também. – Pensava que era tua amiga – diz Cat, soando como uma criança de doze anos. E de facto, com uma T-shirt e calções brancos, não aparenta muito


mais. Anna fica cheia de remorsos. – E és! – exclama, esticando o braço para agarrar a mão de Cat. – És a minha melhor amiga. Só que… nós nunca falamos muito acerca dos nossos maridos… dos nossos parceiros. Tem sempre sido sobre nós e os miúdos. E Anna apercebe-se então de que elas nunca falam muito acerca dos maridos porque, efectivamente, não há grande coisa a dizer. Justin obviamente idolatra o chão que Cat pisa e Steve… bem, Steve é Steve. É estável, confiável, óptimo pai e só dissera uma vez – quan​do tinham descoberto que Anna estava grávida de Tom: «Talvez devêssemos casar, ou algo assim». Ou algo assim? E ela respondera (a idiota!), «Para quê? Estamos perfeitamente bem como estamos». E ele (o idiota!) nunca mais falara no assunto. Terá ela, inconscientemente, esperado todos estes anos que ele a peça em casamento? Não chega a tanto mas, caso ele o fizesse, seria incrivelmente importante, provaria de forma definitiva que ele a ama, a ela e só ela… As duas descem por fim os últimos degraus. Ao luar, a piscina iluminada ganha uma aura misteriosa. E as árvores próximas parecem também brilhar com uma claridade espectral. Ali perto um mocho pia. Cat aperta a mão de Anna. – É lindo, não é? – Sim – sussurra Anna, sentindo contudo que há algo de assustador na piscina silenciosa e no castelo escuro que se eleva como pano de fundo. As nuvens movem-se sobre a lua e ela vê as ameias recortadas contra o céu. Mas vê mais qualquer coisa, algo que a faz sobressaltar-se. Uma figura, uma figura de um homem, a caminhar firmemente pelo telhado, do lado de dentro das ameias. E, por um instante, o luar incide sobre o seu cabelo louro. – O que foi? – pergunta Cat, detendo-se na borda da piscina onde está a experimentar a temperatura da água com a ponta do pé. Anna olha para trás. O castelo está de novo na sombra. – Nada – responde. Ruídos abafados elevam-se então do lado oposto da piscina, revelando JP


e Sam. JP enverga um roupão branco e Sam parece estar a usar um equipamento de futebol. Os homens esticam as respectivas toalhas junto à piscina – as espreguiçadeiras estão cuidadosamente guardadas – falando baixinho. – Quem salta primeiro? – pergunta Sam. – Eu – responde Cat, despindo a T-shirt e os calções e revelando um fato de banho negro justo. Coloca-se na borda da piscina e flecte as pernas. JP avança para a empurrar mas ela é demasiado rápida para ele. E, com um mergulho perfeito, o corpo esguio de Cat corta a água como uma lâmina. Sam está a olhar para Anna. – Vai entrar? Anna ri-se nervosamente. – Pensei que era essa a ideia. Sente-se ligeiramente incomodada por ter de se despir à frente de Sam, mas ele não parece disposto a desviar o olhar, portanto, prepara-se. Desembaraçando-se atabalhoadamente das roupas, Anna treme ligeiramente. Sam avança na sua direcção e detém-se. Anna aproxima-se da água e baixa-se para a tocar. – Está gelada! – exclama ela. Sam continua calado, mas Anna consegue senti-lo, muito perto por trás dela. E de repente parece-lhe importantíssimo entrar o mais rapidamente possível na piscina. Levanta-se e executa um mergulho desastrado, batendo com a barriga de chapa na água. O frio apanha-a de surpresa e ela vem à superfície, cuspindo água. – Está bem? – pergunta Sam, boiando a seu lado. – Sim. Dei apenas um mergulho de barriga. Sam solta uma gargalhada. – Como o famoso livro do Jeremy. Anna demora alguns segundos a perceber e depois ri-se. E sem compreender porquê, de repente, parece-lhe a melhor piada do mundo estar a nadar ao luar com dois homens que mal conhece, com as estrelas toscanas por cima das suas cabeças. JP nada até junto deles e salta para as costas de


Sam. Os dois homens lutam, chapinhando na parte mais baixa da piscina. Cat senta-se na borda, espremendo a água do cabelo, até JP lhe agarrar uma perna e a puxar de novo para dentro. Anna nada em socorro de Cat, mas Sam força-a a mergulhar. A rapariga emerge e salpica o agressor, esquecendo por completo qualquer constrangimento. Ele nada para a agarrar mas ela consegue escapar. Sam alcança-a ao chegar à parte mais funda e agarra-a pela cintura. E Anna sente o corpo dele, escorregadio mas sólido, colado contra o seu. Subitamente, apercebe-se de que Sam a largou e está a olhar para uma figura que emerge por entre as árvores: um homem, vestindo apenas uns calções de banho, tão perfeito e descontraído como um espírito da floresta. É Fabio. – Fabio! – exclama Cat, nadando na sua direcção e sorrindo para ele. – Sempre vim – diz Fabio. – Pode ser? – Claro que sim – responde Cat. Fabio mergulha. O rapaz nada maravilhosamente bem, quase não respirando entre as braçadas. Cat senta-se de novo na borda da piscina, observando-o. JP e Sam saem também, embrulhando-se nas toalhas. Anna desliza para fora da água, pegan​do igualmente na respectiva toalha. De repente parece-lhe estar muito mais frio e lamenta não ter trazido uma camisola. A dada altura, Fabio detém-se e chama Cat: – Não vem? Com uma gargalhada subtil, Cat levanta-se e salta para dentro da piscina. E os dois nadam juntos, perfeitamente sincronizados, esticando os braços e virando os rostos um para o outro sempre que respiram. Anna está de tal forma maravilhada que quase não repara quando JP lhe coloca o roupão sobre os ombros. Cat e Fabio continuam a nadar, esticando-se e virando-se ao luar. Param e agarram-se ao lado da piscina, onde a água transborda sobre os azulejos azuis e verdes. Cat afasta o cabelo do rosto e Anna vê-a sorrir para Fabio, radiante. JP avança, parecendo estar prestes a falar, mas outra voz corta o ar da noite.


– Olá! Importam-se que me junte a vocês? É Matt. Instintivamente Anna olha para as ameias. Pensara que o homem louro podia ser Matt, mas poderia ele ter descido até ali tão depressa? Cat sai da piscina e envolve o cabelo na toalha. O seu corpo permanece destapado, a reluzir, molhado. Anna oferece-lhe a sua toalha. E, em silêncio, Cat aceita-a. Matt e Fabio nadam dentro de água qual dupla de golfinhos brincalhões. Matt arranjou uma bola e convida JP e Sam para uma partida de pólo aquático. – Vamos embora? – sugere Anna e Cat anui com um aceno de cabeça. Pesarosamente, Anna despe o roupão de JP e enfia os seus calções e Tshirt por cima do fato de banho molhado. Cat pega nas suas roupas e seguea, uma princesa egípcia com o seu turbante de toalha e toga turca. E as duas sobem a escadaria, deixando para trás os gritos e os risos que se elevam da piscina, entrando depois por uma porta lateral. Pingando ligeiramente, Anna e Cat atravessam o hall do castelo. As armaduras contemplam-nas, reprovadoras. Ao subirem a escadaria principal, Sean, o gato, passa a correr por elas, entretido com os seus assuntos nocturnos. No primeiro patamar detêm-se. – Foi divertido – desabafa Cat. – Pois foi – concorda Anna. – Cat? Anna não sabe bem o que vai dizer, mas é salva por uma outra voz. Uma voz imperiosa e manifestamente inoportuna. – Anna? Catherine? É Patricia, completamente vestida, emergindo do seu escritório no andar de baixo. Sean está ao seu lado, ronronando e roçando-se contra as suas pernas. Teria sido ele quem as denunciara? Mas Patricia está a sorrir. E parece mais feliz do que as duas alguma vez a viram. – Tenho óptimas notícias, Cat – afirma ela. – O seu marido e os seus filhos vêm-nos visitar. Chegam amanhã.


CAPÍTULO 12 Escrita Primeira Memória por Catherine Ferris-Merry Quando tinha três anos, apaixonei-me. O seu nome era Miminhos e, como chegara no Natal, para mim ele seria sempre Miminhos de Natal. Um pequeno pónei Shetland, com pouco mais de dez palmos de altura, farfalhudo e preto com uma corda de ouropel em torno do pescoço. Lembro-me de o papá o levar para dentro de casa, para o meio da nossa sala, e dos meus guinchos de alegria quando compreendi que aquele animalzinho lindo era todo meu. O Miminhos vivia no pomar que havia ao fundo do nosso jardim. Era na casa do Wiltshire, onde vivemos até o papá ter partido. Julgo que a casa seria bastante grande, embora como criança eu só me recorde de algumas partes: o meu quarto com o seu papel de parede cor-de-rosa às flores, o jardim com o baloiço de corda e a casa da árvore, o quarto dos meus irmãos, onde eles punham música em altos berros a qualquer hora do dia. Os meus irmãos eram (são!) bastante mais velhos do que eu, portanto, não me lembro muito bem deles nessa altura. Ambos jogavam rugby e recordome de ficar com o papá junto à linha de marcação vendo o Robert, coberto de lama, mergulhar sobre ela para marcar um ensaio. Eu não gostava de rugby. Era uma autêntica princesinha. Adorava corde-rosa, ballet e póneis, naturalmente. Lembro-me de o papá, nesse primeiro dia, me levantar no ar e me sentar no dorso do Miminhos, conduzindo-me depois em volta do jardim. Foi a melhor coisa do mundo. Lembro-me inclusivamente do chapeuzinho vermelho e das luvas que


estava a usar e da grande camisola de lã do papá. Infelizmente, depois disso, não conseguimos domar o Miminhos. Nem a mamã nem o papá percebiam muito de cavalos e, por fim, tivemos de chamar um lavrador local chamado Stanley para o treinar. A Susan, filha do Stanley, tentou ensinar-me a montar, mas eu não gostava muito dela. Costumava gritar comigo («Pernas! Pernas! Quem é que manda? Mostra-lhe que é a sério. Esporeia, rapariga, esporeia!») e eu disse ao papá que não queria mais lições. Depois, certo dia, o Miminhos mordeu-me e teve de ser vendido. Sinceramente, não fiquei muito triste. Ele não era o cavalo mais adequado para mim. Os póneis Shetland são muito temperamentais e teimosos. Enfim, no final desse mesmo ano, tínhamos deixado a casa do Wiltshire e o papá fora viver para a Cornualha com a sua nova e esplendorosa família. Tinham cavalos, cavalos bem-educados que faziam tudo o que lhes dizíamos, mas nunca ninguém me convidou para dar uma volta num deles. Mas também não teria aceitado. A equitação não era propriamente o meu forte.

Primeira Memória por Mary McMahon O meu tio Maurice tinha um automóvel. Naquele tempo era bastante invulgar. O meu pai tinha uma carrinha para o trabalho (era construtor) mas recordava-se do tempo em que as entregas eram feitas em carroças puxadas por cavalos, no tempo em que a maioria dos estabelecimentos tinha um estábulo nas traseiras. O tio Maurice não era mesmo meu tio, mas as crianças tratavam todos os amigos e amigas dos nossos pais por tios e tias. Na altura era considerado boa educação. O tio Maurice era alfaiate. Fez o vestido de casamento da minha tia Betty e recordo-me de o ter ido ver à loja, encontrando-o pendurado, num misto de misticismo e beleza, num daqueles assustadores manequins sem cabeça. Naturalmente, isto passou-se


antes do racionamento das roupas. Nunca ouvi ninguém mencionar nada, mas creio que o tio Maurice era judeu. Fechava a loja cedo às sextas-feiras e lembro-me de a sua esposa, a tia Marie, dizer à minha mãe que tinha de guardar o leite e a carne em armários diferentes. A tia Marie não era judia, era uma rapariga da zona sul de Londres com cabelos ruivos brilhantes e o riso mais sonante que alguma vez ouvi. Sabia imitar todas as actrizes de cinema e cantar canções engraçadas sobre velhotes que seguiam a carrinha. O meu pai costumava dizer que ela «gostava da pinga». Nunca compreendi bem o que isso significava, mas se era a pinga que tornava a tia Marie tão engraçada e tão diferente dos demais adultos, lembro-me de desejar que ela desse alguma aos meus pais. O tio Maurice tinha uma pronúncia engraçada, que eu adorava. E também cantava, numa língua estranha e suspirada. Pareciam ser sempre canções tristes e a tia Marie dizia: «Cala-te, Mo, então. Ainda fazes com que nos enfiem as cabeças no forno.» E ele ria-se e ensinava-me um novo jogo de cartas ou fazia-me uma roupa para a boneca. Uma vez fez-lhe um conjunto completo, igualzinho a um usado pela princesa Margaret Rose. Não sei que tipo de carro ele tinha. Era quadrado, preto, com uma frente curta e bancos de cabedal vermelho. Um dos assentos tinha um buraco e, numa viagem, não resisti a enfiar lá o dedo e puxar para fora parte do enchimento. Fui puxando e puxando até ficar com uma grande pilha no colo. Ainda me recordo do quão mortificada fiquei quando o tio Maurice se virou para trás e me viu coberta por aquela coisa fofa e branca. Mas ele limitou-se a rir. A minha mãe, no entanto, ficou furiosa. Portanto, no dia que recordo, o tio Maurice levou-me a mim, à minha mãe e à minha irmã a «passear». Também isso fugia à normalidade. As pessoas quase nunca iam «passear». Iam visitar amigos e familiares ou iam até à costa, mas nunca apenas «passear». Eu adorava a imprevisibilidade daquilo, a ideia de que uma viagem que começava à frente da nossa casinha em Camberwell pudesse terminar… bem, em qualquer lado. Esta viagem em particular terminou em Richmond Park. O dia estava lindo e comemos gelados e sentámo-nos na relva a observar os esquilos. Talvez


seja por isso que me recordo tão bem, pois não consigo lembrar-me de outra ocasião em que tenha visto a minha mãe sentada. Mas nesse dia ela sentou-se, quase se deitou na relva, comeu um gelado de morango e riu-se das piadas do tio Maurice. E é o riso que melhor recordo. O riso e o facto de a minha irmã ter vomitado por trás de um azevinho. Devíamos estar no Verão de 1938. No ano seguinte a guerra rebentou e o tio Maurice foi levado e preso como estrangeiro inimigo. Afinal, aquela língua estranha e suspirada era alemão. Nunca mais o voltei a ver.

Primeira Memória por Dorothy Van Elsten Escuro. É isso que recordo. A escuridão do armário onde a minha mãe me costumava fechar, por vezes dias inteiros. Lembro-me de escrever o meu nome no pó, sabendo que tinha de reter o meu sentido de identidade, dizer a mim própria que existia. Que merecia ser amada. Escura, era assim a minha vida nesses tempos. Escura, pois mesmo quando não estava fechada no armário, estava longe da luz, negligenciada, abusada, escondida. Lembro-me que a minha mãe costumava…


CAPÍTULO 13 Sétimo dia 8 de Agosto a vez de Mary estar sentada na varanda de Jeremy. A tarde ainda mal começou e, em cima da mesa sob o toldo às riscas, está um tabuleiro com um bule, um jarro com leite, várias chávenas e um prato com biscoitos. Durante estas sessões, Jeremy costuma beber um ou dois copos de vinho, mas sabe que as velhinhas gostam de chá e orgulha-se de ser tão atencioso, de se dar ao trabalho de pedir a Ratka para preparar o chá e o levar ao seu quarto. O dia tem estado estranhamente calmo. A notícia de que o marido e os filhos de Cat estão para chegar parece ter lançado uma sombra sobre o grupo e perturbado a camaradagem que tinham conseguido desenvolver durante a última semana. Fabio fora visto ao pé da piscina, a encher brinquedos insufláveis. Aldo reagira com estupefacta incredulidade à noção de que as crianças poderiam não apreciar pollo alla diavola e recusa-se terminantemente a preparar alternativas. Depois do almoço, Cat saíra com Fabio para ir buscar a família e Dorothy comentara, em tom delicado, enquanto o grupo se sentava no terraço para acabar de beber o café: – É claro que eu adoro crianças, mas não me parece muito apropriado… Jeremy concorda plenamente. Abomina criancinhas e o marido de Cat deve ser um tipo musculado que faz cinquenta piscinas todas as manhãs e fala dos seus bíceps. Porém, isso poderá significar mais tempo com Anna, a qual tem andado a dizer a todos que a família de Cat é «encantadora». Jeremy tem as suas próprias ideias sobre o que é de facto encantador e elas não incluem yuppies apalermados nem os seus medonhos rebentos. Mary, muito fresca num vestido azul descontraído, agradece educada mas

É


não entusiasticamente a Jeremy pelo chá. A verdade é que prefere café. Jeremy retribui-lhe com um sorriso charmoso e elogia-a pelo texto sobre as primeiras memórias. – Muito bem construída, bastante comovente. Era verdadeira? – Claro que sim! – responde Mary, bastante chocada. Jeremy solta uma gargalhada. – Não se ofenda. Os melhores escritores inventam factos, ou pelo menos, moldam as suas memórias. Moldou a sua memória do alfaiate Maurice? – inquire ele, tornando a rir. – Não sei – responde Mary lentamente. – Pensei que fosse tudo verdade, mas, naturalmente, não podemos saber. As minhas lembranças de Maurice e Marie terão sido contaminadas pelo tempo, pelo conhecimento do que veio depois. Suponho que agora o vejo como uma personagem trágica, mas, na altura, seria tudo menos isso. Era uma pessoa divertida, animada. Todos o adorávamos. Jeremy observa Mary com atenção. Aquela resposta inteligente e ponderada não é de todo o que ele esperava. E quando volta a falar, a sua voz está quase desprovida do habitual charme. – Alguma vez pensou em escrever acerca da sua infância? – pergunta ele. – As descrições são incrivelmente vívidas. – Bem – afirma Mary –, a história do inspector Malone desenrola-se no passado. Nos anos cinquenta e não nos trinta, naturalmente, mas uso muitas das minhas memórias pessoais. No entanto, achei melhor incluí-las num texto ficcional. Afinal, quem poderia estar interessado na minha vida? Nunca casei, não tenho filhos, poucas vezes saí do país. – Compreendo o que quer dizer – diz Jeremy. – E as descrições do inspector Malone são de facto excelentes. É uma personagem interessante. Surpreende-me, no entanto, que se tenha sentido atraída pelo género policial. Mary sorri. – Sempre gostei de mistérios – afirma ela. – Gosto de palavras cruzadas, charadas, coisas afins. E pensei: se eu gosto, talvez haja mais alguém que goste.


– Mas, perdoe-me, será que os mais novos gostarão? – Não faço ideia – diz Mary friamente. – Mas, estatisticamente, as velhinhas como eu compram muitos livros. – Touché – exclama Jeremy com um sorriso, pensando, «Credo, mais um a citar-me estatísticas». E dá um gole no seu chá frio. – Achei a intriga demasiado elaborada – acrescenta ele num tom profissional. – Não consegui compreender como o penhorista ficou a saber da existência do corpo na estação de comboios ou se isso significava que estava de conluio com o estrangulador. Há também demasiadas personagens. – Bem sei – diz Mary. – Tenho noção que precisam de ser menos. Até eu me perco de vez em quanto. – Alguma vez pensou em pô-lo de lado – diz Jeremy – e começar algo completamente novo? Este é o seu conselho habitual. Visto que a maioria dos manuscritos que lê são perfeitos disparates, começar de novo será forçosamente uma melhoria. – Não seria capaz – confessa Mary. – Há trinta anos que escrevo este livro. – Bem, então, para começar – afirma Jeremy – sugiro que corte o primeiro capítulo. A maioria dos livros fica melhor sem o primeiro capítulo. Sabe como começa a Ilíada? Mary não sabe. – Começa in medias res, a meio dos acontecimentos. Homero podia ter começado no início da guerra de Tróia, mas não o faz. Quando o livro começa, a guerra já dura há sete anos. Homero atira o leitor para dentro do seu mundo. É isso que precisa de fazer. Não introduza coisa alguma; coloque o leitor no meio da trama. Talvez seja melhor cortar também o segundo capítulo. Depois prossiga, concentrando-se no inspector Malone. Corte tudo o que não é visto pelos seus olhos. E só lhe dê um caso de cada vez. Tem aqui material para uns dez livros. Para seu grande espanto – mas não desagrado – Mary está a tomar notas. – Mais alguma coisa? – pergunta ela secamente. – Por agora não. Vou ler tudo de novo e depois, se quiser, dou-lhe umas notas mais detalhadas. – Obrigada – diz Mary. – E agora, que tal bebermos um copo de vinho?


Diário de Mary, 8 de Agosto O marido e os filhos da Cat chegaram esta tarde. O marido dela foi uma verdadeira surpresa. A Cat é tão bonita que eu esperava que a cara-metade fosse igualmente formosa, mas o Justin é normalíssimo, tem o cabelo cor de areia, óculos, e é manifestamente mais baixo do que ela. Mas tem um tom de voz agradável (muito elegante) e parece ser simpático e despretensioso. Cumprimentou a Anna com um beijo e deu apertos de mão aos restantes (estávamos no terraço antes do jantar). Achei que os homens (o JP, o Sam e o Jeremy) o tinham recebido com frieza, mas depois pareceu-me que foram bastante amorosos com a Cat. A Sally pareceu simpatizar de imediato com o Justin, começando a conversar logo com ele acerca de Salisbury (parece que ele cresceu perto de onde ela mora) e da Toscana. Foi igualmente simpático comigo e afirmou conhecer bem Streatham, mas, de facto, estava a falar de Clapham que, naturalmente, é muito mais elegante. De início as crianças pareceram-me tímidas ou então fui eu que me retraí em relação a elas. Nunca sei muito bem o que dizer às crianças. O rapaz chama-se Sasha, mas tem o cabelo muito comprido, o que, em conjunto com o seu nome andrógino, me levou a pensar inicialmente que ele seria a rapariga. Não foi o mais auspicioso dos começos. A menina, a Star, é muito bonita, uma espécie de Cat em miniatura, mas pareceu ficar assustada com tanta gente desconhecida e começou a chorar. Pobre Cat, não deve ter sido fácil, com uma criança agarrada à sua saia e a outra a gritar. Mas não posso deixar de dizer que o Justin foi impecável com os filhos. Pegou na Star ao colo, conseguiu que ela parasse de chorar e entreteve Sasha, indo mostrar-lhe a piscina. Não me recordo de o meu pai lidar assim tanto connosco quando éramos crianças. Saía de casa de manhãzinha e regressava à noite. Por vezes, excepcionalmente, deixavamnos ir visitá-lo a uma das suas obras, mas tínhamos de ficar muito quietas e não atrapalhar. Hoje em dia ninguém diz essas coisas às crianças. E ainda bem. Mostrar a piscina ao Sasha acabou por ser um erro, porque o rapaz


começou logo a gritar que queria tomar banho. A Cat tentou dissuadi-lo, conversando com ele como se ele fosse um adulto, dizendo que era demasiado tarde, que o fariam no dia seguinte, etc., etc., mas ele continuou a gritar até ficar com o rosto roxo. Foi o Matt quem resolveu a situação. Apareceu de repente com o Fabio e os dois puseram as crianças às cavalitas, começando a dar voltas ao jardim com elas. Nós, os adultos, sentámo-nos no terraço (e eu vi a Cat agarrar, agradecida, um copo de vinho) e ficámos a observar as crianças, pois o Matt e o Fabio são eles próprios pouco mais do que crianças, a saltar por cima dos arbustos e a subirem e a descerem das árvores. Soube muito bem escutar os seus risos. Mas talvez, na minha idade, as crianças sejam melhores como ruído de fundo. Hoje, ao início da tarde, tive uma sessão bastante boa com o Jeremy. Inicialmente achei-o um pouco condescendente, mas depois disse algumas coisas interessantes. Por exemplo, afirmou que a maioria dos livros seria mais interessante sem o primeiro capítulo. Mais tarde, interroguei-me se tal poderia ser verdade. Então e as famosas linhas de abertura de Orgulho e Preconceito ou de David Copperfield? Mas depois pensei: talvez essas palavras marcantes sejam de facto o início dos segundos capítulos antes de Austen ou Dickens terem rasgado os enfadonhos primeiros capítulos. Efectivamente, o meu primeiro capítulo, uma descrição aborrecida da zona sul de Londres, pode muito bem ser rasgado. As crianças surpreenderam-nos a todos ao jantar ao comerem tudo o que o Aldo preparara sem um único protesto. A Cat estava muito preocupada, dizendo que o Sasha tinha uma série de alergias e que a Star só comia sanduíches de Marmite, mas o Aldo trouxe ele próprio a comida e, ao contrário de mim, parece saber exactamente como falar com crianças. Disse-lhes que fizera a comida de propósito para elas e deixou-as usarem a sua máquina especial para ralar o queijo parmesão. Depois disso, os dois comeram lindamente a massa e até mesmo o frango (delicioso, mas bastante picante). «Posso levá-lo para casa connosco, Aldo?», rogou Cat com um queixume.


Depois do jantar, fiquei admirada por a Cat não ir deitar de imediato as crianças. Afinal, eram dez horas da noite, logo, já devia passar bastante da sua habitual hora de deitar. Além disso, tinham passado o dia a viajar. Mas talvez ela tenha achado que elas estavam felizes a jogar Scrabble com o Matt, ou talvez só desejasse relaxar um pouco com um copo de licor. A dada altura, a Star adormeceu no chão do jardim e o Justin pegou nela ao colo e toda a família se recolheu. Nós, os restantes, ficámos a conversar durante mais algum tempo e o Matt, o Fabio, o JP e a Anna iniciaram uma poliglota partida de Scrabble. Quando me vim deitar, ainda estavam a jogar, com o Sam a olhar por cima do ombro da Anna, embora ela não precisasse de ajuda. Da última vez que espreitei, estava a ganhar a olhos vistos.


CAPÍTULO 14 Oitavo dia, Siena 9 de Agosto abio é o condutor oficial na visita a Siena porque Aldo, que tanto adora Roma, não tem paciência para a cidade vizinha. A atitude é bastante comum entre os toscanos, explica Patricia a JP; a rivalidade entre as povoações montanhosas é muito forte, tendo muitas uma longa história de guerras e derramamento de sangue. – Aqui em volta houve inúmeras batalhas entre os exércitos de Siena e Florença. Foi em Montalcino, perto de onde estamos, que o exército de Siena resistiu pela última vez. Ainda hoje em dia hasteiam bandeiras em Siena nas quais se lê: «A República de Siena em Montalcino». – E porque lutavam eles? – pergunta JP. – Oh, por terra, dinheiro, religião – afirma Patricia. – Os motivos de sempre. Lembrando-se de Aldo e da sua menção à recente batalha de 1440, Anna pensa que Patricia tem razão em relação aos toscanos. Porém, ao viajarem pela Toscana ao entardecer, é difícil imaginar uma carnificina. Siena fica a poucos quilómetros de distância mas, ali nas montanhas, é impossível viajar em linha recta. A carrinha se​gue por uma laboriosa e serpenteante estrada que, a cada curva, revela uma nova maravilha: uma quinta com cavalos brancos a pastar, um santuário de beira de estrada onde flores repousam perante uma serena imagem cerâmica da Virgem Maria, três ciprestes erguendo-se contra o céu, mais uma vila no cimo de um monte parecendo erguer-se das entranhas da própria montanha. Até os nomes são mágicos. Anna, espreitando pela janela, dá por si a

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repeti-los mentalmente, acabando por formar assim uma espécie de mantra: Montalcino, Montepulciano, Buonconvento, Monte Oliveto Maggiore. Atrás dela, Cat está entretida a jogar uma versão educacional de um jogo de adivinhas – «Sabes o que são árvores de folha caduca, Sasha. O ano passado lemos um livro acerca disso» –, enquanto Justin tenta evitar que Star pontapeie o assento de Anna. Patricia e JP estão agora a falar sobre o Palio e Dorothy está a conversar com Sally sobre esquiar no Vermont: – Em casa temos verdadeiras montanhas, bem maiores do que estas patetices anãs. Não consigo compreender como conseguiram construir alguma coisa ali em cima. Mary não foi com eles. Pela primeira vez nas férias, alegara estar cansada e ficara no castello – na verdade, quer trabalhar no seu livro, ver se o truque do primeiro capítulo funciona ou não. Por outro lado, Matt decidira acompanhá-los, para grande alegria de Patricia. É verdade que passara a viagem agarrado ao seu iPod, mas pelo menos estava presente. – Está bem? – pergunta Sam a Anna, que está sentada ao seu lado. Um pontapé particularmente violento por parte de Star acaba de a projectar para a frente. – Óptima – diz Anna, sorrindo. Sam vira-se para trás e faz uma careta a Star que, naturalmente, começa a chorar. As palavras «Não gosto daquele homem» são então ouvidas por entre os seus soluços. E nem Cat nem Justin discordam da sua apreciação. – Não te preocupes, querida – afirma Cat. – Quando chegarmos a Siena, compramos-te um doce. Sasha começa a chorar, pois ele também quer um doce. Matt aumenta o volume do seu iPod. – Credo – murmura Sam para Anna. – Porque temos de aturar isto? Não passa já da hora deles de dormir? Anna interrogara-se se Cat não acharia a viagem muito tardia para as crianças. Tinham saído do castello às seis, mas, como vão jantar em Siena, quando regressarem já passará muito das dez. Cat explicara que não queria que Sasha e Star perdessem a oportunidade de visitar Siena. – O Duomo – dissera ela com vivacidade – é absolutamente fascinante.


Mas a julgar pela conversa atrás de si, o primeiro destino de Cat e Justin será uma gelataria. – Mas não os horríveis gelados italianos – avisa Sasha. – Ca​lypsos ou assim. Fabio estaciona a carrinha junto ao Porto Romano e o grupo sobe a colina em direcção a Il Campo, a famosa piazza no centro da cidade. São quase sete horas e as lojas estão a reabrir para a noite: pequenas arcas de tesouro repletas de jóias, lenços de seda e malas de aspecto dispendioso. Cat exclama de prazer e, passados segundos, Justin emerge de uma das lojas trazendo consigo uma mala vermelha do mais macio dos cabedais. Cat guincha de alegria e abraça-o no meio da rua. – Agora compreendo o que ela vê nele – murmura Sam atrás de Anna, pensando no quanto gostaria de lhe comprar um presente. Escolheria algo melhor do que aquela vulgar coisa escarlate. Mas Anna não lhe responde, entretida a consultar o seu guia. – Diz aqui que Santo Bernardino costumava pregar neste Campo. – Siena é também o local de nascimento de Santa Caterina. St. Catherine – diz Patricia. – O seu nome, Cat. Cat faz um trejeito com a boca. – Santa Caterina – diz Justin, beijando-a. – Ela era muito inteligente – diz Patricia. – Uma doutora da igreja. Mas a vaidade era o seu grande pecado. Consta que alourava o cabelo secando-o ao sol. – Como sabe tudo isso? – pergunta JP, rindo-se. – Todos os anos fazemos uma visita a Siena – explica Patricia –, e fui fixando algumas coisas. Sou exímia a fixar informação inútil. – Depende do que considerar inútil – diz JP. – Bem, nunca consigo lembrar-me do meu número de telemóvel. – E o pai também não – diz inexplicavelmente Matt. – Uma vez perdeu o carro num parque de estacionamento com vários andares. E não se conseguia lembrar de que cor era. O guia de viagens descreve Il Campo como a mais bela praça do mundo mas, mesmo assim, Anna pasma quando dobram a esquina e a dourada


praça em forma de leque se estende diante do grupo. É efectivamente um semicírculo, um palco de inclinação desigual repleto de gente a passear, a conversar, a deliciar-se. Num dos lados do Campo, uma imponente torre sineira ergue-se em direcção aos céus e no outro os restaurantes começam a preparar as mesas para o jantar. Casais passeiam de mãos dadas, crianças perseguem pombos e, ao fundo, ao lado de uma elaborada fonte, há uma banda a tocar. Com o rosto deslumbrado, Anna vira-se para Patricia. – É magnífico – exclama ela. – Ainda bem que gosta – diz Patricia. – Para mim, é a cidade mais bela da Itália. Talvez até do mundo. – Então e Paris? – pergunta JP. – Nunca estive em Paris. – A sério? Teremos de remediar isso. Segue-se um silêncio algo constrangedor. Anna afasta-se um pouco, achando que JP poderá querer ficar sozinho com Patricia. De facto, ele parece gostar bastante dela. Mas Matt tem outros planos e resolve dar o braço à mãe. – E que tal um gelado, mãe? – sugere o rapaz. – Francamente! – exclama Patricia. – Afinal, quantos anos tens? Seis? – Mas sorri e deixa-se arrastar por Matt para um dos cafés. Para longe de JP. O grupo distribui-se por várias mesas com vista para a praça. As crianças – incluindo Matt e Fabio – comem gelados enquanto os adultos tomam café. Sam bebe uma cerveja. O grupo quer explorar a famosa catedral branca e negra, à excepção de JP, que quer subir à torre. – Todos aqueles degraus – afirma Dorothy. – Deve estar louco, JeanPierre. Anna está dividida. Gostaria de contemplar a vista do cimo da torre – e tirar uma fotografia para mostrar aos rapazes – mas, mais uma vez, interroga-se se JP não estará a maquinar para ficar a sós com Patricia. E, dito e feito, Patricia anuncia a intenção de subir à torre, alegando que a vista vale bem o sacrifício. Matt declara que irá com eles mas Fabio diz conhecer um bar onde tocam heavy metal, o que leva os dois a seguirem para


ocidente. – Gostaria de ver a catedral – diz Anna. – Também eu – afirma Sam. Mary está a trabalhar arduamente. Cortou já o primeiro capítulo e o livro começa agora com o inspector Malone a falar com os seus pombos. «Está melhor», pensa ela. Não dizendo ao leitor que Malone é um misantrópico viúvo que não tem ninguém com quem conversar, o facto torna-se evidente pela forma como ele conta aos pássaros os últimos desenvolvimentos no caso do estrangulador. O seu mundo – a triste casa com varanda, o bar, a loja da esquina – abre-se ao leitor quase sem que ela precise de intervir. Por enquan​to está tudo a correr bem. Uma hora depois Mary está ainda a trabalhar, cortando descrições desnecessárias ou reviravoltas da intriga, quando alguém bate à porta. – Entre – diz ela. Aldo avança então, segurando uma bandeja com um prato tapado. – Trouxe-lhe o jantar – afirma ele. – Sopa de feijão. Uma especialidade da terra. Pensei que podia comer aqui, para não perturbar o trabalho. – Que amabilidade a sua – diz Mary. – Não precisava de ter tido tanto trabalho. – Não dá trabalho nenhum – diz Aldo, pousando a bandeja numa pequena mesa perto da janela. A sopa cheira maravilhosamente e há pãezinhos acabados de cozer e um jarro de vinho. – Como é o seu livro? – pergunta Aldo. Mary não sabe ao certo se ele estará a indagar acerca da progressão do livro ou sobre o conteúdo do mesmo. Portanto, decide responder a ambas as questões. – É sobre um assassinato – diz ela. – Em Londres, onde eu vivo, mas no passado. Está a avançar bastante bem. O Jeremy deu-me alguns bons conselhos. Aldo emite um grunhido de desdém, presumivelmente pela menção a Jeremy.


– Um dia gostaria de lê-lo – afirma ele. – E eu ficaria encantada – responde Mary. – Nunca o mostrei a ninguém antes. – A ninguém? – Não. – E, pensando no assunto, Mary interroga-se se tal será muito estranho. Ao contrário de muitos dos outros autores, nunca enviou o seu livro para uma editora. O facto, sem dúvida, poupou-a a inúmeras rejeições, mas deixou-a com a desconfortável sensação de que o seu romance não existe realmente. Poderá um livro existir se ninguém o ler? – Eu gosto de ler – diz Aldo. – Por vezes sento-me na minha varanda e fico a ler durante horas. Quando fica de novo sozinha, Mary dá por si a pensar em Aldo e no que acontecerá todas as noites na sua vida quando ele sai do castello. Não sabe porquê, mas não consegue imaginá-lo sentado sozinho na sua varanda a ler um livro. Patricia dissera-lhe que Aldo era viúvo. Como o inspector Malone. Mary sorri ao imaginar substituir o inspector Malone por Aldo – qual será o seu apelido? Isso iria na certa animar o livro. As refeições iriam igualmente melhorar. Comendo a sopa com uma mão, Mary volta-se de novo para o computador. Patricia e JP chegaram ao cimo da torre, subindo, segundo o guia, os 503 degraus. Patricia está ofegante – não deve estar tão em forma como pensava – mas JP quase não evidencia cansaço. O francês debruça-se entusiasticamente sobre o parapeito. – Isto é incrível. Consigo ver o castello. Patricia segue o seu dedo com o olhar. Para lá das muralhas da cidade, por entre as colinas escuras, consegue vislumbrar as torres do castello. – Nunca me tinha apercebido antes – diz ela. – É extraordinário. A vista está a deixar Patricia ligeiramente tonta. A torre parece inclinar-se para a praça e ela consegue ver as pessoas minúsculas a deambularem lá em baixo. Conseguirá ela ver Matt e Fabio, emergindo do suado clube de música pesada? Está contente por Matt ter travado amizade com Fabio. O


rapaz parece ser uma influência bem melhor do que Graziano e Elio. Patricia apercebe-se então de que JP lhe está a fazer uma pergunta. – Há quanto tempo está sozinha? – Sozinha? – Sem o seu marido. – Ah. – Patricia é apanhada de surpresa, mas acaba por conseguir responder num tom sereno. – Quatro anos. Ele partiu quando o Matt tinha doze anos. Divorciámo-nos um ano depois. – Não deve ser fácil. Patricia não percebe se ele está a falar em relação a ela ou ao filho. – Sim – concorda ela. – Eu estou divorciado há dois anos – diz JP. – E é do meu filho de quem tenho mais saudades. – Não sabia que tinha um filho. – O Louis. Tem sete anos. – JP pega na carteira e mostra a Patricia uma fotografia de um bonito rapazinho de cabelo escuro a segurar um balão. – É encantador – diz Patricia, conforme seria de esperar. – Sim – concorda JP com tristeza. E durante algum tempo permanece em silêncio, olhando para lá dos telhados de Siena. Mas depois pergunta: – Alguma vez pensou em tornar a casar? – Não – responde Patricia, com a maior das sinceridades. – E o JP? – Não – responde o francês. – Uma vez chega. – E de repente sorri, o que lhe transforma completamente o rosto. – É uma mulher muito bonita – diz ele. Patricia permanece calada. Deviam começar a descer, pensa ela, a torre deve estar a fechar e ainda têm de se encontrar com os outros no restaurante. Mas, quando JP se aproxima e a beija, a sua única reacção é inclinar a cabeça e fechar os olhos. A viagem de regresso é incrivelmente sossegada. Dorothy e Rick estão a dormir, apoiados de forma amorosa no ombro um do outro. Até mesmo Star, que fizera uma birra no restaurante porque não serviam batatas fritas, está a dormir nos braços do pai, com os caracóis escuros desgrenhados e os


lábios franzidos. Sasha está entretido com a sua Nintendo DS e os estalidos electrónicos da guerra intergaláctica são curiosamente repousantes. Anna fecha os olhos e Sam interroga-se se ousará pôr o braço em torno dela. A noite tem sido estranha. Patricia e JP chegaram atrasados ao restaurante e a inglesa mostrara-se agitada, muito diferente da sua compostura habitual. Não traduzira o menu e, quando por fim Matt e Fabio apareceram – ainda mais atrasados –, mal parecera reparar. E fora Fabio quem tomara as rédeas, traduzindo o menu, negociando com o empregado, entretendo as crianças, conversando com Dorothy sobre os frescos da catedral – «Muito pouco decentes, na minha opinião». E agora estava a conduzi-los de regresso a casa, com o seu rosto grave e sombrio a fixar a estrada. É um bom homem, pensa Sam. Patricia tem sorte em tê-lo. A cabeça de Anna bate contra o vidro da janela e Sam anseia por a amparar com o braço. Sente cada impacto como se ele estivesse a acontecer ao seu próprio corpo. «Credo, o que se passa comigo?» Não se recorda de se sentir assim em relação a nenhuma antiga namorada. E com Jenny tudo fora tão simples. Os dois trabalhavam juntos, davam-se bem, passavam muitas noites a beber juntos nos bares da cidade. Depois Jenny deixara o banco e Sam dera por si a sentir a sua falta. Telefonara-lhe então e ela parecera compreender que aquele encontro seria diferente dos outros, das anteriores e casuais saídas pós-laborais. Tinham saído para jantar e, no caminho de regresso a casa, Sam beijara-a. E os dois tinham gostado tanto do beijo que foram directamente para o apartamento de Jenny e fizeram amor. Seis meses depois estavam a viver juntos. Agora Jenny está na Grécia com uma amiga e Sam está em Itália, sentindo-se cada vez mais obcecado por uma mulher que mal repara que ele existe. O que acontecerá quando Jenny regressar? Sam sabe que ela espera que ele abandone aquela ideia ridícula da escrita e regresse ao trabalho. Mas, apesar do seu retumbante falhanço em produzir algo vagamente parecido com um sucesso de vendas, Sam sabe que tal não irá acontecer. Não sabe bem o quê, mas algo mudou dentro de si. Enfiar-se de novo nos seus fatos às riscas é-lhe tão impossível quanto voar até à lua. É como se por ter saído da engrenagem citadina de fazer dinheiro já não pudesse


voltar. Tornar-se escritor parecera-lhe a solução perfeita. Era uma profissão portátil, de estatuto elevado, que poderia combinar com viagens a partes excitantes do mundo, na senda de novas tramas. Mas nunca contara com a possibilidade de não conseguir escrever. Talvez seja por isso que gosta tanto de Anna. Ela compreende. Também ela luta para fugir a uma vida mundana – o tal Steve parece ser um chato. Anna compreende aquelas noites de insónia em que se revê a vida e se compreende que não se fez nada, nadinha de nada. Sam não quer que o seu obituário diga: «Sam McClusky foi bancário. Não casou nem teve filhos». Mas se não conseguir escrever um livro, que raios poderá ele fazer? E quando a carrinha vira para a estrada do castello, Sam interroga-se se não deveria esquecer de vez a ideia do livro. Se não deveria ir antes para casa, arranjar um emprego qualquer – mas não num banco – e pedir Jenny em casamento. Depois, quando Anna acorda, sacode o cabelo e lhe lança um sorriso ensonado, compreende que o livro é provavelmente o menor dos seus problemas.


CAPÍTULO 15 Oitavo dia, noite ão já onze horas quando os hóspedes chegam ao castello. Patricia prepara chocolate quente, que tomam na saleta, e depois todos se retiram para os respectivos quartos. Patricia, porém, não sente vontade de dormir. Está inquieta, excitada, mas não num sentido propriamente agradável. Sente a pele extremamente sensível, como se estivesse a ficar com febre, e o coração a bater de forma descompassada. Teria sido o beijo de JP que a deixara naquele estado? Ele não é o primeiro homem que ela beija desde Sean – no ano anterior tivera uma aventura breve com um empresário de Siena – mas é, compreende ela então, a primeira pessoa que, de alguma forma, apagou ligeirissimamente a memória de Sean. Patricia estava tão habituada a viver com o fantasma do ex-marido que não julgara ser possível livrar-se dele. Mas aquele francês difícil e atraente proporcionou-lhe um vislumbre de uma existência sem Sean. «Talvez seja por isso que se sente tão dividida», pensa ela, lavando a última das chávenas do chocolate. De alguma forma, Patricia sente que tem de o fazer à mão, e não limitar-se a colocá-las na máquina de lavar. Se perder o amor residual que sente por Sean, o que lhe restará? JP é atraente, inteligente e parece ser surpreendentemente amável. Depois do beijo no cimo da torre, ele pegara-lhe na mão e os dois tinham descido os 503 degraus sem pronunciarem uma palavra. Depois, no restaurante, Patricia tivera dificuldade em concentrar-se nos hóspedes, em verificar se todos tinham compreendido o menu ou em pedir ao empregado comida especial para as crianças. Fora Fabio quem fizera tudo isso – não se pode esquecer de lhe agradecer de manhã. Ficara extremamente consciente da presença de JP ao seu lado, dos cabelos no seu antebraço, os dedos longos enroscados em torno do seu copo de vinho. E quando se virara para olhar

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para ele, o brilho nos seus olhos negros fizera-a corar. Há quantos anos não corava ela? Patricia coloca as chávenas no escorredor e contempla a imaculada cozinha. Sobre a mesa, Aldo deixou a ementa do dia seguin​te. Ela inspecciona-a rapidamente: zuppa di funghi, ravioli di spinaci, scaloppine. Como sempre, parece delicioso. E está prestes a escrever um comentário brincalhão na ementa quando repara em algo meio escondido sob o papel. Pega-lhe então. É uma edição inglesa de um livro de Agatha Christie. Reconhece-o da sua própria biblioteca. Naturalmente, não há qualquer razão para Aldo não ler os seus livros, mas a verdade é que nunca o fez antes. Patricia empurra o livro de novo para baixo da ementa. Subindo devagar as escadas de pedra, Patricia pensa em ir ver o filho antes de se deitar. Fora simpático da parte dele em tê-los acompanhado na visita a Siena, tendo até parecido recuperar o antigo temperamento: espirituoso, entusiasta, divertido. E fora tão bom com aquelas crianças terríveis. Irá dar um saltinho ao seu quarto para lhe agradecer. Patricia bate na porta do quarto do filho, recebendo um grunhido como resposta. Abrindo a porta, constata que Matt está ao computador. O rapaz muda o ecrã assim que ouve a porta abrir. – Olá, querido – diz Patricia, sentando-se na cama, que está coberta com uma colcha com as listas brancas e negras da Juventus. Nas paredes, cartazes com jogadores do clube e bandas de heavy metal disputam o espaço. Porém, presa no quadro de cortiça por cima da secretária, consegue ver uma fotografia emoldurada de Sean e Matt, tirada numa viagem de montanha-russa em Thorpe Park. Os dois estão a sorrir abertamente, embora Matt, repara ela, esteja a agarrar com unhas e dentes a barra de segurança. Sean, como sempre, está completamente alheado do perigo. – Estás a trabalhar? – pergunta ela num tom que espera ser casual, sabendo que ele não estará a fazer nenhum dos seus deveres de férias. A atitude de Matt em relação ao trabalho escolar é absolutamente irresponsável, o que, no entanto, não parece impedi-lo de ter boas notas. – Estava no Messenger. A falar com o Graziano e o Elio. Patricia sabe que não é verdade, mas resolve não o contrariar.


– Queria apenas agradecer-te por teres ido connosco hoje – diz ela. – Foi óptimo poder estar contigo, e foste uma ajuda preciosa com os miúdos da Cat. Matt solta um grunhido, mas depois vira-se com um lampejo do seu antigo sorriso. – Não me parece que ela esteja muito contente por eles terem aparecido, não achas? Patricia hesita. É uma regra sua não comentar as vidas dos hóspedes e, além disso, sente-se bastante culpada por a sua oferta especial ter sido a causa da chegada de Justin e das crianças, estragando manifestamente as férias de Cat. Mas não consegue resistir ao sorriso de Matt. – É verdade – diz então. – Não creio que esteja muito satisfeita. – Agora ouvimos um pouco menos o quão maravilhosos, especiais e talentosos são os seus filhos, não é verdade? Desta vez Patricia não consegue evitar uma gargalhada. – Nem o quão inútil é o marido. Parece-me óbvio que é ele quem mais toma conta dos filhos. – E aposto que faz a maioria das tarefas domésticas. Ao contrário do pai. Patricia olha para Matt. A sua cabeça loura está inclinada sobre o computador, o que a impede de lhe ver o rosto. – Sim – afirma ela. – O Sean quase nunca fazia nada em casa, mas tinha jeito para as crianças. Tal como tu. – Então porque não tiveram mais filhos? – pergunta Matt. Patricia fica absolutamente petrificada. Matt nunca antes colocara essa questão e, ao longo dos anos, Patricia nunca deixou de se interrogar porquê. – Não sei – diz por fim. – Pensámos em esperar alguns anos e depois… bem, simplesmente não aconteceu. Sean quisera adoptar. Uma criança da China, de África, dos bairros pobres de Nápoles. O seu altruísmo era infinito. Ela, pelo contrário, receara não conseguir amar uma criança adoptada tanto quanto o seu próprio filho. – Gostarias de ter tido um irmão ou uma irmã? – pergunta ela. Matt encolhe os ombros. – Não sei. Teria sido uma companhia, suponho eu.


Talvez seja por isso que ele se sente tão atraído pelo seu inadequado pelotão, pensa Patricia. Ao menos agora tem Fabio para lhe fazer companhia. E está a prestes a falar quando o silêncio é quebrado por um grito terrível e agudo. Mãe e filho entreolham-se e levantam-se de um salto. No corredor, Patricia volta a ouvir o grito. Vem da torre norte. E desata a correr com Matt no seu encalço. Na torre encontram a porta do quarto de Mary aberta. Patricia bate por uma questão de educação mas avança, deparando-se com Mary a consolar uma soluçante Dorothy. – Eu vi-o – grita Dorothy. – Eu vi-o. – Quem? – pergunta Patricia, aproximando-se. Dorothy, envergando uma camisa de dormir às flores, está meio sentada, meio deitada, na cama de Mary. A idosa, completamente vestida, paira ao seu lado com uma expressão constrangida. – O fantasma! – guincha Dorothy. – Vim pedir uma Aspirina emprestada à Mary. As viagens de autocarro fazem-me sempre dor de cabeça. E, assim que entrei no quarto, ouvi um barulho terrível, estridente e sobrenatural. Aproximei-me da janela e… Oh!… Vi-o! Dorothy descontrola-se de novo. Patricia, dando-lhe uma palmadinha no ombro, fica incrivelmente aliviada ao ver Rick aproximar-se, trazendo consigo uma garrafa de água e um frasco de comprimidos. – Aqui está, querida – diz ele. – Toma um dos teus Valiums. Dorothy ergue uma mão trémula, conseguindo engolir dois comprimidos. Ao fundo Patricia vê JP, Sam e Anna parados a olhar. – Está tudo bem – diz ela, tentando manter um tom jovial. – A Dorothy achou que viu alguma coisa. – E vi mesmo – afirma Dorothy, erguendo o rosto manchado de lágrimas. – Vi-o tão bem quanto a vejo a si. Olhei pela janela e ali estava ele, pairando. Apesar de não acreditar, Patricia sente um calafrio. – Pairando? – Sim. Olhei pela janela e ali estava ele, com cabelo louro e tudo, pairando


no nada. E… estava a sorrir. – A sorrir? – Sim, com um sorriso medonho e maléfico. Patricia levanta-se e avança até à janela. No andar abaixo do quarto de Mary há um parapeito estreito onde, supõe ela, um homem poderia caber, mas não ficaria a pairar no ar. Olha então para cima. Um antigo mastro de bandeira recorta-se numa silhueta contra o céu. Acima dele, uma meia-lua paira num céu sem nuvens. – Patricia – chama JP da porta do quarto. – Gostava que eu e o Sam fôssemos dar uma volta lá fora, só para confirmar que não há ninguém a rondar? – Eu também vou – diz Matt. – E eu – afirma Fabio, que acaba de aparecer no corredor, também ele completamente vestido. Patricia não quer que Matt vá, mas não o pode dizer. Agradece então a JP e os homens partem, com uma certa arrogância nos rostos, os seus passos ecoando nas escadas. – Vamos lá – diz ela a Dorothy. – Vamos todos beber um brandy. – Não devia beber depois de ter tomado estes comprimidos – afirma Dorothy, acabando no entanto por se levantar e seguir obedientemente Patricia. De: Anna Valore Data: 10 de Agosto 2007, 00.15 Para: Steve Smith Assunto: Olá borracho Olá amor! Desculpa por estar a escrever-te tão tarde, mas já estava a meio quando houve um enorme alvoroço no castello. Alguém a gritar como se estivesse a ser assassinado. Fiquei um pouco assustada, mas saí para investigar e descobri que fora a Dorothy (a senhora americana de quem já te falei) que julgou ter visto um fantasma. Lembras-te de eu te ter falado que o Aldo (o cozinheiro) nos contara uma história assustadora de fantasmas na nossa primeira noite? Era sobre uma condessa que viveu no


castelo. Ela tinha um amante, um rapaz jovem, e ele costumava visitá-la à noite. O marido ciumento apanhou-o e pendurou-o numa jaula em frente da janela da condessa, condenando-o a morrer à fome. Incapaz de suportar tal coisa, a condessa matou-o e suicidou-se. É bastante medonho, não achas? E ali estava a Dorothy a gritar que vira um corpo pendurado em frente da janela do quarto da Mary. O quarto da Mary fica na torre norte, onde alegadamente tudo isto terá acontecido. Como sabes, eu não acredito em fantasmas, mas devo admitir que fiquei um pouco assustada. Sobretudo quando a Dorothy descreveu o «sorriso medonho e maléfico» no rosto do homem. Tenho mais medo de um qualquer patife maléfico a rondar lá fora (ah!) do que de fantasmas. Mas o JP e o Sam (o francês e o antigo bancário) ofereceram-se para ir patrulhar o jardim, e a Dorothy tem de facto uma imaginação muito vívida, logo, não deve haver motivos para preocupações. A Mary, em cujo quarto tudo aconteceu, não parecia estar minimamente aflita, e declarou ir continuar a trabalhar no seu livro. Ela é muito empenhada. É a melhor de todos nós. Passámos um serão maravilhoso em Siena. É uma cidade lindíssima. Um dia temos de lá ir os dois juntos. É um amontoado de casas douradas, uma amálgama, em torno de uma maravilhosa piazza em feitio de concha. Fomos ver a catedral – é bastante singular, construída com tijolos brancos e pretos – e depois degustamos um maravilhoso jantar num restaurantezinho perto da torre. A Cat não pareceu divertir-se muito (a pobre da Star estava cansada e fez uma fita). Ela não parece estar muito satisfeita com a vinda do Justin. Espero que esteja tudo bem entre eles. Bem, é melhor ir deitar-me. O Jeremy (o tutor) pediu-nos para registarmos os nossos sonhos. Hoje vou ter, na certa, bom material! Tenho imensas saudades vossas e estou mortinha por vos rever a todos. Beijos e abraços para os rapazes. Amo-te A


As Sete Luas de Jaconda por Lupo O’Hara Capítulo 12 Com a lua entrada nos quartos, o conselho reuniu-se ao primeiro poente da lua. Os cavaleiros tinham chegado cedo, atravessando nos seus corcéis negros as areias vermelhas de Sommerslath. O seu chefe era feroz e perigoso, um homem sempre trajado de negro. Os Ocidentais foram os seguintes, marchando atrás de Wode, o seu líder. Vestiam de verde e carregavam bastões, para assinalar que pretendiam parlamentar e não lutar. Hengest não se deixou enganar. Vira a luz da batalha nos três olhos verdes de Wode e tinha-o por um guerreiro tão temível quanto o Cavaleiro Chefe. A Irmandade zarpou pelos mares brancos no seu barco de cinco mastros. Ninguém sabia quem os comandava. A Irmandade elegia o seu líder em segredo e não contava a ninguém o resultado da eleição. Cinco representantes da Irmandade juntaram-se ao conselho, mascarados de branco. – Então – disse Hengest a Fabian, o seu irmão de armas. – Por fim, começamos.


CAPÍTULO 16 Nono dia 10 de Agosto o pequeno-almoço, e depois da excitação da noite anterior, todos parecem um pouco murchos. A refeição é tomada no terraço, normalmente uma ocasião social, com os hóspedes a descontraírem com uma chávena de café antes do início da primeira sessão de escrita. Mary começa sempre o dia com um banho de piscina e Cat costuma juntar-se a Myra para os seus alongamentos e meditação diária. Mas hoje todos parecem mais calados do que o habitual. Somente Mary está igual a si própria. O seu cabelo molhado anuncia que, apesar de ter estado bem no centro do conturbado avistamento do fantasma, a sua rotina em nada foi alterada. Cat, pelo contrário, não tem sido vista a fazer alongamentos nem a meditar desde a chegada do marido e dos filhos. E hoje parece ter os olhos pesados e estar cansada. Apesar de certa vez ter dito a Anna que ter filhos não era desculpa para uma mulher se vestir mal, está longe de estar tão deslumbrante como de costume. Star derramou sumo de laranja sobre a T-shirt branca da mãe e a sua saia de ganga está amarrotada. JP parece estar igualmente cansado. Desceu em roupão para tomar o pequeno-almoço, mas só bebeu uma chávena de café simples antes de desaparecer. Sam está muito calado, escondendo-se por detrás do exemplar do jornal Times do dia anterior. Anna está com uma expressão sonhadora, ainda que com o seu vestido vermelho de verão esteja suficientemente bonita para fazer Sam vacilar. Patricia, apesar de ter dormido menos que os outros, está tão eficiente como sempre. Diz aos hóspedes que, se quiserem visitar o mercado em San

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Severino, deverão partir às nove e meia, caso contrário não haverá lugar para estacionar. – Porque é que é assim tão popular? – inquire Dorothy que, embora de todos tenha sofrido o maior choque, aparenta estar incrivelmente calma e repousada. – Bem, é o mercado semanal – explica Patricia. – Toda a população de San Severino e vilas vizinhas estará presente. É onde se abastecem para a semana. – O Aldo vai levar-nos? – pergunta Mary. – Não – responde Patricia. – É a sua manhã de folga. O Fabio será o motorista. Cat e a família pretendem ver o mercado – qualquer desculpa serve para saírem um pouco do castello. JP, que aparece completamente vestido quando os demais estão a terminar a refeição, também quer ir. Anna, Mary e Sam correm para os respectivos quartos para se aprontarem. Dorothy e Rick anunciam que ficarão em casa. – Está um bocadinho quente para nós – explica Rick, desculpando-se. – Suponho que iremos dar um saltinho à piscina. Olhando para a piscina, Patricia vê Matt a mergulhar na água. Terá de lhe pedir para sair para os Van Elsten poderem usufruir dela. Pouco passa das dez horas quando o grupo chega à vila, mas o calor já aperta. O mercado enche toda a praça, prolongando-se pelas ruas adjacentes. Anna, avançando por entre uma multidão de velhinhas com gigantescos cestos de compras, vê bancadas com peixe, queijos e carne, mas também outras vendendo roupas horríveis cravejadas de lantejoulas, animais feitos com pele de coelho verdadeira e uma variedade de minúsculos brinquedos japoneses. Compra camisolas da selecção italiana para Steve e os rapazes e um vestido de algodão para si própria – está a ficar rapidamente sem roupa. E conforme encosta o vestido ao corpo para tentar determinar a justeza do tamanho, sente-se constrangida ao ver Sam aparecer ao seu lado. – Fica-lhe bem – afirma ele, apontando para o vestido, branco e de corte simples.


– Obrigada – diz Anna, apressando-se a pagar. – E que tal isto para acompanhar? – sugere ele, pegando num colar de coral da banca ao lado. – É um pouco caro – murmura Anna. – Deixe-me oferecer-lho. – Não! Nem pensar! – exclama Anna, de forma tão exaltada que, para grande pesar do dono da banca, Sam desiste. Patricia e JP estão igualmente a passear por entre as bancas. Muitos dos comerciantes cumprimentam Patricia com entusiasmo – estão certos de que a dona do castello deve ser muito rica – e ela não pára de ouvir o quão jovem/bela/elegante está. – Tanta adulação deve ser aborrecido – murmura JP. – Nem por isso – diz Patricia, sorrindo. – Aposto que me habituaria depressa – admite JP. O par detém-se numa banca que vende azeitonas: verdes e pretas, recheadas com malagueta, anchovas, pimentos e limão, reluzem diante deles como os cem olhos de Argos. – Não lhes consigo resistir – diz Patricia –, embora saiba que o Aldo já deve ter comprado algumas. – Porquê resistir? – declara JP. Patricia lança-lhe um olhar reprovador antes de escolher cinquenta gramas de azeitonas verdes recheadas com anchovas. Guarda as azeitonas no seu cesto de verga e os dois continuam o lento progresso. – Acredita que a Dorothy tenha visto de facto alguma coisa ontem à noite? – pergunta JP. – Não! – exclama Patricia convictamente. – Foi tudo imaginação dela. O JP não viu nada quando foi lá fora, pois não? – Não – diz JP devagar, e Patricia olha para ele. – Não me diga que acredita em fantasmas? – pergunta ela, incrédula. – Bem, a minha tia alega ter visto Marie Antoinette em Versalhes. – Toda a gente vê Marie Antoinette em Versalhes. É obrigatório. JP solta uma gargalhada.


– É verdade. Mas eu não sei bem o que pensar. Se acreditarmos que há vida depois da morte, como é o meu caso, bem, então parece-me natural que haja alguma sobreposição entre os dois mundos. – Acredita mesmo na vida depois da morte? – inquire Patricia, cheia de curiosidade. – Sim. Acha assim tão estranho? Afinal, sou católico. – Católico praticante? – Bem, sou divorciado – diz JP – o que não é um bom começo. Não posso receber os sacramentos. A não ser que consiga uma anulação, naturalmente. – E é possível? – Bem, parece ser quando se tem muito dinheiro – afirma tristemente JP. – Mas não sei se o pediria, mesmo se pudesse. Seria como dizer a Louis que o meu casamento com a mãe dele não tinha existido, e eu não o quereria fazer. Tudo desemboca em Louis, pensa Patricia, que em voz alta acrescenta: – O meu marido era católico. Mas não me recordo de isso afectar grandemente o seu dia-a-dia. – Que espécie de homem era ele? O seu marido, quero eu dizer… Patricia permanece calada. Chegaram ao fim do mercado. Consegue ver Cat e Justin sentados num café com os filhos. E, por alguma razão, não lhe apetece estar com eles. – Por aqui – diz, empurrando JP por uma rua abaixo, atravancada com bancas bastante mais exclusivas. – O meu marido – diz ela. – Bem, era charmoso, bonito, um idiota chapado em relação a dinheiro. – Patricia sorri com amargura. – Era excelente nas coisas mais inúteis. Sabia andar de pernas para o ar. Chegou até a fazer um curso de artes circenses. Conseguia assobiar qualquer música. Conseguia montar um cavalo sem sela. Desenhava lindamente. Mas não sabia mudar uma lâmpada. – Portanto, não ajudava muito no negócio? – Sim, pode-se dizer que não. O casal detém-se junto a uma loja que vende postais. JP compra variadas e elegantes vistas da Toscana. E, ao pagar, pergunta casualmente: – Quando poderei estar a sós consigo, Mrs. O’Hara?


O coração de Patricia começa mais uma vez a bater descompassadamente. – O que quer dizer com isso? – Longe de toda esta gente. Longe dos filhos barulhentos da Cat, da Dorothy e dos seus fantasmas e do Aldo a precisar de discutir as receitas de massa da ementa do dia seguinte. Ligeiramente magoada com a censura à comida de Aldo, Patricia diz: – Bem, na quinta-feira, na festa do Ferragosto, depois da refeição, as pessoas costumam descer a encosta e fazer o que lhes apetece. – Terei então de esperar até lá? Patricia encolhe os ombros. E JP solta uma gargalhada, guiando-a até à banca vinícola de Gennaro. – Bem, então terei de esperar para fazer o que me apetece. Venha daí, vamos rir-nos do Chianti. Mary, de saco bem apertado contra o corpo, está a achar o mercado bastante confuso. Tantas bancas, tanta gente, tanto barulho, cores, confusão. Pára para admirar um caixote cheio de adoráveis coelhinhos. Depois olha para cima e vê que está à frente de um talho. Engalanada por uma terrível fieira de salsichas cor de sangue, uma cabeça de porco inteira olha-a, sinistra, de soslaio. Cada um daqueles fofos animaizinhos, compreende então, está destinado à panela. Mary apressa-se a avançar. Se não gostasse tanto de carne, tornar-se-ia vegetariana de imediato. Outra banca vende peixes igualmente assustadores: lulas, polvos, camarões gigantes com cabeças peludas medonhas. O peixeiro manuseia a escorregadia mercadoria com uma confiança descontraída, entregando-a com um chorrilho do que na certa são gracejos divertidos a mulheres de olhar perspicaz. Mary, que secretamente tem andado a trabalhar no seu italiano, fica desiludida ao descobrir que não compreende uma palavra do que estão a dizer. – Mary! Ouvindo uma palavra que efectivamente reconhece, Mary dá meia-volta. Na banca do pão Aldo sorri para ela. E a inglesa apressa-se a avançar. Pelo menos aquela banca não a parece assustar.


Aldo apresenta-a ao dono da banca, um homem de rosto bem-disposto com uma farta cabeleira branca. – Mary, apresento-lhe Massimo, o meu irmão. – Seu irmão? – Sim. Lembra-se de eu dizer que o meu pai era padeiro? Bem, o Massimo é o filho mais velho. Herdou o negócio. Com um meneio, Massimo beija a mão de Mary, presenteando-a com um saco de pãezinhos em feitio de estrela. Aldo diz algo a Massimo em italiano e o irmão ri-se. – Estou a falar de si ao meu irmão – explica Aldo, dando o braço a Mary. – A maravilhosa senhora inglesa que gosta da minha comida. – Faz-me parecer uma gulosa – diz Mary. – Gorda. Aldo fica horrorizado. – Gorda? Não é nada gorda. Tem um corpo perfeito. Nunca antes, em todos os seus setenta e quatro anos, o seu corpo fora qualificado de perfeito. Efectivamente, e para além dos – ocasionais – médicos, nunca ninguém opinara sobre o corpo de Mary, que se imobiliza no meio do mercado a abarrotar, segurando na mão o saco de pãezinhos, sentindo-se invadir por uma avassaladora mistura de prazer e embaraço. – Agora fi-la corar – diz Aldo num tom contrito. – Venha, vamos tomar um cappuccio a qualquer lado. E Mary deixa-se levar dali, sentindo-se como se o seu corpo, muito longe de ser perfeito, pertencesse a outra pessoa. Cat e Justin escolheram o café onde estão porque, embora não sendo o mais atraente da rua, tem um cavalo mecânico enferrujado que, ao ser alimentado com euros, balança suavemente para a frente e para trás. Star já gastou cerca de dez euros em viagens e parece apostada em continuar por mais algumas. Sasha, agarrado à sua DS com uma expressão enfadonha, está sentado na frente dos pais na única mesa exterior. Dentro do café uma televisão de ecrã gigante está ligada com o som altíssimo. As notícias continuam a ser as mesmas: em Modena, o mesmo rapaz desaparecido, presumivelmente raptado; os mesmos fogos florestais alastram ainda em


Nápoles; e, junto aos lagos italianos, as celebridades continuam a casar. Justin está a beber um cappuccino enquanto Cat se entretém com uma água mineral. Ambos contemplam Star, vendo-a vergastar o cavalo mecânico com um chicote imaginário. – Em tempos tive um pónei – diz Cat num tom sonhador. – Chamava-se Miminhos. Justin não parece ter escutado. – Não devia ter vindo – diz ele abruptamente. – Porque dizes isso? – pergunta Cat. – Bem, é evidente que não te deixou propriamente feliz – afirma Justin, passando-lhe mecanicamente outro euro. – Quando recebi o e-mail da Patricia, achei que seria bom para ti, aparecermos os três assim de surpresa. Mas ter as crianças aqui está a ser um verdadeiro desastre. – Não está, não – protesta Cat. – Está sim – insiste Justin. – Os outros hóspedes acham-nos claramente irritantes. Faz demasiado calor para eles, não há muito para fazer e tu estavas a divertir-te mais antes de chegarmos. Cat permanece calada. Está a pensar nas noites passadas no terraço, no banho à meia-noite, no corpo magro e bronzeado de Fabio a cortar a água. – O Steve avisou-me – diz Justin. – Aconselhou-me a não vir. Disse que tu e a Anna mereciam estar algum tempo sozinhas. Longe de nós e das crianças. – O Steve! – exclama Cat num tom sarcástico. – O que sabe ele? – É um fulano esperto – afirma Justin. – E estava certo, não estava? Cat pensa na sua escrita. No facto de Jeremy não ter sugerido uma única vez que se encontrassem em privado. E em Sam, que, afinal, está claramente apanhadinho por Anna e não por ela. – Não – diz ela. – Já estava a correr mal antes de vocês terem chegado. Sam e Anna estão num estabelecimento bastante mais sofisticado na outra ponta do mercado. Há mesas com guarda-sóis vermelhos e pequenas taças com azeitonas – pelas quais será cobrada uma taxa absurdamente cara. Anna está a beber uma deliciosa mistura de sumo de limão fresco e água


com gás. Ela adora limões, paixão essa que, com frequência, leva Steve a especular se ela não será de outro planeta. Sam, por seu lado, parece achar encantador. Sam está a beber cerveja. Anna e Sam estão também a discutir o fantasma de Dorothy. – Não havia nada lá fora – diz Sam. – Nem sequer pegadas. Anna estremece. – Isso só piora tudo. Sam aproxima-se um pouco. – Não está com medo, pois não? – Não – responde Anna. – Mas julgo que a Dorothy estava. – A Dorothy! – exclama Sam. – Com todos os comprimidos que toma, surpreende-me que não veja coisas bem piores. – Bem, ela teve uma vida terrível. – Sim, sim, casada com um texano rico com mais dinheiro do que pode gastar… – Sabe bem a que me refiro. Estou a falar da infância dela. – Teve então uma infância complicada. Já é altura de a esquecer – afirma Sam, ainda muito contrariado por a sua própria meninice não proporcionar melhor material. – Não creio que seja assim tão fácil – diz Anna. Permanecem ambos sentados sob o guarda-sol vermelho, vendo as pessoas regressarem do mercado. Há alguns turistas, facilmente identificáveis pela roupa – os homens italianos só usam calções para jogar futebol –, mas San Severino não figura em muitos guias turísticos, o que faz com que a maioria dos transeuntes sejam toscanos carregados com pão, queijo, vinho e até mesmo uma galinha viva. Sam e Anna, olhando e conversando distraidamente, espantam-se ao verem Aldo e Mary – ele a carregar vários embrulhos grandes e ela um pequeno saco de papel – a passarem por entre a multidão, desaparecendo dentro de um café vizinho – um onde não se tinham atrevido a entrar por ser ostensivamente para os locais, sem esplanada, apenas com velhotes a jogar às cartas sentados em cadeiras de cozinha. Sam e Anna entreolham-se.


– O que estão eles a fazer? – interroga-se Sam. – O mesmo que nós – sugere Anna. – A tomar uma bebida. – Hum, cheira-me a esturro – diz Sam. Poderá Aldo, efectivamente, estar a fazer o mesmo que ele? – Aposto que lá no fundo o Aldo tem espírito de rapazola. Mary está a achar o café de Aldo bastante assustador. É um lugar escuro e cheio de fumo, repleto de italianos que gritam entre si. A clientela, composta quase exclusivamente por homens, está entretida a ver um jogo de futebol na televisão. Metade dos telespectadores está a gritar com os jogadores e os restantes parecem estar apenas a gritar. Mary assume, portanto, que se encontram no meio de uma gigantesca querela de fundo desportivo. E espera que não descambe em violência. Aldo regressa do balcão com duas chávenas pequenas. – Un cappuccio – diz, pousando uma das chávenas na frente de Mary. – Qual é a diferença entre o cappuccio e o cappuccino? Aldo sorri. – O cappuccino é para os turistas. A gritaria em volta da televisão sobe de tom. – Vai haver luta? – pergunta Mary num tom nervoso. – Luta? – repete Aldo, espantado. – Porque haveria de haver luta? – Bem, eles estão a gritar uns com os outros. Aldo solta então uma gargalhada tão sonora quanto os gritos dos outros homens. – Os toscanos – afirma ele com orgulho – têm as vozes mais potentes do mundo. – E gesticula na direcção dos homens ao balcão que, agora, misteriosamente, estão a trocar pancadinhas nas costas e até abraços. – Estes rapazes são os melhores amigos do mundo. Estão felizes a ver a Juventus jogar. E quando estão felizes, gritam. Nós não sussurramos como os Ingleses. – Aldo imita então uma fraca e esganiçada pronúncia inglesa. – Oh, peço desculpa, perdão… Mary ri-se. – Quando andava na escola, diziam-me sempre que a minha voz era


demasiado sonante. – Nunca – exclama Aldo. – Tem uma voz maravilhosa. Como a da Miss Marple. Mary não sabe bem o que pensar. E continua a bebericar o seu café – delicioso – e a olhar para Aldo, que está recostado na cadeira de forma muito descontraída. Enverga uma camisa cor-de-rosa que nenhum inglês da sua idade se atreveria a usar. É um verdadeiro janota, pensa Mary, com o seu cabelo branco bem aparado e unhas que parecem cuidadas por um profissional. As suas mãos, porém, são mãos de camponês, largas e fortes. – Então, Mary – afirma Aldo. – Gosta de Itália? – Oh – exclama ela. – Adoro Itália! É tudo o que imaginei e muito mais. Aldo sorri de orelha a orelha e está prestes a responder quando um dos homens que estavam aos gritos se aproxima, começando a conversar animada e ruidosamente com ele. Aldo apresenta-o a Mary, recusando-se que a ignorem. O homem dos gritos curva-se respeitosamente. – Senhora inglesa? Eu falar muito bom inglês. Gosta do Aldo? Mary cora mas consegue dizer corajosamente: – Gosto muito dele. – Muito! – grita o homem, manifestamente encantado. – Aldo, ela gosta muito de ti! Senhora, come a comido do Aldo? – Sim, ele é um cozinheiro maravilhoso. – Sim! Sim! Maravilhoso! O melhor. Já o ouviu cantar? – Não. – Pensa que ele é bom cozinheiro, espere até o ouvir cantar. – O Massimo é que sabe cantar, não eu. Várias vozes fortes aproximam-se, iniciando um barulhento debate sobre a mestria culinária de Aldo versus as qualidades vocais e panificadoras de Massimo. Mary consegue compreender uma palavra em cada cinquenta. O bom humor e a brincadeira são notórios, acompanhados por uma infindável gesticulação e gargalhadas estridentes. Aldo não diz muito, sorrindo para ela de forma quase apologética enquanto tenta traduzir, embora por vezes desista com uma gargalhada e um encolher de ombros. Depois o primeiro


homem que gritou começa a cantar, encorajando Aldo para o acompanhar. Ao balcão, o barulho – já de si ensurdecedor – alcança novos máximos. Mary tenta ver as horas no relógio de Aldo. E se perder a boleia da carrinha? Resolve então puxar timidamente a manga do cozinheiro. – Tenho de ir. Aldo liberta-se dos seus amigos barulhentos. – Não se preocupe. Eu levo-a. Vou avisar a Patricia. – E pega no seu telemóvel. Chegados à rua, Mary olha em volta à procura do carro de Aldo. Ele repara na expressão dela e gesticula de forma teatral para uma pequena motorizada vermelha parada junto ao passeio. – Aqui está a fiel Vespa. – Isso? – Sim. Importa-se de viajar de mota? E assim Mary, que nem de bicicleta alguma vez tnha andado antes, sai voando pela poeirenta estrada de montanha abaixo, com os braços apertados em torno da camisa cor-de-rosa de um homem que mal conhece, o sol a queimar-lhe o rosto e o vento a rugir-lhe nos ouvidos como mil toscanos a assistirem a um jogo de futebol.


CAPÍTULO 17 Nono dia, tarde epois do almoço, que é servido um pouco mais tarde que o habitual, Jeremy conduz uma sessão de escrita. O assunto é «Descrição de lugares» e o tutor divaga sobre as dificuldades de descrever cenários, de fazer o leitor ver um lugar sob uma perspectiva nova. – As piores descrições – afirma Jeremy – limitam-se a descrever as coisas. Objecto: uma casa com paredes brancas. Objecto: uma colina. Objecto: o sol a pôr-se. Descrição: «O sol põe-se por detrás da casa de paredes brancas na colina.» Até aqui, nada. Podíamos conseguir isso com uma fotografia. As melhores descrições usam as coisas para reflectir a atmosfera ou o tema do livro. Pensem em Wilkie Collins a escrever sobre Shivering Sand em A Pedra da Lua. A solitária e fatal língua de areia reflecte o estado de espírito de Rosanna Spearman, que aí morre, e a descrição é vista através dos olhos de Gabriel Betteredge, que odeia o lugar. Jeremy lê então:

D

«A derradeira luz da tarde começava a desvanecer-se; e sobre o desolado lugar pairava uma imóvel e terrível calma… O mar interior parecia perdido e baço, sem bafo de vento para o agitar. Bocados de vasa imunda, de um amarelo esbranquiçado, flutuavam na superfície morta da água.» – Está aqui tudo. As palavras «morta», «imóvel», «perdido», que nos dizem o que irá acontecer, até mesmo «desvanecer-se». A voz de Betteredge. Quem mais usaria a frase «vasa imunda»? Podemos até, se quisermos ir mais longe, ver o «mar interior» como um reflexo da mente


interior e a vasa a flutuar na superfície sendo as emoções negativas que ascendem com o decorrer do livro. Isto não é uma mera descrição. Tem um propósito. Não estou a falar de falácias patéticas e sim de algo bastante mais profundo. Portanto, se pegarmos na nossa frase inicial, beneficiaria bastante, ainda que não ficasse terrivelmente interessante, se disséssemos, «O pôr-do-sol pintou de um vermelho baço a distante casa branca». Assim, ao menos, começamos a ser sugestionados para o que poderá estar a acontecer dentro da casa. Há uma sensação de transição, de acção. Branco a virar vermelho. O vermelho pode sugerir derramamento de sangue, menstruação ou simplesmente vergonha. A distância sugere isolamento, e não apenas posicionamento. A frase está agora imbuída de significado. Sam agita-se desconfortavelmente na cadeira. Não tem grande paciência para aqueles aspectos literários, e a referência à menstruação foi a gota de água. – Como podemos saber se o Wilkie Collins tinha essa intenção quando escreveu? – pergunta então, num tom um pouco agressivo. – Oh, pode estar certo disso – diz Jeremy com um sorriso. – Consciente ou inconscientemente, era isso que pretendia. Afinal, passou grande parte da vida a fumar ópio. Nunca subestimem a influência do inconsciente. Daí a importância dos vossos diários de sonhos. A expressão de Sam torna-se carrancuda. Os seus sonhos mais recentes não são de todo adequados ao escrutínio público. – Não podemos simplesmente descrever uma coisa porque essa coisa existe? – pergunta ele. Jeremy torna a sorrir. – Talvez, se estiver a escrever um guia turístico. Mas num romance, a descrição tem de cumprir um objectivo. Esta noite assistiremos ao filme Viagem Sentimental e reflectiremos sobre como o cenário italiano é usado para salientar acontecimentos e emoções. Não o acho particularmente bem conseguido. Muitas vezes a Itália não desperta nada de bom nos escritores. Nem nos realizadores. Anna está a roer o seu lápis. Na verdade, acha a frase original da casa de paredes brancas bastante melhor que a segunda, mas não saberia explicar


porquê. E está também preocupada com Cat, que não apareceu para a sessão com Jeremy. Justin levou as crianças para um parque aquático próximo, dando-lhe teoricamente tempo para trabalhar. Mas, assim que ele partira, Cat anunciara a sua intenção de dormir toda a tarde, alegando estar com uma terrível dor de cabeça. Anna receia não estar a dar atenção suficiente à amiga. Tem tentado deixá-la sozinha com Justin, mas talvez Cat se sinta negligenciada. Era curioso: passados tantos anos de amizade, até então Anna nunca pensara que Cat poderia precisar de algo seu. Cat sempre teve tudo, sempre soube todas as respostas, sempre se mostrou verdadeiramente segura de si. Anna não compreende bem o que terá mudado, mas a verdade é que algo está diferente. Talvez tudo tivesse começado na noite em que Cat descobrira que ela e Steve não eram casados. Cat parecera ficar tão ofendida por ela não lhe ter contado antes. Anna ficara surpreendida, pois não sabia que tinha poder para ferir os sentimentos da amiga, sentimentos que, até então, sempre lhe tinham parecido tão serenos e perfeitos como tudo o resto nela. E depois, com a chegada de Justin e as crianças, Cat parecera ficar um pouco perdida. Como é natural, Anna está habituada a ver Cat com os filhos, mas normalmente isso acontece na casa da amiga, onde há uma panóplia de coisas para os entreter. Ali, na Toscana, é notoriamente mais difícil. «Tenho sido uma má amiga», pensa Anna. Devia ter-se oferecido para ajudar com as crianças em vez de andar a passear com Sam. Depois da sessão irá ter com Cat, levar-lhe um chá e conversar um pouco com ela. Mary fala então do fundo da sala. – Mas nem todas as frases terão de transmitir significado – objecta ela. – Isso não tornaria o livro um tanto indigesto? Não serão precisas passagens mais singelas para contrastar com as partes mais dramáticas? Anna admira a forma como Mary se explica. Mary, que não teve educação universitária – «Não era costume as raparigas fazerem-no no meu tempo» –, é com frequência bastante mais concisa e eloquente do que os que a têm. – Nenhuma parte do livro deve ser singela – diz Jeremy num tom algo severo. – Concordo em variar o tom emocional, mas isso não significa que as frases não devam ter significado. É perfeitamente legítimo fazer


descrições num tom singelo e desapaixonado se quisermos, por exemplo, reflectir um narrador desapaixonado. Mary não parece ficar convencida. – Então e se, por exemplo, n’O Código Da Vinci, for preciso descrever um lugar meramente por causa do enredo? – pergunta Sam, levando Jeremy a estremecer ao ouvir o título odiado. – O estilo não deve nunca submeter-se ao enredo – afirma o tutor pomposamente, olhando depois para o seu relógio. – E é tudo por agora, creio eu. Depois de assistirem ao filme desta noite, gostaria que produzissem uma breve descrição de uma cena toscana, tentando evitar os clichés do costume. Digam-me algo de novo sobre a Toscana. E não descurem o vosso diário dos sonhos. Os hóspedes deixam lentamente a sala. Sally aborda Jeremy com uma elaborada inquirição sobre personificação, mas o tutor, vendo Anna a passar, afasta-se dizendo: – Com licença… Jeremy intercepta Anna no corredor. – Esteve muito calada hoje – afirma. – Está tudo bem? – Sim – responde Anna, desculpando-se. – Creio que estou um pouco cansada. – Porque não nos encontramos hoje para uma sessão particular? Depois do jantar. – Mas não é nessa altura que mostram o filme? – Oh, não se preocupe com isso – diz Jeremy num tom jovial. – É uma perfeita tolice. Um bando de actorzecos a rodopiar em trajes antigos. – Mas assim não poderei fazer o trabalho. – Poderá sim, com as minhas indicações pessoais – insiste Jeremy. Patricia prepara-lhe um tabuleiro com chá e biscoitos e Anna leva-o até à porta do quarto de Cat. Bate à porta suavemente. – Sou eu. A Anna. Após um breve silêncio, Cat diz: – Entra.


Cat está completamente vestida, mas aparenta ter estado na cama, pois os cobertores estão amarrotados. Anna nunca antes viu aquele quarto – Cat mudara-se para uma «suíte familiar» depois da chegada de Justin e das crianças. É longo e estreito com vista para um dos lados do castelo, sobre as árvores e os campos de ténis. – Estás melhor? – pergunta Anna. – Sim. Não. Não sei – diz Cat, passando distraidamente os dedos pelo cabelo, num gesto que parece indicar ter acabado de acordar. – Acordei-te? E para grande espanto de Anna, os olhos de Cat enchem-se de lágrimas. – Não. É óptimo ver-te. Anna senta-se na cama. – Cat! O que se passa? – Nada. – E Cat limpa os olhos com as costas da mão. – Oh, não sei. Sou uma parva. – Não, não és – diz a amiga, fazendo-lhe festas no braço, pensando que nunca tinha visto Cat chorar. – É que… – afirma Cat procurando um lenço. – É óptimo ver o Justin e os miúdos, como é óbvio. Só que, antes deles terem chegado, eu consegui enganar-me a mim própria. – Enganares-te a ti própria? – Oh, sabes como é. Achar que era jovem e… e bonita… e que um dia podia vir a ser escritora. – Mas tu és jovem, bonita e vais ser escritora. Cat sorri tristemente. – És uma querida, Anna, mas estou quase com quarenta anos e nunca serei mais do que uma antiga consultora de escrita publicitária. – Então e as crónicas da Mamã Maravilhosa? Cat solta uma gargalhada bastante sonora. – São um lixo. Lixo do princípio ao fim. – Não são nada! – São sim – diz Cat com enfado. – Reli-as ontem à noite. Não são de todo um livro. São um mero conjunto de ideias que recolhi de outros lados. O


Jeremy sabe que não prestam. E é por isso que não sugeriu uma sessão privada comigo. Anna cora. – Está a encontrar-se à vez com todos. Cat olha-a bem nos olhos. – Quantas vezes já lá estiveste? Três? Quatro? Ele sabe que tu tens potencial, a diferença é essa. Até mesmo a Mary e o seu curioso livrinho de detectives. Ele acha-o melhor do que o meu. – Não sabes se isso é verdade. – Sei sim. Ele fala com ela de outra forma. Com respeito. Ele respeita-te, Anna, a ti e à Mary. Nós, os outros, podemos ir dar uma curva. – Bem, então ele está errado – diz Anna num tom firme. – É um bocadinho idiota. – É um palerma, mas tem razão a este respeito. O melhor que tenho a fazer é ir para casa e voltar a ser uma simples dona de casa. – E os seus olhos enchem-se de novo com lágrimas. Anna dá-lhe uma palmadinha amiga no ombro, pensando no que lhe poderá dizer. Não consegue deixar de pensar que a existência caseira de Cat, com fundos ilimitados e uma empregada a tempo inteiro, não é propriamente o que a maioria dos mortais consideraria a vida típica de dona de casa. Mas, melhor do que ninguém, compreende a vontade de fazer algo diferente – para se afastar do estatuto da maternidade e da lida da casa. – Tu não és uma mera dona de casa – afirma por fim. – Ninguém o é. E, se isto não resultar, poderás fazer outras coisas. Podes voltar a trabalhar em part-time. Fazer voluntariado. Integrar o conselho administrativo de uma escola. Há imensas possibilidades. – Sim e todas elas aborrecidas – diz Cat amargamente, parando contudo de chorar. Senta-se na cama e assoa o nariz. Uma expressão um pouco mais animada inunda-lhe o rosto. – Há uma coisa boa, no meio disto tudo – acrescenta. – O Justin disse que me leva às Caraíbas no Natal para compensar o fracasso destas férias. Passa-me cá esse chá.


CAPÍTULO 18 Nono dia, noite ally está surpreendida por estar a gostar do filme. Já assistiu várias vezes à projecção – afinal, esta é a terceira vez que participa no curso –, mas antes estivera sempre contaminada pelo desprezo de Jeremy. Desta vez Sally está a deixar-se levar pela história. Dá por si a deleitar-se com a beleza da Riviera italiana à medida que a sombria e velha casa desperta para o sol. Dá por si a desejar que Miranda Richardson volte para o marido. Polly, a bonita celebridade, faz-lhe lembrar Cat, mas nem mesmo isso parece estragar o seu prazer. E, no final, dá por si a limpar as lágrimas. Sally está chocada. Não se considera de todo uma mulher sentimental. Nunca lê histórias de amor, preferindo antes thrillers com uma boa dose de horror – e não possui animais de estimação. Não envia postais lamechas, não compra acessórios Hello Kitty e nunca assiste a filmes de Richard Curtis. E acredita que o seu casamento com David destruiu eficazmente quaisquer sentimentos requintados que pudesse ter. Sally e David tinham-se conhecido na universidade – em Cardiff –, tendo casado com vinte poucos anos. Tinham sido imensamente felizes até os problemas mentais de David – até então suprimidos por químicos e pela euforia natural da vida estudantil universitária – se terem manifestado de forma violenta. Os vinte anos seguintes tinham sido um pesadelo de psiquiatras, comprimidos fortíssimos, breves melhoras e flutuações de humor progressivamente mais aterradoras. Quando, por fim, assinara os formulários de internamento, sentira apenas um enorme cansaço. Ao menos assim poderia dormir alguma coisa. Mas também devia haver culpa, pois quando David se evadira da instituição e se enforcara num parque infantil próximo, o seu primeiro instinto, as suas primeiras palavras, vociferadas a

S


uma simpática mulher polícia, tinham sido: «A culpa é toda minha». Começara a escrever como forma de libertação. Sentia uma satisfação perversa em garantir que, por mais violento que David tivesse sido, aconteciam coisas piores nas suas histórias. Enviara alguns manuscritos para editoras mas só recebera bruscas cartas de rejeição. Dois anos após a morte de David, quando lera que um conhecido autor chamado Jeremy Bullen iria dirigir uma master class de escrita criativa no festival de Marlborough, parecera-lhe que a Providência lhe estava a responder. Frequentara os seminários e, assim que vira Jeremy – alto, com barba, incrivelmente sério – soubera que por fim encontrara o seu homem ideal. E tem-no perseguido desde então. Naturalmente, ficaria horrorizada com tal descrição dos seus actos. É verdade que todos os dias insere o seu nome no Google e verifica a posição de Mergulho de Barriga nas tabelas da Amazon – porque não escreveu ele outro livro magistral? Frequenta todos os cursos de Jeremy, sentindo-se secretamente confiante de que conhece todas as palavras que ele alguma vez escreveu. Mas em todo este tempo, quase nunca esteve a sós com o tutor. Jeremy nunca se entusiasma muito com a sua escrita. Certa vez elogiara um conto – sobre uma enfermeira do turno da noite num hospital psiquiátrico –, mas normalmente aconselha-a a rasgar o manuscrito em que está a trabalhar e a começar de novo. Mas nem mesmo isso a desencoraja. Ela própria se espanta com a sua tenacidade. Em casa, reconstruiu a sua vida, tendo iniciado um bem-sucedido negócio de jardinagem e sendo vista pelos amigos como uma presença bem-disposta e ligeiramente excêntrica. Uma «porreiraça». As poucas pessoas que conhecem a história de David compreendem que ela queira esquecer o passado. Os demais interrogam-se sobre a razão de ela nunca ter voltado a casar. Afinal, ainda é atraente – mesmo com o cabelo flamejante – e é animada e divertida. Já reparou, porém, que as pessoas começam a dizê-lo cada vez menos. Dentro de cinco anos fará sessenta primaveras. Porque está então uma jardineira de cinquenta e cinco anos e cabelo avermelhado sentada no escuro a chorar por causa de um fraco melodrama de época? Deve ser do calor, diz a si própria. Demasiado vinho e pouco


descanso. Tem tido de facto dificuldade em dormir nestas férias, mesmo quando a noite não é dilacerada pelos gritos de Dorothy clamando ter visto fantasmas. Os seus comprimidos de dormir homeopáticos não parecem estar a fazer efeito e acorda com frequência às três da manhã, ficando a conjecturar sobre a sua vida e sentindo-se culpada. Sabe bem que isso não é nada saudável. A culpa, como tão bem recorda da sua vida com David, é uma emoção comodista. Sally olha à sua volta. Cat parece igualmente chorona, mas Mary está tão calma e plácida como sempre. Dorothy soluça prazenteiramente, secando os olhos com um lenço de renda. Rick está a dormir e Sam parece enjoado. Não há sinais de Jeremy ou Anna. Sally resolve levantar-se. Precisa de apanhar ar fresco. Chegada à porta, encontra Sam. Ele continua com uma expressão soturna e Sally conclui que é um filme de mulheres. – Vou dar uma voltinha – diz ela. – Que bela ideia. – E, sem acrescentar palavra, Sam acerta o passo com o dela. Sally fica ligeiramente constrangida. Não tem conversado muito com Sam mas, de uma forma sombria, considera-o bastante atraente. Os dois descem os degraus baixos do lado da casa, em direcção à piscina. Sam não responde aos esforços de Sally para entabular conversa, não parecendo estar interessado em saber os nomes latinos das plantas. O par acaba a caminhar em silêncio. A noite continua quente e o cheiro a lavanda paira no ar. Os bosques pulsam com o barulho dos grilos. Chegam à piscina, estática e iluminada na escuridão. Dois terraços acima, a luz está acesa no quarto de Jeremy. Pelas portas abertas chega a extasiante música de uma ária operática. – Estão a ouvir música – diz Sam a Sally. Ambos sabem de quem estão a falar. Mas, depois, outro barulho junta-se ao excitante vibrato de Maria Callas. Uma voz de mulher, gritando irada ou aflita: – Não! – Anna! – exclama Sam, olhando selvaticamente em volta. A varanda está bastante acima deles, mas por causa do declive da colina, as paredes são


baixas do lado do edifício. Sam voa pelos degraus acima. A parede da varanda do quarto de Jeremy ergue-se a menos de dois metro do chão. E, apoiando a ponta do pé num tijolo partido, Sam eleva-se com facilidade. Sally permanece irresoluta nos degraus. Mas depois a curiosidade sobrepõe-se e também ela trepa a parede. Quando Sally entra no quarto de Jeremy, a primeira coisa que vê é o tutor estatelado no chão com Sam por cima. Anna está sentada na cama com uma expressão horrorizada. Maria Callas continua a cantar, anunciando ao mundo que vive para a arte. – Meu Deus, o que foi fazer? – balbucia Sally, sem ter a certeza a quem se refere. – É um louco – afirma Jeremy do chão. – Chamem a polícia. – Estava a molestá-la – grunhe Sam, que continua com os punhos cerrados. – Não o pode negar. – Não estava nada a molestá-la – protesta Jeremy. – Estava apenas a beijála. – A beijá-la? – inquire Sally, espantada por a frase lhe ter saído tão guinchada. E, momentaneamente, todos se voltam para ela. – Mas ela não queria ser beijada – diz Sam num tom ameaçador. – Pois não? Jeremy consegue sentar-se por fim. – Parece que não – admite cabisbaixo. Anna fala então pela primeira vez. – Ouçam – diz ela. – Foi tudo um mal-entendido. O Jeremy e eu estávamos a conversar e ele deve ter interpretado mal os sinais, ou algo assim. Jeremy aceita prontamente esta versão dos acontecimentos. – A Anna deu-me os sinais errados – diz ele. – Não foi isso que eu disse – retruca Anna. Segue-se um breve silêncio. – Quando eu entrei – afirma Sam –, ela estava a debater-se. O Jeremy estava a forçá-la. – Disparates – protesta Jeremy, pondo-se de pé. – Quando irrompeu quarto


adentro, sem ser convidado, eu estava simplesmente a abraçá-la. – Estava praticamente a violá-la. – Tretas! – Parem! – grita Anna, levantando-se também. E os quatro ficam parados a olhar uns para os outros, como actores numa farsa amadora. A música pára e o quarto parece encher-se de silêncio. – Parem com isso – diz Anna. – O Jeremy e eu desentendemo-nos, foi só isso. É absurdo usar termos como violar. Obrigada por tentar ajudar, Sam, mas creio que o melhor é irmos todos embora, prometendo não voltar a tocar no assunto. Tanto Sam como Jeremy parecem apostados em dizer mais alguma coisa, mas a expressão de Anna é tão severa que ambos permanecem calados. – Boa-noite – diz Anna saindo majestosamente do quarto. Sam dá meio passo na direcção de Jeremy – que recua – e depois vira-se abruptamente, seguindo Anna. Sally e Jeremy ficam parados a olharem-se mutuamente. – Bem – exclama Sally – foi uma noite e tanto. Sente-se estranhamente excitada, como se tivesse estado a assistir a uma peça particularmente entusiasmante. A atmosfera melancólica de Viagem Sentimental desapareceu por completo. Jeremy está agora encostado à parede. Volta-se e avança até ao frigorífico. Pega numa garrafa e, após alguma hesitação, em dois copos. – Aquele Sam McClusky é maluco – diz ele. – Eu estava apenas a abraçar a rapariga. Toma uma bebida? – Pode ser – responde Sally.


CAPÍTULO 19 Décimo dia, sábado 11 de Agosto De: Anna Valore Data: 11 de Agosto 2007, 08.30 Para: Steve Smith Assunto: Olá borracho Olá amor! Como vão vocês, tu e os rapazes? Os ouvidos do Jakey estão melhores? Esqueci-me de dizer que ele devia usar os tampões na piscina… Anna pára de escrever. O sol está a entrar-lhe pela janela aberta e, lá fora, consegue ouvir os roucos gritos toscanos de Aldo alternados com o timbre de voz mais calma de Fabio. Ouve a palavra «Firenze». Claro, hoje é o dia da visita a Florença. Decide então que não irá. Está imenso calor e a ideia de poder ficar encurralada na carrinha com Jeremy – ou Sam – fá-la estremecer. É curioso. Sente-se tão zangada com Sam como com Jeremy. Sozinha, teria lidado perfeitamente bem com Jeremy. Fora a intempestiva intervenção de Sam que tornara tudo tão constrangedor. Mesmo agora sente as faces arderem ao recordar-se de Sam sobre o corpo derrubado de Jeremy, com Sally a contemplar avidamente a cena. Ontem visitámos o mercado local, que é verdadeiramente pitoresco. As pessoas estavam a comprar galinhas e coelhos para levar para casa para comer. Não contes aos rapazes! À tarde tivemos uma sessão de escrita e, à noite…


À noite fui ao quarto do Jeremy e ele pôs música, o que na altura achei um pouco estranho. Devia ter percebido que algo se passava quando nos sentámos no sofá e não à mesa. Ele começou a falar da minha escrita, dizendo que lhe faltava paixão, mas que conseguia perceber que no fundo eu era uma pessoa fogosa. Senti-me lisonjeada, suponho eu, mas também muito constrangida. Ele estava sentado tão perto de mim que eu conseguia cheirar o seu aftershave. E estava a interrogar-me sobre a razão daquele exagero de aftershave quando ele me agarrou e me beijou. Não, não pode contar ao Steve. Não é necessário preocupá-lo. Afinal, ele está em casa em Brighton, e não há nada que possa fazer. Mas, acima de tudo, Anna agoniza com a perspectiva de mais um homem se erguer em sua defesa. Porque Steve consegue ser bastante ciumento. Há ano, um dos treinadores de futebol de Tom insinuara-se um pouco junto dela e Steve ficara muitíssimo aborrecido. Na altura Anna não se importara muito, embora tivesse sido constrangedor sentir Steve a pairar atrás dela na extremidade do campo, rangendo os dentes sempre que Wayne olhava na sua direcção. Mas agora… Agora Anna sente que conseguirá lidar melhor com Jeremy sozinha. Carrega na tecla «apagar» e desce para ir tomar o pequeno-almoço. Jeremy sente-se particularmente deprimido enquanto se serve de melancia na longa mesa de pequeno-almoço posta no terraço. Quem poderia prever que a parva da cabrinha frígida reagiria assim? Normalmente nunca falhava: a noite de Verão, a ópera, os elogios à escrita. E não só Anna o empurrara com manifesta repulsa estampada no rosto, como o bruto do escocês irrompera pelas portas envidraçadas, atacando-o. Estupor. Podia processá-lo por agressão. E tudo simplesmente porque Sam McClusky engraça com Anna mas não tem coragem para fazer nada em relação ao assunto. Mas também não tem hipóteses. Na véspera, Anna olhara para ele com igual e completo desprezo. A vaca empertigada. Mas também, como Sally referira na noite anterior, Anna provinha de uma protectora classe média baixa e


não tinha grande experiência com homens a sério. Era capaz de ser verdade. Jeremy massaja então o queixo dorido. Não estava a contar que Sally fosse assim tão perspicaz. E eis que entra Anna. Está de calções e T-shirt. Não é lá muito adequado para a visita a Florença. E, vendo bem, as pernas dela são um pouco gordas. Mas enfim, mais vale arrumar de vez o assunto. Jeremy aproxima-se de Anna, que está a servir-se de sumo de laranja. – Em relação à noite de ontem – diz ele num tom baixo. Anna ergue a mão. – Está tudo bem – afirma ela. – Não falemos mais do assunto. Jeremy gostaria de falar bastante mais acerca do assunto. Gostaria de fazer Anna ver que, efectivamente, a culpa fora dela, que ela lhe dera os sinais errados e ele, como homem de sangue quente que é, fora forçado a reagir. Mas algo no seu olhar impassível e queixo erguido fá-lo desistir. Ela assemelha-se estranhamente a uma das suas antigas professoras primárias. E por um segundo Jeremy sente-se como se tivesse seis anos outra vez; apanhado em falta e a balbuciar sobre dragões nos arbustos para afastar as atenções da tinta derramada na carteira. «Talvez ela esteja certa», diz para si próprio, «será melhor não falar nada.» De qualquer forma, acabaria provavelmente por ser mal-interpretado. Anna senta-se à mesa com o seu sumo de laranja, o mais longe possível de Jeremy. Está a tremer ligeiramente, mas espera que ele não consiga reparar. Felizmente tudo está resolvido. Agora a única coisa a fazer é evitar Jeremy durante o resto do curso. Nada de tutorias privadas. E irá rasgar a sua estúpida lista de leitura. Olhando para a ponta oposta da mesa, vê Jeremy a conversar animadamente com Sally. E interroga-se se estarão a falar acerca dela. Mary aparece à porta com o cabelo molhado do banho matinal. Anna sorri e acena mas, antes de Mary conseguir atravessar o terraço, Sam esgueira-se para o lugar vazio ao seu lado. «Oh, meu Deus, outro não.» – Sobre ontem à noite… – começa Sam. – Ouça – exclama Anna mais severamente do que pretendia. – Não quero falar sobre isso.


– Mas tem de contar à Patricia – sussurra ele. – Fazer com que ele seja expulso do curso. – Não é da sua conta – sussurra Anna de volta. – Mas eu salvei-a… – Não, não salvou – diz Anna, levantando-se. – Interferiu. Bem sei que estava a tentar ajudar mas, por favor, o assunto está encerrado. Pare de o mencionar. E parte, deixando Sam a amuar com o seu cappuccino. Uma hora mais tarde, Matt vê do seu quarto a carrinha a descer o caminho. Contava ficar com a casa por sua conta, mas consegue distinguir duas sombras junto à piscina. Mary – fácil de identificar pela forma como nada –, e crê que a outra deve ser Anna. Porque não foram elas a Florença com os outros, deixando a piscina só para ele? Não que tenha algo contra elas em particular. Mary tem sido sempre muito simpática com ele e Anna parece bastante decente, embora não seja tão bonita quanto a amiga. Pelo menos são melhores do que Jeremy ou o francês detestável. Mas ainda assim, o que farão elas na piscina? Não deviam estar a escrever? Mal-humorado, Matt observa-as, descascando com a unha a tinta da persiana. Mary já fez vinte piscinas – para a idade que tem, nada muitíssimo bem – e agora estão simplesmente deitadas a conversar. O típico comportamento feminino, diz Matt a si próprio imitando Aldo, embora a sua mãe nunca tenha sido grande adepta de tagarelices. O pai sim. O pai fala com qualquer pessoa: bêbedos na rua, velhinhas malucas rodeadas de sacos enormes, até mesmo fiscais de estacionamento. O pai adora conversar. «A cavaqueira», como ele lhe chama, carregando na pronúncia irlandesa. Matt recorda-se de o pai conversar com os hóspedes, algo que, apesar de todo o seu charme, a mãe parece ser incapaz de fazer. É por isso que ela tem Myra, pensa Matt, para conversar por ela. Hoje, Myra deverá estar algures. E Matt planeia evitá-la – não quer que conversem com ele. Toma um duche e veste uns calções largos e uma T-shirt. No telemóvel tem uma mensagem de Graziano sugerindo que passem o dia no lago. Matt estava a planear encontrar-se com o pelotão para discutirem o seu brilhante


plano para perturbar as festividades do Ferragosto, mas não está com paciência para as histórias de Graziano sobre improváveis conquistas nem para a aprovação deferente de Elio. E assim, de repente, Matt sente uma violenta antipatia em relação aos seus antigos amigos. Provocam-lhe náuseas, conclui então, algo surpreendido com a sua própria veemência. Não consegue pensar sequer em vê-los. Pelo menos não hoje. Desce até à cozinha onde come algum pão com prosciutto. Pela luz que entra pela porta da cozinha, constata que o dia irá ser escaldante. Come então mais algum pão e dois pêssegos, atirando os caroços pela janela. O que será melhor? Consultar a sua conta no Facebook ou dar uma olhadela ao website de Dungeons and Dragons? Matt, sob o nome de Hengest, é um assíduo jogador virtual de jogos de aventuras mágicas. Não, está demasiado calor. Talvez seja melhor voltar para a cama. – Ciao, Matt. Matt olha para cima. O rosto de Fabio está emoldurado pela janela. – Ciao – responde o rapaz. Fabio está agora à porta, segurando um pacote cuidadosamente embrulhado em papel vegetal. – É carne – explica ele. – Para esta noite – acrescenta, colocando o pacote no frigorífico. – O Aldo pôs-te a fazer-lhe recados, não foi? – diz Matt com um sorriso. Os dois conversam em italiano o que, para Matt, é agora tão natural como falar em inglês. O único benefício da emigração, como costuma dizer Patricia. – Bem, é ele que está a conduzir a carrinha para Florença. – A guiar a mil à hora e no lado errado da estrada. Fabio solta uma gargalhada. – A Ferrari não sabe o que perdeu ao não o contratar – insiste Matt, reparando então que Fabio deixou de sorrir. Efectivamente, o rapaz parece bastante triste e Matt sente um desejo súbito de o animar. – Queres ver uma coisa? – inquire Matt. – É segredo. – Está bem – anui Fabio, ainda que sem grande entusiasmo. – Anda daí. Está no pinhal.


Os dois descem os degraus, passando pela piscina e o olival, avançando em direcção ao pinhal nos confins da propriedade. As agulhas dos pinheiros estalam aromaticamente por baixo dos seus pés, recordando a Matt o banho de espuma da mãe. Ao menos ali há sombra. Matt já está a suar após a breve caminhada desde casa. Fabio, como sempre, parece fresco e relaxado. No fundo do pinhal, junto à muralha exterior do castelo, há um casinhoto baixo recoberto por telhas. Pilhas de lenha cortada estão ordeiramente arrumadas contra as suas paredes. – É aqui atrás – diz Matt, procurando por instantes por entre o mato rasteiro e produzindo por fim um estranho aparelho de metal semelhante a uma gigantesca bomba de bicicleta. – Dio – exclama Fabio. – O que é isso? – É um lançador de foguetes – explica Matt, sorrindo. – Um quê? Matt olha em volta. Exceptuando uma ave de rapina – um bútio, na certa – que voa em círculos bem acima das copas dos pinheiros, estão completamente sozinhos. – O pai do meu amigo Graziano trabalha na fábrica de fogo-de-artifício em Poggibonsi. E vai arranjar-nos um foguete gigante. Naturalmente, não sabe a que se destina. – E a que se destina? Matt sobe para cima da lenha. Aponta então para a colina mais próxima, onde mal se consegue distinguir o contorno de uma enorme cruz. – No Ferragosto – afirma ele –, haverá uma procissão à ermida no cimo da colina. E eu vou lançar o foguete. Pregar-lhes o maior susto das suas vidas. – Matteo! – exclama Fábio, olhando para o rapaz com os seus olhos negros muito abertos e sérios. – Ainda matas alguém! – Não mato nada. O foguete não chegará tão longe. Deve explodir no pinhal. Mas deverá pregar-lhes um valente susto. Imagina só o velho Don Tonnino a balançar o seu incenso e depois: pum! Vai pensar que é o fim do mundo. Fabio está a abanar a cabeça. – Continuo a achar que é perigoso.


Matt olha-o sem saber o que pensar. Fabio parece estar a reagir como um adulto. – Não vais contar a ninguém, pois não? – inquire ele. Perante a expressão ansiosa de Matt, Fabio sorri. – Não, não direi nada. Mas faz-me um favor e avisa-me quando o fores lançar para eu poder estar presente. Matt salta alegremente de cima da lenha, aterrando de um salto no meio das agulhas de pinheiro. – Já te aviso, não vais querer perder o espectáculo. Matt tem ainda outro segredo, mas não o vai contar a Fabio. Ainda não. Mary e Anna estão a descansar junto à piscina. Mary esteve a nadar e está agora a secar-se ao sol. Anna está sentada à sombra. Cat e Justin levaram as crianças até ao lago di Bolsena, um lago onde se pode nadar e alugar barcos. Os restantes foram a Florença. Anna acaba de contar a Mary que Jeremy se atirou a ela. Queria muito contar a alguém, mas fica surpreendida com a facilidade com que fala com Mary. A reformada não fica demasiado entusiasmada com a história – como Cat ficaria – nem parece excessivamente chocada. Vê a situação pelo que ela é – embaraçosa, mais do que traumática. – Já falou com o Jeremy esta manhã? – pergunta Mary, esfregando vigorosamente o cabelo com a toalha. – Sim. Ele abordou-me ao pequeno-almoço e pediu desculpas pelo sucedido. E eu aceitei. – Então o assunto poderá estar resolvido. – Espero que sim. Só que o Sam abordou-me igualmente ao pequenoalmoço, querendo debater de novo o sucedido. Eu pedi-lhe para parar de vez, pois, para mim, o assunto estava definitivamente encerrado. – E como reagiu ele? – Creio que ficou ligeiramente ofendido, mas pelo menos vai estar fora todo o dia. Antes tinha dito que não ia a Florença; andava a falar em irmos almoçar os dois a San Severino. Mas depois desta manhã, deve ter mudado de ideias. Graças a Deus.


– É agradável termos o castelo por nossa conta – diz Mary, olhando para cima, para o edifício silencioso. Anna olha-a de soslaio. – Creio que o Aldo ficou desiludido por não ter ido – diz num tom matreiro. Mary cora. E resolve voltar a cabeça, mas a vermelhidão esten​de-se quase aos seus ombros estreitos. – Está demasiado calor para passeios turísticos – murmura ela. Anna olha para o céu reluzente e azul, que parece carregado com a promessa de mais calor. Embora ainda só sejam dez horas, as lajes de pedra em torno da piscina estão já a escaldar. A parede alva que delimita o espaço – com a sua cascata de flores púrpuras – fere a vista só de olhar. Um lagarto detém-se sobre ela a apanhar sol e o seu verde-esmeralda contrasta com o branco iridescente. – Está demasiado calor seja para o que for – afirma Anna. Cat está sentada junto ao lago. A areia é vulcânica e escorre-lhe por entre os dedos como pimenta preta moída, num efeito curiosamente relaxante. A água é de uma transparência divinal. Segundo consta, o lago di Bolsena é conhecido localmente como «o lago que pode ser bebido», devido à sua água transparente e pura. À sua frente vê Justin e os miúdos no seu barco – com um escorrega numa extremidade, tem a aparência de uma criatura préhistórica erguida das profundezas –, mas o lago é tão grande que a margem oposta se perde na bruma distante. Cat está deitada de costas na areia negra, deixando que o sol lhe banhe o rosto. Sente-se bastante melhor do que nos últimos dias. Talvez tenha sido da conversa com Anna, por ter dito o que realmente sentia, ou talvez se deva apenas à boa noite de sono, em que nenhum dos filhos acabara na cama dos pais nem Justin a incomodara a querer sexo. Cat gosta de sexo no seu devido lugar – após um jantar romântico e precedido de uma avalanche de elogios –, mas todas as noites é de facto exagerado. Talvez seja por isso que Justin tenha decidido aparecer, para poder dormir com ela. «Uma foda um tanto cara», pensa Cat, desconsolada.


Sabe bem que as pessoas se interrogam sobre os motivos do seu casamento com Justin. Uma pessoa tão bonita quanto ela poderia, na certa, ter o homem que quisesse. Mas, efectivamente, Justin é o único homem que alguma vez lhe propusera casamento. Cat nunca tivera dificuldade em atrair homens, mas mantê-los era outra história. Os namorados anteriores haviam sucumbido sob a furiosa investida da insegurança e da vaidade de Cat. Justin era o primeiro homem desde o seu pai que a via como ela se avaliava. «Temos imenso em comum», costuma dizer Cat acerca dele, num tom algo defensivo. E o principal traço que os dois têm em comum é ambos a considerarem perfeita. Só que lá bem no fundo Cat não se considera perfeita. Oh, há dias em que exsuda amor-próprio: contemplar o seu rosto bronzeado no espelho dá-lhe verdadeiro prazer; ver o seu reflexo numa montra de loja, com o cabelo ondulante e a passada confiante das suas longas pernas, fá-la sentir pena de quase todas as mulheres do mundo. O problema são os dias – e ultimamente eles têm-se multiplicado – em que ser bonita parece não ser suficiente. E ainda mais aterrador é olhar para o espelho e já não ver uma jovem bonita. Cat vê uma mulher de meia-idade com rugas em torno dos olhos – e, numa aterradora ocasião, um cabelo branco a reluzir por entre o negro. A verdade é que a velhice assenta bem a alguém como Mary, que provavelmente nunca foi bonita; mas para Cat é o fim. Se não conseguir ver admiração nos olhos dos homens, quem é ela? Será que continua a existir? Certa vez, há pouco tempo, passara por uma obra e não ouvira um pio. O silêncio fora total. Cat olhara inclusivamente para trás, interrogando-se sobre porque estariam eles a guardar os assobios e os piropos para quando ela estivesse em segurança; mas não, lá estavam eles, a assentar e a transportar calmamente os tijolos. Era como se ela fosse invisível. Talvez ela fosse de facto invisível. Cat sabe que é inteligente – afinal, formou-se em Cambridge, certo? Mas, de alguma forma, isso nunca foi tão importante quanto a beleza. Sem reflectir muito sobre o assunto, presumiu sempre que era mais inteligente do que alguém como Anna. Mas agora ali estava Anna a emergir como estrela


do curso. Anna que, por vezes, e estranhamente, parecia de facto uma escritora, e que, misteriosamente, ficara mais atraente por causa disso. Homens como Sam e Jeremy nunca teriam olhado para a antiga Anna de Brighton, com as suas calças de ganga pouco lisonjeiras e semblante permanentemente carregado. Mas de alguma forma, ali em Itália Anna conseguira reinventar-se como alguém fascinante e inteligente. Não podia ser apenas o bronzeado e um novo vestido branco. O problema é que quando Cat pensa nas possibilidades avançadas no dia anterior pela amiga – trabalho em part-time, voluntariado, etc. – tudo lhe parece incrivelmente entediante. E, se for honesta, terá de reconhecer que o seu antigo e genial cargo de consultora de escrita publicitária não passava de secretariado. Não vai com certeza voltar a trabalhar num qualquer escritório a fazer café para um idiota com uma média banal num curso de marketing. Não pode, simplesmente. Precisa de algo especial. Tão especial quanto ela. Cat semicerra os olhos, observando os filhos a brincar no barco. Com os seus coloridos coletes salva-vidas, parecem absolutamente absortos e felizes. Sente-se então assolada por uma vaga de amor maternal e, embora não tenha como o saber, o seu rosto fica incrivelmente belo. Nesse instante, Justin vira-se e acena-lhe do barco. Cat devolve o gesto, atirando-lhes beijos. Descobriu algo que poderá fazer. De início, poderá envolver algum desconforto, mas será infinitamente melhor do que integrar o conselho administrativo de uma escola. Sally e Jeremy estão na Galeria Uffizi. Nenhum dos dois aprecia particularmente pintura, mas o dia está de tal forma quente que a possibilidade de percorrerem frescos corredores a contemplar retratos renascentistas deprimentes lhes parecera subitamente apelativa. Jeremy avança em silêncio pelas salas dedicadas a Fra Lippo Lippi. Não suporta aquelas pieguices religiosas, todos aqueles olhos revirados aos céus e crianças com inquietantes feições de adulto. Foi educado na fé católica – a sua mãe era polaca – mas considera-a um mero guia útil para a compreensão de T. S. Eliot ou Evelyn Waugh. Jeremy só consegue apreciar


uma forma de arte: a palavra escrita. Até mesmo agora, são os nomes dos retratos que lhe despertam a curiosidade: Madona e Menino com Dois Anjos, Coroação da Virgem, Adoração do Menino com Santos. Jeremy começa a brincar com alternativas modernas: Madona e Menino com Acompanhantes da Segurança Social, Adoração do Big Brother com Celebridades de Terceira, Coroação da Tudo Menos Virgem. Haverá ali alguma coisa? Um artigo, talvez? Sally está igualmente calada. Lippo Lippi também não lhe diz muito. Prefere Caravaggio. Numa sala anterior viram O Sacrifício de Isaac: a lâmina nua, o rosto forçado para o chão, o tempestuoso e portentoso céu. Como poderia descrever uma tal cena? Há um limite para o uso das palavras-chave: dilacerar, carne, cortar, sangue, agonia. Caravaggio dá-nos tudo ao mesmo tempo, de uma forma arrepiante. Credo, já não aguenta os pés. Ao longo do dia Sally e Jeremy tinham-se aproximado aos poucos. Nenhum deles pretendia conversar com Sam, que parecia estar de péssimo humor, e Patricia fora açambarcada por Dorothy e Rick. JP pairava por perto da anfitriã e Aldo desaparecera, quase de imediato, para tratar de assuntos próprios. Sobraram portanto Sally e Jeremy, vendo-se livres para passear na Ponte Vecchio, maravilhar-se com a Piazza della Signoria e percorrer agora as compridas salas da Galeria Uffizi. Sally não está de todo aborrecida, antes pelo contrário. Na noite anterior, ela e Jeremy tinham partilhado uma garrafa de vinho, concluindo que Sam era alguém com sérias perturbações. E agora estão, se não em amena cavaqueira, a concordar no básico. – Jesus – exclama Jeremy –, este lugar está a pôr-me doente. Que tal irmos tomar uma bebida algures? – Sim, vamos – anui Sally, permitindo num gesto ousado que a sua mão roce na dele. As Sete Luas de Jaconda por Lupo O’Hara Capítulo 15


Hengest e Fabian atravessaram as areias de Sommerslath, estando agora nas margens do Lago de Sangue. A travessia foi difícil. Separaram-se dos seus corcéis e servos nos limites do Astrogath. Daí em diante a jornada é sua e apenas sua – contando apenas com os seus corpos contra o calor do deserto e o frio das Montanhas de Gelo e a sua coragem contra os inúmeros inimigos da Casa de Erin. Hengest olha para Fabian. Soube que estava certo ao escolhê-lo entre o bando de irmãos. Leopardo é valente na luta, mas falhara a Prova do Coração, não uma, mas muitas vezes. Leone é leal que chegue, mas faltalhe a astúcia para enfrentar Grenouille e a Liga de Olho Caído. Não, o justo e leal Fabian é o único companheiro possível para a demanda. E, parados nas margens do Lago Vermelho, ambos sabem que somente uma amizade forjada pelo fogo poderá sobreviver. Até à morte.

Sonhos O tio Maurice está levar-me de carro para o topo da colina. A colina fica cada vez mais íngreme e eu sei que o carro não vai aguentar. Depois o carro transforma-se na carrinha e estamos a viajar para Roma, atravessando o próprio Coliseu, entrando e saindo pelas arcadas. E agora é Aldo quem conduz a carrinha. Eu grito-lhe para ter cuidado e ele diz que estou segura com ele. Atravessa o centro de Roma, descendo degraus, atravessando fontes, dispersando turistas. E eu rio-me como se fosse uma viagem de montanha-russa. Estou a ver televisão e a Jenny está a apresentar as notícias. Ela lê uma série de factos e números e eu não compreendo nada. Estou preocupado porque se trata de finanças e eu costumava compreender


estas coisas. Mas depois ela está a apresentar a meteorologia e olha directamente para mim, dizendo: «Vem aí uma tempestade». E depois acordo. Estou a nadar, a flutuar simplesmente no azul, todas as luzes e cores em meu redor parecem um espectáculo de laser. E depois o Fabio está lá, a nadar por baixo de mim, como se fosse uma foca ou algo afim. Ele está nu. Estamos ambos nus. Nadamos juntos e eu vejo cada gota de água a reluzir no seu corpo. Ele sorri para mim e os dois mergulhamos na água, indo cada vez mais fundo até o mundo ficar repleto de azul. Estou em casa, sentada no baloiço do alpendre. É Verão e estamos a dormir no dito alpendre. Estou com calor e o vestido cola-se-me ao corpo. A minha irmãzinha Alisha também está presente. Está a tentar dar-me uma coisa, um pacote. Eu não quero abri-lo. Sei que tem más notícias dentro. Mas a Alisha continua a aproximar-se, sorrindo daquele seu jeito engraçado, exibindo o aparelho nos dentes. – Não – digo eu. – É da mãe – diz a Alisha, sorrindo cada vez mais. Estou a jogar futebol com o Tom e o Jakey. É difícil porque a bola é enorme, como uma bola de praia. Depois a bola atropela o Jakey e ele fica preso. E eu penso, com uma claridade estonteante: «Vejam bem! Um terrível acidente como este acontecer com uma inocente bola de praia». O Steve tira a bola de cima do Jakey e ele está espalmado, como o Stanley Espalmadinho daqueles livros que eu costumava ler aos rapazes. Eu grito, mas o Steve diz: «Está tudo bem, amor, somos todos personagens num livro». E é verdade. Somos ilustrações espalmadas a duas dimensões num qualquer livro infantil. Depois o Steve estica-se e dá-me a mão e eu consigo respirar bem de novo. Consigo ver os meus pulmões a subirem e a descerem. E os rapazes estão igualmente bem: consigo vê-los ao longe a


jogar futebol, super contentes. * Ele está no telhado e eu estou a gritar-lhe para ter cuidado mas ele limita-se a rir e a acenar. O telhado é incrivelmente alto, muito mais alto do que o do castello. É a Torre Eiffel, é a torre de Siena. Mas ele limitase a sorrir e a acenar. «Olha para mim», grita ele. E salta. Estou a fazer as malas para ir para casa. Guardo todas as minhas camisas, muito bem dobradinhas em pequenos quadrados. Depois ouço uma voz, uma vozinha baixinha, a chamar de dentro da minha mala. Retiro lá de dentro um pequeno pedaço de papel, dobrado e redobrado. Abro-o e é uma fotografia do meu rapaz. «Esqueceste-me», diz ele. Estou no jardim, o jardim do filme Viagem Sentimental. Estou a conversar com a personagem da Joan Plowright e ela diz: – Avança, rapariga. Achas que era fácil estar casada com Lawrence Olivier? – Não – respondo eu. – Mas aposto que o dinheiro ajudava. E ela dá-me uma orquídea, bastante feia por sinal, mas depois a flor abre-se e há uma série de cores – vermelho, azul, laranja e cor-de-rosa. Inclino-me para a flor e ela engole-me inteira, mas não fico assustada. Quando volto a emergir, estou na ópera e a Joan está a cantar La Bohème. – Desconhecia que sabia cantar – digo eu. – Não perguntaste – afirma ela.


CAPÍTULO 20 Décimo primeiro dia, Domingo 12 de Agosto atricia fica bastante surpreendida ao ver vários hóspedes prontos para saírem para a missa de domingo. Na semana anterior, JP fora o único a assistir, mas agora Fabio vai levar Anna, Sam e Dorothy para a igreja do século treze de San Severino. Tendo em conta os seus anteriores comentários acerca da Virgem Maria, Patricia está particularmente espantada com Dorothy, magnífica com um vestido florido, chapéu de palha e luvas brancas, pronta para assistir a um serviço religioso num lugar de culto chamado Santa Maria Della Spina – Santa Maria dos Espinhos. Porém, como Dorothy graciosamente salienta: – Sou uma visita neste país. E em Roma… – E em Roma – murmura JP – é-se crucificado. Anna não sabe ao certo porque decidiu assistir à missa. Exceptuando a ostentosa frequência de serviços religiosos necessária para inscrever Tom e Jakey no colégio St. James The Great, Anna não é propriamente uma católica devota. O seu pai, filho de imigrantes italianos, costumava levá-la com a irmã à missa quando eram crianças. Anna lembra-se de fazer a Primeira Comunhão, com um vestido branco e véu engomado, e lembra-se de missas aparentemente infindáveis, de fazer sombras com o rosário nos bancos corridos de madeira, vendo a fila serpenteante de devotos aproximar-se do altar para comungarem. Quando regressara à igreja, quando os miúdos eram pequenos, ficara espantada com a brevidade do serviço. Mal se sentara a seguir à Comunhão e o padre dava já a sua bênção dizendo que os esperava a todos no átrio do centro paroquial para o habitual

P


café depois da missa. Café depois da missa? Poderia algo ter mudado na Santa Igreja Católica e Apostólica? Ou seria apenas ela? A escola dos rapazes tinha muito pouco em comum – graças a Deus! – com a sua educação às mãos da irmã Anthony e demais colegas. Aprendiam coisas sobre o Judaísmo e o Islão e cantavam canções alegres sobre serem todos filhos de Deus. De facto, apenas uma meia dúzia de famílias de alunos frequentava regularmente a igreja. Cat, que conseguira entrar por ter deslumbrado o padre mais velho e por Justin ter sido baptizado na fé católica, era praticamente a regra. E causara um certo escândalo ao vestir Sasha com calças de ganga para a sua Primeira Comunhão. «Não sabia», lamentara-se ela depois. «Devias ter-me falado dos fatos e dos Sãos Cristóvãos e tudo o mais.» Mas hoje, sem saber porquê, Anna sente vontade de ir à missa. De uma forma estranha, será uma ligação a casa, talvez até com o seu pai, porque os avós dela poderão ter frequentado uma igreja muito parecida com aquela. De qualquer maneira, dar-lhe-á espaço, tempo para pensar, longe da constante atenção de Sam. Fica, portanto, extremamente frustrada ao ver Sam, envergando uma elegante camisa azul, parado à espera no hall principal. – Vai à missa? – inquire ela, tentando não deixar transparecer a desilusão. – Sim, vou – responde Sam. – Achei que poderia ser interessante. Ao fundo, JP solta uma risadinha de desprezo. A igreja, um edifício branco robusto com uma torre quadrada muito semelhante à do próprio castello, fica situada no lado opos​to da vila. Está construída numa colina e o único acesso é através de íngremes degraus de pedra. Ao chegarem ao cimo, Do​rothy está ofegante e a abanar-se, e até mesmo Anna sente dificuldade em respirar. – Na Sexta-Feira Santa têm de subir de joelhos – diz JP, deixando Anna sem saber se ele estará ou não a brincar. No interior, a igreja é surpreendentemente simples. Uma enorme cruz de madeira eleva-se por detrás do altar e não há vestígio de frescos lascivos como os que tanto perturbaram Dorothy em Siena. Efectivamente, Dorothy senta-se com um sorriso satisfeito no rosto, abanando-se com o folheto do


serviço. Quase parece que está em casa, no Vermont, na Igreja de Cristo Rei. Só é pena o traje elaborado do padre, mas pelo menos não há incenso. Dorothy fecha então os olhos – para melhor ouvir a Palavra de Deus. Anna fica surpreendida por conseguir acompanhar o serviço com bastante facilidade. O italiano é muito parecido com o latim que recorda dos tempos de infância e há algo de universal na homilia do padre – o seu desfilar de expressões, da desilusão à ira, à resignação e, por fim, ao perdão. Anna dá por si a levantar-se, sentar-se a ajoelhar-se em sintonia com o resto da congregação. JP observa-a de forma aprovadora. Sam permanece sentado, de braços cruzados. A dada altura pega na máquina fotográfica, mas o olhar desaprovador de JP faz com que a guarde de imediato. Fabio levanta-se sempre nas alturas certas, mas não acompanha o coro das respostas. Anna obser​va-o pelo canto do olho. A sua expressão é séria, triste até, apesar de serena. As suas pestanas são ridiculamente compridas. Ninguém do grupo se levanta para a Comunhão. Anna, que se desvia para deixar passar JP, fica desconcertada ao vê-lo permanecer no lugar, a fixar intensamente o altar. Claro, JP é divorciado. Não pode comungar. E Anna sente-se ligeiramente culpada, como se ao desviar um pouco os pés tivesse erguido um estandarte dizendo: «Pecador Excomungado sentado Aqui ao Lado». Ela própria, Anna, não comunga – ou confessa – há anos. O que diria se fosse hoje confessar-se? «Estive no quarto de um homem e ele atirou-se a mim?» Seria isso um pecado? Provavelmente. Se bem se lembra, quase tudo o é. Depois do serviço, a congregação emerge para a luz do sol. São sobretudo mulheres e crianças, constata Anna. Há muito poucos homens na igreja, novos ou velhos. À porta, Fabio dá uma palavrinha ao padre, um homem já de uma certa idade que faz lembrar um pouco Aldo. O padre sorri encantado e cumprimenta-os com efusivos apertos de mão. Parece particularmente satisfeito com Anna, retendo-lhe a mão durante um tempo que lhe parece uma eternidade, sorrindo e falando de forma animada. Anna sorri e abana desajeitadamente a cabeça, sentindo-se estúpida. – O que estava ele a dizer? – pergunta a Fabio enquanto descem os degraus.


Fabio sorri. – Estava a dizer que é bom ver uma mulher tão bonita na igreja. Anna cora de imediato, tentando em vão imaginar um padre inglês a dizer algo parecido. – Ele é parecido com o Aldo – diz ela. – O padre, quero eu dizer. – O Aldo diz que são primos – explica Fabio. Por sugestão de Sam, não regressam de imediato à carrinha. Decidem antes ir tomar uma bebida num café com sombra próximo da igreja. É um estabelecimento muito diferente dos bares animados da praça principal. Há velhinhos sentados a ler o jornal e a jogar às cartas em mesas periclitantes – talvez seja isso que fazem em vez de irem à missa; um cão está deitado ao sol a arfar e o dono descasca ervilhas acomodado numa mesa baixa ao pé da porta. Os escritores sentam-se sob uma cobertura de madeira atapetada de videiras. Um cacho de uvas desponta por trás da cabeça de Sam e as folhas pendem sobre os cabelos de Anna. Fabio traz café, Coca-Cola, água mineral e uma cerveja para Sam. Deambula com graciosidade por entre as mesas, segurando a bandeja ao alto como um verdadeiro empregado. – O Fabio é mesmo uma gracinha – diz Dorothy. – Uma gracinha? – repete Fabio, sorrindo. – Obrigado. – É um elogio – explica Sam. – Obrigado – diz de novo Fabio. – Não tem de quê. – E Dorothy abana uma mão enluvada. – Não é um amor este lugar? Eu adoro a Toscana. Ficarei tão triste quando partir na quinta-feira. O comentário apanha de surpresa os demais membros do grupo. Nenhum deles pensou muito na partida. Anna sente um acesso de pura felicidade perante a perspectiva de rever os filhos. E Steve, naturalmente. Ele já deve estar com saudades suas. JP pensa primeiro em Louis e depois em Patricia. O que acontecerá no dia da festa do Ferragosto, pensa ele, quando os dois se encontrarem finalmente a sós? Sam matuta, macambúzio, sobre o facto de lhe restarem apenas três dias para fazer Anna apaixonar-se por si. – Gostou do curso? – pergunta Anna a Dorothy, com interesse genuíno.


– Oh, sim, querida. O Jeremy foi muitíssimo encorajador em relação ao meu livro. Sam grunhe por entre dentes, mas Anna não olha para ele. – Ai sim? – acrescenta ela. – Sim, ele diz que não importa como está escrito pois mesmo assim venderá milhões de exemplares. – E ela sorri para os rostos sorumbáticos dos outros escritores. – E tem-me ajudado imenso, em todo o processo da escrita. – Ajudou-a a aceitar o que lhe aconteceu quando era criança? – inquire JP. – Bem, sim. Estou a trabalhar o processo que iniciei com o meu terapeuta. Passei pela CIRAE – diz ela, rindo. – CIRAE? – pergunta Anna sem compreender. – Choque, Ira, Raiva, Aceitação e Esperança. Faz tudo parte do processo de cura. Voltei a viver a minha infância e as coisas terríveis que a minha mãe me fez. Já senti ira, com as lágrimas a caírem-me sobre o computador enquanto escrevia. Chorei essa menina. Chorei-me a mim própria. E agora estou pronta para me libertar. – E sorri de novo para o grupo, levando a chávena aos lábios num gesto refinado. – Acabou então o seu livro? – pergunta Sam após uma breve pausa. Sam inveja qualquer um que consiga acabar qualquer coisa. – Quase, querido. O grupo cai de novo no silêncio. Estão todos a pensar no pouco tempo que lhes resta, nos milhares de palavras ainda por escrever, na impossibilidade de alguma vez produzirem algo que se assemelhe vagamente a um livro. Fabio recosta-se na cadeira, tirando as chaves da carrinha da algibeira das calças. – É melhor irmos – anuncia ele. – Não convém atrasarmo-nos para o almoço de domingo do Aldo. Diário de Mary, 12 de Agosto Oh, meu Deus. Quem me dera nunca cá ter estado. Não, é mentira. Foram as melhores duas semanas da minha vida. Apesar da minha figura ridícula, não consigo de todo desejar que nunca tivessem acontecido.


Querido diário, já é altura de admitir, pelo menos nestas páginas, que tenho uma paixoneta absurda pelo Aldo. Bem sei, bem sei. Tenho setenta e quatro anos. Setenta e quatro (velha! velha! velha!). Já não devia ter idade para me apaixonar. E pensei que já não tinha. Achava sinceramente que estava feliz com a minha vidinha – com o meu apartamento, a minha natação, a minha escrita. Quando resolvi inscrever-me neste curso, imaginei-me a comer algumas refeições agradáveis e a aprender um pouco mais sobre o ofício de escritor. Nunca imaginei que me pudesse apaixonar pela pessoa que prepara as refeições nem que ficaria tão… tão abalada com o facto. E o pior é nunca antes me ter sentido assim. Nunca estive apaixonada, nem pouco mais ou menos. O mais perto que estive foi a fantasiar com o Cary Grant ou o Frank Sinatra. Nenhum homem verdadeiro se mostrou sequer à altura. É triste, bem sei. Mas é a mais pura verdade. Não que o Aldo seja um Cary Grant ou um Frank Sinatra (embora cante muito bem, segundo o homem do café). Quando inicialmente conheci o Aldo, achei-o apenas um italiano alegre e divertido. Oh, achei-o muito charmoso, mas também algo bizarro, com o seu inglês arrevesado e grande bigode branco. Agora não o acho nada bizarro, nem por sombras. Efectivamente, quando penso nele, sinto vontade de chorar. E ontem chorei mesmo, quando todos estavam em Florença. Chorei por ser uma solteirona de setenta e quatro anos que se apaixonou por um homem que nunca mais irá ver. Creio que tudo terá começado em Roma. Quando ele apareceu naquela cripta medonha, fiquei tão contente por o ver! Mas era já mais do que isso. A melhor forma de o descrever é dizer que, quando vi o Aldo, deixei de sentir saudades de casa. Bem sei que isto é ridículo: estou a milhares de quilómetros de casa. E, efectivamente, porque está uma velhinha como eu a palrar sobre saudades de casa, como uma menina tonta de escola? Mas quando vi o Aldo com a sua camisa havaiana, foi como se tivesse regressado a casa. Não para o meu apartamento, mas realmente a casa, talvez para a altura quando ainda era criança e vivia com os meus pais. E sabia que, estando com o Aldo, nada de mal me podia acontecer. Nessa


noite, na viagem de regresso, com a escuridão lá fora e o Aldo atrás do volante da carrinha, senti-me subitamente mais feliz do que alguma vez me sentira em toda a minha vida. Não analisei então o sentimento, achando apenas que tinha tido um bom dia de passeio e que estava cansada. Mas, de facto, foi esse o momento em que tudo começou. O que sente ele por mim? Bem, ele sempre foi muito amável comigo, conversando sobre comida e dando-me coisas especiais para provar. Foi à minha procura em Roma e preparou-me aquela sopa maravilhosa na outra noite. Mas sejamos realistas: ele podia estar simplesmente a tratar-me com simpatia por eu ser uma hóspede. Mas depois, no mercado, disse que eu tinha um corpo perfeito. Bem sei que deve ter sido um erro de tradução: queria apenas dizer que eu não era gorda, mas tal não impediu o meu corpo estúpido de responder como bem lhe apeteceu. Senti-me corar dos pés à cabeça (literalmente dos pés à cabeça). Nunca antes experimentei uma sensação assim. Depois, quando fomos tomar café, ele foi tão simpático comigo, apresentando-me àqueles homens assustadores que se fartavam de berrar. Alguém perguntou se eu era sua namorada e ele respondeu: «Quem me dera que fosse». Agora vejo que estava apenas a ser educado. Não sou parva. Provavelmente, em cada curso, há uma velhinha solitária e cabe a Aldo recolhê-la sob a sua asa e ser amável com ela, louvá-la, fazer-lhe alguns elogios. Eu sei tudo isto. Mas, infelizmente, não parece fazer qualquer diferença em relação ao que eu sinto. Depois ele levou-me para casa de motorizada. Ainda assim, como será que eu parecia? Com a minha idade, montada atrás dele na Vespa? Mas na altura soube-me maravilhosamente bem: o vento a dar-me nos cabelos, a sensação de velocidade, a excitação. Mas depois pensei: que vergonha, agarrada daquela maneira ao Aldo. O que terá ele pensado? É a Itália, eu sei. Credo, nem tão-pouco sou original. É o calor e a luz e a retumbante beleza de tudo. Repare-se naquele filme, Viagem Sentimental – fica tudo muito bem emparelhadinho. Ou mesmo nós aqui no curso. O Sam suspira pela Anna e o JP segue a Patricia como uma sombra. A Cat


está sempre a olhar para o Fabio (não que eu a censure – ele é muito atraente, como um Cary Grant jovem) e eu com todos estes sentimentos ridículos em relação ao Aldo. Tudo muito tonto e muito previsível. Portanto, cheguei à conclusão de que devo evitar o Aldo. Não fui a Florença por achar que não conseguiria aguentar um dia inteiro na sua companhia, pensando que seria outra vez como em Roma. Depois de ter dito que não iria, regressei ao meu quarto e o Aldo foi atrás de mim e perguntou-me se eu não queria mudar de ideias. Disse que me levaria a um lugar, no alto de uma colina, onde se pode ver toda a cidade de Florença, espalhada lá em baixo. Disse que me levaria a um restaurante onde fazem um risotto negro especial. Disse que podíamos separar-nos do resto do grupo e deambular simplesmente a ver as montras e a admirar as estátuas. E eu tive de dizer não, obrigada; queria trabalhar na minha escrita. E ele perguntou, com uma espécie de meio sorriso: «Vai escrever sobre mim?» E eu respondi: «Bem, o meu romance passa-se na Inglaterra». Então ele disse: «Eu podia ir para Inglaterra». E é justamente esse o problema, não é? Ele nunca poderia ir para Inglaterra e eu não posso ficar em Itália. Até a ideia é absurda. Partirei na quinta-feira e se o Aldo alguma vez voltar a pensar em mim, será como a velhinha inglesa engraçada que estava a escrever um policial e que gostava da sua comida. E foi por isso que chorei. Depois de chorar lavei o rosto e fui nadar. Nadar faz-me sempre bem. A Anna também estava na piscina e tivemos uma boa conversa. O asqueroso do Jeremy tentou atirar-se a ela! Como as mulheres sempre fazem, ela culpa-se pelo facto, mas, pessoalmente, acho que ele devia ser despedido. Ele abusou completamente do seu estatuto. A Anna diz que o pior é pensar que ele pode nunca ter gostado da sua escrita, estando apenas a elogiá-la para que ela dormisse com ele. Eu disse que não achava que isso fosse verdade. Que a admiração dele pela sua escrita devia ser genuína. A tentativa de sedução fora oportunista, fora por ela estar lá e por ser bonita. Apesar de todos os seus defeitos, não creio que o Jeremy seja completamente idiota.


Tivemos um dia agradável e calmo. Avancei de facto com a minha escrita e, durante a tarde, fui dar um passeio com a Anna e a Myra. Transpusemos o portão com a coroa de espinhos e continuámos a subir colina acima. Há um riacho, maravilhosamente fresco e limpo, que desce em direcção ao vale até encontrar o lago. A Myra disse que a água era a mais pura que alguma vez provaríamos, portanto, tratei de beber alguma e ela tinha razão. Foi como beber luz líquida. Há uma quinta abandonada no monte seguinte. A Myra diz que a zona está a ficar abandonada por não haver trabalho suficiente. Ela diz que os estrangeiros, como a Patricia, são os únicos que compram as casas velhas. O castello está a levá-la à falência, diz a Myra, mas ela nunca partirá porque o adora. E olhando lá de cima para o castello, reluzindo ao sol da tarde, julgo compreender o que a Patricia sentia. Se, contra tudo e contra todos, conseguimos comprar um bocadinho do paraíso, como poderemos abdicar dele? Depois do nosso passeio estávamos cheias de calor e resolvemos regressar pela piscina. Mas o Matt e o Fabio estavam lá, a brincar na água como um par de lontras. Não quisemos importuná-los, portanto, regressámos ao castello e bebemos um chá no terraço. Depois a Cat e as crianças chegaram e desceram para a piscina, onde jogaram pólo aquático com os rapazes. Não me juntei a eles. Sou demasiado velha para esse género de coisas. Mais tarde, nessa noite, a Myra preparou-nos um jantar simples e jogámos às cartas na salinha mais pequena. Os outros regressaram por volta das nove horas. Pensei que o Aldo me quisesse falar do passeio a Florença, mas ele não o fez. Assim que estacionou a carrinha, montou na sua Vespa e foi para casa. E eu fui suficientemente estúpida a ponto de chorar novamente antes de adormecer.


CAPÍTULO 21 Paisagens toscanas O sacrifício de Isaac por Sally Hutchinson O pai empurra a cabeça do filho contra o chão. O filho estrebucha em agonia, de lábios abertos num grito mudo. A faca em primeiro plano, com a lâmina a reluzir perversamente na meia-luz. Poderá Isaac imaginar os seus dentes metálicos a cortarem-lhe a carne, o seu beijo perverso conforme lhe eviscera o jovem corpo? E poderá o pai, Abraão, de careca erguida, aparentando exemplificar imponência e anuência cega às regras, antecipar o estertor mortal do filho, o sangue derramado sobre a sua túnica, o cheiro quente das suas vísceras? Mas o anjo está lá, aquietando a mão de Abraão. A luz incide sobre o antebraço do anjo à medida que este atravessa o quadro. A mão de Abraão é morena, a mão de um trabalhador, mas o anjo é branco, como um ser que nunca viu o sol. Isaac grita ainda. Grita porque sabe que, sem o anjo, o pai tê-lo-ia morto? Como será isso? Saber que o nosso pai estava pronto a sacrificar-nos a um deus desconhecido, a uma voz que ecoa dos Céus. Saber que só fomos salvos por aquela criatura estéril com o braço macio e alvo. Não admira que ele grite. Porém, em pano de fundo, está um castelo, de um amarelo suave contra o céu. E sentimos que no castelo há calor, vinho, festança e o amplexo de corpos quentes. O castelo é o nosso refúgio, a nossa protecção contra as crueldades da carne.


Crepúsculo por Mary McMahon O pôr-do-sol cai depressa após o lento crepúsculo. Primeiro as árvores ficam infinitesimalmente mais escuras, as suas sombras mais negras, depois a luz passa de branco a ouro e tudo fica mais nítido: cada folha, cada flor, cada muro em ruínas, cada insecto suspenso em intricadas teias contra as traves. Os cheiros intensificam-se também. Durante o dia, tudo é agrupado numa esmagadora sensação – calor. Agora podemos cheirar cada planta: rosmaninho, jasmim, lavanda e centenas de outras que não sei nomear. Os pássaros começam a cantar, chilreando contra o constante ruído de fundo dos grilos, e as abelhas zumbem, inchadas e repletas de mel. O céu, que tem tido um reluzente e quase insuportável tom de azul, suaviza-se agora, tingindo-se de violeta e turquesa. Com o avançar da noite, tomamos consciência do voo dos pássaros, as efémeras silhuetas desenhadas dos morcegos a entrar e sair dos celeiros. Os sapos coaxam nas árvores e os cães ladram nas quintas do vale. Quando a noite cai, a Itália desperta. Nas povoações, as lojas começam a abrir. Os proprietários dos restaurantes dispõem as suas mesas nos passeios e os jovens começam a preparar-se para o ritual nocturno de passeio, namoro e conversa. E os velhos também – vemos velhos e velhas sentados à porta das suas casas, observando, simplesmente. Os seus rostos estão satisfeitos, divertidos. Não são excluídos do ritual como aconteceria em Inglaterra, com os seus jogos de cartas, cumprimentos roufenhos e comentários irónicos. São parte essencial desse mesmo ritual. Se estiverem no crepúsculo dos vossos dias, então a Itália é certamente o paraíso. Esta é uma terra que não celebra apenas a manhã ou o ostensivo esplendor do dia. Esta é uma terra que ama a noite, os lentos prazeres de comer e conversar, o odor subtil da lavanda no ar da noite e os sons combinados dos novos e dos velhos, desfrutando a noite.


Torre del Mangia por Jean-Pierre Charbonneau Quinhentos e três degraus. Parecem mais à medida que conquistamos a espiral, espalmando-nos ocasionalmente contra a parede quando algum mastodonte do Oregon se cruza connosco. Mas, quando alcançamos o topo, e vemos os telhados de Siena, magnificamente caóticos, e as colinas em redor, de um azul escuríssimo contra o céu, então sentimos que vale a pena, cada degrau agonizante. A torre del Mangia recebeu o nome do seu primeiro vigia, que aparentemente seria um mangiaguadagni, um perdulário. Gosto disso. Gosto de imaginar o trabalhador, um homem de meia-idade corado, a jogar talvez os últimos tostões no Palio, ou a comprar para si um gibão particularmente magnífico, com pérolas de cultivo penduradas sob o veludo verde. O vigia chamava-se Giovanni del Balduccio e há uma estátua sua no pátio. Mas a torre não se chama torre di Balduccio. Não: recebeu o nome da sua característica mais marcante. Gosto disso. A torre é uma torre sineira e costumavam tocar o sino ao entardecer, antes de fecharem os portões da cidade. Imagino as suas notas sonoras a ecoarem e as pessoas a instigarem os cavalos para poderem entrar na grande cidade antes do cair da noite. Então os portões fechar-se-iam contra os intrusos e os habitantes de Siena podiam dormir em paz nas suas camas. Agora a principal praça da cidade, o Campo, transborda de intrusos, bárbaros que disparam sem cessar, para a direita, para a esquerda, para o centro. É bem verdade que os seus disparos não são desferidos com armas de fogo e sim com minúsculas câmaras do Extremo Oriente, mas a intenção é a mesma. Querem captar Siena, aprisioná-la nas páginas dos seus álbuns fotográficos, para se vangloriarem de terem derrotado a mais bela cidade do mundo (excluindo Paris). «Fizemos a Toscana em três dias. Siena só demorou uma hora.» Se ao menos pudéssemos fechar os portões contra eles.


CAPÍTULO 22 Décimo segundo dia 13 de Agosto a segunda-feira o ar exsuda uma pesada e expectante sensação. O tempo está muito quente, mesmo para os padrões estivais italianos, e Aldo diz que poderá haver trovoada. Durante a manhã, os hóspedes ficam nos quartos, escrevendo. À tarde haverá a «grande leitura», na qual todos lerão em voz alta excertos dos respectivos livros. As regras são claras: nada de interrupções ou críticas, somente aplausos. Mas, mesmo assim, os escritores estão nervosos e a manhã passa sem ninguém na piscina. Anna, sentada à frente do seu computador, interroga-se se alguém se poderá interessar pela fraca história de Anna/Sophie na universidade/politécnico. Inspirada pela palestra de Jeremy, tem estado a ler A Pedra da Lua – Patricia tem as obras completas de Wilkie Collins na sua biblioteca – e está fascinada com o puro brilhantismo, a facilidade com que Collins muda as vozes autorais, a aparente naturalidade das descrições de pessoas e lugares, mas, acima de tudo, com o colossal número de palavras do livro. O livro de Anna tem cerca de sessenta mil palavras e, muito honestamente, tal implica por vezes prolongadas descrições de Londres à noite, do primeiro beijo de Sophie, etc. Às sessenta mil palavras, Collins mal entrou ainda no ritmo. No entanto, o livro nunca parece demasiado longo – cada palavra é absolutamente certa e necessária. Segundo Jeremy, ele estaria sob o efeito do ópio quando o escreveu. Naturalmente, é por isso que ele é um grande escritor e ela é uma mãe de duas crianças cujo trabalho nunca foi publicado. Seja como for, é bastante deprimente. Anna sente-se igualmente nervosa por ir ver Jeremy de novo. O domingo

N


acabara por ser bom por ter sido um dia tão comunal. Refugiara-se na igreja de manhã e depois Aldo preparara um gigantesco almoço de domingo que se prolongara até depois das seis da tarde. Em seguida todos os hóspedes – excepto Mary, que estava com dor de cabeça – deixaram-se ficar no terraço a conversar e a beber vinho. Quando a noite chegou, alguns foram até San Severino e os restantes ficaram em casa, jogando às cartas e comendo ainda mais. Anna esperara até Sam e Jeremy optarem por San Severino, decidindo então permanecer no castello. A noite fora agradável, jogara whist com Dorothy, Rick e JP. Dorothy ganhara-lhes com grande facilidade. Cat e as crianças tinham jogado também às cartas com Matteo e Fabio e todos se haviam recolhido relativamente cedo. Mas hoje Anna tem de enfrentar Jeremy. Tem de ler em voz alta um excerto do seu estúpido romance de formação – repleto de descrições de sexo adolescente desajeitado – em frente de dois homens com os quais não pretende trocar qualquer palavra, muito menos sobre sexo. Anna suspira e começa a folhear o manuscrito, procurando as páginas menos sugestivas. Deverá haver certamente algo sobre crescer em Wembley, não? Isso deverá entediá-los o suficiente para se comportarem. No seu quarto, Cat está a tentar que Sasha e Star não se matem, procurando ler ao mesmo tempo o seu manuscrito da Mamã Maravilhosa. Estupidamente – na sua opinião – permitira que Justin saísse para correr. Vê este novo entusiasmo de Justin pela corrida com grande desfavor. Para que serve ele correr ao longo da marginal de Brighton a ouvir o seu iPod quando deveria estar no escritório a ganhar dinheiro? Cat culpa Steve, que recentemente resolvera dedicar-se às corridas de longa distância. Está a planear correr a maratona de Londres no próximo ano, contara-lhe Justin entusiasmadíssimo. «E então?», pensa Cat. Todos os anos homens de oitenta anos ridiculamente vestidos correm a maratona. É um feito assim tão importante? Mas Justin acha fantástico, e portanto, agora tem de enfiar as suas pernas magrinhas nuns calções de corrida e partir para as colinas justamente quando ela precisava do seu apoio. As lágrimas surgem nos olhos de Cat quando ela equaciona a sua total


solidão, fechada assim com duas crianças choronas num quarto de hotel. Quem lhe dera poder ir correr, a ouvir Coldplay – mas não, está presa às crianças, como sempre acontece com as mulheres. Credo, pouco melhor é do que uma mãe solteira enfiada numa pensãozeca qualquer… – Mamã, a Star está sentada em cima da minha DS. – Star – diz Cat num tom cansado. – Sai de cima do Game Boy. – Não é um Game Boy – grita Sasha. – É uma Nintendo DS Lite, estúpida! – Estúpida! – guincha Star, juntando-se subitamente àquela nova brincadeira. – Estúpida! Estúpida! Estúpida! E Cat irrompe num pranto. JP está sentado à frente do computador, apagando soturnamente o texto. Porque será que Louis, o Leão, que soava tão bem quando lido em voz alta ao verdadeiro Louis, parece tão inerte no papel? Quão difícil poderá ser escrever um livro descomplicado para crianças com alusões engraçadas à cultura moderna? JP leu todos os livros que precisava de ler, viu os filmes certos, visitou os lugares que precisava de visitar. É bilingue – graças a uma ama inglesa – e é suficientemente moderno para ter ido à Disneylândia e ter visto O Feiticeiro de Oz. Esperava conseguir misturar uma fábula europeia tradicional com uns pozinhos de brilho hollywoodesco. Mas o resultado, compreende agora, é o pior dos dois mundos: um livro repleto de perfeitinhas personagens Disney, nas quais o seu cinismo e a sua nacionalidade não o deixam acreditar. JP continua a carregar na tecla «apagar». Sam está a ponderar qual dos seus manuscritos abortados deverá ler. Qual será melhor, ou menos mau? O thriller, a história de detectives ou a comédia? Decide-se então pelo thriller. Não há nada pior do que ler em voz alta algo alegadamente engraçado e ser recebido com silêncio absoluto. Além disso, sabe bem que a sua soturna pronúncia escocesa faz qualquer coisa parecer um episódio da série televisiva Taggart. Sam perscruta o thriller, O Codex de Cortona, consciente de que não escreveu uma única palavra durante as férias. Esperara regressar após as duas semanas com o


romance terminado e um contrato editorial praticamente garantido. Em vez disso, perdeu-se de amores por uma mulher casada – ou praticamente casada –, esmurrou o tutor do curso e quase perdeu por completo a confiança na sua escrita. «Boa, Sam», pensa tristemente para com os seus botões. O problema é que, embora já não se considere um escritor, continua sem conseguir resolver o problema da mortalidade. Tem quarenta e quatro anos, não tem emprego e está numa relação que, de alguma forma, chegou a um impasse. Nem sequer tem filhos para o desapontarem. Durante a primeira semana na Toscana, a perspectiva de ter uma aventura com Anna mantivera-o à tona. Ela era o seu projecto, o seu trabalho em curso. E continua a gostar dela, mas duvida agora que ela alguma vez retribua os seus sentimentos. Depois de a ter – na sua perspectiva – salvo das garras de Jeremy, esperava que Anna caísse a chorar nos seus braços. Imaginara-se a limpar-lhe as lágrimas, a dizer-lhe que estava segura e, após uma pausa condoída adequada, a despi-la completamente e a fazer amor com ela de forma apaixonada. Mas, em vez disso, Anna olhara para ele com verdadeira irritação, dando a entender que Sam piorara ainda mais a situação. E desde então tem-no evitado ostensivamente. Sam levanta-se, espreguiça-se e aproxima-se da janela. O seu quarto dá para a frente da casa e consegue ver o caminho amplo e serpenteante com os seus deteriorados leões de pedra a guardarem a entrada. Sean, o gato, está deitado ao lado de um deles, imitando-o de forma inconsciente. Meu Deus, como deve ser bom ser gato. Não precisarmos de nos preocupar em deixar a nossa marca no mundo – apenas comer, dormir e brincar com o maior número possível de gatas que conseguirmos encontrar. Imagine-se, eles até têm o seu próprio fórum em Roma. Se houver alguma verdade naqueles disparates de vidas passadas de que Dorothy estava a falar na noite anterior, então ele, Sam, quer regressar como gato. Sam regressa ao computador. Irá ler o manuscrito com a sua pior, a mais impenetrável pronúncia de Glasgow que conseguir. Para eles aprenderem. Patricia está a dispor as cadeiras para a «grande leitura». A experiência de


anos anteriores ensinou-lhe que, para a maioria dos hóspedes, aquele será o ponto alto do curso. Organiza aquele evento há já quatro anos e nenhum dos anteriores hóspedes chegou sequer perto de ser publicado. Não obstante, lerem o seu trabalho em voz alta parece validá-lo e a leitura frequentemente termina com uma atmosfera emocional – com lágrimas, abraços de grupo e profecias de nomeações para prémios literários. O que faz de facto um escritor? Será a publicação de uma obra, ou poderá qualquer pessoa que escreva designar-se assim? Patricia sabe por Jeremy que, embora muita gente comece a escrever livros, muito poucos os acabam efectivamente. Talvez terminar um livro nos dê o direito de nos considerarmos escritores. Patricia nunca sentiu qualquer inclinação para a escrita, ou para pintar ou fazer esculturas com cruzetas velhas. Sean era o elemento criativo do casamento – ainda que depois da compra do castello, as pinturas se tenham limitado às paredes. Não obstante, ele tinha de facto talento. Patricia ainda tem um desenho a carvão que ele fizera de Matt em criança; a ternura exsuda em cada linha enfarruscada. Mas tanto quanto sabia, Sean nunca vendera um quadro em toda a sua vida e alguém precisava de ganhar dinheiro, certo? Myra entra na sala trazendo consigo uma jarra com girassóis. Coloca-os na mesa principal para que possam reluzir como pequenos sóis na divisão sombria. – Perfeito – diz Patricia. – Um pouco de luz para alegrar os ânimos – afirma Myra. – Espero que não sejam só desgraças esta tarde. Patricia pensa em Dorothy. Está a planear sair sub-repticiamente durante a leitura de Dorothy. Não se sente capaz de ouvir mais nada sobre os dramas de infância da americana. Efectivamente, só pensar nisso fá-la sentir-se fisicamente doente. – Bem, o JP está a escrever um livro infantil – diz então. – Deve ser engraçado. Myra olha-a cheia de curiosidade. – Gostas dele, não gostas? Patricia volta-se para ajeitar uma cortina.


– É boa pessoa. Myra solta uma gargalhada. – Bem, ele gosta de ti, querida. – Achas? – inquire Patricia, vencida pela sua própria curiosidade. – Claro que sim! Passa o tempo atrás de ti. Não pára de olhar para ti. Acho que está seriamente apaixonado por ti. – Não sejas tonta – exclama Patricia, remexendo nas borlas das cortinas. – Estás a corar – afirma Myra, rindo. – Aproveita, é o meu conselho. Acho-o muitíssimo atraente. Estou cheia de ciúmes. Eu só tenho o Gennaro. – Bem, o Gennaro também não fica nada atrás – diz Patricia, tentando igualar o tom jovial da amiga. – E tem a sua própria vinha. Que mais pode querer uma rapariga? – Realmente – concorda Myra, balançando-se na maçaneta da porta. – Estou a pensar seriamente no assunto. Tal como devias fazer com o monsieur Charbonneau. «Pensar em quê?», interroga-se Patricia depois de Myra partir. Em substituir Sean por ele? Ninguém o poderia fazer. Em usá-lo como diversão para o resto do Verão? Para uma aventura inconsequente? O problema é que Patricia está longe de ser uma pessoa inconsequente. Nunca o foi. A leitura começa às três horas. Jeremy está sentado à mesa, por detrás dos girassóis, com os escritores à sua frente. Um a um todos se levantarão e virão para a frente da plateia para ler os respectivos trabalhos, ficando sentados ou de pé, conforme preferirem. Tiram então à sorte a ordem de leitura, usando para o efeito um chapéu com os nomes de todos. Anna será a primeira. Ao sentar-se ao lado de Jeremy – ficar de pé parecer-lhe-ia de​masiado representação teatral –, Anna pensa que a sala parece estar assustadoramente cheia. Para além dos sete escritores, estão presentes Patricia e Myra – ambas com sorrisos encorajadores –, Rick, com a sua habitual expressão de amável sonolência, e Justin, segurando com firmeza os filhos irrequietos. Então, quando está prestes a começar a ler, a porta abre-se e Aldo entra. Anna arregala momentaneamente os olhos, uma vez


que Aldo nunca antes apareceu numa sessão de escrita. Depois respira fundo e começa. Não é tão mau como julgara. O público surpreende-a rindo com vontade perante o que considera serem graças bastante fraquinhas e Anna começa a descontrair, conseguindo dar expressão à leitura. Abranda então o ritmo e tenta inclusivamente uma ou duas pausas dramáticas. E quando termina, todos aplaudem entusiasticamente. – Obrigado, Anna – diz Jeremy. – Quem se segue? – Eu – diz JP com uma expressão séria. – Mas apaguei o meu livro. Todos se riem mas, ao repararem que JP mantém a seriedade, o riso esmorece e definha. Jeremy olha, inquisidor, para JP e, ao não receber qualquer ajuda, resolve prosseguir. – Muito bem. Quem se segue? É a vez de Sally, que lê com sorridente compostura um excerto de uma brutalidade desmedida. A audiência, espantadíssima, aplaude vigorosamente. Cat é a seguinte, ficando de pé e lendo com grande entusiasmo, usando as mãos, quase dançando no lugar. Está tão bonita com um vestido de pintinhas vermelhas que é quase impossível não sorrir. E recebe aplausos generosos. Levantando-se, Justin faz-lhe uma ovação solitária. Sam, o seguinte, descobre que a pronuncia escocesa é considerada engraçada. O seu soturno thriller é recebido com vagas de riso. «Afinal, isto tem piada. Talvez deva escrever uma comédia.» Mary levanta-se devagar e, quando chega ao lugar designado, demora algum tempo a ordenar os papéis. – Está bem? – pergunta Jeremy num tom solícito. Mary anui com um pequeno aceno de cabeça, não parecendo, porém, muito disposta a começar. Bebe um pouco de água, clareia a garganta e começa. – O inspector Frank Malone está a falar com os seus pombos. Não há nada de errado nisso, poderá o leitor dizer, mas o que o preocupa é o facto de os pombos terem começado a responder…


Mary continua a ler no seu tom suave e não há ninguém na sala que não se sinta transportado do calor de uma tarde toscana para as cinzentas ruas da zona sul de Londres. A escrita de Mary tem algo que falta em todos os outros excertos – convicção total. Jeremy observa-a com atenção, tamborilando com a caneta contra os dentes. Os demais estão absolutamente silenciosos. Apenas Anna, virando-se ligeiramente, repara em Aldo, interrogando-se acerca da sua expressão. A leitura de Mary é recebida com um genuíno coro de aplausos. – Bravo! – grita Aldo como se estivesse na ópera. Mary sorri, indecisa, revelando que a reacção do público a apanhou completamente de surpresa. E olha para Jeremy. – Eles gostaram – diz Jeremy num tom seco, lutando contra duas emoções contraditórias: inveja pessoal e prazer profissional por finalmente ter descoberto alguém que sabe escrever. «Não gostaria nada de ler a seguir a isto», pensa Anna, mas Dorothy não parece importar-se. Levanta-se, majestosa com um conjunto floral de duas peças, e caminha solenemente para a frente da plateia, detendo-se pelo caminho para dar uma pancadinha amigável no ombro de Mary. – Bem, foi realmente adorável, não acham? – inquire a americana, sorrindo para os colegas. – Lamento dizê-lo, mas o excerto que vou partilhar convosco parecerá um pouco negro após o que já ouvimos: a simpática comédia escocesa do Sam e o adorável policial da Mary. Vou falar-vos de coisas que aconteceram nos mais negros recantos do coração humano. – E sorri abertamente enquanto põe os óculos. Patricia recosta-se na cadeira. Sentara-se propositadamente perto da porta para poder escapar quando Dorothy começasse a ler, mas Aldo está agora ao seu lado, o que significa que teria de passar por ele, com todo o aparato que isso implicaria. A porta está imediatamente ao lado da mesa do orador e seria impossível Dorothy não ver a anfitriã sair de mansinho. Patricia está encurralada. Dorothy começa. – Compreendi que a minha mãe me odiava quando ela me marcou com um ferro incandescente. Até então tinham sido as coisas do costume: sovas com


cintos e mangueiras de jardim, ficar fechada no meu quarto sem comida nem água, ser-me dito que era inútil e estúpida e que nunca seria nada neste mundo. A mãe era dura com todos nós, mas, por alguma razão, eu era a mais castigada. Mas no dia em que ela me marcou, deliberadamente, por eu lhe ter respondido, foi então que eu soube… Dorothy cala-se. O seu rosto empalidece e, a tremer visivelmente, leva a mão à boca. O público que, incomodado, se tinha agitado nos assentos durante toda a leitura, assume a princípio que a americana sucumbiu à emoção. Mas depois constatam que Jeremy está também a olhar para a frente, com a boca ligeiramente entreaberta. E, um a um, voltam-se para trás para ver o que lhe prendeu a atenção. À porta vêem uma velhinha parada. Enverga uns calções de xadrez e traz consigo uma pequena mala com rodas. E sorri, encantada, para os rostos surpreendidos. – Olá, olá a todos – diz ela numa agradável pronúncia do Midwest. – É um prazer conhecê-los. Eu sou a Betsy. A mãe da Dorothy.


CAPÍTULO 23 Décimo segundo dia

–A

mãe de Dorothy? – repete Patricia, que se levantou para encarar a intrusa. O seu rosto está pálido e ela agarra com força o ombro de

Aldo. – Bem, sim – diz a aparição. – Consultei o website e vi a oferta especial, preços reduzidos para amigos e família para a segunda semana. E decidi aparecer e surpreender a minha menina. Apanhei um táxi no aeroporto e esta rapariga simpática deixou-me entrar. – E aponta para a sisuda Ratka ao seu lado. Patricia vira-se e torna a olhar para Dorothy, que continua imóvel na mesa, petrificada. Deixou entretanto cair o seu manuscrito e as páginas estão agora espalhadas pelo chão. – O que estavas a ler, querida? – insiste Betsy. – Parecia ser muito bom. Dorothy deixa escapar um grito abafado e sai disparada da sala, passando de raspão pela mãe na entrada. Betsy cambaleia e quase cai. Aldo, sempre um cavalheiro, vai em seu socorro. – Sente-se – diz ele. – Deve estar cansada. – Estou de facto… um pouco… – afirma Betsy, hesitando. Senta-se na cadeira vazia de Aldo e esfrega os olhos. «É mais velha do que aparentava à primeira vista», pensa Patricia. Terá pelo menos uns oitenta anos. Rick avança em seguida, salvando magnificamente a situação. Aparentemente encantado com o sucedido, inclina-se de imediato para abraçar a velhota. – Betsy! – Richard – diz Betsy, erguendo os olhos para ele. – A Dorothy está bem? – Está óptima – responde Rick, ajoelhando-se em frente da sogra. – Foi o


choque da surpresa. Mas agora tratemos de a instalar. Patricia, sabe…? Patricia recompõe-se com algum esforço. Afinal, ela continua a ser a anfitriã. – Com certeza. Mrs.… hum… Betsy. Eu levo-a ao seu quarto. É o quarto azul, creio eu, Ratka. Aldo, pode trazer a mala da Betsy? – Certo, certo – diz Aldo, anuindo igualmente com um ligeiro aceno de cabeça na direcção da patroa, que lhe retribui com um sorriso agradecido. E com Rick de um lado e Patricia do outro, a mãe de Dorothy é conduzida para fora da sala. O quarto azul está escuro e um pouco triste, com a cama por fazer e uma porta aberta para um guarda-fato vazio. Quando Patricia abre os estores, o súbito golpe de sol é quase chocante. Ratka traz lençóis lavados e, juntamente com Patricia, fazem a cama enquanto Betsy se senta na cadeira junto à janela, contemplando o olival prateado. – É, sem dúvida, um lugar bonito – diz a velhota. – Sem dúvida – concorda cordialmente Rick, parado no meio do quarto de braços frouxos, sem saber muito bem o que fazer. Patricia apercebe-se então de que raramente o viu sem Dorothy. Ratka providencia as toalhas e artigos de casa de banho enquanto a anfitriã ajeita as almofadas do pequeno sofá. – Quer tomar alguma coisa? – pergunta ela. – Chá? Café? – Não, querida, obrigada – responde Betsy. – Creio que vou descansar um bocadinho. – O jantar é servido às oito e meia – diz Patricia. – Normalmente, antes da refeição, tomamos aperitivos no terraço. Quer que a chame? – Seria óptimo – diz Betsy. – Creio que irei dormir um pouco. Patricia abre então a cama, despedindo-se. Rick beija Betsy no rosto e também ele se apressa a sair. No corredor, Patricia e Rick entreolham-se. – Não compreendo – diz Patricia assim que se afastam o suficiente para não poderem ser ouvidos. – Depois de tudo o que a Dorothy disse sobre a mãe, como pode ela aparecer assim sem mais nem menos? – Também não compreendo – admite Rick, esfregando a testa com um


grande lenço branco. Estão ambos parados junto a uma tradicional roda de carroça suspensa, envernizada e reluzente, na imaculada parede branca. A justaposição faz com que Rick se assemelhe um pouco a um animal de quinta, talvez um boi. – Mas é verdade? Tudo aquilo acerca da mãe? – Ora bem – afirma Rick devagar. – Não sei ao certo. Sei que a Dorothy teve uma infância difícil. Eles eram muito pobres e ela e os irmãos não tiveram grande escolaridade. Mas a Dorothy nunca falou de abusos, pelo menos quando nos conhecemos. Na altura parecia dar-se razoavelmente bem com a mãe. Quando tivemos os nossos filhos, a Betsy costumava até aparecer para nos ajudar. Mas depois a Dorothy ficou… deprimida. E resolveu consultar um fulano, um terapeuta, e ele disse-lhe para olhar para a sua infância. E, quando dei por mim, ela começara a recordar todas aquelas coisas terríveis acerca da Betsy. – Acha que aconteceu de facto? – Não sei – afirma de novo Rick. – Mas sei que a Dorothy acredita piamente que sim. Não está a fingir. Ela acredita que enterrou a memória da violência por ser demasiado doloroso. Desde que consultou o terapeuta, recusa-se a contactar a mãe e os irmãos e irmãs. E no meu entender foi justamente por isso que Betsy resolveu aparecer. Ela está desejosa por ver a filha. E, naturalmente, não tem a mais pequena ideia do que leva a Dorothy a não querer vê-la. – Ela não sabe que a Dorothy planeia escrever um livro sobre os alegados maus-tratos? Rick abana lentamente a cabeça, parecendo-se cada vez mais com um boi. – Não. Eu disse à Dorothy: «Se o livro for publicado, a tua mãe vai ficar a saber.» Mas não me parece que ela tenha imaginado que tal pudesse acontecer. Ela sabe que não é uma escritora. Mas depois o Jeremy começou com aquela conversa da escrita não interessar e eu creio que isso a terá feito pensar. «Aposto que sim», pensa Patricia, desejando – e não pela primeira vez – que Jeremy soubesse quando devia ficar calado. – O que irá ela pensar da presença de Betsy? – pergunta Patricia.


– Não sei – responde Rick num tom desanimado. – Suponho que seja melhor ir descobrir. – E desaparece, qual boi pardacento e cabisbaixo. Os hóspedes estão reunidos na cozinha. Isto nunca aconteceu nos cursos anteriores e Aldo ainda não sabe ao certo como foi que aconteceu desta vez. Depois de Patricia e Rick terem levado Betsy, os demais escritores tinham permanecido sentados em abismado silêncio durante algum tempo, até Sam dizer, ainda com a sua cómica pronúncia escocesa: – Não creio que a Dorothy estivesse à espera disto. Todos tinham rido, rido a bom rir, até as lágrimas lhes rolarem pelos rostos abaixo. Anna ficara bastante surpreendida por achar tudo aquilo hilariante. Obviamente, não tinha a menor graça. Se a história de Dorothy fosse verdadeira, então Betsy era um monstro. Se não fosse, então Dorothy planeara contar uma mentira terrível sobre a sua própria mãe. Não tinha a menor graça, mas, de alguma forma, a dramática aparição de Betsy parecia saída de um filme, o que fazia com que ninguém conseguisse levar a sério as implicações humanas. Quando o riso soçobrara, tinham-se fartado de conversar. Seria o livro de Dorothy pura invenção? Estaria Rick ao corrente? Betsy aparentava ser bastante simpática, mas quem poderia saber? Mas se Betsy odiava realmente a filha, então porque atravessara meio mundo para lhe fazer uma surpresa? A dada altura Aldo levantara-se, anunciando a sua intenção de começar a preparar o jantar. Myra afirmara que iria preparar um chá para todos – eram então cinco horas da tarde – e saíra atrás de Aldo. E fora apenas quando já estava a meio das escadas de pedra que conduziam à cozinha que reparara que os hóspedes seguiam no seu encalço. Aparentemente a coesão do grupo era agora tão forte que tudo o que faziam, faziam em conjunto. Ignorando a expressão chocada de Aldo, tinham invadido a cozinha, estando nesse mo​mento sentados – alguns à mesa, outros encarrapitados nas superfícies de trabalho e os restantes encostados às paredes – a conversar intensamente sobre a situação de Dorothy. Aldo rendera-se ao inevitável e servira, não chá, mas vinho caseiro, de um tom vermelho claro e ligeiramente gasoso, o que ajudara à tagarelice.


Talvez fosse do cenário informal, mas subitamente os hóspedes parecem mais uma grande família do que um grupo de estranhos a frequentar o mesmo curso de Verão. Aldo, entretido a cortar tomates, é o avô; Mary, a ajudar Aldo cortando os alhos – é a única agraciada com uma tal honra – é a avó, serena com o seu cabelo grisalho. Jeremy, recostado e oferecendo a todos o benefício da sua sabedoria, é o pai. Sally, concordando com Jeremy mas mantendo a paz com os restantes, é a mãe. Cat e Anna são as filhas adolescentes, rindo em conjunto perante a ideia de que Dorothy poderá agora reescrever o seu livro como um manual de puericultura. JP, elogiando educadamente Aldo pelo vinho, é o mundano e ligeiramente distante tio. Sam é o mal-humorado e conflituoso filho que, alternadamente, faz os demais rir com as suas imitações de Betsy ou declara que nada daquilo lhes diz respeito. Justin e as crianças foram para a piscina, mas Matt e Fabio aparecem na cozinha, passando por filhos brincalhões mais novos. E a família fica completa. – É inacreditável que ela tenha inventado tudo aquilo – excla​ma Anna, pela enésima vez. – Parecia tudo tão verdadeiro. E era tão pormenorizado. – Construído com detalhes alheios – diz Jeremy. – Vital para qualquer trabalho de ficção. – Acha então que ela estava a mentir? – pergunta JP, franzindo-se para o seu copo de vinho. – Se acho? – diz Jeremy de forma arrogante. – Tenho a certeza. Dorothy Van Elsten queria produzir um sucesso de vendas. Que género tem sido mais bem-sucedido nos últimos tempos? As confissões torturadas. A Dorothy sabia que o seu livro não venderia como ficção, mas seria imbatível como autobiografia. – Não acredito que ela seja assim tão calculista – protesta Anna. – Ela é genuína, estou certa disso. E o Rick também. – Acha então que a Betsy é a mamã monstro do Psico? – pergunta Sam com um sorriso forçado. – Não sei – diz Anna. – Só a vi por instantes, mas pareceu-me uma velhinha normalíssima. – Há muitos anos – interrompe Aldo do fogão – houve um julgamento em


Itália de criminosos de guerra nazis. Foram acusados de atrocidades terríveis, algumas delas perpetradas aqui perto. Uma vila inteira massacrada por ajudar a Resistência. Eu assisti ao julgamento. Lembro-me muito bem da guerra, do medo, da fome, da Resistência escondida nos montes. Fui ao julgamento cheio de ódio. E o que encontrei? Velhinhos. Avôs de cabelos brancos. Mas os velhos também podem ser monstros. – E abana a cabeça num gesto solene antes de se virar para o seu sugo. – A Dorothy menciona com frequência o terapeuta – diz Cat. – Talvez ele lhe tenha enfiado tudo isso na cabeça. Síndrome das memórias falsas. – Mas poder-se-á inventar algo assim tão terrível? – pergunta Anna. – É claro que sim – afirma Sally. – Os escritores fazem-no constantemente – acrescenta ela, olhando para Jeremy à procura de validação. Ele anui com um aceno de cabeça. – Com certeza. O subconsciente é capaz de coisas terríveis. – Então talvez os maus-tratos tenham ocorrido no subconsciente da Dorothy – propõe Cat – e não na vida real. – Ah – exclama Jeremy, sorrindo de forma irritante. – O que é a vida real? Aldo deita na panela com óleo um peito de galinha enfarinhado. A carne chia apetecivelmente, enchendo a divisão com um odor a alho e rosmaninho. – A comida – afirma Aldo –, é absolutamente real. – Sim – diz Sam. – Esperemos para ver o que acontece ao jantar. Mas o grupo fica desiludido ao constatar que nem Dorothy nem Betsy descem para comer. Betsy está cansada por causa da viagem e Dorothy está com dores de cabeça, explica Rick. Sally pergunta se Dorothy falou com a mãe. Rick diz, num tom comedido, que tiveram uma pequena conversa. Ambas estarão funcionais no dia seguinte. E a família disfuncional tem de se contentar com isto.


CAPÍTULO 24 Décimo terceiro dia 14 de Agosto ara deleite de todos, na manhã de terça-feira Dorothy e Betsy aparecem juntas para tomar o pequeno-almoço. Dorothy, embora um pouco pálida e de olhos inchados, revela a disposição graciosa do costume. Deambula em volta da mesa, apresentando Betsy, «Esta é a minha mãe, vinda de Poplar Bluff, Missouri», como se não tivesse descrito a progenitora como um monstro pérfido e violento que transformara a sua infância num verdadeiro inferno. Betsy, vestindo outro par de calções garridos, sorri para todos, professando o seu deleite pela beleza do lugar, confessando o seu entusiasmo por estar em Itália e afirmando estar desejosa por nadar na fantástica piscina. – A Mary é a nadadora do grupo – diz JP. – Faz vinte piscinas todas as manhãs, não é verdade, Mary? Mary, cujo cabelo, como de costume, está ligeiramente molha​do de manhã, sorri modestamente, corrigindo-o: – Cinquenta. – Cinquenta! – exclama Sam. – Eu morria. Estou a ficar muito em baixo de forma. Devo ter engordado uns cinco quilos com a comida do Aldo. – Impossível – reclama Aldo, pousando na mesa um prato com bolos de mel. – A minha comida não engorda. Aldo acredita piamente que a comida italiana não contém calorias. – Aposto que o Aldo faz uma tarte de pizza maravilhosa – diz Betsy de forma tímida. – Eu adoro tarte de pizza. – As pizze são do Sul – diz Aldo num tom irritado, transigindo no entanto um pouco. – Sim, sei preparar pizza. Temos um forno especial e tudo.

P


– E, se quisermos ser mais precisos – diz Cat com uma piscadela de olho –, pizza significa tarte, logo dizer tarte de pizza é tautológico2. – Meu Deus – exclama Betsy, sem parecer reparar nas palavras e sim na oradora. – Que bonita que é! É modelo? – Não – responde Cat, sacudindo o cabelo. – Trabalho em publicidade. – E andou em Cambridge – acrescenta Sam. – Ainda não lho tinha dito? – Cambridge, Massachusetts? – inquire Betsy cheia de interesse. – E gostou de lá estar? Eu nunca fui a Boston. Após o pequeno-almoço, Dorothy anuncia que vai levar a mãe a San Severino. Fabio oferece-se para as levar e Cat manifesta interesse em acompanhá-las, pois pretende comprar alguns presentes. Sasha e Star, alertadas pela palavra começada por «p», suplicam que a mãe os leve, mas Justin diz que os vai levar ao lago. Os outros hóspedes ficam no castello. Depois do bulício de actividade literária do dia anterior, ninguém tem grande vontade de escrever. E é evidente que a maioria pretende passar o dia na piscina. Mary segue para o seu quarto para vestir o seu segundo fato de banho e para buscar o livro e o protector solar. E fica surpreendida ao ver Aldo a deambular à porta do seu quarto. Ele raramente sobe ao primeiro andar. – Olá, Aldo – diz Mary, tentando manter a voz tranquila. – Mary – exclama Aldo sorrindo, conseguindo dar quatro sílabas ao nome dela. E por um instante permanece calado, sorrindo apenas, como se o simples facto de olhar para ela o deixasse tremendamente feliz. Mary sente-se então extremamente consciente do seu cabelo molhado e murcho e das calças pouco lisonjeiras. – Gostei do seu livro – diz Aldo. – Aquele inspector Malone é como uma pessoa verdadeira. Fez-me lembrar o meu tio Peppino, que é chefe pasteleiro em Milão. – Oh – exclama Mary. – Obrigada. Ela adora a forma como ele pronuncia Malone, acentuando o «Mal». «Mal-one.»


– Então – diz Aldo, aproximando-se ligeiramente. Mary repara no azul intenso dos seus olhos, acentuado pelo rosto moreno. – Esta noite vamos jantar na Villa Stella, certo? – Sim, creio que sim. – Vai ser muito bom. Sou um dos professores do curso – diz ele, enfunando um pouco o peito. – Meu Deus, eu não sabia. – Sim, sou um homem de muitos talentos – diz Aldo, rindo de forma demeritória. – Mas amanhã é o Ferragosto e a Patrizia organiza um jantar no La Taverna. – Sim, já ouvi dizer. – É um bom restaurante. O chef foi meu aprendiz quando eu trabalhava num restaurante. Mas, Mary, eu tive outra ideia. – Sim? – diz Mary, sentindo a garganta absurdamente seca. – Porque não a levo a minha casa e lhe preparo o jantar? – Na sua casa? – Sim. Tenho um apartamento simpático em San Severino. Vou prepararlhe um banquete, só para nós os dois. O que me diz? O que pode ela dizer? Mary sabe perfeitamente o que deveria dizer. Deveria dizer que não poderia de forma alguma abandonar o grupo na sua última noite. Deveria ter cuidado, dado o ridículo estado das suas emoções, evitando ficar a sós com Aldo – quanto mais ir à sua casa, sozinha, para jantar com ele. Deveria agradecer-lhe com recatada educação, dizendo ser impossível aceitar o generoso convite. Depois deveria enfiar-se no quarto, começar a fazer as malas e nunca mais pensar nele. – Obrigada – diz então. – Será um prazer. Patricia está no escritório, a olhar para a contabilidade. Mesmo com o dinheiro extra das estadias de Justin e Betsy não conseguirá a verba suficiente para pagar o seu empréstimo. A Torre Norte precisa de facto de obras antes do Inverno, e os algerozes poderão precisar de ser substituídos. Tem as marcações completas para Setembro e Outubro, mas um dos cursos de Novembro só tem três candidaturas. Se não surgirem mais, terá de o


cancelar. Como poderá poupar dinheiro? As despesas da comida de Aldo são enormes, mas Patricia não consegue conceber o castello sem ele. Aldo é tão característico como as torres quadradas e os terraços em socalcos. E nasceu a poucos quilómetros dali; tem mais direito de ali estar do que ela. Além disso, a comida maravilhosa é fundamental para o sucesso do castello – o website está repleto de elogiosos louvores à comida, não havendo de facto muitos em relação aos próprios cursos. Talvez pudesse dispensar Ratka e Marija e arcar ela própria com o trabalho doméstico? O seu ânimo esmorece face à perspectiva. Não se importa de trabalhar no duro – efectivamente, quase preferiria lavar e esfregar do que representar constantemente o papel de anfitriã graciosa – só que alguém precisa de se encarregar da porra da parte social, das mesuras, receber e cumprimentar, tranquilizar e elogiar. As almas artísticas precisam de ser apaparicadas. Patricia sabe-o bem de mais. Avança então até à janela e encosta a cabeça ao vidro fresco. Sente-se encurralada e assustada, mas sabe que tal não se deve apenas à perspectiva de bancarrota. Já experimentara antes aquela sensação de asfixia – como se o coração lhe fosse saltar para a garganta, sufocando-a – e esta surge sempre quando, de alguma forma, se deixa apanhar pelo passado. Lembra-se que Sean conseguia dissipar aquela sensação. Mesmo nos momentos mais difíceis, a sua presença era suficiente para afugentar as sombras. Ele era tão imediato, tão livre de dúvidas ou medos – ou qualquer sentido dos negócios, acrescenta tristemente para si própria – que os demónios não o alcançavam, nem a ele nem aos que o rodeavam. Mas Sean partira e os demónios estavam de novo a ganhar terreno. – Patricia? JP aparece à porta e Patricia recorda-se da primeira conversa de ambos, acerca do secador avariado, quando ele tivera a ideia da oferta especial. Teriam efectivamente só passado onze dias? Patricia volta-se de imediato, sentindo-se constrangida por ser apanhada a olhar pela janela como se fosse uma hóspede. – Está com uma expressão cansada – diz JP. Como é natural, o comentário deixa Patricia irritada.


– Estou óptima – afirma ela, num tom um nadinha brusco. – Estes cursos devem desgastá-la muito – diz JP, avançando até ela. No relvado, os aspersores libertam esguichos cruzados numa névoa de água multicolorida, como uma mini Versalhes. – Nem por isso – responde Patricia. – Além do mais, normalmente não nos caem do céu mães violentas. – Imagino que não – anui JP, sorrindo. – Foi um espectáculo e tanto, não é verdade? Mas a Dorothy parece estar a lidar muito bem com o sucedido. «É bem verdade», pensa Patricia. No dia anterior Dorothy parecera estar prestes a desfalecer, mas na manhã seguinte agira como se Betsy fosse a sua melhor amiga. O facto deixara Patricia estranhamente inquieta, quase assustada. Acreditara em Dorothy mas, se a sua história não era verdade, o que pensar da análise e das memórias reprimidas? – Nunca acreditei na história da Dorothy – diz JP. – Pareceu-me sempre demasiado exótica. Demasiado dickensiana. A vida não é assim. – Ficaria surpreendido – murmura Patricia num tom sombrio. Segue-se um breve silêncio durante o qual o gato Sean entra na sala, saltando com destreza para o parapeito da janela. Patricia afaga-o; o seu pêlo está quente do sol. E apercebe-se de que JP está a interrogá-la acerca do serão. Tem mesmo de se recompor. – Oh, é sempre divertido na Villa Stella – diz então. – A comida é óptima, ainda que terrivelmente calórica, e todos se vestem a rigor. Há champanhe e por vezes danças depois do jantar. – E onde fica essa tal de Villa Stella? – pergunta JP. – Bastante perto, é já no próximo monte. É uma casa enorme com jardins maravilhosos. É moderna. Não é nada parecida com o castello, mas foi feita com muito gosto. É gerida por um inglês chamado Tony Pearce. É uma jóia de pessoa. – Não faz então concorrência à Patricia? – Não. Organizamos cursos bastante diferentes e por vezes até fazemos eventos em conjunto. Provas de vinhos e cursos de desenho, esse género de coisas. Ele também faz férias desportivas. Faz por estar sempre em forma e vai de bicicleta para todo o lado. E também tem cavalos. O Sean costumava


ajudá-lo de vez em quando. – Esse Tony parece ser um modelo de virtude – diz JP num tom um tanto amuado. Patricia solta uma gargalhada. – Por vezes é bom ter alguém inglês com quem conversar. Para discutir The Archers ou Wimbledon ou se o príncipe William se casará. – O que é The Archers? – Está a ver o que quero dizer? JP permanece calado durante algum tempo, perguntando depois: – Amanhã é o dia da grande festa, certo? – O Ferragosto, sim. – E amanhã teremos o nosso tempo a sós, depois do jantar? Patricia olha para ele. JP parece enorme, ali parado na sua sala. Tem uma presença impressionante, quase solene, mas o seu sorriso é surpreendentemente doce. – Sim – promete ela. – Teremos o nosso tempo a sós. * À medida que a noite se aproxima, o entusiasmo invade o castello. Após um dia passado ao sol, os hóspedes sobem para os respectivos quartos para tomar banho, mudar de roupa e prepararem-se para o jantar na Villa Stella. Depois de quase duas semanas passadas na companhia uns dos outros, a perspectiva de conhecerem gente nova parece-lhes tão excitante quanto assustadora. Anna, tomando um duche agradável, interroga-se por que ra​zão apanhar sol cansa tanto. Não fizera nada o dia inteiro e no en​tanto sente-se saciada e satisfeita, como se tivesse acabado de correr uma grande distância. Não que alguma vez o fizesse, naturalmente. Steve é o corredor da família; Anna entretém-se a segurar as garrafas de água e a distribuir elogios. E talvez tivesse sido justamente isso que tornara o dia tão relaxante – não precisar de agradar a ninguém, excepto a si própria. Nadara, lera A Pedra da Lua e conversara preguiçosamente com Mary e Sally. Até mesmo Sam parecera fazer os possíveis para ser agradável, não produzindo nenhum dos pesados


apartes com que a brindara nos dias anteriores. O grupo descontraíra sob o sol abrasador, seguro na certeza de que, se ficassem demasiado quentes, poderiam nadar na piscina ou refugiar-se de​baixo dos guarda-sóis a beber água mineral fresca. «Desde que não tenhamos de fazer nada, o calor é bastante suportável», pensa Anna. Sai do duche, limpa o vapor do espelho e olha para o seu refle​xo. Está bastante surpreendida com a cor que adquiriu. Tem tido cuidado com o sol, untando-se com protector solar e sentando-se à sombra nas horas de maior calor, mas mesmo assim está dourada – completamente castanha, com o cabelo mais claro e os olhos mais escuros e mais vivos do que antes. Anna não é minimamente narcisista – e contudo agrada-lhe verdadeiramente aplicar a maquilhagem e arranjar o cabelo num nó artístico no alto da cabeça. É quase como se estivesse a olhar para uma estranha. Veste então o seu único vestido elegante: preto, solto e sem mangas. Anteriormente, achara o vestido demasiado simples e até desmazelado. Mas, na nova Anna beijada pelo sol, parece-lhe misteriosamente sensual e sofisticado. E manda um beijo ao reflexo no espelho, pensando: «O que estou eu a fazer?». O resto do grupo, à espera no hall, está igualmente elegante. Até mesmo Matt enverga um limpo, ainda que amarrotado, casaco de linho por cima das suas calças de ganga. Cat, com um resplandecente vestido prateado, está tão bonita que a elevada auto-estima de Anna desaparece por completo. Por mais que tentasse, nunca poderia ser tão bonita como a amiga. Justin parece estar prestes a rebentar de orgulho. Ratka oferecera-se para tomar conta das crianças para que o casal pudesse por fim desfrutar de uma noite a sós. Mary está muito elegante com um conjunto verde-folha de duas peças e Sally brilha com um multicolorido casaco de lantejoulas, reluzindo sob os lustres. Em comparação, os ho​mens, com as suas camisas abertas, parecem desleixados – até Aldo aparecer, esplêndido de smoking preto e lacinho. Embora seja mais velho e mais baixo do que os outros homens, tem uma presença decididamente masculina enquanto se dobra educadamente, cumprimentando as senhoras com uma pequena vénia e oferecendo o braço a Mary.


– Credo, Aldo – exclama Sam. – Parece uma estrela de cinema. – Não – diz Aldo. – A estrela é a Mary. Anna e Cat entreolham-se. Dorothy, Rick e Betsy são os últimos a descer. Rick, com um laço fininho e chapéu de aba larga, marca pontos para a equipa masculina, enquanto o vestido de Dorothy, com um padrão de papoilas, é amplamente aplaudido. Betsy está a usar aqueles que manifestamente são os seus melhores calções – cor-de-rosa – e uma T-shirt a dizer «100% Carne Americana». – Espero que não a ponham na grelha – sussurra Sam a Anna. Quando chegam a Villa Stella, levados na carrinha por Fabio, torna-se óbvio que os grelhados não farão parte do serão. São recebidos à porta por Tony Pearce, um homem alto e elegante de smoking, e apresentados aos outros hóspedes, incluindo Gennaro, Don Tonnino, o padre, e o presidente da Câmara de San Severino. O champanhe flui livremente. Surgem então pequenas bandejas com crostini, que são engolidos com mais champanhe. Anna começa a ver a sala em reluzentes fragmentos que dançam como cores num caleidoscópio: os empregados de casacas alvas, o chocante vermelho e dourado das flores, a noite escura vista através de janelas em arco brancas, as velas tremeluzentes, os tabuleiros de comida reluzentes. – Sinto-me bastante tocada – diz ela a Cat. – Também eu – responde Cat, esticando o copo a pedir mais champanhe. – É fantástico, não é? Anna está prestes a responder quando Tony Pearce se aproxima, sendo recebido por Cat com grandes sacudidelas de cabelo e excessivo bater de pestanas. Esta noite a disposição de Cat parece um tanto fria, tão reluzente e metálica como o seu vestido prateado, pensa Anna. Mas Tony não parece importar-se, tal como outros dois homens que se apressam a cruzar o salão para lhes fazerem companhia. Anna vê Justin a observar de testa franzida do sofá onde está encurralado entre Mary e Dorothy. E Anna está a pensar em juntar-se-lhes quando uma voz atrás de si exclama: – Está deslumbrante. É Sam. – Obrigada – responde Anna educadamente, afastando-se um pouco.


– Estou a falar a sério – diz Sam com um brilho intenso nos seus olhos escuros. – Está deslumbrante. – Estou ansiosa por provar a comida – diz Anna num tom animado. – Sabia que o Aldo é um dos professores do curso? – Anna – afirma Sam num estranho tom tenso. – Porque não me deixa dizer o que realmente quero? – Porque não me parece que seja boa ideia, é por isso – diz Anna, algo nervosa. – Mas deve saber o que eu sinto por si. Anna sente de novo a sala a girar e tenta agarrar-se a um facto sólido para se amparar. – Sou casada – diz então. – Não, não é. – É como se fosse – retruca Anna. – E tenho dois filhos. – Estou apaixonado por si – diz Sam. – Não, não está. – Não me diga que não – diz Sam num tom feroz. – Eu sei o que sinto. – Chiu – admoesta Anna, olhando em volta, mas o burburinho das conversas é de tal forma alto que ninguém na sala parece ter reparado que Sam levantou a voz. – Perdão – diz Sam num tom mais baixo enquanto agarra com força o braço de Anna. – Eu estou a enlouquecer, Anna. – Ouça – afirma Anna, soltando o braço. – É de estarmos tanto tempo juntos. É este cenário, a Itália, o calor… – Não seja condescendente – explode Sam, e desta vez voltam-se algumas cabeças. – Eu sei o que sinto. Anna vê Patricia a observá-los de testa franzida. Jeremy está a dizer algo a Sally com uma expressão presunçosa, como se os seus piores receios em relação a Anna e Sam estivessem a concretizar-se. Mas é Aldo quem se aproxima, um anjo da guarda de smoking. – Anna – afirma ele, inclinando-se ligeiramente. – Vamos agora jantar. Não me quer dar a honra da sua companhia? – E oferece-lhe o braço, que ela aceita agradecida. Atrás de si, Anna ouve Sam suspirar profundamente,


deixando os braços cair de forma teatral. Na sala de jantar comprida, parecem estar todos os talheres da Toscana – segundo Aldo, os florentinos inventaram o garfo. A luz reflecte em decantadores, copos de vinho de pé alto e pratas reluzentes. Anna senta-se ao lado de Aldo e coloca o espesso guardanapo de linho sobre o colo. E fica aliviada ao ver Gennaro sentar-se no outro lado. Sam está a uma distância segura no lado oposto da mesa, entre Cat e Patricia. Terá de falar com Sam, explicar-lhe que nunca trairia Steve. Mas não esta noite. Esta noite quer evitá-lo a todo o custo. Se ao menos não tivessem todos bebido tanto. O serão parece estar a ficar descontrolado, como se houvesse uma mão gigante a girá-los a todos, só para ver onde acabavam. Mary, do outro lado de Aldo, tem os olhos a brilhar. Sally contempla Jeremy com adoração. Cat – oh, meu Deus – não pára de rir para o desconcertado Fabio. Myra está a informar Gennaro, rindo mas sem grande convicção, que não é rapariga para casar. Tranquila, Betsy espalha manteiga num pãozinho enquanto Dorothy limpa nervosamente os lábios com o guardanapo. JP olha carrancudo para Patricia, que conversa alegremente com Tony Pearce. O que irá acontecer a todos eles? Os alunos do curso de culinária fazem uma entrada apoteótica com o primeiro prato e os hóspedes levantam-se para os aplaudir. Os cozinheiros, na maioria mulheres de meia-idade, estão corados e felizes. «Talvez me devesse ter inscrito antes num curso de culinária», pensa Anna. De alguma forma, a comida parece ser mais se​gura. As palavras são perigosas. A comida pode ser segura, mas a ementa dos estudantes do curso de culinária não podia ser mais calórica: prosciutto com figos, peras com gorgonzola e mel, melanzane alla parmigiana, flores de courgettes fritas. A isto segue-se massa recheada, escalopes de vitela e coelho num molho agridoce. Aldo informa Anna que se diz «agrodolce» e é uma iguaria rara, mas ela não consegue deixar de pensar em Bunny e Flossie, em casa, na sua gaiola. Quando os pudins fazem a sua marcha triunfal para a mesa, os hóspedes estão já relaxados nas cadeiras. Anna tem a certeza de que se comer uma colherada de zabaglione ou de pêra com molho de chocolate irá ficar agoniada. Dá então um gole na sua água, tentando persuadir a comida


a permanecer no estômago. Numa das pontas da mesa, Dorothy está a falar do Dia de Acção de Graças. – Acho uma pena não existir na Europa. É um feriado tão caloroso, tão orientado para a família. Peru assado e tarte de abóbora. Lembra-se da tarte de abóbora que costumava fazer, mãe? Cat, encostada à mesa, afirma bem alto num tom carregado: – Pensava que a sua infância tinha sido um verdadeiro e absoluto inferno, Dorothy. Cat tropeça um pouco na palavra «absoluto» e Anna compreende que ela está completamente bêbeda. Dorothy olha para ela, aparentemente sem compreender. – O que foi que disse, querida? – Bem, peço desculpa – diz Cat com um gesto expansivo e amplo, derrubando um copo de vinho no processo –, mas não está a escrever um livro sobre a sua terrível infância de maus-tratos, sobre as tareias e a fome a que a sua mãe a sujeitou, ou terei compreendido mal? Um terrível silêncio abate-se sobre a mesa. Todos olham para Betsy, que fixa a filha com um bocado de zabaglione a pender-lhe da colher. – Dotty? – inquire Betsy, hesitante. E o diminutivo parece despoletar algo em Dorothy, que olha, desafiadora, para a mãe. – É verdade. Estou a escrever acerca da minha infância. Reprimi as memórias durante anos mas agora lembro-me de tudo. Todas as coisas terríveis que tu me fazias. – Eu fiz-te coisas terríveis? – Sim! Fizeste! Nunca me amaste. Costumavas bater-me. Tinha enterrado tudo nas profundezas do meu ser, mas o meu terapeuta ajudou-me a recordar. Tu maltrataste-me! – E a última frase sai-lhe como uma espécie de grito reprimido. Rick pousa a mão no ombro da esposa. – Então, querida. Betsy está também ao lado de Dorothy, falando num tom calmo e terno:


– Dotty – diz ela. – Nós vivemos tempos difíceis. Talvez eu tenha sido dura contigo, mas sempre te amei. E nunca te maltratei. Deus é minha testemunha. Por momentos Dorothy contempla furiosamente a mãe, deixando-se depois cair no seu ombro a chorar. Rick levanta-se e conduz as duas para fora da sala. No silêncio pasmado que se segue, Cat começa a rir e depois a chorar. Justin, que está sentado a vários lugares da esposa, levanta-se de imediato, mas Fabio é mais rápido do que ele. – Precisa de apanhar ar – diz o rapaz. – Está muito calor aqui dentro. – E conduz Cat para o exterior. Anna, pensando que poderá ajudar, levanta-se também, chocando com Justin junto à porta. – Qual é o jogo daquele fedelho? – grunhe ele. – Sair assim com a minha mulher. – Ele está apenas a cuidar dela – diz Anna. – Então é melhor que pare – retruca Justin. Ouvem-se vozes vindas do terraço e Justin parte na sua direcção de punhos cerrados. Temendo o pior, Anna segue no seu encalço. Cat e Fabio estão às escuras. Cat está sentada num sofá baixo, com a cabeça entre as mãos. Fabio está de pé atrás dela, ligeiramente afastado. Quando Anna alcança a porta do terraço, Justin está já a pedir satisfações a Fabio, num tom incrivelmente zangado. – O que raio achas que estás a fazer com a minha mulher? Fabio recua um pouco. – Nada. Nada. Estava apenas a ajudá-la… – Agradeço-te que não a ajudes – clama ele, esmurrando Fabio no peito. Anna fica espantadíssima com a agressão de Justin. Onde está agora o contabilista de feitio pachorrento? Porque estará Justin a tentar arranjar uma briga com alguém tão mais novo e mais em forma do que ele? – Eu vejo como tu olhas para ela – grita Justin. – Gostas dela, não é? Vocês, italianos, são todos iguais.


– Eu não… – balbucia Fabio, olhando desesperadamente em volta à procura de ajuda. E ela chega de facto, de uma direcção inesperada. A cabeça de Matt surge por cima do muro do terraço. Ele está a chegar do jardim, tendo feito disparar as luzes de segurança que agora se acendem, conferindo uma atmosfera surreal e teatral aos acontecimentos. Matt passa as pernas por cima do muro e avança na direcção de Justin, colocando-se entre ele e Fabio. – Percebeu tudo mal – diz calmamente a Justin. – O Fabio nunca olhou sequer para a Cat. Mas ela engraça com ele, isso é mais do que óbvio. É melhor levá-la para casa, ela não está com boa cara. Cat apressa-se a cumprir a profecia de Matt, vomitando de forma copiosa e descontrolada sobre o sofá de verga. 2 Em inglês, pizza pie significa pizza. (N. do E.)


CAPÍTULO 25 Décimo terceiro dia, noite e regresso ao castello, Cat e Justin recolhem-se de imediato. Cat está muito pálida mas, pelo menos, já não está indisposta. De mãos dadas, Dorothy e Betsy sobem igualmente para os quartos. Um pouco inebriados com tanta comida e tamanha excitação, ao deixarem a sala de jantar da Villa Stella os hóspedes tinham-se deparado com Dorothy e Betsy a conversarem animadamente na sala. Dorothy estava a segurar a mão da mãe e Betsy acariciava docemente o cabelo da filha. Ninguém as quisera interromper. Matt entrara vindo do terraço e anunciara jovialmente que Cat não se estava a sentir bem. E o grupo do castello não se importara nada de dar a noite por terminada, deixando-se levar para casa por um Fabio emudecido. Agora, porém, parece haver uma curiosa relutância em se recolherem. Rick deixa-se cair numa cadeira ao lado da gigantesca lareira do hall e JP e Sam vão sentar-se junto dele. E é apenas uma questão de minutos até Aldo lhes fazer companhia, levando consigo uma garrafa de brandy. Brandy francês, repara JP, com aprovação. Uma das poucas coisas que os Franceses fazem melhor que os Italianos, consente Aldo. Patricia faz café e, ela própria, Mary e Sally juntam-se ao grupo em torno da lareira senhorial. Anna aproveita a oportunidade para se esgueirar para o quarto. Está ainda ligeiramente enjoada e o champanhe deixou-a com uma terrível dor de cabeça. Tudo o que lhe apetece é meter-se na cama e fingir que a noite nunca aconteceu. Está preocupadíssima com Cat e Justin. Cat sentir-se-á envergonhadíssima ao acordar. É impensável que a bela e sofisticada Cat tenha acabado a vomitar sobre o mobiliário de jardim de Tony Pearce ou que o descontraído e inteligente Justin tenha ameaçado um jovem italiano com metade da sua idade. Afinal, o que se passa com todos?

D


O quarto, com a sua serena e tranquila elegância, é de facto um alívio. Anna descalça os sapatos de salto alto e avança até à janela. A lua brilha sobre os montes escuros. Está quase cheia, faltando-lhe uma nesguinha finíssima para ser um círculo perfeito. Anna olha para o socalco inferior, onde a buganvília se agita na leve brisa da noite. Mais abaixo, a piscina cintila como um rectângulo repleto de luz. Será imaginação sua ou está alguém para lá da piscina, uma figura a andar por entre o olival? Anna sai para a varanda, inalando o ar perfumado da noite. As árvores agitam-se, inquietas e, lá em baixo, algures no vale, um cão ladra. Teria de facto visto alguém ou seria apenas o luar? Pelo sim, pelo não, Anna tranca as portas da varanda antes de se ir deitar. Também Patricia se sente estranhamente inquieta quando por fim sobe para o quarto. Tencionara ficar-se pelo café, mas fora convencida a beber um copo de brandy, ao qual se seguira rapidamente outro. Há quanto tempo não bebia brandy? «Desde que bebias com Sean», diz uma vozinha na sua cabeça. Normalmente evita beber com os hóspedes. Um copo ou dois ao jantar está bem, mas ficar acordada depois da meia-noite a beber brandy é algo completamente distinto. Mas a noite fora de facto diferente de qualquer outra. Há quatro anos que leva os hóspedes ao jantar de gala de Tony e nunca ninguém fora antes acusado de maus-tratos infantis durante a degustação da sobremesa ou vomitara sobre o mobiliário do jardim. Anna e Sam estavam manifestamente a ter problemas antes do jantar e Patricia também não perdeu os olhares escaldantes entre Sally e Jeremy, e até mesmo – imagine-se – entre Aldo e Mary. E quando fora à casa de banho na Villa Stella, surpreendera Myra e Gennaro a beijarem-se no corredor. «Mera diversão», dissera depois Myra. Mas Myra nunca antes sentira necessidade desse tipo de diversão. Patricia toma um duche e veste o seu quimono de seda. Nunca conseguirá dormir depois de tanto café, já para não falar no brandy. Será talvez melhor ir fazer um chá? Sabe perfeitamente que o chá também é estimulante, mas de alguma forma prefere ignorar o fac​to. O chá é reconfortante, o café excita. O vinho é socializar, o brandy é perigoso.


E está a reflectir sobre tudo isto quando ouve uma pancada na porta. Levanta-se então, apertando contra o corpo o diminuto quimono. E fica chocada, mas não completamente surpreendida, ao ver JP parado no corredor, segurando na garrafa de brandy. – Pensei que talvez pudesse querer mais uma bebida – diz ele. – Creio que já bebi o suficiente – afirma Patricia num tom formal. É nesta altura que JP deveria corar, pedir desculpas por a ter incomodado e recuar educadamente. Mas, em vez disso, JP avança, fecha a porta atrás de si, pousa a garrafa de brandy na mesa e abraça-a pela cintura. Quando Patricia abre a boca para denunciar a sua quebra de etiqueta, ele beija-a, apalpando com uma mão o peito dela sob a fina seda do quimono. Patricia sabe bem que o mamilo reagiu ao toque dele. Efectivamente, parece ter perdido a capacidade de controlar a maioria dos seus membros. JP inclina a cabeça para lhe beijar o pescoço, direccionando-a simultaneamente para a cama. Patricia está a agora a corresponder aos seus avanços. «E porque não?», diz o seu corpo. «Há muito que o espero. Não significa nada, ele sabe as re​gras.» «Não podes dormir com um hóspede», protesta a sua mente. «Além disso, gostas demasiado dele, só pode acabar mal.» Mas agora JP está em cima dela e o corpo de Patricia assume definitivamente o comando. E agarra-o, puxando-o pela camisa, sentindo os músculos firmes das suas costas. Então, um grito terrível e arrepiante enche o ar. – Que raio…? – exclama JP sentando-se, estupefacto. Patricia rebola para fora da cama, apertando com força o cinto do quimono e saindo para o corredor. Os gritos vêm do quarto de Sally, no andar de cima. Quando Patricia lá chega, Jeremy, Sam e Fabio já lá estão. Ou já estaria Jeremy por lá? Patricia espera que JP tenha o bom senso de regressar ao quarto dele. Sally, envergando um pijama surpreendentemente feminino, está também no corredor. – Está no meu quarto! – grita ela. – O fantasma? – pergunta estupidamente Patricia. – Não! – grita Sally. – Um escorpião!


O grupo espreita pela porta. E sobre a cama branca, qual imagem do mal, vêm um escorpião negro de cauda erguida, pronto a atacar. – Jesus – exclama Sam. – É mesmo um escorpião. Não sabia que os havia em Itália. – São muito raros – afirma Patricia, embora os escorpiões sejam muitas vezes vistos no castello. Normalmente são pequenos e bastante inofensivos. Mas aquele parece uma ilustração de um livro de insectos mortais. – Por favor, tirem-no dali! – grita Sally, agarrando-se ao braço de Jeremy. Sam e Patricia entreolham-se. Sam sabe que se devia oferecer, mas é apenas um simples rapaz de Glasgow e os insectos tropicais não são de todo a sua especialidade. – Permitam-me – diz Fabio, levando consigo um jornal, que dobra num quadrado. Aproxima-se então do escorpião e deixa-o subir para o jornal, avançando depois com tranquilidade para a janela onde sacode o animal, devolvendo-o à noite. – O meu herói! – exclama Sally, avançando para o rapaz com os olhos marejados de lágrimas. Fabio recua para o corredor. – Não foi nada de especial – diz ele, sorrindo nervosamente. E os seus dentes reluzem na escuridão. – És de facto um herói, rapaz – reitera Sam, dando uma palmada nas costas de Fabio. – Sim – anui Jeremy com menos entusiasmo. – Vou preparar-nos um chá – anuncia Patricia. Enquanto desce as escadas, Patricia constata que Rick continua sentado na cadeira junto à lareira. Tem os olhos fechados, o que lhe indica que poderá estar a dormir. – Rick? Rick abre os olhos e sorri para ela. – Desculpe, querida, devo ter adormecido. Foi de facto um grito o que ouvi ainda agora? – Foi a Sally. Estava um escorpião no quarto dela. – Cáspite. Não me diga que ela nunca viu um escorpião?


– Sabe que mais? – diz Patricia. – É a primeira pessoa que conheço que diz «cáspite». – Bem, espero não ser a última – diz Rick cortesmente. Patricia pensa no quanto gosta de Rick, com o seu charme, amabilidade e boas maneiras. Dorothy tem sorte em tê-lo. – Como está a Dorothy? – inquire então. – Bem, penso eu – diz Rick devagar. – Foi por isso que fiquei aqui em baixo, para lhe dar a ela e à Betsy tempo para conversarem. Estou convencido de que terão resolvido a questão. – Lamento imenso o comportamento da Cat. Ela bebeu de mais. – Oh, não se preocupe – diz Rick. – Para dizer a verdade, creio que ajudou, assim pôs tudo em pratos limpos. Quando a Betsy confrontou a Dorothy directamente, ela ficou de facto abalada em relação às alegadas memórias. – Não acredita então que os maus-tratos tenham acontecido? Rick deixa-se ficar algum tempo em silêncio antes de responder, fazendo girar no copo o resto do seu brandy. – Acredito que ela teve uma infância difícil – diz ele por fim. – Talvez a Betsy tivesse a mão pesada com os filhos. Deve ter sido duro, ter sete crianças e não ter marido nem dinheiro. Mas maus-tratos, reais e sistemáticos? Não, não creio que isso tenha acontecido. Penso que a Dorothy foi influenciada por vários livros que leu sobre crianças maltratadas e convenceu-se de que o mesmo se passara com ela. Ela gosta de ser o centro das atenções, se é que me percebe. – Rick sorri carinhosamente ao dizê-lo. – Então ela já não vai escrever o livro? – Penso que não. Mas valeram bem a pena, estas férias, se conseguirem resolver as coisas entre a Dorothy e a mãe. Arrasámos as nossas poupanças, mas valeu a pena. Lentamente, o significado das palavras de Rick penetra na mente de Patricia. – Arrasaram as poupanças? – inquire ela, olhando de um modo vago para Rick. – Mas eu pensei que eram ricos. Pensei que o Rick era um magnata do


petróleo. – Pensou que eu era um…? – Rick começa a rir, inclinando-se para a frente na cadeira, dando uma palmada na própria coxa. – Pensou que eu era um magnata do petróleo? – Mas o Rick disse… disse que estava no ramo do petróleo. – E estou – afirma Rick. – Sou dono de uma estação de serviço. – E continua a rir até as lágrimas começarem a escorrer-lhe pelas faces abaixo.


CAPÍTULO 26 Décimo quarto dia 15 de Agosto manhã do dia do Ferragosto, a festa da Assunção, é uma das mais perfeitas de que Patricia tem memória. O céu exibe um tom límpido de azul, azul-celeste como os roupões de Mary, e cada folha, cada flor, cada pedra desfeita do castello está banhada pela luz dourada do sol. «Que ironia», pensa Patricia, inclinando-se na janela e inspirando o ar cheio de orvalho, que o castello lhe pareça mais belo do que nunca quando acredita estar prestes a perdê-lo para sempre. Sem a fantasia do dinheiro de Rick, não consegue descortinar como poderá pagar o seu empréstimo. O banco executará a hipoteca e ela perderá o castelo com as suas torres e as suas varandas, o pinhal circundante, as vistas majestosas sobre os campos. Irá perdê-lo e depois o que fará? Ensinar Inglês em Siena? Regressar a Inglaterra e viver num bloco de apartamentos soturno em Luton? Não aguenta pensar em tal coisa. No entanto, enquanto encosta a cabeça à pedra fresca da janela, não consegue sentir-se triste. Não numa manhã como aquela. Hoje há optimismo em cada folha de erva, no canto extático dos pássaros, nas badaladas dos sinos da igreja a ecoar pelo vale. Alguma coisa há-de aparecer. Patricia vê Mary a contornar a casa, trazendo a sua toalha. Avan​ça decidida para a piscina, despe o roupão e mergulha elegantemente na água. Patricia admira a sua braçada suave à medida que ela completa cada volta. Mary é uma mulher e tanto. Nada melhor do que qualquer homem e escreve maravilhosamente bem. «O que sentirá realmente Aldo por ela?», interrogase Patricia. Nunca antes dera tanta atenção a uma hóspede. E Patricia ficara espantadíssima ao saber esta manhã por Matt que Aldo convidara Mary para

A


jantar no seu apartamento. Ela própria nunca esteve no seu apartamento, pensa Patricia, debatendo-se com uma irracional onda de ciúmes. Deve ser sério. Aldo, apesar de todo o seu charme, é um homem muito reservado. Além de ser sua patroa, Patricia considera-se sua amiga, mas a ideia de lhe perguntar o que sente em relação a Mary é literalmente impensável. E o que sente ela, Patricia, em relação a JP? Mais uma vez, é de todo impossível saber. Não tem qualquer dúvida de que, se Sally não tivesse gritado na noite anterior, teria feito amor com ele. O seu corpo já decidira o que fazer. Mas o que sente efectivamente? Patricia não sabe. Sente-se de facto atraída por JP, acha-o inteligente e uma boa companhia, mas conseguirá imaginar-se a ter uma relação com ele? Enfadada, pensa que JP seria uma escolha sensata. Tem um bom emprego, está relativamente bem na vida, é cosmopolita e bem-parecido. Seria inclusivamente um bom padrasto para Matt. E já é tempo de tomar uma decisão sensata em relação a um ho​mem, diz severamente a si própria. Patricia suspira. O melhor é descer e começar a organizar o pequeno-almoço. Também Anna sente a magia da manhã. De pé, na varan​da, está miraculosamente livre da ressaca. De facto, sente-se mais alerta do que o habitual, com cada nervo desperto. O ar é como uma poção mágica, poderia tragá-lo e viver para sempre. Vê Mary descer como sempre até à piscina. Se fosse mais empenhada em manter-se em forma, correria até lá abaixo e acompanhá-la-ia. Quase consegue sentir a água fresca contra o corpo. Mas Anna, absolutamente avessa a quase todas as formas de exercício físico, contenta-se em ficar na varanda a inalar o ar e a ver outra pessoa nadar. Quando desce para tomar o pequeno-almoço encontra Cat nas escadas, de mão dada com Star. Anna está nervosa, deseja poupar a amiga a eventuais constrangimentos, mas como poderá evitar falar da noite anterior? Cat, deslumbrante como sempre, com uns calções e um top de atar ao pescoço, sorri afectuosamente. – Que noite, hã!? – Hum… pois – balbucia Anna. – Sentes-te bem esta manhã? Lembro-me de pensar que tinhas bebido um


nadinha de mais. – Estou óptima – afirma Anna. – Mas é inacreditável, não achas? Apanhar assim uma intoxicação alimentar com aquela comida estragada!? O Justin diz que eu os devia processar, mas, realmente, para quê? São apenas amadores. O Justin diz que a comida estava intragável. Anna olha para a amiga, para o seu rosto suave e resplandecente, como se a visse pela primeira vez. Seria de facto possível que Cat e Justin se tivessem convencido de que não tinham qualquer culpa? Teriam eles esquecido que Cat quase precipitara Dorothy para um colapso mental, ou que Justin acusara Fabio de desejar a sua esposa? Teriam eles esquecido a quase luta no terraço, ou o vómito sobre as almofadas do sofá? Aparentemente, sim. Cat apenas recorda que Anna ficara ligeiramente tocada e que ela fora a vítima inocente de um amador bando de Bórgias. Anna abre a boca para protestar, mas depois arrepende-se. Afinal, não será me​lhor Cat e Justin partilharem a mesma visão destorcida do mundo? Seria terrível se um deles visse a noite anterior sob uma perspectiva diferente. Ao menos assim são felizes, seguros na sua constante superioridade. – Anda – diz Anna a Star. – Desafio-te para uma corrida pelas escadas abaixo. Aposto que temos melancia ao pequeno-almoço. * Durante o pequeno-almoço Patricia enuncia os planos para o serão. Deixarão o castello às cinco horas – Aldo irá levá-los na carrinha –, permanecendo depois em San Severino a apreciar a festa. Às sete e meia encontrar-se-ão na La Taverna para jantar. Aldo trá-los-á de volta às onze horas, mas quem quiser ficar mais tempo poderá perfeitamente fazê-lo. – Talvez seja melhor levar o meu carro – afirma JP, olhando para Patricia. – Assim poderei fazer o que entender. – Tudo bem – diz a anfitriã. – Mas o estacionamento poderá ser complicado. – Então terá de ir comigo – anuncia JP. – E nós levaremos o carro alugado – diz Justin. – Os miúdos poderão


precisar de dormir mais cedo. É a primeira vez que Justin ou Cat reconhecem que os filhos precisam de dormir. Os outros hóspedes entreolham-se, mas Cat não repara. – E, de qualquer forma, como já estivemos no Brasil no Carnaval, não estamos propriamente entusiasmados. – O Carnevale – diz Aldo num tom mordaz, pousando sobre a mesa um prato com carnes frias – é completamente diferente do Ferragosto. – Afinal, o que é mesmo esse ferry gusto? – pergunta Betsy num tom animado. Está sentada muito perto de Dorothy e as duas trocam ocasionais sorrisos carinhosos. – A Dotty disse-me que estava relacionado com a Virgem Maria. – Bem, é a Festa da Assunção – explica Patricia. – Quando Maria ascendeu ao Céu. – Meu Deus! – exclama Betsy. – As pessoas aqui acreditam mesmo nisso? – Com certeza – afirma Aldo. – Na verdade – apressa-se Patricia a acrescentar –, a celebração tem origens romanas. – Sabe que isso agradará a Aldo. – O imperador Augusto iniciou uma série de festividades em Agosto designadas feriae Augusti, as feiras de Agosto. A mais importante era a do dia treze. Era dedicada a Diana, a deusa da caça, à lua e à maternidade. Diana é a deusa das mulheres em trabalho de parto. – É mais uma das coisas que memorizou? – murmura JP. – São precisas bastantes mais deusas quando se está em trabalho de parto – diz Cat, rindo. Mary e Sally, as mulheres sem filhos, olham para ela com expressões empedernidas. – As festas de Agosto celebravam igualmente as estações e as colheitas – diz Patricia, sorrindo para JP. – E hoje em dia as pessoas rezam a Maria para que as ajude no parto. – Bem – afirma Betsy num tom neutro. – Não me parece que ela possa ajudar grande coisa. Afinal, só teve uma criança. Eu tive sete. E uma coisa vos digo: em Poplar Bluff, Missouri, não há fartura de deusas.


Nos limites da propriedade, ao pé do casebre da lenha, Fabio e Matt contemplam a grande caixa proveniente da fábrica de fogo-de-artifício de Poggibonsi. – Portanto, se eu fixar um deles ao meu lançador… – está Matt a dizer. Fabio está ajoelhado a examinar o fogo-de-artifício. – Matteo, estes já trazem lançadores. – Mas eu construí o meu – afirma Matt, parecendo desapontado. Fabio sorri. – O teu lançador é fenomenal. Se o usares, o foguete acabará no Iraque. Matt solta uma gargalhada. – Preferia apontá-lo antes ao George Bush. Fabio ri-se também, parecendo no entanto ligeiramente preocupado. – Estás mesmo apostado em fazê-lo? – Claro. A procissão começa às nove horas. Vou estar em posição às vinte e uma horas – afirma ele com uma pronúncia americana desastrosa. – Encontramo-nos então aqui – diz Fabio. Matt sorri de orelha a orelha. – Óptimo. Se quiseres, depois, dou-te boleia para a vila. Na minha mota. – Va bene – concorda Fabio. – Se ainda estivermos vivos. Os dois regressam ao castello, com Matt a saltitar e a assobiar, dando pontapés nas pinhas caídas e com Fabio mais sossegado, de mãos enfiadas nos bolsos, franzindo por vezes a testa perante a relva amarelada. E quando estão já perto de casa, Fabio diz: – Matteo? – Sim? – Obrigado por ontem à noite. Por me teres defendido. – Tudo bem – responde Matt. – Não suporto aquele Justin FerrisParvalhão. Pensa que é muito esperto. Fabio insiste, continuando de testa franzida. – Nunca tentei nada com Mrs. Ferris-Merry. – Não te censuro – diz Matt jovialmente. – Ela é bonita, mas é muito convencida. – Olha para Fábio, esperando vê-lo rir, mas o rapaz mais velho permanece sério.


– Mas ela engraça contigo – acrescenta Matt. – Já a vi a olhar para ti. – Tenho a certeza de que não – diz Fabio num tom insípido. – Porque não? – pergunta Matt. – És feio, mas não és assim tão feio. Agora Fabio ri-se, apanhando uma pinha para atirar ao esquivo Matt. Aldo está na cozinha. Ratka já lavou a louça do pequeno-almoço e o cozinheiro tem o espaço todo para si, exactamente como gosta. Já preparou o almoço – hoje é muito simples: bruschette e carnes frias –, e está a ponderar uma questão muito mais importante: o que servir a Mary ao jantar. Há vários pratos tradicionalmente preparados no Ferragosto, como codorniz com arroz, tarte de courgette ou carne frita alla romana, mas nenhum deles lhe parece adequado. Quer cozinhar para Mary um prato perfeito, simples mas absolutamente perfeito. Terá de ser algo da Toscana, mas nada muito complicado. Quer mostrar a Mary, que tem uma compreensão tão instintiva em relação à comida, que a cozinha italiana não se resume a tomates e alho. Quer mostrar-lhe subtileza, delicadeza, um casamento perfeito entre ingredientes e sabores. Efectivamente, admite então Aldo a si próprio, parado no meio da cozinha inundada de sol, quer cortejá-la através da comida. Gostara de Mary assim que a vira. Gostara da sua figura singela, do seu cabelo curto de um louro-acinzentado e da forma como inclinava a cabeça quando fazia perguntas. Mas, acima de tudo, gostara do facto de ela ter vindo para a Itália preparada para a amar. A maioria dos hóspedes parece empenhada numa espécie de competição muda com a Itália. Querem provar que sabem mais sobre comida e costumes italianos do que os locais, estão apostados em não se deixarem impressionar pela cultura italiana, pela comida italiana e, sobretudo, pelos próprios italianos. Há as queixas: o Verão é demasiado quente, o Inverno é demasiado frio, o pão só tem côdea e a manteiga não é suficientemente salgada, as pizze são demasiado finas, não há cafeteiras eléctricas, o café é demasiado amargo, o cappuccino é demasiado frio, deveria ser mais parecido com o cappuccino do Starbucks, porque não param os condutores nas passadeiras e porque estão as torneiras da água quente marcadas com um «C»? Até mesmo os visitantes que sabem


alguma coisa sobre a Itália usam os conhecimentos para se exibirem em vez de deixarem que o país exerça sobre eles a sua magia. Como aquela horrível Cat, com a sua exagerada pronúncia italiana e comentários depreciativos sobre Cristóvão Colombo. Mas Mary pasmara ao ver a torre inclinada de Pisa, quase desmaiara ao primeiro vislumbre da Piazza Navona e, quando dera a primeira dentada na sua torta di limone, parecera que estava no paraíso. Mas Aldo não gosta de Mary apenas porque ela aprecia a sua comida. Muitos outros hóspedes têm reagido da mesma forma. Muito simplesmente, Mary é a primeira mulher da sua idade com quem Aldo sentiu vontade de fazer amor. Dez anos antes, quando a sua esposa falecera, Aldo ficara ligeiramente surpreendido por os desejos da carne não terem morrido com ela. Parecia um tanto ridículo que um respeitável viúvo de cabelos brancos sentisse desejos carnais por apresentadoras de televisão, ou por mulheres que via à noite na piazza. Mas a verdade é que eles estavam lá. Sabe perfeitamente que ninguém teria objectado se tivesse encetado uma amizade com uma das muitas viúvas de San Severino, uma confortável nonna que lhe remendaria as meias e lhe prepararia pasta e fagioli. «Que bom», diria o povo. «Farão companhia um ao outro». Mas a questão é que Aldo não deseja nenhuma das viúvas. Os seus gostos passam mais por mulheres louras e elgantes. Há cinco anos, tivera, de facto, uma aventura clandestina com uma elegante mulher loura vinte anos mais nova do que ele. A sua filha descobrira e ficara furiosa. E parecera-lhe mais fácil terminar a relação, também porque a elegante mulher loura acabara por se revelar não só exigente como aborrecida. Mas agora a filha emigrara para a Austrália e Aldo estava sozinho. E começara a cogitar se não deveria admitir a derrota e considerar uma das viúvas locais quando Mary aparecera. Ali estava ela: elegante, loura, apaixonada pela Itália e pela sua comida, inteligente, refinada – ou seja, inglesa – e ainda por cima óptima escritora. Aldo, que lê inglês bastante bem, tem estado a reler os livros de Miss Marple para compreender melhor o policial inglês, mas é com o bigodudo Poirot que se identifica. Ele, Aldo, irá exercitar as celulazinhas cinzentas com o objectivo de seduzir Miss McMahon. Naturalmente, está também apaixonado por ela.


Aldo sorri ao deambular pela cozinha. Irá preparar-lhe ravioli de espinafres com manteiga e salva seguidos de salmão in carpaccio. O tio dela era pescador, recorda Aldo. E, além disso, o salmão tem fama de ser afrodisíaco.


CAPÍTULO 27 Ferragosto s cinco da tarde, os hóspedes estão mais uma vez reunidos no hall. Cat e a família partiram já para San Severino, pois não querem perder as diversões para as crianças. Matt anunciara que ele e Fabio iriam mais tarde para a vila, na sua mota. Patricia está satisfeita: Fabio parece-lhe uma boa escolha como amigo. O rapaz é alguns anos mais velho do que Matt e a mãe considera-o uma boa influência. Tem sido bom, este Verão, não ter visto Elio e Graziano muitas vezes. Patricia irá para a festa com JP no seu Alfa alugado. Não sabe se será sensato, mas não consegue resistir ao descapotável nem à oportunidade de esquecer as responsabilidades durante alguns minutos. Os hóspedes partirão no dia seguinte, diz a si própria, e então poderá dedicar-se a sério aos trabalhos de renovação. A ideia é de tal forma deprimente que a expulsa de imediato da sua mente. Pelo menos esta noite irá divertir-se. Mary sente as pernas a tremer enquanto sobe para a carrinha. «Amanhã», entoa uma sonora voz na sua cabeça, «amanhã partirás, regressando a Streatham, aos autocarros vermelhos e às refeições individuais précozinhadas». Mas, de alguma forma, não consegue interiorizar a dolorosa mensagem da sua voz interior. A única coisa em que consegue pensar é que esta noite irá estar a sós com Aldo, no seu apartamento. E, ao sentar-se na carrinha, contemplando a nuca bronzeada do cozinheiro, Mary interroga-se se até àquele momento estaria de facto viva. Anna, vendo o castello desaparecer por detrás da mancha de pinheiros, interroga-se se alguma vez regressará à Toscana. Seria maravilhoso regressar para passar um fim-de-semana com Steve, os dois sozinhos, talvez em Siena. «Para uma lua-de-mel», diz uma vozinha na sua cabeça. De onde veio isso? Um dia, Steve irá certamente pedi-la em casamento mas, até lá,

À


continuará perfeitamente feliz. Eles são perfeitamente felizes. Tem muita sorte em ter Steve. Ele vale dez Jeremys ou dez Sams. Ainda que não a tenham ensinado a escrever, as férias ensinaram-lhe precisamente isso. Repara então em Sam, a fixá-la intensamente como se conseguisse ler a sua mente. Terá de falar com ele esta noite. Anna vê o Alfa ultrapassar a carrinha, parecendo querer recriar uma cena de O Grande Gatsby, com o lenço de Patricia a ondular ao vento atrás dela. O que pensará a anfitriã ao despedir-se de JP? Mas talvez não seja uma despedida. Ambos estão livres, logo não há razão para não poderem continuar a ver-se. Seria bom se uma das relações forjadas naquelas semanas conseguisse sobreviver. San Severino está transformada. As ruas estreitas estão engalanadas com pendões, e enormes bandeiras medievais pendem inertes no calor – ainda está incrivelmente quente e Aldo pressagia trovoada antes da meia-noite. Há uma roda gigante e um castelo insuflável, onde neste instante se encontra Star Ferris-Merry, fazendo uma birra monumental. Na piazza principal estão dispostas mesas compridas e num assador gigante cozinham-se febras de porco. Rapazes locais taciturnos, vestidos de pajens medievais, percorrem as ruas oferecendo copos de vinho gratuitos. Num palco improvisado, Massimo, o irmão de Aldo, apoiado por uma idosa mas entusiástica banda, entoa funiculi, funicula, la la la la. Anna não fica surpreendida ao ver Sam ao seu lado enquanto passeiam pelas ruas. Avançam em silêncio, passando pelas bancas que vendem vinho e queijo e jóias assustadoramente caras até Anna dizer: – Sam? Sam suspira. – Eu sei, eu sei. Aprecia bastante o meu charme escocês descontraído, mas o seu coração pertence ao Steve. Anna não consegue evitar uma gargalhada, em parte por se sentir aliviada. – Bem… sim, é isso. – E não há como fazê-la mudar de ideias? – Receio que não. – E uma foda por caridade está fora de questão?


– Sim. – Está bem. – Sam enfia o braço no de Anna e os dois caminham em silencioso companheirismo até que, ao lado de uma elaborada exibição de melancias esculpidas, Sam inquire subitamente: – Anna? Do que trata o seu livro? Anna fica bastante surpreendida. É a primeira vez que Sam demonstra algum interesse pela sua escrita. A rapariga hesita por instantes antes de responder. O romance parece-lhe agora incrivelmente fútil e desinteressante. – Bem, é sobre uma rapariga, Sophie, oriunda de uma família operária. Ela vai para a universidade, é a primeira pessoa da família que o consegue, e conhece um estudante de Direito rico chamado Hugo. Os dois apaixonamse, mas ela sente-se muito desconfortável com os amigos ricos e com a família dele. E a dada altura Hugo troca-a pela requintada Sloane. É isso, basicamente. – É autobiográfico? Anna solta uma gargalhada nervosa. – Essencialmente, sim. Eu tive de facto um caso com um rapaz rico quando andava na universidade. Eu amava-o, mas ele tinha uma série de amigos finos que infernizaram a minha vida. Gozavam comigo por causa da minha maneira de falar, da minha forma de comer, de vestir, tudo. E a família dele era ainda pior. Quando certa vez disse «perdão» à mãe dele, pensei que ela fosse ter um ataque de coração. Estavam desejosos que ele encontrasse outra pessoa, alguém mais «do nosso nível», e ele acabou por o fazer. – Continua zangada com ele, com esse tal Hugo? – pergunta Sam. – Piers, era assim que ele se chamava. Não, não creio que esteja zangada, mas obviamente devo querer desforrar-me de alguma forma, pois, caso contrário, não teria escrito o livro. E a verdade é que estou espantada com a crueza de tudo isto. Pensava que tinha posto tudo para trás das costas quando conhecera o Steve. – E como conheceu o Steve? – Ele é canalizador e fez uns trabalhos para a minha mãe. O meu pai tinha


falecido há pouco tempo e ela estava muito vulnerável. Ele foi tão bom para ela, conversou com ela, fez os possíveis e os impossíveis para que tudo corresse bem. E ainda por cima era lindo. E eu dei por mim a coordenar as minhas visitas a casa da minha mãe com o horário de trabalho do Steve. A dada altura, a minha mãe sugeriu-lhe: «Porque não convidas a Anna para sair? Eu sei que ela simpatiza contigo.» Fiquei envergonhadíssima quando descobri, mas o Steve convidou-me na mesma. Nessa primeira noi​te, saímos para jantar e ficámos a conversar até os empregados arrumarem as cadeiras em cima das mesas. E foi isso, basicamente. Regressam à piazza, onde Massimo está agora a cantar algo so​bre despedir-se de Roma. – Sabe o que acho, Anna? – diz Sam. – Acho que deve esquecer esse idiota rico do Piers e escrever sobre o seu marido. – Ele não é meu marido. – Bem, isso é algo que poderá certamente resolver, não? O apartamento de Aldo fica num prédio moderno perto da igreja. É um edifício simples e branco, embelezado pelas janelas e varandas, que transbordam de flores e plantas. Na varanda de Aldo há um limoeiro, uma vinha com uma cepa tão grossa quanto o pulso de Mary e uma gloriosa profusão de ervas aromáticas em vasos de barro. – É incrível – exclama Mary. – É tão grande como uma outra divisão. – Passo aqui muito tempo – diz Aldo, entretido a regar. – Sento-me a ler o jornal ou a ouvir na rádio o relato de futebol. – Não o imagino sem nada para fazer. Parece sempre tão atarefado. – Isso é quando há cursos. Quando não há, tenho demasiado tempo livre. Sobretudo aos domingos. Os domingos são os dias piores. – Sim – anui Mary, recordando-se. – Os domingos conseguem ser terríveis. Segue-se um breve silêncio, durante o qual conseguem ouvir os ecos distantes de música e dos risos que se elevam da piazza. Um balão vermelho, arrastando serpentinas, passa silenciosamente por eles, ascendendo aos céus. Mary vê-lo subir cada vez mais alto, até ser uma


pintinha vermelha num mar de azul. E imagina uma criança, talvez Star, a chorar desconsoladamente enquanto o precioso balão desaparece no ar. – Fale-me do seu apartamento em Londres – diz Aldo, arrancando ervas com muito cuidado. – Bem, fica em Streatham, na zona sul de Londres. Não é uma zona muito elegante, mas tem um bom espaço público… um parque… e há muitas lojas e um cinema e um ringue de patinagem. Mary detém-se então. Como poderá ela fazer Aldo – Aldo, que ali parado naquela verdejante varanda com o céu azul por trás, encarna a própria essência de Itália –, como poderá ela fazê-lo ver Streatham, as lavandarias públicas e os bares, as lojas de esquina recobertas com protecções metálicas, os dejectos de cão nas ruas, as crianças a brincar na relva no Verão, os autocarros arrastando-se a caminho de Crystal Palace. É outro mundo, fica a uma distância imensurável. – O meu apartamento… a minha casa… é bastante simpática – diz ela por fim. – Fica no segundo andar, logo, tenho uma boa vista. – «De quê?», interroga-se Mary. – É um prédio dos anos vinte, cheio de vidro e paredes curvas, bastante atraente para quem gosta desse tipo de estética. – Tem uma varanda? – pergunta Aldo. – Pequenina. Costumava ter gerânios, mas morreram. Regara-os demasiado, matando-os com a sua bondade. Em Itália as plantas nunca morrem, imagina Mary. – Tenho de fazer os ravioli – afirma Aldo. – Já preparei o recheio, mas a massa tem de ser fresca. Não se importa, pois não? – De todo – responde Mary. Ver Aldo cozinhar é para ela uma visão do paraíso. Segue Aldo até à pequena cozinha onde ele serve aos dois um copo de vinho tinto. Depois pega no seu cesto de vime, que contém uma caçarola tapada e um saco de plástico bem dobrado. – A massa – explica ele. Aldo trabalha rapidamente mas sem se apressar, polvilhando com farinha a superfície de trabalho, estendendo a massa e dividindo-a em dois. Depois retira uma caixa de plástico de dentro do cesto e, a pequenos intervalos,


divide com cuidado o recheio sobre a massa. – Cheira maravilhosamente – diz Mary, com água na boca. – O que leva? – Zucca – diz Aldo, estalando os dedos para se lembrar da palavra inglesa. – Abóbora. Abóbora e salsicha com noz-moscada e um pouco de biscoito de amaretto. Aldo pega num pincel e pincela com água os rebordos da massa. Depois coloca a segunda folha de massa sobre a primeira. Pressiona cuidadosamente os rebordos com os seus dedos largos e destros e, pegando numa faca, corta a massa em quadrados. Usa um garfo para melhor selar os rebordos e depois coloca os ravioli já prontos numa travessa com farinha, pondo ao lume uma panela com água, à qual junta uma generosa quantidade de sal. Sorri depois para Mary, tira-lhe o copo de vinho da mão e beija-a. * O resto do grupo está sentado para jantar no La Taverna, um charmoso restaurante coberto de hera perto da praça principal. A atmosfera é entusiástica, até mesmo eufórica. É a última noite que passarão juntos e, subitamente, todos se sentem muito próximos. Até mesmo Jeremy troca endereços electrónicos com Anna e Sam, afirmando ir sem dúvida visitar Dorothy e Rick se alguma vez for ao Vermont. Dorothy convida igualmente Anna e Cat, dizendo à primeira que a vê como uma filha. Anna, ainda que tocada, contempla a afirmação com alguma apreensão. Antes da refeição Myra faz um discurso animado acerca do curso. Esta é uma das suas especialidades, brincando sempre com as peculiaridades mais vincadas de cada hóspede. É uma pena Aldo não estar presente, pois contribui sempre com algumas piadas. Mas Myra dá o seu melhor; menciona a natação de Mary (afinal, onde está Mary?), a elegância de Cat, a cor de cabelo diferente de Sally, as raízes escocesas de Sam e o característico chapéu de Rick. Anna é gozada por estar constantemente a enviar e-mails e a telefonar para casa e JP pelo seu patriotismo exacerbado. Menciona Sean, o gato, a condução de Aldo e a agradável figura de Fabio. E senta-se por fim no meio de retumbantes aplausos. – Obrigada – sussurra Patricia, sabendo que não conseguiria fazer


semelhante discurso ainda que a sua vida dependesse disso. A última ceia termina rapidamente e todos saem para a noite. É relativamente cedo: ainda não são bem nove horas e o céu só agora começou a escurecer. Mas a atmosfera na vila está cada vez mais animada. As tradicionais canções italianas de Massimo deram lugar a uma ruidosa banda de rock e os jovens começam agora a aparecer, gritando cumprimentos de um lado ao outro das ruas. As árvores da piazza estão enfeitadas com luzes. Olhando para cima, Patricia vê que é lua cheia. E o seu corpo estremece. – O que acontece agora? – pergunta Dorothy. – Bem, há uma procissão à ermida – explica Patricia, apontando para um canto da praça onde Don Tonnino, rodeado de acólitos, segura uma cruz acima das cabeças dos foliões. – Depois há fogo-de-artifício e baile. – Talvez me junte à procissão – afirma Jeremy. – Os rituais primitivos são sempre fascinantes. – Eu também vou – diz Sally. – Vamos comprar um gelado aos miúdos antes de irmos para casa – anuncia Cat. Os americanos optam igualmente pela gelataria, deixando Sam e Anna a deambular pelas bancas. Myra é raptada por Gennaro, que vai a passar. Patricia sente então uma mão quente nas costas. – Já estou farto de rituais primitivos – murmura JP. – Regressemos ao castello. – Mas ficámos de nos encontrar todos às onze horas. – Ainda falta muito tempo – diz JP. – Podemos perfeitamente ir e voltar a horas. Patricia olha para a rua movimentada e iluminada e pensa no castello, sombrio e deserto no meio do imenso pinhal. E de repente sente-se inexplicavelmente assustada. – Venha daí – insiste JP. – Não tem nada a perder. E não tem mesmo, pensa Patricia, seguindo-o em direcção ao carro.


CAPÍTULO 28 Ferragosto, continuação ary está muitíssimo orgulhosa. Não grita nem desmaia nem se desgraça de qualquer outra forma. Tendo em conta que não era beijada há quarenta anos – beijada daquela forma – está convencida de que o faz bastante bem. Efectivamente, está espantada com o seu comportamento. As suas mãos tinham-se enrolado num ápice à volta do pescoço de Aldo e começara a retribuir-lhe o beijo, beijando-o como não beijava ninguém desde aquela vez com Bobby Preston, naquele longínquo Verão em Brighton. É Aldo quem pára primeiro, e isso porque a água está a ferver. Para ele, nem mesmo a paixão interfere com a comida. Mergulha os ravioli na panela, retira o salmão temperado com ervas da caçarola, coloca-o num prato oval, tempera-o com sumo de limão, salpica-o com bocadinhos de anchova e prepara uma salada numa taça de vidro verde. Mary observa-o, sentindo o coração bater por baixo do seu fino vestido de algodão. Sente-se como se não tivesse vontade própria. A única coisa que consegue fazer é observar Aldo: e como ele parece controlar perfeitamente a situação, é exactamente isso que faz. Em seguida sentam-se ambos para jantar na varanda, numa mesa de ferro forjado. O limoeiro liberta na noite o seu odor doce e um pássaro canta numa varanda vizinha. A comida é maravilhosa. Os ravioli, somente quatro peças perfeitas para cada um, são ricos sem serem pesados: o doce da abóbora e o salgado da salsicha fundem-se na perfeição. O salmão, com o qual bebem um vinho branco seco, é simplesmente divinal. «Como posso eu comer depois do que aconteceu?» pensa Mary. E no entanto, serve-se não só uma mas duas vezes mais, comendo depois figos e uma nectarina. E só depois de o último bocado carnudo de figo desaparecer, Aldo afirma:

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– Agora. O cozinheiro levanta-se então, estendendo a mão para Mary. Ela avança na sua direcção, sabendo que está a tremer. Aldo acaricia-lhe o braço. – Do que tem medo? – De nada. – Então – diz ele, beijando-a de novo. E mais uma vez ela retribui o beijo, enfiando os dedos no seu cabelo espesso. Depois Aldo afasta-a ligeiramente de si, sorrindo. – Há muito tempo que queria fazer isto. – Não nos conhecemos assim há tanto tempo – objecta Mary. – O tempo – diz Aldo magnificentemente – não importa. Vamos. Aldo pega-lhe pela mão e guia-a pela cozinha em direcção a uma porta fechada. Mary sabe, como nunca antes soube outra coisa em toda a sua vida, que aquela é a porta do quarto dele. De repente ela transforma-se num monstruoso portal, impossível de transpor. Como o poderá fazer? Será transformada em pedra? Mas depois, sem saber como, já passou a porta. A cama de Aldo, bem arrumada com um edredão branco, surge à sua frente. Ele torna a beijá-la. «É assim que tudo acontece», pensa Mary. De alguma forma, transpôs a linha invisível que fazia dela um determinado tipo de mulher, transformando-a noutro. Agora vai passar a ser uma mulher que frequenta os quartos dos homens. Uma mulher que… E Mary afasta-se, por estar a chorar. – O que foi, Mary? – pergunta Aldo, afagando-lhe o cabelo. – Não posso. – Porque não? – Porque – exclama Mary, quase gritando – vou embora amanhã e nunca mais o verei. – E tomba sobre a cama, soluçando copiosamente. Aldo ajoelha-se à sua frente. – É só isso? Então não vá. Fique aqui e case comigo. As luzes acendem-se à medida que o Alfa sobe o caminho do castello, mas a casa em si está sombria, com as pesadas portas de carvalho aferrolhadas.


O céu está agora negro e a lua lança um brilho funesto sobre a Torre Norte. – Acha que o fantasma aparecerá esta noite? – inquire JP num tom brincalhão. – Galopará ele no seu corcel sem cabeça pelo caminho acima? – Pare com isso – diz Patricia. A porta chia como um ruído saído de um filme de terror. Pa​tricia atravessou inúmeras vezes aquele hall às escuras, quase não reparando nas armaduras nem nas janelas em arco e nas sombras espectrais, excepto para pensar em como eles eram previsíveis, contrastando com o seu conhecimento do verdadeiro castello. Mas esta noite é diferente. A sua pele está arrepiada, literalmente, com se um dedo frio estivesse a percorrer-lhe a espinha. O luar desenha grandes barras no chão de pedra. E ela tenta evitar pisar a sua aziaga claridade a caminho da cozinha. Porque nem pensar em fazer tal coisa sem um brandy. A cozinha está deserta, mas com sinais de ocupação recente. Há várias garrafas de cerveja perto da porta das traseiras e pratos sujos no lava-loiça. Azeitonas, queijo e pão continuam sobre a mesa, e um jornal, bem dobrado, encontra-se ali ao lado. Automaticamente Patricia começa a arrumar. Matt e Fabio estiveram ali obviamente, mas onde estarão agora? A última coisa que quer é que eles a surpreendam com JP. – Mon Dieu. O que está a fazer? JP está parado à porta, tão divertido quanto irritado. – Estou a arrumar – diz Patricia entre dentes. – Oh, vamos lá – diz JP, abraçando-a pelas costas, enterrando o rosto no pescoço dela. – Esqueça os afazeres, por hoje. Esta noite sou eu quem manda. Fabio e Matt não estão muito longe. Estão ao pé da casinha da lenha, nos confins da propriedade, ambos ligeiramente eufóricos devido à cerveja que beberam e à própria situação. Sentem-se como comandos numa operação nocturna, como bandidos acossados nos montes, como crianças a brincar aos índios e aos cowboys. Matt ri enquanto desembrulha o fogo-de-artifício. Fabio segura uma lanterna, esforçando-se por ler as instruções. – Não deve ser usado a menos de cem metros de qualquer habitação – diz


o rapaz. – Então está bem – diz Matt num tom distraído, fixando uma estaca no chão. – E se acertar em alguém? – diz Fabio sem grande convicção, como se não esperasse que Matt o ouvisse. – Não acerta – retruca Matt. – São vinte e uma horas. A procissão serpenteia colina acima a norte de San Severino. Jeremy, cheio de vinho e comida, sente-se ofegante ainda antes da metade do percurso. Ao seu lado, Sally saltita como uma cabrinha montesa. Na cabeça da procissão, Don Tonnino balança o seu incensório e entoa com uma voz nítida e surpreendentemente forte: «Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum, benedicta tu». – Ave Maria – repetem os paroquianos, não parecendo estar minimamente cansados. O jovem acólito do padre, carregando a cruz, tropeça algumas vezes no caminho pedregoso. – Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum, benedicta tu. – Ave Maria. – Credo – exclama Jeremy, ofegante. – É pior do que voltar à escola. – Andou numa escola católica? – inquire Sally, muitíssimo interessada. – Fui educado na fé católica. É um verdadeiro bónus para um escritor. A procissão alcança então o topo da colina. A estátua da Virgem Maria, iluminada por centenas de velas, reluz com um brilho quase sobrenatural diante deles. Em baixo conseguem ver as luzes de San Severino e ouvir o eco distante da banda rock. É como se estivessem a olhar para Sodoma e Gomorra. E Sally dá a mão a Jeremy. – Ave Maria. Don Tonnino está a contornar a estátua, salpicando-a com água benta. Outro acólito segura agora o incensório, balançando-o distraidamente, fazendo com que o fumo acerte directamente no rosto de Jeremy. O tutor tosse com violência. Uma italiana gorda parada atrás dele oferece-lhe o seu lenço. A chorar dos olhos, Jeremy de​clina, abanando a cabeça. – Dominus vobiscum.


Don Tonnino está agora voltado para a audiência. – Et cum spiritu tuo – respondem os devotos. Aquele parece ser o sinal para a pequena procissão iniciar a descida. Jeremy ouve o padre começar a entoar de novo a sua ladainha, «Ave Maria, gratia plena…» E de repente a ideia de percorrer o lon​go caminho de volta, a sufocar todo o tempo com o incenso, parece-lhe absolutamente desinteressante. – Fiquemos antes aqui algum tempo – propõe ele a Sally. – A admirar a vista. E Sally fica encantada. Matt debate-se com o gigantesco foguete. – Não consigo espetá-lo no chão – queixa-se ele. – Traz a lanterna, Fabio. Fabio aproxima-se, detendo-se ao pé do rapaz, de forma a fazer incidir a luz da lanterna no papel de cores garridas. E juntos cravam o lançador de foguetes no solo duro. Matt está a suar e até mesmo Fabio fica ofegante. – Está quase – afirma Matt. Olhando para os números iridescentes do seu relógio, Fabio reza para que a procissão tenha terminado. Patricia e JP estão no quarto da anfitriã. Ela avança para fechar os estores, mas ele detém-na. – Deixa-os. Ela obedece. JP observa-a durante longos minutos, alisando a pele em torno dos seus olhos. – Parece triste – diz ele. – Mas não estou – protesta ela. – Tem muitas vezes esta expressão triste. – E beija-a nos cantos dos olhos. – Belíssima, mas triste. Patricia permanece imóvel, de olhos fechados. JP consegue ver as sombras nas maçãs do rosto dela, a boca descaída. Para ele, a sua tristeza, o seu alheamento, tornam-na ainda mais desejável. «Poderás até tê-la», diz uma


vozinha na sua cabeça, «mas nunca a conhecerás verdadeiramente». JP inclina-se para a beijar. – A Virgem Maria – diz Jeremy, acendendo um cigarro – é uma construção dos povos oprimidos do mundo. Porque é ela tão adorada por camponeses ignorantes, como Bernadette de Lourdes ou aquela gente na Croácia? Porque ela fornece um escape à miserável existência do seu dia-adia. Ela ascendeu directamente aos Céus. Escapou, literalmente, desta terra tormentosa. – O Jeremy compreende tão bem tudo isto – diz Sally, interrogando-se se terá coragem para lhe dar a mão outra vez. – Para mim é um enorme mistério. Jeremy solta uma gargalhada. – Para si é um enorme mistério, querida Sally, porque eles querem que o seja. A Igreja Católica com o seu incenso, água benta e ladainhas. Transformaram tudo num grande mistério porque assim podem manter o poder. Mas eu consigo ver através de tudo isso. Através do fumo sagrado consigo chegar à pura luz da razão. E mal o diz, é atingido por um raio. A explosão faz Patricia correr para a janela. – O que foi isto? – É o fogo-de-artifício – afirma JP. – A Patricia tinha dito que haveria. E como que em consonância, várias explosões mais fracas ecoam para os lados de San Severino. O céu é brevemente iluminado por salpicos vermelhos e dourados. – Eu gosto de fogo-de-artifício – diz Patricia. Faz-lhe recordar o parque de Clapham, a noite de Guy Fawkes, e Sean. – Eu ilumino-a – diz JP, um tanto grosseiro. Ele começa a beijá-la com paixão e Patricia responde. Tombam ambos sobre a cama e a mão dele avança para o peito dela, enquanto a outra se esgueira por baixo da saia. Rendida, Patricia deita-se de costas, não conseguindo evitar pensar noutras noites, noutros corpos negros dobrados


sobre o seu, em carĂ­cias desastradas e anĂłnimas. Um raio de luar amarelado incide sobre a cama. Ao mesmo tempo, o primeiro trovĂŁo ecoa nas colinas. E Patricia grita.


CAPÍTULO 29 O que aconteceu a seguir… atricia grita e apercebe-se de que não consegue parar. JP senta-se alarmado. – O que foi? Mas Patricia limita-se a olhar para ele de olhos arregalados, alheada, com a boca aberta num aparentemente infindável grito. Lá fora, os trovões ribombam enquanto o céu é dilacerado por raios. Os estores da janela oscilam freneticamente ao vento. – Por amor de Deus, Patricia! JP toca-lhe no ombro. Ela levanta-se de um salto e foge para a porta, como se ele tivesse tocado num interruptor. Corre estranhamente curvada, como se estivesse a tentar ser invisível. Tem a blusa ainda aberta e perdeu um dos sapatos. JP tenta impedi-la, mas Patricia transpõe a porta e ele consegue ouvi-la correr pelo corredor fora. Abismado e ligeiramente assustado, decide seguila. Ouve passos a descer as escadas, mas, quando se propõe a segui-los, Sean, o gato, barra-lhe o caminho. – Sai da frente – ordena JP num tom ríspido. O gato eriça-se, inchando para o dobro do tamanho e bufando agressivamente. Outro clarão de luz ilumina os seus olhos amarelos e estreitos. JP nunca imaginara ser possível assustar-se com um gato. Mas a verdade é que recua, dado o contraste entre o normalmente plácido Sean e aquele monstro ruidoso de olhar maléfico. É como se o mundo se tivesse transformado repentinamente num filme de terror do Grand Guignol. «Coragem», diz JP a si próprio. «Pensa em Napoleão». Mas Napoleão tinha

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medo de gatos, lembra-se então. Cerrando os dentes, JP passa por cima do gato e corre escada abaixo. A porta da frente está escancarada. A chuva cai pesadamente. O segundo sapato de Patricia está na soleira da porta, mas não há sinal dela. Patricia não pára de correr. Não sabe para onde, nem sequer porquê. Quase não sabe quem está de facto a correr. Patricia, a eficiente anfitriã de quarenta anos, ou Patricia, a aterrada menina de dez anos, desejando escapar mas sabendo com uma certeza doentia que não tem para onde o fazer. Lembra-se de ter fugido, certa vez, mas as assistentes sociais tinham-na encontrado e levado de volta para a família de acolhimento. Um casal maravilhoso, diziam as pessoas, a cuidarem de todas aquelas crianças. Deviam ser santos. Mas o luar a entrar pela janela iluminou os anos de esquecimento, os anos em que lidara com o sucedido sem nunca olhar para trás. Patricia lembra-se e a memória é suficiente para a fazer soluçar enquanto corre precipitadamente pela noite. Patricia não sabe se Vicky e Bob Hawkins abusavam de todas as crianças à sua guarda – havia na casa um pesado secretismo que tornava impossíveis quaisquer amizades ou perguntas. Sabe apenas que eles abusaram dela, todas as noites, durante quase quatro anos. Se correr agora, conseguirá escapar. Não repara na chuva nem no facto de estar descalça. E mal repara nos trovões; Patricia não tem medo de trovões. Tem medo do luar sobre a cama e do rosto na penumbra. Tem medo de acordar e descobrir que não existe. Portanto, corre, escorregando na súbita torrente de lama que se formou ao longo do caminho, cambaleando por entre as árvores, viran​do-se, voltando-se – tem de ter cuidado, eles estão a aproximar-se –, olhando para trás por cima do ombro. Corre curvada, com os braços a apertados contra o peito, assustando-se com o barulho da sua própria respiração irregular. Patricia avista os portões, os leões de pedra, a estrada que se estende à sua frente. Um mocho pia acima da sua cabeça e ela distingue os seus olhos reluzentes e aziagos. Tem de escapar. Dispara por entre as árvores e dá por si em frente da casinha da lenha no limite da propriedade.


Sem saber porquê, abre a porta. E depara com Matt e Fabio a beijarem-se apaixonadamente nos braços um do outro. A uns bons dez quilómetros de distância, num apartamento nos arredores de San Severino, Aldo e Mary estão deitados sob o edredão branco, sorrindo um para o outro enquanto a chuva tamborila ruidosamente contra o telhado. – Agora tem de casar comigo – diz Aldo. – Porquê? – inquire Mary num tom atrevido. – Afinal, não corro o risco de engravidar. Aldo afaga-lhe o cabelo. – Tem de casar comigo porque eu a amo. Jeremy está deitado no chão com os braços por cima da cabeça. O foguete caíra mesmo atrás da estátua, fazendo Maria estremecer no seu pedestal, estendendo os braços para o casal inglês apavorado. A explosão deitara os dois ao chão e, logo a seguir, o céu inundara-se de luz. Depois ficara tudo silencioso. Lentamente, Sally rasteja até Jeremy, levantando-lhe com cuidado uma das mãos. – Jeremy? – sussurra ela. – Está bem? Jeremy aperta-lhe a mão com força. Não consegue falar. Quer dizer-lhe que está bem, que está melhor que bem, que está radian​te, fantasticamente bem. O mundo parece-lhe ao mesmo tempo maravilhosamente simples e deslumbrantemente complexo. É como se grandes placas tectónicas tivessem girado na sua cabeça, eclipsando tudo o que era negativo, deixando-o apenas com uma fulgurante sensação de confiança e certeza. Não se trata apenas de acreditar ter tido uma visão do Paraíso, que restaurará a sua fé e lhe trará grande conforto; não se trata apenas de desistir de perseguir jovenzinhas, sabendo que, ali à mão, tem uma mu​lher doce e inteligente que o adora. Não, é melhor que tudo isso. Jeremy tem uma ideia para o seu próximo livro. – Não posso casar consigo – diz Mary cheia de tristeza. – Amanhã tenho


de regressar a casa. Aldo senta-se na cama. Tem uma cicatriz no peito de uma antiga ferida militar e uma tatuagem de uma águia romana no ombro. Aos olhos de Mary ele é absolutamente magnífico. – Para quê regressar? – pergunta ele. – Tem família que dependa de si? Mary pondera a questão. A sua irmã mora em Norfolk e, para todos os efeitos, vive completamente absorta na sua própria família. Pensa então em Joan, em Eastbourne, e em Shirley, em Southport. Não há ninguém que vá realmente sentir a sua falta. Oh, a rapariga da biblioteca e o homem que lhe entrega o catálogo da Kleeneze poderão interrogar-se sobre o seu paradeiro. Os empregados da piscina poderão perguntar o que aconteceu àquela velhinha que costumava nadar todas aquelas voltas. Mas não há ninguém que realmente se importe, ninguém para quem a sua ausência pudesse ser inquietante. – Não – diz ela. – Não tenho família que dependa de mim. Aldo levanta-se e enrola uma toalha em volta da cintura. E vai sentar-se ao lado de Mary, virando-lhe a cabeça para que ela o olhe de frente. – Eu tenho terra – diz ele. – Não muito longe daqui, perto do lago. Podíamos construir uma casa de Verão. San Severino é demasiado quente no Verão. Podíamos construir uma piscina para si. O meu irmão tem um barco. Nos fins-de-semana podíamos velejar no lago di Bolsena. No Inverno podíamos ir para as montanhas. As montanhas da lua. Podíamos ir esquiar. Eu podia fazer-lhe castagnaccio no Natal. A Mary devia ver San Severino no Natal. Há uma árvore na piazza iluminada com centenas de velinhas e, na noite de consoada, as crianças cantam em frente ao presépio. Parecem anjos, Mary. – Mas eu não posso – diz Mary. – Não posso. Fabio é o primeiro a vê-la. Os seus olhos abrem-se muito enquanto recua. Matt, com o cabelo revolto e os olhos turvos, tenta agarrá-lo novamente, mas Patricia exclama: – Matt! O rapaz vira-se de imediato, com uma expressão intensa de medo e


vergonha estampada no rosto. Patricia quer dizer-lhe que não faz mal, que nada justifica uma tal expressão, mas não consegue falar. Recua então, com a mão a cobrir-lhe a boca. – Mãe! – grita Matt. Mas Patricia já vai longe. Começa a correr em direcção à casa, mas depois lembra-se de JP e opta pelas árvores, cambaleando e precipitando-se pelo pinhal adentro. Os trovões, que tinham acalmado durante alguns minutos, explodem sobre a sua cabeça. Ramos caem pelo chão e o vento uiva nas copas dos pinheiros. Depois, repentinamente, tudo fica em silêncio. Até mesmo a chuva parece ter parado. E então, ela ouve-os. Cascos de cavalo. JP está agora verdadeiramente preocupado. Procurara em volta da casa, descera até à piscina onde a chuva salpicava a água iluminada, vasculhara todos os anexos, e gritara o nome dela repetidamente. Agora está de novo em casa, completamente ensopado, perguntando-se se deveria chamar a polícia. E quando o telefone toca, dá um salto. Depois passa uns segundos frenéticos à procura do aparelho. Lembra-se por fim do escritório de Patricia e corre para ele, agarrando o auscultador mesmo a tempo. É Aldo. Está na carrinha com os outros hóspedes. Saberá JP onde está Patricia? «Não», responde JP, «ela estava aqui, mas desapareceu». «Desapareceu?» repete Aldo. «Saiu de casa a correr», expli​ca JP, «não sei onde ela está». «Vou regressar», diz então Aldo. JP permanece parado, com a mão sobre o telefone. Fora naque​la sala que inicialmente olhara para Patricia, que vira a sua cabeça elegante inclinada sobre a contabilidade e pensara: «Ela sente-se só, posso ter hipóteses». Bem, Patricia está longe de ser a pessoa séria e equilibrada que julgara. De facto, terá forçosamente de ser desequilibrada. JP estremece. De repente sente-se muitíssimo magoado. O que fizera ele? Tentara deitar-se com uma parceira que aparentemente estava de boa vontade mas que lhe saltara dos braços qual fêmea possuída, saindo a gritar e a correr pela noite dentro. Antigamente, a sua técnica era considerada bastante boa.


JP estremece de novo. Deve ter apanhado uma pneumonia. Devia subir e tomar um duche quente e mudar de roupa. Mas JP sente-se curiosamente relutante em subir ao primeiro andar. Estará o gato demente a guardar ainda os degraus? A casa parece subitamente enorme e muito velha. Quartos e mais quartos de pedra, quilómetros e quilómetros de corredores ressoantes, janelas em arco a contemplar o vazio, portas a abrir e a fechar, passos a ecoar em patamares desertos. JP põe-se à escuta. O relógio dá ruidosamente as badaladas no hall. Os trovões parecem ter parado. Consegue ouvir o vento nas árvores e a torrente de chuva a escorrer dos algerozes. JP aproxima-se da janela. A lua cheia é como um farol e, à luz do luar, ele vê – tão distintamente quanto antes vira a secretária de Patricia e o telefone – o cavalo fantasma, de pêlo branco reluzente, e o seu cavaleiro louro, de olhos bem abertos, a galopar por entre as árvores sussurrantes. * Patricia tropeça e cai pesadamente no chão ensopado. Levanta-se, soluçando. O barulho dos cascos está a aproximar-se. É desta; vai morrer na certa. O castello vai apanhá-la por fim. Amava-o, mas afinal ele odiava-a, vendo-a como uma estranha, querendo puni-la pela sua presunção, por tentar escapar ao passado, por fingir ser tão séria e racional, por pedir a Aldo que entretivesse os hóspedes com o seu charmoso conto de fantasmas, por ter ficado sentada a sorrir para Dorothy enquanto ela lhe contava a sua história de maus-tratos e memórias recalcadas. As memórias de Patricia ergueram-se da tumba e agora a tumba quer reclamá-la. Alcançou já os limites do pinhal. Avança aos trambolhões pelo espaço aberto e vê a piscina, ainda iluminada, com a água a transbordar. A trovoada ecoa, agora ao longe. Patricia olha para trás, para as árvores ciciantes, e torna a ouvir os cascos, matraqueando ritmadamente no chão suave. Depois, com um clamoroso estalar de ramos, o cavalo aparece, imaculadamente branco à luz da piscina. Dá uma volta sobre si próprio nas patas traseiras, avançando depois a meio-galope na sua direcção, com o cavaleiro sem chapéu a exibir o seu reluzente cabelo louro. As pernas de Patricia já não a conseguem suster e ela cai de joelhos no


chão. O cavalo detém-se, resfolegando, e o cavaleiro inclina-se para ela, oferecendo-lhe a mão. – Sean? – diz Patricia. E desmaia.


CAPÍTULO 30 Décimo quinto/sexto dia ean desce do cavalo que, sem o brilho do luar, é de um corriqueiro tom cinza, de olhar tresloucado após a cavalgada em plena tempestade. E toma Patricia nos braços. Os olhos dela abrem-se e ela olha para ele. – Sean? – Quem haveria de ser? – Pensei que eras o fantasma – diz ela, fechando de novo os olhos. Com o cavalo pela mão, Sean leva Patricia para casa, dirigindo-se à cozinha, por ser mais próxima. À porta encontra Matt e outro rapaz, ambos muito pálidos e abalados. – Matt. – Pai. Mesmo de olhos fechados, Patricia consegue perceber que não há surpresa efectiva no tom do filho. Ele devia saber que o pai estava por perto. – Matt, será que podes tratar do cavalo? Põe-no no antigo estábulo, onde está a mesa de pingue-pongue. Creio que há lá algum feno. Ele fica bem. – E a mãe? – Vai ficar bem. Foi só um choque. Matt desaparece, levando o agora plácido animal. O outro rapaz segue-o. Sean leva Patricia para a cozinha e pousa-a no banco corrido, cobrindo-a com um avental de Aldo que encontra pendurado nas proximidades. Patricia abre os olhos de novo. Sean está igualzinho, tendo talvez apenas algumas rugas novas em torno dos olhos. Traz vestida uma camisa branca e calças de ganga, ambas encharcadas, mas parece estar incrivelmente descontraído, cantarolando enquan​to deambula pela cozinha, pondo a cafeteira ao lume, procurando biscoitos. E, sem se aperceber, Patricia começa também a

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relaxar. – O que estás aqui a fazer? – pergunta ela. Sean volta-se para ela, com o bule de chá na mão. E sorri. Com o mesmo sorriso de sempre, leviano e ligeiramente acanhado, mas agora com mais qualquer coisa. Tristeza, talvez? – Estou por cá há já algum tempo. Estou hospedado na casa do Tony. – Na casa do Tony? Nós estivemos lá ainda na outra noite. – Eu sei. Passaste tão perto de mim que te podia ter tocado. Estava na varanda quando entraram para jantar. – O Tony não me disse nada. E falámos inclusivamente de ti! – Eu sei. Fi-lo prometer. Não fiques zangada com ele. – O Matt sabia? – Sim. Temo-nos visto. Encontrei-o naquela noite no jardim, na casa do Tony. E também estive aqui, no castello. – Quando? Sean torna a sorrir. – Espreitei pela tua janela uma noite destas. Pensava que ainda dormias na Torre Norte. Mas depois vi uma velhota com uma camisa de dormir florida. Foi um verdadeiro choque. – Imagina então como ela se sentiu. – Bem sei. Eu ouvi. – Mas para onde foste? Nós procurámos; não havia sinal de vivalma. Sean faz uma expressão presunçosa. – Então! Estás a falar com um homem que fez um curso de artes circenses. Desci balançando na corda da bandeira. Quando ouvi a confusão, balanceime de volta para cima. Esperei no telhado até todos desistirem de patrulhar a propriedade e cavalguei de volta para casa do Tony. – Mas porquê? – pergunta Patricia. – Porque regressaste? A porta abre-se e Matt e Fabio entram. Matt avança para abraçar o pai. Patricia repara que os dois têm agora quase a mesma altura. Fabio, algo constrangido, deixa-se ficar ao pé da porta. Ao longe ouvem então o característico som dos travões da carrinha. Os hóspedes regressaram.


– Não consigo encará-los – diz Patricia, ficando de novo muitíssimo agitada. – Sean, não consigo encará-los. – Eu vou, Mrs. O’Hara – diz Fabio. – Vou explicar-lhes que está adoentada. Deixe o assunto comigo. – Quem é ele? – pergunta Sean quando Fabio sai. – O novo faz-tudo. – Parece ser bom rapaz. «Não sabes da missa a metade», pensa Patricia. Mas afirma: – É muitíssimo eficiente. Até conduz a carrinha. – Credo! E o que pensa o Aldo disso? – O Aldo adora-o. – Meu Deus, o homem deve ser mesmo bom. Matt espirra e o pai vira-se para ele. – Vai tomar um banho quente. Estás completamente encharcado. E, afinal, o que diabo andavam todos vocês a fazer no jardim no meio de uma tempestade? Nem a ex-mulher nem o filho lhe respondem. – Vou tomar banho então – resmunga Matt, esgueirando-se pela porta sem olhar para a mãe. A cafeteira assobia e Sean regressa calmamente à preparação do chá. Subitamente Patricia sente-se muito zangada com ele. O sentimento é-lhe de tal forma familiar, da altura em que estavam casados, que se sente a regredir no tempo. – Sean! – grita ela. – O que raios estás a fazer aqui? Ele vira-se, com os olhos bem abertos e uma expressão inocente. E também aquele olhar lhe é penosamente familiar. Ele está a tentar enganála, fazê-la parecer irracional. Patricia faz os possíveis para não devolver o sorriso. – Vim ver-te. – Mas porquê? Sean permanece calado, demorando algum tempo a servir o chá. Mas depois diz: – Vim ver-te, mas depois perdi a coragem e resolvi ficar em casa do Tony.


– Perdeste a coragem? – repete Patricia, ouvindo o seu tom amargo e sarcástico, mais um eco do passado. – Desde quando é que tu perdes a coragem? Sean olha-a cheio de tristeza. A tristeza é algo novo nele. – Bem sei que tu me achas um inconsequente. Mas sabes que mais? Eu também tenho sentimentos. Daquela vez, quanto tu me chamaste de inútil… – Eu nunca disse isso! – Mas era isso que estavas a insinuar. Bem, achei que ficarias melhor sem mim. Mas fiquei destroçado por partir. – Então, porque foste? – pergunta Patricia num tom amuado. – Porque tu me disseste para ir. – Credo, e desde quando fazes o que eu digo? Sean solta uma gargalhada e, surpreendendo-se a si própria, Patricia começa igualmente a rir. E é como se não risse há anos. Sean passa-lhe uma chávena de chá. Com um gesto banal, caseiro, quase invisível para ambos. – Então porque regressaste? – pergunta de novo Patricia. – Bem sei que estamos divorciados – diz Sean devagar. – Mas eu nunca me senti divorciado. Continuo a sentir-me casado contigo. Percebes o que estou a dizer? Patricia anui com a cabeça. E beberica, agradecida, o chá quente. Tem o sabor da Inglaterra. * Os hóspedes reúnem-se no hall, tiritando e conversando em tons abafados. Ainda que de forma diferente, todos se sentem abalados e estranhamente perturbados. Os trovões e os relâmpagos, surgidos do nada no meio das festividades, tinham sido mais assustadores do que alguma vez poderiam imaginar. Depois, ao constatarem que Patricia não estava junto à carrinha para os receber, tinham-se sentido desamparados, como se o comandante tivesse abandonado o navio a meio da tempestade. Aldo aparecera então com Mary, os dois aninhados debaixo de um enorme guarda-chuva, assumindo de imediatamente o comando da situação. Abrira a carrinha, ligara o aquecimento e telefonara para Patricia. Obviamente, ao não obter


resposta, ligara para o castello. Os hóspedes tinham escutado a conversa. Todos tinham presumido que ela estava com JP, mas, ao perceberem que ele a tinha de alguma forma perdido, haviam-se sentido mais desnorteados do que nunca. Seguira-se uma palpável sensação de alívio quando Aldo ligara a carrinha e iniciara o percurso de regresso a casa. «Casa» – enfim, por mais uma noite. Alguns dos hóspedes estavam menos perturbados do que outros. Jeremy, por exemplo, ficara sentado junto à janela da carrinha a contemplar o exterior com uma expressão beatífica no rosto, sem deixar nunca de segurar com força a mão de Sally. A sua mente fervilhava, quase conseguia sentir os mecanismos enferrujados a girar e a pulsar de novo. Os seus dedos ansiavam por um teclado. Anna estava igualmente tensa, excitada. Sabia o que tinha de fazer. Fá-lo-ia por e-mail assim que regressassem. Inclinara-se então para a frente, desejando que a carrinha andasse mais depressa. Mary, ao seu lado e agarrada ao guarda-chuva molhado, rezava para que o veículo andasse progressivamente mais devagar, até o próprio tempo parar. Odiara cada minuto da viagem; não queria que ela acabasse nunca. Ao chegarem ao castello, tinham sido recebidos por um mal-humorado e descomposto JP. Não fazia a menor ideia do paradeiro de Patricia: percorrera a propriedade à sua procura e provavelmente apanhara uma pneumonia. Cat e Justin tinham chegado cinco minutos antes, tendo-se recolhido de imediato. JP não vira mais ninguém. Todos estão ainda a olhar uns para os outros, interrogando-se sobre o que deverão fazer, quando Fabio aparece vindo da direcção da cozinha. Também ele está encharcado, qual Darcy, com a sua fina camisa colada ao corpo. Mas está tão calmo e afável como sempre. Patricia ficou indisposta, com dores de barriga e pelo facto pede-lhes as maiores desculpas. Ficará bem depois de uma boa noite de sono. Quererão os hóspedes algo antes de se irem deitar? Chá? Café? Brandy? Todos recusam. Hoje não há disposição para ficarem a conversar em frente à lareira. E todos se dirigem, mais ou menos em silêncio, escada acima para os respectivos quartos. Somente Aldo parece querer dizer alguma coisa, mas, a certa altura, limita-se a beijar a mão de Mary e despede-se dos


restantes. Regressará a casa na sua Vespa, anuncia ele. Já parou de chover. – Vemos-te amanhã? – inquire Mary. – Levar-vos-ei ao aeroporto – responde Aldo. E vai-se embora. – Mas porque vieste esta noite? – pergunta Patricia, agora mais calma. – E porquê a cavalo? Os dois estão sentados à mesa. Sean encontrou casacos velhos para os dois pendurados no bengaleiro do andar de baixo. E ali estão eles, aconchegados, a beber chá, qual mendigos no banco de um parque. Sean delineia com o dedo um padrão na madeira da mesa. – Eu sei que parece estúpido. Mas pareceu-me ouvir-te gritar. – Lá longe na Villa Stella? – Não sei. Nas colinas os sons conseguem percorrer grandes distâncias. Bem, seja como for, ouvi um grito de mulher e tive a certeza de que eras tu. O Tony e os outros hóspedes estavam em San Severino para a festa do Ferragosto. Não havia carros, portanto, re​solvi selar o velho Dobbin e pôrme a caminho. Já me tinha esquecido do quão duro é o percurso, por todas aquelas veredas pedregosas. Foi uma sorte ele não ter partido uma perna. Mas portou-se lindamente, parecia um campeão. – Pensei que eras o cavaleiro fantasma no cavalo branco. – O Aldo ainda continua a contar essa história? Nada muda por aqui. – Há coisas que mudam – diz Patricia, agora noutro tom. – Sim – concorda Sean. – Há coisas que mudam. Ambos permanecem calados durante algum tempo. – E afinal, porque gritaste? – pergunta então Sean. Patricia suspira. – Bem, estava no meu quarto com… com um homem… – O francês? O Matt falou-me dele. – O que tens tu a ver com isso? – explode Patricia. – Tiveste variadíssimas namoradas desde que nos separámos. – Não tive… é diferente. – Não, não é. – Bem, o que foi mesmo que o cretino do francês te fez?


– Não foi ele. O luar estava a incidir na cama e fez-me lembrar de quando eu era criança. – E o que aconteceu quando eras criança? Patricia respira fundo. E começa a ver o seu quarto na casa de Bob e Vicky – «Não são simpáticos por te darem um quarto só para ti?». A janela sem cortinas, o papel de parede com o seu padrão de rosas gigantescas. Durante anos acreditara que se não pensasse no que acontecera, ou não falasse do sucedido, deixaria de existir. Sean inclina-se para a frente para lhe dar a mão. – Patricia, o que aconteceu quando eras criança? Ela fala agora num tom neutro, monocórdico, apertando com força o casaco em torno do corpo. – Os meus pais adoptivos, Bob e Vicky, abusaram de mim. Ele abusou sexualmente de mim. Ela costumava assistir. Durou anos. Começou quando eu tinha dez anos e só parou quando eu me tornei suficientemente forte para o repelir. Patricia quase não se apercebe de que Sean a abraça, do calor do seu corpo. – Credo, amor – murmura ele muito perto do cabelo dela. – Porque não me contaste isso antes? – Não sei – afirma Patricia. – Eu… eu não queria pensar nisso. Nunca quis pensar nisso. Achei que ficaria louca se pensasse no assunto. – Está tudo bem – diz Sean. – Agora está tudo bem. E Patricia dá por si a chorar, um choro convulsivo de uma criança de dez anos, ranhoso e descontrolado, expelindo todas as lágrimas que queria chorar por si própria, por Sean, pela ruptura do seu casamento, pelo que lhe acontecera no quarto com o papel de parede florido. Patricia soluça sem parar e Sean embala-a nos seus braços. Diário de Mary, 15 de Agosto, meia-noite Hoje foi o melhor e o pior dia da minha vida. O melhor porque agora sei que o Aldo me ama. O pior porque amanhã terei de o deixar para sempre. Ele diz que eu podia ficar cá, casar com ele, podíamos construir uma casa


ao pé do lago, ir esquiar no Inverno, uma série de ideias maravilhosas e lunáticas. Tenho setenta e quatro anos, não posso emigrar simplesmente para Itália e viver com um homem que conheço há duas semanas. Não posso fazê-lo. Todos pensariam que tinha enlouquecido e, efectivamente, iriam estar certos. Senhoras de setenta e quatro anos não fazem essas coisas. Senhoras de setenta e quatro anos vão à biblioteca, usam os seus passes gratuitos de autocarro para ir aos saldos, beber chá no café das galerias HBS, jogar Bingo ou dançar à moda antiga. Não vão para a cama com homens italianos que mal conhecem. Mas eu fui. Eu fui. Eu própria mal acredito. Não propriamente pelo acto, mas pela facilidade com que o fiz. E pensar que durante tantos anos acreditei que o amor (o sexo, melhor dizendo) era um grande mistério, um complicado quebra-cabeças que eu nunca conseguiria decifrar, o derradeiro e críptico desafio. Mas afinal, o que é mesmo? É algo que se faz com a pessoa amada. E eu amo-o realmente, e ele diz que também me ama. Disse uma série de coisas, coisas maravilhosas que recordarei para sempre. Pedi-lhe uma fotografia sua para poder olhar para ela e recordar (pensei inclusivamente em ser enterrada com ela), mas ele recusou, afirmando que não queria que eu tivesse uma fotografia e sim a pessoa em carne e osso. Mas eu não posso ter a pessoa em carne e osso, pois não? É absurdo. É algo que acontece nos livros e não na vida real. Para o Aldo é tudo muito simples. «Tenho setenta e cinco anos», disse ele. «Se tiver sorte, se Deus quiser, poderei viver mais uns dez, quinze anos. Quererei passar esses anos sozinho ou com a mulher que amo?» Ele disse mesmo isto. «A mulher que amo.» «Não há tempo» disse ele, «não há tempo para nos conhecermos melhor. Na nossa idade temos de aceitar o prazer onde o encontramos». «Porque terão os jovens tanta pressa?» disse ele. «Têm todo o tempo do mundo. Mas nós não.» No fim da noite ele ficou muito zangado. Disse que eu lhe estava a partir o coração. O meu já está partido, esmigalhado, reduzido a pó. Ele pelo menos foi casado e tem uma filha, mas o Aldo é o único homem que alguma vez amei. E depois de amanhã, nunca mais o verei. «Poderíamos


manter o contacto», sugeri eu. «Manter o contacto», troçou ele. «Um postal todos os Verões e outro pelo Natal?». «Estou a oferecer-lhe tudo e a Mary quer ‘manter o contacto’?» Então chorei. E acredito sinceramente que chorarei para sempre. Na cozinha, Patricia sente-se também como se chorasse desde sempre. Mas, em vez de estar zangada consigo própria como normalmente acontece nas raras ocasiões em que chora, sente-se sonhadora e relaxada, como se não precisasse de tomar mais decisões em toda a sua vida. Sean preparoulhe mais chá e ela, agradecida, envolve com os dedos a chávena reconfortante. O braço de Sean em torno dos seus ombros é igualmente reconfortante. Já não se recorda da última vez em que os dois estiveram assim sentados, juntinhos e em paz. – Mal consigo acreditar que tenhas mantido esse segredo durante tanto tempo – diz Sean. Patricia suspira. – O Bob e a Vicky disseram-me que ninguém acreditaria em mim. – Os monstros! – O tom de Sean é duro e a arrastada pronúncia irlandesa desapareceu por completo. – Hei-de encontrá-los e matá-los. – A Vicky já morreu – diz Patricia. – Li no jornal. «Faleceu mãe adoptiva generosa.» – «Generosa»! Patricia não diz nada, apreciando a revolta de Sean pelo sucedido, mas apercebendo-se que a sua própria raiva parece ter desaparecido misteriosamente. No seu lugar está apenas aquela onírica sensação de alívio e um vago pesar pela rapariguinha que fora outrora. Meu Deus, seria aquele o processo descrito por Dorothy? O que dissera mesmo Dorothy? «Tive de mergulhar em mim própria, no meu passado, e confrontar o que lá encontrei.» Será que foi isso que fez? Terá ela seguido o processo descrito por Dorothy, ainda que as recordações de Dorothy se tivessem revelado falsas? Poderia ela ter embarcado na sua própria viagem de descoberta? Fora mais barato do que um terapeuta, pensa Patricia tristemente. A porta abre-se em silêncio e o gato Sean entra, indo inspeccionar a sua


malga e saltando depois para cima da mesa à procura de mimos. – De onde veio este gato? – pergunta Sean. – É meu – diz Patricia, esfregando a orelha do animal. – Bem, a verdade é que mora aqui. – Mas tu és alérgica a gatos. – Mas não a este. – É um bicho bonito – diz Sean, afagando o pêlo cor de âmbar. – Como se chama? – Sean. – Sim? – O gato chama-se Sean. Sean é o nome do gato – diz Patricia, não conseguindo evitar uma gargalhada. Sean olha para o seu homónimo, que o contempla com os olhos semicerrados. E também ele começa a rir. – Um gato chamado Sean. Toda a gente a correr pelo jardim no meio de uma tempestade. O Aldo a deixar outra pessoa conduzir a sua carrinha. Afinal, o que se passa aqui? – Creio que o Aldo está apaixonado. – Credo. Os dois permanecem calados por instantes. Patricia levanta-se para dar de comer ao gato. Sean põe a cafeteira ao lume. – Mais chá? Ou será que nos atrevemos a abrir uma garrafa de vinho do Aldo? – Não. – Ele não mudou assim tanto, então. – Tudo mudou – diz Patricia, despejando os biscoitos de gato na tigela de Sean. – O Matt mudou. Eu mudei. E estou prestes a ir à falência. – A sério? – Contraí um empréstimo há algum tempo – explica Patricia num tom cansado – e não tenho dinheiro para o pagar. Se o banco executar a hipoteca, posso perder o castello. Consegui estragar tudo. Sean aproxima-se dela. – Não estragaste nada – diz ele num tom doce. – Portaste-te lindamente.


Criaste um filho maravilhoso, geriste o negócio com sucesso. Precisamos de dinheiro, e então? Havemos de o conseguir arranjar. Patricia solta uma gargalhada. – Tenho saudades de te ouvir dizer disparates desses. E ficam a olhar um para o outro. Patricia repara nos cabelos cinzentos que emolduram agora os louros. O seu amante demoníaco a cavalo está a transformar-se num homem de meia-idade. – Queres de volta o estúpido do teu marido? – sussurra Sean. – Sim – diz Patricia. – Quero sim. Os lábios de ambos tocam-se. E para ela é como se os anos de sofrimento, de raiva e segredo se dissolvessem com o beijo. Bastante mais tarde, Patricia desce do quarto, regressando de novo à cozinha. Não consegue dormir. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, mesmo depois de fazer amor com Sean com serenidade e prazer, continua a não conseguir dormir. No andar de cima, Sean dorme deitado diagonalmente sobre o colchão, tendo relaxado de imediato, como antes acontecera na cozinha. Patricia sentira-se progressivamente empurrada para a borda da cama. A certa altura rendera-se e descera até à cozinha à procura de um chá. Quantas chávenas de chá terá ela bebido nas últimas duas semanas? Vai ter de reduzir um pouco, ainda que agora, com Sean de volta, seja bastante mais difícil, pois ele é um apreciador inveterado de chá, muito pior do que ela. Estará Sean efectivamente de regresso? Patricia está certa de que sim. A familiaridade com que ele se mexera na cozinha, a forma confortável como abraçara Matt, a maneira como fechara os estores antes de a puxar para si na cama – tudo isso apontava para uma única coisa: era aquele o seu lugar. Aquela casa era tanto de Sean como de Patricia. Não a teriam os dois restaurado juntos, extirpado o papel de parede até encontrarem pedra por baixo, arrancando soalho, derrubando paredes falsas de tabique, eliminando as caricaturas dos anos até exporem a antiga glória do castelo? Tinham-no restaurado, como dizem os agentes imobiliários. Tornado novo. Poderá o mesmo acontecer ao seu casamento? Patricia não sabe. Sabe apenas que agora será diferente, menos crítica. Afinal, alguém


que saíra correndo pela noite por causa de um raio de luar não estava em posição de pregar contenção e racionalidade. Patricia põe a cafeteira ao lume. O leite está ainda sobre a mesa, bem como algumas chávenas e um jornal dobrado. Deus do Céu, ela devia estar mesmo noutro mundo para ter deixado a cozinha naquele estado. Arruma então as chávenas e pega na sua caneca preferida, a que tem impressos os lábios dos Rolling Stones. – Mrs. O’Hara? Patricia dá meia-volta, quase deixando cair a caneca. É Fabio. O rapaz tirou já as roupas molhadas, envergando agora uma Tshirt e calças de algodão. A chuva deixou-lhe o cabelo mais fofo do que o habitual. Parece tão jovem e está visivelmente nervoso. – O que fazes a pé a esta hora? – pergunta Patricia. – São quase três da manhã. – Queria falar consigo. E ouvi-a descer as escadas. O quarto de Fabio fica no rés-do-chão. – O que me queres dizer? – pergunta Patricia, sentindo-se repentinamente hostil. Antes da chegada de Fabio, Matt era apenas um adolescente normal e irritante, e agora… Fabio é mais velho do que Matt e irá certamente embora, deixando-o confuso e magoado. E ela sente-se triste, sabendo que faria qualquer coisa para evitar que o filho sofresse, mas sabendo também que isso é impossível. Para grande espanto de Patricia, Fabio não responde, pegando antes no jornal, dobrando-o e entregando-lho. Ela repara que é o mesmo jornal com que ele retirara o escorpião no dia anterior. – O que foi… ? – Leia, por favor. Intrigada, Patricia olha para as finas linhas do jornal. A sua compreensão do italiano escrito é por vezes lenta. Parecem ser as mesmas notícias dos últimos dias: fogos florestais, casamentos de celebridades, o mesmo rapaz desaparecido em Modena, herdeiro de um qualquer império automobilístico. O mesmo rapaz desaparecido… Patricia olha para Fabio.


O rapaz aponta para o jornal. «Herdeiro Automobilístico Continua Desaparecido» anuncia a parangona. Patricia eleva de novo os olhos para o rosto bonito de Fabio. E pensa então no seu italiano culto, na sua destreza com qualquer tipo de veículo, a tristeza que parece nunca o abandonar. – Tu? – inquire ela por fim. – Eu – anui ele, sentando-se à mesa. Patricia senta-se ao seu lado, interrogando-se se a noite virá a ter um fim. – Fugi de casa – diz Fabio em italiano. – O meu pai descobriu que eu sou… homossexual. Ele não compreende e por isso eu fugi. A minha mãe sabia e amava-me pelo que eu era, mas ela faleceu no ano passado. O meu pai deposita grandes esperanças em mim. Sou o herdeiro, o seu único filho, quer que eu case e tenha muitos filhos, mais herdeiros. Não se importaria nada se eu fosse um mulherengo. Acredito até que ficaria bastante satisfeito. Mas homossexual? Não. Impossível. Por isso fugi. Pensei em ir para uma aldeia remota, ar​ranjar um emprego, tentar ter uma vida normal. Sempre fui muito mimado. Roupas de marca, carros, aviões privados. Queria apenas viver como uma pessoa normal. Por isso montei na minha mota e fiz-me à estrada. Não fazia ideia para onde estava a ir. Parei em San Severino e vi o anúncio da agência na tabaccheria. E pensei, porque não? Assim… – conclui ele, abrindo as mãos. – E o Matt? Fabio suspira. – Peço desculpas pelo que aconteceu esta noite. Não voltará a acontecer. – Eu não me importo que ele seja homossexual – diz Patricia num tom feroz. Não vai deixar que ele a rotule também de progenitora insensível. Fabio sorri. – O Matt é novo. Não creio que saiba ainda o que é ou deixa de ser. Esta noite, com a tempestade e o foguete, ficou tudo um pouco louco. Não voltará a acontecer. Amanhã regressarei a Mo​dena. Vou conversar com o meu pai. Tentar fazê-lo ver que posso ser ainda uma mais-valia para ele. E aprendi isso aqui. Tenho sido um bom faz-tudo, não tenho? – O melhor.


– Então talvez possa ter serventia numa fábrica de automóveis. – Porque me estás a contar tudo isto? – pergunta Patricia. Fabio olha para ela. O rapaz é mesmo muito bonito, pensa ela. – Sou muito rico – diz ele simplesmente. – Sou herdeiro do meu pai, mas sou rico por direito próprio, por ter herdado do meu avô. Hoje… ontem foi o meu aniversário. Fiz vinte e um anos. – Parabéns. – Obrigado – diz ele sorrindo. – Agora que tenho vinte e um anos, posso fazer o que quiser com o meu dinheiro. E quero dar-lhe algum. Quero investir no castello. De: Anna Valore Data: 16 de Agosto 2007, 02.55 Para: Steve Smith Assunto: Olá borracho Queres casar comigo? De: Steve Smith Data: 16 de Agosto 2007, 02.56 Para: Anna Valore Assunto: Olá borracho Podes crer!


CAPÍTULO 31 Partidas manhã está linda. O céu apresenta um límpido e pálido tom de azul, como que lavado pela chuva da noite anterior, e no ar sente-se um ligeiríssimo travo outonal. Patricia e Matt estão sentados numa das pontas da piscina, com as pernas a balançar dentro de água. – Talvez tenha sido do Verão – está ele a dizer. – Estava tanto calor, mais do que o normal. E eu estava aborrecido. Tinha-me começado a chatear com o Elio e o Graziano. De repente já não os podia ouvir com aquelas conversas sobre raparigas com quem tinham fodido… com as quais tinham dormido. E eu comecei a pensar no Fabio. Ele era como um dos heróis do meu livro, cheio de estilo e seguro de si. E comecei a pensar no seu aspecto. Isso faz de mim homossexual? – Não sei – diz Patricia. – Creio que há regras diferentes para pessoas com o aspecto do Fabio. O que eu quero dizer é que eu própria mal conseguia tirar os olhos dele, mas isso não significa que quisesse dormir com o rapaz. Tem idade para ser meu filho. – Importavas-te? – pergunta Matt, batendo com força na água de modo a salpicá-los. – Se eu fosse homossexual, quero eu dizer. Patricia olha para o filho. – Querido – diz ela – é claro que não me importaria. E, de qualquer forma, não é assunto que me diga respeito. Sabes bem que sempre te amarei, independentemente de tudo. – Então porque saíste a correr quando nos viste? – Foi o choque. Não foi tanto por ti e pelo Fabio. Tinha-me assustado antes, depois veio a trovoada e tudo o resto. Creio que fiquei um pouco louca.

A


– Talvez me tenha acontecido o mesmo. – Talvez. – Vais contar ao pai? – Não se tu não quiseres. Mas para ele também não fará diferença. Matt bate um pouco mais as pernas. Há folhas e insectos na água, trazidos pela tempestade da noite anterior. Normalmente, Fabio tê-los-ia já recolhido, mas Fabio partira. Partira para Modena assim que o sol raiara, deixando uma carta para Matt e um avultado cheque para Patricia. – O pai regressou de vez? – pergunta Matt. – De vez? – repete Patricia. Sean regressara; isso ficara decidido na noite anterior com aquele primeiro beijo na cozinha. Mas seria tudo perfeito dali em diante? Apesar do dinheiro de Fabio, tornar o castello rentável dará muito trabalho. Irá o novo Sean abraçar o trabalho duro e parar de se esgueirar para ler o The Guardian na casinha da lenha? Patricia sorri para si própria. Talvez não. Mas depois olha para o rosto do filho, tão aberto e confiável, apesar da sombra de barba no queixo e da nova expressão adulta no olhar. – Sim – diz ela. – O pai regressou de vez. Ficas feliz com isso? – Fico. Patricia sorri para ele. O sol da manhã aquece-lhe o rosto e, dentro de algumas horas, terão a casa por conta deles. – Eu também – diz ela. – Vem daí. Tenho de ir preparar o último pequenoalmoço. * O pequeno-almoço decorre quase em silêncio. É como se os hóspedes tivessem conversado tudo na noite anterior. Agora, mentalmente, estão já a caminho de casa. Efectivamente, Dorothy, Rick e Betsy já partiram. Rick resolvera alugar um carro e os três partiram para os lagos. – Vamos esbanjar o resto das nossas poupanças – dissera Rick a Patricia, apertando-a num abraço forte. – Nunca a esqueceremos, nem a si nem ao castello. Patricia beijara-os com carinho. Não sabe ao certo o que pensa de


Dorothy, mas, estranhamente, ser-lhe-á sempre grata. E não, nunca os esquecerá. Aldo chega atrasado, não parecendo de todo o janota a que os habituou. Enverga uma T-shirt desbotada e o seu rosto parece pesado, as rugas mais acentuadas. Patricia supõe que terá feito uma noitada na noite anterior. Dormir pouco torna-se mais difícil à medida que envelhecemos. Veja-se Mary, por exemplo. Está macilenta. Sam fica sentado em silêncio com o seu café. Também ele tem um carro alugado, podendo portanto partir quando lhe apetecer, mas planeia fazê-lo quando a carrinha partir para aeroporto. Assim poderá acenar pela última vez a Anna e encerrar definitivamente esse capítulo da sua vida. Capítulo? Parágrafo? Sentença? Sentença de vida? Talvez seja melhor parar de pensar em metáforas literárias. O curso ensinou-lhe uma coisa: nunca será um escritor. Mas foi mais do que isso; há sentimentos e emoções que lentamente estão a ir ao lugar. Para começar, vai deixar Londres. Ser o escocês residente do curso fê-lo recordar a falta que sente da sua terra natal. Irá regressar à Escócia, talvez para Edimburgo. Talvez monte um negócio próprio; nunca gostou muito de trabalhar numa firma. E pedirá Jenny em casamento. Subitamente sente uma verdadeira vontade de a rever, de se sentar com ela e conversarem – algo que, compreende agora, não fazem há muitos meses, anos talvez. Talvez ela não se oponha à ideia de casamento e, quem sabe, à possibilidade de terem filhos. Afinal, há formas bastante mais fáceis de alcançar a imortalidade do que escrever um livro. JP está igualmente calado. Está um pouco envergonhado devido ao pânico que sentira na noite anterior. E pensar que ele, um francês inteligente e tranquilo, ficara tão traumatizado com uma trovoadazita e a histeria de uma mulher a ponto de ter medo de subir as escadas. Já para não falar do gato enlouquecido, diz JP a si próprio. E do fantasma. JP não sabe ao certo o que achar do fantasma. Por um lado, vira-o com os seus próprios olhos: o selvagem cavalo branco, o cavaleiro fantasma; por outro, tinha de haver uma explicação racional. Vira Patricia mais cedo, de manhãzinha. Estava a subir da piscina em direcção à casa e Matt estava com ela. JP acenara-lhe da sua janela e descera para lhe falar. Matt desaparecera e Patricia


cumprimentara-o com um sorriso. Estava pálida e cansada; mas também, de certa forma, translúcida, possuindo um brilho que não conseguira identificar. Ela lamentara o sucedido na noite anterior, explicando que sempre tivera problemas com tempestades. Para JP aquilo não explicava nada – os gritos, a correria, tudo –, porém, tivera o bom senso de ficar calado. Mas acontecera algo extraordinário, dissera Patricia, sem olhar para ele. O seu marido regressara. «Regressara?» repetira JP. Ele pensava que estavam divorciados. E estavam, explicara Patricia, mas iam tentar de novo. «Deseje-me sorte», dissera ela, erguendo o queixo com uma expressão meio desafiadora, meio irónica que ele achara absolutamente encantadora. E, naturalmente, ele fizera-o. Desejava-lhe toda a sorte do mundo. JP irá regressar a Paris, a cidade mais bela do mundo, para voltar a ser um advogado indiferente e o melhor pai que conseguir. Não lamenta de todo ter apagado o seu livro, nem, efectivamente, a infrutífera corte feita a Patricia. Extraíra daí um ensinamento: precisa de uma mulher. Alguém que não seja Barbara. Ah, e nunca na vida terá um gato. E quase sem que os hóspedes se apercebam Aldo traz a carrinha para a frente da porta e Matt começa a ajudá-los a descer as escadas com as malas. Não, Fabio partiu. Tivera de ir a casa, uma crise familiar, mandava a todos os seus cumprimentos. Cat fica particularmente triste ao ouvi-lo, mas acha o homem mais velho que vem ajudar com a bagagem muitíssimo charmoso. O meu pai, explica Matt. Mas é somente a caminho do aeroporto que Cat se apercebe de que ele deverá ser o ex-marido de Patricia. «De onde terá ele vindo assim de repente?», interroga-se ela, aplicando creme no rosto – o ar condicionado dos aviões é péssimo para a pele. Mas é bastante atraente, um verdadeiro charme. E Cat fecha os olhos, consignando o castello à história. Mary está curvada para a frente, convencida de que irá passar mal. Aldo não lhe dirigiu a palavra durante toda a manhã. A noite anterior deve ter sido um sonho, só que o seu corpo está estranho, como se pertencesse a outra pessoa. E ela ainda tem o guarda-chuva de Aldo, enterrado na sua mala sob três camadas de roupa. Em breve será a única coisa que terá para o recordar. Olha então para trás para apanhar um derradeiro vislumbre do castello antes de a estrada curvar, eclipsando-o para sempre. Sabe bem que


nunca poderá regressar. Como poderia regressar a Itália sem Aldo? – Arrivederci! – gritam Jeremy e Sally. – Ciao, castello! Ciao, Patricia! – Ciao, ciao – repetem as crianças, excitadíssimas. Anna, sentada ao lado de Mary, aperta-lhe a mão. – São tristes, não é verdade? As despedidas? Mordendo o lábio, Mary anui com um ligeiro aceno de cabeça. – Mas ainda assim é bom ir para casa, não é? – continua Anna. A rapariga, repara então Mary, parece irradiar felicidade. E Mary torna a anuir tristemente. Como poderá ela comparar o regresso a casa de Anna, com crianças a caírem-lhe nos braços, com o seu próprio regresso? Pilhas de correio por abrir, a maioria publicidade de cadeiras ascensoras, e o acre odor que o seu apartamento ganha após uma semana de janelas fechadas. De repente pensa na varan​da de Aldo com o limoeiro. E imagina-se lá sentada com Aldo, a apreciarem o almoço de domingo, enquanto, abaixo deles, San Severino pulsa de vida. – Está bem? – pergunta Anna. – Ficou muito pálida, de repente. * O grupo chegou ao aeroporto. Aldo providencia os carrinhos para a bagagem e todos empilham as respectivas malas: o conjunto Louis Vuiton de Cat, o saco desportivo azul de Anna, a mochila de Sally. Aldo carrega ele próprio a velhinha mala de cabedal de Mary, colocando-a cuidadosamente no cimo da pilha. – Adeus, Mary – diz ele. Os olhos de Mary enchem-se de lágrimas. – Adeus, Aldo. – Nunca a esquecerei – murmura Aldo. O parque do aeroporto enche-se com as lágrimas de Mary, que só consegue acenar com a cabeça e tocar timidamente na mão de Aldo. Quer atirar-se para os seus braços, enterrar-se no peito quadrado com a cicatriz de soldado, agarrar-se a ele e nunca mais o largar. Mas só pode sorrir e virarse, levando consigo a sua pequena mala Gladstone, seguindo Jeremy e Justin e os carrinhos da bagagem. E quando por fim olha para trás, Aldo


desapareceu. Nunca mais o verá. Patricia está a desfazer as camas quando Myra entra a saltitar anunciando que vai casar com Gennaro. – O quê? – exclama Patricia, deixando cair os lençóis para o chão. Myra põe-se a balançar na porta – Patricia pede constantemente a Matt para não o fazer. Os olhos de Myra brilham. Ela enverga ainda o vestido da noite anterior, e traz os sapatos na mão. – Ele passava a vida a pedir-me em casamento, não era? E eu ria e respondia-lhe: «um dia, quem sabe?». Bem, ontem à noite, durante o Ferragosto, estávamos a conversar e ele disse: «Faz amor comigo e logo vês se mudas de ideias». E eu assim fiz e mudei de facto de ideias. – Foi assim tão bom? – Querida, foi melhor que bom. E eu pensei: se me casar com ele posso ter sexo como este todas as noites. Portanto, disse sim. – Um casamento não é só sexo – afirma Patricia num tom sentencioso. – Com certeza – diz Myra, dançando pelo quarto. – Há uma vinha e um italiano lindíssimo. E viver na Toscana, e não chegar solteira aos quarenta. – Bem, pondo as coisas assim… Patricia olha então para Myra, a qual já conhece há três anos. Durante esse período já vira Myra deprimida por causa de namorados infiéis, vira-a entusiasmada quando o seu negócio de aeróbica começara a ter sucesso, e em baixo quando ele finalmente falhara; vira-a séria, animada, ansiosa, e – por duas vezes – bêbeda. Mas nunca a vira a dançar pelos quartos, com os sapatos na mão, esfuziante, quase transbordando de excitação. Poderia uma noite com Gennaro ter produzido um tal milagre? Ou faria tudo parte da estranheza da noite anterior, com segredos expostos, amantes reunidos, identidades reveladas? Se o próprio Pã, de parras na cabeça, tivesse irrompido pela casa, tocando as suas flautas e declamado versos sobre a insensatez dos mortais, Patricia não teria ficado de todo surpreendida. Mas em vez disso a porta abre-se e Matt entra esbaforido. Tem o cabelo molhado – tem estado a aproveitar o facto de ter a piscina por sua conta. – Mãe! O Aldo está a dizer que se vai embora.


Na cozinha, Alto está pacatamente a guardar o seu avental e as suas facas especiais. O seu rádio e a mezzaluna estão já no seu saco e o seu poster do Roma foi retirado da parede. – Aldo! – exclama Patricia quase a soluçar. – O que está a fazer? Aldo abre as mãos num gesto impotente. – Lamento, mas tenho de ir. E continua a empacotar as facas, embrulhando cuidadosamente cada uma em papel de jornal. – Mas porquê? – Não posso ficar aqui. Tenho o coração desfeito – e di-lo de forma tão pragmática como se estivesse a informá-la acerca de um acidente com faiança. – É por causa da Mary? – pergunta timidamente Patricia. – Sim – diz Aldo, prosseguindo com a sua tarefa. – Mas Aldo, poderá vê-la de novo. Convide-a para vir passar férias aqui. Para vir passar o Natal. Isto não significa que nunca mais se verão. Aldo volta-se para ela e a sua expressão é de tal forma trágica que as palavras encorajadoras de Patricia parecem murchar no ar. – Nunca mais a verei. Portanto, tenho de partir. Tudo aqui ma traz à memória. – Telefone-lhe – sugere Myra. – Diga-lhe o que sente. – Já lhe disse. Pedi-a em casamento. – Leve-a para a cama – diz Myra. – Comigo funcionou. – Também já o fiz – diz Aldo com grande dignidade. – Até isso tentei. Patricia, Myra e Matt entreolham-se. Aldo começa a dobrar o avental num quadrado perfeito. – Acabou – afirma ele. – Eu amava a Mary e pedi-a em casamento. Mas ela foi embora. Nunca mais irei cozinhar. – Mary? – inquire Sean, entrando por acaso na cozinha, acabado de regressar da casa de Tony Pearce, onde foi devolver o cavalo. – Está uma senhora chamada Mary junto à porta da frente. Um táxi acabou de a deixar. E está a perguntar pelo Aldo. Aldo deixa cair ruidosamente as facas e sai disparado pela porta dos


fundos. Em uníssono, Patricia, Myra, Matt e Sean seguem-no. Como um jovem de vinte anos, Aldo sobe a correr os degraus do lado da casa. E ao cimo está Mary, parada, segurando a sua mala Gladstone. – Aqui estou – afirma ela, meio a rir, meio a chorar. – Mas a minha bagagem seguiu para Gatwick. – Não importa – diz Aldo, tomando-a nos braços. – Compro-te um guardaroupa novo. – E o teu guarda-chuva – acrescenta a abafada voz de Mary. – Está lá o teu guarda-chuva. – Quando casarmos – diz Aldo, beijando-a – o sol brilhará para sempre. Patricia e Sean entreolham-se. – Um final feliz – diz Sean. – O único possível – concorda Patricia.


Novidades Editoriais Jeremy Bullen, famoso autor de Mergulho de Barriga, irá publicar um novo livro na Primavera, o primeiro em vinte anos. A Virgem na Montanha conta a história da conversão religiosa de um homem durante uma estadia numa remota aldeia montanhosa de Itália. Bullen diz: «É muito diferente do meu trabalho anterior, mas a verdade é que eu sou também um ho​mem muito diferente.» Os direitos cinematográficos já foram vendidos. Mary McMahon, a estreante au​​to​ra de setenta e cinco anos, define Malone, o seu inspector ficcional, como «uma mistura de Sherlock Hol​mes e Eeyore». Três livros do inspector Malone estão já no prelo e os direitos televisivos foram vendidos. Graham Norton, Ardal O’Hanlon e Robbie Coltrane terão já manifestado interesse em interpretar o misantrópico inspector. Ms. McMahon, que casou recentemente e emigrou para a Itália, afirma que viver num paraíso toscano não a impedirá de escrever sobre a vida londrina dos anos cinquen​ta. «Se eu escrevesse sobre a mi​nha vida», diz ela, «ninguém acreditaria.» À primeira vista, É Diferente para as Raparigas pode parecer mais um romance cor-de-rosa. Mas há uma di​ferença de peso no romance de estreia de Anna Valore, uma mãe de Brighton com dois filhos. Este livro foi escrito do ponto de vista masculino e detalha a batalha de Dave, um marido doméstico, para tomar conta dos filhos e satisfazer as exigências da sua bem-sucedida e ambiciosa parceira Sue. Divertido, terno e surpreendentemente inteligente.


ANÚNCIOS NASCIMENTOS Justin Ferris e Catherine Ferris-Merry tiveram uma menina, Siena Caterina. Uma preciosa irmã para Sasha e Star.


AGRADECIMENTOS Um agradecimento especial para a minha sobrinha Elly Whitehead, que durante uma longa tarde toscana, me ajudou a tecer a quase totalidade da intriga de Aquele Verão na Toscana. Agradeço igualmente a Alex, Juliet e Charlotte pelas suas sugestões. Espero que Charlotte aprove as cenas de amor. Um obrigada especial ao meu sobrinho William Lewington, por me ter falado do fórum dos gatos e por ser o guia perfeito a Roma. Devo agradecer também a Roberta Battman pela revisão do meu italiano. Os meus sinceros agradecimentos ao meu agente Tif Loehnis e à minha editora Mary-Anne Harrington pela continuada fé na minha pessoa. Obrigada a todos na Janklow, Nesbit e Headline Review por todo o trabalho árduo que fazem por mim. Como sempre, muito amor e obrigada ao meu marido Andrew e aos nossos filhos, Alex e Juliet. Este livro é para eles.


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