Danielle steel um dia de cada vez 2009 [ptpt]

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DANIELLE STEEL é a mais popular das autoras contemporâneas e já entrou no Guinness World Records por ter tido um ou mais livros seus durante 381 semanas consecutivas na lista de best-sellers do New York Times. Em 2002, a autora foi galardoada com a prestigiante Ordre des Arts et des Lettres pelo seu contributo de uma vida para a cultura mundial. É ainda fundadora de duas instituições de solidariedade, em memória do seu filho Nick: a Nick Traina Foundation, que apoia doentes do foro psiquiátrico e crianças vítimas de maus-tratos, e a Yo! Angel!, que ajuda os sem-abrigo. A autora, mãe de nove filhos, vive em São Francisco e Paris. www.daniellesteel.net www.daniellesteel.com


Título original: One Day at a Time 1.ª edição em papel: novembro de 2013 Autora: Danielle Steel Tradução: Maria do Carmo Romão Revisão: Eda Lyra Design da capa: Marta Teixeira Imagens da capa: Shutterstock Images © 2009 by Danielle Steel [Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.] Esta edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Bertrand Editora Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1 1500-499 Lisboa www.bertrandeditora.pt Tel. 217 626 000 · Fax 217 626 150 ISBN: 978-972-25-2848-1


Para os meus queridos filhos, Beatrix, Trevor, Todd, Nick, Sam, Victoria, Vanessa, Maxx e Zara, que são a esperança, o amor e a alegria da minha vida. Com todo o meu amor, Mãe/d.s.


O que quer que aconteรงa, aconteceu ou venha a acontecer. Ainda acredito no Amor seja qual for a sua forma ortodoxa ou pouco ortodoxa, vulgar ou extraordinรกria. Nunca desisto da Esperanรงa. d.s.


CAPÍTULO 1 Era um dia de junho maravilhoso e o sol nascia sobre a cidade; Coco Barrington assistia a este espetáculo no pátio da sua casa em Bolinas. Estava ali, a olhar para as listas cor-de-rosa e laranja no céu, enquanto bebia uma chávena de chá chinês bem quente, estendida numa velha cadeira desbotada e partida que comprara em segunda mão. Uma estátua de madeira de Quan Yin, gasta pelo sol, observava pacificamente a cena. Quan Yin era a deusa da compaixão e a estátua, um presente muito estimado. Sob o olhar benevolente da estátua, a bela jovem ruiva contemplava a luz dourada do nascer do sol daquele princípio de verão, que lhe lançava reflexos acobreados no cabelo ondulado que lhe dava quase pela cintura. Vestia uma velha camisa de dormir de flanela com corações, que já mal se notavam, e estava descalça. A casa em que vivia estava situada em Bolinas, num planalto sobranceiro ao oceano e a uma pequena praia. Era exatamente ali que Coco queria estar e há quatro anos que lá vivia. Esta pequena e quase esquecida comunidade agrícola do litoral, a menos de uma hora do norte de São Francisco, era o seu refúgio aos vinte e oito anos. Era uma generosidade chamar casa àquele espaço. Pouco mais era do que uma casinha de campo, a mãe e a irmã referiam-se a ela como um casebre ou, em dias melhores, uma cabana. Para ambas, era incompreensível que Coco ali quisesse morar — ou até que conseguisse fazê-lo. Era a concretização do pior pesadelo que alguma vez tiveram, mesmo dizendo respeito apenas a ela. A mãe tentara, primeiro com lisonja, depois com insultos, críticas e até subornos, fazê-la voltar àquilo a que se referia como «civilização» em Los Angeles. Para Coco nada na vida da mãe ou na maneira como tinha crescido parecia «civilizado». Era tudo uma fraude. Pareciam-lhe artificiais as pessoas, o modo como viviam, os objetivos a que aspiravam, as casas que habitavam e as plásticas no rosto de todas as mulheres de Los Angeles. A vida em Bolinas era simples e verdadeira, pouco complicada e genuína, como a própria Coco. Detestava tudo o que era falso. Não que a mãe fosse «falsa». Era educada e tinha uma imagem que mantinha com todo o cuidado. Era uma das romancistas de sucesso dos últimos trinta anos e o que escrevia não era fraudulento; era, simplesmente, pouco profundo, mas um vasto público seguia a sua obra. Escrevia com o nome de Florence Flowers, um pseudónimo do seu próprio nome de solteira, e gozava de um imenso êxito. Tinha sessenta e dois anos e vivera uma vida de conto de fadas, casada com o pai das suas filhas, Bernard «Buzz» Barrington, o mais importante agente literário e teatral de Los Angeles, até à sua morte, há quatro anos. Buzz era dezasseis anos mais velho do que a mulher e estava ainda bem conservado quando, subitamente, teve um AVC que lhe provocou a morte. Tinha sido um dos homens mais poderosos na sua área e mimara e protegera a mulher durante os trinta e seis anos de casamento, encorajando-a e fazendo a gestão da sua carreira. Coco sempre se interrogara se a mãe teria conseguido destacar-se como escritora sem a


ajuda do marido. À mãe nunca se pusera tal questão e, nem por um instante, duvidara do mérito do seu trabalho ou da miríade de opiniões que tinha acerca de tudo na vida. Não escondia o facto de Coco ser uma desilusão para ela e não hesitava em acusá-la de ter abandonado os estudos ou em chamar-lhe hippy e excêntrica. A avaliação que Jane, a sua irmã igualmente bem-sucedida, fazia dela era mais desapegada, embora não fosse mais simpática: Jane referia-se a Coco como uma «fracassada crónica». Fazia notar à irmã mais nova que tivera todas as oportunidades possíveis, todas as possibilidades de ter sucesso na vida e que, até então, deitara tudo fora. Recordava-a regularmente de que nunca era tarde para dar a volta, mas que, enquanto continuasse a viver na cabana em Bolinas como uma vagabunda das praias, a sua vida não prestaria para nada. Não era essa a opinião de Coco. Bastava-se a si própria, era respeitável, não consumia nem nunca consumiu drogas, exceto uma ou outra passa com os amigos na faculdade, muito raramente, o que era notável nessa altura. Não era um peso para a família, nunca fora despejada nem promíscua, nunca engravidara nem estivera na cadeia. Não criticava o estilo de vida da irmã e nem desejava fazê-lo. Não dizia à mãe que as roupas que ela vestia tinham um estilo ridiculamente jovem, ou que o seu último lifting a deixara demasiado esticada. Tudo o que Coco desejava era ser ela própria e conduzir a sua vida à sua maneira. Sempre se sentira pouco à vontade no estilo de vida luxuoso de Bel-Air, odiara ter sido discriminada por ser filha de duas pessoas famosas e, mais recentemente, a irmã muito mais nova de outra celebridade. Nunca quisera conduzir a vida deles, apenas a sua. As suas batalhas haviam começado a sério depois de ter acabado os preparatórios em Princeton com ótimas notas, ter ido para a Faculdade de Direito de Stanford e ter desistido do curso no segundo ano, há já três anos. Prometera ao pai que haveria de experimentar Direito e ele garantira-lhe que seria possível dar-lhe emprego na sua agência, pois ajudava ter uma licenciatura neste campo para ser uma agente de sucesso. O problema é que não era isso que ela queria, sobretudo trabalhar para o pai. Não tinha o mínimo desejo de representar escritores de sucesso, argumentistas ou estrelas de cinema malcomportadas. Essa era a paixão do pai, o seu ganha-pão e o seu único interesse. Todos os nomes famosos de Hollywood tinham passado por casa dela, quando era criança. Não se imaginava a passar o resto da vida com eles, como acontecera com o pai. Acreditava secretamente que todo o stresse de representar e satisfazer pessoas mimadas, pouco razoáveis e disparatadamente exigentes durante quase cinquenta anos tinha dado cabo dele. E a ela parecia-lhe uma sentença de morte. O pai morrera durante o primeiro ano de Coco na faculdade de Direito; ela mantivera-se lá mais um ano, mas depois desistira. A mãe reclamara durante meses e ainda a criticava por viver como uma sem-abrigo numa cabana em Bolinas. Só tinha


ido lá uma vez e, desde então, nunca mais se calara. Coco decidira ficar na zona de São Francisco depois de ter desistido de Stanford. O norte da Califórnia agradava-lhe mais. A irmã Jane mudara-se para lá há três anos, mas ia com frequência a Los Angeles em trabalho. A mãe ainda se sentia perturbada pela partida das duas filhas para a região norte, abandonando Los Angeles, embora Jane fosse lá com frequência. Coco raramente ia a casa da mãe. Jane, a irmã de Coco, tinha trinta e nove anos. Aos trinta, tornara-se uma das mais importantes produtoras de cinema de Hollywood. Tivera até então uma carreira fulgurante e onze grandes êxitos de bilheteira. Tinha enorme sucesso, o que fazia com que Coco parecesse não ter qualquer interesse. A mãe nunca deixava de lembrar a Coco como o pai se orgulhava de Jane e, depois, desatava a chorar, pensando na vida desperdiçada da filha mais nova. As lágrimas tinham sempre sido um bom recurso, fazendo como que conseguisse obter tudo do marido. Buzz satisfizera-lhe todas as vontades e adorava as filhas. Por vezes, Coco gostava de acreditar que poderia ter explicado ao pai as suas decisões e as razões que a tinham levado a tomá-las, mas, na verdade, sabia que não teria qualquer hipótese. Tal como a mãe ou a irmã, também ele não as compreenderia e teria ficado perplexo e desapontado com a sua vida atual. Ficara encantado quando a filha entrou para a faculdade de Direito em Stanford, esperando que isso pusesse fim às suas ideias extremamente liberais. Na sua opinião, não havia problema em ter bom coração e em preocupar-se com o planeta e com o próximo, desde que não houvesse exageros, que era o que a filha fazia. Contudo, Buzz garantira à mulher que a faculdade de Direito a faria ter juízo. Afinal, não fora isso que acontecera, já que desistira do curso. O pai deixara-lhe dinheiro mais do que suficiente para viver, mas Coco nunca lhe tocava, preferia gastar apenas aquele que ganhava e, muitas vezes, entregava-o às causas que eram importantes para ela, a maioria das quais envolvia a ecologia, a preservação da vida animal no planeta ou a ajuda às crianças carenciadas nos países do Terceiro Mundo. A irmã Jane dizia que ela tinha um coração mole. Usava várias expressões pouco lisonjeiras para a classificar e todas elas a magoavam. Contudo, Coco admitia prontamente ter um coração mole, e era por isso que gostava tanto da imagem de Quan Yin. A deusa da compaixão emocionava-a profundamente. A integridade de Coco era total e o seu coração enorme, sempre pronta a ajudar os outros, o que para ela era extremamente gratificlante. Nos últimos anos da sua adolescência, Jane causara alguns problemas à família. Aos dezassete anos, dissera aos pais que era lésbica. Coco tinha na altura seis anos e não se apercebera da confusão que isso causara. Jane fizera aquela declaração no último ano da escola secundária, tornando-se depois ativista militante dos direitos das lésbicas na Universidade da Califórnia, onde estudava cinema. A mãe ficara


desconsolada quando pedira a Jane para ser debutante e ela recusara, dizendo-lhe que preferia morrer. Mas, apesar das suas preferências sexuais e militância, tinha os mesmos interesses materiais dos pais. O pai desculpou-a assim que viu que ela colocava os seus interesses na fama. E assim que a atingiu, tudo ficou bem. Há já dez anos que Jane vivia com uma conhecida argumentista, pessoa delicada, e famosa por direito próprio. Tinham-se mudado para São Francisco por causa da grande comunidade homossexual que aí existe. Toda a gente adorava os filmes que faziam. Jane foi nomeada para quatro óscares, mas não tinha ganho nenhum. A mãe nunca pusera em questão o facto de Jane e Elizabeth viverem juntas nos últimos dez anos. Era Coco que os perturbava a todos profundamente, que os preocupava de morte, que os aborrecia com as suas decisões ridículas, a sua vida de hippy, a sua indiferença em relação a tudo o que pensavam ser importante, fazendo a mãe chorar. Por fim, atribuíam as atitudes de Coco à influência do homem com quem ela fora viver depois de abandonar o curso de Direito, e não ao efeito que a família tinha tido sobre ela durante tantos anos. Ian White vivera com ela durante o segundo e último ano em que ela estivera na faculdade de Direito. Ele próprio também abandonara o curso vários anos antes, não se licenciando. Era tudo o que os pais não queriam para ela. Embora fosse inteligente, competente e bem-educado, como Jane dizia, era um «falhado», tal como a irmã. Depois de abandonar a faculdade na Austrália, Ian fora para São Francisco e abrira uma escola de mergulho e surf. Tinha sido alegre, amoroso, engraçado, afável e maravilhoso com ela. Era um diamante bruto, de uma espécie independente que fazia aquilo que queria, e Coco soube que encontrara a sua alma gémea no dia em que se conheceram. Foram viver juntos dois meses depois, tinha ela vinte e quatro anos. Ele morreu passados dois anos. Foram os melhores anos da vida de Coco, que lamentava a sua partida. Morrera a fazer parapente, quando uma rajada de vento o atirara contra as rochas e o lançara para a morte no abismo. Tudo acabara num instante, e os seus sonhos partiram com ele. Tinham comprado juntos a cabana em Bolinas e ele deixara-lha. Os seus fatos e todo o equipamento de mergulho ainda lá estavam. Coco sofreu muito no primeiro ano após a morte de Ian e, a princípio, a mãe e a irmã foram compreensivas, mas depois deixaram de ter paciência. Segundo elas, ele tinha partido e Coco deveria ultrapassar o desgosto, tratar da vida, crescer. Fora o que fizera, mas não como a mãe e a irmã queriam, o que representava para ambas uma ofensa capital. A própria Coco sabia que teria de se libertar das recordações de Ian e seguir em frente. Saíra com algumas pessoas no último ano, mas ninguém tinha qualquer comparação com ele. Nunca conhecera um homem com tanta vida, energia, afeto e encanto. Era difícil encontrar alguém que se lhe comparasse, embora Coco tivesse esperança de que um dia isso viesse a acontecer. Ela sabia que Ian não gostaria que ela ficasse sozinha para sempre. Coco, no entanto, não tinha pressa. Era feliz vivendo em Bolinas, acordando de manhã para enfrentar um dia de cada vez. Não tinha um


percurso profissional. Não queria nem precisava de fama para se valorizar, como acontecia com o resto da família. Não queria viver numa grande casa em Bel-Air. Não queria mais nada do que o que tivera com Ian — dias bonitos, tempos felizes e noites de amor, tudo o que recordaria para sempre. Não precisava de saber onde e com quem a levariam os passos futuros. Cada dia era em si uma bênção. A sua vida com Ian fora perfeita e exatamente aquilo que ambos queriam, mas, nos últimos dois anos, após a morte dele, Coco tinha-se sentido em paz a viver sozinha. Tinha saudades, mas acabara por aceitar que era importante continuar. Não estava desvairada para se casar, ter filhos ou encontrar outro homem. Aos vinte e oito anos, nada disso parecia urgente, e continuar a deixar passar o tempo em Bolinas era mais do que suficiente para ela. A princípio, viver ali parecera estranho a Ian e a ela. Era uma pequena comunidade engraçada. Os seus residentes tinham decidido, havia muito, não só serem discretos, mas também desaparecerem praticamente, como nas histórias de fantasmas. Não havia placas na estrada para indicar como chegar a Bolinas, ou sequer para indicar que essa terra existia. Era preciso encontrá-la. Era uma paragem no tempo que ambos tinham adorado. Na década de 1960 estivera cheia de hippies, e muitos deles ainda lá viviam, muito curtidos pelo sol, cheios de rugas e grisalhos. Homens com mais de cinquenta anos, talvez mesmo sessenta, dirigiam-se à praia com a prancha de surf debaixo do braço. Na vila havia apenas uma loja que vendia roupas em batik, um restaurante cheio de velhos surfistas de cabelo branco, uma mercearia com produtos quase exclusivamente biológicos e uma loja pouco convencional que vendia todo o tipo de utensílios e cachimbos para fumar haxixe de todas as cores, formas e dimensões. A vila propriamente dita estava situada num planalto sobranceiro a uma pequena praia, separada por uma enseada da enorme extensão de Stinson Beach e das suas casas elegantes. Havia algumas belas casas confortáveis em Bolinas, mas, na sua maior parte, quem lá vivia eram famílias, jovens que tinham deixado de estudar, surfistas mais velhos e pessoas que, por qualquer razão, tinham decidido isolar-se e quase desaparecer. À sua maneira, era uma comunidade elitista e a antítese de tudo aquilo com que Coco crescera e da família poderosa de que Ian tinha fugido em Sidney, na Austrália. Nesse aspeto, harmonizavam-se perfeitamente. Ele partira, mas ela continuava ali e não tinha qualquer intenção de se ir embora tão cedo, se é que alguma vez iria ter, apesar do que diziam a mãe e a irmã. A terapeuta que consultara depois da morte de Ian afirmara havia pouco que, aos vinte e oito anos, Coco continuava a revoltar-se. Talvez, mas, para ela, não havia qualquer problema. Sentiase feliz com a vida que escolhera e com o local onde vivia. E outra coisa de que tinha a certeza era que nunca, mas nunca, voltaria a viver em Los Angeles. Quando o sol subiu no céu e Coco voltou para ir buscar outra chávena de chá, Sallie, o pastor-australiano fêmea de Ian, saiu lentamente de dentro de casa, acabada


de sair da cama de Coco. Abanou levemente a cauda e partiu para o seu passeio matinal na praia. Era extremamente independente e ajudava Coco no seu trabalho. Ian dissera-lhe que os pastores-australianos são ótimos cães de busca e salvamento e pastores por instinto, mas Sallie agia como lhe apetecia. Afeiçoara-se a Coco, mas apenas à sua maneira, e tinha sempre os seus próprios planos e ideias. Fora impecavelmente treinada por Ian. Saiu a correr enquanto Coco se servia da segunda chávena de chá e olhava para o relógio. Pouco passava das sete, tinha de tomar duche e ir trabalhar. Gostava de estar na Golden Gate às oito e meia. Chegava sempre a horas e era extremamente responsável em relação aos seus clientes. Tinha-lhe valido muito tudo o que aprendera acerca de trabalho árduo e êxito. Era proprietária de uma pequena empresa sem grande importância, que, mesmo assim, faturava bem. Os seus serviços tinham tido muita procura nos últimos três anos, desde que Ian a ajudara a montá-la. Crescera incrivelmente nos dois anos após a morte dele, embora Coco limitasse os seus clientes e já não aceitasse tantos. Gostava de estar em casa às quatro horas, todos os dias, para ter tempo de passear na praia com Sallie antes de escurecer. Os vizinhos de Coco, de um lado e do outro da sua cabana, eram uma aromaterapeuta e um especialista em acupunctura que trabalhavam na cidade. O especialista em acupunctura era casado com uma professora da escola local e a aromaterapeuta vivia com um bombeiro do quartel de Stinson Beach. Eram pessoas decentes, sinceras e trabalhadoras, que se ajudavam umas às outras. Os vizinhos tinham sido incrivelmente simpáticos aquando da morte de Ian, e ela já tinha saído uma ou duas vezes com um amigo da professora, sem que houvesse qualquer envolvimento. Tinham-se tornado amigos, e para Coco isso era muito agradável. Como seria de esperar, a família considerava-os a todos hippies. A mãe chamava-lhes preguiçosos, coisa que nenhum deles era, mesmo que fosse essa a ideia que davam. Coco não se importava de ficar sozinha e era mesmo sozinha que passava a maior parte do tempo. Às sete e meia, depois de um duche bem quente, Coco dirigiu-se para a sua velha carrinha. Ian encontrara-a num parque de estacionamento em Inverness e comprara-a para ela ir todos os dias para a cidade. A velha carrinha era exatamente o que precisava, apesar dos cento e cinquenta mil quilómetros que já tinha. Funcionava bem, mesmo sendo realmente muito feia. A maior parte da tinta tinha caído havia muito, mas o motor estava bom. Ian tivera uma moto que usavam para percorrer os montes ao fim de semana, quando não saíam no barco. Ele ensinara-a a mergulhar. Desde que ele morrera que Coco não usava a moto, que continuava guardada na garagem atrás da cabana. Não era capaz de se decidir a desfazer-se dela, embora tivesse vendido o barco e fechado a escola de mergulho, pois não havia quem ficasse com ela. Coco não a conseguiria gerir, pois já tinha a sua própria empresa.


Fez deslizar a porta da carrinha e Sallie saltou lá para dentro, entusiasmada. A corrida na praia tinha-a despertado e, tal como Coco, estava pronta para trabalhar. Coco sorriu para a enorme cadela preta e branca. Quem não reconhecesse a raça, julgaria tratar-se de um rafeiro, mas era um pastor-australiano puro, com olhos azuis de expressão séria. Coco fechou a porta, sentou-se ao volante e partiu com um aceno ao vizinho, que voltava do turno no quartel de bombeiros. Era uma comunidade ensonada e quase ninguém se preocupava em fechar as portas à chave durante a noite. Seguiu pela estrada cheia de curvas, à beira do rochedo sobranceiro ao oceano, em direção à cidade que brilhava ao longe na luz da manhã. Ia ser um dia perfeito, o que tornava mais fácil o seu trabalho. E, como gostava, estava na ponte às oito horas, mesmo a tempo do seu primeiro cliente. Não que tivesse muita importância, ter-lheiam perdoado se se atrasasse, mas isso quase nunca acontecia. Não era a preguiçosa, como a família dizia, apenas diferente de todos eles durante toda a vida. Virou para Pacific Heights e dirigiu-se para sul, subindo a colina íngreme de Divisadero. Estava quase a atingir o cimo, na Broadway, quando o telemóvel tocou. Era a irmã Jane. — Onde estás? — perguntou Jane, secamente. Falava sempre como se se tratasse de uma emergência nacional e os terroristas lhe tivessem invadido a casa. Vivia em constante estado de stresse, próprio da sua profissão e adequado à sua personalidade. Elizabeth, a sua companheira, era mais descontraída e acalmava-a consideravelmente. Coco gostava muito de Liz. Tinha quarenta e três anos e era tão talentosa e inteligente como Jane, mas mais calma. Licenciara-se com a nota máxima em Harvard e fizera um mestrado em Literatura Inglesa. Escrevera um romance obscuro, mas interessante, antes de se tornar guionista em Hollywood. Escrevera vários guiões e ganhara dois óscares. Ela e Jane tinham-se conhecido há dez anos, quando trabalhavam num filme e, desde então, viviam juntas. A sua relação era sólida e a ligação funcionava bem para as duas. Consideravam-se companheiras para toda a vida. — Estou em Divisadero. Porquê? — perguntou Coco, num tom cansado. Odiava que Jane nunca lhe perguntasse como estava, que se limitasse a dizer o que precisava. Sempre fora essa a relação que a irmã mantinha com ela. Coco fora a moça de recados de Jane durante toda a sua vida e passara muito tempo a falar com a terapeuta a esse respeito, enquanto duraram as consultas. Era difícil dar a volta àquilo, embora o tentasse. Sallie estava sentada no lugar do passageiro, ao lado de Coco e observavalhe o rosto com interesse, como se sentisse a tensão da dona e quisesse saber o motivo. — Ótimo. Preciso de ti imediatamente — disse Jane, parecendo aliviada e perturbada. Coco sabia que elas iriam em breve para Nova Iorque, para filmar os


exteriores de um filme coproduzido pela irmã e por Liz. — Para que precisas de mim? — perguntou Coco, cautelosa, enquanto a cadela inclinava a cabeça para o lado. — Estou tramada. A pessoa que vinha tomar conta da minha casa cancelou o trabalho. Parto dentro de uma hora. — O desespero embargava-lhe a voz. — Pensei que só iam para a semana — disse Coco, num tom desconfiado enquanto conduzia pela Broadway, onde a irmã vivia, apenas a uns quarteirões de distância, numa casa espetacular com vista sobre a baía. Ficava na Costa Dourada, onde se situavam quase todas as casas elegantes. Não havia dúvida de que a de Jane era a mais bonita de todas, embora Coco não apreciasse o estilo, tal como Jane não apreciava o da cabana de Bolinas. As duas irmãs pareciam ter nascido em planetas diferentes. — Prepara-se uma greve de técnicos de som. Liz partiu ontem à noite. Eu tenho de estar lá esta noite para uma reunião com o sindicato e não tenho ninguém para tomar conta do Jack. A mãe da pessoa que me toma conta da casa morreu e ela vai ter de ficar em Seattle com o pai que está doente, sabe-se lá até quando. Telefonou-me a informar e o avião é daqui a duas horas. — Coco franziu a testa enquanto ouvia. Não tinha vontade de perceber bem o que a irmã acabara de lhe dizer. Coco aparava tudo o que caía por entre as fendas da vida da irmã. Como Jane pensava que Coco não tinha vida própria, esperava sempre que ela aparecesse para lhe acudir. Coco nunca podia dizer não à irmã que a tinha assombrado durante toda a vida. Jane não tinha qualquer problema em dizer não a quem quer que fosse, e isso fazia parte do seu êxito. Coco tinha dificuldade em encontrar essa palavra no seu vocabulário, coisa que Jane sabia perfeitamente, e de que se aproveitava em todas as oportunidades. — Se quiseres vou lá para passear o Jack — disse Coco, cautelosa. — Sabes que isso não é suficiente — disse Jane, aborrecida. — Fica deprimido se não vir ninguém em casa à noite. Uiva, e os vizinhos ficam loucos. E preciso de alguém que vigie a casa. — O cão era quase tão grande como a cabana de Bolinas, mas, se fosse preciso, Coco sabia que poderia levá-lo para lá. — Queres que ele fique comigo, enquanto tentas arranjar alguém? — Não — disse Jane com firmeza. — Preciso que tu fiques lá. Preciso que tu, ouviu Coco pela milionésima vez na vida. Não, por favor… não poderias… importavas-te… por favor, por favor, era um grande favor… Preciso que tu. Merda. Era mais uma oportunidade para lhe dizer que não. Coco abriu a boca, mas não saiu um único som. Olhou para Sallie, que parecia não acreditar no que ouvia. — Não olhes para mim assim — disse Coco à cadela.


— O quê? Com quem estás a falar? — perguntou Jane imediatamente. — Não interessa. Porque é que ele não pode ficar comigo? — Gosta de ficar em casa na sua cama — disse Jane com firmeza, e Coco revirou os olhos. Estava a um quarteirão de casa da cliente e não queria chegar atrasada, mas alguma coisa lhe dizia que era exatamente isso que ia acontecer. A irmã exercia sobre ela uma atração magnética como a das marés, uma força a que Coco não conseguia resistir. — Eu também gosto de dormir na minha cama — disse Coco, tentando parecer firme, mas sabendo que não enganava ninguém e muito menos Jane. Ela e Elizabeth tinham filmagens de exteriores em Nova Iorque durante cinco meses. — Não vou tomar conta da tua casa durante cinco meses — disse Coco, teimosa. E os filmes por vezes demoravam mais tempo. Poderiam vir a ser seis ou sete. — Muito bem. Vou arranjar outra pessoa — disse Jane em tom reprovador, como se Coco fosse uma menina malcomportada. Aquilo incomodava-a sempre, por muito que recordasse a si própria que já era adulta. — Mas não posso fazê-lo numa hora, que é o que falta para me ir embora. Trato do assunto em Nova Iorque. Por amor de Deus, quem te ouvisse pensaria que estava a pedir-te que ficasses num bairro de lata. Até te fazia bem ficar aqui cinco ou seis meses e não terias de andar para cá e para lá para ires trabalhar. — Jane tinha bons argumentos, mas Coco não queria aceitá-los. Detestava a casa da irmã: era muito bonita, impecável, mas fria. Já tinha sido fotografada por todas as revistas de decoração, e Coco não se sentia à vontade lá dentro. Não havia um sítio onde se estendesse confortavelmente à noite. E estava sempre tão imaculada que tinha receio de respirar ou até de comer. Não era tão boa dona de casa como Jane ou até mesmo como Liz. Eram ambas maníacas da limpeza. Coco gostava de uma desorganização confortável e não se preocupava com alguma desordem na sua vida, o que irritava Jane. — Posso ficar uns dias, no máximo uma semana. Mas tens de arranjar outra pessoa. Não quero viver meses na tua casa — disse Coco inflexível, tentando estabelecer os limites. — Arranjo. Vou fazer os possíveis. Mas, agora, por favor, trata-me disto. Quando podes vir buscar as chaves? E quero mostrar-te de novo o sistema de alarme porque acrescentámos outras operações e são complicadas. Não quero que o faças disparar. Podes ir buscar a comida do Jack à Canine Cuisine, preparam-na para ele duas vezes por semana, às segundas e quintas. E não te esqueças de que o veterinário é agora o doutor Hajimoto na Sacramento Street. Jack tem de levar uma vacina para a semana. — Ainda bem que não tens filhos — comentou Coco secamente, enquanto dava a volta à carrinha. Ia chegar atrasada, mas haveria de se arranjar. A irmã conseguia pôla louca. — Nunca sairias da cidade.


O buldogue transformara-se para as duas no substituto de um filho e vivia melhor do que a maioria das pessoas, com refeições especialmente preparadas, um treinador, um tratador que vinha a casa dar-lhe banho e mais atenção do que muitos pais davam aos filhos. Coco dirigiu-se a casa da irmã, diante da qual já se encontrava um carro à espera para levar Jane ao aeroporto. Coco desligou o motor e saltou da carrinha, deixando Sallie no interior, olhando pela janela cheia de interesse. Nos dias seguintes, ia divertir-se bastante com Jack. Este era três vezes maior do que ela e, provavelmente, partiriam tudo dentro de casa, enquanto andassem a correr atrás um do outro. Talvez Coco os deixasse usar a piscina da irmã. A única coisa que Coco adorava naquela casa era o ecrã do quarto em que podia ver filmes. O quarto era enorme e o ecrã cobria uma parede inteira. Coco tocou à porta e Jane abriu-a de repente, com um telemóvel colado ao ouvido. Estava a gritar com alguém por causa dos sindicatos e desligou quando olhou para Coco. As duas mulheres eram surpreendentemente parecidas. Eram ambas altas e muito bonitas. Ambas tinham sido modelos na adolescência. A diferença mais notável entre as duas era que Jane era angulosa e tinha o cabelo louro e liso preso num rabo de cavalo, e o cabelo castanho-arruivado, comprido e solto de Coco, e as suas curvas mais suaves davam-lhe um ar mais afetuoso e tinha nos olhos uma expressão sorridente. Em Jane, tudo falava de stresse. Sempre houvera nela qualquer coisa de cortante, mesmo quando era pequena, mas aqueles que a conheciam intimamente sabiam que, apesar da sua língua afiada, era uma pessoa decente e tinha bom coração. Todavia não se podia negar que era dura e Coco sabia-o bem. Vestia calças de ganga pretas, uma t-shirt e um casaco de cabedal da mesma cor; usava brincos de diamantes. Coco vestia uma t-shirt branca, calças de ganga que lhe moldavam as pernas altas e elegantes e calçava ténis, que usava para trabalhar. Trazia também uma sweatshirt desbotada colocada em redor do pescoço. Coco parecia muito mais jovem. O estilo mais sofisticado de Jane envelhecia-a um pouco, mas eram ambas mulheres notáveis, muito parecidas com o seu famoso pai. A mãe era mais baixa e mais cheia, embora fosse loura como Jane. A cabeleira arruivada de Coco viera de uma geração anterior, já que Buzz Barrington tinha cabelo negroazeviche. — Graças a Deus! — disse Jane, enquanto o enorme buldogue veio a correr ter com elas e se levantou nas patas traseiras para se apoiar nos ombros de Coco. Sabia o que significava tê-la por ali, restos da mesa que, de contrário, nunca receberia e dormir na cama enorme do quarto principal, coisa que Jane não permitia. Embora adorasse o cão, acreditava firmemente que ele devia ter regras. Até Jack sabia que Coco era fácil de convencer e que o deixaria subir para a cama. Abanou a cauda e lambeu-lhe a cara, um cumprimento muito mais simpático do que o que recebera de


Jane. Liz era de longe a mais afetuosa do casal, mas já estava em Nova Iorque. E a relação entre as duas irmãs fora sempre tensa. Por muito boas que fossem as suas intenções e por muito que gostasse da irmã mais nova, Jane nunca media as suas palavras. Jane entregou a Coco um conjunto de chaves e uma folha de papel com as informações do novo alarme. Repetiu o que já dissera sobre o veterinário, a vacina e as refeições de marca de Jack, e mais um sem-número de instruções, todas elas lançadas à irmã ao ritmo de uma metralhadora. — E telefona-nos imediatamente se o Jack tiver algum problema — terminou. Coco teve vontade de lhe perguntar «E se for eu?», mas Jane não teria achado graça. — Vamos tentar cá vir um fim de semana para que possas descansar, mas não sei quando poderemos escapar, principalmente se tivermos problemas com os sindicatos. — Parecia perturbada e exausta ainda antes de lá chegar. Coco sabia que ela tratava dos mínimos pormenores e era brilhante naquilo que fazia. — Espera aí — disse Coco sentindo-se derrotada. — Só vou fazer isto durante uns dias, uma semana no máximo, não é verdade? Não vou ficar aqui o tempo todo — repetiu para que se entendessem. Não queria confusões. — Bem sei, bem sei. Qualquer pessoa sentir-se-ia feliz por poder ficar numa casa decente. — A irmã olhava-a com ar zangado em vez de lhe agradecer profusamente. — É a tua casa decente — declarou Coco. — A minha casa é em Bolinas — continuou com uma dignidade que Jane ignorou. — Não vamos discutir isso — disse Jane com uma expressão séria e depois, a contragosto, olhou para a irmã e sorriu. — Obrigada pela ajuda, miúda. Agradeço-te muito. És uma irmã mais nova maravilhosa. — Lançou a Coco um dos seus raros sorrisos de apreço que faziam com que Coco desejasse agradar-lhe. Mas era preciso fazer o que ela queria para conseguir um desses sorrisos. Coco queria perguntar-lhe por que razão era uma irmã mais nova maravilhosa. Porque não tinha vida própria? Mas não fez a pergunta e limitou-se a assentir com a cabeça, odiando-se por concordar tão rapidamente em tomar conta da casa. Como sempre, tinha cedido sem se opor. Mas, de que valeria? De qualquer forma, Jane vencia sempre. Seria sempre a irmã mais velha que Coco não conseguia vencer, a quem não conseguia dizer que não e que pairava sobre ela, por vezes com mais poder do que os pais. — Não me deixes aqui presa para sempre — disse Coco em tom de súplica. — Eu telefono-te para te dizer — disse Jane, ambígua, e depois correu para a sala


ao lado para responder a duas linhas de telefone ao mesmo tempo e, quando se dirigia para lá, o telemóvel começou também a tocar. — Mais uma vez obrigada — disse por cima do ombro, enquanto Coco suspirava, fazia uma festa no cão e voltava para a carrinha. Estava já vinte minutos atrasada para o seu primeiro cliente. — Até logo, Jack — disse Coco em voz baixa, fechando a porta atrás de si. Enquanto se afastava, Coco tinha a deprimente sensação de que Jane a iria deixar ali durante meses sem fim! Conhecia muito bem a irmã. Coco chegou a casa do primeiro cliente cinco minutos depois. Retirou um cofrezinho que guardava no porta-luvas da carrinha, inseriu a combinação e tirou lá de dentro um conjunto de chaves com uma etiqueta com um número de código. Pertenciam às casas de todos os clientes que confiavam plenamente nas suas idas e vindas. A casa, junto da qual parou, era de tijolo e quase tão grande como a de Jane, com sebes bem aparadas no exterior. Coco entrou pela porta das traseiras, desligou o alarme e assobiou alto. Segundos depois um gigantesco grand danois prateado apareceu e abanou a cauda com grande entusiasmo no momento em que a viu. — Olá Henry, como vai isso, rapaz? — Prendeu a trela à coleira, ligou de novo o alarme, fechou a porta à chave e levou-o para a carrinha, onde Sallie se mostrou encantada por ver o amigo. Os dois cães cumprimentaram-se com um latido e empurraram-se amigavelmente no fundo da carrinha. Coco parou em mais quatro casas nas proximidades e recolheu um doberman surpreendentemente meigo, um leão-da-rodésia, um galgo-irlandês e um dálmata, todos eles de casas igualmente opulentas. Fazia sempre o primeiro turno do dia com os cães mais corpulentos, que precisavam de mais exercício. Dirigiu-se para Ocean Beach onde ela e os cães podiam correr quilómetros. Por vezes, levava-os para o Golden Gate Park. E, sempre que necessário, Sallie ajudava-a a juntá-los em matilha. Há três anos que passeava os cães dos ricos e da elite de Pacific Heights, e nunca tivera um acidente, um contratempo, nem perdera um cão. Tinha uma reputação de ouro na profissão e, embora a família pensasse que se tratava de um desperdício patético de tempo e habilitações, continuava a sair, gostava de cães e ganhava decentemente. Não era o que desejava fazer para o resto da vida, mas, por enquanto, agradava-lhe bastante. O telemóvel tocou quando ia entregar ao dono o último cão grande. Tinha um grupo de cães médios para ir buscar a seguir e levava sempre os pequenos a passear antes do almoço, pois a maior parte dos donos saía com eles antes de ir trabalhar. E fazia um último turno com os cães grandes a meio da tarde antes de voltar a Marin. Era Jane que lhe telefonava. Já estava no avião, a falar rapidamente antes que lhe dissessem que desligasse o telemóvel. — Verifiquei as datas antes de sair de casa e a vacina do Jack é só daqui a duas


semanas, não para a semana. — Por vezes, Coco perguntava a si própria por que razão não lhe explodiria a cabeça com tantas minúcias que tentava abarcar. Nenhum pormenor era demasiado pequeno para escapar a Jane, geria tudo minuciosamente, até o cão. — Não te preocupes que não vai haver problema — garantiu Coco num tom descontraído. A corrida na praia tinha-a acalmado, tal como acontecera com os cães. — Diverte-te em Nova Iorque. — Com uma greve, nem penses. — Jane parecia um fio metálico prestes a rebentar. Mas Coco, sabia que uma vez que estivesse de novo junto de Liz, acalmarse-ia. A companheira tinha uma influência calmante sobre ela. Eram um par perfeito e complementavam-se. — De qualquer maneira, tenta divertir-te. E não te esqueças de arranjar alguém para te tomar conta da casa, assim que puderes — recordou-lhe Coco e falava a sério, quer Jane quisesse quer não. — Bem sei, bem sei — disse Jane e suspirou. — E obrigada por me teres salvado. Para mim significa muito saber que a casa e o Jack estão em boas mãos. — A voz parecia muito mais suave do que durante toda a manhã. Tinham uma relação estranha, mas, afinal, eram irmãs. — Obrigada — disse Coco esboçando lentamente um sorriso, enquanto perguntava a si própria por que razão significava tanto para ela ter a aprovação da irmã e lhe custava tanto quando não a tinha. Sabia que, em breve, teria de se livrar daquilo e arranjar coragem para lhe dizer que não. Mas ainda não chegara o momento. Coco sabia que, no que dizia respeito à mãe e à irmã, passear cães não contava. No esquema da vida e comparada com outras conquistas como ser escritora famosa ou produtora nomeada para os óscares, a empresa de Coco era um embaraço. Aos olhos delas, era como se não tivesse emprego. E até mesmo Coco tinha consciência de que, na escala de Richter das conquistas que fora ensinada a exigir de si própria, o ponteiro nem estremecera por ser tratadora de cães. Mesmo assim, quer elas aprovassem quer não, era uma vida fácil, simples e agradável. E era o que bastava a Coco naquele exato momento.


CAPÍTULO 2 Eram seis horas quando Coco voltou para a cidade. Fora a casa fazer a mala com sweatshirts, calças de ganga e outro par de ténis, roupa interior e um monte dos seus DVD favoritos para ver no ecrã gigante da irmã. Tinha acabado de passar as portagens quando o telemóvel tocou. Era Jane, que acabara de chegar ao apartamento que ela e Liz tinham alugado em Nova Iorque por um período de seis meses. — Está tudo bem? — perguntou Jane, parecendo preocupada. — Estou agora a caminho da tua casa — sossegou-a Coco. — Eu e o Jack vamos jantar à luz das velas, enquanto a Sallie fica a ver o seu programa de televisão preferido. Coco não quis pensar no tempo passado, havia mais de dois anos, em que ela e Ian cozinhavam juntos, caminhavam na praia à noite, pescavam no barco ao fim de semana; no tempo em que ela tinha vida própria e não preparava refeições de marca para o cão da irmã. Mas não valia a pena pensar naquilo agora. Esses dias já tinham acabado. Tinham planeado casar-se no verão em que ele morrera, com uma cerimónia simples na praia e depois um churrasco para os amigos. Ainda não tinha dito nada à mãe, que certamente teria um ataque. E pensavam voltar para a Austrália e abrir uma escola de mergulho lá. Na sua juventude, Ian fora campeão de surf. Pensar naquilo deixava-a melancólica. Liz veio ao telefone, depois de Coco falar com Jane, e agradeceu-lhe por ficar a tomar conta da casa e do cão. O seu tom e modo de falar eram infinitamente mais calorosos do que os de Jane. — Está tudo bem. É um prazer ajudar-vos, desde que não seja por muito tempo. — Coco também queria que ela soubesse. — Vamos arranjar alguém, prometo — disse Liz, parecendo realmente grata com a ajuda de Coco. Nunca a tomava como certa, ao contrário de Jane. — Obrigada — disse Coco. — Como está Nova Iorque? — Estaria melhor se evitássemos a greve. Penso que talvez consigamos chegar a um acordo esta noite. — Parecia ter esperança nisso. Lá no fundo, era uma pacifista. Jane era a guerreira do casal. Coco desejou-lhes sorte, enquanto estacionava o carro diante da casa. Por vezes, invejava aquela relação. Entendiam-se como os casais se deveriam entender, o que nem sempre acontecia. Coco crescera sabendo que a irmã mais velha era lésbica e aceitava a sua maneira de ser sem a questionar, embora, por vezes, muitas pessoas ficassem surpreendidas. O que incomodava Coco em relação a Jane era o modo como


forçava quem quer que fosse para alcançar o que queria. Só Liz parecia capaz de a humanizar e, por vezes, nem ela o conseguia. Mimada pelos pais e habituada à adulação pelas suas proezas, Jane estava acostumada a conseguir tudo o que queria. E Coco sentia-se em segundo lugar, sempre à sombra da irmã. Nada nela mudara. Só não se sentira assim enquanto vivera com Ian. Talvez porque, nessa altura, não se importasse tanto com o que a irmã pensava, ou talvez porque a presença dele a protegesse de um modo místico e invisível. Adorara a ideia de se mudar para a Austrália com ele. E agora, estava aqui, em casa da irmã, a tomar mais uma vez conta do cão. E o que teria acontecido se Ian estivesse vivo e ela tivesse vida própria? Jane teria de encontrar outra pessoa em vez de se servir da irmã mais nova como uma espécie de Gata Borralheira que corresse em seu auxílio em todas as crises. Mas como seria não estar ali a ajudá-la? Transformar-se-ia numa pessoa adulta por direito próprio ou na menina má que Jane dizia que ela era quando eram pequenas e Coco não queria fazer o que ela mandava? Era uma pergunta interessante, para a qual ainda não tinha encontrado resposta. Talvez porque não quisesse. Era mais fácil fazer o que lhe mandavam, principalmente agora que já não tinha Ian para a proteger. Coco deu de comer aos dois cães e ligou a televisão. Recostou-se no sofá branco de lã mohair e pôs os pés na mesinha da mesma cor. O tapete também era branco, feito do pelo de um qualquer animal raro da América do Sul de que Coco se recordava vagamente. Tinham usado os serviços de um famoso arquiteto da Cidade do México e a casa era maravilhosa, mas feita para se viver com o cabelo impecável, as mãos tratadas e sapatos novos. Por vezes, Coco sentia que, se respirasse, poderia deixar uma marca em alguma coisa e que a irmã iria ver. Sentia-se sob uma pressão enorme enquanto lá ficava e muito menos confortável do que quando estava em Bolinas, na sua «cabana». Foi até à cozinha preparar qualquer coisa para comer. Como tinham partido mais cedo do que pensavam, nem Elizabeth nem Jane tinham tido tempo de abastecer o frigorífico para a pessoa que ia tomar conta da casa. Coco encontrou apenas uma alface, dois limões e uma garrafa de vinho branco. Havia massa e azeite no armário, de modo que preparou um prato de massa simples e uma salada, e serviu-se de um copo de vinho enquanto estava a cozinhar. Os dois cães começaram a ladrar à janela, como se estivessem loucos, enquanto ela mexia a salada e, quando foi ver o que se passava, avistou dois guaxinins que passeavam lentamente pelo jardim. Os animais levaram cerca de quinze minutos a desaparecer e, nesse espaço de tempo, Coco tentou acalmar os cães. Foi então que lhe cheirou a queimado. Parecia que um curto-circuito tinha ateado um incêndio, algures dentro de casa, e ela correu para cima e para baixo, tentando localizá-lo, sem encontrar nada. Por fim, o cheiro levou-a à cozinha. A água tinha-se evaporado, a massa estava queimada e nada mais era do que uma crosta negra no fundo da panela, que já tinha uma asa parcialmente derretida, vindo daí o cheiro a queimado. — Merda — resmungou Coco, metendo a panela no lava-louça. Enquanto


deixava correr a água sobre ela, ouviu um alarme soar algures. O alarme de fumo tinha disparado e, antes de conseguir telefonar para a empresa, ouviu as sirenes e viu dois carros de bombeiros à porta. Estava a explicar timidamente o que se passara quando o telemóvel começou a tocar. Os cães ladravam aos bombeiros. Atendeu a chamada que era de Jane. — O que se passa? A empresa de alarmes acabou de me telefonar. Há fogo em casa? — Parecia em pânico. — Não é nada — disse Coco, agradecendo aos bombeiros que entraram no carro e fecharam a porta. Tinha de voltar a ligar o alarme e não tinha a certeza de o conseguir fazer, mas não quis dizê-lo a Jane. — Nada de importante. Queimei a massa. Havia dois guaxinins no jardim e os cães pareciam loucos. Esqueci-me de que estava a cozinhar. — Valha-me Deus, a casa podia ter ardido toda. — Passava da meia-noite em Nova Iorque e a greve fora desconvocada, mas, mesmo assim, Jane parecia esgotada. — Se quiseres posso voltar para Bolinas — propôs Coco. — Deixa lá. Tenta não dares cabo de ti nem incendiar a casa. — Recordou a Coco como voltar a ligar o alarme e, um minuto depois, Coco sentou-se no meio da cozinha impecável de granito negro a comer a salada. Tinha fome, estava cansada e com saudades da sua casa. Meteu a tigela na máquina da louça, deitou fora a panela com a asa derretida, apagou as luzes e só reparou que uma das folhas da alface se tinha pegado à sola do sapato quando já estava lá em cima com os dois cães. Estendeu-se no chão do quarto da irmã, sentindo-se tão desastrada como um elefante numa loja de porcelana, como acontecia sempre que ficava na órbita dela. Por fim, levantou-se, tirou os sapatos e deixou-se cair na cama. Assim que o fez, os dois cães saltaram para lá com ela. Coco riu-se quando os viu. A irmã seria capaz de a matar, mas, como ela não estava ali para ver, deixou-os estenderem-se a seu lado como fazia sempre. Depois colocou um DVD no leitor e ficou na cama com os cães a ver um dos seus filmes favoritos. A casa ainda cheirava à panela queimada. Teria de a substituir e, sonhando com Bolinas e com Ian, adormeceu a meio do filme. Só acordou na manhã seguinte. Saiu da cama a correr para tomar duche, vestir-se e ir a casa do primeiro cliente. De saída, passou pela cozinha, decidiu não tomar chá e levar os dois cães consigo. Felizmente, dessa vez, a irmã não lhe telefonou. Depois da sua volta habitual a passear os cães em Presidio, no Golden Gate Park e em Crissy Field, voltou para casa na Broadway às quatro horas e enfiou-se no jacúzi. Já tinha decidido não fazer jantar nessa noite e, enquanto via outro dos seus DVD preferidos, encomendou comida chinesa. A mãe telefonou de Los Angeles quando ela comia a carne picante e acabava um crepe. Jack estava sentado a olhar


para a mesa da cozinha e a babar-se, com Sallie mesmo ao lado. — Olá, mãe — disse Coco com a boca cheia, quando viu o número aparecer no visor. — Como estás? — Bem e muito mais feliz, sabendo que estás numa casa decente e não naquela barraca de Bolinas onde podes ficar presa se houver um incêndio. Tens muita sorte por a tua irmã te deixar ficar aí. — A minha irmã tem muita sorte por eu me ter disposto a tomar-lhe conta da casa, quando apenas me avisou com cinco minutos de antecedência — disse Coco bruscamente e sem pensar. Jack roubou um crepe e Coco afastou o prato antes que ele comesse tudo. A irmã também a poderia matar por isso. — Não sejas parva — censurou-a a mãe. — Não tens mais nada que fazer e tens muita sorte em estar aí. A casa é sensacional. — Não havia maneira de o negar, mas era como viver num palco. — Devias arranjar casa na cidade. E um emprego decente, um homem, e voltar para a faculdade. — Coco já ouvira tudo aquilo. A mãe e a irmã tinham um milhão de opiniões sobre a vida dela e nunca hesitavam em expressá-las. Consideravam-se os árbitros daquilo que estava bem. Coco encarnava tudo o que não estava. — Então como estás, mãe? Está tudo bem contigo? — Era sempre mais fácil quando conseguia que a mãe falasse sobre si própria. De qualquer forma, também ela estava mais interessada nisso e tinha muito que dizer. — Comecei a escrever um novo livro — disse, feliz. — Adoro o tema. É sobre um general do Norte e uma mulher do Sul durante a Guerra Civil. Apaixonam-se, mas têm de se separar. Ela fica viúva e o seu escravo favorito ajuda-a a fugir e consegue que ela chegue ao Norte para ir ter com o general. Não tem dinheiro, o general quer desesperadamente encontrá-la, mas não consegue e, por sua vez, ela consegue encontrar a mulher do escravo. São duas histórias numa só e é divertido escrevê-las — disse a mãe alegremente, e Coco sorriu. Toda a vida ouvira aquelas histórias. Gostava dos livros da mãe e tinha orgulho nela, embora quando era pequena se sentisse embaraçada com o seu êxito. Não queria uma mãe famosa, desejava apenas ter uma mãe vulgar que fizesse biscoitos e se revezasse para levar as crianças à escola. Mas, com o passar dos anos, habituara-se. Apesar de estar longe disso, a mãe costumava fantasiar que era apenas dona de casa. Quando Coco nasceu, já a mãe era uma escritora célebre e passou a infância da filha a escrever ou a dar entrevistas. Coco sempre invejara as pessoas que não tinham pais famosos. — Já vi que o último livro que escreveste está no número um dos tops — disse Coco orgulhosa. — Nunca falhas, pois não mãe? — Parecia quase melancólica.


— Tento que isso não aconteça, querida. Gosto mais do doce aroma do sucesso. — Riu-se ao dizer aquilo. Toda a família gostava desse aroma, não apenas a mãe, mas também Jane e o pai. Coco perguntava-se muitas vezes como teria sido a sua vida crescendo entre pessoas normais, médicos ou professores, ou tendo um pai que vendesse apólices de seguros. Não tivera muitos amigos enquanto vivera em Los Angeles. Os pais de quase todos eles eram também famosos. A maioria dos seus colegas da escola tinha pais produtores, realizadores, atores, diretores de estúdio. Tinha andado em HarvardWestlake, uma das melhores escolas de Los Angeles e muitos dos seus colegas de então eram agora famosos. Era como viver entre mitos e tentar igualá-los. Quase todos eram pessoas com ótimos desempenhos, como a irmã, embora alguns jovens que conhecera na altura tivessem já morrido devido ao abuso de drogas ou em acidentes de automóvel por conduzirem embriagados, ou porque se suicidaram. Essas coisas também aconteciam aos pobres, mas pareciam acontecer mais frequentemente aos ricos e famosos. Viviam acelerados e pagavam um preço alto pelo seu estilo de vida. Enquanto Coco crescia, nunca ocorrera aos pais que ela se recusasse a participar naquele jogo e quisesse apenas sair dele. Para eles não fazia qualquer sentido. — Talvez agora que estás na cidade a tomar conta da casa de Jane, pudesses ter umas aulas que te preparassem para vires para cá e voltares a estudar — sugeriu a mãe, tentando falar com naturalidade naquilo, mas Coco conhecia a estratégia e não reagiu. — Que tipo de aulas, mãe? — perguntou por fim Coco sentindo-se imediatamente tensa. — De piano? De guitarra? De macramé? De culinária? De arranjos de flores? Sinto-me feliz com o que faço. — Vais parecer idiota a passear os cães das outras pessoas quando tiveres cinquenta anos — disse a mãe em voz baixa. — Não és casada, não tens filhos. Não consegues preencher o tempo para o resto da tua vida. Precisas de fazer qualquer coisa substancial. Talvez aulas de arte. Dantes gostavas… Aquilo era patético. Porque não a deixariam em paz e não se metiam naquilo que ela fazia? E por que razão teria Ian que…, mas também não valia a pena pensar naquilo. — Mãe, eu não tenho o teu talento. Nem o de Jane. Não sei escrever livros nem fazer filmes. E talvez um dia tenha filhos. Entretanto, ganho decentemente com o trabalho que faço. — Não precisas de «ganhar decentemente», nem de ficar à espera de filhos que te preencham a vida. Eles crescem e vão às suas vidas. Precisas de uma coisa que te faça sentir realizada por ti própria. Os filhos consomem o nosso tempo apenas temporariamente. E um marido pode morrer ou deixar-te. Tens de ser uma pessoa por


direito próprio. Serás mais feliz quando o descobrires. — Eu sou feliz agora. É por isso que vivo aqui. Sentir-me-ia miserável nessa corrida de ratos em Los Angeles. — A mãe suspirou ao ouvi-la. Era como se sussurrassem uma à outra de cada um dos lados do Grand Canyon — nenhuma delas conseguia ouvir a outra, nem queria. Tinha uma certa graça que Coco, dedicando-se apenas a passear cães, conseguisse fazer com que a mãe e a irmã se sentissem inseguras. Nada daquilo tinha qualquer efeito sobre Coco. Por vezes, chegava a sentir pena delas. Ficava deprimida quando falava com a mãe. Sentia que não estava, nem nunca estaria, à altura dela. Agora aquilo não a aborrecia muito, mas, mesmo assim, por vezes incomodava-a. Ficou a pensar nisso, depois de ter desligado e comeu o outro crepe. Em Bolinas alimentava-se de saladas e comprava peixe fresco no mercado. Sentia preguiça de ir ao supermercado em São Francisco e a cozinha de alta tecnologia da irmã, semelhante ao interior de uma nave espacial, intimidava-a. Era mais fácil encomendar comida já feita. Continuava a pensar na mãe enquanto subia as escadas para o quarto e colocava um filme no leitor de DVD. Jack subiu para a cama, com ar feliz e sem esperar ser convidado, e encostou a cabeça à almofada, Sallie instalou-se aos seus pés com um gemido de prazer. Quando o filme começou, já os dois cães ressonavam e Coco instalou-se na cama para ver a sua comédia preferida, com os seus atores preferidos. Já vira o filme meia dúzia de vezes e nunca se cansava. Já depois do filme ter terminado, reparou que alguém lhe enviara uma mensagem de texto para o telemóvel. Era de Jane. Coco esperava que, mais uma vez, fosse a respeito do cão. Nos últimos dois dias recebera várias mensagens da irmã com recados acerca da casa, do cão, do jardineiro, do sistema de segurança, da empregada da limpeza. Coco sabia que, à medida que Jane fosse ficando mais ocupada com o filme, deixaria de enviar mensagens de cinco em cinco minutos. Aquela era um pouco mais importante do que as outras. Era a respeito de uma pessoa amiga delas que, pelos vistos, ficaria lá em casa durante o fim de semana. Coco perguntou a si própria se, por acaso, lhe poderia pedir que tomasse conta do cão, para poder ir para sua casa, mas teve a sensação de que Jane ficaria furiosa se ela se impusesse a quem lá ia ficar e se fosse embora. Dizia apenas: «Leslie, que anda a esconder-se da ex-namorada psicótica e com tendências homicidas, provavelmente aparecerá amanhã ou domingo para ficar aí uns dias. Sabe onde encontrar a chave escondida e conhece o código do alarme. Obrigada. Beijos, Jane e Lizzie.» Coco não se lembrava de nenhuma amiga delas chamada Leslie e ficou a pensar se seria alguém que elas conheciam de Los Angeles. Parecia mais exótica do que a maioria das amigas, que eram inteligentes e criativas, mas pertenciam geralmente a um grupo de mulheres sérias, de meia-idade, a maioria


das quais com relações de longa data como a delas e pouco dadas a amantes psicóticos e homicidas. Como a tal Leslie fugitiva tinha o código do alarme e a chave, não precisava de se preocupar com o assunto. Coco colocou outro filme e adormeceu cerca das três da manhã. Só tinha dois cães para passear no dia seguinte e não precisava de sair antes do meio-dia, por isso, planeara dormir até tarde. Acordou às dez, com um sol radioso. Olhando pela janela, viu um grupo de barcos à vela na baía, preparando-se para uma regata e apenas conseguiu pensar em como desejava estar em Bolinas. Lembrou-se que poderia ir até lá com os cães para que eles corressem na praia e ela pudesse ir buscar o correio. Espreguiçou-se lentamente, soltou os dois cães no jardim e deixou a porta aberta para que eles pudessem entrar de novo. Depois foi à cozinha para comer alguma coisa. Ainda não tivera tempo para se abastecer nos dois dias que ali passara. Tentava decidir-se entre o resto da comida chinesa da noite anterior e uns waffles que descobrira no congelador, quando se apercebeu que não tinha guardado a comida chinesa no frigorífico. Os recipientes ainda estavam no lava-louça. Descobriu xarope de ácer no frigorífico e, quando se voltou para o pôr em cima da mesa, viu Jack com as patas dianteiras sobre o lava-louça a comer a comida chinesa todo satisfeito. Na altura em que ela deu conta, já ele tinha comido quase tudo e, certamente, a carne picante não lhe faria bem. Enxotou-o e ele ladrou-lhe, mas logo a seguir sentou-se ao lado da mesa da cozinha para a ver comer. Sallie sentou-se ao lado, olhando-a também cheia de esperança. — Sabem, vocês são uns porcos — disse, dirigindo-se aos dois cães. O seu longo cabelo arruivado caía-lhe pelas costas abaixo e trazia vestida a camisa de dormir de flanela com corações de que tanto gostava e umas meias de lã cor-de-rosa porque à noite tinha sempre os pés frios. Ali sentada, parecia uma miúda, com os dois cães a olharem para os waffles que lhe desapareciam dentro da boca. — Iamm! — disse trocista, provocando os animais, enquanto Jack voltava a cabeça de um lado para o outro. — O quê? Não te bastou a comida chinesa? Se calhar vais ficar doente — avisou-o. Quando acabou de comer os waffles voltou ao frigorífico para guardar o xarope de ácer. Parte dele escorreu e ela pensou em limpar o frasco, possivelmente aquilo que Jane teria feito, mas prometeu a si própria que o faria mais tarde. Jane não iria lá a casa controlar e ela queria ir tomar um duche e passear os cães dos clientes. Quase chegara ao frigorífico, com o frasco de xarope de ácer a pingar, quando o cheiro se tornou irresistível para Jack. O animal deu um enorme salto à frente de Coco e arrancou-lhe da mão o frasco, que girou no chão de granito, partindo-se e espalhando xarope por todo o lado. Antes de ela o poder impedir, Jack saltara e tentava devorar tudo o que havia por entre o vidro partido; ela quis afastá-lo, mas, de repente, Sallie recuou às suas origens de cão pastor, começando a ladrar e a correr em círculos à


volta deles. Coco puxou a coleira de Jack, mas as meias escorregaram no líquido e o cão fê-la cair. Ficou sentada no chão dentro de uma poça de xarope, felizmente sem vidros, enquanto Jack ladrava freneticamente. Queria o xarope e ela estava decidida a afastá-lo para que não se cortasse. Tinha a camisa de dormir e as meias completamente encharcadas e até o cabelo estava sujo. Ria-se enquanto os dois cães ladravam, tentava levantar-se e, ao mesmo tempo, afastar o cão. De repente apercebeu-se que havia ali um homem a olhar para ela. Excitados, nem os cães tinham dado por ele, mas ladraram ainda mais quando ele recuou um passo e Coco os mandou ficar quietos. Era uma cena o mais caótica possível, o homem parecia aterrorizado com os cães e boquiaberto a olhar para ela. — O que faz o senhor aqui? — perguntou Coco muito séria, fitando-o. O homem vestia calças de ganga, uma camisola de gola alta e um casaco de cabedal e não parecia um ladrão, mas ela não fazia ideia de como ele conseguira entrar. Ainda no meio do xarope de ácer, olhava para ele, que tentava não sorrir à vista das acrobacias a que acabar de assistir. Coco parecia uma domadora de leões com a sua cabeleira arruivada em desalinho, a camisa de dormir e as meias encharcadas em xarope de ácer e um cão enorme a ladrar nos seus braços, enquanto o pastoraustraliano descrevia círculos em redor de ambos, ganindo nervosamente. Sentiu o cheiro do xarope, viu-o no cabelo dela a brilhar como fibra de vidro. Não pôde deixar de reparar que ela era muito bonita e parecia ter uns dezoito anos. — Andaram a lutar por causa da comida? — perguntou ele com um olhar malicioso. — Lamento ter perdido o espetáculo. Adoro este tipo de coisas. Acho que vou ser hóspede desta casa durante uns dias ou, melhor dizendo, refugiado? — Enquanto Coco recuperava o fôlego, mostrou a chave para provar que tinha entrado honradamente. Impossível. A irmã dissera-lhe que era uma mulher que ia lá ficar. Não falara nele. Ou teria também permitido o acesso a outra pessoa? Depois, de repente, percebeu tudo. O sotaque inglês. Enquanto olhava para ele, teve vontade de gritar. Não podia ser. Era impossível. Estava a sonhar. Tinha-o visto duas noites seguidas no ecrã enorme do quarto da irmã. — Merda… oh, meu Deus… não pode ser… — disse. Mas agora tudo se encaixava. Leslie. Não era uma mulher. Leslie Baxter, o famoso ator de cinema inglês. Como podia a irmã não a ter avisado de quem se tratava. Corou furiosamente ao olhar para ele, e os olhos dele sorriam quando ele sorria, tal como acontecia no ecrã. Vira os seus filmes centenas de vezes e agora tinha-o ali à sua frente. — Receio que seja eu — disse em tom de quem pede desculpa, e depois olhou para a confusão que a rodeava. — Suponho que seja melhor fazer qualquer coisa em relação a isto. — Ela assentiu com a cabeça, momentaneamente incapaz de falar, e


depois olhou de novo para ele. — Acha que consegue levar os cães lá para fora… — perguntou-lhe ela, apontando para a porta que dava para o jardim — para que eu possa limpar as coisas? — Levava — disse ele hesitante —, mas tenho pavor de cães. Se os quiser levar, eu procuro o aspirador e limpo tudo. Ela riu-se da sugestão. Não havia aspirador que aspirasse xarope de ácer. — Deixe lá — respondeu, e ordenou aos animais que a seguissem, coisa que eles fizeram com muita relutância enquanto ele se encolhia à sua passagem. Um minuto depois, Coco voltava sem os cães. Apanhou o vidro com toalhas de papel e descalçou as meias para não voltar a escorregar. Tinha sido um milagre nenhum deles se ter ferido com os vidros partidos. Depois, ajudada por ele, apanhou o xarope pegajoso com os panos de cozinha da irmã, impecáveis, imaculadamente brancos e parecendo acabados de comprar. Coco estava toda suja e também ele manchou os maravilhosos sapatos de camurça castanha, enquanto sorria, tentando não soltar uma gargalhada. — Não me parece que você seja a governanta — disse ele, ao mesmo tempo que trabalhavam diligentemente para limpar tudo, vendo crescer a montanha de panos pegajosos. — É amiga de Jane e de Lizzie? Ele falara com Jane e ela não se referira a ninguém que estivesse lá em casa, mas era evidente que Coco também não era uma ladra. Talvez a menina da história dos três ursos. Ou uma intrusa que lá tivesse passado a noite com aquela camisa de dormir tão engraçada, cheia de corações, e que decidira tomar um pequeno-almoço substancial antes de esvaziar a casa. — Estou a tomar conta do cão dela — explicou Coco conseguindo sujar ainda mais o cabelo com o xarope pegajoso enquanto ele tentava ajudá-la a limpar-se. Era impossível manter-se sério e não reparar em como ela era bonita. Nessa altura, a camisa velha já se tinha colado ao corpo e o efeito era muito atraente. — Ela mandou-me uma mensagem a dizer que uma amiga chamada Leslie vinha para cá. Nunca me disse quem era e eu pensei que fosse uma das suas amigas lésbicas a tentar escapar de uma namorada homicida. — Olhou para ele, embaraçada por ter falado demais e, nessa altura, reparou numa feia nódoa negra na face dele. — Desculpe… não devia ter dito isto… estava à espera que se tratasse de uma mulher. — E eu não a esperava a si — admitiu ele e, naquela altura, também já tinha xarope de ácer no cabelo que era castanho-escuro, quase preto. Os seus olhos eram extraordinariamente azuis. Ele já reparara que os dela eram verdes. — Bom, quase que acertou. Ando de facto a fugir de uma amante homicida, mas não sou uma das amigas lésbicas de Jane. — De novo, parecia pedir desculpas. Depois olhou para ela com uma expressão curiosa e as palavras saíram-lhe da boca antes que o pudesse


impedir. — E você? — Se eu ando a fugir de um ex-amante homicida? Não, já lhe disse, vim tomar conta do cão. Oh… — Apercebeu-se do que ele queria dizer. — Não, não sou uma das amigas lésbicas. Sou a irmã de Jane. Assim que ela o disse, ele conseguiu ver a semelhança entre elas, mas eram de estilos tão diferentes que, a princípio, não se apercebera e ficara perplexo ao vê-la, deslizando num charco de xarope de ácer, com uma camisa de dormir velha e engraçada e dois cães desvairados. Sentira-se tão deslumbrado por ela como aterrorizado pelos cães. Era mais do que esperava encontrar quando Jane lhe dissera que podia utilizar a casa vazia. Para ele, aquela não era de modo algum a definição de casa vazia. Tudo menos isso. — Como é que teve a sorte de ser designada tratadora do cão? Leslie estava intrigado e, nessa altura, já tinham limpo quase toda a sujidade, embora os pés se lhes pegassem ao chão como se tivessem sido untados com supercola. — Sou a ovelha negra da família — disse ela com um sorriso tímido, e ele riu-se. Coco era muito jovem e muito bonita, e ele tentava não olhar para a camisa de dormir que se lhe colava ao corpo. — E o que faz a ovelha negra? Bebe demais? Drogas? Uma enfiada de namorados pouco aconselháveis? Deixou a escola? — Ela parecia estar na escola secundária, mas Leslie percebeu que não. — Pior. Abandonei a faculdade de Direito, o que foi considerado uma ofensa capital, e, como acompanho cães nos seus passeios diários e vivo na praia, consideram-me hippy, preguiçosa e falhada — disse a sorrir, percebendo a ideia bemhumorada que ele fazia a seu respeito e, de repente, não lhe pareceu assim tão mal estar a dizer-lho. Pareceu-lhe até engraçado. — Não me parece muito mal. A faculdade de Direito deve ter sido um horror. Passear cães infunde-me terror e acho que é muito corajoso da sua parte. Também eu fui uma ovelha negra. Saí da faculdade para ir para a escola de atores e o meu pai foi muito desagradável por causa disso, mas, como parece que agora faço mais dinheiro do que faria se fosse banqueiro, já me desculpou. É só esperar algum tempo que tudo passa. Talvez, ameaçar escrever um livro acerca da família e expor-lhe todos os segredos, ou vender fotografias comprometedoras que lhe tenha tirado. A chantagem pode ser muito útil. E não vejo nada de mal em viver na praia. As pessoas pagam fortunas pelas casas de Malibu e são consideradas muito respeitáveis, são até invejadas. Não me parece que seja uma ovelha negra muito convincente. — Mas é assim que eles me consideram.


— Com essa coisa não sei se é ou não uma hippy. — Apontou para a camisa de dormir e, pela primeira vez, ela apercebeu-se de que a tinha colada ao corpo, o que lhe revelava as formas. — Talvez seja melhor tirar isso e vestir a sua roupa de passear cães — sugeriu ele discretamente. — Vou procurar uma esfregona e tentar limpar esta coisa do chão. Começou a abrir armários e encontrou uma enquanto ela se voltava para ele a sorrir. Leslie tinha um ótimo sentido de humor e parecia quase tímido quando olhou para ela. Não agia como a estrela de cinema que ela conhecia. — Quer comer alguma coisa? — perguntou Coco educadamente, e ele desatou a rir. — Possivelmente nada que precise de xarope. Parece que já não há. A propósito, o que estava a comer? — perguntou interessado. — Waffles — disse ela da porta. — Que pena não ter chegado a tempo. — Há uma alface no frigorífico — ofereceu ela, e ele riu-se de novo. — Creio que vou esperar. Mais tarde trago comida. E compro mais xarope de ácer. — Obrigada — disse ela, enquanto ele enchia o balde de água. Depois subiu as escadas deixando pegadas pegajosas nos degraus a caminho do quarto. Voltou uns minutos depois de calças de ganga, t-shirt e ténis. Ainda tinha o cabelo molhado do duche. Ele tinha feito café e ofereceu-lhe, mas ela recusou. — Só bebo chá — explicou. — Não encontrei — disse ele parecendo cansado quando se sentou à mesa da cozinha. Parecia ter tido uns dias difíceis e a nódoa negra da face era recente. — Não há nada aqui. Vou fazer umas compras quando voltar para casa. Preciso de ir trabalhar, mas só tenho dois cães para passear aos sábados. Ele parecia fascinado, como se ela lhe tivesse dito ser encantadora de serpentes. — Já alguma vez lhe morderam? — perguntou, assombrado. — Apenas uma vez, em três anos, e foi um chihuahua maluco. Os cães grandes são sempre meigos. — A propósito, como se chama? Como a sua irmã não nos apresentou… Sabe o meu nome, mas eu não sei o seu. — A minha mãe deu-nos os nomes das suas escritoras favoritas. Jane por causa de Jane Austen. Eu chamo-me Colette, mas ninguém me trata assim. Sou Coco. — Estendeu a mão que ele apertou, com ar divertido. Era uma jovem encantadora.


— Colette fica-lhe mesmo muito bem — disse ele com uma expressão pensativa. — Adoro os seus filmes — disse ela em voz baixa, sentindo-se estúpida. Conhecera centenas de celebridades e pessoas famosas na sua vida, muitas delas atores e estrelas de cinema, mas sentia-se pouco à vontade e tímida sentada com ele, à mesa da cozinha da irmã, especialmente porque via tantas vezes os seus filmes e adorava-os. Era o seu ator preferido e de há muito que tinha um fraquinho por ele. Sentir-se-ia imensamente estúpida se tivesse de o admitir naquela altura. Ia ficar com ele em casa de Jane. Era diferente. Tinha de o tratar naturalmente em vez de o olhar de boca aberta como quando o via no ecrã. — Obrigado pelo que disse dos meus filmes — disse ele, delicado. — Uns são horríveis e outros são bons. Nunca os vejo. Sinto-me embaraçado. Odeio a maneira como me vejo e acho que, muitas vezes, pareço ridículo. — É sinal de que é um grande ator — observou ela, convicta. — O meu pai dizia isso. Aqueles que se acham maravilhosos nunca o são. Sir Laurence Olivier também não apreciava os seus próprios desempenhos. — Isso é muito animador — disse Leslie, olhando para ela timidamente enquanto bebia o café. Sentia agora o efeito das noites sem dormir que passara por causa da sua ex-namorada e estava morto por ir para a cama, mas não queria ser indelicado. — Conhecia-o? — Era amigo do meu pai. Ele sabia de quem ela era filha, pois conhecia a irmã dela. E poderia não só perceber por que razão a família se sentia incomodada por ela passear cães e morar na praia, mas também por que razão ela desejava viver assim. Embora ele gostasse de Jane, sabia que ela era uma mulher muito dura e de difícil relacionamento. A rapariga de cabelo arruivado e olhos verdes parecia uma pessoa totalmente diferente. Via-selhe nos olhos e sentia-se na sua maneira de ser que era uma jovem mais sensível. Coco apercebeu-se de que ele estava cansado e ofereceu-se para lhe mostrar o quarto. Grato, Leslie deixou-se conduzir até ao andar de cima, ao quarto de hóspedes principal, ao lado da suíte. Sabia que Liz dormia aí, de vez em quando, quando trabalhava até tarde nos seus guiões. Era um quarto grande e bonito, com uma vista espetacular sobre a baía, mas Leslie viu apenas a cama a chamar por ele. Queria tomar um duche e dormir nos próximos cem anos, e foi isso que lhe disse. — Vou fazer umas compras para o caso de ter fome quando acordar — disse ela delicadamente. — Obrigada, vou só tomar um duche e meter-me na cama. Então até logo — disse enquanto ela lhe acenava, descia as escadas e se dirigia à velha carrinha. Partiu momentos depois e ele ficou a vê-la da janela e a sorrir. Que jovem tão engraçada,


adorรกvel e simples. E que sopro de ar fresco encontrar ali uma pessoa como ela depois do pesadelo por que acabara de passar.


CAPÍTULO 3 Coco foi buscar o poodle e o pequinês que costumava passear ao sábado de manhã. Depois foi ao Safeway e comprou tudo o que era necessário. Ela poderia viver de folhas de alface e comida que comprava já confecionada, como fazia há dois anos, mas com um homem em casa da irmã sentiu-se na obrigação de se abastecer de alimentos mais substanciais. Calculava que fosse o que Jane esperava dela. Por enquanto, Leslie Baxter parecia-lhe uma pessoa muito simpática. Ainda não conseguira ultrapassar o facto de ele ficar lá em casa com ela e desejava que a irmã a tivesse avisado da sua chegada e não da de «Leslie», uma pessoa anónima que fugia de uma ex-namorada psicótica. Quem diria que seria ele? Pelo menos animaria a casa durante os dias que lá ficasse, embora, dada a sua fobia de cães, não pudesse deixar Jack com ele e ir a Bolinas no fim de semana, como tinha pensado fazer. Voltou por volta das três da tarde com as compras, a primeira edição do jornal de domingo e revistas para ele. Embora o começo tivesse sido um pouco estranho, com xarope de ácer e vidros partidos por todos os lados, sentia-se obrigada a desempenhar o papel de anfitriã e não o de uma pessoa que estava simplesmente a tomar conta da casa. Ficara impressionada por ele ter sido tão simpático e até a ter ajudado a limpar tudo. Quando entrou, a casa estava estranhamente silenciosa. Concluiu que ele ainda estava a dormir e que os cães se tinham aconchegado algures para fazerem o mesmo. Arrumou as compras na cozinha e sobressaltou-se ao vê-lo entrar. Vestia uma t-shirt branca e calças de ganga, e calçava uns dos seus sapatos de camurça castanha muito elegantes e muito ingleses. Ian usava apenas Tevas e ténis de corrida. Não precisava de mais nada, exceto botas de caminhada. Tudo o que fazia tinha que ver com o ar livre e ela partilhava isso com ele. Quando era pequena, a mãe usava apenas saltos de dez centímetros que pareciam ser cada vez mais altos com o passar dos anos. — Já está acordado? — perguntou ela enquanto arrumava o resto das coisas e se voltava para ele com um sorriso. — Não fui dormir — disse ele com ar triste, e ela ficou surpreendida. — O que aconteceu? — Alguém foi mais rápido do que eu. — Fez-lhe sinal para que o acompanhasse e ela seguiu-o escada acima até ao quarto, um pouco preocupada. Talvez Jane tivesse convidado mais alguém, sem lhes ter dito, que se tivesse apropriado do quarto dele. Mas soltou uma gargalhada assim que chegou à porta. Jack deitara-se enquanto Leslie estava no duche. Tinha a cabeça na almofada e atravessara-se na cama, ressonando ruidosamente. Sallie não estava à vista, mas Jack pusera-se totalmente à vontade.


— Não quis discutir o assunto com ele. — Fui ver ao seu quarto, só por curiosidade, e o outro cão está a dormir lá. — É a minha cadela — explicou Coco com um sorriso. — Este é o senhor feudal. Chama-se Jack. A casa é dele, mas a minha irmã não o deixa dormir nas camas. Só faz isto quando eu cá estou. Ele lá sabe. — Dirigiu-se rapidamente para a cama, deu uma palmadinha no cão enorme para o acordar e puxou-o para fora da cama. O animal fez um ar infeliz por ter sido tão rudemente incomodado e dirigiu-se ao quarto principal para ir ter com Sallie. — Desculpe. — Coco olhou para Leslie querendo desculpar-se. — Deve estar estafado. — Dormitei um pouco no sofá. Mas tenho de admitir que uma cama de verdade saber-me-ia muito bem. Ontem à noite dormi no carro. E escondi-me em casa de um amigo na noite anterior. Neste momento, Los Angeles é pequena demais para nós os dois. Ela é maluca — acrescentou, tocando instintivamente na face. — É uma grande estrela e dá cada murro! Dispensa os duplos nos filmes de ação. — Pelos tabloides, Coco sabia a quem ele se referia, mas admirou-o por ele não mencionar nomes. Parecia ser muito delicado. — Há seis meses aluguei a minha casa por um ano e fui viver com ela. Vou ter de arranjar um apartamento assim que trouxer as minhas coisas. Nunca estive metido numa coisa tão louca em toda a minha vida. — Sorriu timidamente. — É a primeira vez que sou agredido por uma mulher. Depois, quase me matou com o secador de cabelo. Atirou-mo à cabeça. Quando me ameaçou com uma arma, percebi que era altura de me ir embora. Nunca discuto com uma psicopata que tenha uma arma na mão ou, pelo menos, tento não o fazer. — Quando sorriu ainda parecia um pouco agitado. — O que foi que a irritou tanto? — perguntou Coco cautelosa. Era muito mais emocionante do que a sua própria vida, ou mesmo do que tudo o que podia imaginar. Ian fora o homem mais terno do mundo e as suas discussões tinham sido breves, respeitosas e inofensivas. Antes dele, tinha tido relações que haviam terminado, mas nunca mal. Todavia, durante muitos anos, ouvira da boca do pai histórias de clientes famosos perseguidos por gente obcecada ou por psicopatas. — Não sei bem — disse Leslie, respondendo à sua pergunta. — Ela queria saber quais as atrizes com quem eu andara enquanto contracenavam comigo e teve um violento ataque de ciúmes, apesar de eu lhe explicar que tudo tinha acabado. Insistia em que eu me iria envolver com a próxima e depois ficou completamente louca. Tinha um pequeno problema com a bebida. Exagerava sempre um pouco. Foi ao meu camarim e disse-me que me ia matar. Acreditei. Por isso, saí da cidade. — Talvez precise de ficar mais uns dias para além do fim de semana — disse Coco com ar sério, embora aquilo lhe parecesse típico da loucura que detestava em Hollywood e Los Angeles. Nunca teria conseguido viver assim. Era um preço muito alto a pagar pela fama. — Armas e álcool não são lá grande mistura.


Ele acenou afirmativamente. Ainda não sabia o que queria fazer. Telefonara a Jane para lhe contar o que se passara, porque Jane conhecia-a e trabalhara com ela, e ele queria uma opinião acerca da loucura daquela mulher e do quão perigosa poderia vir a ser. Jane sugerira-lhe que saísse de Dodge e fosse para casa dela em São Francisco. Na altura parecera-lhe uma boa ideia. Não queria dar de caras com aquela mulher em parte alguma e, em Los Angeles, isso poderia acontecer. Jane considerava-a ainda mais perigosa do que ele temia. — Nunca me tinha acontecido uma coisa destas — disse, embaraçado. — Todas as minhas relações passadas acabaram civilizadamente. Fiquei amigo de todas elas. Nenhuma me quis matar, pelo menos tanto quanto sei. — Parecia incrédulo ao dizer isto. — Chamou a polícia? — Ele abanou a cabeça como resposta. — Não podia. Se o tivesse feito, teria aparecido em todos os tabloides, o que tornaria as coisas ainda piores. — Uma vez, quando eu era pequena, o meu pai recebeu uma ameaça de morte de um cliente louco. Chamou a polícia e, durante algum tempo, deram-lhe proteção vinte e quatro horas por dia. Fiquei aterrorizada pensando que o ator o ia matar. Durante anos tive pesadelos — confessou Coco. — Sim, mas claro que não se tratava de uma ex-namorada. Isso é o tipo de matéria que os tabloides adoram. Não me quero ver metido numa confusão dessas, nem causá-la. Estou agora entre dois filmes e prefiro afastar-me por uns tempos. Posso não ir a Nova Iorque durante uns meses. Só preciso de voltar a trabalhar em outubro, por isso tenho tempo. — Provavelmente ela vai descobrir se lá estiver. E a minha irmã e Liz não voltam senão daqui a cinco ou seis meses. Pode ficar enquanto lhe parecer bem, talvez ela se acalme. — Creio que será preciso que lhe façam uma lobotomia para que isso aconteça. Espero que fique obcecada por qualquer outra pessoa. Entretanto, tenciono ser muito discreto para que ela não saiba que estou aqui. Há vinte anos que não vinha a São Francisco. Estou sempre com a Jane em Los Angeles. Trabalhámos juntos num filme. Coco lembrava-se disso, embora nunca antes o tivesse encontrado com Jane. Contudo, sabia que eram amigos. — Pois bem, aqui está a salvo. E agora que o Jack saiu da sua cama, vá dormir — disse ela com um sorriso simpático. A história era realmente muito desagradável e ele parecia bastante afetado. Leslie agradeceu-lhe tê-lo salvado. Coco dirigiu-se para o seu próprio quarto; ele fechou a porta, ela também. Os dois cães dormiam em cima da cama e ela ligou a


televisão com o som baixo. Também dormitou um pouco e, cerca das oito horas, foi para baixo para preparar o seu jantar. Tirou do frigorífico o sushi que comprara e fez uma salada. Estava a comer e a ler o jornal de domingo quando ele entrou, com ar sonolento e mais descansado. Bocejou e espreguiçou-se enquanto se sentava. Pareciam dois náufragos numa ilha deserta. A casa estava silenciosa. O ambiente era tranquilo e agradável. Era sábado à noite e nenhum deles tinha obrigações ou planos. — Quer? — Apontou para o sushi e ele acenou afirmativamente, enquanto ela se levantava para ir buscar mais ao frigorífico. Ele levantou-se imediatamente para a ajudar. — Não tem de me servir. Aqui, o intruso sou eu. Obrigado por ter feito as compras. Para a próxima faço eu. Pareciam dois companheiros de quarto que tivessem acabado por dividir uma casa, e as boas maneiras mantinham-se. Ele era muito inglês e, obviamente, muito bem-educado. Serviu-se de sushi, ela deu-lhe um prato, fez-lhe salada e ele agradeceu. — De que parte de Inglaterra és? — perguntou ela, enquanto comiam e Jack os olhava interessado. Sallie sentira o cheiro do peixe e voltara para a cama. — De uma cidadezinha nos arredores de Londres. Só fui a Londres com doze anos. O meu pai era carteiro e a minha mãe enfermeira. Tive uma educação de classe média e uma vida normal em pequeno. Os meus pais ficaram horrorizados por eu querer ser ator e, a princípio, até envergonhados. O meu pai queria que eu fosse professor, banqueiro ou médico, mas eu desmaiava quando via sangue e pensava que ensinar era muito monótono. Assim, tive aulas de arte dramática e comecei a representar Shakespeare. Era muito mau. — Sorriu para ela. — Que salada tão boa. Não tens xarope de ácer? — disse a brincar. — Já comprei mais — disse ela rindo-se. — E waffles. — Perfeito. Amanhã faço. E tu? O que querias ser? — perguntou ele, parecendo muito interessado na resposta. — Nunca tive muita certeza, mas sabia que não queria ser como os meus pais. Nem queria fazer filmes como a minha irmã, que estava muito decidida a esse respeito. Ela é assim em tudo o que faz, mas não parece divertir-se. Sempre odiei escrever. Queria ser artista plástica, mas não tenho grande talento. De vez em quando pinto umas aguarelas, nada de muito especial. Só paisagens com praias e naturezasmortas com flores e vasos. Estudei História de Arte na faculdade. Provavelmente gostaria de ser professora ou de fazer algum tipo de investigação. Depois, o meu pai convenceu-me a ir para Direito. Disse que era um bom ponto de partida para o que eu quisesse fazer mais tarde, como trabalhar na empresa dele e ser agente. Também não era isso que eu queria e odiei a faculdade de Direito. Os professores eram


mesquinhos, os alunos desagradáveis, competitivos e neuróticos. Tentavam sempre deitar alguém abaixo. Andei aterrorizada durante dois anos e chorava a toda a hora. Tinha um medo de morte de chumbar e, quando o meu pai morreu, desisti. — E depois? — Fiquei aliviada. — Sorriu-lhe do outro lado da mesa. — Nessa altura vivia com uma pessoa. Os meus pais também não o aceitavam. Também tinha abandonado a faculdade de Direito na Austrália. Adorava o ar livre e tinha uma escola de mergulho, por isso mudámo-nos para a praia e eu nunca fui tão feliz na minha vida. Surgiu a ideia de passear cães só para ganhar algum dinheiro e, três anos depois, ainda faço o mesmo. Para mim serve. Vivo na praia e é o que quero fazer por enquanto. A minha casa é mais pequena do que esta cozinha. A minha mãe chama-lhe «cabana», mas eu adoro-a. — E o australiano da escola de mergulho? — perguntou Leslie com interesse, enquanto acabava a salada e se recostava na cadeira a olhar para ela. Parecia-lhe uma mulher normal e feliz, exceto quando falara na faculdade de Direito. — Ainda anda por aí? — Não, não anda — disse ela, abanando a cabeça devagar. — Que pena. Os teus olhos brilharam quando falaste dele. — Era um homem fantástico. Vivemos juntos dois anos e depois ele morreu num acidente. Leslie olhou-a com mais atenção. Parecia triste, mas não desesperada, como se há muito estivesse em paz com tudo aquilo. Mas Leslie ficou sobressaltado e com pena dela. Ela não parecia ter pena de si própria. — Foi um acidente de automóvel? — Parapente. Uma rajada de vento atirou-o de encontro a um rochedo e caiu. Foi há pouco mais de dois anos. A princípio foi muito difícil, mas acho que essas coisas acontecem. Foi muito pouca sorte. Estávamos a pensar casar e voltar para a Austrália para vivermos lá. Acho que eu teria gostado. — Provavelmente. — Leslie acenou com a cabeça. — Sidney é muito parecida com São Francisco. — Ele dizia isso. Era de lá, mas nunca lá fomos. Creio que não tinha de ser. — Parecia muito filosófica a esse respeito e ele admirou-a. Não havia sentimentalismos exagerados naquela rapariga. — E depois dele houve alguém? — Sentia-se curioso. Ela sorriu para Leslie Baxter, sentado do outro lado da mesa, na cozinha da irmã. Era tão estranho que a fazia rir. Leslie Baxter estava a perguntar pela sua vida


amorosa. Quem diria? — Só umas saídas com uns fulanos aborrecidos. Há cerca de um ano tentei, para que a minha família e os meus amigos se calassem. Não valeu o esforço ou talvez eu não estivesse preparada. Deixei-me disso nos últimos seis meses. É difícil começar com uma pessoa nova. Eu e Ian entendíamo-nos realmente muito bem. — Não me parece que seja difícil alguém entender-se contigo — disse ele num tom natural. — Uma vez andei com uma mulher assim. Era fantástica. — Parecia sonhar. — O que aconteceu? — Era novo e fui estúpido. A minha carreira estava a começar e eu queria ficar em Hollywood a trabalhar durante uns tempos. Ela estava em Inglaterra e queria casar e ter filhos. Quando me apercebi de que ela tinha razão, já ela tinha desistido de mim e casado com outra pessoa. Esperou por mim cerca de três anos, o que era mais do que eu merecia na altura. Agora tem cinco filhos e vive no Sussex. Uma mulher ótima. Houve também outra mulher fantástica na minha vida. Nunca casámos, mas temos uma filha. Monica ficou grávida na altura em que a relação perdeu o interesse e decidiu que queria ficar com o bebé. Nessa altura, enfrentei a ideia com desconfiança. Afinal, ela tinha razão. A relação acabou, mas a minha filha Chloe é a melhor coisa que alguma vez me aconteceu na vida. — Onde está ela? — Coco parecia surpreendida. Ele tinha uma vida à maneira de Hollywood, com uma mulher que o tentara matar, romances terminados e uma filha de uma mulher com quem nunca casara, mas, ao mesmo tempo, parecia muito normal e terra a terra. Ou talvez estivesse a representar. Através do pai, Coco conhecera na sua juventude muitos atores loucos que pareciam pessoas normais, mas não eram. No fim eram tão loucos e narcisistas como os outros. O pai avisara-a para nunca sair com nenhum deles. Mas Leslie parecia diferente. Parecia verdadeiro e, pelo menos por enquanto, nada egocêntrico, arrogante ou impressionado consigo próprio. Parecia disposto a admitir os seus erros e não tentava deitar as culpas para cima dos outros, exceto na sua recente desgraça, que, de qualquer forma, não parecia ser culpa dele. Havia gente lunática principalmente no mundo que ele frequentava. — Chloe vive em Nova Iorque com Monica, que é uma atriz séria da Broadway e uma mãe extraordinária — explicou ele. — Mantém a menina longe das luzes da ribalta e Chloe vem ver-me duas ou três vezes por ano. Sempre que tenho oportunidade vou a Nova Iorque para estar com ela. Tem seis anos e é uma pequena fada muito meiga. — Sorria com orgulho enquanto falava da filha. — Eu e a mãe dela somos grandes amigos. Por vezes, pergunto a mim próprio se poderia ter resultado, caso nos tivéssemos casado. Mas acho que não. Ela é uma pessoa muito séria e um pouco sombria. Depois de nos separarmos, envolveu-se com um político


casado. Todos sabiam do caso, mas eles mantinham tudo muito discretamente. E depois houve alguns homens ricos e poderosos. Eu era demasiado aborrecido para ela. E imaturo, na altura. Tenho quarenta e um anos e penso que só agora comecei a crescer. É embaraçoso admitir que me desenvolvi tardiamente. Julgo que os atores têm tendência para serem imaturos. Fomos demasiado mimados. — Coco sentiu-se comovida com o modo como ele o disse. — Tenho vinte e oito anos e ainda não decidi o que quero ser quando crescer — disse ela, timidamente. — Quando era pequena, queria ser uma princesa indiana e, assim que descobri que tal não ia acontecer, não consegui lembrar-me de nada que me atraísse tanto. — Parecia levemente desapontada e ele riu-se. — Gosto da minha vida como ela é. Passear os cães agrada-me, por enquanto. E mesmo que não faça sentido para a minha família, estou satisfeita com o modo como estão as coisas. — É isso que importa. — disse ele delicadamente. — A tua família pressiona-te por isso? — Mas, conhecendo Jane e sabendo quem era a mãe, parecia-lhe óbvio que assim fosse. Como resposta, Coco soltou uma gargalhada. — Estás a brincar? Consideram-me uma desgraça e um falhanço completos. Têm carreiras importantes. A minha irmã teve a primeira nomeação para um óscar com a minha idade. Desde os trinta anos que é um enorme êxito de bilheteira. A minha mãe escreve best-sellers desde criança. O meu pai fundou a agência sozinho e representou todas as estrelas importantes de Hollywood. E eu passeio cães. Podes imaginar o que eles pensam. A minha mãe casou com vinte e dois anos. Teve Jane aos vinte e três. Jane e Liz estão juntas desde que a minha irmã fez vinte e nove anos. E eu sinto-me com quinze anos e na escola secundária. Nem sequer me importo se não for convidada para o baile de finalistas. Sinto-me feliz a viver na praia com o meu cão. — Leslie não lhe recordou que ela estaria casada se Ian não tivesse morrido. E Coco também tinha consciência disso. — Venho de uma família de pessoas muito bemsucedidas, que sabem o que querem desde o dia em que nasceram. Juro que fui trocada à nascença na maternidade. Existe algures uma família normal que vive numa comunidade na praia e que acha fantástico que eu passeie cães e não se importa se eu nunca me casar. Provavelmente receberam uma criança que quer ser cientista espacial, neurocirurgião ou agente de Hollywood, e não percebem porquê. Entretanto, sempre que estou com a minha família ou falo com ela, não sei o que me aconteceu. Desde a morte de Ian, era a primeira vez que era assim tão sincera com uma pessoa, principalmente com alguém que acabara de conhecer e que era uma estrela de cinema; preocupava-a um pouco por Leslie ser amigo de Jane. Ele apercebeu-se disso pela expressão do seu olhar. — Não vou contar nada disto a Jane. Não precisas de ficar preocupada. —


Parecia ser capaz de lhe ler os pensamentos e de os compreender. — Não temos nada em comum — disse Coco com as lágrimas nos olhos e sentindo-se idiota e embaraçada. — Estou cansada de as ouvir dizer constantemente o que faço de errado e aquilo que não sou. E é engraçado, porque é bom para elas; faz com que se sintam importantes e, desde que me conheço, que a minha irmã me tem usado como criada. Se eu tivesse vida própria, não seria tão conveniente para elas. Jane é boa pessoa e eu adoro-a, mas é muito dura — explicou Coco, e ele acenou afirmativamente. — Bem sei. Talvez baste dizer que não — comentou ele em voz baixa, e Coco riu de novo, limpando os olhos com a t-shirt, enquanto ele tentava não reparar no sutiã cor-de-rosa que mostrou quando a levantou. Fê-lo inconscientemente e ele sorriu. De certa forma, era ainda uma menina e ele gostava. Era muito honesta, muito normal, delicada e bondosa. — Toda a minha vida tenho tentado dizer-lhes que não. Foi por isso que me mudei para Bolinas. Pelo menos pus uma ponte entre nós. Mas já reparaste quem veio tomar conta da casa e do cão. — Um destes dias vais ter uma surpresa e ser capaz de bater o pé — disse ele. — Vais fazê-lo quando chegar a altura e te parecer bem. Não é fácil dobrar Jane. Até eu sei disso. Embora goste dela, considero-a uma mulher forte e dura, em vários aspetos, mas incrivelmente inteligente. Liz também, mas é uma pessoa muito mais delicada. Torna a Jane mais doce ou, pelo menos, tenta. — Jane é muito parecida com o meu pai. É cortante e direta. A minha mãe é mais manipuladora para conseguir o que quer. Chora muito. Jane riu-se de si própria, enquanto olhava para ele do outro lado da mesa. — Acho que faço o mesmo. Desculpa. Não vieste para cá para ouvir as minhas tristes histórias e sobre como fugir a uma família famosa de Hollywood para viver numa cabana na praia. É uma vida muito fácil. — As tuas histórias não me parecem assim tão tristes — disse ele honestamente. — Exceto a do teu amigo australiano. Foi triste para ele e para ti. Mas és jovem, tens anos e anos à tua frente para descobrires o que queres fazer e encontrares a pessoa certa. E parece-me que, entretanto, te divertes, e tens uma boa vida. Se queres saber, é bastante invejável. Julgo que estás a fazer melhor do que pensas. E elas não têm de estar de acordo com o que fazes. Os meus pais ainda se preocupam comigo. Pensam que eu perdi a oportunidade de me casar e ter filhos e talvez tenham razão. Adoram a Chloe, mas prefeririam ver-me casado, com quatro filhos, e de volta com todos eles a Inglaterra, onde pensam que eu deveria estar. É a opinião deles, não a minha. Esta vida de Hollywood tem um preço elevado. Por vezes acabamos por desistir daquilo que não devíamos. Sei-o por experiência própria.


— Não é tarde demais — assegurou-lhe Coco. — Ainda podes acabar casado e com dez filhos, que provavelmente será o que vai acontecer. Ninguém pode estabelecer regras para quando isso acontece. — Quando se é famoso, é muito mais complicado — disse ele pensativo. — As mulheres certas são cautelosas e imaginam que devemos ter uma tara qualquer ou que, pelo menos, andamos a brincar. As que são atraídas por nós, como borboletas pela luz, são esquisitas, fãs e pessoas que não prestam, como aquela de quem ando agora a fugir. Para elas, os famosos são como um farol na escuridão. E são essas que me fazem fugir. Só que, desta vez, não percebi o que me esperava. Ela escondeu muito bem o jogo a princípio e pensei que se tratava de uma boa rapariga; julguei até que fosse mais fácil por ela também ser famosa. Que grande erro cometi! Afinal, era exatamente aquilo que eu não queria. — Então, experimentas outra vez — disse Coco, sorrindo para ele e a seguir foi levantar a mesa. Ofereceu-lhe um gelado e, quando ele aceitou, encantado, estendeulhe um Dove que retirou do congelador. Tinha-lhe comprado meia dúzia de sabores nessa tarde, porque não conhecia as suas preferências. Afinal eram desconhecidos, mas estavam a partilhar os segredos mais profundos, tristezas e medos, e sentiam-se à vontade para o fazer. — Por vezes sinto-me cansado para tentar outra vez — admitiu ele, com o gelado a escorrer-lhe pelo queixo e parecendo também um miúdo. — Sentia-me assim quando as pessoas tentavam arranjar-me companhia. Foi por isso que parei. Percebi que, se tem de acontecer, acontecerá e pronto. Senão, sinto-me bem como estou. — Ele riu-se. — Miss Barrington — disse formalmente —, posso garantir-lhe que aos vinte e oito anos ainda se está muito a tempo e que a menina não vai acabar sozinha. Pode demorar algum tempo a arranjar a pessoa que deseja, mas qualquer homem se sentiria afortunado por ficar consigo. E prometo-lhe que vai aparecer um homem para si. É só esperar um tempo. Ela sorriu e disse-lhe: — Vou fazer-lhe a mesma promessa, senhor Baxter. A mulher certa vai aparecer. Prometo. É só esperar um tempo. — Repetiu as palavras que ele lhe dissera. — O senhor é um homem fantástico e, se se afastar das loucas, a mulher certa vai descobrilo. Pode acreditar. — Ela estendeu a mão delicada por cima da mesa e ele apertoulha. Sentiam-se ambos melhor por terem falado um com o outro e o facto de terem ficado os dois em casa de Jane revelou-se uma bênção. Tanto um como o outro sentiam que iriam ficar bons amigos. — O que se passa nesta cidade ao sábado à noite? — perguntou Leslie com interesse. Ela soltou uma gargalhada.


— Nada de especial. As pessoas saem para jantar e, às dez da noite, já não há ninguém na rua. É uma cidade pequena, nada como Nova Iorque ou Los Angeles. — Na tua idade devias sair para te divertires ao sábado à noite e não ficares aqui a conversar com um velho como eu — censurou-a, e ela riu de novo. — Estás a brincar? Estou aqui sentada, a conversar com a maior estrela de cinema do mundo na cozinha da minha irmã. Todas as mulheres do país dariam tudo e mais alguma coisa para passar uma noite de sábado assim — disse ela enlevada. Até para ela era fora do normal. Há muitos anos que se afastara do mundo dos pais e até do da irmã. — Já para não falar de sábado à noite em Bolinas, onde eu vivo. Se tanto, talvez estejam dez hippies velhos, sentados num bar. Todas as outras pessoas já devem estar na cama a esta hora e o mesmo se passaria comigo, se lá estivesse, a ver um dos teus filmes. — Riram-se os dois. Ele ajudou-a a pôr os pratos na máquina, apagou as luzes do andar principal e seguiu-a lentamente pelas escadas com os cães atrás. Ainda se sentia um pouco nervoso com o buldogue nas proximidades. Sallie era mais pequena e menos imponente, de modo que lhe parecia menos assustadora. Jack tê-lo-ia atirado ao chão em segundos, embora Coco soubesse que o animal não faria tal coisa. Era ainda mais meigo do que Sallie. Mas era mais corpulento do que Leslie. Deram as boas noites um ao outro no patamar, à porta dos respetivos quartos. Leslie perguntou-lhe o que pensava fazer no dia seguinte e ela respondeu que não tinha planos. Nunca trabalhava aos domingos, embora lhe apetecesse muito ir a casa passar o dia e estivesse a pensar fazê-lo. — Não me importava nada de ver essa cidadezinha junto à praia onde vives — disse ele, esperançoso. — A que distância fica daqui? — A menos de uma hora — respondeu ela a sorrir. — Adoraria mostrar-ta. — Gostaria de ver essa tua cabana e de passear na praia. O oceano é sempre tonificante. Durante algum tempo tive uma casa em Malibu. Tive muita pena de a vender. Talvez possamos ir amanhã a Bolinas — disse ele, disfarçando um bocejo. Agora que conseguira descontrair-se e se sentia de novo seguro, apercebia-se de que estava exausto. — Faço waffles quando nos levantarmos — prometeu e deu-lhe um beijo na face. — Obrigado por me teres escutado esta noite. Gostava mesmo dela. Era uma pessoa decente e honesta e não queria nada dele. Nem fama, nem fortuna, nem imprensa ou publicidade; nem sequer um jantar. Sentiase surpreendentemente à vontade com ela, tendo em conta que apenas a conhecera nessa manhã. Sentira de imediato que Coco era uma pessoa em quem podia confiar e ela sentira o mesmo a respeito dele. Quando entrou no quarto, ouviu tocar o telemóvel. O número do contacto não


estava identificado, mas ele tinha quase a certeza de que era aquela cabra louca a tentar assediá-lo. Deixou a chamada ir para o voice mail e, um minuto depois, recebeu uma mensagem dela a ameaçá-lo mais uma vez. Mas ela perdera. Apagou a mensagem e não respondeu. Fechou a porta, despiu-se e meteu-se na cama. Ficou ali muito tempo a pensar em Coco e nas coisas que tinham dito um ao outro. Adorava a franqueza e honestidade com que falava de si própria. Tentara fazer o mesmo com ela e pensava que fora capaz. Deixou que o espírito deambulasse quando apagou a luz, mas não conseguiu adormecer. Uma hora depois, decidiu descer até à cozinha para ir beber um copo de leite e viu que ela ainda tinha a luz do quarto acesa. Bateu suavemente à porta para lhe perguntar se queria alguma coisa e ela disse-lhe que entrasse. Estava deitada entre os dois cães com um pijama de flanela desbotado, a ver um filme. Leslie olhou para o ecrã e viu a sua própria cara. Era como se se estivesse a ver num espelho gigante e ficou a olhar espantado. Coco ficou envergonhada por ter sido apanhada a ver um filme dele. — Desculpa — disse timidamente, como se fosse uma criança. — É o meu filme preferido. Nessa altura, ele sorriu. Era um grande elogio de uma mulher que ele conseguira admirar apenas num dia. Não estava a tentar lisonjeá-lo. Se ele não tivesse entrado, nem sequer teria sabido que ela estava a ver o filme. — Também gostei desse, embora tenha a impressão de que não estive muito bem — admitiu naturalmente e a sorrir. — Vou lá abaixo. Queres alguma coisa? — Não, obrigada. — Fora simpático da parte dele ter perguntado. Pareciam dois miúdos numa festa de pijama na muito sofisticada casa de Jane. Coco deixara as roupas espalhadas pelo chão do quarto. Fazia com que se sentisse mais confortável. Quando Jane estava, não havia a mínima desordem. Coco achava que o seu desalinho acrescentava humanidade à casa, embora a irmã nunca tivesse concordado com tal coisa. — Então, até amanhã. Diverte-te com o filme — disse Leslie, fechando a porta para ir lá abaixo buscar o copo de leite e outro gelado. Quase desejava que Coco o acompanhasse, mas ela estava demasiado absorvida com o filme. Voltou para cima quando acabou de beber o leite e comer o gelado. E então, quando se deitou, adormeceu profundamente em poucos minutos e não se mexeu até de manhã. Sentiu como se tivesse deixado todas as suas preocupações em Los Angeles e tivesse encontrado tudo o que esperava ali em casa. Um local seguro, longe do mal, longe das pessoas que o queriam magoar. E, nesse local seguro, encontrara uma coisa ainda mais rara. Encontrara uma mulher segura. Não se sentia assim desde que saíra de Inglaterra para viver em Hollywood. E sabia que nada o poderia atingir, aconchegado


naquela casa em São Francisco, com a rapariga engraçada e os dois cães enormes.


CAPÍTULO 4 Acordaram na manhã seguinte com um dia maravilhoso, cheio de sol. O tempo estava quente e o céu de um azul brilhante. Leslie desceu antes dela e fritou o bacon para acompanhar os waffles. Serviu-se de um copo de sumo de laranja e pôs a chaleira ao lume para fazer chá para os dois. Deitava a água nas duas canecas quando Coco entrou na cozinha depois de ter deixado os dois cães saírem para o jardim. Depois do pequeno-almoço levá-los-ia para um longo passeio. — Cheira maravilhosamente bem — disse ela quando ele lhe entregou a caneca de chá verde que encontrara no armário. Ele serviu-se de um chá English Breakfast e bebeu-o sem leite e sem açúcar. Momentos depois, colocou na mesa um prato de waffles. O xarope de ácer já estava na mesa. Riram-se ambos, lembrando-se da cena do dia anterior quando ele entrou na cozinha. — Obrigada por teres feito o pequeno-almoço — disse ela delicada quando ele se sentou à sua frente, também com um prato de waffles e bacon. — Não sei se deva confiar em ti na cozinha — disse ele provocando-a, e depois olhou para a baía através da enorme janela. — Vamos hoje à praia? — perguntou, olhando para os barcos à vela que já se reuniam em formação para as regatas. Havia uma atividade constante na baía e um número infindável de barcos. — Não te faz diferença? — perguntou ela, cautelosa. — Se quiseres posso ir sozinha. Tenho de ir buscar umas coisas e ver o correio. — Importas-te que vá contigo? — Não queria invadir o espaço dela, nem ser um empecilho. Provavelmente ela teria coisas a fazer ou preferiria paz e privacidade na sua pequena casa, até a oportunidade de estar com amigos. — Adorava — disse ela, honestamente. Que mal faria passar um dia em Bolinas com Leslie Baxter? — Quero mostrar-te a terra. É uma aldeia estranha, mas é sensacional. — Já lhe tinha contado que não havia tabuletas informativas, por isso ninguém a conseguia encontrar. Uma hora depois, entraram na carrinha com os dois cães, envergando calças de ganga, t-shirts e havaianas. Ela avisou-o de que poderia ficar frio se se levantasse nevoeiro, por isso ambos levavam camisolas. Mas o céu estava perfeitamente azul quando desceram o Divisadero em direção a Lombard e entraram no fluxo de trânsito que se dirigia para norte, para a ponte Golden Gate. Conversavam descontraídos; ele contou-lhe como fora a sua vida em Inglaterra, admitindo que, por vezes, tinha saudades dessa altura. No entanto, confessou-lhe que, quando agora lá ia, já tudo era diferente. A fama de que gozava mudara a forma como as pessoas o tratavam. Por muito que fizesse para as convencer do contrário e por muito normal que se sentisse, as pessoas que conhecera quando era pequeno agiam agora como se ele fosse especial


ou, de certo modo, diferente. — Fala-me de Chloe — pediu Coco, enquanto atravessavam a ponte e subiam a colina para entrarem no túnel do arco-íris, em Marin. — É um amor — disse Leslie, e o seu rosto iluminou-se quando pensou na filha. — Quem me dera vê-la mais vezes. É muito esperta e simplesmente adorável. Sai à mãe — continuou ele com uma expressão de puro afeto, não só pela filha, mas também pela mulher que fora sua namorada há muito tempo. — Quando chegarmos a Bolinas mostro-te fotografias dela. — Trazia sempre várias na carteira. — Quer ser bailarina ou camionista, quando crescer, obviamente pensa que estas profissões não são incompatíveis e que são ambas interessantes. Diz que os camionistas conseguem descarregar coisas pelas estradas, o que ela considera muito divertido. Tem todo o tipo de atividades: francês, informática, piano, ballet. Leslie parecia orgulhoso e feliz sempre que falava da filha. Disse que a sua relação com a menina e com a mãe tinha sempre sido fácil e direta e continuava a sêlo. — Há algum tempo a mãe arranjou um namorado sério e pensei que se fosse casar. Fiquei um pouco preocupado. Ele era italiano, e chegar a Florença seria ainda mais difícil do que a Nova Iorque. Fiquei aliviado quando romperam, embora Monica também mereça ter uma pessoa na sua vida. Para ser franco, tinha ciúmes dele com Chloe. Via-a mais vezes do que eu. Agora creio que ela não tem ninguém — disse quando viraram para Stinson Beach e atravessaram Mill Valley. — Alguma vez voltarás para ela por causa de Chloe? — perguntou Coco interessada, mas ele abanou a cabeça. — Não era capaz e ela também não. Já perdemos o interesse. Foi há muito tempo e já correu muita água debaixo da ponte. Para nós já tudo acabara ainda antes de Chloe nascer. Foi apenas uma acidente maravilhoso. Chloe é a melhor coisa que nos aconteceu. Faz com que tudo valha a pena. — Eu nem me imagino com filhos — declarou Coco francamente. — Pelo menos, por enquanto. — Mesmo quando Ian era vivo, sentira-se demasiado jovem para pensar em tê-los, ainda que com ele. — Talvez quando tiver trinta e tal… — disse vagamente, enquanto seguiam viagem. Ele admirou o modo como ela contornava as curvas da estrada com a velha carrinha que fazia um barulho assustador e seguia aos solavancos. Leslie disse-lhe que gostava de trabalhar em automóveis. Era uma paixão de rapaz que nunca o abandonara. Estava impressionado com as curvas apertadas que seguiam os rochedos pela linha da costa e que ela contornava com facilidade. Parecia-lhe competente, calma e senhora da sua vida, apesar do que a mãe e a irmã pensavam. E quanto mais se aproximavam da praia, mais feliz Coco se mostrava.


— Espero que não estejas enjoado — disse ela, olhando-o preocupada. — Por enquanto não. Mas eu digo-te. O tempo estava maravilhoso e a paisagem era fantástica. Os dois cães dormiam a sono solto na parte traseira da carrinha e, depois de vinte minutos de curvas apertadas, desceram para Stinson Beach. Havia meia dúzia de lojas dispostas ao acaso de ambos os lados da estrada. Uma galeria de arte, uma livraria, dois restaurantes, uma mercearia e uma loja de presentes. — Isto tem de ser uma das maravilhas perdidas do mundo — observou Leslie, olhando divertido para a cidade pitoresca, se é que assim se podia chamar. Tinha apenas dois quarteirões e, depois de uma curva, passaram por algumas ruas estreitas com cabanas em ruínas. — Além há um condomínio fechado — disse ela, apontando vagamente, depois de passada uma lagoa. — E uma reserva de aves à direita. Isto aqui está quase intacto. — Fez um largo sorriso. — Espera até chegarmos a Bolinas. É uma paragem no tempo e ainda menos civilizado do que isto. Leslie apreciava a paisagem acidentada e a sua simplicidade. Não se tratava de uma praia elegante e parecia estar a um milhão de quilómetros de qualquer cidade. Percebeu por que razão ela vivia ali. Tinha uma sensação de paz e conforto enquanto seguiam pela estrada não sinalizada. Era como se, ao chegar ali, pudessem esquecer todas as preocupações. Até a viagem difícil o tinha descontraído. Dez minutos depois, Coco virou numa estrada sem qualquer tabuleta que subia até um pequeno planalto, onde havia casas que pareciam pertencer a velhas quintas, árvores enormes e antigas e uma pequena igreja. — Primeiro vou mostrar-te a cidade — explicou ela, a rir. — Trata-se de um eufemismo. Ainda é mais pequena do que Stinson Beach. A nossa praia não é tão boa, ou seja, é mais rural, o que afasta os turistas. É muito difícil de encontrar e de muito difícil acesso. Enquanto dizia isto, passaram por um restaurante quase a cair, uma mercearia, uma loja pouco convencional e uma antiga loja de roupa com um vestido em batik na montra. Leslie olhou em volta com um largo sorriso. — É isto? — perguntou imensamente divertido. As lojas eram pequenas e de outros tempos, mas tudo ali à volta era verde e bonito. Havia árvores antigas e sólidas numa pequena elevação sobranceira ao mar. Parecia mais campo do que praia. — É isto — confirmou Coco. — Se precisares de incenso ou de um cachimbo para fumar haxixe, é ali que tens de ir — indicou e ele riu-se. — Parece-me que não vou precisar.


Depois de passarem pelas lojas, desceram a estrada pontilhada de caixas de correio antigas, cercas de madeira e um ou outro portão de ferro forjado. — Por aqui há algumas casas muito bonitas, mas são um segredo bem guardado e estão escondidas. A maior parte são casas de campo ou antigas cabanas de surfistas. Dantes, os hippies viviam em autocarros escolares avariados perto da praia. Agora são mais respeitáveis, mas não muito — disse com uma expressão serena no rosto. Sabia-lhe bem voltar. Estacionou a carrinha à porta de casa, deixou sair os cães, que foram atrás dela e de Leslie, atravessando o velho portão de madeira. Ian tinha-o construído para os dois. Abriu a porta e entrou, com Leslie atrás, cauteloso e olhando em volta. A sala tinha uma vista perfeita sobre o oceano, embora as janelas fossem velhas e não especialmente grandes, ao contrário das janelas panorâmicas da sala de Jane na cidade. Aqui, nada fora construído para dar nas vistas, era apenas um lugar confortável para se viver, e Leslie apercebeu-se desse facto. Parecia uma casa de bonecas. Havia livros empilhados no chão e revistas velhas sobre a mesa. Num canto via-se uma das aguarelas pintada por Coco encostada ao cavalete e parte das cortinas estava solta. Mas, apesar da desordem simpática, fruto de viver sozinha, o local era acolhedor e parecia bem aproveitado. Acendia a lareira todas as noites. — Não é grande coisa, mas eu adoro-a — declarou Coco com ar feliz. Havia algumas aguarelas emolduradas nas paredes e fotografias dela com Ian, por cima da lareira e nas prateleiras da estante cheia de livros. A cozinha era grande e estava um pouco desarrumada, mas limpa, e por trás da sala ficava o pequeno quarto com um confortável edredão sobre a cama e uma manta velha e desbotada que ela encontrara numa loja de velharias. — Que maravilha — disse Leslie, com os olhos a brilhar. — Como disseste, não é uma cabana, é um lar. Era cem vezes mais acolhedora do que a casa da irmã na Broadway. Leslie percebia perfeitamente por que razão Coco a preferia. Olhou para uma fotografia dela com Ian, os dois jovens com ar feliz e fatos de mergulho dentro do barco dele e, depois, seguiu-a até ao alpendre. Tinha uma vista extraordinária sobre o oceano, a praia e a cidade ao longe. — Julgo que, se vivesse aqui, nunca sairia deste lugar — exclamou ele com sinceridade. — Eu não saio senão para trabalhar — sorriu. Estavam a uma vida de distância da mansão de Bel-Air onde ela tinha crescido, mas não queria mais nada. Não precisava de lho explicar, ele entendia-a e olhava-a com um sorriso afetuoso.


Leslie sentia-se como se ela lhe tivesse mostrado o seu clube secreto, o seu jardim escondido. Estar em casa com ela era como espreitar-lhe para o fundo da alma. — Obrigado por me teres trazido — disse ele em voz baixa. — Sinto-me honrado. Enquanto dizia isto, os cães vieram ter com eles cheios de areia e Jack trazia um ramo com folhas preso na coleira. O cão enorme parecia eufórico por estar ali, tal como Sallie. Coco sorriu para Leslie. — Obrigada por compreenderes o que isto representa para mim. A minha família pensou que eu tinha enlouquecido quando me mudei para cá. É difícil de explicar a pessoas assim. Leslie deu por si a pensar se, no caso de Ian ainda estar vivo, ela teria ficado ali ou partido para um lugar semelhante na Austrália, e suspeitou que teria partido. Coco era uma pessoa que queria desesperadamente libertar-se das suas origens, dos valores que julgava fúteis e de todas as armadilhas desse mundo. Esta era a manifestação exterior de tudo o que rejeitara quando viera para aqui. A falsidade, a obsessão pelos bens materiais, a luta para chegar mais adiante, o sacrifício das pessoas pelas suas carreiras. — Queres uma chávena de chá? — ofereceu, enquanto ele se instalava numa das duas desbotadas espreguiçadeiras. — Adorava. — Reparou na antiga imagem de Quan Yin, que Ian lhe oferecera. — A deusa da compaixão — disse em voz baixa, quando, minutos depois, ela lhe entregou uma caneca de chá e se sentou na cadeira ao lado da dele. — É parecida contigo. És uma mulher meiga, Coco, e muito bem formada. Já vi as fotografias do teu namorado. Parece ter sido boa pessoa — disse respeitosamente. Ian era um homem alto, louro e bonito, e o casal parecia despreocupado e feliz na fotografia. Por um instante, enquanto passava os olhos pelas imagens sorridentes, Leslie sentiu uma certa inveja deles. Suspeitava que, em toda a sua vida, nunca tivera aquilo que eles haviam partilhado. — Era um homem bom. — Coco olhou para o mar e depois voltou-se para sorrir para Leslie. — Tudo o que quero do mundo está aqui. O oceano, a praia, uma vida calma e em paz, este alpendre onde posso ver o sol nascer todas as manhãs e acender a lareira à noite. O meu cão, livros, pessoas de quem gosto nas casas aqui perto. Não preciso de mais do que isto. Para mim é bom. Talvez um dia eu queira uma coisa diferente, mas agora não. — Julgas que alguma vez poderás voltar para o mundo «real»? Ou talvez deva dizer, mundo irreal em que dantes vivias? — Espero que não — disse ela firmemente. — Porque haveria de o fazer? Nada


nele fazia sentido para mim, até mesmo quando era pequena — declarou Coco, fechando os olhos e voltando o rosto para o sol. Leslie observou-a de perto. O cabelo brilhava-lhe como cobre recém-polido e os dois cães tinham adormecido aos seus pés. Era uma vida a que qualquer um se poderia habituar, uma ausência de complicações e artifícios. Mas imaginava que fosse também solitária. Naquele momento era para ela uma vida sem pessoas ou ligações fortes. Mas a dele não era melhor. Escondia-se de uma mulher que o quisera matar. Sem dúvida que aquilo fazia mais sentido. Leslie gostava de tudo o que ali via, mas não tinha a certeza de ser capaz de viver assim. Embora treze anos mais jovem do que ele, Coco parecia ter-se encontrado muito tempo antes. Ele ainda procurava, embora estivesse já mais perto de saber o que queria. Pelo menos sabia o que não queria. Coco também o descobrira mais cedo do que ele. — Devo admitir… — Soltou uma gargalhada, quando Coco abriu os olhos e o olhou de novo. Tudo nela era concentrado, sólido e pacífico. Era como um enorme copo de água de um regato da montanha. — Estou a ver a tua irmã aqui. — Coco riuse também. — Odeia este sítio. Lizzie gosta mais, mas não faz o género delas. São mulheres da cidade. Jane considera São Francisco uma aldeia. Creio que as duas preferem Los Angeles, mas adoram a casa que têm aqui e Lizzie diz que é mais fácil escrever cá do que lá. Não há tantas distrações. Leslie ainda sorria. — Recordo-me de quando conheci Jane. Pensei que era a mulher mais bonita que já vira. Tinha vinte e poucos anos e era um espanto. Ainda é. Tive um fraquinho por ela durante um ano. Saí com ela, mas ela continuava a tratar-me como um amigo. Não percebia o que estaria eu a fazer de errado. Por fim, perdi completamente a cabeça e, uma noite, beijei-a; ela olhou para mim como se eu estivesse louco e disseme que era lésbica. Disse-me que tinha feito todos os possíveis para que eu percebesse, incluindo vestir de vez em quando roupa masculina quando saíamos. Pensava apenas que ela era excêntrica e parecia-me muito sexy. Senti-me o maior idiota de todos os tempos, mas, desde aí, ficámos grandes amigos. E gosto muito de Liz. São perfeitas uma para a outra. Liz torna-a mais doce. Jane ficou muito mais agradável com o passar dos anos. — Que pensamento assustador — comentou Coco. — Ainda é muito dura de roer. Pelo menos para mim. Para ela, eu nunca estou à altura nem nunca estarei. — O segredo era deixar de tentar receber a aprovação da irmã, mas Coco sabia melhor do que ninguém que ainda não tinha conseguido fazê-lo. Continuava a tentar, mesmo vivendo em Bolinas. — Provavelmente ela quer o melhor para ti e preocupa-se contigo — disse Leslie,


tentando parecer razoável, enquanto bebericavam o chá. Coco gostava de estar sentada ao lado dele a olhar para o oceano e a falar da vida. — Talvez. Mas nem toda a gente pode ser como ela. Eu nem quero tentar. Sigo em direção oposta. Longe de tudo isso. A minha mãe também não compreende. Sou diferente. Sempre fui. — Creio que isso é bom — disse ele, com ar pacífico, descontraindo-se na cadeira. — Eu também. Mas assusta a maioria das pessoas. Julgam que têm de ser como todos os outros e aceitam vidas e valores que não se lhes adequam. Os delas nunca me serviram, nem sequer quando era pequena. — Já consigo ver isso em Chloe — disse pensativo. — Não quer ser atriz como eu ou como a mãe. Prefere conduzir um camião. Julgo que seja a maneira de dizer que é ela própria e não nós. Temos de respeitar isso. — Os meus pais nunca o respeitaram. Ignoraram-no pura e simplesmente, na esperança de que eu me esquecesse. Vais no bom caminho se já respeitas quem ela é com apenas seis anos. — Coco sorriu satisfeita com a ideia. — A minha mãe queria que fôssemos ambas debutantes. Jane assumiu-se e tornou-se militante dos direitos gay. A minha mãe não insistiu mais porque, creio eu, ficou com medo que ela aparecesse de smoking e não de vestido comprido. Ainda ficou mais aborrecida comigo, onze anos depois. Disse-lhe que preferia cortar o fígado com um picador de gelo a debutar. Achava aquilo errado e elitista, um regresso a um passado em que o único objetivo era arranjar marido. Nesse ano, preferi ir passar o Natal à África do Sul e ajudar a construir um sistema de esgotos numa aldeia. Diverti-me muito mais do que num baile de apresentação à sociedade. A minha mãe ficou histérica e não me falou durante seis meses. O meu pai levou as coisas com mais calma. Mas o mesmo não aconteceu quando desisti da faculdade de Direito. Creio que ambos tinham sonhos para nós. Jane não se adequava, mas ultrapassaram o problema porque ela tem um êxito enorme que foi sempre o padrão dourado para eles. Eu nunca aceitei isso, nem vou aceitar — disse, parecendo muito segura de si e causando-lhe admiração. — A tua família acabará por se habituar — disse Leslie num tom calmo, mas, daquilo que ela lhe tinha dito até ali, não tinha grande certeza. Coco não era pessoa que quisesse corresponder às expectativas dos outros se não concordasse com elas. Era totalmente fiel a si própria e àquilo em que acreditava, por muito que lhe custasse. E ele respeitava-a totalmente nesse aspeto. — A propósito, gosto muito da aguarela que tens no cavalete. É muito serena. — Já não pinto muito — confessou ela. — Geralmente ofereço-as como presente. Gosto de as pintar para me descontrair. Leslie tinha a sensação de que ela tinha muitos talentos e gostava de todos eles,


mesmo que ainda não tivesse descoberto o seu objetivo final. Até certo ponto invejava-lhe a exploração. Por vezes, cansava-se de representar e de toda a loucura que acompanhava a profissão. Deixaram-se ficar algum tempo em silêncio, perdidos nos seus pensamentos e, por fim, ele adormeceu. Ela levou as canecas para dentro e guardou algumas coisas que queria levar para a cidade. Quando voltou ao alpendre, ele acordou. — Vem alguém nadar aqui? — perguntou ele, sentindo-se preguiçoso e sonolento ao sol. — Por vezes — respondeu ela a sorrir. — De vez em quando há ataques de tubarões, o que desencoraja os menos afoitos e a água é muito fria. É melhor com um fato de mergulho. Tenho um do teu tamanho, se quiseres. Ian era mais ou menos da mesma altura de Leslie e um pouco mais largo e mais atlético. Ela ainda tinha os antigos fatos e o equipamento de mergulho na garagem. Já pensara em oferecê-los, mas nunca o fizera. Gostava de ver as coisas dele ali, sentiase menos sozinha e ele parecia menos ausente, como se pudesse regressar e querer usá-las. — Creio que, para mim, os ataques ocasionais dos tubarões chegam — disse a rir. — Sou um cobarde dedicado e confirmado. Uma vez, num filme, tive de mergulhar com um tubarão. Supostamente estava sedado e era amestrado, mas optei por usar um duplo em tudo exceto nas cenas de amor. Para essas estava eu sedado e amestrado. Ela soltou uma gargalhada. — Também não sou muito corajosa — confessou timidamente, mas ele discordou de imediato. — Estás a falar a sério? Acho que és extremamente corajosa nas coisas importantes. Fugiste à tradição da tua família, resististe ao sistema. Afinal, partiste e fizeste-o com coragem e graciosidade. Por muita pressão que exercessem sobre ti, fizeste o que está certo para ti e aquilo em que acreditas. Amavas um homem e perdeste-o, mas não ficaste a chorá-lo eternamente: seguiste em frente. Ficaste aqui. Vives sozinha numa comunidade engraçada. Não tens medo de viver sozinha nem de estar só. Criaste um emprego que te serve, mesmo que aqueles que amas te insultem por isso. Para tanta coisa é preciso coragem. É preciso muita coragem para se ser diferente, Coco. E tu és diferente com toda a dignidade e equilíbrio. Admiro-te por isso. Agradou a Coco que Leslie lhe dissesse coisas tão bonitas e que reconhecesse quem ela era, sem lhe dizer que tudo o que fazia era mal feito. Validara-lhe as decisões e a vida que ela escolhera e, por isso, sorriu-lhe afetuosamente. — Obrigada, Leslie. Também te admiro. Não tens medo de admitir quando estás


errado ou cometes um erro. És admiravelmente humilde, dado seres quem és, o que conseguiste e o mundo em que vives. Podias ser um completo idiota, mas não. Apesar da tua vida, conseguiste manter-te autêntico. — A minha família repudiava-me se assim não fosse — disse ele com honestidade. — Talvez seja o que me mantenha verdadeiro para comigo mesmo. Mais tarde ou mais cedo, terei de os enfrentar, a eles e a mim. É muito bonito sermos uma estrela de cinema e termos as pessoas a fazerem os impossíveis para nos darem o que queremos. Mas, no final do dia, somos apenas seres humanos, bons ou maus. É embaraçoso ver que, na minha profissão, há pessoas que agem como idiotas. Não tenho muita paciência para isso. A maior parte do tempo, quando olho para mim, vejo todo o mal que faço e não o bem. Talvez por isso — continuou ele, olhando-a muito sério — seja bom ser extremamente inseguro a longo prazo. — Riram os dois do que ele acabara de dizer. — Estou impressionado por não me pareceres insegura. — Mas sou. Só que também sou muito teimosa — suspirou. — Estou sempre a tentar perceber quem sou e o que quero fazer. Sei como aqui cheguei e porquê. Mas parece que não consigo perceber onde quero ir a partir daqui. Ou, talvez, ao fim e ao cabo, seja isto que eu quero. Ainda não decidi. — Vais descobrir. Pelo menos assim tens muitas opções. Todas as portas estão abertas. — Gosto daquelas que abri até aqui. Só que não tenho a certeza das que quero abrir a seguir. — Todos nos sentimos assim de vez em quando. Todas as outras pessoas parecem ter as respostas. Mas estão a fingir, sabem tanto como nós, ou então os seus mundos são muito pequenos e assim é mais fácil para elas. Se quiseres voltar-te para o mundo é muito mais emocionante, mas por vezes terrivelmente assustador. — Parecia muito humilde quando disse isto, mas também não receava mostrar os seus medos e incertezas. — Tens razão — concordou ela. — É assustador. E tu? O que vais fazer agora? Arranjar um apartamento e voltar para Los Angeles? E começar tudo de novo? E procurar outra mulher? Não fez a pergunta, mas ambos a tinham na mente. Coco perguntava a si própria quantas vezes se pode recomeçar, conhecer pessoas, escolher uma, dar uma possibilidade ao destino, avançar e, por fim, ficar desapontado e terminar tudo de novo. Em determinada altura aquilo acabaria por aborrecê-la. Mesmo depois de dois anos maravilhosos com Ian, sentia dificuldade em arranjar coragem para tentar de novo. Gostaria de saber se era mais difícil porque fora tudo tão bom com ele. Mas quem acaba sempre com a mulher errada, quantas vezes recomeça? Mal podia imaginar por quantos romances falhados passara Leslie Baxter. Aos quarenta e um anos, começar de novo parecia um


velho jogo. Era precisamente nisso que ele estava a pensar quando ela fez a pergunta. — Suponho que vou arranjar qualquer coisa temporária. Daqui a seis meses tenho a minha casa de volta e, daqui a quatro, começo um filme. Vou filmar para Veneza e, quando regressar, o inquilino já terá deixado a casa. Agora poderia ficar num hotel, mas aí a privacidade não seria muita. E num hotel seria muito mais fácil que a louca da minha ex-namorada me encontrasse, se daqui a duas semanas ainda estiver interessada no assunto. Aposto que há de encontrar rapidamente outra pessoa para importunar. Não é mulher para estar muito tempo sem homem. Quanto a isso — disse, respondendo à pergunta que ela não tinha feito, mas ele tinha percebido —, sinto-me mais inclinado a esperar um tempo. Preciso de um intervalo depois de tudo isto. Foi um choque ter feito uma avaliação tão completamente errada de uma pessoa. — Tocou inconscientemente na nódoa negra quando falou. Deixara o telemóvel em casa, na cidade, para evitar durante algum tempo as mensagens dela. Leslie não queria falar mais com ela, embora soubesse que, naquela profissão, acabariam ambos por se cruzarem. Não desejava que tal acontecesse. — Não preciso de romance na minha vida. Pelo menos por enquanto. Começo a pensar que quero ou uma coisa de verdade ou nada. As coisas passageiras dão muito trabalho e acabam por ser uma grande confusão. São divertidas durante cinco minutos e depois passamos um tempo imenso a limpar a porcaria. Tal como a desgraça do xarope de ácer quando nos encontrámos. — Ela sorriu. — Fazer a limpeza depois de um romance mau é assim, mas muito menos divertido. E muito mais difícil de limpar. A sua ex-namorada já lhe dissera que iria destruir tudo o que ele deixara em casa dela. A mensagem seguinte dizia que já o tinha feito. Apesar de tudo poder ser substituído, era um enorme aborrecimento e uma tremenda afronta. Logo a seguir riuse da ideia que lhe passou pela cabeça. — Acho que agora sou um sem-abrigo. Para mim, é uma experiência nova. Sabes que, geralmente, não vivo com mulheres, principalmente em casa delas. Com esta fui demasiado confiante. A princípio, o jogo foi fantástico. Afinal, é muito melhor atriz do que eu pensava. Deveria receber um óscar pelos nossos primeiros três meses. Foi uma lição terrível para quem já tem quarenta e um anos. Afinal, pode-se ser idiota em qualquer idade. — Lamento que tenha acabado assim — disse ela, condoída, porque, efetivamente, sentia pena dele. Nunca tivera uma experiência parecida e esperava nunca vir a ter. Naquela vida de Hollywood era comum, até porque ele seria inevitavelmente um alvo. Recordava-se das muitas vezes que o pai lhe contara histórias extremamente dramáticas dos seus clientes, romances terminados, perseguições, pessoas que se agrediam, que se enganavam em segredo ou às claras, tentativas de suicídio. Tudo fazia parte da vida que ela não queria ter e a que tinha fugido, apesar de ter consciência de que coisas más também aconteciam a pessoas


vulgares, mas não tão publicamente nem com tanta frequência. Tudo aquilo fazia parte do território de uma pessoa como Leslie Baxter. Os romances das estrelas de cinema eram geralmente efémeros, chegavam a uma exibição pública de fogo de artifício e terminavam numa enorme confusão. Não o invejava. E, mesmo que tivesse sido ele a desencadear a situação com a mulher que ele escolhera, deveria ser desencorajante. De qualquer forma, poderia ter acabado com algo mais grave do que uma nódoa negra na face. — Também lamento — disse Leslie em voz baixa. — Lamento ter sido um idiota. E lamento a morte do teu homem. Nas fotografias pareces muito feliz com ele. — E fui. Mas, por vezes, também as coisas boas chegam ao fim. É o destino. Era uma maneira saudável de olhar para as coisas, e Leslie admirou-a. Até ali não havia nada nela que não lhe causasse admiração. Era uma mulher espantosa e sentiase feliz por se ter refugiado em casa de Jane, de contrário nunca a teria conhecido, já que ela era considerada a ovelha negra da família e Jane quase nunca a mencionara, por estar muito mais interessada em si própria. Aos olhos de Leslie, Coco era como uma pequena pomba, muito pacífica, numa família de falcões e águias. Mal podia imaginar como teria sido difícil crescer no meio deles. Mas Coco parecia ter saído de lá incólume. Não mostrava amargura por ter sido censurada, apenas surpresa. E, por fim, levantara voo. Ainda estava ligada a eles, mas os fios que a uniam pareciam cada vez mais finos. Era essa a impressão transmitida por Coco, apesar de ter aceitado tomar conta da casa da irmã. E Leslie estava extremamente satisfeito porque, assim, pôde conhecê-la. Deixaram-se ficar estendidos no alpendre, ao sol, durante grande parte da tarde e só falaram de vez em quando. Leslie dormiu e Coco acabou de ler um livro. Fizeram sanduíches com o que ela tinha no frigorífico e guardaram o resto para levar. Depois de terem fechado a casa, ela levou-o a uma praia em Stinson, para que ele visse a espetacular faixa de suave areia branca e conchas que se estendia por vários quilómetros junto ao mar, em cuja espuma as aves boiavam. Lá em cima pairavam gaivotas. Como era seu costume, Coco apanhava pedrinhas bonitas e metia-as no bolso. Caminharam pela praia, sentaram-se no pontão a ver o oceano entrar na lagoa, com Bolinas em frente do outro lado da pequena enseada. Depois, voltaram para a carrinha com os cães a correrem para a frente e para trás. Por duas vezes passaram cavalos a galope. Havia poucas pessoas na praia e Leslie ficou surpreendido quando Coco lhe disse que era quase sempre assim. Só em raros dias de intenso calor havia quem se incomodasse a ir àquela praia. A maior parte do tempo, as poucas pessoas espalhavam-se por muitos quilómetros. Era o refúgio perfeito, de tal modo que, quando percorreram o caminho de regresso sobre o rochedo, Leslie sentia-se como se tivesse passado ali uma semana de férias. Agora o sol escondia-se; fora um dia extraordinário.


— Aprovo sinceramente — disse ele, enquanto ela descrevia habilmente as curvas apertadas, desta vez na parte exterior do rochedo, o que o impressionava ainda mais. Conseguia até evitar os buracos e os muitos pontos em que a estrada estava em mau estado e que eram a razão para que muita gente não a utilizasse. A paisagem era fantástica, mas a viagem estava longe de ser fácil. — O que é que aprovas? — perguntou Coco. Os cães dormiam profundamente na parte de trás da carrinha, completamente estafados depois das longas corridas na praia, principalmente por terem perseguido os cavalos. Sallie tentara desesperadamente reuni-los, mas os animais tinham fugido. Tivera de se contentar em perseguir os pássaros, enquanto Jack a seguia vagarosamente. Estava tão cansado que, quando se foram embora, mal podia andar e agora ressonava ruidosamente, emitindo uma espécie de ronronar na parte de trás da carrinha. — Aprovo que vivas aqui — disse Leslie perfeitamente à vontade. — Se é que precisas que alguém te diga isto. De facto, tenho até inveja. — Ela sorriu. Era bom ouvir aquelas palavras. — Obrigada. — Agradava-lhe saber que ele se apercebera da beleza do local e valorizava a vida dela. Não a considerava uma hippy ou um fenómeno, nem pensara que a sua casa era uma lixeira. Sentira-a como um caloroso abraço e gostara de ver aquilo que fazia parte dela, tal como tantas outras coisas que lhe eram inerentes. Era apenas completamente diferente de Jane, o que, para a família, era difícil de aceitar. Todos eram feitos do mesmo molde, exceto Coco, o que a Leslie parecia muito melhor. Atravessaram Mill Valley em silêncio e entraram na ponte de Golden Gate no meio do trânsito de domingo à noite. Depois da ponte, subiram a rampa para Pacific Heights e ela perguntou-lhe se queria parar algures para levarem comida. Ele não queria. Estava completamente saciado com as boas sensações daquele dia e descontraído depois do longo passeio na praia. Até dormitara no carro a caminho de casa, enquanto Coco conduzia em silêncio. Apesar de ele ser quem era, coisa que já não a impressionava como acontecera da primeira vez que o vira e do choque de o encontrar na cozinha da irmã, estavam totalmente à vontade um com o outro. Sentiase surpreendida por se sentir assim, e com ele acontecera o mesmo, tendo-o até comentado durante o passeio pela praia. Leslie dissera-lhe que era coisa rara nele e que, geralmente, se protegia de desconhecidos. Mas Coco já não era uma desconhecida. Dois dias depois já eram amigos. — E se eu te fizesse uma omeleta? Faço-as muito bem, digo eu, e tu podias fazer uma daquelas deliciosas saladas Califórnia — disse, esperançoso, e ela desatou a rir. — Não sou lá grande cozinheira — confessou. — Vivo de saladas e de um ou outro peixe.


— Isso vê-se — disse ele, elogiando-a. Coco tinha um ar saudável, enérgico, e era muito magra. Mesmo de t-shirt via-se que tinha um corpo muito bonito, tal como a irmã que era onze anos mais velha. Leslie tinha de se esforçar mais, ia ao ginásio todos os dias e trabalhava com um treinador particular antes de cada filme. A sua sobrevivência dependia disso. Parecia mais novo e há dez anos que o seu corpo não mudava. Mas não era fácil. E o seu amor aos gelados era uma maldição. — A omeleta parece-me uma ótima ideia — declarou ela, enquanto a velha carrinha subia a colina de Divisadero. Em breve chegaram à Broadway. Como os cães ainda dormissem quando saíram do carro, Coco acordou-os gritando: «Todos para fora!» Leslie levou para casa os produtos de mercearia que tinham trazido e Coco, o cesto de palha cheio de roupa limpa. Não era diferente da que tinha em casa de Jane. Usava sempre o mesmo, mas de cores diferentes e, quase sempre t-shirts brancas e calças de ganga. Tinha um armário cheio delas e, desde a morte de Ian, nunca mais se dera ao trabalho de se vestir bem. Não havia ninguém que visse ou se importasse com o que ela vestia. Só precisava de se sentir limpa, quente, ter roupas decentes, ténis para o trabalho. Levava uma vida simples, menos, mas muito menos, complicada do que a dele. Sempre que Leslie saía, tinha de parecer uma estrela. Comentara que tinha agora de substituir todo o guarda-roupa, mas que, por enquanto, nem queria saber disso, visto que ninguém o via e não ia a parte alguma. Era um alívio não ter de pensar no assunto e um descanso não ter de se preocupar com os paparazzi de Los Angeles. Ninguém sabia que ele estava em São Francisco, exceto Coco, Jane e a sua companheira. Para o resto do mundo, Leslie Baxter tinha desaparecido. Era o que ele definia como liberdade, e aquilo que Coco mais amava na vida. Parecia quase uma bênção que recebia dela e que muito lhe agradava. Era uma maneira fácil de viver. Enquanto Coco desligava o alarme, Leslie acendia as luzes da casa. Deixou o saco junto à escada e arrumaram os produtos de mercearia na cozinha, enquanto os cães andavam por ali à espera do jantar. Coco deu-lhes de comer e depois pôs a mesa na cozinha com os impecáveis individuais de linho francês da irmã e os talheres elegantes, enquanto Leslie retirava os ingredientes para a omeleta. A seguir fez a salada que ele lhe tinha pedido e um molho César. Meia hora depois, acendeu as velas e sentaram-se para comer um jantar simples. Conforme o prometido, a omeleta estava deliciosa. — Que dia fantástico — disse ele com ar feliz, enquanto conversavam sobre trivialidades. O dia na praia fora ótimo para ambos e, mais uma vez, terminaram a refeição com gelados Dove. — Queres ver um filme? — perguntou ela, enquanto passavam os pratos por água. Ele parecia pensativo.


— Acho que me apetecia ir nadar. Ontem fui ver a piscina e achei a água morna. Todos os dias tenho de fazer exercício em Los Angeles, mas esta noite estou cheio de preguiça — disse com um sorriso. Jane tinha um ginásio com um aspeto muito profissional, onde todos os dias praticava com um treinador. Coco não se importava com tais coisas, e Liz, que se queixava constantemente dos quilos a mais, não fazia nada. Jane era perfeccionista em tudo, incluindo na sua aparência. — Faço exercício todos os dias, passeando os cães — disse Coco. — Depois de olhar para o mar o dia inteiro apetece-me mesmo nadar. — Ela sorriu. De vez em quando, Leslie fazia-lhe lembrar Ian com as suas expressões muito inglesas, iguais às australianas que Ian utilizava. Eram-lhe agradáveis e familiares, mas causavam-lhe também alguma nostalgia. — Julgo que não há tubarões na piscina. — Ultimamente não têm aparecido — garantiu Coco, e ele convidou-a a acompanhá-lo. Geralmente Coco não se dava ao incómodo de utilizar a piscina da irmã, mas pareceu-lhe divertido ir com ele. — Está bem — concordou. Saíram da cozinha e foram aos respetivos quartos. Cinco minutos depois, encontraram-se na piscina, e Coco acendeu as luzes. Era espetacular e interior, porque o clima em São Francisco era geralmente frio. Sabia que Jane nadava ali diariamente e Liz, de vez em quando. Nadaram juntos durante quase uma hora. Coco fazia piscinas enquanto Leslie ficava a ver, mas, depois, para não lhe ficar atrás, acompanhou-a. Ficou sem fôlego muito antes dela, mas ela era mais jovem e estava em melhor forma. — Meu Deus, tens a resistência de uma nadadora olímpica — disse ele com admiração. — Fui capitã da equipa feminina de natação em Princeton — confessou. — Eu fiz remo, quando era novo — declarou ele. — Mas, se experimentasse agora, acabava morto. — Fiz parte da equipa no segundo ano e detestei. A natação era mais fácil. Sentiam-se os dois cansados e descontraídos quando saíram da piscina. Ele usava uns calções de banho azuis e ela um biquíni preto que lhe revelava a figura; contudo, não havia nela nada de abertamente sedutor. Era uma mulher bonita, com um corpo bonito, mas nunca se lhe insinuou. Começava a dar valor àquela amizade. Vestiram ambos grossos roupões turcos que Jane guardava na piscina e voltaram para os quartos para tomar duche, pingando água no tapete. Uns minutos depois, já


com o banho tomado, ele foi ao quarto dela, com o roupão de banho vestido. Ela vestira o pijama de flanela e pusera um filme, que, desta vez, não era com ele, para não o embaraçar. Pelo que ele dissera na noite anterior, sabia que Leslie ficava incomodado ao ver-se no ecrã. — Queres ver? É um filme meloso. Sou viciada neles. Era uma famosa comédia romântica que ela já vira muitas vezes e que adorava. Como Leslie dissesse que nunca a tinha visto, ela bateu com a mão no lugar ao seu lado na cama. Jack não o ocupara e adormecera no chão ao lado de Sallie. Nesse dia, os cães estavam completamente exaustos, o que, para Leslie era fantástico. Ainda ficava um pouco nervoso quando eles se mostravam irrequietos, principalmente o buldogue, por muito meigo que Coco dissesse que ele era. Continuava a ser um cão enorme. Aceitando o convite, Leslie recostou-se nas almofadas para ver o filme com ela. Coco desapareceu por uns momentos e voltou com uma tigela de pipocas. Deu uma gargalhada e ele sorriu. Pareciam crianças. O telemóvel dela tocou assim que ela se instalou na cama. Era Jane. Ele ouviu o que Coco dizia. Sim, estava tudo ótimo. Deulhe uma informação completa acerca do cão e garantiu à irmã que não estava a incomodá-lo. Leslie apercebeu-se de repente que Jane estava a perguntar por ele. Ficou intrigado por Coco não lhe dizer que o tinha levado a Bolinas, nem que estavam confortavelmente instalados na cama dela a ver um filme juntos. A conversa foi breve, semelhante a um interrogatório e não uma interação afetuosa e íntima entre duas irmãs. Coco disse sim cerca de seis vezes àquilo que obviamente eram instruções e desligou lançando-lhe um olhar. — Ela queria ter a certeza de que eu não te andava a aborrecer. Diz-me se ando — perguntou Coco, hesitante, olhando para ele e Leslie inclinou-se para lhe beijar recatadamente a face e garantir que não. — Passei os dois melhores dias dos últimos anos, graças a ti. Se alguém está a ser incomodativo sou eu, que interferi com as tuas coisas. E gosto mesmo deste filme — disse a sorrir. — Geralmente, o que vejo tem sempre sexo e violência. É muito bom ver duas pessoas tontas e desastradas apaixonarem-se. Ficam juntos no fim? — perguntou interessado, e Coco soltou uma gargalhada. — Não vou dizer. Espera e verás — disse ela apagando a luz para verem o filme no ecrã enorme. Era como se estivessem no cinema, mas na cama e de pijama. Era o modo perfeito para o fazerem e dividirem uma tigela de pipocas. O filme era exatamente o que pretendiam e aquilo que Coco já conhecia. Adorava vê-lo. Nunca se aborrecia. Era do género que mais apreciava. — Porque é que a vida não poderá ser assim? — suspirou ele, recostando-se nas almofadas a pensar no filme. — Faz muito mais sentido. É razoável e simples.


Pequenos obstáculos para ultrapassar, uns dilemas sem importância que podem ser resolvidos quando as pessoas percebem o que têm de fazer. Não agem como idiotas, não são maus uns para os outros, não estão traumatizados por maus-tratos na infância, não querem aborrecer-se, gostam uns dos outros, apaixonam-se e vivem felizes para sempre. Porque será tão difícil que isso aconteça? — perguntou com um ar melancólico. — Porque, por vezes, as pessoas são complicadas — retorquiu ela, delicadamente. Mas talvez possa acontecer. Quase me aconteceu. Acontece aos outros. Penso que devemos ser inteligentes no início, manter os olhos abertos, não nos enganarmos acerca da pessoa com quem nos envolvemos, sermos honestos com ela e connosco e fazermos jogo limpo. — Nunca é assim tão simples — declarou ele, tristemente. — Pelo menos no meu mundo. E a maioria das pessoas não faz jogo limpo. Estão obcecadas pela vitória, e, se um ganha, os dois perdem. Ela acenou afirmativamente. — Há pessoas que fazem jogo limpo. Ian e eu fazíamos. Éramos bons um para o outro. — Eram muito novos e boas pessoas, creio. Depois, vê o que aconteceu. Se não somos nós a estragar as coisas, o destino encarrega-se disso. — Nem sempre. Em Bolinas conheço vários casais que são felizes. Não levam vidas complicadas. Acho que faz parte do segredo. No mundo em que tu vives e em que eu cresci, as pessoas complicam as coisas e geralmente não são honestas, principalmente com elas próprias. — É isso que gosto em ti, Coco. És honesta e muito direta. Tudo em ti é puro e bom. Vê-se logo — disse ele a sorrir. — Também me pareces honesto — disse ela, afetuosamente. — E sou, mas engano-me sempre acerca da pessoa com quem me envolvo. Julgo que foi o que aconteceu no caso dessa mulher de quem ando agora a fugir. Talvez eu soubesse desde o princípio que ela não era a pessoa certa e não quisesse vê-lo. Era mais fácil fechar os olhos e, mais tarde, muito mais difícil mantê-los fechados. Agora, vê a confusão em que estou metido, escondido noutra cidade, enquanto ela deita fogo à minha roupa. A ideia fê-los sorrir a ambos, até porque ele não parecia infeliz no seu bunker de São Francisco. De facto, parecia descontraído e perfeitamente sereno. Era um homem diferente daquele que, dois dias antes, tinha chegado, exausto, stressado, ansioso. O dia em Bolinas tinha feito maravilhas por ele e também por Coco. Para ela fora ótimo estar no seu território durante algumas horas, especialmente por ter ido lá com Leslie,


que apreciara tudo o que ali havia. — Para a próxima vez estarás de sobreaviso e serás mais cuidadoso — disse Coco, calmamente. — Não te tortures. Aprendeste alguma coisa com tudo isso. É o que sempre acontece. — O que aprendeste com o teu amigo australiano? — perguntou ele delicadamente. — Que é possível. Que acontece. Que é preciso ter a sorte de o encontrarmos ou que nos encontre. E encontra. — Quem me dera ter a tua fé — disse ele, olhando-a fixamente. — Tens de ver mais filmes destes — recomendou ela com ar grave e depois soltou uma gargalhada. — São o melhor remédio que há. — Não — disse ele em surdina, sem afastar os olhos dela. — Encontrei um remédio ainda melhor. — E qual é? — perguntou ela inocentemente, sem suspeitar do que iria acontecer e olhando-o nos olhos. — Tu. És o melhor remédio que existe. A melhor pessoa que já conheci. Enquanto falava, Leslie inclinou-se para a beijar e a apertar nos seus braços. Ela ficou sobressaltada e não soube o que fazer, mas ele não a soltou e, quando Coco deu por si, lançara-lhe os braços ao pescoço, abraçava-o com força e correspondia ao seu beijo. Nenhum dos dois esperara ou planeara aquilo. Quando a vira de biquíni, jurara a si próprio não tentar nada com ela. Respeitava-a, gostava dela, queria ser amigo dela, mas, de repente, passara a querer mais do que isso. Não só receber dela, como também dar-lhe tudo o que ela sonhara ter, porque era tão boa e merecia. E, pela primeira vez na sua vida, sentiu que também ele o merecia. Não havia nada de sórdido ou de errado, e não importava tê-la conhecido há apenas dois dias. Estava a apaixonar-se. Coco parecia atónita quando o beijo terminou, olhou para ele. Não queria que aquilo fosse apenas sexo, nunca quisera tanto uma pessoa na sua vida. Leslie Baxter estava na cama com ela e beijara-a, mas, de repente, já não era o famoso ator de cinema, era apenas um homem e a atração que ambos sentiam era tão forte que não desejava resistir-lhe. — Oh! — suspirou, surpreendida, e ele beijou-a de novo. Antes que qualquer dos dois soubesse o que se estava a passar, despiram-se, lançaram a roupa para o chão e fizeram amor apaixonadamente. Nenhum dos dois desejava parar. Tinham passado dois anos desde que Coco fizera amor, desde Ian, e enquanto fazia amor com ela, Leslie perguntava a si próprio se alguma vez se teria apaixonado por alguém. Agora


sabia que se apaixonara por ela. Quando ficaram deitados lado a lado, ofegantes, Coco aproximou-se dele ainda mais e olhou-o nos olhos. — O que foi isto? — perguntou num murmúrio. Fosse o que fosse, sabia que desejava repetir. Mas mais tarde. Nunca experimentara uma coisa assim com um homem. Nem sequer com Ian. As suas relações eram fáceis, serenas e confortáveis. O que acontecera com Leslie era magnífico e apaixonado. Sentia-se como se tivessem passado juntos por um tornado. O mundo parecia virado do avesso e ouvia sinos a tocar. As emoções que tinham partilhado eram tão fortes que Coco se sentia como que varrida pela maré, juntamente com ele. E ele sentia o mesmo. — Receio, minha querida Coco — respondeu em surdina —, que seja amor. Amor de verdade. Até agora, nunca o teria reconhecido, mas creio que nos aconteceu a ambos. O que pensas? — Ela aquiesceu em silêncio. Queria que fosse amor, mas não tinha a certeza. Era muito cedo. — E agora? O que se vai passar? — perguntou ela preocupada. — És uma estrela de cinema e vais voltar ao teu mundo. Eu sou uma vagabunda da praia de Bolinas e vou acabar sozinha. Era demasiado cedo para se preocupar com isso, mas Coco pressentia o perigo e ele já tinha admitido que ainda não tinha pensado bem no que deveria fazer. Ela sim. Levara três meses para dormir com Ian e exatamente dois dias para ir para a cama com Leslie. — Nunca fiz uma coisa assim na minha vida — disse ela, com uma lágrima a deslizar-lhe pelo canto do olho. Estava profundamente emocionada com o que lhes acontecera e não o lamentava. Estava apenas assustada. — Nem eu, sem ter qualquer intenção. Dormira com muitas mulheres logo da primeira vez que saía com elas, desde que estivessem dispostas, mas nunca fora assim apanhado de surpresa, nem ficara tão fortemente afetado por forças que não planeara e a que não conseguira resistir. Era o sentimento mais poderoso de toda a sua vida. — E em relação à história da vagabunda da praia, não é bem assim. Não és uma pobre orfãzinha que nada sabe do mundo. E em relação à reviravolta da história, teremos de «esperar para ver», como disseste. Talvez seja um desses filmes melosos de que tanto gostas… minha querida. Espero que seja — disse ele com toda a sinceridade. — Conheço o teu mundo — murmurou ela. — E detesto tudo o que nele existe…


exceto tu — disse com tristeza. — Vamos levar isto um dia de cada vez — disse ele, sensato. Mas ela receava que fosse tarde demais. Não queria ligar-se a Leslie e depois ter de se separar quando ele voltasse para o seu mundo, e mais cedo ou mais tarde isso aconteceria. Aquilo não era mais do que uma fantasia, do que um sonho. Mas ela queria-o tanto como ele. E queria acreditar que os sonhos se realizam. Os dela quase se haviam realizado noutro tempo, e talvez se realizassem agora. Queria acreditar que aquilo era possível, mas acontecera tão subitamente e, sendo ele quem era na vida real, não sabia o que pensar. — Prometes não te preocupar demasiado e, por enquanto, confiar nisto e em mim? Não te vou magoar, Coco. É a última coisa que quero fazer. Vamos dar a isto e a nós próprios um tempo para ver o que se passa. Havemos de descobrir. Ela não pronunciou palavra, limitou-se a acenar afirmativamente, como uma criança de cinco anos, e enterrou-se profundamente nos seus braços. Ele abraçou-a durante muito tempo, e depois, com toda a delicadeza das suas ternas emoções, fez de novo amor com ela. E o tornado que os envolvera anteriormente surgiu para os arrebatar pela segunda vez.


CAPÍTULO 5 Quando Coco acordou na manhã seguinte, ficou a pensar se não teria sonhado tudo o que se passara na noite anterior. Estava sozinha na cama. Leslie não estava em parte alguma, mas enquanto ela olhava para o teto e pensava nele, ele entrou no quarto com um pano da louça à cintura, trazendo-lhe o tabuleiro do pequeno-almoço e uma rosa do jardim de Jane presa nos dentes. Ela sentou-se na cama a olhar para ele. — Oh, meu Deus, és de verdade! — Pelo menos tinha esperança de que o fosse. Era o que ela mais queria acreditar neste mundo. — E nem sequer estávamos embriagados! — Isso seria uma desculpa esfarrapada — disse ele, colocando o tabuleiro por cima das pernas dela. Trouxera cereais, sumo de laranja e torradas. Tinha até barrado as torradas com manteiga e compota. — Pensei em fazer waffles, mas achei que Jane seria capaz de nos matar se se repetisse aquela história do xarope de ácer. — Riram os dois, recordando quando se tinham conhecido e como. Para eles, seria para sempre uma piada privada. E Coco ficou aliviada ao ver que eram apenas sete da manhã. Tinha ainda uma hora antes de ir trabalhar. Apetecia-lhe ficar durante todo o dia na cama com ele. — Obrigada — disse, levemente embaraçada pelo pequeno-almoço que ele lhe tinha preparado, pelo serviço extravagante e pelo que tinha acontecido entre eles na noite anterior. Ele apercebeu-se ao olhá-la nos olhos. — Quero dizer-te uma coisa, antes que apanhes um susto de morte. Nenhum de nós sabe ainda o que isto é. Eu sei o que quero que seja e o que espero que seja e, embora te conheça apenas há dois dias, julgo saber quem tu és. Eu sei quem sou e o que fui, e quem quero ser quando crescer. Nunca menti a ninguém intencionalmente. Não engano as pessoas. De vez em quando, posso ser um idiota, mas não sou má pessoa. Não estou a tentar pôr-te nas nuvens, andar uns tempos contigo e depois voltar para Hollywood com mais um vitória para contar. Já tive muitas dessas e não preciso de mais, sobretudo quando se trata de ti. Não é isso que quero ser na minha vida. Sei quem quero que tu sejas para mim. Estou apaixonado por ti, Coco. Sei que parece uma loucura apenas dois dias depois, mas, por vezes, penso que só o sabemos quando é certo e quando é de verdade. Nunca antes me senti assim ou tive tanta certeza. Penso que quero passar o resto da minha vida contigo e, tal como a ti, parece-me uma loucura. Quero que tenhamos esta oportunidade. Não é preciso entrar em pânico. Não há nada descontrolado. Somos duas pessoas boas que se estão a apaixonar. Vamos transformar isto num filme meloso para te dar prazer, e esperemos que assim fique. Pode ser? — perguntou, enquanto lhe estendia uma mão e ela lhe estendia lentamente a sua. Leslie pegou-lhe delicadamente nos dedos, curvou-se e


beijou-a nos lábios. — Amo-te, Coco. Não me importo que sejas uma vagabunda de praia, alguém que passeia cães ou a filha do mais importante agente de Hollywood e de uma escritora de best-sellers. Amo-te e amo tudo o que és. E, com sorte, talvez possas aprender a amar-me — disse ele, sentando-se ao lado dela na cama e vendo-a voltarse com a mesma expressão estupefacta que lhe vira no olhar desde a noite anterior. — Eu já te amo, não por seres uma estrela de cinema, mas apesar de o seres, se é que isso faz sentido. — É tudo o que eu quero. Iremos resolvendo o resto, um dia de cada vez — disse-lhe ele, parecendo de novo humilde. Nunca fora tão feliz na sua vida. Dividiu com ela a torrada e, meia hora depois, tomaram duche juntos e ele parecia uma mãe-galinha quando ela saiu para trabalhar. Coco disse-lhe que viria para o almoço e ele tinha telefonemas para fazer nessa manhã. Queria ligar ao agente para lhe contar o que acontecera com a mulher de Los Angeles e onde se encontrava agora. Precisava ainda de avisar o seu relações-públicas que ela poderia arranjar sarilhos e pedir à imobiliária para arranjar um apartamento mobilado até que a sua casa ficasse vaga daí a seis meses. Tinha o suficiente para se entreter até que ela voltasse. Mais tarde, queria dar uma volta pela cidade para se familiarizar com ela. Pensou que seria divertido se nessa noite saíssem para jantar. Já lhe dissera que queria ir passar o fim de semana a Bolinas. A vida assim era muito boa, principalmente porque Coco fazia parte dela. Coco sentia-se aturdida enquanto passeava os cães dos clientes nessa manhã. Gostara de tudo o que ele lhe dissera e de tudo o que tinham feito. Mas, nos raros momentos de lucidez e sanidade, era difícil acreditar que aquela maravilha pudesse durar, principalmente por ser com ele. Afinal, tratava-se de Leslie Baxter. Acabaria por ter de voltar para Hollywood para fazer outro filme. Os tabloides comê-los-iam vivos. E como viveria Coco entretanto? Em Bolinas, à espera que ele voltasse para casa? De modo algum regressaria para Los Angeles. Nem sequer por ele. Respirou fundo enquanto deixava em casa o último dos seus cães da manhã, recordando-se do que ele dissera. Um dia de cada vez. Era o melhor que poderiam fazer por enquanto. E tal como ele dissera, haveriam de encontrar soluções. Mas ela também não queria perder mais uma vez a pessoa que amava. E, dado o elenco, não seria fácil arranjar um final feliz para aquele filme. Quando chegou a casa com as sanduíches italianas que tinha comprado, ele ainda estava ao telefone. Falava com a imobiliária sobre uma casa mobilada em Bel-Air, disponível por seis meses, enquanto uma atriz famosa terminava um filme na Europa. Coco parecia preocupada enquanto o ouvia, mas Leslie soltou uma gargalhada quando desligou o telefone.


— Não entres ainda em pânico — sossegou-a. — Querem cinquenta mil dólares por mês pela casa. — Leslie pensara em Coco durante toda a manhã e em como as coisas se poderiam resolver a longo prazo. — Sabes, talvez eu possa viver aqui. Robin Williams e Sean Penn vivem. Para eles parece que funciona. — Ela acenou com a cabeça em estado de choque pelo que lhes estava a acontecer. Quando entrara, a empregada da limpeza tinha acabado de sair. Esqueceram-se das sanduíches e voltaram para a cama, para fazerem amor até ela sair de novo para ir passear o outro grupo de cães. Mal conseguia separar-se dele. E, quando voltou às quatro, ele estava a dormir profundamente na cama dela. Nessa manhã, o agente prometera enviar-lhe vários guiões e, por enquanto, ele ia ficar em São Francisco com ela. Jane dissera-lhe que podia ficar o tempo que quisesse e, nessa tarde, concordaram em que, por enquanto, não lhe diriam nada. Queriam manter o segredo só para eles. Ao fim da tarde, Leslie recebeu um telefonema do seu assessor de imprensa. A atriz que o assediava fizera uma declaração afirmando que o deixara e implicando em termos velados que ele era homossexual. Havia provas irrefutáveis do contrário e parecia tratar-se apenas de despeito. Leslie ficou aliviado por ela ter dito à imprensa que tinha acabado tudo com ele, o que poderia significar que estava preparada para seguir em frente e deixar de o torturar. Mas, mesmo assim, ainda não confiava na mensagem. Queria esperar para ver, antes de regressar a Los Angeles. Pedira a Coco que fizesse, em nome dela, uma reserva num restaurante sossegado, e ela escolhera um restaurante mexicano na Mission, onde esperava que ninguém o reconhecesse. Com certeza ninguém estaria à espera de o ver ali. E depois de terem feito amor mais uma vez no duche, conseguiram vestir-se e sair de casa às oito horas. Ele adorou o restaurante assim que o viu, e ninguém lhes prestou atenção até ele pagar a conta. A mulher da caixa estivera a olhá-lo fixamente durante toda a noite. Ele pagou em dinheiro, por isso não havia a questão dos cartões de crédito, mas ela enviou-lhe um pedido de autógrafo juntamente com o troco. Ele tentou fingir que não percebia, mas, minutos depois, as pessoas das outras mesas já se tinham voltado, o empregado conversava animadamente em espanhol e, sem assinar o autógrafo, o que teria confirmado a sua identidade, tentaram parecer despreocupados quando saíram e correram para a carrinha. — Merda — resmungou ele, quando Coco pôs o carro a trabalhar. — Espero que ninguém chame a imprensa. — Aquele era um elemento com que Coco nunca tinha lidado diretamente. A vida era complicada para ele, o que significava que não poderiam ir a parte nenhuma, ou teriam de ser extremamente cuidadosos quando fossem. Tendo sido reconhecido tão facilmente na Mission, também o seria em qualquer outro sítio, e nenhum deles queria que a sua localização fosse espalhada por São Francisco. Ficaram em casa o resto da semana e Leslie fez grandes caminhadas


na praia com Coco. No sábado, depois de ela ter passeado o último cão, partiram para Bolinas, e lá passaram o fim de semana. Não tiveram qualquer problema com as pessoas na praia e quando, no momento em que ambos foram despejar o lixo, Jeff, o bombeiro que vivia na casa ao lado, se encontrou com Leslie, olhou-o e acenou com a cabeça com um largo sorriso. Estendeu-lhe a mão, apresentou-se e disse que estava satisfeito por ver que Coco trouxera um amigo com ela. Parecia tê-la em grande consideração. Viram-no de novo no domingo, na praia, com o cão, e não mostrou qualquer sinal de que reconhecera Leslie nem fez o mínimo comentário acerca de quem ele era. Naquela comunidade, cada um preocupava-se com os seus assuntos, embora também estivessem atentos aos dos outros. Leslie disse que fora bombeiro voluntário em Inglaterra, quando estava na universidade, e falaram acerca de incêndios, de equipamento e da vida em Bolinas. A partir daí, passaram aos carros de bombeiros e depois aos automóveis. Descobriram que ambos adoravam trabalhar com carros e reconstruir motores. Leslie parecia muito à vontade e os dois homens gostaram de conversar um com o outro. Leslie e Coco sentiam-se felizes e descontraídos quando regressaram à cidade no domingo à noite. Leslie voltou a dizer o quanto gostara de conversar com o vizinho. Coco estava constantemente preocupada, não fosse a frágil bolha da sua vida oculta rebentar, mas, até ali, ninguém os incomodara. Jane sabia que ele ainda lá estava e não parecia preocupar-se com o assunto. Avisava regularmente a irmã para não o incomodar, e Coco garantia-lhe que podia ficar descansada. No final da segunda semana de estarem juntos, o agente imobiliário de Leslie em Los Angeles insistiu para que ele fosse ver vários apartamentos. Leslie nem sabia se queria dar-se a esse incómodo, mas pensou que deveria estar com o agente e aparecer em Los Angeles para que ninguém pensasse que ele se escondera depois dos boatos da sua homossexualidade. A sua ex-namorada insistia no assunto e nos tabloides tinham aparecido alguns títulos que não eram mais chocantes do que o costume. — Queres ir comigo no sábado? — sugeriu. — Podíamos passar a noite em BelAir. — O hotel sempre fora extremamente discreto e, afinal, ninguém conhecia Coco. — O que faremos com os cães? — Não se tratava apenas de Sallie, mas também do cão da irmã, e sabia que Jane ficaria furiosa se ela se fosse embora. — Não os poderias deixar ficar na tua casa em Bolinas, se um dos teus vizinhos se ocupasse deles? — Se Jane souber, estrangula-me — disse Coco com ar culpado. Mas queria ir com ele. — Talvez. Vou telefonar a perguntar. Por fim, os dois vizinhos concordaram em tomar conta dos animais, dar-lhes de comer, passeá-los na praia e um deles ofereceu-se até para os levar a casa no domingo à noite quando fosse a uma festa de aniversário na cidade. Ficou tudo


combinado como ele tinha sugerido. Um dia de cada vez. Estava a resultar e eles davam-se maravilhosamente bem. Por fim, à cautela, voaram para Los Angeles em voos separados, dois carros diferentes foram esperá-los ao aeroporto e, pelo sim, pelo não, combinaram encontrar-se no hotel. Era um pouco como estarem num filme de espionagem. Não disseram a ninguém que iam. Leslie apanhou um voo mais cedo e, antes da chegada de Coco, viu os apartamentos que o agente tinha para lhe mostrar. Nenhum lhe agradou, e o seu interesse em arranjar casa em Los Angeles diminuíra desde que conhecera Coco. Por enquanto, sentia-se feliz em São Francisco. E Coco ficou aliviada quando, no hotel, ele lhe disse isso. Tinham uma belíssima suíte no Hotel Bel-Air. A presença de Coco passou despercebida, pois o pessoal estava habituado a lidar com situações como aquela com a maior discrição. Foram jantar a um pequeno restaurante que Leslie conhecia em West Hollywood e sentiam-se felizes e descontraídos quando voltaram para o hotel. Era quase meia-noite e, quando caminhavam lentamente para o quarto, através dos jardins, viram um casal de mãos dadas a beijar-se perto dos cisnes que nadavam no regato que serpenteava o hotel. Coco sorriu quando viu o casal a beijar-se, e pensou que havia neles algo de familiar. Contudo, toda a gente lhe parecia familiar em Los Angeles. Ou eram estrelas de cinema famosas ou pessoas que se queriam parecer com elas. Por vezes era engraçado. A mulher, que apenas viam de costas, era elegante, loura, com uma boa figura, no seu vestido preto e sapatos de salto alto, e o homem que estava com ela era um jovem bem-parecido e vestia um fato de bom corte. Pararam e beijaram-se longamente mais uma vez, quando Leslie e Coco se aproximaram. Mas, no último momento, afastaram-se pelo atalho que levava à suíte. Nessa altura, a mulher voltou-se e, ao erguer o rosto para o homem que a acompanhava, ficou iluminada pelas luzes subtis do jardim. Coco soltou uma exclamação sufocada. — Valha-me Deus! — disse, em voz alta, agarrando-se ao braço de Leslie. — O que se passa? Estás bem? — Ela abanou a cabeça e ficou pregada ao chão. Não havia dúvidas de quem era a mulher, e, assim que Coco se apercebeu, correu para o quarto enquanto Leslie a seguia com ar preocupado. Coco parecia em pânico e desatou a chorar na sala da suíte. Leslie abraçou-a sem perceber o que se passava. Era apenas um casal a beijar-se enquanto olhavam para os cisnes. Era óbvio que estavam ali, no mesmo hotel, e que pareciam muito apaixonados. Mas Coco parecia ter visto um fantasma. Coco sentou-se, completamente atordoada. Estava em estado de choque. — O que se passa? — perguntou Leslie, enquanto se sentava ao lado dela passando-lhe o braço pelos ombros. — Diz-me Coco. Conheces aquele homem? —


Gostaria de saber se não seria um amor antigo. Só tinha conhecimento de Ian. Ela abanou a cabeça em resposta àquela pergunta, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto. — Não é ele… aquela mulher é a minha mãe — disse ela, olhando para Leslie e, por uns instantes, ele ficou tão admirado que nem soube o que dizer. — Aquela é a tua mãe? Nunca a vi em pessoa. É muito bonita. — Coco não se parecia nada com ela, embora também fosse muito bonita. — Ele tem metade da idade dela. — Coco estava abismada. — Nem tanto. Leslie tentou acalmá-la, mas não havia dúvida de que o homem era bastante mais novo do que ela e que pareciam estar muito envolvidos. Ela olhara para o companheiro com uma expressão de adoração e ele parecia embevecido. Tratava-se de um rapaz bem-parecido, elegantemente vestido à maneira de Los Angeles, com o cabelo comprido e um rosto bonito. Poderia ser ator, modelo ou outra coisa qualquer. Leslie não sabia o que dizer. — Parece-me que desconhecias a existência dele. — Claro que sim. Ela dizia sempre que, depois do meu pai, nunca mais poderia arranjar outra pessoa. Estás a perceber? — disse ela, subitamente enraivecida. — Não prestam. Todos mentem, todos fingem, até a minha mãe que se acha superior a tudo e todos neste mundo. Chama-me hippy e preguiçosa, e ela o que é? — O tom de voz de Coco não era agradável, e Leslie estremeceu. — Talvez uma mulher sozinha — disse ele num tom delicado, tentando acalmála. — Não é fácil estar só com a idade dela. Leslie partia do princípio de que a mãe de Coco teria pelo menos sessenta anos, dada a idade de Jane, só que não parecia. À luz, aparentava estar mais perto dos cinquenta e o homem que estava com ela era evidentemente mais novo, mas não o chocara. Juntos, pareciam felizes. E se aquilo lhes dava alegria e conforto qual seria o mal? Mas não o disse a Coco que parecia prestes a ter um ataque. Tinha de admitir que também não gostaria de ver a própria mãe numa situação daquelas. Mas a dele era mais velha e não estava tão bem conservada, e mantinha-se casada com o pai dele, apesar de se queixarem um do outro em tom bem-humorado, como sempre o haviam feito. A mãe de Coco era mais jovem, mais sexy, usava roupas caras, era viúva e famosa. Valia a pena. — Tem sessenta e dois anos e fez mais cirurgias plásticas do que uma desgraçada vítima de um incêndio. Não há direito. Como pode ela dizer-me como hei de viver a minha vida e depois é isto o que faz quando ninguém está a olhar? O meu pai nunca


lho teria feito. Mas assim que o disse soube que não era verdade. O pai fora um homem bonito, que gostava de mulheres e ele e a mãe tinham tido várias zangas por causa das clientes jovens e atraentes. A mãe vigiava-o com olhos de águia e mantinha-lhe a rédea curta, e Coco suspeitava que, se tivesse sido a mãe a morrer, por aquela altura já o pai teria alguém. Só que nunca o esperara da mãe e, certamente, nunca com um homem daquela idade. — Talvez o teu pai também o fizesse. Não têm de ficar sozinhos só porque ficamos pouco à vontade quando pensamos neles como sexualmente ativos. Detesto ter de te dizer, mas ela também tem direito à vida. — Mas o que pensas tu que procura um fulano daquela idade? Sexo? Com a idade que ela tem? Procura dinheiro, poder, ligações, tudo o que pode conseguir à custa da fama dela. — Talvez — disse Leslie. Ela estava um pouco mais calma e já não chorava, mas continuava aturdida. Tinha sido um choque ver a mãe, ao luar, beijar um homem que nem sequer era da sua idade. A cena fizera balançar o mundo de Coco de um modo pouco agradável. — Esqueceste-te de uma coisa — recordou-a Leslie delicadamente. — O amor. Talvez ela esteja apaixonada por esse homem. Pode ser mais importante do que parece, apesar da idade. Os homens apaixonam-se por mulheres muito mais novas a todo o momento. Eu tenho mais treze anos do que tu e ninguém se sentiria chocado connosco. Porque teremos de estereotipar as nossas relações? Não pareces preocupada com o facto de a tua irmã viver com outra mulher e respeitas essa relação. Todos respeitamos. Porque não a tua mãe e um homem mais novo? — Não gosto de pensar na minha mãe desse modo — disse Coco, sempre honesta com ele e consigo própria. Parecia seriamente perturbada. — Eu também não gostaria que isto acontecesse com a minha — disse ele, igualmente honesto. — Porque não lhe perguntas e vês o que ela diz? — À minha mãe? Estás a brincar? Ela nunca diz a verdade. Pelo menos acerca da sua pessoa. Há anos que mente acerca da cirurgia plástica. Primeiro foram os seios, quando o meu pai ainda era vivo. Depois os olhos. Depois um lifting no rosto. Outro, três semanas após o funeral, «para se animar», disse depois. Meu Deus, se calhar já saía com este! — Talvez não. Acho que devias reservar o teu parecer para depois de falares com ela. Parece-me mais justo. O tipo pode ser um idiota e andar apenas atrás da fama dela, mas pode não ser assim. Ouve pelo menos o que ela tem a dizer. Pareciam muito apaixonados.


— Ela gosta demasiado de sexo — disse Coco, olhando para ele e fazendo-o rir. — Julgo que talvez seja genético e não me queixo. Se quando chegares à idade dela tiveres tão boa figura, vou ficar muito feliz. E não precisas de fazer um lifting, porque vou gostar sempre de ti, tal como tu és. Coco era uma beleza mais natural do que a mãe, seria mais provável que envelhecesse melhor, mas não havia dúvida de que Florence tinha um aspeto notável para a sua idade. E a acreditar no antigo adágio que dizia que um homem deveria ver a mãe antes de se apaixonar pela filha, não se tinha saído nada mal. Nessa noite, Coco ainda pensava naquilo, quando foram para a cama, e também na manhã seguinte ao pequeno-almoço. Aborrecia-a ainda mais aperceber-se de que não poderia questionar a mãe, tal como Leslie sugerira, ou dizer à irmã, pois era segredo que estava com ele em Los Angeles. Se dissesse a Jane, esta também saberia que ela tinha deixado o cão, e a mãe quereria saber imediatamente por que razão Coco se encontrava na cidade e não lhe tinha telefonado. Nesses tempos, havia demasiados segredos na família, principalmente da parte da mãe. Não tinha nada a esconder de Leslie, devia apenas protegê-lo da ex-namorada psicopata e ficar o mais possível longe dos tabloides, que se mostrariam terríveis a seu devido tempo. Mas, por enquanto, os lábios de Coco estavam selados e as mãos atadas. Sentia-se desesperada por ter de guardar para si própria aquela relação amorosa da mãe. Voltaram para São Francisco, mais uma vez em aviões separados, e foram para casa de Jane também em carros diferentes. Mas foi a primeira coisa de que falaram assim que Leslie entrou. Ele percebeu que se tratava de um grave problema. A mãe censurava constantemente Coco pelas escolhas que tinha feito na vida, e agora ela queria uma explicação séria para aquilo que tinha visto. Não lhe agradara nada o que tinha observado ou poderia imaginar: os beijos, o romance e, em particular, a idade do homem com quem a mãe se encontrava. Jane telefonou-lhe nessa noite e, pelo tom de voz da irmã, apercebeu-se de que alguma coisa se passava. — Porque é que estás tão nervosa? — perguntou imediatamente. Coco parecia ter batido em alguém ou desejar fazê-lo, e Jane ficou desconfiada. — Não andas a irritar o Leslie, pois não? Não te esqueças de que é meu convidado. — E que outra coisa sou eu, senão a pessoa que toma conta da tua casa e passeia o teu cão? Lixo? — perguntou Coco irritada, e Jane pareceu admirada do outro lado da linha. — Ora, mil desculpas. Mas não tomes essa atitude para com o meu hóspede. E não te armes em esperta comigo. Ele pode querer ficar aí algum tempo para se ver


livre dessa lunática e da imprensa. Por isso, agradeço-te que não lhe dês cabo da vida comportando-te como uma miúda! — Sempre tratara Coco como uma criança e esta quase soltara uma gargalhada com o comentário da irmã. — Vou tentar não lhe dar cabo da vida — disse, altiva, mas, desta vez, a fingir. Também tinha um segredo a esconder. A mãe já não era a única pessoa na família com um; o seu era muito mais saudável, mas nem ela nem Leslie queriam revelá-lo ainda a Jane. Queriam proteger a intimidade daquilo que tinham, sem ter de lidar com as reações ou opiniões de outras pessoas. Enquanto pensava nisso, interrogava-se se a mãe não estaria a fazer o mesmo, sem saber se alguma vez deveria contar-lhes. Se fosse apenas sexo, não contaria, mas, se fosse a sério, a seu tempo viriam a saber. Talvez fosse o que ela e Leslie também estavam a pensar. — Agora, quase não o vejo — acentuou Coco, referindo-se a Leslie para despistar a irmã. — Boa ideia. Ele precisa de paz e sossego. Passou um tempo muito difícil. Primeiro, ela tentou matá-lo e depois disse aos tabloides que ele era gay. — E é? — perguntou Coco, num tom inocente, mas quase a rir. Nas últimas duas semanas, tivera amplas e constantes provas de que ele não o era e estava a desfrutar imensamente. Estavam a divertir-se muito, na cama e fora dela. — Claro que ele não é gay — disse Jane bruscamente. — Mas tu não fazes o género dele. Ele prefere mulheres elegantes e sofisticadas, geralmente as que contracenam com ele, mas nem sempre. Creio que no grupo também houve várias marquesas inglesas e princesas europeias. Que diabo, ele é o maior ator que existe. E claro que não é gay — repetiu. — Uma vez até se tentou atirar a mim. O homem quer dormir com tudo o que mexe! — Mas não contigo, era o que implicava o tom de voz, coisa que não escapou à irmã mais nova. Por causa disso, Coco sentia-se deprimida quando desligou o telefone. — Disseste-lhe? — perguntou-lhe Leslie, e Coco abanou a cabeça. — Não fui capaz, por causa do cão. Ela diz que tu dormes com tudo o que mexe, principalmente e quase sempre com as atrizes com quem contracenas e com mulheres muito mais elegantes e sofisticadas do que eu. — Coco parecia ter levado um sova. — Ela disse tudo isso? — Leslie parecia chocado. — Mas porquê? — Para a despistar, perguntei-lhe se eras gay. — Fantástico. E qual foi a resposta dela? Sim, dormi com algumas atrizes com quem contracenei, mas não por muito tempo. É o que se passa com os jovens atores, mas tentei envolver-me sempre com mulheres feitas e não com aspirantes a estrelas. E tu és a única mulher que eu realmente amei. E não, não sou gay. — Prova — disse ela, fingindo fazer beicinho e ele desatou a rir.


— Bom, já que insistes — disse, deixando de desfazer a mala e aproximando-se dela na cama. — Os teus desejos são ordens e, se queres que te prove que não sou gay, vamos a isso. E foi o que fez minutos depois. Uma vez e outra e outra.


CAPÍTULO 6 No final de junho, a ex-namorada de Leslie deixou de dar entrevistas aos tabloides acerca dele e de emitir declarações ao Entertainment Tonight. Fora até vista na pista de dança de uma discoteca de Los Angeles acompanhada por uma famosa estrela rock. Parecia que tinha deixado Leslie em paz. Ele não queria deitar foguetes, mas o facto é que havia semanas que ela não o incomodava. E Leslie tinha de voltar a Los Angeles para falar com o seu agente e discutir alguns assuntos com ele, de modo que partiu por dois dias. Assim que viajou, Coco ficou apavorada. Recordou-se de como era a vida sem ele, de quanto o amava e de como seria terrível a sua ausência, quando ele voltasse à sua vida de sempre. Aquela vida de fantasia não podia durar eternamente. Ele era quem era e ela vivia num mundo muito distante. Recordou-se mais uma vez de que viviam de tempo emprestado e ainda estava deprimida quando ele voltou — O que aconteceu? Morreu alguém? — perguntou-lhe a brincar na noite em que regressou. Vira como ela estava triste e perguntou a si próprio se não teria a ver com a mãe dela. Coco guardara o segredo só para si e ainda estava perturbada com o assunto. Nunca lhe ocorrera que pudesse estar inquieta por sua causa. — Não. Tu foste-te embora e fiquei a pensar como vai ser quando partires. — Leslie ficou comovido com as palavras dela e sentiu-se da mesma maneira. Pensava constantemente no que poderiam fazer para que o seu futuro resultasse. E era o que queria, mais do que tudo. — Não há nenhuma lei que diga que não podes ir para Los Angeles comigo. Podíamos viver juntos lá. — Ela abanou veementemente a cabeça. — A minha mãe dava comigo em louca, os paparazzi comiam-nos vivos e as pessoas até iriam remexer o nosso lixo, sei muito bem como isso é. Recordo-me das histórias dos clientes do meu pai. Não posso viver dessa maneira. — Nem eu — disse ele, preocupado. Sabia que nunca a convenceria a viver em Los Angeles e precisava de lá estar, pelo menos uma parte do tempo. — Mas tu vives assim. Faz parte de ti. — Então podíamos viver aqui e eu ia e vinha quando fosse preciso. De qualquer forma, tenho de filmar no estrangeiro metade do tempo: podes vir comigo. — Os paparazzi também dariam connosco em doidos quando filmasses fora — disse ela tristemente. — O que estás a dizer, Coco? — perguntou ele assustado. — Não queres partilhar a vida comigo? É assim tão difícil lidar com os paparazzi que preferes desistir de


tudo? — Leslie parecia em pânico e ela abanou a cabeça. — Não sei o que fazer. Amo-te, mas não quero que esse lixo arruíne a nossa vida. — Nem eu. Há pessoas que conseguem. Só precisamos de refletir e esforçarmonos um pouco. Pelo menos tu não tens a mesma profissão, e isso deve ajudar. Até agora ninguém nos tem incomodado, por isso podemos desfrutar enquanto dura. Até ali tinham tido muita sorte e sido extremamente cautelosos nos sítios que frequentavam. Ele não ia às compras à cidade, nem aparecia nas lojas mais do que uma vez. Faziam as compras no Safeway à noite, já tarde, e ele usava um boné de beisebol e óculos escuros e passavam todos os fins de semana em Bolinas, escondidos, fazendo enormes caminhadas na praia sem ninguém por perto. Ele não se dava ao luxo de sair em público. Era um facto da sua vida. Fora para ali para se esconder de uma mulher e escondia-se agora com outra, tentando corajosamente protegê-la e ocultá-la da opinião pública, a ela e à sua história de amor. Era inegavelmente um desafio, mas sabia como fazer e, desde que em São Francisco ninguém descobrisse que estava a viver com ela, tudo estaria perfeito. Conforme lhe dizia frequentemente, até ali, tudo corria bem. Mas ambos sabiam que não poderia durar para sempre e mais tarde ou mais cedo, teriam de enfrentar o incómodo de ele ser uma grande estrela de cinema apaixonado por uma mulher. Era isso que Coco receava e odiava, por muito apaixonada que estivesse por ele. — Só não quero que isto acabe — murmurou ela tristemente. — Isto é, assim, desta maneira. — Pode não ser assim no futuro, mas podemos conseguir ter vida privada. E não vai acabar se não quisermos que acabe — disse ele, sério. — É connosco. — De seguida beijou-a e disse-lhe mais uma vez o quanto a amava. A última coisa que queria era que o romance terminasse. Queria ficar com ela para o resto da sua vida e da vida dela. Disso tinha a certeza. Como faria, era outra história, mas estava decidido a que tudo desse resultado por muito que custasse. Não se preocupara em alugar um apartamento em Los Angeles. Tinha decidido ficar em São Francisco com Coco até meados de setembro, daí a dois meses e meio. Começaria o filme seguinte em outubro e voltaria para a pré-produção e para as provas do guarda-roupa em setembro. Tinha dez dias de filmagens marcadas em Los Angeles, e, depois, iria para Veneza pelo menos durante um mês. Quando voltasse teria de novo a casa vaga. Por enquanto, não precisava de apartamento em Los Angeles. Precisava apenas de Coco e da casa que partilhavam. Sugeriu que passassem a semana em Bolinas depois do 4 de Julho e perguntou a Coco se não conseguiria arranjar um substituto para passear os cães, de modo a poderem ficar durante toda a semana na praia. Esta avisou todos os clientes com duas semanas de antecedência e descobriu que uma das amigas lésbicas de Liz ficaria


muito satisfeita em a substituir com os cães. Erin era uma mulher simpática, precisava de trabalhar e passou uma semana com Coco para aprender o que tinha de fazer. Seria a primeira vez que Coco tirava uma semana de férias em dois anos, e ela e Leslie estavam ansiosos. Assim que chegaram a Bolinas, Leslie instalou-se como se sempre lá tivesse vivido. Até lhe pediu emprestado o fato de mergulho de Ian para nadar no mar, embora receasse os tubarões. Mas, com um tempo tão quente e maravilhoso, não conseguiu resistir. Coco ficava com uma sensação estranha sempre que o via sair da água com aquele fato de mergulho. O corpo de Leslie era levemente diferente do de Ian, e ela sabia que ele não era Ian, mas, até que ele tirasse os óculos, o seu coração estremecia. Depois acalmava-se quando via o rosto de Leslie a sorrir-lhe, apercebendo-se do amor que lhe tinha e do lugar que ele ocupava na vida dela. Leslie era agora dono do seu coração. Ficavam os dois deitados na areia durante horas, procuravam conchas, colecionavam pedras, iam à pesca, faziam o jantar, liam, conversavam, riam, jogavam às cartas e dormiam horas esquecidas. Leslie passou algum tempo a trabalhar na carrinha e, para grande espanto de Coco, conseguiu que o motor ronronasse como um gatinho. Jeff veio várias vezes pedir-lhe conselhos, e Coco ria quando ele voltava para casa com o rosto manchado de óleo e as mãos pretas. Parecia encantado como um rapazinho que andasse a brincar na terra o dia inteiro. Leslie era um homem feliz. Os outros vizinhos convidaram-nos para um churrasco no 4 de Julho e Leslie queria ir. — E se as pessoas te reconhecem? — perguntou ela, preocupada. Tinham sido tão prudentes e cuidadosos até ali e tudo tinha resultado. Viviam uma vida idílica em paz e num anonimato total. — Os teus vizinhos já sabem quem eu sou e têm sido muito discretos. — Parecia confiante e seguro, talvez até demasiado para o gosto dela. — O resto da vizinhança pode não ser assim. — Se as coisas começarem a parecer estranhas ou perdermos o controlo, podemos ir embora. Para variar, pode ser bom fazer parte das comemorações daqui. Por fim, ela concordou. Foram tarde, para que já estivesse escuro, e entraram calmamente, servindo-se de duas cervejas. Leslie sentou-se num tronco e começou a falar com um rapazinho aproximadamente da mesma idade de Chloe. Por fim, a mãe veio buscar o menino e ficou espantada quando viu Leslie. A notícia espalhou-se rapidamente por entre o grupo. Jeff não fez qualquer comentário, mas havia ali cerca de cinquenta pessoas. Reagiram à notícia sensacional de que Leslie Baxter estava a beber cerveja no meio


deles, contudo, ninguém pediu autógrafos, nem o incomodou e, por fim, todos se aquietaram. Leslie teve uma agradável conversa com três homens acerca de pesca e as crianças adoraram-no. Tinha muito jeito para elas. Jeff olhou para Coco, piscoulhe o olho e depois veio ter com ela para conversarem. — Gosto dele — declarou simplesmente, em voz baixa. — Da primeira vez que nos encontrámos nos caixotes do lixo, fiquei um pouco desconcertado, mas ele é um tipo normal e vulgar. Não é arrogante como seria de esperar. Pareces feliz, Coco. Fico muito satisfeito por ti. — Jeff parecia verdadeiramente agradado e desfrutava da sua amizade com Leslie no pátio das traseiras. — Obrigada — disse ela, sorrindo-lhe. Havia anos que Jeff não a via assim e ela nunca se sentira tão bem em toda a sua vida. Tão segura, tão confiante, tão à vontade consigo própria, com aquilo que estava a fazer e com quem estava. Era um sentimento muito adulto e ela adorava-o. — Vamos perder-te para Los Angeles? Espero que não — acrescentou Jeff e ela abanou a cabeça. — Não. Vou ficar aqui. Creio que ele pode ir e vir. — Jeff acenou esperançado que ele o pudesse fazer. Leslie falara em comprar casa na cidade quando se viesse a saber o que se passava com eles e eles resolvessem o que queriam fazer. Nenhuma tão elegante como a de Jane, prometera a Coco, uma casa simples e bonita, talvez uma antiga casa vitoriana. Todavia, ele ainda queria passar algum tempo com ela na praia. Seria fácil Leslie ir e vir de Los Angeles para a cidade. Era demasiado cedo para resolver, mas já pensara nessa opção. Estava aberto a tudo o que desse resultado. Estava disposto a investir esforço, tempo e dinheiro naquela relação. Em troca, bastava-lhe um pequeno compromisso da parte dela, acerca da sua vida de ator de cinema e dos seus aspetos menos agradáveis e também do tempo que teria de passar em Los Angeles. Coco ainda se sentia um pouco aturdida. O resto da semana do 4 de Julho decorreu agradavelmente e, depois do churrasco, algumas pessoas cumprimentavam Leslie na praia quando passeavam os seus cães. Ninguém se fixou excessivamente nele, tentou tirar-lhe fotografias ou chamou a comunicação social. Eram respeitadores e sabiam que ele se tinha retirado para Bolinas como todos os que ali viviam. Se ele procurara um lugar para se esconder, não poderia ter encontrado melhor. Jane e Liz estavam em Nova Iorque há seis semanas a trabalhar no filme, quando Liz teve de ir a Los Angeles. Nessa altura, ainda não tinham encontrado outra pessoa para tomar conta da casa. Nunca mais tinham falado no assunto e Coco suspeitava que Jane nem tentara arranjar alguém. Mas sentia-se feliz a viver com Leslie e também não falara mais nisso. Liz planeava ficar em Los Angeles alguns dias, mas


Jane não podia deixar as filmagens. Liz telefonou-lhes e, como não tinha razões para ir a São Francisco, não o fez. Sabia que Leslie ainda lá estava e para elas não havia problema. Era uma companhia para Coco, se é que falavam um com o outro, coisa de que Jane duvidava. Pensava que seria pouco provável ele fazer amizade com uma jovem da idade da irmã e, para Jane, seria impossível ele querer andar com ela. Uma ou duas vezes Liz sugerira o contrário. Afinal, eram duas pessoas bonitas, inteligentes e simpáticas e viviam na mesma casa. Jane soltara uma gargalhada. — Deixa de inventar argumentos para filmes — disse Jane à companheira, troçando da ideia. — Leslie Baxter não vai envolver-se com alguém que passeia cães, mesmo sendo ela a minha irmã mais nova. Podes ter a certeza. Não faz o género dele. — Jane foi tão taxativa que Liz recuou. Mas pareceu-lhe estranho que agora que a ex-namorada estava a viver com uma estrela rock e já não o ameaçava, Leslie continuasse em casa delas. E tinha mais respeito por Coco do que Jane. Para Jane, Coco era ainda uma miúda, e uma miúda rebelde. A ideia passara pelo espírito de Liz, que sabia ver o que estava oculto, mas Jane nunca o tentara perceber. E como sempre fazia quando ia a Los Angeles, Liz visitou aquela a quem chamava «sogra querida». Era uma visita que fazia não só por respeito à mãe da sua companheira, mas também porque gostava muito dela. Ficou feliz por encontrar Florence em excelente forma e com melhor aspeto do que nunca. Contudo, Liz não pôde deixar de reparar que, quando ela chegou, um rapaz saiu da casa de Bel-Air. Parecia da idade de Jane e sorriu para Liz quando passaram um pelo outro. Afastou-se num Porsche prateado que ficara estacionado junto à casa. Sem saber bem porquê, Liz teve a estranha sensação de que o jovem tencionava voltar assim que ela se fosse embora. E, quando Liz foi à casa de banho, viu que havia uma camisola de homem, de caxemira, pendurada atrás da porta e duas escovas de dentes num copo. Disse para consigo que estava a ser demasiado desconfiada, mas, de qualquer modo, tocou no assunto quando começaram a beber champanhe no jardim. O lifting estava agora perfeito e Florence parecia quinze anos mais jovem. A sua figura estava mais elegante do que nunca. — Seria o teu novo namorado que, quando cheguei, eu vi sair daqui num Porsche? — perguntou Liz num tom brincalhão, e ficou espantada ao ver Florence empalidecer e engasgar-se com o champanhe. — Eu… claro que não… não sejas parva… eu… eu… — Calou-se a meio da frase e deixou a outra espantada quando desatou a chorar. — Por favor, não digas a Jane nem a Coco… Está a ser tão agradável. Pensei que era uma coisa passageira, mas já estamos juntos há quase um ano. Sei que não faz sentido. Ele pensa que eu tenho cinquenta e cinco anos. Disse-lhe que tinha tido Jane com dezasseis anos, o que é horrível, mas não sabia que outra coisa fazer. Ele tem


trinta e oito anos e devo parecer escandalosa, mas amo-o. Amei o Buzz enquanto estive casada com ele, mas ele já cá não está. E Gabriel é um homem adorável. É muito maduro para a idade que tem. Liz teve de se recordar que seria melhor fechar a boca e tentar não olhar fixamente para a sogra. Sempre fora mais solidária e delicada do que Jane, e Florence muitas vezes fizera dela sua confidente, mas nunca numa situação como esta. — Florence, se isso te faz feliz — começou Liz cautelosa, sem ter bem a certeza do que deveria dizer, ou qual seria a motivação daquele homem para estar com uma mulher muito mais velha do que ele. Era compreensível que Liz se sentisse preocupada. Sabia que Jane teria um ataque e, muito provavelmente, Coco também. — Que faz ele? É ator? — Parecia sê-lo e era suficientemente bem-parecido para tal, o que fez Liz suspeitar também dele. — É realizador e produtor. Faz filmes independentes. — Mencionou dois que tinham tido um êxito considerável, por isso, pelo menos, não se tratava de um gigolô, atrás do dinheiro dela. — Passamos juntos uns momentos fantásticos. Agora que o Buzz morreu e as miúdas já cá não moram, não posso estar sempre a escrever ou a jogar bridge. Quase todas as minhas amigas ainda estão casadas e eu fico sempre a mais. — Liz apercebeu-se de que aquilo era difícil, mais difícil do que a filha mais velha de Florence gostaria de admitir. E Florence ainda era suficientemente jovem para querer companhia e até mesmo sexo, embora esse facto sobressaltasse um pouco Liz. E sabia que Jane não gostaria de saber de uma coisa daquelas. — Vais contar a Jane? — perguntou Florence com uma expressão de pânico, enquanto Liz pensava no assunto. — Se não quiseres, não conto. — Florence não estava a cometer um crime, nem a fazer nada de mal. Não era mentalmente incapaz nem arriscava a sua saúde. Tinha um caso com um homem mais novo, vinte e quatro anos mais novo. Mas, por fim, pensou Liz, e porque não? Quem eram elas para lhe dizer que estava a fazer mal? Ou que não podia? Ou para a fazer sentir-se incomodada com aquilo? Mesmo assim, receava o que Jane pudesse fazer. Por vezes era muito dura. Apesar de Liz a adorar, conhecia bem as suas fraquezas, falhas e esquisitices e aceitar o que o próximo fazia nunca fora o seu forte. — Creio que deves ser tu a contar às tuas filhas — disse Liz delicadamente. — É essa a tua opinião? — Sim — disse Liz com sinceridade. — Quando achares que é o momento certo. Se é uma coisa passageira não é da conta delas. Mas se ele pensa ficar aqui por perto, tens todo o direito de te sentir amada e aceite pela tua família. É bom que elas saibam o que se passa na tua vida. — Creio que Jane vai ter um ataque — disse a mãe tristemente.


— Eu também — disse Liz, francamente. — Mas vai passar-lhe. Não tem o direito de te dizer como hás de governar a tua vida. Se for preciso, eu lembro-lho. — Obrigada — disse Florence, grata. Liz já tinha defendido outras causas dela com êxito. Mas ambas sabiam que seria difícil. — Se fosse a ti não me preocupava com Coco — acrescentou Liz. — É uma alma delicada e não é tão crítica como Jane. Querem ambas que sejas feliz. — Mas, provavelmente, não vão querer que eu tenha um namorado jovem. Não há dinheiro metido nisto — disse ela, para sossegar Liz e, indiretamente, Jane. — Disse-lhe que deveria casar-se e ter filhos, mas ele já é divorciado e tem uma criança de dois anos. E somos muito felizes. Não creio que alguma vez nos casemos — disse ela com ar de quem pede desculpa, como se estivesse a fazer uma coisa horrível. — Sabes, se fosses um homem… — disse Liz, sentindo-se subitamente zangada e com pena do embaraço e vergonha de Florence, que a obrigava a mentir às filhas. — Se fosses um homem, andarias por aí a exibir uma miúda com metade da tua idade por todas as festas possíveis, sobretudo na piscina do Hotel Beverly Hills, e gabavaste aos teus filhos, ao teu barbeiro, aos teus vizinhos. Já estarias casado e ela à espera de bebé. De facto, se fosse ao contrário, se fosses dez ou vinte anos mais nova e ele dez anos mais velho, seria exatamente isso que aconteceria, e todos o olhariam com inveja. É isso que é desagradável, esse padrão duplo que te obriga a esconderes-te e que faz com que um homem exatamente na mesma posição sinta que pode gritar aos quatro ventos o que se passa com ele. Florence, a vida é tua. Só cá estamos uma vez. Faz o que te fizer feliz. Fui casada antes de conhecer Jane e, provavelmente, poderia sê-lo para sempre. Não queria que ninguém soubesse ou pensasse que era lésbica. Estava tão ocupada em ser respeitável e em ser aquilo que os outros queriam que eu fosse que era absolutamente infeliz. O melhor que fiz foi deixar o meu marido e ir morar com Jane. Tive, por fim, a vida que sempre quis. E sabes, se o Buzz fosse vivo, tenho a certeza de que estaria a fazer exatamente a mesma coisa com uma mulher ainda mais nova. — Liz ergueu a taça de champanhe à saúde da mulher que era sua sogra por amor e não à face da lei. — A ti e a Gabriel, Florence. Uma vida longa e que sejam muito felizes. Choravam as duas quando ela disse isto e abraçaram-se durante muito tempo. Uns momentos depois, Florence ligou a Gabriel pelo telemóvel e disse-lhe. Queria apresentá-lo a Liz, mas esta achou que não seria justo conhecê-lo antes de Jane. Parecia-lhe que estava implicada numa conspiração e sabia que Jane pensaria o mesmo, embora a pudesse acalmar. Prometeu que o conheceria mais tarde, assim que Jane e Coco soubessem da existência dele. Pouco depois, levantou-se para partir e as duas mulheres abraçaram-se à porta. — Obrigada — disse Florence. — És uma pessoa boa e decente. A minha filha


tem muita sorte. — E eu também — disse Liz a sorrir e voltou para o carro que a trouxera até ali. Já se dirigia à estrada quando o Porsche regressou. Liz baixou o vidro, sorriu e acenou-lhe deixando-o espantado, mas retribuindo o sorriso. — Bem-vindo à família — pensou Liz, enquanto se dirigia para o aeroporto. Já imaginava a explosão quando por fim Florence tivesse coragem de dizer a Jane. Liz faria os possíveis por amortecer o golpe, mas conhecia a companheira. Ia ser um inferno. Pelo menos durante algum tempo.


CAPÍTULO 7 Duas semanas depois, no final de julho, Florence encheu-se finalmente de coragem e telefonou a Jane. Decidira contar-lhe a ela primeiro. E, conforme esperava, Jane ficou furiosa. — Tu, o quê? — perguntou Jane, incrédula. — Tens um namorado? Quando é que isso aconteceu? — Há cerca de um ano — confessou Florence, tentando parecer mais calma do que na realidade se sentia. Bebera três taças de champanhe antes de telefonar. — É um homem muito simpático. — O que faz ele? — resmungou Jane. — É produtor e realizador de filmes. — Eu conheço-o? — Jane estava ainda chocada pelo facto de a mãe lhe ter ligado a dizer que tinha um namorado. — Como se chama? Suponho que tenha a sua própria produtora. Com a idade dela era óbvio. Deveria ser alguém importante, que conhecessem há muitos anos. Mesmo assim, parecia um pouco estranho. Jane não gostava de pensar na mãe daquela maneira. — Gabriel Weiss. — Jane pensou um pouco e acenou com a cabeça. Até ali nada de assustador. O nome era respeitado no meio. — Conheço o filho que tem o mesmo nome. Fez uns bons filmes. Não sabia que o pai também era produtor. — Não é. O pai era neurocirurgião e morreu há dez anos. Estamos a falar da pessoa que tu conheces. — Florence sentiu-se de repente mais corajosa. Chegara o momento da verdade e o champanhe ajudava-a. Gabriel dissera-lhe nesse dia que, não importava o que dissessem, ele amava-a e nada havia de errado naquilo que faziam. Amar alguém, apesar de uma considerável diferença de idades, não era contra a lei. Agora, recordava-se disso. Tinha sessenta e dois anos, mas Gabriel ainda pensava que ela tinha cinquenta e cinco. Não tinha coragem para lhe contar a verdade. — Espera aí, mãe — disse Jane parecendo confusa. — O Gabriel Weiss que eu conheço tem doze anos. — Nada disso. Tem a tua idade. Vai fazer trinta e nove para o mês que vem. — E quantos anos tens tu? — perguntou cruelmente. — Sessenta e dois, quase sessenta e três? Não é um pouco ridículo? Direi até que é muito desagradável que uma mulher da tua idade ande com um homem da idade dele. O que se passa? Precisa de dinheiro para fazer outro filme? — Liz acabara de entrar na sala e sentiu-se


maldisposta com o que ouviu. Detestava quando Jane agia assim, entrando a matar. Já a tinha ouvido fazer o mesmo com Coco e com outras pessoas. Lá no fundo, Jane era boa pessoa, mas destruía os outros. De qualquer modo, Liz amava-a, mas não lhe admitia aquilo. Havia, porém, quem admitisse. — Acho que é a coisa mais embaraçosa, revoltante e vergonhosa que já ouvi. Espero que ganhes juízo o mais depressa possível. A mãe surpreendeu-a. — E eu espero que tu recuperes a tua boa educação o mais depressa possível. Gabriel é um homem respeitável. Não precisa do meu dinheiro. E eu sou uma mulher respeitável e sou tua mãe. E estou a dar-te a honra de to dizer antes que o saibas por outra pessoa. Não estamos a fazer nada de mal, nem nada que um homem não fizesse se tivesse oportunidade. Gabriel é vinte e quatro anos mais novo do que eu e, se nós podemos lidar com esse problema, tu também podes. Depois falo contigo — disse e desligou enquanto Jane continuava a falar atabalhoadamente do outro lado. Jane não podia acreditar no que acabara de ouvir, e a mãe desligara-lhe o telefone. Pela primeira vez. E já o deveria ter feito antes. Costumavam entender-se as duas, mas, desta vez, Jane tinha ido longe demais e a mãe também era leal a Gabriel. Jane voltou-se para Liz com ar incrédulo. — A minha mãe está com Alzheimer — disse com uma expressão de agonia. — Como chegaste a essa conclusão? — perguntou Liz, tentando manter-se séria. — Tem um caso com um fulano da minha idade. Gabriel Weiss. — E ele é má pessoa? — perguntou Liz calmamente. — O que sei eu? É bom produtor. Mas não pode ser boa pessoa, se anda enrolado com a minha mãe que tem o dobro da idade dele. — Ela não aparenta a idade que tem — recordou-lhe Liz. — E há fulanos com a idade dela e mais velhos que fazem o mesmo com mulheres com metade da idade deles. Não era aquilo que Jane queria ouvir de Liz. — Ela é minha mãe, por amor de Deus! — Tinha lágrimas nos olhos quando Liz se sentou ao pé dela e lhe passou o braço pelos ombros. — E se ela tivesse reagido da mesma maneira quando tu lhe disseste que eras lésbica? — E reagiu! — Jane riu através das lágrimas. — Durante dois dias, ameaçou matar-se. E depois disse ao meu pai, mas ele foi fantástico. Creio que estavam os dois desiludidos, mas sempre me apoiaram depois disso. Tens razão, creio eu. Mas, que


merda, Liz, porque teve ela de fazer uma coisa destas? E se o fulano anda só atrás do dinheiro dela e ela anda a fazer figura de parva? — E se não for assim? E, mesmo que seja, se ele a fizer feliz por algum tempo? Não é fácil envelhecer. Ela está sozinha em Los Angeles. — Tem milhões de fãs. Vende milhões de livros todos os anos. — Os fãs não lhe aquecem os pés à noite, nem a abraçam quando ela está triste. E se nós não nos tivéssemos uma à outra? — perguntou Liz, muito direta enquanto Jane limpava os olhos. — Eu morreria. A minha vida seria um deserto sem ti, Liz. Tu és tudo o que importa na minha vida. És a minha família. — Tenta imaginar a vida sem isso. O teu pai era tudo para a tua mãe. Ela já não o tem. Agora tem-no a ele, que tanto pode ser má como boa pessoa. De qualquer modo, tem o direito de o descobrir, de não estar só e de partilhar a vida com quem quiser. — O que te faz tão sábia, sendo tu tão nova? — perguntou Jane e, a rir, assoou-se ao lenço de papel que Liz lhe estendeu. — Ela não é minha mãe, mas é boa pessoa e eu gosto muito dela. Também quero o melhor para ela. Vamos dar-lhe uma oportunidade. Creio que a merece. Jane baixou a cabeça enquanto pensava no assunto e depois abraçou Liz. — Acho que a minha mãe é maluca, mas tu és maravilhosa. Liz sorriu. O laço que as unia era cada vez mais forte. — Muito bem. Então, durante dois dias, podes dizer que te vais suicidar por causa disto, tal como ela fez quando tu te assumiste como lésbica. Mas, depois disso, talvez possas esquecer o assunto para bem dela. Vamos ver o que resolves. — Vou pensar nisso — disse Jane em voz baixa e depois telefonou a Coco. Era um daqueles momentos em que as irmãs precisavam uma da outra e os laços de família eram mais fortes. Coco estava a rir histericamente com Leslie quando o telefone tocou. Ele estivera a contar-lhe a história de uma série de infortúnios que haviam acontecido durante a rodagem de um dos seus primeiros filmes. Ela adorava aquelas histórias e ele contava-as muito bem. Ainda ria quando atendeu o telefone e ouviu a voz sombria de Jane do outro lado da linha. — A nossa mãe enlouqueceu. — Foi assim que começou a conversa. Coco calculou imediatamente o que se seguiria, já que o tinha visto com os próprios olhos. — Tem um caso com um homem da minha idade. Coco ficou aliviada por saber que não era mais novo. Depois de o ter visto,


receara que ele fosse da sua idade. — Quem te disse? — perguntou Coco calmamente. — Ela. Não pareces surpreendida — disse Jane em tom acusador. — Suspeitava que se passasse qualquer coisa no género. Há algum tempo que a mãe andava muito feliz. Ultimamente até a deixava em paz. Quase não lhe telefonava, o que era uma novidade. Antes, telefonava várias vezes por semana para dizer a Coco que tudo aquilo que ela fazia na vida não estava certo. Recentemente, os telefonemas eram raros, breves e superficiais. — Então o que é que achas? — perguntou Jane. Coco suspirou a pensar no assunto. — Não sei, em parte, acho que ela tem o direito de fazer o que quer. No entanto, também me parece que não está certo e que é uma loucura. O que sei eu? Vivo como uma hippy numa cabana de Bolinas porque me agrada. Quase me casei com um instrutor de mergulho e parti para a Austrália. Tu és lésbica e estás praticamente casada com uma mulher. Que direito tenho eu de lhe dizer o que está certo e o que está errado para ela? Talvez o fulano seja boa pessoa. Ela é suficientemente esperta para descobrir se ele não o for. A nossa mãe não é parva. — Desde quando te tornaste tão adulta e filosófica? — perguntou Jane, desconfiada. — Ela já te tinha contado? — Não. É a primeira vez que ouço essa história, e por ti. Mas, quem sabe, talvez o pai tivesse feito a mesma coisa com alguém mais jovem, talvez até com uma Barbie desmiolada. Quando as pessoas dessa idade ficam sozinhas, fazem esse tipo de coisas. Ninguém quer ficar sozinho — disse ela, e sorriu para Leslie que lhe fez sinal de que tudo estava a correr bem. — Não pareces importar-te — disse Jane em tom cortante. — E, com a idade dela, já não deveria fazer grande diferença. — Ora essa, porquê? Porque haveria ela de querer ficar sozinha depois de tantos anos com o pai? — Porque haveria ela, na sua idade, de querer ficar com um homem muito mais novo e fazer figuras tristes? — Para Jane, aquilo não fazia sentido. — Talvez porque assim se sinta mais jovem. Creio que está muito sozinha. — Deveríamos ir visitá-la mais vezes — disse Jane, franzindo a testa. — Não é a mesma coisa, bem sabes. Olha, Jane, também não me agrada, mas não é um crime. — É de um mau gosto incrível. E apoquenta-nos.


— Ela nunca diz isso por tu seres lésbica. — Coco marcara um ponto ao dizê-lo e a irmã ficou por momentos em silêncio. — Sempre apoiou o modo como vives. — Não tinha escolha. Eu sou assim. — De qualquer forma, poderia ter posto objeções e não o fez. Sempre se orgulhou de ti. — Mas não de mim, queria Coco dizer, mas calou-se. Nem a mãe nem a irmã a tinham apoiado, contudo ela estava sempre disposta a defendê-las. Não era justo, mas era assim que funcionava aquela família. — Ela também se orgulha de ti — disse Jane em voz baixa, apercebendo-se daquilo que a irmã estava a pensar e sentindo-se subitamente embaraçada pelas suas próprias críticas. Coco nunca as criticava. — Não, não se orgulha — disse Coco com as lágrimas nos olhos. — E tu também não. Não é segredo. Mas creio que agora lhe devemos algum respeito, ou, pelo menos, temos de aceitar o que ela está a fazer. Jane ficou em silêncio durante muito tempo. Pensava em todas as vezes que acusara Coco de não fazer bem as coisas e de ser uma fracassada. Sentia-se agora muito mal e queria revelar-lhe um segredo. — Tenho de te contar uma coisa — disse Jane olhando para Liz, e a companheira concordou. — Estou grávida de doze semanas. Recorri à inseminação artificial antes de virmos para Nova Iorque. Não quisemos contar a ninguém senão quando tivéssemos a certeza. Fizemos o mesmo no ano passado, mas abortei; desta vez está tudo bem. Coco ficou aturdida. Não lhe tinham contado nada e não fazia ideia de que planeavam aquilo. Mas, pensando bem, recordou-se de que Liz sempre quisera ter filhos. Parecia irónico a Coco que fosse Jane a ter o bebé, quando Liz era de longe a mais afetuosa e maternal das duas, mas Jane era uns anos mais jovem e talvez fosse essa a razão. — Parabéns! — disse Coco, sorrindo, e ainda surpreendida. — Quando nasce? — No princípio de fevereiro. Nem acredito que isto está a acontecer. Ainda não se nota. Vou estar de seis ou sete meses quando formos para casa, dependendo do que houver para fazer. — Mal posso esperar! — disse Coco a rir. E depois lembrou-se. — Talvez possas então ser mais simpática para a mãe. Se podes ter um filho com uma mulher e eu pude abandonar a faculdade de Direito e viver como um «fenómeno» como vocês dizem, talvez ela tenha o direito de ter um namorado da tua idade. Quem somos nós para julgar os outros e dizer-lhes o que devem fazer? Jane sabia que o que a irmã dizia era verdade. Fez um longo silêncio, enquanto


pensava naquilo. Estendeu a mão para Liz e apertou-lha. Liz acariciou-lhe delicadamente a barriga e olharam-se nos olhos. — Desculpa todas as coisas estúpidas que te disse — murmurou Jane com sinceridade. — Adoro-te e espero que o bebé se pareça contigo — disse com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. — Também te adoro — disse Coco. E, naquele instante, Jane foi a irmã mais velha com que ela sempre sonhara e que nunca tivera. Desligaram minutos mais tarde. Coco limpou os olhos e fitou Leslie com um sorriso melancólico. — Estou muito orgulhoso de ti — disse ele suavemente, abraçando-a. — Ela pediu-me desculpa. Descobriu o que se passava com a minha mãe e ficou furiosa. — Disseste tudo o que devias — elogiou-a, o que para ela foi muito importante. — Afinal, ela também… — E depois olhou-o com um sorriso. — Vai ter um bebé. — Interessante. Talvez a maternidade a torne mais amável. — Parece que já tornou — disse Coco, pensando na doçura das palavras da irmã. Leslie beijou-a e ela fechou os olhos. — Gostaria de um dia ter um bebé contigo — murmurou, e ela assentiu com a cabeça. Também lhe agradava a ideia, embora nunca tivesse pensado no assunto. Por vezes, era difícil absorver tudo. Tinha acontecido tanta coisa em tão pouco tempo.


CAPÍTULO 8 Nos dias seguintes, Coco e Jane falaram várias vezes com a mãe. Jane ainda estava perturbada por ela ser muito mais velha do que o namorado e, embora Liz e Coco a tivessem convencido de que a mãe tinha o direito de andar com quem quisesse, Jane ainda considerava incongruente e ofensivo que a mãe se envolvesse com um homem da idade de Gabriel. E ainda não estava completamente convencida de que ele não andasse atrás do dinheiro dela. Todavia, concordou encontrar-se com ele e dar-lhe uma oportunidade quando ela e Liz voltassem da costa oeste. Seria só alguns meses depois. Jane ainda não contara à mãe do bebé. Dissera que tinha muito tempo. Por fim, Liz tinha-a convencido alguns dias mais tarde e ela aceitara dizer-lhe que estava grávida. Florence ficara emocionada e encantada. — Sabes, uma das coisas que me preocupou quando me disseste que eras lésbica — admitiu — era pensar que nunca terias filhos. Nunca me passou pela cabeça que o fizesses assim. Não te preocupa não saberes quem é o pai? — perguntou inocentemente. — Nem por isso. Selecionámos o dador de esperma de entre perfis muito apurados. Conhecemos a história da sua família, as suas origens, boletins clínicos, habilitações, idiossincrasias. Ele e o pai andaram ambos em Yale. Tal como os pais, Jane era uma snobe académica e nunca teria selecionado uma pessoa sem formação universitária. Ele era estudante de medicina, um jovem saudável de origem sueca. Sabiam tudo a respeito dele, exceto o nome. Jane disse à mãe que pensava fazer uma amniocentese para ter a certeza de que o bebé era geneticamente saudável, e também gostariam de saber o sexo. Tanto ela como Liz esperavam que fosse uma menina. Florence nem podia acreditar que ia ser avó e, quando pensava nisso, perguntava a si própria se Gabriel pensaria nela de maneira diferente. Nos últimos dias, as filhas tinham-na surpreendido muito. Com Coco tudo fora mais fácil, mas era óbvio que a filha mais nova também ficara perturbada. Tivera um pouco mais de tempo para se habituar à ideia de que a mãe estava envolvida com um homem muito mais novo desde que os vira em BelAir. — Obrigada por não estares zangada comigo — disse a mãe em voz baixa. Por fim e, como sempre, Coco fora muito boa para ela. — Não estou zangada. Estou apenas preocupada contigo — explicou Coco. Sentia-se estranha por ter agora aquela relação com a mãe. E Florence parecia mais inclinada a confiar nela do que em Jane, o que também era estranho. Em todos aqueles anos, a mãe e a irmã mais velha tinham sido muito mais chegadas. Em parte devia-se à idade de Jane e ao facto de Florence e a filha mais velha terem desfrutado


de uma relação de mãe e filha única até Coco nascer. Assim, Coco sempre pensara que Jane tinha uma vantagem sobre ela e que partilhava com a mãe um laço que raramente ou quase nunca a incluía. Não a deixavam entrar. Pensavam de modo semelhante, eram igualmente críticas, obstinadas, e partilhavam as mesmas ideias. Mesmo em criança, Coco fora diferente delas. Sentira-se uma estranha desde que nascera. Sempre se lembrara de a mãe e Jane serem ótimas amigas. Jane fora para a universidade quando Coco tinha seis anos e, em vez de se tornar a filha favorita depois disso, Coco continuava a ser excluída, criada e entretida por amas, enquanto a mãe trabalhava. Florence estava mais preocupada em escrever os seus livros do que em acompanhar a filha mais nova. Era sempre por Jane que deixava o trabalho, com quem passava algum tempo, com quem viajava, que mais lhe interessava quando já adulta. Coco sentia que não tivera êxito em nenhuma ocasião da sua vida. E agora, pela primeira vez, era Florence Flowers, sempre perfeita, irrepreensível, conhecedora de tudo, árbitro do bem e do mal que se sentia em desgraça. Era uma sensação a que não estava habituada e apoiava-se na mais delicada das suas filhas para conseguir algum conforto. — Como conheceste o Gabriel, mãe? — perguntou Coco numa das suas longas conversas a respeito dele. Como ele parecia estar firmemente envolvido na vida da sua mãe, ela queria saber tudo o que se passava. Florence tomava aquilo como aprovação e sentia-se grata. Ficara muito magoada com o que Jane lhe dissera. E mesmo tendo já pedido desculpa, o mal estava feito. Acusara-a de estar senil, com Alzheimer, de ser uma velha idiota que permitia que um homem, que nada mais queria do que o seu dinheiro e a sua fama, se aproveitasse dela. Coco apercebia-se de que até podia ser verdade, mas fora mais cautelosa naquilo que dissera. Embora a sua relação com a mãe fosse difícil, era basicamente uma pessoa boa e não a queria magoar. — No ano passado vendi um dos meus livros à Columbia para fazerem um filme e Gabriel foi designado para o produzir e realizar. Trabalhámos juntos no guião, embora não creia que comece a ser rodado senão no próximo ano. Divertimo-nos muito com a colaboração. É um homem interessante e sensível — parecia de súbito tímida, o que sobressaltou a filha, pois era um tom a que Coco não estava habituada. — E ele diz o mesmo a meu respeito. Já esteve envolvido com uma mulher mais velha na universidade, mas não com uma diferença de idades tão grande — admitiu. — Tinha uma namorada de trinta anos, quando ele tinha dezoito. — Era evidente que preferia as mulheres mais velhas. — Estou desejosa de o conhecer — disse Coco calmamente. Era verdade por várias razões. Embora não o dissesse, sentia ainda uma forte desconfiança em relação àquele homem. Não parecia certo ou normal ficar com uma mulher vinte e quatro anos mais velha do que ele, embora tivesse de admitir que a mãe não parecia ter a


idade que tinha e que ele também não sabia toda a verdade a esse respeito. Mas, mesmo assim, pensava que havia dezassete anos de diferença entre eles, o que era muito. Interrogava-se se a mãe teria uma coisa daquelas na ideia quando fizera o segundo lifting, logo após a morte do marido. Provavelmente não, mas agora ocorrialhe isso. Depois fizera uma lipoaspiração. Florence sempre fora muito vaidosa, o que revoltava Coco por fazer parte da vida de Hollywood que conhecia. Jane também era vaidosa, embora não tanto como a mãe, e Coco sabia que, nos últimos anos, tinha feito aplicação de Botox várias vezes. Coco nem se conseguia imaginar a fazer tais coisas. Aquele tipo de vaidade e excessiva preocupação com a imagem eram-lhe totalmente estranhos. — Ele também quer conhecer-te — disse Florence em resposta ao que a filha lhe tinha dito. Era um alívio ouvi-la dizer aquilo. Ficara aterrorizada que ambas não a quisessem ver mais. Jane pensara nisso, mas fora consideravelmente acalmada por Liz. — E o que achas do bebé? — perguntou-lhe Coco, num tom tranquilo. Não imaginava que ser avó fosse aquilo em que a mãe pensava naquela ocasião. Certamente que ficaria pouco à vontade. — Penso que é bom para elas. Sempre pensei que fosses tu a ter filhos. Nunca me ocorreu que fizessem uma coisa assim. É um pouco estranho não saberem quem é o pai. — Mas o que Florence fazia também era um pouco estranho. — Jane diz que não queria as complicações de o fazer com um amigo. Deste modo, o bebé é apenas dela e de Liz. Eu percebo-a. Provavelmente seria estranho ter como pai do bebé alguém que conhecesse. Ainda falta bastante tempo… seis meses. Suponho que todos estaremos habituados à ideia quando o bebé nascer. — Não sei muito bem — disse Florence francamente. — Neste momento tenho outras coisas em que pensar. E vou começar um novo livro. — O choque e a humildade começavam a desaparecer-lhe da voz. Quase nunca se esquecia de quem era, embora a fúria de Jane a tivesse acalmado um pouco, pelo menos, durante uns dias. Quase sentia que ser avó, agora com um homem mais novo na sua vida, seria a derradeira vingança de Jane sobre ela. Não havia dúvidas para todos aqueles que a conheciam, que Florence Flowers era muito ciosa da sua intimidade e a única pessoa que, de vez em quando, deixava entrar no seu mundo era Jane. Apercebia-se tristemente de que agora, com um bebé, as coisas iriam mudar. A dedicação de Jane passaria para a criança e para Liz. E, de súbito, Florence sentia-se de fora, o que a aproximou ainda mais de Gabriel. Nessa noite falou com ele acerca das filhas. Gabriel já sabia que ela tinha conversado com elas acerca dele e sentia-se nervoso. Não imaginava que o aceitassem e tinha razão.


— Ainda estão aborrecidas? — perguntou nervoso, enquanto, nessa noite, jantavam no terraço do Ivy. Florence vestia calças brancas, sandálias douradas de salto alto e uma blusa de seda azul-turquesa. Estava melhor do que nunca e era difícil acreditar que se irritara com elas, quando o olhava com ar de adoração. — Aquilo passa-lhes. Já está a passar — garantiu. — Coco ficou sobressaltada, mas é uma jovem muito doce. Disse que queria que eu fosse feliz e que gostaria de te conhecer da próxima vez que cá vier, e pode vir a qualquer momento. Está a tomar conta da casa da irmã. Não disse uma palavra acerca do bebé, nem tencionava falar no assunto até não ter outro remédio. Não queria que ele começasse a vê-la como uma avó. A diferença de idades já chegava. No último ano não lhe parecera assim tão grande, mas era evidente que o era para Jane. — A minha filha mais velha é mais difícil — disse enquanto ele mandava vir champanhe para ambos. Agora tinham alguma coisa para celebrar, podiam deixar de se esconder e de se preocupar com o facto de as filhas descobrirem. Florence também se preocupara com a comunicação social. Era uma celebridade e o seu romance era uma história apetecível que acabaria nos tabloides e nas revistas. Até ali tinham tido sorte e sido cuidadosos. — Jane estava muito zangada contigo? — perguntou Gabriel, preocupado enquanto brindava com champanhe. Vestia uma t-shirt e calças de ganga brancas e calçava mocassins de crocodilo sem meias. Os sapatos haviam sido um presente de Florence muitos meses antes. Ela gostava de lhos ver calçados e ele usava-os muitas vezes quando estava com ela. Também lhe tinha comprado uns pretos. — A princípio sim — disse Florence com franqueza acerca da sua filha mais velha. — Creio que nunca lhe ocorreu que uma coisa destas pudesse acontecer. Penso que ficaram perturbadas por causa do pai. És o primeiro homem da minha vida desde que ele morreu. — Aquilo não era inteiramente verdade, mas ela pensou que ele gostaria de o ouvir. Tivera dois breves casos no ano em que Buzz morrera e nunca falara deles às filhas. Eram homens muito apagados e nunca se interessara muito por eles. Mas estava loucamente apaixonada por Gabriel Weiss e encantara-se com ele no momento em que o vira. Ele afirmava ter sentido o mesmo por ela. O romance fora rápido e tórrido e continuava a sê-lo. — Penso que terão de se habituar. Jane tem uma companheira muito doce e amorosa. Da última vez que estive com ela, prometeu fazer com que Jane compreenda o que se passa comigo. E acho que conseguiu. Liz não ficou nada chocada connosco. — Ele sorriu parecendo compreender a filha dela. Segundo ouvira dizer no seu meio profissional, Jane Barrington era do outro mundo. — A minha idade deve ter sido um choque para ela — disse simplesmente. — Nunca penso nisso quando estou contigo. — Sorriu-lhe e beijou-a no pescoço, bem


ciente do decote da camisa de seda, difícil de ignorar. Adorava o modo como ela se vestia, como era sensual e elegante ao mesmo tempo. Era a mulher mais sedutora que conhecera. — Sinto-me como se fôssemos da mesma idade. — Gabriel dizia sempre as coisas certas e Florence acreditava nele. Talvez fosse uma loucura, mas tinha a certeza de que ele era sincero. E Liz tinha razão. Se fosse um homem, ninguém se importaria, e até o aprovariam e teriam inveja. — Jane vai compreender — garantiu-lhe ela. — Neste momento tem mais em que pensar. Está até aos cabelos com os problemas dos sindicatos nos exteriores do seu filme. O nosso romance é a última coisa que a vai preocupar. Já para não falar no bebé, de que ele nada sabia e que Florence esperava que ele ignorasse durante muito tempo. Talvez nessa altura já tivessem casado. Gabriel falara no assunto durante todo o verão e ela adorava a ideia. O único obstáculo que tinham de ultrapassar eram as filhas, e ela não as ia perturbar ainda mais falando em casamento. Queria que elas o conhecessem primeiro e se acalmassem. Durante o resto do jantar falaram do filme em que ele estava a trabalhar. Durante vários meses, ela tinha-o ajudado a rever o guião, dando-lhe excelentes conselhos. Trabalhavam bem em equipa e eram de facto uma ótima parceria em tudo o que faziam. Ela reparou que algumas pessoas os olhavam com inveja enquanto acabavam de jantar. As mulheres olhavam-na, olhavam espantadas para Gabriel e voltavam a olhar para ela cheias de admiração, ou pelo menos assim o julgava. Ninguém se referira a ele como seu filho. Gabriel parecia um pouco mais velho do que de facto era. A diferença entre eles parecia mais de dez anos do que de vinte e quatro. E uma mulher com um homem dez anos mais novo era muito comum nestes tempos. Demi Moore e Ashton Kutcher tinham aberto o caminho a casais como eles. Deviam invejá-la, pensava Florence, não criticá-la ou evitá-la. Voltaram depois para casa dela. Há já uns meses que Gabriel passava com ela a maior parte das noites. E, de vez em quando, quando queriam fazer alguma coisa de especial, passavam o fim de semana no Hotel Bel-Air. Quando lá ficavam, Gabriel pagava. Exceto raros presentes, nunca deixava que Florence lhe pagasse o que quer que fosse. Dera-lhe uma pulseira de brilhantes na data em que tinham feito seis meses de namoro e queria oferecer-lhe o anel de noivado no ano seguinte, mas ela ainda não o sabia. Já o escolhera. Esperava que, por essa altura, as filhas já o conhecessem e gostassem dele. Não queria dividir a família, mas estava loucamente apaixonado pela mãe delas, para o pior e para o melhor. Considerava-a fantástica. Gabriel estendeu-se na cama dela como se lhe pertencesse e depois agiu como se ela lhe pertencesse. A descoberta do sexo com ele tinha sido uma experiência única. Nunca fora tão boa nos seus trinta e seis anos com Buzz, nem mesmo quando eram


jovens. Gabriel era um amante incrível. Tinha recentemente falado à mãe do seu caso e esta ficara tão perturbada como Jane. Mas começara também a compreender que nada podia fazer. Gabriel dissera-lhe que estava apaixonado e que já decidira, e ela conhecia bem o filho. Sabia que nada neste mundo afastaria Gabriel daquilo que ele desejava. Era um homem extremamente persistente. Também fora assim com Florence, quando ela, a princípio, lhe resistira, mas não por muito tempo: cedera e abandonara-se à miríade de prazeres que partilhavam. O sexo não era o principal da lista, embora fosse importante. Ele adorava conversar com ela, rir com ela, escutá-la e abraçá-la durante horas depois de terem feito amor. Gostava de tudo nela, do espírito, do corpo, do estilo, da força, da fama, da reputação e do enorme talento. Não havia mulher que se lhe comparasse e receava sentir-se insignificante em comparação com ela, mas, de certa forma, Florence puxara-o para o seu nível. Estava a aprender muito com ela acerca de escrita, disciplina, talento e humor. Graças a ela, a sua escrita melhorara incomensuravelmente, tal como o seu trabalho de realização. Apercebia-se disso e Florence também. Sentia-se como se estivesse aos pés do seu mestre e era isso que acontecia, de certo modo. Quando se deitou na cama com ela, tirou-lhe as sandálias e atirou-as para o chão. Seguiram-se as calças brancas e a blusa de seda azul-turquesa. Por baixo usava uma tanga e um sutiã de renda azul-pálido, que o fizeram sorrir de prazer. — Não há mulher mais sexy neste mundo — disse, admirando-a. O corpo dela ainda era esguio e firme. Dia sim, dia não, Florence exercitava-se com um dos melhores treinadores. Fazer todas as noites amor com Gabriel era uma motivação. E ela ensinara-lhe coisas que ele não sabia. Florence despiu-o lentamente no seu modo lento e sensual que o punha louco e, momentos depois, estavam nus nos braços um do outro. Agora, mandava embora a empregada à noite e, quando estava calor, faziam amor na piscina. Nessa noite preferiram ficar na cama enorme com dossel cor-de-rosa, que ele já conhecia há um ano. Beijou os lábios de Gabriel, deslizou para cima dele e cavalgou-o fazendo-o gemer em poucos segundos. Assim ficou, provocando-o e dando-lhe prazer, atraindoo e afastando-se dele, e percorrendo-o com a boca. Ele devolveu-lhe as carícias e, lentamente, a maré mudou e Gabriel passou a controlar, enlouquecendo-a como ela o enlouquecera. Só muito depois ficaram saciados e tudo terminou, e ela deixou-se ficar nos braços dele, satisfeita. Gabriel estava exausto, começando a rir enquanto a abraçava. Não sabia o que as filhas dela pensariam dele e, naquele momento, pouco lhe importava. Nunca amara assim uma mulher. Minutos depois adormeciam nos braços um do outro. O resto do mundo não existia para eles.


CAPÍTULO 9 Em meados de agosto, Leslie recebeu um telefonema da mãe de Chloe. Fora convidada para passar duas semanas num iate no Sul de França. Passara vários fins de semana com Chloe em Southampton e havia um ano que trabalhava na mesma peça da Broadway. — Desculpa fazer-te isto, Leslie — disse Monica, que geralmente o avisava com mais antecedência. — Preciso de umas férias e posso não ter outra oportunidade senão daqui a muitos meses. Têm uma boa substituta para mim e adorava ir a SaintTropez de barco. Podes tomar conta de Chloe durante duas semanas? Normalmente ele teria saltado de contente, mas não tinha ideia como Liz e Jane reagiriam à ideia de ter uma criança em casa. Estavam agora à espera de uma, mas era diferente. Uma menina de seis anos era uma presença mais visível do que um recém-nascido. Mas, como queria que Chloe conhecesse Coco, esperava que elas aceitassem. — Penso que sim — disse, parecendo pouco à vontade. — Neste momento estou a tomar conta da casa de umas amigas. Tenho de lhes perguntar se não se importam de ter cá uma menina. Se se importarem, creio que posso ir para um hotel. Mas aí perderia o seu anonimato e todos saberiam que estava na cidade. Por enquanto, não queria ser visto com Coco. Não precisava das dores de cabeça da comunicação social. — Já te telefono a dizer — prometeu e ligou imediatamente para Jane. Apanhou Liz que tinha o telemóvel da companheira enquanto esta estava nas filmagens. Explicou-lhe o seu dilema e disse que iria com a filha para um hotel se assim o preferissem. — Não sejas tolo — garantiu Liz. — Será melhor que nos habituemos a ter crianças em casa. Em breve teremos uma. — Não tinha a certeza de que Coco lho tivesse dito, ou até que fosse suficientemente amiga dele para o fazer. Sabia que Coco dissera a Jane que mal se viam, mas Liz não conseguia acreditar nisso. — Ouvi dizer. Parabéns para as duas e agradeço muito que me deixem ter a minha filha aqui. É muito boazinha e bem-comportada. A mãe leva-a a todo o lado. — Mas não ao sul de França de iate, pensou Liz. — Nem posso esperar para lhe mostrar São Francisco e penso que eu e Coco a podemos levar à praia. — Tenho a certeza de que ela vai adorar — disse Liz, interessada. O que ele dissera não coincidia com a história de Coco garantir à irmã que raramente se viam. — A propósito, tu e Coco têm-se dado bem? — perguntou Liz num tom inocente, para ver o que descobria. Não conseguia resistir. Não sabia bem porquê, mas gostava


da ideia de ver aqueles dois juntos. Sentia um enorme respeito por Coco, muito mais do que Jane sentia pela irmã. Ao contrário da companheira, Liz não pensava em Coco como um caso perdido, mas sim como uma pessoa completamente diferente da irmã, e sabia que a morte de Ian a tinha afetado enormemente. Liz também gostava muito de Leslie e, embora ele fosse uma estrela, considerava-o um homem bom, com ótimos princípios. — Damo-nos como Deus com os anjos — admitiu com uma leve timidez. — É uma mulher espantosa. É independente, profundamente bondosa e honesta — elogiou-a a Liz, embora não fosse preciso. — Parece-me que tu e ela têm andado a conversar — disse Liz num tom de aprovação. — Sim, quando ela não sai com os «101 Dálmatas». É uma ocupação um pouco estranha, mas os clientes parecem mantê-la muito ocupada e ela sente-se feliz com o que faz. — Leslie não pensava que aquilo fosse um trabalho para toda a vida e não percebia por que razão a mãe e a irmã se preocupavam tanto com o assunto. Afinal, era lucrativo e respeitável, e ela fazia-o bem. Era um negócio bastante proveitoso. — Os animais adoram-na. É como se fosse o flautista de Hamelim dos cães. — Parece-me que será o mesmo com as crianças. Tenho a certeza de que a minha filha a vai adorar. E, mais uma vez, muito obrigada por deixares que ela venha para cá. Agradeço-te muito. Queres que aumente o seguro? Tenho a impressão de que vos deveria pagar uma renda. — Já lá estava há dez semanas. Liz riu-se. — É uma boa companhia para Coco. Sinto-me realmente culpada por não termos encontrado ninguém para a libertar dessa tarefa. Bem tentámos, mas toda a gente tinha planos para o verão, ou voltavam para a escola no outono. Pelo menos está a viver com um ator lindo, o que a deveria compensar por ter de ficar na nossa casa. — Depois Liz apercebeu-se de que há meses que Coco não se queixava, nem pedia para ser libertada dos seus deveres. Ficou então desconfiada de que alguma coisa se estaria a passar. E Leslie parecia encantado e entusiasmado com ela, mas não dissera que estavam apaixonados um pelo outro. Talvez fossem apenas amigos, embora Liz não acreditasse nisso. Ou talvez quisessem ser discretos, o que lhe parecia mais provável. Ou, possivelmente, ainda não acontecera nada de importante, nem nunca aconteceria. Mal sabia ela que tinham feito amor apaixonadamente na segunda noite que ele lá passara. Havia coisas que ela não precisava de saber, de modo que Leslie manteve o tom despreocupado. Coco dizia que Jane nunca perguntara e que, provavelmente, não lhe ocorrera que eles se pudessem envolver. Há muito que dissera a Coco que ela não era o género dele. — Dá um abraço a Jane — disse ele quando estavam prestes a desligar. — E, mais uma vez, parabéns pelo bebé. Vai ser uma enorme mudança para vocês as duas.


— Jane diz que vai tirar seis meses de férias. Só acredito quando vir. Eu vou ficar um ano em casa. De qualquer forma, é lá que eu escrevo. Toda a minha vida quis isto. Sempre quisera ter filhos, mas não com o homem com quem fora casada, que lhe dizia que não era normal. Agora parecia-lhe perfeito. Mal podia esperar pelo nascimento do bebé. Só tinha pena de não ser ela a tê-lo, mas o médico preferira Jane e Liz cedera. Jane estava em melhor forma e os quatro anos de diferença entre as duas eram importantes para evitar um aborto. Não queriam que tal acontecesse de novo e, desta vez, não havia sinais disso. — Dá um abraço por mim a Coco. Como está ela depois daquela emoção por causa da mãe? — Só Jane tinha falado com ela, já que Liz tentara deixar as irmãs conversarem sozinhas sobre o assunto. Por sua vez, acalmara Jane o melhor que podia. Teve bons resultados, embora esta continuasse a não concordar. Pelo menos já não estava enraivecida como quando recebeu a notícia. E, tal como esperara, Coco também a acalmara. Coco era muito mais tolerante do que a irmã no que dizia respeito às fraquezas humanas. — Creio que não há problemas. A princípio ficou um pouco perturbada. Mas percebe que a mãe tem o direito de ter vida própria, com quem ela quiser. E, hoje em dia, esse tipo de coisas acontece. A idade já não importa como antigamente, mesmo para uma mulher mais velha. — Foi exatamente isso que eu disse a Jane. Mas as minhas palavras não foram lá muito bem aceites por aqui — confessou Liz com um suspiro. — Mas, felizmente, Jane está um pouco mais doce porque está grávida e pensa no bebé. — Pois — disse Leslie pensativo, porque conhecia bem a companheira de Liz. — Imagino. Parece-me que Jane é também muito severa com Coco — disse ele, revelando mais do que devia. Liz não pôde deixar de reparar, mas não ia dizer nada a Jane. Esta já tinha que chegasse e acabaria talvez por se irritar com aquilo. Era extremamente possessiva com os seus amigos e Liz sentia instintivamente que ela não desejaria que Coco se envolvesse com Leslie. Havia uma estranha rivalidade entre as irmãs. Queria que Leslie fosse seu amigo, mas não de Coco. — Coco disse-te que Jane era severa com ela? — perguntou Liz interessada. Era uma coisa que sempre a incomodara e sempre lhe parecera uma injustiça. Coco precisava do apoio e compreensão da família e não que lhe estivessem sempre a falar desagradavelmente do passado, como Jane e a mãe faziam. — Nem por isso — disse Leslie, tentando recuar e receando já ter dito demasiado. Liz não era tola e iria perceber tudo se ele não tivesse cuidado, se é que não tinha já percebido. — Apenas por algumas coisas que ela disse.


— Se ela o disse, tem razão — disse Liz honestamente. — Só como referência, há anos que lhe têm tornado as coisas difíceis, desde que ela deixou de estudar e até mesmo antes. Atacam-na as duas e ela não lhes faz frente. É demasiado boa pessoa, mas é assim mesmo. — Leslie quase lhe disse que era por isso que a amava, mas calou-se a tempo. — Talvez agora possam preferir atacar o namorado de Florence — disse Leslie, desatando a rir. — Foi muito bom falar contigo. Há séculos que não te vejo. Sinto-me um pouco culpado por estar aqui, mas gosto muito disto. Ninguém sabe que eu cá estou, mas terei de partir em setembro. Vou começar um filme em outubro. Agora é a cereja no topo do bolo ter aqui Chloe antes de me ir embora. — Diverte-te — disse Liz, enigmática. Leslie agradeceu-lhe, desligaram e ele telefonou imediatamente a Monica. — Não há problema. Posso tê-la cá — disse ele, encantado. — Quando queres mandá-la? — Se for esta noite é demasiado cedo? — perguntou Monica, timidamente. — Assim, amanhã podia apanhar uma boleia para Nice no avião de um amigo. O barco está em Monte Carlo e vai de lá para Saint-Jean-Cap-Ferrat e Saint-Tropez. — Eram os locais mais movimentados e elegantes da Europa. — Levas uma vida bem triste — troçou ele. — Bem o mereço — disse ela, com firmeza. — Não fiz outra coisa a não ser trabalhar na Broadway, foi um ano inteiro sem férias. Duas semanas não é pedir muito. Obrigada por ficares com Chloe. — Estou encantado — disse ele com sinceridade. — Mando-te o número do voo por SMS. — Telefono-te assim que ela chegar — prometeu-lhe ele. Como pais, faziam uma boa equipa. Continuavam amigos mesmo muito depois da relação ter terminado, o que era bom para a filha. Chloe adorava que Leslie as visitasse em Nova Iorque. Agora, quase nem conseguia esperar para ficar com ela por duas semanas. Disse a Coco assim que ela chegou a casa. — Esta noite? — Coco ficou atónita. Não esperava conhecer Chloe tão depressa. — Espero que ela não fique perturbada por eu andar por aqui. Pode não se sentir satisfeita por ter de partilhar o pai. — Vai adorar-te — disse com ar convicto e depois beijou-a. — Tive uma conversa muito agradável com Liz, quando lhe telefonei para que deixasse Chloe ficar cá.


— Ela suspeita de alguma coisa? — perguntou Coco, interessada. — Não te sei dizer. Mas Liz é muito esperta. — Mais do que a minha irmã — sorriu Coco. — Jane é muito ocupada consigo própria. Não creio que tal coisa lhe passe pela cabeça. — Tenho um pressentimento de que tens razão — disse ele, e foram ver o que havia no frigorífico. Tinham feito compras dois dias antes, por isso estavam bem abastecidos e tinham tudo o que Chloe gostava. Cereais, waffles, pizas, manteiga de amendoim e gelatina. Tinham até croissants, que a miúda adorava. Já em várias ocasiões vira a filha comer escargots em elegantes restaurantes franceses. A mãe leva-a consigo a toda a parte e trata-a como se ela fosse uma pessoa adulta. Mas, se lhe derem a escolher, Chloe continua a preferir a comida e os passatempos próprios da sua idade. Nessa noite comeram uma salada antes de irem para o aeroporto e Leslie apercebeu-se de que Coco estava nervosa. Para ela era muito importante conhecer a miúda. — E se ela me detestar? — perguntou, ansiosa, enquanto paravam o carro no estacionamento do aeroporto. Tinham levado a carrinha Mercedes de Jane e não a de Coco com aquele aspeto horrível. Também não haveria nela lugar para Chloe, pois ela só mantivera o assento do passageiro, para ter lugar para os cães. — Ela vai adorar-te — disse ele mais uma vez. — Não te esqueças de que eu te amo — recordou-lho, abraçando-a. O avião chegou dez minutos adiantado e eles apareceram mesmo a tempo de se encontrarem com Chloe, no momento em que ela desembarcava. Vinha acompanhada por um membro do pessoal de terra que entregou uma criança encantadora nas mãos do pai. Chloe saltou deliciada para os braços de Leslie e, enquanto ele a abraçava, espreitou-lhe por cima do ombro e sorriu a Coco. Tinha enormes olhos azuis e compridas tranças louras, trazia um vestidinho de favos cor-de-rosa e um ursinho já velho. Parecia o cartaz da criança perfeita. Tinha a cor de pele da mãe e a espantosa beleza de Leslie. Já se percebia que ia ser lindíssima quando crescesse. Leslie pô-la suavemente no chão e deu-lhe a mão enquanto a apresentava a Coco. — Esta é a minha amiga Coco — limitou-se a dizer, enquanto Chloe a olhava interessada. — Vamos ficar em casa da irmã dela. É muito bonita e acho que vais gostar. Tem uma piscina interior que está sempre quentinha. Deu-lhe todas as informações pertinentes e Coco apercebeu-se de que não poderia dormir com ele enquanto Chloe lá estivesse. Não tinham discutido o assunto antes


dela chegar, mas não queria chocar a menina e tinha a certeza de que ele também não. — Muito bem — disse Leslie em tom oficial. — Vamos buscar as tuas malas. Deves estar muito cansada — disse, enquanto, seguidos por Coco, se encaminhavam de mão dada para a zona de recolha da bagagem. Chloe continuava a olhar para Coco como se tentasse descobrir quem ela era. — Dormi no avião — informou-os ela. — E, para jantar, deram-nos cachorrosquentes e gelado. — Parece-me muito bem. Também temos gelado lá em casa para ti. E dois cães grandes, mas muito bonzinhos. Um deles é mesmo muito grande. — Tentava avisá-la em relação a Jack, para que ela não se assustasse quando chegassem a casa. Coco gostou do modo como Leslie tratava a filha. Parecia de repente muito adulto quando agia como pai. Era óbvio que Chloe era louca por ele e estava encantada por estar ali. Não lhe largava a mão. — Gosto de cães — disse, simplesmente, olhando para Coco. — A minha avó tem um caniche que não morde. — Os nossos também não — explicou Coco. — Chamam-se Jack e Sallie. O Jack é da altura do teu pai quando se põe de pé. — Chloe desatou a rir. — Parece muito esquisito — comentou Chloe quando Leslie retirou as duas malas da filha da passadeira rolante e as colocou ao lado de Coco. — Vou buscar o carro — disse ele, e partiu de repente deixando Chloe com Coco. Esta não tinha bem a certeza daquilo que lhe deveria dizer, mas Chloe conversava com ela com todo o à-vontade. — A minha mãe é atriz da Broadway — explicou enquanto esperavam pelo pai. — É muito boa, mas a peça é muito triste. Morrem todos. Prefiro os musicais, mas a minha mãe não entra nesses. No fim, matam-na. Estive na noite da estreia. — Chloe era exatamente como Leslie a tinha descrito, ao mesmo tempo uma criança encantadora e um adulto em ponto pequeno. — Também és atriz? — perguntou a Coco com ar satisfeito. — Não. Passeio cães. — Coco sentiu-se constrangida ao dizer isto. Era mais difícil explicá-lo a uma criança. — Passeio os cães das outras pessoas, enquanto elas trabalham. Acaba por ser divertido. Conversaram muito à vontade durante alguns minutos até que Leslie regressou. Ficou muito satisfeito por ver que Chloe parecia perfeitamente à vontade com Coco. Levou as malas para o carro, pôs o cinto de segurança a Chloe no assento de trás, colocou as malas no porta-bagagem e, logo a seguir, partiram. — O que vamos fazer? — perguntou Chloe enquanto se dirigiam para a cidade.


— Há cá um jardim zoológico? Coco respondeu em vez de Leslie, já que conhecia melhor a cidade. — Há, sim. E há elétricos e um sítio que se chama Chinatown. E podemos ir à praia. — Coco tem uma casinha maravilhosa na praia que acho que vais adorar — explicou Leslie enquanto Coco lhe sorria. Apercebia-se de que aquilo ia ser como brincar às casinhas com a menina. Viviam juntos há dois meses e meio e, de repente, eram uma família. Ou ele e Chloe eram-no, e ela acompanhava-os. Aquilo era a verdadeira vida. Tinha um gosto de realidade para ambos. E gostava, embora se sentisse um pouco assustada. Quando chegaram a casa, Leslie abriu a porta com as suas chaves e desligou o alarme; depois voltou-se para Chloe com um largo sorriso. — Bem-vinda a casa durante as próximas duas semanas. — Depois levou-a até à cozinha e ofereceu-lhe gelado. Chloe continuava agarrada ao urso. No aeroporto, dissera a Coco que ele se chamava Alexander. Era um nome simpático para um velho ursinho. Sentaram-se os três à mesa da cozinha e Coco tirou o gelado do frigorífico. E, depois, para seu horror, Leslie contou à filha a cena com o xarope de ácer no dia em que se tinham conhecido. Chloe soltou enormes gargalhadas enquanto ele lha descrevia. O gelado já lhe escorria pelo queixo. Coco sentiu-se comovida ao ver os dois juntos. Chloe parecia fazer parte da vida habitual de Leslie e ele tinha um jeito enorme para ser pai. Quando os três terminaram o gelado, Coco apresentou a criança aos cães. Obrigou Jack a estender a pata para cumprimentar Chloe, que soltou uma gargalhadinha. Não teve medo dele. Como Sallie andava em círculos, Coco explicou que aquela raça de cães costumava reunir os rebanhos na Austrália. Depois foram todos para cima. Nessa noite, Chloe ia dormir no quarto de hóspedes com o pai. Este piscou o olho a Coco por cima da cabeça da filha e ela percebeu que ele a iria visitar quando a filha adormecesse. Coco desfez-lhe a mala e Leslie esperou que ela lavasse os dentes e a cara e vestisse o pijama; depois Coco ajudou-a a desentrançar o cabelo. Era louro, muito comprido e fino, e estava encaracolado das tranças. A seguir Chloe meteu-se na enorme cama e Coco deu-lhe um beijo de boas-noites e voltou para o seu quarto, enquanto Leslie se sentou com ela para a adormecer. Vinte minutos depois ele dirigiu-se para a suíte principal com um sorriso feliz e atirou-se para cima da cama.


— É adorável — disse Coco, sorrindo-lhe, quando ele se inclinou para a beijar. — É muito parecida contigo, só que é loura. — É o que toda a gente diz — concordou ele, orgulhoso. — Ela achou que eras muito simpática e muito bonita. Quis saber se eu estava apaixonado por ti e eu disse que sim. Sou sempre muito honesto com ela. Disse-me que podia vir dormir para aqui se quisesse. Deixei a porta aberta e a luz acesa na casa de banho. E, se não te importas, também podemos deixar a nossa porta aberta. — Somos todos tão crescidos — disse Coco a rir, parecendo também uma menina pequena. Ele soltou uma gargalhada. — É verdade. A paternidade faz-me sempre isto. A minha filha faz-me sentir responsável. Quem me dera vê-la com mais frequência — comentou, melancólico. — É uma miúda fantástica. — Pois é — concordou Coco, enquanto ele se metia debaixo dos cobertores ao lado dela. — Tens a certeza de que não há problema em dormires aqui? — Ela disse que não. É uma miúda muito compreensiva. — Gostava que a filha se sentisse à vontade com Coco e também gostava da maneira como ela falava com a menina. Coco tinha um jeito especial com os cães e com as crianças e, afinal, também com ele. Ainda a amava mais depois de a ver com a filha. Para ele era maravilhoso ter debaixo do mesmo teto as duas pessoas a quem mais queria. Desejava desfrutar aquelas duas semanas com as duas. Puxou Coco para os seus braços e ficaram deitados lado a lado, conversando num murmúrio, embora Chloe não os pudesse ouvir do quarto ao lado por já estar a dormir profundamente. Meia hora depois também ele e Coco adormeceram. Os cães estavam lá em baixo a dormir na cozinha. Coco deixara-os lá para que não incomodassem a criança, nem lhe trepassem para a cama. A casa ficou em silêncio enquanto todos dormiam e, na manhã seguinte, quando Coco deu a volta antes do despertador tocar e abriu um olho, deu por ela a olhar para Chloe, que lhe sorria. Tinha-lhes subido para a cama assim que acordara. Leslie continuava a dormir profundamente, mas Coco soltou uma gargalhada quando a viu. — Tens fome? — murmurou Coco, e Chloe acenou afirmativamente com um largo sorriso. — Vamos lá abaixo arranjar alguma coisa para comer. — Saíram do quarto em bicos dos pés para não acordarem Leslie. Coco deixou sair os cães e Chloe sentou-se à mesa da cozinha como se tivesse vivido ali toda a sua vida. — O que queres para o pequeno-almoço? — perguntou Coco, e sorriram uma para a outra. — Cereais e uma banana, torradas e um copo de leite. — Vai já sair — disse Coco arranjando as coisas e pondo a chaleira ao lume para fazer chá. — Dormiste bem? — Chloe acenou com uma expressão feliz e depois


olhou para Coco com mais atenção. — O meu pai disse que estava apaixonado por ti. Tu também estás apaixonada por ele? — perguntou com uma expressão séria. — Sim, estou — respondeu Coco, servindo-lhe o pequeno-almoço. — Muito. E sabes que ele te adora mais do que tudo, não sabes? — Coco queria sossegá-la. — A minha mãe deixa-me ver os filmes dele sempre que eu quero — declarou Chloe, começando a comer os cereais e bebendo um pouco de leite. — Também gosto de os ver — confessou Coco, sentando-se em frente dela. — Aqui, no nosso quarto, há um ecrã enorme e, se quiseres, podes ver os filmes dele ou outros. É divertido vê-los num ecrã tão grande. — O meu pai não gosta de os ver — declarou Chloe, e Coco acenou com a cabeça. — Bem sei. Mas, com ele, podemos ver outros. — O que estão vocês para aí a conspirar? Sobressaltaram-se as duas quando Leslie entrou na cozinha. Não o tinham ouvido entrar, pois estava descalço. — Estamos a falar de ir ver os teus filmes no ecrã gigante — explicou Coco, enquanto Chloe enfiava um bocado enorme de banana na boca e depois tentava falar. Leslie imitou-a e todos se riram. Os cães entravam e saíam. Pareciam uma família perfeita. — Porque não levamos Chloe à praia quando acabares o trabalho ao meio-dia? — sugeriu. Era sábado e a ideia pareceu ótima aos três. — Podemos tomar banho? — perguntou Chloe entusiasmada e Leslie disse-lhe que a água ali era muito fria. Não lhe falou nos tubarões, mas disse-lhe que podia tomar banho ali em casa, na piscina. E foi mostrar-lha enquanto Coco arrumava a cozinha; depois foram vestir-se lá a cima. Quando Chloe voltou com o pai, Coco ofereceu-se para lhe entrançar o cabelo antes de ir trabalhar. Era engraçado tratar dela e estar ali com os dois. Antes de sair, preparou o banho para Chloe e prometeu voltar depressa. Chloe ficou a acenar da janela, enquanto Coco partiu na carrinha. Era bom saber que estariam ali quando ela voltasse para casa. Era completamente diferente daquela vida solitária que há dois anos levava em Bolinas. Adorava brincar às casinhas com Leslie e a filha. Coco voltou a tempo para almoçar com eles e, logo a seguir, foram para a praia. Chloe olhava para tudo muito interessada, enquanto seguiam no carro; fez perguntas


e contou ao pai o que tinha feito em Hamptons durante todo o verão. Disse que a mãe tinha um namorado novo, que este tinha um barco e que ela ia encontrar-se com ele em Monte Carlo, para seguirem depois para Saint-Tropez. Coco tentou não sorrir enquanto a ouvia. Chloe fazia comentários acerca das pessoas que faziam parte da sua vida e o mais provável seria que, quando voltasse, falasse também de Coco à mãe. — Ele tem um ar engraçado — disse Chloe acerca do namorado de Monica. — É barrigudo e careca, mas é muito simpático e a minha mãe está sempre a dizer que o barco é muito grande. Monica nunca desprezara a situação financeira dos homens com quem saía, pensou Leslie, enquanto Chloe o descrevia. Mas, se ela gostava, qual era o problema? Via que Coco tentava não se rir. — Também é velho — acrescentou Chloe. Tinha trazido o urso com ela e levantava-o para que ele visse o mar enquanto seguiam ao longo dos rochedos. Depois interessou-se por Coco, já que Leslie conduzia nesse dia. — Porque é que não és casada e não tens filhos? — perguntou, curiosa. Nessa manhã dissera ao pai que Coco era muito simpática. — Ainda não encontrei o homem certo — respondeu ela com toda a franqueza. — A minha mãe pergunta-me sempre a mesma coisa. — Não tens irmãos? — Chloe queria saber tudo e não tinha medo de perguntar. — Tenho uma irmã chamada Jane, que tem mais onze anos do que eu. — É velha — disse Chloe, condoída, enquanto desciam para Stinson Beach. Havia neblina sobre o oceano, mas o céu estava azul e o tempo muito bom. Em agosto, na cidade, o clima era sempre imprevisível, frio e ventoso. Os habitantes já estavam habituados, mas os turistas ficavam desiludidos; contudo, Chloe não parecia importar-se. Sentia-se feliz com o pai e Coco. E não parecia importar-se de o dividir com uma mulher. Em todos aqueles anos, conhecera muitas das suas namoradas e, ao pequeno-almoço, informara Coco desse facto; Coco limitara-se a acenar com a cabeça enquanto a ouvia. — A tua irmã é casada e tem filhos? — perguntou Chloe esperançada. Gostava de brincar com outras crianças, mas, tal como Leslie dissera, também se sentia à vontade num grupo de adultos. Sentia-se bem no seu mundo e no dos outros. Nos seus seis anos de idade, fora sempre exposta a uma vida muito sofisticada. — Não, também não é casada — disse Coco como que a pedir-lhe desculpa. — E também não tem filhos. Vive com uma amiga, uma espécie de companheira de quarto, que se chama Liz. — É gay? — perguntou Chloe com os olhos muito abertos e Coco quase caiu do


assento. Voltou-se para olhar para a criança com um sorriso cauteloso e Leslie desatou a rir. Sobrevivera já a muitos interrogatórios daquele tipo feitos pela filha. Para Coco, tratava-se de uma novidade. — O que significa gay? — perguntou Coco fingindo-se ignorante para ver qual seria a resposta. — Não sabes? É quando os rapazes vivem com os rapazes e as raparigas vivem com as raparigas e, de vez em quando, beijam-se. E não podem ter bebés, porque só os rapazes e as raparigas juntos é que podem ter. Queres saber como é que as pessoas fazem os bebés? A minha mãe já me disse como era — declarou com um ar entendido e depois abraçou-se ao urso. Era uma estranha mistura de criança e adulto, um adorável gnomo e uma mulher pequenina. Coco nunca conhecera ninguém como ela. — Não creio que precise de saber como é que as pessoas fazem — disse Coco rapidamente. — A minha mãe também me disse, mas eu era um pouco mais velha do que tu. — Talvez tivesse catorze anos, mas, nessa altura, já Jane tinha ensinado a Coco a mecânica essencial. — É esquisito, não é verdade? — comentou Chloe, enquanto passavam pela pequena cidade de Stinson Beach na direção de Bolinas. — Não quero que ninguém meta o pénis em mim quando eu for mais velha. É nojento — disse, parecendo irritada e depois abriu muito os olhos para Coco. — O meu pai faz isso contigo? — perguntou, e Leslie engasgou-se e olhou para Coco que nem sabia o que dizer. — Errr… hã… bom… não, não faz — mentiu, mas não o ia admitir diante dela. Há coisas que são impossíveis de admitir perante uma criança de seis anos, por muito bem informada que esteja. — É por isso que não têm filhos — disse, muito prática. — Um dia vão ter de fazer isso se quiserem ter um bebé. A minha mãe fez com o meu pai — disse como se considerasse o facto uma parvoíce que eles tivessem feito muito tempo atrás, ou uma viagem qualquer. Era evidente que não entendia todo o significado do que lhe tinham dito ou as suas implicações, embora estivesse informada acerca da mecânica. — Olha, ainda bem que te tiveram — disse Coco em tom despreocupado, tentando recomeçar a conversa, enquanto Leslie virou no cruzamento para Bolinas e continuaram pela estrada estreita e cheia de pedras até chegarem a casa de Coco. — Chegámos — disse Coco, pronta a saltar do carro, antes que Chloe desse início a mais um dos seus tópicos delicados. Coco não estava preparada para aquilo. Saíram os três do carro e Coco abriu a porta da pequena casa com Chloe a saltar atrás dela. Os cães que tinham vindo apertados na parte de trás da carrinha desataram a correr em direção à praia.


— Oh, é tão bonita! — disse Chloe, batendo palmas com o urso debaixo do braço. Instalou-o no sofá e olhou em redor. — Parece a casinha dos três ursos ou a da Branca de Neve. Coco desatou a rir. Em menos de cinco minutos, haviam passado do sexo para a Branca de Neve. Chloe saiu para o alpendre e Leslie sorria ao vê-la. — Esta minha filha! — comentou num murmúrio. — Bem te disse que ela era muito adulta. A mãe trata-a assim. Mas, ao mesmo tempo, ainda é muito criança. Deste muito bem conta do recado. E prometo nunca mais te fazer a tal coisa nojenta que ela mencionou a menos que queiramos ter um bebé. — Coco soltou uma gargalhada e seguiram a menina até ao alpendre. — Podemos brincar na praia? — Claro. Foi para isso que viemos. Queres construir um castelo ou correr por aí? — perguntou Coco. — Um castelo — respondeu, batendo palmas outra vez. Como resposta, Coco retirou de um armário uma série de panelas e tigelas e um baldinho para a água. Momentos depois, tiraram os sapatos e dirigiram-se os três para a praia. Coco levava-lhes água e Leslie tratou de quase toda a construção. Chloe decorou o castelo com pedras, conchas e pequenas coisas que tinham dado à praia. Era muito criativa. Quando terminaram, o castelo estava impressionante e os três estavam satisfeitos. Voltaram para casa ao final da tarde. Coco tinha duas pizas no congelador e alface para fazer uma salada. Antes do jantar, Coco e Chloe assaram marshmallows no fogão e Coco prometeu-lhe fazer s’mores1 para a sobremesa. Jantaram na velha mesa de cozinha e depois sentaram-se no alpendre a comer os s’mores. Depois, Leslie contou histórias engraçadas de Chloe quando era bebé. Ela já as tinha ouvido, mas gostava de as ouvir de novo. E a seguir deitaram-na na cama de Coco, que se oferecera para dormir nessa noite no sofá, embora Leslie insistisse em que deveria ser ele a fazê-lo. Todavia, Coco pensou que Leslie deveria dormir com a filha e não se importou. A sala era confortável e aquecida. Depois de Chloe ir para a cama, acenderam a lareira. Coco fora dar um beijo de boas-noites à menina que segurou o urso para que este recebesse também as despedidas. — Obrigada. Diverti-me muito hoje — disse com um bocejo. — Eu também — disse Coco, sorrindo e, pouco depois de ela ter saído do quarto, a menina adormeceu profundamente. — É uma miúda muito engraçada — murmurou Coco a Leslie, quando se sentaram juntos no sofá.


— Pois é — disse ele orgulhoso. — Adoro-a. Quem diria que Monica seria tão boa mãe. Por vezes um pouco moderna demais para o meu gosto, no que diz respeito à educação sexual e isso, mas creio que Chloe é uma criança muito equilibrada. Receio bem que não o seja graças a mim. Eu havia de a estragar com mimos e nem a deixaria ir à escola só para brincar com ela. — Sorriu com ar feliz e Coco aninhou-se junto a ele no sofá. — És um pai muito bom. — Era paciente, bom e afetuoso, tal como era com ela. — Construímos um belo castelo de areia — disse ele sorrindo. — Devias ter sido arquiteta. — Prefiro ser uma vagabunda das praias — respondeu ela a rir. — Também desempenhas muito bem esse papel — disse-lhe. Depois beijou-a e passou a mão por baixo da sweatshirt para lhe tocar nos seios. — Vais-me fazer aquela coisa nojenta de que Chloe falou, não é verdade? — provocou-o, mas ele parecia muito sério enquanto a acariciava. — Nunca! Nunca faria tal coisa, principalmente com a Chloe a dormir no quarto ao lado…, mas noutras circunstâncias poderia ser convencido… se alguma vez quiseres um bebé… — A voz dele foi descendo de tom e ela sorriu misteriosamente. — Talvez um dia. — Ultimamente tinha pensado várias vezes no assunto. E a ideia de ter uma menina como Chloe era, de facto, atraente. Ficaram os dois no sofá até à meia-noite, a conversar, depois foram até ao alpendre contemplar o céu. Sobre eles brilhava um milhão de estrelas e havia um luar maravilhoso. Ficaram a conversar sobre nada em especial durante mais uma hora, sentados nas cadeiras e, depois, Leslie foi para a cama, para junto da filha, deixando, com relutância, Coco na sala para se instalar no sofá dentro de um saco-cama. Na manhã seguinte acordaram cedo. Leslie fez o pequeno-almoço: crepes em forma de rato Mickey com bananas, que Chloe disse adorar, e depois foi ajudar Jeff a tratar do carro. Vira-o a mexer no motor e estava desejoso de o ir ajudar. Coco sorriu ao vê-lo pela janela, enquanto ela e Chloe limpavam a cozinha. A seguir foi para o alpendre ler uma história à criança. Duas horas depois, Leslie foi ter com elas, com as mãos cobertas de óleo e um ar de satisfação, pois, segundo disse, tinham arranjado o carro de Jeff. Fora uma manhã perfeita para ele, passada debaixo do capô do carro do vizinho. A seguir foram a Stinson e deram um longo passeio na praia com os cães. Voltaram para casa a tempo do almoço. Leslie e Chloe jogaram às damas, enquanto Coco ficava a ver e, a seguir, comeram sanduíches e batatas fritas. Por fim, estenderam-se ao sol nas cadeiras do alpendre. Nessa tarde, foi com grande desgosto


que abandonaram a praia, depois de comerem cachorros-quentes e de assarem marshmallows. No regresso, Chloe adormeceu na carrinha. Fora um fim de semana perfeito. Nessa noite os três viram Mary Poppins no ecrã gigante e, quando Chloe adormeceu, Leslie levou-a ao colo para a cama do quarto de hóspedes. Coco prometera levá-la a Chinatown no dia seguinte, para jantarem num restaurante chinês e comerem com «pauzinhos», conforme Chloe insistia. Combinaram ir ao jardim zoológico no fim da semana e andar de elétrico antes de ela partir. — Obrigado por seres tão querida com ela — disse Leslie metendo-se na cama ao lado de Coco. — Não é difícil — disse Coco com ar feliz. E Leslie levantou-se e fechou a porta do quarto. — O que estás a fazer? — perguntou a sorrir, aninhada debaixo dos cobertores. Estava a adorar aqueles dias preciosos para ambos. — Pensei que poderíamos ter uns minutos de privacidade. Não é fácil com uma criança em casa. — Até ali tinham estado à vontade e adoravam ter Chloe com eles. Leslie apagou a luz e tomou Coco nos braços. Ficou encantado ao descobrir que ela já estava nua, tendo tirado o pijama enquanto ele metia Chloe na cama. Despiu as boxers e, segundos depois, perderam-se de novo no amor que sentiam um pelo outro. Parecia até que a visita de Chloe os tinha aproximado mais. E Coco apercebeu-se de que, embora nunca tivesse sentido falta de nada, só agora se sentia verdadeiramente completa. 1 Sobremesa típica americana: quadrados de chocolate e marshmallow metidos entre duas bolachas e levados uns segundos ao micro-ondas. (N. da T.)


CAPÍTULO 10 Nas duas semanas que Chloe passou com eles, conseguiram fazer tudo o que lhe tinham prometido senão mais. Foram aos jardins zoológicos de Oakland e São Francisco e ao museu de cera em Fisherman’s Wharf, que Coco pensava ser demasiado assustador para Chloe, mas enganou-se e ela adorou. Foram duas vezes a Chinatown e passearam por Sausalito. Foram ao cinema, andaram de elétrico e voltaram a Bolinas para passar o fim de semana e fazer outro castelo de areia, desta vez mais elaborado. Coco levou Chloe a uma fábrica de brinquedos, onde a deixaram desenhar e encher o seu próprio urso. Alexander ficou com uma amiga, uma ursinha com um vestido cor-de-rosa a quem Chloe chamou Coco, o derradeiro elogio. Mostrou-a ao pai, cheia de orgulho e, na última noite, tomaram os três um banho na piscina e Coco fez o jantar. Fez até um bolo com uma cobertura cor-de-rosa salpicada de drageias. Estava torto, mas, mesmo assim, Chloe adorou-o. Coco tinha escrito o nome dela com M&M’s. Depois do jantar, Chloe perguntou-lhes se se iam casar e o pai fez uma expressão vaga. Ele e Coco ainda não tinham chegado a esse ponto, embora já tivessem tocado no assunto dos filhos. Ele ainda tentava convencê-la a viverem juntos em Los Angeles e não conseguira uma resposta da parte dela. Coco sentia aversão à cidade onde crescera e ao estilo de vida das pessoas que a habitavam. Tinham vários obstáculos a ultrapassar antes de poderem discutir o assunto do casamento, mas Leslie já tinha pensado nisso. Não quisera dizer nada a Chloe com medo de mais tarde a desiludir se as coisas não resultassem. A menina estava apaixonada por Coco, e esse amor era mútuo, e também adorava os cães. — Acho que a tua irmã deve ser gay para ter um cão assim — disse ela a Coco com ar pensativo. — As raparigas têm poodles, yorkies ou cãezinhos felpudos. Só os rapazes é que têm cães como o Jack. — Talvez tenhas razão — disse Coco sem se comprometer. — Tenho de lhe perguntar. Não queria mentir a Chloe, mas também não estava preparada para lhe responder. Não queria que a menina fosse dizer à mãe que Coco tinha uma irmã lésbica. Poderia pensar que tinha dito à criança coisas que não devia, embora Monica não parecesse hesitar quando se tratava de discutir fosse o que fosse com a filha. Mas Chloe era filha dela, por isso tinha esse direito. Coco queria manter certos limites, e Leslie era muito correto e também mais tradicional. Pareciam ter ideias semelhantes nesse e em qualquer outro assunto. Houve apenas um contratempo durante toda a estadia de Chloe. Mesmo na última noite, Chloe queimou os dedos enquanto assava marshmallows no fogão. Entusiasmou-se demais e tocou no garfo incandescente ao tentar retirar a massa


derretida do marshmallow. Soltou um grito e desatou num choro próprio dos seus seis anos enquanto lhe aparecia uma bolha num dedo. Coco agiu rapidamente e meteu-lhe o dedo debaixo de água fria, enquanto Leslie entrou na cozinha a correr ao ouvir Chloe chorar. — O que aconteceu? — perguntou em pânico ao ver as lágrimas correrem pela face da filha. — Ela cortou-se? — Queimou um dedo — disse Coco, segurando Chloe junto a si e o dedo queimado debaixo de água fria no lava-louça. — Deixaste-a brincar sozinha com o fogão? — perguntou ele em tom ríspido, e Chloe voltou-se instantaneamente para o pai já sem vestígios de lágrimas. — A culpa não foi dela! — exclamou defendendo ferozmente Coco, depois de se ter apercebido do tom de voz do pai. — Ela disse-me que não tocasse no garfo e, mesmo assim, fui mexer-lhe — acrescentou Chloe, aconchegando-se no calor dos braços de Coco. — Já está melhor — disse, corajosa, e examinaram os três a pequena bolha branca. Coco pôs-lhe pomada e um penso rápido e Leslie olhou-a com uma expressão contrita. — Lamento. Foi uma estupidez da minha parte. Tive medo que ela se tivesse ferido. Sentia-se muito mal por ter dado a entender que Coco fora negligente, mas, ao ouvir os gritos de angústia de Chloe, o seu coração apertara-se. Agora via que Coco estava tão preocupada como ele e tinha feito um ótimo trabalho de primeiros socorros. — Não te preocupes com isso — disse Coco para o descansar, enquanto levantava Chloe do banquinho em que estava sentada ao lado do lava-louça. — Adoro-te Coco — disse Chloe lançando os braços em redor do pescoço de Coco e apertando-a contra si enquanto Leslie sorria a ambas. — Também te adoro — murmurou Coco e baixou-se para lhe beijar o alto da cabeça. — Podemos fazer mais marshmallows? — perguntou Chloe a sorrir, levantando no ar o dedo ferido. — Não! — disseram os dois adultos em uníssono e depois riram. Leslie continuava a sentir-se mal por causa do comentário que tinha feito a Coco, mas ela aceitara-o e sabia que apenas se devera ao medo e à preocupação com a filha. — E que tal um gelado? — sugeriu Leslie, e Coco pareceu aliviada. Ficara assustada quando Chloe se queimara e ainda estava preocupada, mas a menina parecia feliz e contente quando saíram da cozinha. Deitou-se encostada aos


dois para ver televisão e deleitaram-se os três com a sua última noite. Coco apercebeu-se do quanto ia sentir a falta de Chloe. A menina tinha-lhe tocado o coração. Estavam os três muito tristes quando foram para o aeroporto. Chloe levava os dois ursos, o velho e o novo, e Coco quase chorou quando se despediu dela e a entregaram à hospedeira que a ia acompanhar ao avião para Nova Iorque. — Espero que venhas visitar-nos em breve — disse Coco, abraçando-a. — Nada vai ser o mesmo sem ti. — Falava com toda a sinceridade, e Chloe percebeu isso, tendo-se afastado para olhar para Coco com uma expressão séria. — Se eu cá voltar, o meu pai ainda cá vai estar? — Espero que sim. De vez em quando. Podem voltar os dois. — Acho que tu e o meu pai deviam casar — comentou, fazendo eco da mesma opinião que tinha expressado pouco depois da sua chegada. O laço entre Coco e Chloe fortalecera-se de dia para dia. — Um destes dias falaremos desse assunto — disse Leslie e abraçou-a com força. — Vou ter saudades tuas, macaquinha. Dá um beijinho por mim à tua mãe e telefoname esta noite. — Prometo — disse ela com ar triste. — Adoro-te — disse Leslie, abraçando-a pela última vez e, depois, chamou-a mais uma vez quando ela passou a segurança e se voltou para lhes acenar, sorrindo feliz. Acenou a ambos e Coco atirou-lhe beijos e tocou no coração apontando para ela. Ficaram ali até ela desaparecer na multidão do aeroporto e se dirigir à porta de embarque de mão dada com a hospedeira. Ficaram até o avião levantar voo, para o caso de se atrasar por qualquer razão e, logo a seguir, voltaram ao estacionamento para ir buscar o carro. Durante os primeiros minutos, ficaram ambos em silêncio a pensar em Chloe e em como a casa pareceria agora vazia. — Já sinto a falta dela — disse Coco tristemente enquanto se afastavam do aeroporto. Nunca vivera com uma criança durante duas semanas, mas já não se imaginava sem ela. — Eu também — disse ele, suspirando. — Invejo as pessoas que vivem com os filhos. Monica tem muita sorte em tê-la o tempo todo. — Mas Leslie também não se imaginava casado com ela, nem nunca o tinha sido. — Se alguma vez repetir, quero ficar por perto. Parte-se-me o coração sempre que ela se vai embora, ou quando eu vou. Parecia melancólico enquanto regressavam à cidade; decidiram então ir ao


cinema para não terem de voltar para uma casa vazia. Sentiam-se meios perdidos. O filme era violento e cheio de ação, o que os distraiu a ambos e, quando foram para casa, já Chloe ia a meio da viagem para Nova Iorque. Coco foi dar umas braçadas na piscina e Leslie sentou-se no escritório a tomar notas num guião que estava a ler para decidir se queria o papel que lhe ofereciam. Mais tarde encontraram-se na cozinha e sentaram-se a olhar tristemente para o bolo que Coco fizera para Chloe na noite anterior. Era difícil esquecer a ausência de Chloe, mas, por fim, Leslie fez um chá para ambos e sentaram-se os dois mais sorridentes. — Creio que isto significa que a visita dela foi um sucesso — disse ele, já mais animado. — Passámos uns dias muito agradáveis. — Como é que alguém não se pode divertir com ela? — disse Coco bebendo o chá em pequenos goles. — Espero que o bebé de Jane e de Liz seja assim tão giro daqui a seis anos. — Também estava entusiasmada com aquilo. — A propósito, o que pensas da sugestão de Chloe? — perguntou-lhe ele com ar desprendido. — Aquilo de nos casarmos — parecia um rapazinho nervoso, como qualquer pessoa e não um famoso ator de cinema. — Pensei que era uma ideia intrigante — disse, fingindo-se mais confiante do que de facto se sentia. Por vezes parecia muito inglês e isso fazia Coco sorrir. O estilo humilde e tímido faziam parte do seu enorme charme no ecrã e também na vida real. Ela adorara-o desde o primeiro dia em que se haviam conhecido com o pequeno incidente com o xarope de ácer. — Sem dúvida interessante — disse ela em voz baixa, sorrindo para ele com uma expressão amorosa nos olhos. — Mas, possivelmente, prematuro. Penso que primeiro teremos de ver onde vamos morar e como poderemos arranjar as coisas. Para Coco, aquilo não era de somenos importância. Naquela altura, havia já três meses que viviam juntos em casa de Jane, o que era um bom princípio. E ela nunca se dera tão bem ou com tanta facilidade com uma pessoa, nem sequer com Ian. Contudo, a sua grande preocupação era ainda a fama dele e o tipo de vida que teriam, constantemente perseguidos pela imprensa, sobretudo se vivessem em Los Angeles. Ela queria uma vida mais privada, de contrário, a relação poderia ficar arruinada. Ainda não tinham arranjado solução para o problema e talvez nunca o conseguissem. À parte essa questão importante, ela e Leslie haviam tido apenas um desentendimento de somenos importância acerca dos cães, uma noite em que estes vieram todos molhados da piscina e saltaram para a cama pela quarta vez, segundo Leslie. Além disso, e do pequeno incidente com o dedo de Chloe na noite anterior à sua partida, tinham-se entendido maravilhosamente bem naqueles três meses.


Adoravam estar juntos, ela interessava-se pelo trabalho dele e ele gostava de ouvir as opiniões dela acerca dos guiões que lhe chegavam. E estava sempre aberto ao que ela tinha a dizer sobre qualquer assunto. Respeitava-a em tudo. Ela adorava a filha dele; o único problema era a fama e aquilo que ela lhes poderia fazer à vida. Havia coisas que ainda não sabiam acerca um do outro: de que tipo de pessoas cada um deles gostava, ou o que seria partilharem a vida social, pois estavam a viver afastados de tudo. Nunca tinham viajado juntos ou enfrentado uma crise e ela ignorava como Leslie era quando estava cansado ou tenso durante a rodagem de um filme. Mas, quanto aos acontecimentos do dia a dia debaixo do mesmo teto, até ali as peças encaixavam-se perfeitamente. Eram ambos bondosos e atenciosos, respeitavam-se, gostavam de estar juntos e adoravam o sentido de humor um do outro. Restava ver como resistiriam com o passar do tempo. A única coisa que a preocupava seriamente era o facto de ele viver em Los Angeles e a vida que lá levava, mas Leslie parecia flexível a esse respeito. Sugerira São Francisco e Santa Barbara como alternativa e oferecera-se para passar todo o tempo que pudesse em Bolinas. Estava mesmo disposto a ter em conta Nova Iorque. Era uma pessoa razoável, com ideias sensatas e estava desejoso de se comprometer com Coco. Parecia um candidato ideal a marido e decidira que Coco era a mulher ideal para ele. Ela apenas queria mais tempo para pensar no assunto. Três meses não lhe pareciam suficientes para tomar uma decisão que os afetava para o resto da vida. E o seu estrelato apresentava inevitáveis alterações que teriam de enfrentar. — Não acho que o sítio onde vamos morar seja uma questão importante — disse calmamente Leslie. Não queria pressioná-la, mas já estava convencido. Chloe estimulara-o com a sua pergunta na noite anterior bem como a maneira como Coco se dava com ela, e queria discutir o assunto. — Não podes amar um homem ou deixá-lo porque não gostas da cidade onde ele vive — disse com sensatez. — Não é a cidade. É o estilo de vida que o teu trabalho exige — disse ela, inquieta. Era a sua única preocupação. — Não sei como seria viver com uma estrela de cinema famosa e o que tudo isso implica. Assusta-me, Leslie. A imprensa e os paparazzi, bem como toda a pressão e a exposição pública, arruínam a vida das pessoas. Tenho de experimentar primeiro para ver se me habituo. Não quero estragar nem a tua carreira nem a minha vida. Adoro a vida que levamos aqui, mas é uma fantasia — disse com toda a franqueza. — Estamos escondidos. Quando sairmos, vamos causar uma explosão que será ouvida em todo o mundo e isso assusta-me de morte, porque não quero perder-te e há pessoas que podem estragar tudo. — Então vamos começar a dizer às pessoas para ver o que acontece. Porque não vens comigo quando eu for rodar os exteriores em Itália? Vou ficar um mês em Veneza, talvez dois. Podias ficar lá comigo, se arranjasses outra pessoa para passear os cães. Queres pensar nisso? Antes, talvez pudéssemos ir uns dias a Los Angeles


para ver se te adaptavas. — Leslie estava pronto a anunciar ao mundo que estava apaixonado por ela. De facto, morria por ser visto com Coco e por partilhar a sua felicidade com todo o planeta. — Amo-te, Coco — disse suavemente. — E, aconteça o que acontecer e seja como for que a imprensa trate do assunto, estarei sempre a teu lado. — Ela sorriu-lhe com as lágrimas nos olhos. — Creio que estou apenas assustada. E se me detestarem, ou se eu fizer alguma coisa estúpida, ou se estragar as coisas? Nunca antes fui alvo da curiosidade do público. Sei o que costumavam fazer aos clientes do meu pai. Não quero que nos aconteça o mesmo. Agora é tudo simples, mas nunca mais será assim quando as pessoas nos descobrirem. Coco sabia que restavam apenas duas semanas daquela vida idílica que tinham partilhado. Depois, ele ia voltar para Los Angeles para começar um filme. Restavamlhes apenas dias. Depois seria a abertura da caça. Leslie também o sabia. Não o podia negar e estava preocupado por ela. Coco vivia retirada. No mundo dele, a privacidade era ignorada e o anonimato desconhecido. Tinham tido uma sorte invulgar durante os últimos três meses. Mas, assim que ele voltasse para Los Angeles e fosse para Veneza, todos os seus movimentos apareceriam nos tabloides e em toda a imprensa. Coco precisava, pelo menos, de ver e experimentar aquela vida, antes de concordar segui-la para sempre. — Vamos levar um dia de cada vez — dizia ele quando o telemóvel dela tocou. Era Jane para saber como iam as coisas. Desde a explosão com a mãe, telefonava com mais frequência. Até certo ponto, a atmosfera estava mais desanuviada entre as duas irmãs. Leslie levantou-se, deu a volta à mesa e beijou Coco antes de sair da cozinha. Não conseguira uma resposta satisfatória à sua pergunta acerca do casamento, mas sabia que Coco levaria tempo a adaptar-se às realidades da sua vida. Parecia menos nervosa do que a princípio, mas ainda não estava convencida. Ele não estava disposto a desistir, mas deixou-a a conversar com a irmã. Tinha intenções de voltar a falar no assunto. Coco sentia-se grata por ele não a pressionar, já estava bastante perturbada pelo facto de ele ter de partir em breve para São Francisco. Coco perguntou a Jane como ia a gravidez e ela respondeu que estava tudo bem. Disse que ela e Liz estavam muito entusiasmadas e que ainda era difícil acreditarem que dentro de cinco meses haveria um bebé lá em casa. Coco também tinha dificuldade em acreditar; ainda lhe parecia estranho. Nunca na vida pensara em Jane como mãe e ainda não conseguia imaginá-la nesse papel. Conhecia-a bem demais, ou talvez não a conhecesse o suficiente. — Pelo menos posso dizer-te que a vossa casa funciona perfeitamente para uma criança de seis anos. A filha do Leslie esteve aqui duas semanas e adorou-a. Divertimo-nos muito. — Houve um breve silêncio do outro lado, pois a irmã ouviu e não fez qualquer comentário.


— Já agora, como é que isso correu? — perguntou Jane calmamente. — Foi ótimo. Ela é a criança mais gira que eu já vi. Espero que tenhas uma menina assim. — Parece que foi o máximo — disse Jane, cautelosa. — Espero que não tenha partido nada. — Claro que não. É bem-comportada. — O tom de voz da irmã pôs Coco ligeiramente nervosa, sobretudo depois da conversa que tivera com Leslie e não conseguiu livrar-se de falar demais para esconder o facto de se sentir pouco à vontade. — Levámo-la a toda a parte, ao jardim zoológico, andámos de elétrico, fomos a Chinatown, a Sausalito, ao museu de cera. Divertimo-nos imenso com ela. — Divertimo-nos? Há alguma coisa que não me tenhas contado, Coco? — Ainda não conseguia acreditar que as suspeitas de Liz estivessem certas, mas aquilo que acabara de ouvir preocupara-a. — Passa-se alguma coisa entre ti e Leslie? — perguntou abruptamente e, do lado de Coco, houve uma grande pausa. Ela poderia mentir-lhe, e já antes o tinha feito, mas aquilo tinha tudo que ver com o que ela e Leslie tinham estado a falar. Já era altura de se revelarem. E fazia mais sentido fazêlo em primeiro lugar com a família. Como balão de ensaio, resolveu ser sincera com Jane. Disse uma única palavra, «Sim!», sem fazer ideia do que se seguiria. Provavelmente assombro, mas talvez aceitação, já que ele era amigo de Jane. Pela primeira vez, Jane não lhe poderia dizer que ele não era adequado, que pertencia a um mundo diferente, como fizera com Ian e com todas as outras pessoas. Mas Coco enganara-se mais uma vez. — Enlouqueceste? Tens ideia de que ele habita o mundo real? É a maior estrela deste planeta. Os meios de comunicação social vão comer-te viva. Por amor de Deus, és uma pessoa que passeia os cães de Bolinas, já pensaste o que vão fazer com isso? — Também sou filha de Buzz Barrington e de Florence Flowers, e tua irmã. Cresci nesse mundo. — E saíste da escola para te transformares numa hippy. Ele já esteve ligado a metade das mulheres sofisticadas deste mundo e a todas as estrelas de cinema que existem. Vão comer-te viva e vomitar-te. Serás um embaraço para ele. Como pudeste fazer uma coisa tão estúpida? Peço-te para viveres na minha casa e tomares conta do meu cão e acabas na cama com o meu convidado que, por acaso, é um famoso ator de cinema. Mas o que estavam os dois a pensar? — Jane, como de costume, estava a ser maldosa e cruel para com a irmã, que a escutava com as lágrimas nos olhos. — Realmente estávamos a pensar que nos tínhamos apaixonado — disse Coco em voz baixa, detestando o que estava a dizer e, pior ainda, receando que a irmã


tivesse razão. — Como pudeste ser tão estúpida? É a coisa mais idiota que já ouvi. Ele vai esquecer-te em cinco minutos assim que voltar a trabalhar. Vai dormir com a atriz principal, virá tudo nos tabloides e tu serás ridicularizada e não passarás de mais um troféu na prateleira dele. Acredita, porque eu conheço Leslie muito bem. Leslie entrou na cozinha nesse preciso momento e viu a expressão de desespero no rosto de Coco. Soube instantaneamente que Jane tinha repetido a brincadeira. Nunca falhava. Ser amigo de Jane era uma coisa, mas Leslie sabia que ela era uma megera raivosa principalmente para a irmã mais nova. Passou a mão pelos ombros de Coco e ela afastou-se dele como nunca o fizera, o que o preocupou. — Teremos de ver o que acontece quando ele voltar — disse Coco enigmaticamente enquanto Leslie saiu de novo da cozinha. Não queria interferir na conversa das duas. Era sempre educado, respeitador e discreto. — Não vai acontecer nada — disse Jane, cruelmente. — Podes ter a certeza de que estará tudo acabado no dia em que ele se for embora. Ou melhor, já acabou, só que ainda não sabes. Aí não tens futuro nenhum. Tenho a certeza de que ele é ótimo na cama, mas não vais conseguir mais nada. Serás um embaraço no mundo que ele frequenta. Coco queria dizer-lhe que já tinham falado de casamento, mas não se atreveu. E ficara indisposta com o que a irmã lhe dissera. Jane tinha razão. Estava a iludir-se se pensava que conseguiria aguentar-se no mundo de Leslie. — Espero que te controles, acordes e vejas o que tens diante dos olhos, Coco. Pelo menos não te humilhes, agarrando-te a ele. Quando ele partir, deixa-o ir com elegância. Nunca te deverias ter envolvido enquanto estavas aí em casa. Pensei que fosses mais esperta ou tivesses mais respeito por ti própria para não seres apenas mais uma que foi para a cama com um tipo que é um espanto. — Jane estava a ser cruel com a irmã, como fazia sempre que tinha oportunidade. Sempre assim fora. Grávida ou não, nada mudara. — Muito obrigada — balbuciou Coco, sufocada de desgosto. Agora desejava apenas desligar. — Depois falo contigo — e carregou no botão vermelho do telemóvel, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. Não queria dar a Jane a satisfação de a ouvir chorar. Leslie olhou para ela quando voltou à cozinha. — Mas que raio aconteceu? O que foi que ela te fez agora? Dantes eu gostava dela, mas juro que passei a detestá-la desde que te conheci e vi o que ela te faz. Sempre foi muito minha amiga, mas trata-te de uma maneira horrível, o que não me agrada nada — disse Leslie com ar infeliz. — É cá entre nós — defendeu-a Coco.


Jane conseguia arrasá-la em poucos minutos, e Leslie tinha vontade de lhe fazer o mesmo, para que ela lutasse contra alguém do seu tamanho. Coco soluçava quando ele a tomou nos braços para a consolar. — Ela tem razão — disse molhando-lhe a camisola de lágrimas enquanto ele a abraçava. Diz que eu sou vadia e lunática, que serei um embaraço para ti, que sou apenas mais um troféu na tua prateleira, que tu já estiveste com as mulheres mais elegantes deste mundo, que a comunicação social me vai comer viva e vomitar a seguir, e que tudo terminará no dia em que te fores embora. — Com aquela longa frase, Coco desabafou toda a mágoa que sentia pelo que a irmã lhe tinha dito, pelo mal que tinha feito a ambos. Coco estava inconsolável, com o coração partido. A fúria invadiu os olhos de Leslie. — Juro-te que mato essa mulher. Que raio sabe ela acerca do que a comunicação social fará ou não? E quem se importa? Tu és uma mulher maravilhosa, muito bela, inteligente, digna, agradável, e eu sentir-me-ei orgulhoso de estar ao teu lado. Mereço ficar ao teu lado. A tua irmã nem serve para te engraxar os sapatos, é uma cabra cruel e desagradável. Tem inveja de ti. Tu serás sempre mais nova do que ela. Não quero saber das merdas que ela te disse, Coco. Nada disso é verdade. Não vai acabar tudo quando eu me for embora. Quando eu me for embora, tudo vai começar para nós. Quero que venhas comigo, e vou dizer a todo o mundo a sorte que tenho por poder estar contigo. E todos se vão também apaixonar por ti. Todos os que não forem idiotas. Pergunta a Chloe — disse ele, sorrindo e abraçando-a. — A minha filha sabe. E não se pode enganar uma criança, pelo menos a minha, não. Leslie tinha razão em tudo o que dizia e era justamente o que ela precisava de ouvir, mas a maldade das palavras da irmã tinha-a magoado no fundo da alma. — Estás enganado — insistiu Coco, mas já não tão convencida. Leslie tinha feito com que as palavras de Jane perdessem a intensidade. — Vou prejudicar a tua carreira. Parecia uma criança ferida. E era-o sempre que se aproximava da irmã. — Não. Perder-te, isso sim, prejudicaria a minha carreira, porque me transformaria num bêbedo desesperado. — Ela riu por entre as lágrimas, mas Jane tinha-a preocupado seriamente com aquilo que Coco receava e não queria ouvir. — A tua irmã é um monstro — disse ele com sinceridade. — Não fales mais com ela. Deve-nos a ambos um pedido de desculpas. Amo-te e muito. Momentos depois ele levou-a delicadamente para cima e puxou-a para a cama. Foi preciso mais uma hora para acalmar Coco, mas, pelo menos, ela contara-lhe tudo e ficara aliviada. Leslie ficou ainda mais furioso. Pensou em telefonar a Jane para lhe dizer que considerava o que ela tinha feito um ataque maldoso e insensível à irmã e uma falta de respeito para com ele. Depois resolveu que não valia a pena e preferiu


concentrar-se em Coco. Não queria saber o que Jane pensava a respeito da sua pessoa. Por fim, com palavras delicadas e beijos, Coco começou a descontrair-se. Leslie sorriu-lhe e despiu-a devagar, enquanto ela o olhava. Recordava-se claramente de a irmã lhe dizer que ela era apenas mais uma para levar para a cama. — O que estás a fazer? — perguntou em voz baixa enquanto ele a beijava no pescoço, fazendo-a sentir arrepios ao longo da coluna. — Pensei em repetir aquela coisa nojenta. Quero ter a certeza de que a consigo fazer bem. É preciso muita prática para conseguir — disse, fazendo rir Coco. E quando ele acabou de a despir, já ela não queria saber do que a irmã lhe dissera. Leslie era o amor da sua vida.


CAPÍTULO 11 Depois da partida de Chloe, as últimas duas semanas da estadia de Leslie em São Francisco passaram a voar. Tentaram aproveitar cada momento para estarem juntos. Leslie tinha muita coisa a organizar antes de começar o novo filme, mas ficou com Coco até ao último minuto. Ficaria apenas dez dias em Los Angeles antes de partir para Itália onde seriam rodados os exteriores e queria que Coco o fosse visitar. Esta prometeu ir lá passar uns dias. Não voltara a falar com Jane a seguir ao ataque que ela lhe fizera. A irmã tentara telefonar-lhe no dia seguinte, mas Coco não atendera. Ouvira que bastasse e não tinha vontade de suportar mais. No dia seguinte, antes de partir para o estúdio, Jane contara o sucedido a Liz, que não se admirou ao saber do romance entre Leslie e Coco, mas ficou preocupada com a reação de Jane. — Porque ficaste tão perturbada? — perguntou Liz enquanto servia o café a ambas. — Ele é meu amigo e não dela — disse Jane, fazendo beicinho, como se tivesse sido abandonada ou perdido o controlo. — Pode ser teu amigo — recordou-lhe Liz —, mas agora é namorado dela. Tratase de uma relação diferente e de um laço muito especial. É um fulano simpático e uma pessoa séria, não creio que ande a brincar como tu julgas, nem que seja irresponsável com a tua irmã, é um homem honrado. — Tem andado a brincar até agora — insistiu Jane. — Como toda a gente — disse Liz, olhando para a companheira com uma expressão preocupada. Nem queria imaginar as coisas que Jane dissera e o desagradável que deveria ter sido. — É disso que tens medo? De que ele ande a brincar com os sentimentos dela? Estás a proteger a tua irmã ou simplesmente não queres que ela se envolva com os teus amigos? Se for esse o caso, não é justo. Coco fez-nos um favor e, se o deixámos ficar lá em casa, o que aconteceu entre eles só a eles diz respeito. Não é nada connosco. — Ele vai obrigá-la a fazer figura de parva — disse Jane, olhando para Liz. — Não concordo contigo — retorquiu Liz com firmeza. — Nem penso que seja justo da tua parte tirares essas conclusões. Os dois são pessoas adultas, sabem o que estão a fazer e o que querem. Tal como nós. — Porque é que ficas sempre do lado dos outros? Da minha mãe, de Coco. Sempre que fazem qualquer coisa de estúpido ou ofensivo, defendes as suas causas — disse Jane, petulante.


— Amo-te, mas nem sempre concordo contigo. E, neste caso, penso que não tens razão. — O que é que ele quer dela, afinal? Ela não passa de uma pessoa que passeia cães, por amor de Deus! — Não sejas preconceituosa. Sabes muito bem que ela é muito mais do que isso. E, mesmo que não fosse, ele tem o direito de se apaixonar por ela. Creio que Leslie vai ser bom para ela, se ela conseguir aceitar tudo o que acompanha o sucesso. — Não consegue — disse Jane, convencida. — Não tem coragem. Fugiu de Los Angeles, desistiu da faculdade de Direito. Desiste de tudo. — Não, nada disso — retorquiu Liz com firmeza. — E o que eles decidirem é lá com eles. — Ele vai largá-la como uma batata quente, assim que começar o novo filme, daqui a duas semanas, acho eu. Quanto tempo achas que vai durar, depois disso? Vai meter-se na cama com a atriz principal e vai esquecer-se de Coco que vive como uma hippy na praia. — Talvez não. Talvez isto seja para valer — insistiu Liz, que, sem saber porquê, tinha esse pressentimento. Tinham sido tão cuidadosos em proteger o seu segredo que ela ficara a pensar que era tudo a sério. Esperava que assim fosse. Gostava muito dos dois. — Ela tem o direito de descobrir por si própria o que o caso representa para os dois. Se ele não quiser nada sério com ela, vai descobri-lo em breve. — Vai ela e meio mundo quando lerem tudo isso nos tabloides. Não precisam dessa dor de cabeça e nós também não. Adoro Leslie, mas não quero ler que a minha irmã é o seu mais recente caso amoroso. — Julgo que ela é mais do que isso para ele. Ele também se preocupa contigo, e não se aproveitaria da tua irmã para andar com ela, só por isso. — São os dois loucos se pensam que vai resultar. Podes acreditar que não vale muito que achem que é tudo a sério. O tipo de pressão a que ele está sujeito é demasiado para Coco. Vai desmoronar-se como um castelo de cartas. — Creio que lhe deverias dar mais crédito. Ela não se foi abaixo quando Ian morreu. — Não. Mas tem sido uma reclusa nos últimos dois anos. E o que acontecerá quando os tabloides começarem a assediar a casa dela e a nossa? Quem quer uma coisa dessas? Ela vive num mundo de sonho, Liz, e ele também, se pensa que ela pode fazer parte da sua vida real. A imprensa vai fazer troça dele. — Talvez não. Se ela quiser, podem conjugar tudo. — Coco nunca vai voltar a viver em Los Angeles, e ele não pode viver na cabana


da praia com ela. Tem uma carreira importante, ainda mais importante do que a nossa. — Veremos o que acontece — disse Liz calmamente. — E penso que tudo isso não interessa nada. Se ela o vai fazer, precisa do nosso apoio, não de que a agridas dessa maneira. — Não a agredi — vociferou Jane, mas ambas sabiam que o tinha feito. Liz via-o nos seus olhos e na sua expressão culpada. — Limitei-me a dizer-lhe o que pensava. — Por vezes, para ti, é a mesma coisa. Não sabes como as tuas palavras magoam. Consegues ser muito cruel. — Está bem, está bem. Vou telefonar-lhe — prometeu Jane quando saíam do apartamento que tinham alugado. O filme estava a correr bem e voltariam a casa mais cedo do que o previsto. Afinal, Coco tinha tomado conta da casa durante todo o tempo, mas também ganhara com isso. E agora sabiam porquê. Mas quando Jane ligou a Coco pelo telemóvel, esta não atendeu, tão-pouco à tarde. Dois dias depois, Jane apercebeu-se de que Coco não queria falar com ela. Nessa altura, já se tinha acalmado e sentia-se mal com o que fizera. Decidiu ligar a Leslie para ver o que ele tinha a dizer. Leslie atendeu o telefone num tom gelado, pois reconhecera o número no visor. — O que se passa? — perguntou, conciso, parecendo ainda mais inglês. Pela reação dele, Jane percebeu o quanto tinha magoado a irmã e pôs-se na defensiva. — Coco disse-me que tiveram um romance escaldante este verão — disse Jane, tentando aligeirar as coisas, pois era assim que ainda as via. Um romance de verão, apesar do que dizia Liz. — Eu não lhe chamaria assim — disse ele, cortante. — Apaixonei-me pela tua irmã, que é uma mulher extraordinária e muito boa. Nestes últimos três meses tem estado a fazer-te um favor de que eu beneficiei, graças à tua hospitalidade. Não havia necessidade de lhe dizeres o que disseste. É imperdoável. Não sei que bicho te mordeu, Jane, mas acho melhor que te controles. Se voltares a falar com ela da mesma maneira, podes despedir-te de mim como teu amigo. Não preciso de pessoas como tu, que magoam os outros sem razão. Para ti é um desporto? Vives com uma das mulheres mais simpáticas deste mundo e a tua irmã também o é, sugiro que aprendas com elas. Leslie acertara no alvo e, conforme fora sua intenção, Jane sentia-se como se tivesse sido esbofeteada. Ele não queria que ela incomodasse Coco, nem que lhe dissesse que ele a ia largar, esquecê-la ou enganá-la no momento em que partisse. Nunca estivera tão apaixonado em toda a sua vida.


— Não preciso que me digas como hei de falar com a minha irmã. Já lhe disse o que pensava e o que continuo a pensar. Não me venhas com tretas, Leslie. Vais para a cama com a atriz principal, assim que o filme começar e nem te vais ralar com Coco, nem te vais lembrar dela para a semana que vem. — Já se conheciam há muito tempo. — Obrigado pelo voto de confiança — disse ele, zangado. — Não precisas de ser indelicada comigo ou com Coco. Não tenho mais nada a dizer-te até que aprendas a ter modos ou arranjes um coração. Talvez Liz possa emprestar-te metade do dela, pois é duas vezes maior do que o normal. Tu só tens duas coisas grandes, Jane, o teu talento e a tua boca. Respeito imensamente o talento, mas não quero ter nada a ver com o que dizes. Deixa a Coco em paz. — Porquê? Porque lhe disse a verdade? Não estarias tão zangado se não fosse esse o caso. Parece-me que te estraguei a brincadeira. — Neste caso não há qualquer brincadeira — disse ele, com calma. — Estou apaixonado pela tua irmã. E, se tiver sorte, espero convencê-la a viver comigo em Los Angeles. — Não contes com isso. Tem fobia de Los Angeles e de tudo o que a cidade representa. Tem uma espécie de trauma de infância por ter crescido junto de pessoas famosas e de sucesso. Detesta-nos e acabará por sentir o mesmo por ti. Não consegue lidar com isso. E, se bem conheço Coco, nem sequer vai tentar. — Pois eu dou-lhe mais crédito — disse ele, friamente, esperando que Jane não tivesse razão. Ela tinha um modo especial de acabar com as ilusões. — Vais ficar desiludido com ela, Leslie — disse Jane, também já mais calma. Ele chegava para ela, o que não era o caso entre as duas irmãs. Coco não conseguia enfrentar Jane, não era nem má nem dura. — Ela desilude-nos a todos. Pode ter começado um romance contigo, mas não o vai acabar. Vai desistir. Não tem o que é preciso para perceber ou viver à tua maneira. É por isso que passeia cães e não é advogada e que vive onde vive, entre os surfistas que se afastaram do mundo há quarenta anos. Também vai ser assim um dia. Já o é. — Havia amargura na sua voz. — Porque é que te aborrece tanto que ela passeie cães e tenha desistido de estudar Direito? — perguntou ele, acertando no alvo. Jane era supercompetitiva, obcecada com a realização e o sucesso, e não conseguia aceitar o que Coco decidira fazer. — A mim não me incomoda nada. Respeito-a por ter a coragem de não competir com todos vocês. Não é justo para ela. Não é tão dura, nem má, graças a Deus. É uma pessoa delicada que encontrou o seu caminho. — Muito obrigada pela análise que fazes da minha irmã. Acredita que a conheço melhor do que tu. Adoro-a, mas é uma preguiçosa. Toda a vida tem perdido oportunidades.


— Creio que agora quem a conhece melhor sou eu. É muito melhor do que tu ou do que eu. Não se vende, segue aquilo em que acredita e é assim que vive. — Se a fizeste acreditar que ela pode lidar com a vida agitada que levas diariamente, estás a enganar-te e a enganá-la. Vai-se abaixo da primeira vez que as máquinas fotográficas dispararem na cara dela ou que te vir nos braços de uma atriz. Vai fugir e ninguém a apanha. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que isso não aconteça — garantiu ele a Jane, mas também estava apreensivo. Tal como Coco. Não era fácil ser ou amar uma estrela. E Coco sabia-o bem. — Boa sorte — disse Jane, em tom sarcástico e os dois desligaram incomodados. Leslie detestava o modo como ela tratava a irmã. Era impiedosa e implacável nos seus comentários e ataques. Jane não dava descanso a ninguém e não lhe agradava nada o facto de ele defender Coco. Quem pensava ele que era? Ainda estava zangada quando falou do telefonema a Liz naquela noite. Mas, pelo menos, Liz sabia que Leslie se aguentava bem, ao contrário de Coco, que se sentia ferida pela língua afiada da irmã sempre que falava com ela. Leslie falou a Coco do telefonema quando, nessa tarde, foram passear a Crissy Field com Sallie e Jack. Coco nada disse enquanto o escutou e ele omitiu qualquer troca de palavras para não magoar mais a namorada; porém, queria que ela soubesse que estava do lado dela. Pensava que estava na altura de alguém o fazer. Caminhavam de mãos dadas. — Não precisas de fazer isso por mim — disse ela em voz baixa. — Sei defender-me. Mas não tão bem como eu, pensou Leslie, recordando as coisas que Jane dissera. Ninguém conseguia sobreviver àquele aluvião. Na sua opinião, fora muito bom Jane ter saído de casa quando Coco era pequena. — Não devias ter de te defender da tua irmã. Não é próprio de uma família. Ou pelo menos não devia ser. — Eram todos assim — disse Coco, a pensar nos pais e na irmã. — Tudo o que eu queria era sair de casa. — Percebo porquê. Não gosto nada das coisas que te diz, dos pressupostos que assume. Não suporto que ela pense que eu estou apenas a brincar contigo, que isto é um romance passageiro. És a mulher dos meus sonhos — murmurou, e inclinou-se para a beijar. Ali ficaram por um longo momento, beijando-se no atalho, enquanto as pessoas faziam jogging e caminhavam em redor deles, sorrindo ao ver o jovem casal abraçado e continuando o seu caminho. Ninguém o reconheceu nos braços de Coco.


Liz telefonou-lhes nessa noite a pedir desculpas em nome de Jane. Disse que ela estivera tensa durante todo o tempo em que tinham estado a rodar os exteriores e o facto de estar grávida representava uma grande mudança para ela. Mas lamentava que ela tivesse sido assim para eles. Leslie garantiu-lhe que o seu romance com Coco era sério, Liz compreendeu e desejou-lhes felicidades. Era mais uma coisa que tinham de tratar nos últimos dias que estavam juntos em São Francisco. Ele levou-a a jantar na noite antes de se ir embora. Pedira uma mesa sossegada ao fundo e fez as reservas em nome de Coco. Estavam os dois deprimidos. Tinham partilhado três meses e meio mágicos e ambos sabiam que nunca voltaria a ser o mesmo. A vida real ia intrometer-se, possivelmente de maneira marcante. Coco estava muito preocupada, mas ele também, sem saber como ela reagiria. Estar longe dela vários meses seria muito difícil. Receava a separação tanto como ela e detestava a ideia de ir para tão longe quando partisse para Veneza dentro de dez dias. — Quando poderás ir a Los Angeles? — perguntou ele pela centésima vez. — Já pedi a Erin, a amiga de Liz, que me substituísse durante três dias. — Ele pareceu aliviado. Jane tinha-o preocupado. Receava que Coco não quisesse mesmo ir. — Também vai passear o Jack e a Sallie. Jane não a quer em casa. — Vou tentar manter o meu horário o mais livre possível, mas também tenho de estar algum tempo no estúdio. Podes ficar lá comigo, se quiseres. Não queria estar separado dela nem um minuto e o realizador não precisava dele muito tempo. Ia fazer o mais possível antes de ela chegar. — Logo vês como correm as coisas quando começares. Posso esperar no hotel. — Ficariam no Bel-Air, o mesmo hotel onde tinham passado a noite quando ela fora com ele a Los Angeles. — Posso visitar a minha mãe, se ela não estiver muito ocupada a escrever. — Coco sabia que, se ela estivesse a escrever, não queria ver ninguém. — Telefono-lhe assim que souber quais são os teus planos. Enquanto lá estiver, és tu a minha prioridade, não a minha mãe — disse ela sorrindo-lhe e ele sentiu a ternura invadir-lhe o coração. A última noite que passaram juntos foi doce e terna. Fizeram amor várias vezes e Coco deixou-se ficar acordada até de madrugada, a ver o sol nascer, enquanto Leslie dormia nos seus braços. Não se podia imaginar ali sem ele. Ia sentir-se tão só, e nem a casa de Bolinas seria a mesma. Agora ele fazia parte de tudo, e tinha-se tornado essencial na sua vida. O tempo que haviam partilhado fora um precioso tesouro. Coco estava grata a Jane por isso, embora esta tivesse pouca confiança no que significavam um para o outro ou no que poderia acontecer a seguir. Enviara a Coco um SMS pedindo desculpa pelos exageros que tinha dito, como era seu costume. Coco respondera agradecendo-lhe, mas nunca mais tinham falado uma com a outra. A


conversa com Leslie tivera o efeito que ele desejara para Coco. Jane recuara, o que, para eles, era mais fácil. Não se importava com a opinião de Jane, apenas com o que ela dissera a Coco. Não queria que Jane a incomodasse mais, e Liz sugerira que ele deixasse a poeira assentar. De qualquer forma, Jane estava ocupada a terminar as coisas em Nova Iorque. Na noite anterior, Coco ajudara Leslie a fazer as malas. E o carro com motorista viera muito cedo. Ele tinha reuniões da produção nesse dia e ficara com ela até ao último minuto. Ia apanhar o voo das nove e tinha de sair de casa às sete e meia. Beijou-a à porta pela última vez. — Toma conta de ti — disse a sorrir. — Daqui a pouco estamos juntos outra vez. Mais tarde ligo-te, assim que tiver um intervalo. E daqui a uns dias estarás em Los Angeles — disse, para o garantir a si próprio e a Coco. Não lhe agradava nada deixála. — Amo-te, Leslie — disse ela, com simplicidade, de súbito consciente de que ele não lhe pertencia exclusivamente. Ia voltar para o seu mundo, onde também outros eram donos dele. Produtores, realizadores, companhias cinematográficas, fãs, agentes, amigos. Quer quisesse quer não, agora tinha de o partilhar. — Também te amo — respondeu ele, beijando-a uma última vez e apressando-se a ir para o carro. Não podia perder o avião. O produtor oferecera-se para lhe mandar um avião privado, mas parecera-lhe desnecessário e dissera que iria num voo comercial como toda a gente. Como Coco não ia com ele, não teria de se preocupar em protegê-la dos olhares curiosos. Ela acenou e ele pôs o braço de fora da janela para lhe enviar beijos enquanto o carro se afastava em direção a Divisadero, virava à direita e desaparecia. Coco regressou a casa com vontade de chorar. Foi para o andar de cima e deitouse na cama que em breve teria de devolver à irmã e a Liz. De qualquer forma, já não seria o mesmo sem Leslie. Por fim levantou-se e vestiu uma sweatshirt e calças de ganga. Tinha de ir trabalhar, mas não deixava de pensar nele. Sentia-se como se lhe tivessem arrancado metade do coração. Ele telefonou-lhe do aeroporto antes de embarcar, na altura em que ela passeava os cães grandes. Atendeu-o ofegante. — Não te esqueças que te amo! — recordou-lhe ele. — Eu também — disse Coco a sorrir. Falaram uns minutos até ele se sentar em primeira classe e a hospedeira lhe pedir para desligar o telemóvel. Ela recordou-se do que tinha sido a sua vida até então e que agora lhe parecia vazia sem ele. Perguntava a si própria como, quatro meses antes, pudera pensar que essa vida lhe bastava. Já não era suficiente.


Às quatro horas, depois de passear os cães no horário habitual, Coco foi ao centro da cidade. Tinha de fazer compras, pois, já que ia ter com ele a Los Angeles, seria bom chegar com bom ar e há anos que não tinha roupa elegante. Ficou na Baixa até as lojas fecharem e voltou para casa com a carrinha cheia de sacos. Comprara também duas malas de viagem. Quando fosse a Los Angeles, Leslie havia de se orgulhar dela.


CAPÍTULO 12 O avião levantou voo do Aeroporto de São Francisco às dez da manhã, e iria aterrar às onze no Aeroporto Internacional de Los Angeles. Leslie iria ter com ela ao Hotel Bel-Air ao meio-dia. Mandara um carro com motorista buscá-la ao aeroporto e esperava poder passar duas horas com ela no intervalo para o almoço, entre as reuniões; a seguir, teria de voltar. Planeavam ficar lá nessa noite. No dia seguinte, Leslie tinha um jantar oferecido pelo produtor a todo o elenco e aos atores principais. E ia levar Coco consigo. Era em casa do produtor e seria o primeiro encontro de todo o elenco do filme, um elenco cravejado de estrelas, das quais Leslie era a maior. O acontecimento importante ia ser a apresentação de Coco. Por isso, ela comprara um vestido comprido preto, sexy, e sapatos de salto alto. O carro esperava-a no aeroporto de acordo com o combinado, e o motorista pegou-lhe nas malas. Partiram a toda a velocidade para o Hotel Bel-Air, enquanto ela tentava não pensar no que poderia acontecer no dia seguinte e se concentrava em Leslie. Gostaria de saber se ele se mostraria diferente ali. Talvez tudo tivesse mudado nos últimos dias. E se Jane tivesse razão? Era o maior medo de Coco. Desta vez, tinham uma suíte ainda maior no Bel-Air e os mesmos cisnes nadavam no regato e andavam pelo parque. O hotel era sossegado e o quarto espetacular. Ainda estava a olhar em volta, depois de lhe terem trazido as malas, quando ouviu a porta abrir-se e, voltando-se, viu Leslie a sorrir-lhe. Estava com tanto medo que ela tivesse mudado de ideias e cancelado a viagem no último minuto que a pegou nos braços com tanto entusiasmo que quase a sufocou. Eram como duas crianças há muito perdidas que se encontram depois de uma guerra. Os últimos quatro dias tinham sido uma agonia para ambos. — Pensava que nunca mais chegavas! — disse ele, apertando-a com força, mas logo a afastou para a poder observar. Pareceu-lhe muito adulta. Coco vestia calças de ganga e uma camisola branca, macia, que lhe realçava a figura, um casaco de camurça e sapatos de salto alto muito sexy. Tinha o cabelo solto e escovado e usava pequenos brincos de brilhantes. Leslie nunca a tinha visto tão bem arranjada e ficou impressionado ao ver o seu bom gosto e como se sabia vestir. Quando saíam para jantar em São Francisco usavam roupa mais desportiva. Nunca vira Coco assim. — Uau! — exclamou, admirado. — Estás maravilhosa! — Sinto-me como a Gata Borralheira no baile. Posso transformar-me numa abóbora a qualquer momento. — Ora, se isso acontecer, serás a minha abóbora e vou perseguir-te por todo o reino com o sapatinho de cristal. — Coco calçava sapatos Louboutin, dignos de qualquer estrela. Conhecedor de mulheres elegantes, Leslie reconheceu a assinatura


nas solas vermelhas. — A propósito, gosto desses que tens calçados. Estava cheio de admiração por ela, mas, também a ela, Leslie parecia maravilhoso. Vestia uma das suas camisas inglesas feitas por medida, calças de ganga e mocassins de crocodilo, e trazia uma camisola de caxemira pelos ombros. Cortara o cabelo e cobrira os poucos brancos, de modo que o escurecera. Parecia o Leslie Baxter que ela vira milhares de vezes no ecrã. Mas os olhos dele disseram-lhe que lhe pertencia e era só isso que queria saber. Elogiou o quarto elegante, que ele disse ser oferecido pelo produtor. — Também me disse que podíamos usar a casa dele em Malibu para o fim de semana porque lá teríamos toda a privacidade. É em Colony, por isso, afastada. — Pensara em tudo para a fazer feliz e a afastar de olhares curiosos. Serviu champanhe para ambos. — Ao nosso futuro — disse, feliz, e depois beijou-a. Ela serviu-se de um morango gigante e deu-lhe um e, dez minutos depois, estavam na cama. Parecia que tinham passado séculos desde que estivera nos braços dele e ambos queriam compensar o tempo perdido. Nunca chegaram a pedir o almoço e ele teve de ir a correr para o estúdio para outra reunião acerca das alterações que o realizador ia fazer no guião. Assim que ele saiu, prometendo voltar às seis, Coco preparou um bom banho. Nessa tarde telefonou à mãe, mas a secretária informou-a de que Florence estava a escrever um novo romance. Coco não disse que se encontrava em Los Angeles e passou o resto da tarde a passear pelo parque e a ler um livro que trouxera consigo. O tempo estava quente e Leslie chegou às sete, uma hora atrasado. Nessa noite ficaram no quarto e encomendaram o jantar, viram televisão e falaram da reunião. Leslie gostava do elenco e do produtor, conhecia o realizador, que era difícil, mas que geralmente conseguia ótimos resultados. Só começariam a sério quando estivessem em Veneza. Queixou-se um pouco de uma das atrizes e comentou que Madison Allbright, que tinha o principal papel feminino e que Coco sabia ser uma megaestrela, era muito bonita. — Devo preocupar-me? — perguntou ela, enquanto estavam no sofá da suíte, ele sonolento, com a cabeça no colo dela, ela acariciando-lhe o cabelo, quase o fazendo ronronar de prazer. Naqueles últimos quatro dias sentira imensamente a falta dela. — Não precisas de te preocupar com ninguém nem com coisa alguma — garantiu. — Eu é que devo preocupar-me com o teu novo aspeto. Coco pendurara todas as suas roupas novas no armário e mandara passar a ferro o vestido preto, para que estivesse impecável para a festa do produtor na noite seguinte. Leslie ainda não lhe tinha dito que a imprensa estaria presente. Não queria assustá-la. Mas não havia razão para preocupações. Tanto quanto se sabia, ela era apenas uma amiga. Só depois de a verem várias vezes chegariam à conclusão de que se tratava de


um tema quente e de que ela era o seu novo romance. A namorada psicótica já estava noiva e passara à história, de modo que já não interessava a ninguém. Essa breve ligação era típica dos romances de Hollywood que iam e vinham, embora tivesse sido mais conturbada do que a maioria deles. Pelo menos, ele conseguira afastar-se da imprensa, apesar dos comentários e acusações de que era gay. Já todos haviam esquecido o caso. Foram para a cama cedo porque ele tinha uma reunião logo de manhã e Chloe telefonou-lhes antes de adormecerem. Ainda estava acordada com uma babysitter, disse, porque a mãe tinha saído. Entrara para o primeiro ano e já tinha muitos amigos. Contou a Coco que o urso cor-de-rosa, a quem dera o nome dela, estava bem de saúde. Para Coco, falar de novo com a menina trazia-lhe de volta o sabor do seu verão idílico. Adormeceram ambos como crianças cansadas na cama confortável e a rececionista acordou-os às sete da manhã. Leslie tinha de estar no estúdio o mais tardar às oito e tinha um longo dia à sua frente. Lamentou não poder vir ter com ela à hora do almoço, pois iam trabalhar até às seis ou sete para tratar de todas as notas que o realizador tinha para eles. A festa onde estariam presentes estava marcada para as oito. Leslie viria buscá-la e mudar de roupa. Coco disse que nessa altura já estaria vestida. Pensava ir arranjar o cabelo nessa tarde. — Ficas bem? — perguntou ele, preocupado, enquanto terminavam o pequenoalmoço. Bebia uma chávena de café para se manter acordado enquanto ela bebia chá. — Claro que sim — disse a sorrir. — Vou fazer umas compras e visitar um museu. — Já tinha vivido em Los Angeles, por isso conhecia bem a cidade. Poderia rever velhas amigas, mas não queria. Ia ali tão raramente que já perdera o contacto com quase todas. E a sua vida era muito diferente da das colegas da escola, que se tinham tornado donas de casa de Beverly Hills, atrizes ou produtoras. Ela era uma das poucas que fugira. A maioria adorava Los Angeles. Quando saiu, Leslie deu-lhe um beijo de despedida e disse-lhe que lhe tinha arranjado um carro com motorista. Coco tomou um duche, vestiu-se e saiu do hotel às dez. Ninguém lhe prestou atenção, pois ainda não havia nada que a ligasse a Leslie. Foi mais uma criatura anónima que entrou nas lojas de Melrose, almoçou no Fred Segal e visitou o LA County Museum of Art. Às quatro horas estava no cabeleireiro do hotel e, às seis, no quarto. Teve tempo suficiente para tomar banho, maquilhar-se e vestir-se antes de, às sete, Leslie entrar de rompante. Parecia exausto e trazia o seu guião, já muito manuseado, com um milhão de notas escritas à margem. No dia seguinte receberiam os novos, que incluiriam as alterações feitas naquele. Tinha muitas falas complicadas para decorar. — Que tal o teu dia? — perguntou ele quando a beijou. Era uma emoção vê-la ao


fim de um dia de trabalho. Era o seu refúgio e a sua paz para se afastar das pressões com que vivia enquanto estava a trabalhar. Adorava que ela fizesse parte da sua vida normal. Era tudo o que desejara, mas com que nunca se atrevera a sonhar. — Foi divertido — disse Coco, parecendo descontraída e feliz, enquanto ele sorria admirando o que ela tinha vestido: uma tanga, um sutiã de renda preta, os brincos e sapatos de salto alto e o cabelo solto e macio. Só vestiria o vestido no último momento para não o amarrotar antes de sair. — Lindo vestido — provocou-a, admirando-lhe as pernas altas e bem torneadas e a figura perfeita. Achou-a fantástica. Também arranjara as mãos e os pés no cabeleireiro. Mesmo antes de se vestir, parecia bela e sofisticada. A jovem que passeava cães e por quem se apaixonara em São Francisco transformara-se num cisne. Adorava a versão original, mas tinha de admitir que também gostava desta. Correu para a casa de banho para tomar um duche e fazer a barba e saiu uns minutos depois, recém-barbeado, com o cabelo molhado, abotoando uma camisa branca, impecável. Vestiu umas calças e um blazer de caxemira pretos e calçou mocassins de crocodilo da mesma cor; enquanto isso, ela envergou o vestido ao mesmo tempo sexy e recatado, com um decote um tanto revelador, porém, discreto. Estava tão bonita que ele ficou sem fôlego e ficaram a admirar-se um ao outro com uma expressão de prazer. Segundo Leslie, era a primeira noite que saíam juntos em público. — És a mulher mais bonita que já vi — disse ele deslumbrado com ela quando saíram do quarto. Coco levava uma bolsinha de cetim preto debaixo do braço. Tudo o que comprara era chique e realçava-lhe perfeitamente a beleza. Ele pôs-lhe a mão debaixo do braço enquanto se dirigiam ao local onde o carro os esperava, e um fotógrafo apanhou-os. Coco pareceu sobressaltada por momentos, mas recuperou mal entraram no carro. Não fez qualquer comentário e Leslie deu-lhe umas pancadinhas suaves na mão. Conversaram durante todo o caminho para casa do produtor, que era perto de Bel-Air. Quando chegaram à mansão apalaçada viram que havia empregados para estacionar os carros e que a festa era obviamente maior do que esperavam, e que também estavam presentes outros artistas que trabalhavam no filme. Não havia paparazzi, e Leslie fê-la entrar rapidamente, aliviado, para momentos depois se encontrarem num átrio de mármore, com uma enorme escadaria e uma coleção de arte digna do Louvre. Havia dois Renoir, um Degas e um Picasso e, quando entraram na sala, já se reunia uma multidão entre belas antiguidades e valiosíssimos objetos de arte. O produtor saudou-os calorosamente e beijou Coco na face. — Já ouvi falar muito de si — disse afetuosamente. — Conheci o seu pai. Foi meu agente durante muitos anos. Conheço a sua mãe e a sua irmã. Minha querida,


descende de uma linhagem de lendas de Hollywood. Nesse momento, Leslie sorriu para uma mulher espetacular que se aproximou deles e Coco apercebeu-se imediatamente de quem se tratava. Madison Allbright, que contracenava com ele no filme. — Maddie, gostaria de te apresentar a Coco — disse Leslie, aproximando as duas mulheres, enquanto o anfitrião desaparecia no meio da multidão para receber os convidados que acabavam de chegar. — Não deixou de falar em si durante toda a semana — disse Madison, a sorrir. Vestia calças de ganga, saltos altos e um top cravejado de pedrarias. Tinha um corpo incrível e uma longa cabeleira loura. Era da mesma idade de Coco, mas parecia ter dezoito anos, com os seus olhos enormes e uma pele impecável. As duas mulheres falaram durante alguns minutos enquanto Coco tentava não se impressionar demasiado pelas pessoas que lhe iam sendo apresentadas. Recordou-se de que já conhecera gente importante em casa dos pais, mas já passara muito tempo desde aí. Estava mais nervosa do que parecia, contudo Leslie nunca se afastou dela, apresentou-a a toda a gente, rodeando-lhe sempre a cintura com o braço. Queria que ela sentisse o seu apoio. Sabia que, para ela, não estava a ser fácil. Antes de ser servido o jantar, o pessoal da comunicação social surgiu do nada e começou a tirar fotografias das estrelas mais importantes. Leslie estava no topo da lista. A primeira repórter olhou para Coco com ar inquisidor e ergueu uma sobrancelha. Olhou Leslie nos olhos e fez a pergunta cuja resposta os seus fãs gostariam de saber: — Alguém, novo? — Nem por isso — respondeu Leslie a rir. — Já nos conhecemos há muito tempo. Sou amigo da família há anos — disse rodeando-lhe firmemente a cintura. Sentia Coco tremer e deu-lhe a mão. — Como se chama ela? — perguntou-lhe a repórter. — Colette Barrington — respondeu a própria Coco, usando o nome completo. — É uma das filhas de Florence Flowers? — perguntou, escrevendo apressadamente num bloco. — Sim, sou. — Leio todos os livros da sua mãe. E adoro os filmes da sua irmã — disse com um sorriso de orelha a orelha. Coco conhecia bem o género. — De quem é o vestido? Apeteceu-lhe responder «é meu», mas sabia que tinha de seguir as regras do jogo. Como concordara vir com Leslie, deveria fazer bem as coisas. No mínimo devia-lhe isso.


— Oscar de la Renta. — É muito bonito — comentou, enquanto escrevia e, depois, voltou-se para Leslie, enquanto o fotógrafo disparava a câmara. Leslie mantinha o braço em redor da cintura de Coco. — Então, Leslie? Desta vez é a sério ou quê? O «quê» seria apenas mais uma cara bonita. — Miss Barrington teve a bondade de me acompanhar esta noite, o que é uma enorme imposição para qualquer pessoa civilizada — disse ele, lançando o seu ofuscante sorriso à repórter. — Não creio que tenhamos de lhe destruir já a reputação. A repórter riu-se e, por enquanto, aquilo pareceu satisfazê-la. — Quando parte para Veneza? — perguntou interessada. — Na próxima semana. — Leslie conhecia todas as evasivas e como se desviar daquilo de que não queria falar. — Está entusiasmado por ir trabalhar com Madison Allbright? — Muito — disse ele com uma expressão exageradamente deslumbrada e a repórter riu mais uma vez. — Isto é, olhe para a blusa dela. Todas aquelas pedrarias podem ofuscar ou cegar um homem. — Depois pareceu falar a sério: — Ela é uma atriz maravilhosa e é uma honra trabalhar com ela. Tenho a certeza de que fará um esplêndido trabalho. — Boa sorte para o filme — disse a repórter e passou para outra pessoa. Fazia o mesmo tipo de perguntas a toda a gente, tal como mais meia dúzia de jornalistas que haviam sido convidados para o santuário da casa do produtor. Tinham sido escolhidos cuidadosamente, assim como as publicações que seriam mais favoráveis. Leslie comentou ao ouvido de Coco que aquilo parecia uma exposição de gado. Também por lá andava uma dezena de fotógrafos. Todos tiveram a sua vez com Leslie e tiraram-lhe fotografias com Coco, outras sozinho e três quiseram fotografias dele com Madison. Todos cooperaram com a imprensa e, a seguir, repórteres e fotógrafos foram conduzidos à saída e o jantar foi servido em mesas em redor da piscina. Havia orquídeas em todas as mesas e centenas na água. Leslie olhou-a com atenção quando se sentaram. — Estás bem? — Ela tinha feito um trabalho fantástico com a imprensa, exatamente como devia ser, agradável e delicada, um sorriso simpático, sem dar qualquer informação, a não ser sobre o vestido. Era um alívio estar com alguém que não tivesse trepado por cima dele, não o tivesse beijado, nem se agarrasse a ele como uma serpente, que era o que faziam as atrizes com quem costumava sair. Não disputava com ele as luzes da ribalta, nem impunha uma relação com ele, embora até a tivesse. Mas era tão elegante e discreta que seria impossível dizer se era apenas


uma amiga com quem saía naquela noite ou alguma coisa mais. Estava-lhe grato pela discrição. Ao observá-la, sabia que ela já tinha passado por aquele tipo de coisas e que agia melhor do que pensava. — Muito bem — disse ela, sorrindo. Teria sido uma noite perfeita sem a imprensa, mas esta podia sempre ser evitada. Suspeitara que os repórteres lá estivessem, mas nem se atrevera a perguntar. Não se quisera assustar mais do que já estava. — Foste esplêndida — murmurou-lhe ele e, depois, apresentou-a a toda a gente que estava na mesa, a maior parte atores do filme e seus acompanhantes. Fora uma bela noite e, à saída, agradeceram ao produtor e à mulher. Foram dos primeiros a partir. Para Leslie era suficiente. Tinha cumprido o seu dever e via que Coco também estava cansada. Lá fora estavam quatro fotógrafos à espera dos convidados que iam saindo e saltaram na direção de Leslie, mas ele sorriu, sem pestanejar e deu a mão a Coco. — Como se chama ela? — gritou-lhe um deles. — Gata Borralheira! — respondeu Leslie. — Tenham cuidado ou podem transformar-se em ratos — brincou enquanto se metia com elegância no carro, puxando rapidamente Coco para o seu lado. Fecharam a porta e partiram enquanto Leslie soltava um profundo suspiro de alívio e olhava para ela. — Deves gostar de saber, minha querida, que também eu odeio estas noites. Dão muito trabalho. Parece-me que a cara me vai cair se tiver de sorrir mais uma vez. — Estiveste fantástico — disse ela sorrindo-lhe com orgulho. — E tu também. Foi horrível para ti, não? — perguntou, preocupado. — Não — disse ela com franqueza. — É estranho, mas foi divertido. Do pouco se faz muito. A Madison é linda — comentou, tentando não parecer preocupada, mas estava. Lembrava-se de tudo o que a irmã lhe tinha dito acerca das atrizes que contracenavam com ele, e ele também se lembrou. — Acho que és muito mais bonita do que ela, que parecia vulgar com aquele top. E os seus seios novos estão o dobro do que estavam quando a vi pela última vez. Tu estavas muito mais bonita e elegante. Tive muito, mas muito orgulho em estar contigo — disse, e era evidente que estava a ser sincero. — Obrigado por teres ido. — Adorei estar contigo — disse ela, com sinceridade. — Nem se preocupara com a comunicação social como pensara. — Se não for pior do que isto, aguento bem. No rosto de Leslie havia uma expressão infeliz, mas queria ser honesto. — É muito pior do que isto — admitiu. — Esta noite todos se portaram muito


bem, de contrário teriam levado nas orelhas. Sorriu-lhe mais uma vez e, logo que chegaram ao hotel, dirigiram-se imediatamente para o quarto, não fosse um dos fotógrafos tê-los seguido, mas tal não aconteceu. Por vezes, Leslie tinha guarda-costas para o acompanharem, mas não naquela noite. Tudo estivera calmo e controlado. Leslie despiu o blazer, tirou os sapatos e estendeu-se no sofá, mas depois lembrou-se de uma coisa que o produtor lhe tinha dado e procurou-a no bolso para lhe mostrar. — Tenho as chaves da casa de Malibu. Podemos lá ficar este fim de semana — disse com ar vitorioso e atirou-as para cima da mesa. Era sexta-feira à noite e ele planeava levá-la lá na manhã seguinte quando acordassem, não muito cedo, esperava ele. Coco despiu o vestido, pendurou-o e seguiu Leslie até ao quarto. A noite tinha sido um sucesso e ela tinha sobrevivido. Era emocionante estar com Leslie que a fizera aperceber-se do orgulho que ele tinha nela. O sentimento era recíproco. Minutos depois metiam-se ambos na cama para descansar. Por muito bem que tivesse corrido, fora extenuante para ele e até para ela, e ambos estavam satisfeitos por tudo ter acabado. Agora podiam divertir-se o resto do fim de semana. Leslie estava muito cansado e adormeceu antes de ela apagar a luz. Ela beijou-lhe suavemente a face e ele nem se mexeu. Estava morto para o mundo. Para ele, o dia tinha sido muito longo. Na manhã seguinte, quando acordaram, mandaram vir o serviço de quartos e Leslie espreitou cuidadosamente o jornal. Entregou-lho sem comentários. Lá estava: uma fotografia de ambos a conversar com Madison Allbright. O nome de Coco aparecia por baixo da fotografia, mas não havia qualquer comentário. — Muito bem — disse Leslie, satisfeito. Meia hora depois, saíram do hotel e partiram para Malibu. Encontraram facilmente a casa do produtor. O frigorífico estava abastecido com tudo o que pudessem precisar e a casa, situada exatamente na praia de Colony, era espetacular. Coco sentia-se de novo a Gata Borralheira. Estava a viver com ele um conto de fadas. — Isto não é exatamente Bolinas — comentou com um sorriso. Era uma casa enorme, desenhada por um famoso arquiteto e decorador, toda em branco e azulclaro. O quarto tinha uma cama enorme com dossel. Foi um fim de semana perfeito. Caminharam na praia. Dormiram nas cadeiras confortáveis do alpendre, jogaram às cartas, viram filmes, fizeram amor e falaram sobre centenas de coisas. Era exatamente o intervalo de que precisavam e ele prometeu ir a Bolinas no fim de semana seguinte. Planeava seguir para Veneza


partindo de São Francisco. Para ele era mais complicado, mas queria estar com ela até se ir embora. — Que tal ires visitar-me assim que eu estiver instalado? — perguntou preguiçosamente, enquanto estavam estendidos no alpendre, depois de um longo passeio na praia. — Não creio que possa enquanto Jane e Liz não voltarem para casa. E não tenho a certeza de conseguir quem me substitua por tanto tempo, mas vou tentar. De qualquer modo, vais estar muito ocupado — acrescentou com sensatez, e ele ficou desapontado. Não queria estar sem a ver até voltar de Itália. — Tenho sempre de voltar ao hotel. Tu podes ficar no estúdio ou descobrir Veneza. É uma bela cidade. — Vou tentar. Prometo. Liz disse que voltariam para casa dentro de duas semanas. — Uma semana depois de ele partir. — Vou ver se Erin me pode substituir. — Ela estava a trabalhar para Coco nesse fim de semana e o dinheiro e o trabalho pareciam agradar-lhe, o que era muito bom. Coco tinha a sensação de que, se Erin quisesse, poderia substituí-la muitas vezes. Mas como tinha outro part-time, precisavam ainda de combinar tudo. — Vou enlouquecer — disse Leslie, desalentado. — Detesto ficar longe de ti — confessou. Ela também não gostava. Tinham sido quatro dias terríveis longe dele quando ele deixara São Francisco. E aquilo era apenas o princípio. Ia muitas vezes filmar no estrangeiro durante muitos meses e até durante um ano. — Vou sentir a tua falta — suspirou ela, tentando não pensar. Mas, pelo menos, ele iria a Bolinas no fim de semana antes de partir. Ela queria perguntar-lhe se ela já tinha pensado melhor em mudar-se para Los Angeles, para ir viver com ele, mas não se atrevia. Sabia que era cedo demais. E as coisas não iriam correr tão bem como na noite anterior. O espetáculo tinha sido maravilhosamente bem orquestrado. Noutras alturas, deixada à vontade, a imprensa descontrolava-se e havia uma perseguição frenética para conseguir notícias. Sabia como Coco odiava essa parte da sua vida, que não era a dela. Não precisava de a suportar, mas ele sim. E podia, por vezes, tornar-se uma loucura, não era maneira de viver para uma pessoa saudável. Voltaram para o hotel no domingo à tarde. À porta, havia um fotógrafo solitário à espera, que os fotografou quando saíam do carro. Coco percebeu que Leslie ficara aborrecido, mas enfrentou a câmara fotográfica com um sorriso esplendoroso. A sua filosofia era: se te apanharem, que seja pelo menos com um ar simpático e não com a cara de um assassino de machado em punho pronto a desferir o golpe. Era por isso que ela sempre o vira sorridente e agradável nas fotografias da imprensa.


Apressaram-se a chegar ao quarto, e o fotógrafo não os seguiu. Os paparazzi não eram tolerados no perímetro do Bel-Air. Ficaram no quarto com os estores corridos até ao momento de partirem. Fizeram amor e dormiram até que, com relutância, ele a acordou, ela fez as malas, tomou duche com ele e vestiu-se. Ia apanhar o último avião para São Francisco. Erin já não a podia substituir por mais tempo. Tinham estado juntos três dias e Leslie precisava de trabalhar muitas horas durante a semana nas reuniões finais. Foi o próprio Leslie quem levou as malas, para não terem de chamar o paquete, entregou-as ao motorista e, quando se voltou para dizer qualquer coisa a Coco, uma série de flashes disparou diante deles. Naquela sucessão de luzes, Coco ficou momentaneamente cega, mas, sem perceber o que lhe estava a acontecer, sentiu que alguém a empurrava e a fazia voar para dentro do carro. Leslie aterrou em cima dela e gritou ao motorista que arrancasse. Ela endireitou-se no assento sufocada e olhou para Leslie. — O que se passou? — perguntou admirada. — Um enxame de pararazzi. Minha querida, lá se vai a tua reputação. Nunca mais serás considerada uma amiga que me fez companhia. Agora é que começa a diversão. — Parecia resignado ao dizer isto. Passara já pelo mesmo centenas de vezes, mas esta era para ela a primeira, e muitas outras a esperavam. — Magoei-te quando te empurrei? — perguntou preocupado, mas ela abanou a cabeça. — Aconteceu tudo tão depressa que nem percebi o que se passou. Não sabia se tinhas sido tu ou eles a empurrarem-me. — Não queria que te assediassem. Tê-lo-iam feito pois eram cerca de dez. Suponho que se tenha sabido ou então vieram investigar o que se passa. Conseguiram o que queriam e vão seguir-nos o rasto. Ainda bem que partes esta noite. Seria muito incómodo para ti. Não saberiam onde a procurar em São Francisco, o que era muito bom para ela. Leslie parecia despreocupado e Coco imitou-o tentando não se aborrecer. Mas não havia dúvida de que o segredo fora descoberto. Bem-vinda ao mundo de Leslie. E ele tinha razão, o ambiente não era sempre tão controlado como na noite anterior. Os repórteres tinham sido mais agressivos, embora ele a tivesse protegido rapidamente com os instintos apurados pela experiência. Levou-a até à linha de segurança do aeroporto e beijou-a. Ali não havia fotógrafos, apenas pessoas que olhavam para ele, ficavam admiradas quando o reconheciam e falavam em surdina umas com as outras. Só depois de Leslie beijar Coco e ela se afastar é que alguém o deteve para lhe pedir um autógrafo. Ele acenou, ela sorriu-lhe e depois passou pela segurança. Já tinha saudades dele, sentindo ao mesmo tempo que a carruagem se transformara numa abóbora, quando ultrapassou


sozinha a porta de embarque.


CAPÍTULO 13 Para grande espanto de Coco, a mãe telefonou-lhe às oito da manhã do dia seguinte, ainda antes de ela sair para trabalhar — Meu Deus, mas em que te meteste? — Coco não fazia ideia do que a mãe estava a falar. Estava atrasada por se ter deitado tarde na noite anterior e tinha pressa de ir buscar os primeiros cães. — Vou sair para trabalhar. Porquê? — Bem, deves andar também a fazer outras coisas. Há por aqui todo o tipo de mexericos sobre ti e Leslie Baxter no jornal desta manhã. Dizem que passaste o fim de semana com ele em Bel-Air e que és a sua última conquista. Quando foi isto? — perguntou a mãe, interessada. — No verão — disse Coco com cautela. Não queria discutir o assunto com a mãe, nem ouvir os comentários que já ouvira da parte de Jane. A mãe acalmara-se um pouco por causa do seu romance com um homem muito mais novo, mas era a mesma pessoa de sempre. E nunca aprovara qualquer homem na vida de Coco. Se o fizesse agora seria a primeira vez, e Coco não o julgava possível, havia coisas que não mudavam. — Não achas que é um pouco demais para ti? — É uma pessoa perfeitamente normal quando não está em Los Angeles. — São todos, pelo menos a maioria é, quando está noutro lugar. Mas Coco, ele é uma estrela e tu não. No final, ele vai voltar para onde veio. Provavelmente para ele és um sopro de ar fresco, mas não vai durar — avisou-a a mãe, repetindo delicadamente o que a irmã já lhe dissera. — Obrigada pelo teu voto de confiança — limitou-se Coco a dizer. — Mas agora não posso falar do assunto, estou atrasada. — Bom, diverte-te com ele, mas não o leves muito a sério. — É isso que fazes com Gabriel? — perguntou Coco. — Claro que não. Porque dizes uma coisa dessas? Estamos juntos há um ano e temos muito respeito um pelo outro. Não se trata de um romance de verão — disse num tom ofendido. — Pois bem, talvez isto também não seja. Vamos ver o que acontece. — Vais ter um desgosto quando ele te abandonar por uma atriz famosa. Além disso, é velho demais para ti. — Coco revirou os olhos ao ouvir tal coisa. — Mãe, não acredito que, logo tu, me digas uma coisa dessas. Tenho de ir.


— Bom, tem cuidado. Diverte-te enquanto dura. — Desligaram as duas e Coco sentiu-se perturbada ao entrar na carrinha. Porque seria que toda a gente pensava que ele andava a brincar com ela e depois a abandonaria? Por que razão não poderia uma estrela de cinema apaixonar-se ou ser uma pessoa normal, ou querer mais do que um romance apressado com a atriz que contracenava com ele? Porque seria que todos pensavam que ela nada representava para ele? Era a afirmação daquilo que pensavam dela, ainda mais do que daquilo que pensavam dele. Consideravam-na tão insignificante que parecia nada representar para ele, porque não o merecia. Sentiu-se deprimida durante todo o dia, e só conseguiu falar com Leslie ao final da tarde, pois ele estivera sempre em reunião. Por fim, ele telefonou-lhe às seis horas, parecendo extenuado. — Olá, meu amor. Como foi o teu dia? — perguntou, e ela contou-lhe imediatamente o telefonema da mãe. Também tivera um telefonema de Jane, mas não o atendera. — Acaba por ser um estereótipo — queixou-se-lhe ela. — O famoso ator de cinema e a rapariga que passeia cães. A minha mãe fala comigo como se eu não passasse de uma fulana qualquer, boa para levar para a cama, e só temporariamente. — Não te subestimes — disse ele num tom grave. — Creio que és boa para levar para a cama a longo prazo. — Ora, cala-te — disse ela, sorrindo pela primeira vez nesse dia. — Não deixes que te irritem. Hoje há imensas coisas nos jornais, incluindo uma ótima fotografia minha com as duas mãos no teu traseiro, para te empurrar para dentro do carro. Creio que essa é a minha preferida. — Que dizem eles? — perguntou Coco, preocupada. — Um dos jornais diz que és a «minha última beleza». Outro chama-te a minha namorada misteriosa. As coisas do costume. Não fizemos nada de mal. Tu não estavas a cair de bêbeda e eu também não. Não fizemos sexo em público, embora pudéssemos experimentar. Diz apenas que és a minha última conquista, ou a minha atual namorada, ou seja lá o que for. Depois de andarmos uns tempos, vão acalmar. Agora somos novidade e todos querem saber onde vives e quem és. Tu não vives aqui e eu vou-me embora, por isso não há problema. Mas, e se ela vivesse com ele? Segui-los-iam sempre. Era exatamente por isso que não se queria mudar para Los Angeles. — Não te preocupes. Tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde. Agora já nos revelámos e pronto. É mais ou menos como perder a virgindade para a imprensa, só dói a primeira vez e, desde que nos comportemos decentemente em público, não haverá problema.


Coco pensou que ele estava a ser demasiado otimista, mas não queria discutir o assunto. Ainda estava a pensar naquilo quando a mãe voltou a telefonar-lhe. Coco pensou não atender, mas, por fim, fê-lo. Florence estava a ligar para dizer a Coco que uma repórter lhe tinha telefonado a perguntar onde a filha morava. Coco pensou que talvez se tratasse da repórter da festa que lhe perguntara se era filha de Florence Flowers. Segundo Leslie, um dos jornais tinha relatado o facto. E a mãe mandara a secretária dizer-lhe que ela vivia na Europa e estava apenas a passar uns dias em Los Angeles. — Foi uma resposta muito inteligente, mãe, obrigada. — Sentiu-se agradecida, embora a mãe pensasse que o interesse de Leslie por ela não se manteria por muito tempo. — Fi-los perder o rasto por enquanto. Quando vais estar com ele outra vez? — A mãe já estava curiosa. — Este fim de semana em Bolinas. Ele parte na próxima segunda feira para filmar em Veneza e ficará lá cerca de um mês ou dois. — Pode ser o fim do vosso romance. Ele vai trabalhar com atrizes e tu estarás a nove mil quilómetros de distância. Os romances de Hollywood não costumam sobreviver a essas coisas. Se estão longe da vista, o coração fica mais perto das pessoas com quem estão a trabalhar e não das que deixam em casa. Mais ou menos como num cruzeiro. — Obrigada pela esperança que me dás — disse Coco, taciturna. Voltava a ouvir a mesma conversa. — Tens de ser realista se queres andar com uma pessoa como ele. Coco teve vontade de perguntar à mãe se estava a ser realista com o rapazinho com quem namorava, mas não o fez. Tinha mais respeito pela mãe do que a mãe tinha por ela. — Quem contracena no filme com ele? — perguntou Florence, interessada. — Coco desfiou o nome dos atores, entre eles, o de Madison Allbright. — Provavelmente será ela — disse a mãe. — É uma jovem lindíssima. Será difícil um homem resistir-lhe. — Obrigada, mãe — disse Coco de novo deprimida e, depois de agradecer à mãe tê-la protegido da imprensa, desligou o telefone. Ficou acordada durante horas a pensar no que ela tinha dito. De manhã, Coco estava em pânico por causa da atriz que ia contracenar com Leslie, mas sentiu-se embaraçada para lho dizer, por muito preocupada que estivesse e, como resultado, teve uma semana desgraçada. Nunca mencionava o nome de Madison quando falava com ele. E Coco esforçou-se o mais que pôde para não desatar a chorar quando ele chegou a casa na sexta-feira à noite.


Leslie entrou com a chave que tinha consigo e encontrou Coco na banheira com o cabelo acabado de lavar, enrolado numa toalha. Olhou para ela e esboçou um enorme sorriso; despiu-se e meteu-se na banheira. Ela também lhe sorria. — É a isto que eu chamo boas-vindas — disse, encantado, enquanto a beijava. Minutos depois de ter entrado na banheira fizeram amor. E, apesar de todos os receios dela durante a semana, a noite foi perfeita. Era como se ele nunca tivesse ido para Los Angeles. Tudo parecia tão bem como sempre. Na manhã seguinte, partiram com os cães para Bolinas e desfrutaram de um tempo maravilhoso. Era o habitual nos fins de setembro, mais quente do que no resto do verão. As noites estiveram mornas e perfumadas, o que era raro. E nunca se tinham sentido tão apaixonados. Não havia qualquer sinal de que ele se interessasse por Madison Allbright, mas também ainda não estavam em Veneza. Todavia, Coco já não se sentia preocupada. Enquanto estavam abraçados no alpendre, sob o céu estrelado, não guardava qualquer dúvida no seu espírito de que ele estivesse tão apaixonado por ela como ela estava por ele. Ele repetia-o uma e outra vez e ela acreditava. Não havia dúvidas para não o fazer. Leslie implorara-lhe que fosse a Veneza e ela acedera. Leslie trouxera consigo todos os recortes dos jornais que falavam deles. Tinham publicado muitas fotografias e não havia dúvidas de que a imprensa estava interessada em segui-los. Conversaram sobre o assunto ao pequeno-almoço no domingo de manhã. — Sabíamos que mais cedo ou mais tarde isto ia acontecer — disse Leslie filosoficamente. — Qualquer cara nova lhes interessa. Não têm mais nada a fazer do que procurar mexericos e histórias interessantes. — Não sou lá muito interessante — disse Coco olhando de novo para as fotografias de todos os jornais enquanto bebia o chá. — Espera que alguém lhes diga que passeio cães. Então vão ficar satisfeitos. Mas tinham preferido interessar-se pelo facto de ela ser filha de quem era. Coco já dissera a Leslie que tinham telefonado à mãe. — És mais do que interessante — garantiu-lhe ele e inclinou-se para a beijar. — O que pensas que Jane lhes dirá se lhes telefonarem? — Que eu sou uma hippy preguiçosa e um zero à esquerda, ou qualquer coisa igualmente encantadora — disse Coco com ar triste. — Se ela fizer uma coisa dessas, mato-a — disse Leslie com veemência. — Sabes? Creio que isso tudo não passa de inveja — continuou, pensativo, olhando para o oceano e depois para Coco. — Creio que ela está chateada porque tu és bonita, fazes o que queres e serás sempre onze anos mais nova. Creio que é suficientemente


narcisista para considerar tudo isso um insulto. Talvez tenha tido ciúmes de ti quando eras pequena e tu não o soubesses. Não creio que tivesse a ver com o facto de teres desistido da faculdade de Direito, ou de teres ido viver para Bolinas. Isso foi apenas uma desculpa. »Creio que está furiosa contigo por aquilo que és e que ela não é. Mais jovem, por exemplo. És doce, bondosa, delicada, sensível. As pessoas gostam de ti. Jane é dura, teve de o ser para chegar onde chegou. A única coisa afetuosa e simpática nela é Liz. É insuportável sem ela. Todos preferem Liz e também te preferem a ti. Ainda por cima, foi a filha única, adorada até que apareceste tu quando ela tinha onze anos. Estragaste tudo. Creio que ainda não te perdoou e é por isso que diz tantos disparates e te acusa sei lá de quê. Deita-te abaixo e trata-te como uma criança de cinco anos. — Coco apercebia-se de que ele tinha razão no que dizia e isso lançou alguma luz sobre a atitude negativa que, desde que se lembrava, a irmã mostrara em relação a ela. Era certo que a teoria dele o explicava. — O pior de tudo é que eu pareço ter cinco anos quando estou perto dela. Jane assustava-me de morte quando eu era pequena. Ameaçava-me constantemente de que iria arranjar-me sarilhos com os meus pais e tratava-me como uma escrava. Ainda o faz. — Coco suspirou. — E eu deixei que o fizesse. Não sei porque estava sempre tão zangada. Sempre foi a favorita da minha mãe, para o pai era o máximo, principalmente quando começou a ser produtora. E, até antes, ele ficou encantado quando ela foi para a escola de cinema da Universidade da Califórnia. Não creio que a minha ida para Princeton o tenha impressionado tanto. Pensava que era demasiado convencional. Redimi-me quando entrei na Faculdade de Direito de Stanford, mas nunca quis ir para lá. Só queria fazê-lo feliz e depois detestei todo o tempo que lá estive. E tratei de fracassar. O que eu de facto queria era fazer um mestrado em História de Arte e trabalhar num museu. Ele disse que, com isso, nunca ganharia um cêntimo e que era uma coisa estúpida. — Então porque não o fazes agora? — sugeriu Leslie com os olhos a brilhar. — Ou então podes ser veterinária — disse, provocando-a. Ela adorava todos os cães que passeava e tratava-os como se fossem crianças. Mas ele sabia que havia nela uma paixão pela arte. Tinha a pequena casa cheia de livros. — De que me serviria isso agora? É um pouco tarde para voltar à escola. — Não, não é. E, se gostas, porque não? Podes ir para a Universidade da Califórnia se fores viver comigo. Ou para Stanford, ou Berkeley, se formos morar para lá. — Continuava a tentar convencê-la a viverem juntos. Para ele seria mais fácil Los Angeles, mas estava disposto a mudar-se para São Francisco por ela. — Talvez — disse, pensativa. — Sempre estive interessada em restauro de arte. Tive uma cadeira na faculdade e achei fascinante. — Nunca o admitira a ninguém


senão agora a ele. Ian não se interessava por arte, apenas pelo ar livre, e ela era mais jovem e aceitara-o. Na opinião do pai, uma carreira académica, a não ser Direito, era uma perda de tempo. — Porque não aproveitas algum tempo a informar-te? Depois decides o que hás de fazer. Talvez não faças nada, mas concordo contigo; penso que valeria a pena informares-te. — Coco era uma criatura completamente diferente do resto da família, e era óbvio até para ela que ele respeitava isso e a mãe e a irmã não. Leslie fazia com que ela se sentisse bem consigo mesma. E as suas teorias acerca da raiva de Jane encontraram eco na sua pessoa. — Se estás interessada em restauro, Veneza será especialmente interessante para ti. Há anos que se esforçam para que a cidade não fique destruída. É uma preciosidade. Leslie já lá estivera, mas Coco não. Fora a Florença, Roma, Pompeia e Capri, de iate com os pais. Mas nunca a Veneza. — Não vou lá para ver a arte — disse-lhe a sorrir. — Vou para te ver. — Podes fazer as duas coisas. De qualquer forma, vou estar ocupado durante muito tempo. E se gostas de igrejas, há milhares delas, cada uma mais bonita do que a outra. — Parecia emocionante e, por fim, ela prometeu ir assim que Liz e Jane voltassem. Ainda não tinham resolvido o problema do local onde iriam viver, ou até se iriam ou não viver juntos, mas, aos poucos, faziam planos juntos e Coco pensava que tudo o mais aconteceria se tivesse de acontecer. Se saísse de São Francisco teria de acabar com a sua pequena empresa. O pai deixara-lhe o suficiente para viver com conforto, mas sentiria sempre remorsos se não trabalhasse para ganhar a vida. A sua empresa de passear cães era, afinal, mais lucrativa do que esperara, e chegava para pagar todas as suas necessidades. Permitia-lhe poupar e investir o resto para ter dinheiro de parte para o futuro. Não queria ficar dependente. A mãe e a irmã ganhavam ambas muito e tinham feito fortuna com as suas carreiras, ao contrário de Coco, que tinha um trabalho muito mais modesto. Durante a tarde, Leslie insistiu com ela várias vezes acerca do dia em que iria para Veneza. Ela apenas lhe prometeu que partiria em breve, provavelmente dentro de poucas semanas. Jane e Liz ainda não lhe tinham dado a data exata do seu regresso, mas ela já avisara Erin de que precisaria dos seus serviços para a substituir quando partisse. Queria ficar uma ou duas semanas em Itália com Leslie, embora ele esperasse convencê-la a ficar mais tempo. Voltaram para a cidade depois do pôr do sol. Leslie conduzia e Coco olhava para os rochedos e para o mar, que adorava, pensando na sorte que tinha em viver ali. Ainda não se sentia pronta para deixar aquilo. Fora feliz em Bolinas nos últimos três anos. Para ela seria um sacrifício deixar o seu confortável refúgio na praia. Ninguém a incomodava nem interferia na sua vida. Não tinha de se preocupar com a imprensa


quando estava com ele na casa da praia. Estava perfeitamente sossegada, mas sabia que se iria sentir muito só sem ele. Leslie passara a ser parte de tudo o que fazia. E o mundo dele estava a anos-luz de distância daquele. Gostaria de saber se, no futuro, continuariam a poder passar ali algum tempo no intervalo de dois filmes. Adorara ter estado na praia com ele naquele verão, mas Leslie estava habituado a cidades grandes e a uma vida mais agitada. Sabia que, até certo ponto, teria de adaptar a sua vida à dele. Era inevitável, já que ele tinha uma carreira muito exigente e, por enquanto, ela nada tinha senão um emprego. Passaram a noite a ver um filme antigo, que ela nunca tinha visto, e de que gostou muito. Leslie, conhecedor de todos os filmes, disse-lhe que se tratava de um clássico. Coco adorava aprender com ele. Sabia que ele era não só um grande ator de êxitos comerciais, como se interessava profundamente e era um apaixonado pela sua profissão, tendo estudado filmes famosos e pouco conhecidos e a razão por que eram importantes. Confessara-lhe uma vez que, quando era pequeno, quisera ser Sir Laurence Olivier, mas tinha consciência de que tal nunca aconteceria. Pelo menos queria ser o melhor possível nos filmes que fazia. Os produtores costumavam contratá-lo para filmes que capitalizavam os seus encantos, mas, mesmo assim, era bom ator e estava sempre de olho em papéis mais sérios. O seu desempenho era excelente até nos papéis mais leves. Jane dissera exatamente isso acerca dele e tinha um profundo respeito pelo seu trabalho. Leslie também gostava de fazer comédia e tinha um jeito especial para esse género. Emprestava à representação o seu talento natural para o humor e o público adorava os seus filmes cómicos. Mas o seu coração desejava sempre alguma coisa mais profunda. Porém, fora inevitavelmente atraído pela fortuna que ganhava com os filmes comerciais, já que era difícil resistir a tanto dinheiro. Nessa noite ficaram acordados até tarde, a comer gelado na cozinha e a conversar sobre o papel que ele ia representar no filme que tinha em mãos. Tentava acrescentar mais qualquer coisa à personagem e, para isso, discutia com Coco algumas ideias, com as quais ela concordava. Estava impressionada pelo interesse, preparação e estudo que ele punha nos seus papéis. Perguntou-lhe se todos os atores faziam o mesmo e Leslie riu-se e disse: — Não. Só os bons. Admitiu estar preocupado por ter de trabalhar com Madison. Tivera conhecimento, por outros que haviam trabalhado com ela, que ela nunca sabia as suas falas. Seria mais difícil para ele, e já tivera com o realizador várias discussões acerca de como via o seu papel. Atribuíam motivações diferentes à personagem e, até ali, o autor do argumento apoiava Leslie, para desagrado do realizador que tinha um ego enorme e queria que todos concordassem com ele. Veneza ia ser uma provação para Leslie, que estava ansioso por ter o apoio de Coco quando ela para lá fosse.


Eram duas da manhã quando se deitaram e ele tinha de se levantar às sete para poder sair às oito. Quando acordaram fizeram amor apressadamente e tomaram duche juntos. Ele tomou um pequeno-almoço rápido, beijou-a freneticamente antes de sair, prometendo telefonar-lhe assim que chegasse, e ela desejou-lhe sorte para o filme. A casa parecia terrivelmente silenciosa depois de ele partir e, ainda mais, quando ela voltou para o intervalo do almoço. Não gostava nada de pensar que ele ia ficar tão longe, mas sabia que, se queria fazer parte da vida dele, teria de se habituar. Muitas vezes os seus filmes eram rodados no estrangeiro. Assim, se quisessem ficar juntos, Coco não poderia ter um emprego ou até vida própria. Tinha medo de desistir da sua vida para viver na sombra dele, mas ele insistira durante meses que não era isso que queria. Ao contrário de Jane, que pensava que o objetivo principal da vida de Coco era cuidar de necessidades menores, como pessoa inferior que, na sua opinião, a irmã era, Leslie queria uma companheira, não uma fã que o seguisse, uma criada ou uma escrava. Coco tivera de concordar com Leslie quando este lhe dissera que a sua chegada à família perturbara a situação de Jane e que, por isso, ela ainda não lhe perdoara e talvez nunca perdoasse o facto de ser a irmã mais nova. A casa estava tristemente silenciosa nessa noite. Coco resolveu ver um dos antigos filmes de Leslie, de que gostava muito, na esperança de se sentir menos só, mas apenas sentiu mais a falta dele. Sentou-se na cama da irmã, olhando para o rosto dele no ecrã e percebeu por quem estava apaixonada. — Oh, meu Deus! — exclamou em voz alta. Estava loucamente apaixonada por um dos atores de maior sucesso no mundo. Talvez não fosse um Laurence Olivier, mas, aos olhos dos seus fãs, era ainda mais importante. Lembrou-se de repente de todas as coisas que a irmã lhe tinha dito e perguntou a si própria qual era a sua ideia e o que lhe estava ele a fazer. Ela não era nada nem ninguém, apenas tinha como trabalho passear cães e vivia numa cabana em Bolinas. Talvez Jane tivesse razão. Sentiu uma onda de terror a invadi-la. A única coisa que a consolou foi um telefonema de Leslie a meio da noite para lhe dizer que tinha chegado a Veneza. Parecia exausto depois de dois longos voos, um dos quais se atrasara em Paris. Coco tentou explicar-lhe tudo o que sentira quando fora para a cama naquela noite, o terror de se aperceber quem ele era e quem ela não era. — Mas que disparate tão grande — disse ele depois de a ouvir. — És a mulher que eu amo, não te esqueças. Mas, quando desligou, Coco não era capaz de deixar de pensar na pergunta que não lhe abandonava o espírito desde que vira o filme. Durante quanto tempo? E se Jane tivesse razão? Qual seria a maravilhosa e elegante estrela de cinema que a substituiria? Coco estremeceu com a ideia.


CAPÍTULO 14 Jane e Liz regressaram uma semana após Leslie ter partido para Veneza. Coco mudou-se para Bolinas na noite anterior e foi levar as chaves a caminho do trabalho na segunda-feira de manhã. Deixara tudo o mais limpo possível: a cozinha bem esfregada, os lençóis mudados e as toalhas limpas na suíte principal e até flores. Liz telefonara-lhe a agradecer quando chegaram a casa no domingo. E quando Coco foi entregar as chaves, na segunda-feira de manhã, ficou assombrada quando Jane lhe abriu a porta. A irmã vestia leggings e uma camisola muito apertada sobre a barriga protuberante. Estava grávida de cinco meses. O resto do seu corpo era magro como sempre fora, mas parecia ter uma bola de basquete dentro das calças. Comparado com o resto, a barriga parecia enorme. Coco riu-se quando a viu. — Qual é a graça? — perguntou Jane aborrecida enquanto Coco lhe sorria. — Nada. Estás mesmo gira. — Apontou para o sobrinho ou sobrinha enquanto Liz surgia por trás de Jane com um largo sorriso. — Impressionante, não achas? — perguntou Liz, orgulhosa, e abraçou Coco. As duas irmãs abraçaram-se e beijaram-se ao de leve e a barriga de Jane chocou com Coco. — Está ótima — concordou Coco, enquanto entregava as chaves à irmã. — Obrigada por nos teres salvado durante quatro meses e meio — apressou-se Liz a dizer. Haviam regressado a casa um mês antes do planeado. As filmagens tinham corrido bem. — Para mim também foi bom — disse Coco, e depois corou. — Quero dizer… bem… de qualquer forma, também gostei. — Aposto que sim — disse Jane secamente. — Onde está Leslie? — Em Veneza. Vai lá ficar até ao Dia de Ação de Graças ou talvez até ao Natal. — Isso vai dar-vos tempo suficiente para tomarem juízo — disse Jane, indelicada. — A mãe mandou-me os recortes todos. Tocaste num vespeiro quando foste a Los Angeles. E as coisas vão piorar se vocês ficarem juntos. Espero que estejas preparada — disse ela num tom cortante. — Estamos a levar as coisas um dia de cada vez — disse Coco, fazendo eco das suas palavras. — Queres vir cá jantar amanhã? — perguntou Jane. — Não posso. Estou ocupada — respondeu Coco sem hesitar um segundo. Não tinha vontade de ser censurada pela irmã, nem de a ouvir dizer que Leslie a abandonaria rapidamente depois de se apaixonar em Veneza pela atriz que ia


contracenar com ele. Não queria ouvir tais coisas. Já estava suficientemente preocupada. — Então, talvez outro dia. A propósito — disse, distraidamente quando as três já estavam à porta —, precisamos que cá fiques outra vez no próximo fim de semana. Nem lhe ocorrera perguntar a Coco se seria conveniente. Partira do princípio de que ela ficaria como sempre tinha ficado. — Não posso — disse Coco saboreando as palavras a que não estava habituada. Fora difícil pronunciá-las, mas conseguira. Jane seria sempre a irmã mais velha, dominadora e levemente intimidante. Havia muitos anos de diferença entre as duas para que Coco, quando falava com ela, se sentisse adulta, com necessidades próprias. — Tens de vir. Vamos estar em Los Angeles para tratar da pós-produção. Temos de ver algumas casas para arrendar e quero conhecer o rapazinho da mãe. Creio que também não o conheces. — Jane lançou-lhe um olhar inquiridor, preparada para a censurar se ela já o conhecesse e não lhe tivesse dito. — Não, não conheço — confirmou Coco. — A mãe estava a trabalhar num livro quando estive em Los Angeles e por isso não fui vê-la. Ambas sabiam que a mãe não aceitava telefonemas nem recebia visitas quando estava a escrever. Ambas gostariam de saber se as regras também se aplicavam a Gabriel. Talvez sim. Em qualquer caso, aplicavam-se a elas. E Jane disse que a mãe já terminara o livro, por isso concordara em que as filhas a visitassem. — Seja como for, preciso que fiques com o Jack no fim de semana. Podes levá-lo para Bolinas, se precisares. Assim que arrendarmos casa, já o podemos levar connosco. — Coco sabia que ficariam vários meses em Los Angeles para a pósprodução. — Mas vamos de avião este fim de semana, por isso teremos de o deixar cá. — Não vou estar cá — disse Coco com simplicidade, olhando a irmã de frente. Era verdade. — Porquê? — Jane estava admirada. Não se lembrava de Coco alguma vez lhe ter dito tal coisa. Era uma novidade. Fora preciso aparecer Leslie para a libertar. Liz não disse uma palavra, mas teve vontade de lhe dar os parabéns e sorriu-lhe por cima do ombro de Jane para a encorajar. — Vou para Veneza na sexta-feira. Tenho a certeza de que Erin o pode levar a passear. Está a substituir-me com os meus clientes. Ia pedir-vos se podia deixar aqui a Sallie, mas parece-me que não posso. Liz respondeu rapidamente. — Claro que podes! — Queria validar aquele corajoso avanço. — Erin pode sair


com os dois e o Jack não se sentirá tão só com a Sallie aqui. — Os dois cães tinham vivido juntos nos últimos quatro meses e meio e davam-se bem um com o outro. Jane não disse uma palavra, limitando-se a olhar para Coco com ar reprovador. Não era hábito as miúdas de recados e as escravas levantarem-se para se irem embora e fazerem os seus próprios planos. Jane precisaria de repensar as coisas. — Já pensaste no que vai ser com os paparazzi em Veneza? — perguntou Jane friamente. Era como se quisesse castigar Coco pela sua independência. — Já pensei, sim — disse Coco, calmamente. — Vamos tratar do assunto o melhor possível. E tentaremos ir a Florença alguns dias durante os intervalos das filmagens. — Que maravilha — disse Liz entusiasmada e Jane olhou para Coco sem perceber como a irmã se transformara. A mudança de Jane era mais óbvia e física, a de Coco, menos visível, mas mais profunda. Até ali a maternidade não parecia ter amaciado o coração de Jane. Estava tão dura como sempre. — Já temos os resultados da amniocentese — disse Jane de repente. — O bebé está ótimo. — Por um instante pareceu levemente desapontada. — É um rapaz. — Ambas queriam uma rapariga, mas Liz disse logo que tanto lhe fazia desde que viesse com saúde. — Vai ser muito mais difícil. Os rapazes não são bem aquilo que eu prefiro — sorriu, e Coco soltou uma gargalhada. — Acho que te vais sair muito bem. — E Coco pensou para consigo que seria muito mais difícil para ela ser mãe de uma rapariga. De facto, nem conseguia vê-la como mãe. Fora uma decisão interessante e uma grande surpresa para todos. A mãe ainda não tinha recuperado. A perspetiva de ser avó não a entusiasmava. Fazia-a sentir-se velha e nunca se encantara muito com bebés, nem mesmo quando era nova e as crianças eram suas. E agora ainda menos, com um homem vinte e quatro anos mais novo na sua vida. — Como se vai chamar? — Jane e Liz já tinham discutido o assunto e inclinavam-se para lhe dar o nome do pai de Jane. O de Liz chamava-se Oscar e nenhuma delas gostava. — Provavelmente vamos dar-lhe o nome do pai. Primeiro queremos vê-lo para ver que cara tem. — Também estou morta por o ver — disse Coco com sinceridade. Ainda lhe era difícil acreditar que elas iam ter um bebé. Era difícil de imaginar. — A propósito. Estás com um aspeto fantástico. A única coisa que tens de diferente é essa bola de basquete debaixo da blusa. — O médico disse que ele ia ser grande — observou Jane, parecendo por momentos ansiosa. Estava desejando que o bebé nascesse. A ideia aterrorizava-a, mas Liz estava ali para a apoiar. Mais do que uma vez desejou que tivesse sido ela a engravidar. — O pai tem um metro e noventa e cinco, por isso deve sair bastante alto.


— Jane era também muito alta e Coco tinha a mesma altura, embora sempre se imaginasse mais baixa do que a irmã, como quando era pequena. Era uma recordação que nunca a abandonara. Por fim, Coco deixou-as para ir trabalhar e, na quinta-feira à tarde, foi-lhes levar Sallie a casa. Elas iam partir para Los Angeles no dia seguinte, e Coco apanharia o avião para Veneza com escala em Paris. Já tinha feito as malas e estava entusiasmada com tudo aquilo. Ela e Leslie falavam duas ou três vezes por dia e ele estava encantado por ela ter decidido ir. Quando foi deixar Sallie, Jane tinha saído e Liz convidou-a para uma chávena de chá. Coco já tinha terminado o trabalho e partiria na madrugada seguinte. — Como vão as coisas com Leslie? — perguntou Liz enquanto bebiam o chá. — Incrivelmente bem — respondeu Coco a sorrir. — Ainda não acredito que tenha acontecido, nem percebo por que razão ele me quer. — Leslie tem muita sorte em ter-te — disse Liz com convicção. Sempre detestara o modo como Jane a censurava. A relação entre as duas irmãs desagradava-lhe, e sempre esperara que Coco um dia cortasse os laços que as ligavam. Mas Coco ainda não chegara a tanto. A diferença de idades entre elas e a sua história sempre lhe fora desfavorável. — Parece que, até aqui, tivemos muita sorte com a imprensa — disse Coco cautelosa. — Assusta-me, mas espero que não se entusiasmem demasiado connosco. Bem sei que Jane pensa que me vão comer viva, mas também não acabei de sair da cadeia, nem sou toxicodependente ou coisa parecida. — Desistir da faculdade de Direito, viver em Bolinas e ter uma empresa para passear cães não são crimes, julgo eu, ao contrário do que a tua irmã pensa — disse Liz com sensatez. — És uma pessoa respeitável, trabalhas para viver e és uma mulher espantosa. Não podem fazer grande coisa com isso — garantiu-lhe Liz e Coco suspirou. — Jane pensa que ele me vai largar por outra pessoa qualquer num momento mais excitante. E eu também estou preocupada com isso — confessou. — Há muitas tentações nessa profissão e ele é um ser humano como toda a gente. — Ele parece ser um ser humano muito apaixonado por ti. — Jane contara-lhe a descompostura que Leslie lhe dera, o que Liz pensava ser um bom indício do seu amor por Coco. — Há muitas relações sólidas e bons casamentos neste meio. Não ouves falar deles porque os tabloides preferem falar dos que não o são. Tem um pouco de fé em ti e em Leslie. Ele é bom tipo. — Coco deleitou-se com o que Liz lhe dizia e ficou visivelmente mais descontraída. — Estou desejosa de ir ter com ele a Veneza — disse Coco com um sorriso feliz.


— Mereces umas férias. Não me lembro quando tiveste as últimas. — Há três anos, com Ian, recordava-se Liz. Já era tempo de ela voltar a viver e era óbvio que estava a conseguir. — Estou desejando que me contes tudo, quando voltares. Depois falaram do bebé e de como Liz estava entusiasmada. Disse que Jane também estava e já se ia habituando à ideia de que era um rapaz. Disse que iam transformar o quarto de hóspedes no quarto do bebé e que pensavam entrevistar amas em Los Angeles. Coco também se sentia entusiasmada. Nunca esperara ter um sobrinho ou sobrinha e Chloe recordara-lhe durante todo o verão como era bom ter crianças. Ia sair justamente quando Jane voltou. Coco reparou que, pela primeira vez, a irmã tinha um ar descontraído e feliz e um fato que lhe revelava a barriga proeminente. Coco não pôde deixar de sorrir e disse a Jane que acabara de deixar Sallie para ficar com Jack. — Diverte-te em Veneza — disse Jane parecendo mais delicada para variar. Estava de bom humor e disse que fora de novo ao médico. Estava tudo bem e o ritmo cardíaco do bebé era forte. Coco achou graça a que ela já tivesse começado a fazer um álbum com as ecografias. Aquele gesto sentimental era pouco próprio dela e fê-la pensar se a irmã seria ou não boa mãe. Nenhuma delas tivera um bom modelo para se guiar, pois a mãe de ambas fora tudo menos maternal. Era competente e responsável, mas muito mais interessada na sua carreira e na relação com o marido do que com as filhas. Quando Jane crescera, forjara com ela uma relação, mas nunca o conseguira com Coco. Tinham muito pouco em comum. Coco fora sempre diferente da família. Viera muito tarde e era muito diferente de todos para se sentir bem-vinda naquele meio. — Telefona quando voltares! — disse Jane e Coco regressou a Bolinas a pensar em Leslie e em Veneza e em tudo o que lá fariam juntos. Estava desejando vê-lo nas filmagens e passar uns dias a viajar com ele por Itália. Leslie já lhe prometera um passeio de gôndola sob a Ponte dos Suspiros que, segundo ele e outras pessoas, garantiria que ficariam juntos para sempre. Agradava-lhe bastante a ideia. A mãe telefonou-lhe nessa noite a convidá-la para passar o fim de semana, já que Liz e Jane lá iam, mas Coco explicou que ia a Veneza ter com Leslie. — Tens a certeza de que é boa ideia? — perguntou-lhe a mãe desconfiada. — Não pensas andar atrás dele, pois não, querida? Ele pode pensar que o andas a perseguir. — Não o ando a perseguir, mãe — disse Coco, revirando os olhos enquanto a ouvia. — Ele quer que eu vá. Foi ele que pediu. — Está bem. Se achas que sim. Mas ele deve estar muito ocupado, já que está em filmagens. Os homens não gostam que a mulheres andem sempre de volta deles.


Sentem-se sufocados. — Coco teve vontade de lhe perguntar se Gabriel se sentia sufocado por ela, mas não o fez. Não queria aborrecer-se discutindo com a mãe. Além do mais, a mãe e Jane venciam sempre. — Obrigada pelo conselho — disse Coco em poucas palavras, perguntando a si própria o que teria feito para as merecer. A irmã pensava que ela era apenas mais um troféu e muito pouco atraente, para ser rapidamente substituída por uma atriz mais elegante e mais bonita. A mãe pensava que ela perseguia um ator de cinema, que não a queria nem ver. Porque seria que nenhuma das duas a considerava digna dele e de que ele a amasse de verdade. — Como está o Gabriel? — perguntou para mudar de assunto. — Maravilhoso — disse a mãe, parecendo radiante do outro lado da linha. O seu romance interessava-a muito mais do que o de Coco e não tinha qualquer problema em imaginar que Gabriel a adorava. Era-lhe muito mais difícil imaginar que Leslie estivesse igualmente apaixonado por Coco. — Vamos jantar com Liz e Jane este fim de semana. Sentia-se um pouco apreensiva, sabendo como a filha mais velha era crítica e dura, mas estava entusiasmada por Gabriel ir passar algum tempo com elas e partilhar a sua felicidade. Coco pensou que a mãe estava a ser ingénua, pois Jane usaria todas as oportunidades para lhe achar defeitos e mais tarde os virar contra a mãe. — Diverte-te — disse ela à mãe e desligaram. Ficou aborrecida consigo própria quando se apercebeu de que a mãe tinha, de novo, marcado pontos. Ficou preocupada, pois poderia estar a impor-se a Leslie e ele não a querer tão desesperadamente como dizia. — Não vou ligar ao que comentam — disse para consigo enquanto fechava a mala à meia-noite. — A mãe e Jane estão cheias de despeito. Detestam-me, sempre me detestaram e não me interessa o que pensam. Ele ama-me e eu amo-o, e é tudo o que preciso. Ele quer ver-me e vamos passar uns dias fantásticos em Veneza. — Dissera tudo aquilo em voz alta, orgulhosa de si mesma. Quando Coco saiu para o alpendre e olhou para as estrelas, rezou para que tudo corresse bem quando lá chegasse. Depois, entrou e foi para a cama, lembrando-se que daí a vinte e quatro horas estaria em Veneza com o amor da sua vida, fosse ele ou não uma estrela de cinema. Não ia questionar nem pensar mais no que a mãe tinha dito. Ia voar para Itália e divertir-se como nunca.


CAPÍTULO 15 Coco fez a mesma viagem que Leslie fizera quase duas semanas antes. A única diferença era que ele fora em primeira classe e ela em turística. Leslie quisera oferecer-lhe o bilhete em primeira classe, mas Coco gostava de pagar as suas contas e recusara. Foi um voo de onze horas, longo e com o avião cheio entre São Francisco e Paris. Coco dormiu sobressaltada na viagem e chegou com a sensação de estar amarrotada e suja. Estava demasiado emocionada para adormecer profundamente e vira quatro filmes. Teve uma espera de três horas em Paris, onde conseguiu tomar um duche na casa de banho pública e comer qualquer coisa no bar do aeroporto. Começava a sentir-me verdadeiramente sonolenta quando entrou para o avião que a levaria a Veneza. Quase logo a seguir à descolagem, adormeceu profundamente e a hospedeira teve de a acordar quando aterraram. Para ela era madrugada e pareceu-lhe que viajava há dias. Passara pela alfândega em Paris, por isso em Veneza bastava-lhe sair do avião e passar pela imigração para que lhe carimbassem o passaporte. Lavou a cara e os dentes e penteou-se antes de sair. Vestira uma velha camisola no voo para Paris, mas mudara de roupa antes de desembarcar em Veneza e usava agora uma blusa preta e sabrinas pretas. Quando saiu do avião, com um enorme saco, viu Leslie à espera dela do outro lado da imigração. Era hora de almoço em Veneza e brilhava um sol de finais de outubro. Mas o mais brilhante de tudo era a alegria nos olhos dele. Estava encantado por vê-la e arrebatou-a imediatamente nos seus braços, pegou no saco pesado e conduziu-a pelo terminal até à limusina que os esperava. Entregou ao motorista os talões da bagagem e pediu-lhe que a fosse retirar para poder beijar Coco apaixonadamente no interior do carro e dizer-lhe o muito feliz que se sentia por estar com ela. Parecia que não se viam há meses, embora faltassem dois dias para completar as duas semanas de ausência. — Estava com tanto medo que acontecesse alguma coisa e que tu não viesses — admitiu ele. — Nem posso acreditar que cá estejas! — Parecia extasiado. — Nem eu. Como vai o filme? — Temos dois dias de folga. E julgo que também nos vão dar o próximo fim de semana. — Era perfeito. — Já marquei um hotel em Florença para essa altura — disse ele com um largo sorriso. Mal conseguia largá-la quando o motorista apareceu com as malas que meteu no porta-bagagem, entrando de seguida no carro. Viajavam num Mercedes que o produtor tinha trazido da Alemanha especialmente para ele. Sem entrar em pormenores, Leslie disse que o filme estava a correr bem, embora ele e Madison Allbright tivessem alguns problemas. Queria apenas concentrar-se em Coco agora que ela lá estava. Era um caminho relativamente curto desde o aeroporto até ao enorme parque de


estacionamento, onde tiveram de deixar a limusina e, a partir daí, ele tinha alugado um enorme motoscafo, um barco a motor para os levar ao Gritti Palace, onde ele estava alojado. O resto da equipa e alguns atores estavam alojados em hotéis mais pequenos, mas ele e Madison tinham suítes no Gritti, que era considerado o hotel mais luxuoso de Veneza. Madison queria ficar no Cipriani, mas o produtor insistira que era mais longe e demasiado complicado para as deslocações diárias. E o realizador refugiara-se no Bauer Grunwald, que preferia. Leslie estava encantado com o seu alojamento. O motoscafo conduziu-os rapidamente pelo Grande Canal, enquanto Coco olhava maravilhada à sua volta. Quando deixaram a zona do estacionamento, a cidade começou a revelar-se diante deles. Igrejas, cúpulas, basílicas, antigos palácios e, por fim, a Basílica e a Praça de São Marcos, cintilantes ao sol de outubro. Era certamente o lugar mais belo que já vira. E Leslie sorria ao ver-lhe a expressão maravilhada no rosto. — É bonito, não achas? — disse, puxando-a para os seus braços e beijando-a. Não conseguia pensar num lugar melhor para partilhar com ela. Já tinha alugado uma gôndola para passarem nessa noite por baixo da Ponte dos Suspiros, quando fossem jantar, se ela ainda estivesse acordada. Havia uma centena de coisas que queria fazer com ela. Era apenas o começo. E estava satisfeito por ter tempo livre nesse fim de semana. Tinha trabalhado muito. Assim que chegaram ao Gritti Palace, subiram para os aposentos de Leslie. Coco esperava uma suíte, mas eram afinal várias ligadas entre si, formando um apartamento deslumbrante, só para ele. Estava no contrato, e era o mais elegante e luxuoso que Coco já vira. A vista das janelas era espetacular: davam para o canal e para outros palácios, muitos deles particulares e ainda na posse de nobres venezianos. Veneza era uma cidade notável e única. Parte do formidável pessoal do hotel estava ao serviço de Leslie e duas criadas foram imediatamente desfazer as malas de Coco enquanto um criado de libré chegava com uma enorme bandeja de prata com sanduíches e uma garrafa de champanhe Louis Roederer Cristal. — Somos um pouco mimados quando filmamos no estrangeiro — murmurou-lhe Leslie com um sorriso tímido. — Estou a ver — disse ela, tentando recordar-se de que viera apenas por uma ou duas semanas. E, quando partisse, a carruagem real em que viajava com ele transformar-se-ia de novo em abóbora. Tinha de se recordar constantemente de que isso iria acontecer. Com Leslie tinha a perfeita sensação de ser a Gata Borralheira e ele era, sem dúvida, o príncipe encantado. Seria difícil acreditar que, no final, o sapatinho de cristal lhe servisse realmente como acontecia nos contos de fadas.


Estava sem dúvida a viver uma dessas histórias. Instalaram-se num enorme sofá de cetim amarelo, enquanto o criado lhes servia o champanhe e um prato de pequenas sanduíches deliciosas, para logo se retirar discretamente. — Não sei bem se serei a Gata Borralheira ou Annie, a órfã — disse ela, incrédula. — A última vez que dei por mim estava em Bolinas. Como foi que vim aqui parar? — Nunca esperara uma coisa assim. Só pensara em estar de novo com ele, sem que lhe ocorresse como seria a sua vida quando filmava no estrangeiro ou ao trabalho a que os produtores se davam para lhe tornarem as coisas confortáveis. Mas, mais do que confortável, tudo aquilo era opulento em extremo. — Não estou mal instalado, pois não? — sorriu malicioso. — Mas foi horrível antes de chegares. Nada tem graça sem ti — disse e foi mostrar-lhe os aposentos. Tratava-se de um quarto gigantesco, próprio de um palácio, decorado com antiguidades magníficas, um fresco no teto, duas salas e uma sala de jantar de dimensões suficientes para receber duas dezenas de amigos. Tinha um pequeno escritório, uma biblioteca e havia tantas casas de banho de mármore que ela lhes perdeu a conta, quando ele lhas mostrou. Havia flores em todas as divisões e ele escolhera para ela uma casa de banho de mármore com uma vista espetacular sobre Veneza. — Parece-me que estou a sonhar — disse, atrás dele. Depois, sem mais cerimónias, Leslie puxou-a para a cama com dossel, digna de um rei. Mas foi lá que Coco reencontrou o Leslie que conhecia e amava. Apesar da elegância que os rodeava, ele era tão amoroso e divertido como na casa de Bolinas. Uma das qualidades de Leslie era saber desfrutar da vida sem ser arrogante e vaidoso. E agora apenas desejava estar com ela. Fizeram amor e dormiram durante a tarde e depois tomaram banho na enorme banheira de mármore cor-de-rosa. Ele disse-lhe que vestisse calças de ganga. Queria levá-la a passear a pé e mostrar-lhe algumas maravilhas de Veneza. Escaparam-se rapidamente do átrio do hotel e o motoscafo particular deixou-os na Praça de São Marcos. A partir daí, percorreram as ruas estreitas, entraram nas igrejas, compraram gelados na rua e atravessaram pequenas pontes sobre os canais mais pequenos. Ela perdeu completamente o sentido de orientação enquanto passeava com ele, mas nem um nem outro se preocuparam. Leslie já conhecia um pouco da cidade, mas perder-se em Veneza nunca era assustador. Tudo era belo e acabariam por chegar ao local certo. Viram outros apaixonados como eles a caminhar por todo o lado, venezianos, quase todos, dada a época do ano. O tempo estava fresco e luminoso e, quando o sol desapareceu, voltaram para o motoscafo que os deixou mais uma vez no hotel. De volta aos seus palacianos aposentos, Coco ficou a olhar para a cidade e,


depois, voltou-se para Leslie, lendo-se-lhe nos olhos todo o amor que sentia por ele. — Obrigada por me teres convidado para cá vir — disse baixinho. Era quase uma lua de mel estar ali com ele no local mais romântico do mundo. — Não te convidei — recordou-lhe Leslie, com um olhar que espelhava o dela. — Implorei-te para que viesses. Queria explorar isto contigo, Coco. Até chegares era apenas um trabalho. — Não pôde deixar de sorrir. Era um local espantosamente belo para se trabalhar. Depois, falaram acerca do filme e de como estava a correr. Ele serviu-lhe uma taça de champanhe e, por fim, vestiram-se para ir jantar. Leslie estava preocupado não fosse ela estar demasiado cansada para sair, mas, como tinha dormido o suficiente durante a tarde, sentia-se repousada. Não queria perder um minuto do tempo que tinha para passar com ele, principalmente quando não estava a trabalhar. Quando desceram a escada, não havia sinais do motoscafo e esperava-os uma gôndola enorme. O gondoleiro vestia uma camisola às riscas, um casaco curto azulescuro, para se proteger do frio, e o chapéu tradicional usado por todos os gondoleiros. O barco era maravilhoso, de cor negra brilhante, enfeitado a ouro tal como todas as gôndolas de há centenas de anos. Conforme o prometido, passaram por baixo da Ponte dos Suspiros para irem jantar, enquanto os gondoleiros cantavam para eles. Tudo parecia saído de um sonho. — Sustém a respiração e fecha os olhos — murmurou-lhe Leslie. Ela assim fez e ele beijou-a suavemente na boca, também sustendo a respiração. Quando saíram de debaixo da ponte ele disse-lhe que ela podia voltar a respirar. Coco abriu os olhos e sorriu. — Muito bem. Temos o pacto fechado — disse, encantado. — Segundo a lenda, ficaremos juntos para sempre. Espero que não tenhas qualquer objeção. — Ela riu-se, enquanto ele se acomodava no assento a seu lado. Que objeção teria ela em relação ao homem mais romântico e mais amoroso do mundo? Ou à mais bela cidade que ela já vira. Seria difícil imaginar qualquer coisa a objetar. — Quero voltar aqui na nossa lua de mel, se a chegarmos a ter — murmurou ela quando passaram por baixo de outra ponte e ela se sentiu arrebatada pelo ambiente. Seria impossível não se sentir assim, principalmente com ele. — Isto é, se alguma vez nos casarmos. — Assim é que é falar — disse ele extasiado quando se detiveram junto de uns pequenos degraus de pedra que davam para um restaurante alegremente iluminado. O gondoleiro deixou-os ali e eles entraram no restaurante abraçados. — O porteiro do hotel disse que isto aqui era sossegado e discreto. Vem aqui comer muita gente de Veneza. Não é de luxo, mas é muito bom.


O espaço era pequeno e estava praticamente cheio. O chefe de mesa levou-os para um lugar confortável ao fundo do restaurante. Ninguém lhes prestou atenção e jantaram como toda a gente, sem serem incomodados. Leslie disse que, até ali, a imprensa tinha sido razoável e não os perseguira. Madison causara alguma confusão quando o seu agente de imprensa telefonara às revistas de fãs com umas histórias absurdas, mas apenas tinham sido perturbados no local das filmagens, e nada mais acontecera, para alívio de todos. Não tinham interessado a imprensa europeia. Leslie não disse a Coco que histórias eram, apenas que eram insignificantes, aborrecidas e habituais nessa atriz. Disse que ela gostava de ser a estrela em todos os filmes que fazia, o que a ele não o incomodava, desde que soubesse o seu papel, aparecesse a horas e não atrasasse os trabalhos. Ele estava a gostar de Veneza, mas desejava voltar para casa o mais depressa possível para estar junto dela. Disse também que, até ali, o filme estava a cumprir o prazo previsto. Nessa semana iriam filmar na Praça de São Marcos e dentro da Basílica, o que necessitara de infindáveis autorizações, mas o assistente de produção italiano tinha sido um génio a conseguir tudo. Conversaram durante todo o jantar e, de vez em quando, Coco sentia uma onda de sonolência invadi-la. Tinha os fusos horários completamente trocados, mas adorara o jantar e o passeio na Praça de São Marcos que se lhe seguiu. Depois voltaram de gôndola para o hotel. Ela bocejava quando regressaram aos aposentos, mal conseguindo manter os olhos abertos. Era meia-noite em Itália e estivera acordada muitas horas. Perdera uma noite de sono algures pelo caminho, mas, pelo menos, fora por uma boa causa. Coco adormeceu profundamente antes de Leslie ter feito amor com ela, e ele deixou-se ficar deitado com um sorriso nos lábios a vê-la dormir, e depois aninhou-se junto dela. Tê-la ali era para ele como um sonho tornado realidade. Dormiram os dois quase até ao meio-dia do dia seguinte. Acordaram com o sol a entrar nos aposentos e levantaram-se para começar o dia, depois de fazerem amor. Leslie levou-a a almoçar ao Harry’s Bar, que era o seu favorito. Ela comeu risoto à milanesa, como só eles sabiam fazer, com muito açafrão, e ele salada de lagosta, enquanto discutiam o que fazer nessa tarde. Alugara mais uma vez uma gôndola, pois era mais romântico do que o veloz motoscafo que todos os dias o levava para o trabalho. Não tinham pressa e passaram a tarde a visitar o Palácio dos Doges e a admirar o campanário da basílica. Passearam pelos Jardins Reais e depois entraram e saíram de várias igrejas antigas e magníficas, antes de voltarem para o hotel. Fora mais um dia perfeito. Decidiram chamar o serviço de quartos, pois ele tinha de estar às seis da manhã no estúdio para tratar do cabelo e da maquilhagem. Ela prometeu acompanhá-lo pelo menos no primeiro dia. Depois disso iria explorar um pouco Veneza sozinha. Embora a cidade fosse pequena, tinha muito para ver e ela não queria incomodá-lo enquanto ele trabalhava no filme.


Leslie viajava com simplicidade e nunca levava um séquito atrás de si. Dizia que não precisava de um assistente desde que o porteiro fosse bom e o Gritti Palace era famoso pelo seu pessoal competente. Utilizava a cabeleireira e a maquilhadora do estúdio. Era surpreendente que Leslie, uma estrela tão importante, fosse pouco exigente e sem pretensões. Dizia que preferia menos confusão e atenções à sua volta, ao contrário de Madison, que trouxera o seu próprio cabeleireiro, dois técnicos de maquilhagem, a irmã, duas assistentes e a melhor amiga. Era famosa por dar aos produtores longas listas de necessidades pessoais e exigências antes de assinar o contrato para fazer um filme. Viajava com um guarda-costas pessoal, um personal trainer e exigira que todos fossem alojados no mesmo hotel que ela. Nunca fazia amizades em qualquer local onde trabalhasse, mas, de momento, era a atriz com maior êxito de bilheteira no mundo, por isso ninguém discutia com ela. Davam-lhe simplesmente o que queria, para evitar que fizesse cenas, como era habitual. — É um pouco cansativo suportar tudo isto. — Coco vestia um casaco de pele de carneiro para se proteger da manhã fria, antes do sol nascer, e calçara as suas velhas botas de cowboy. Tinha um ar fresco e jovem, com os seus olhos verdes, sem maquilhagem e a sua cabeleira arruivada. Era tudo o que ele admirava numa mulher, era honesta, simples, natural, pouco exigente e nada arrogante. A sua beleza e integridade vinham de dentro dela, realçando a sua aparência. Faziam um par muito bonito quando entraram no estúdio e se dirigiram à roulotte que fora destinada a Leslie, debaixo das arcadas da Praça de São Marcos. Coco nem imaginava como a tinham posto lá, mas era um local onde ele podia descansar ou estudar entre as filmagens. A cabeleireira e a maquilhadora principal esperavam-no. Tinham sido contratadas em Veneza, mas falavam bem inglês e Leslie conversava descontraidamente com elas enquanto bebia um chávena de café bem quente e Coco ficava sentada num canto a observar a cena. Apesar da hora matutina a que tinham chegado, só começaram a filmar às nove horas. Levaram-lhes o pequeno-almoço e, por fim, ouviu-se bater à porta do camarim, dizendo que estava tudo pronto. Tinham estado a experimentar as luzes com um duplo, um jovem italiano de altura e aspeto semelhante ao de Leslie. Para aquela cena, este vestia um fato preto de bom corte, uma camisola de gola alta e sapatos de camurça preta. Tinha um ar sensual e muito belo quando saiu da roulotte já maquilhado. Apesar de nunca querer exageros, o seu cabelo estava meticulosamente penteado e com laca. Coco observava fascinada enquanto os outros atores apareciam. O realizador tomou o seu lugar ao lado do operador de câmara para lhe dar instruções. Sabia exatamente que ângulos queria e falava com os atores em voz baixa. Coco já tinha estado em estúdios com a irmã, mas neste havia um profissionalismo e uma tensão


que eram novidade para ela. Os atores do filme eram as maiores estrelas do seu meio. Era tudo feito com muita seriedade e ninguém queria perder um take. Se o filme fosse um êxito, poderia ter um lucro imenso e haveria óscares para os desempenhos extraordinários. Era óbvio que todos tinham isso em conta. Ali não se brincava. Coco manteve-se em silêncio no lugar que lhe destinaram para não perturbar ninguém e observava atentamente Leslie que fazia o primeiro take da cena. Madison não entrava e só apareceu uma hora depois, com um vestido comprido vermelho e sensual por baixo de um casaco, de saltos altos e com o seu famoso busto e as pernas espetacularmente altas. Dirigiu-se imediatamente para a cena com ele e teve de correr pela praça. Alguém tentava raptá-la e Leslie corria atrás dela, para a tentar salvar, embora supostamente ela não soubesse quem ele era. O enredo era complicado e Coco conhecia a história por ter lido o guião e ajudado Leslie a decorar as falas. Recordava-se da cena, mas ali era diferente, com os desempenhos eletrizantes dos atores e uma tensão que se podia sentir. Os carabinieri tentavam manter livre a parte da praça que estava a ser utilizada pelas filmagens e alguém ofereceu silenciosamente a Coco uma cadeira para se sentar. Ela agradeceu com um aceno e, minutos depois, uma mulher de cabelo louro sentou-se na cadeira ao lado dela. Coco não fazia ideia de quem se tratava, apenas de que fazia parte do séquito de Madison. — Ela é muito boa, não é verdade? — disse a mulher a Coco, no intervalo. — Eu matava-me se tivesse de correr em cima daqueles saltos. Coco riu-se. A mulher não lhe perguntou quem era ou porque estava ali. Havia tanta gente que ninguém se preocupava com isso. Como a outra mulher e todos os outros que ali estavam, Coco tinha um livre-trânsito ao pescoço, o que significava que fazia parte da equipa, do elenco ou que era acompanhante de alguém. — Ficam bem juntos, não é verdade? — disse a mulher observando-os mais de perto, enquanto Coco fazia o mesmo. Nunca pensara em tal, mas era verdade. Nessa cena, Leslie abraçava Madison. Esta estava ofegante da corrida da cena anterior e deixava-se cair lentamente junto dele que, por fim, a conseguia agarrar. Coco sentiu-se ligeiramente desconfortável ao aperceber-se de que ficavam bem juntos e que fora por isso que tinham sido escolhidos para aqueles papéis. — Viu a reportagem acerca deles nas revistas da semana passada? — perguntou a mulher num tom natural, olhando de novo para Coco. — Fotografias escaldantes. Essas histórias aumentam o interesse pelo filme. E quem sabe o que vai acontecer quando saírem daqui? — A mulher sorriu. Coco esboçou um fraco sorriso e pareceu levemente confusa quando a mulher retirou uma revista do seu saco enorme e a ofereceu a Coco para que a lesse. Coco engoliu em seco quando viu a fotografia da capa. Leslie e Madison


beijavam-se e o título por cima dizia: «Sensacional! Novo romance para Leslie e Madison começa em Itália.» Coco não quis ler, mas ficou hipnotizada por aquilo e abriu a revista na página certa. Havia mais fotografias dos dois, em duas delas, o par beijava-se, noutra pareciam ambos sobressaltados como se tivessem sido interrompidos a fazer uma coisa que não queriam que se soubesse. Coco sentiu o estômago revolver-se enquanto lia. O artigo dizia que ele tinha acabado com a última namorada em maio, quando esta o acusara de ser gay. E, na verdade, parecia ser tudo menos isso, pois mergulhava num romance escaldante com Madison Allbright, em Veneza, durante a rodagem do novo filme em que ambos trabalhavam. O artigo nada dizia acerca de Coco, nem de ele ter aparecido com ela em Los Angeles. Coco sentiuse maldisposta e, minutos depois, devolveu a revista à mulher, agradecendo-lhe. Era então daquilo que a irmã falava. De estar apaixonada por uma estrela importante, que dormia com a atriz principal em todos os filmes. Estavam ali há duas semanas. Não tinha passado muito tempo. E não poderia negar aquilo que ela acabara de ver na revista. Ele beijava-a. Coco sentia-se completamente estúpida ali sentada, a vê-lo com Madison, perguntando a si própria como tivera ele o péssimo gosto de a convidar para ir a Veneza quando tinha um caso com a atriz principal. Era certo que a tinha convidado antes de sair dos Estados Unidos, mas podia tê-la impedido de ir se tivesse tido coragem. E fizera amor com ela nos últimos dois dias. Que tipo de homem faria uma coisa dessas? Evidentemente, uma estrela de cinema. Custava-lhe muito admitir, mas Jane tinha razão. Sentiu-se como um robô, a vê-lo rodar as cenas por mais três horas. Só queria voltar para o hotel e fazer as malas. Que Leslie Baxter fosse para o inferno. Tinha os olhos cheios de lágrimas enquanto olhava para ele. Só queria ir para Bolinas chorar à vontade. Leslie veio ter com ela quando acabaram de filmar e levou-a para a roulotte onde seria servido o almoço. Ela reparou que, ao saírem do local das filmagens, ele dissera qualquer coisa a Madison que a fizera rir e que depois lhe dera um abraço. Coco teve vontade de vomitar ao vê-los, mas nada disse enquanto voltava com ele para a roulotte, nem sequer depois de estar lá dentro. — Que tal? — perguntou-lhe ele enquanto tirava o casaco e se deixava cair numa cadeira a sorrir para ela. — No princípio senti que estava uma merda e ainda acho que a cena da corrida é uma estupidez, mas o realizador não desiste. Gostei muito mais da cena debaixo das arcadas. E também ficaria melhor se controlassem as mamas dela. — Coco não conseguia acreditar que ele pudesse dizer tal coisa, depois do que tinha lido. Transformara-se de repente numa pessoa que ela desconhecia. — Tenho a impressão de que não gostaste — disse ele, preocupado, interpretando o silêncio dela como crítica ao seu desempenho, o que o perturbava ainda mais. Era um perfeccionista em relação ao seu trabalho.


— Creio que as cenas ficaram bem — disse ela numa voz baixa, sentando-se numa cadeira em frente dele. Não sabia se lhe haveria de dizer naquele momento o que pensava a seu respeito, ou esperar que voltassem para o hotel depois das filmagens. — Então do que é que não gostaste? — perguntou ele com o rosto subitamente pálido e cansado. Dava valor à opinião dela, tal como acontecera quando lhe pedira que lesse o guião. — De facto, aquilo de que não gostei — disse ela, decidindo resolver logo o assunto sem esperar pelo regresso ao hotel e poder partir ainda antes de ele terminar as filmagens nessa noite — foi do artigo que alguém me deu a ler. — Que artigo? — Ele parecia não perceber, o que aborreceu ainda mais Coco. Sempre fora honesto com ela, ou pelo menos ela assim o julgava, e agora fazia-se desentendido. — Não me lembro do nome da revista. Geralmente não leio essas porcarias. Era um artigo acerca do caso que tu tens com a Madison. Devias ter falado nisso antes de eu vir para cá. Tinhas-me poupado a viagem. — Estou a ver — disse ele, baixando a cabeça e olhando para o chão antes de se levantar com ar sério. — Posso imaginar como te sentes. Se não te importas, gostaria que viesses comigo um minuto. Não me engano se te disser que quem te deu a revista era uma das adoráveis pessoas do séquito de Miss Allbright? — Penso que era. Não se apresentou. Mas vi que chegou com ela. — Que maravilha. Deve ser a irmã ou uma das suas catorze assistentes, ou a melhor amiga da escola secundária, todas elas vindas de jato privado do seu parque de roulottes preferido. Abriu a porta e fez um gesto a Coco para que o seguisse. Esta hesitou um momento, mas ele parecia de súbito tão ameaçador que ela nem discutiu. Desceu os degraus e acompanhou-o a uma roulotte, também debaixo das arcadas, mas consideravelmente maior do que a dele. Leslie bateu à porta e, sem esperar por resposta, abriu-a e puxou Coco lá para dentro. A roulotte estava cheia de gente e cheirava a tabaco e a perfume barato. Havia pessoas a rir, outras a falar ao telemóvel, perucas em suportes e também estava lá a mulher que lhe tinha dado a revista e que lhe sorriu quando passou por ela. Leslie conduziu-a a um quarto ao fundo, onde sabia que Madison ficava para se afastar dos outros. Bateu e, ao som da sua voz, abriu a porta e ficou a olhar para ela. Madison estava sentada num sofá com um homem de camisola interior e calças de ganga, com os braços e o peito cheios de tatuagens. Olhou surpreendida ao ver Leslie. — Olá! — disse com ar inocente. — Passa-se alguma coisa? — Tinha estado


tudo bem nas filmagens dessa manhã. — Pode dizer-se que sim. Uma das tuas amigas mostrou a Coco aquela notícia nojenta da revista que convidaste para cá vir a semana passada estragar-nos a vida. — Não fui eu que os convidei — disse com ar inocente. — Foi o meu agente de imprensa. Não posso controlar quem ele contacta. — Um raio é que não podes! — Voltou-se para Coco, perfeitamente lívido. — Miss Allbright, ou o seu agente de imprensa, seja o que for, convidou uma das piores revistas de escândalos para virem aqui tirar fotografias. E, nesse processo, alguém que evidentemente não conhecemos, sugeriu que eu e a Madison tínhamos um caso, para que eles tornassem as coisas mais interessantes. Acontece que — disse, desviando o olhar furioso de Coco para a atriz — não tenho qualquer caso com ela, nunca tive, nem tenciono ter, apesar da sua figura notável, dos seus fabulosos implantes e das pernas extraordinariamente belas — disse, cuspindo as palavras. — Acontece que ela é casada com o seu cabeleireiro, este cavalheiro aqui presente — apontou para o homem das tatuagens para que Coco visse —, que trabalha com ela em todos os filmes porque está no contrato e que mantém sobre ela uma vigilância firme e amorosa. E, além do mais, embora deva ser o segredo mais guardado destas filmagens, para manter a sua imagem sensual, neste caso, à minha custa, acontece que ela está grávida de cinco meses. E, por coincidência, é também um terrível segredo ela estar casada e ser feliz. Agora que esclarecemos tudo e que deste cabo da minha vida com as tretas que passas à imprensa, talvez te apeteça explicar aqui à minha amiga se aquilo que eu disse corresponde ou não à verdade. E, a propósito — voltou-se mais uma vez para Coco —, a fotografia em que nos beijamos é de uma cena rodada na semana passada. Não sei a quem pagaram para entrar no local das filmagens, a menos que se trate de alguém da tua gente — disse a Madison com ar de profundo desagrado. — Eu não preciso deste tipo de publicidade neste momento. Acontece que estou apaixonado por esta mulher e nem ela nem eu queremos ou precisamos de ter dores de cabeça com este tipo de intrigas. Leslie quase deitava fumo pelas orelhas e Madison parecia pouco à vontade; o marido cabeleireiro pigarreou e saiu do quarto. Não parecia minimamente ciumento nem ter nada a acrescentar àquilo que Leslie tinha dito. Sorriu a Coco quando saiu e foi juntar-se ao resto do séquito no outro compartimento. As discussões entre os atores eram vulgares e Madison envolvia-se em muitas. O marido preferia ficar à margem e manter-se discreto, uma vez que o casamento era segredo. Ela tratava dos seus problemas. — Ora, Leslie, tens de admitir que esse tipo de coisas aumenta o interesse pelo filme. — Madison sorriu a Coco e viu-lhe uma expressão de espanto nos olhos. Coco nunca se vira envolvida numa tal situação. — E se disseres a alguém que estou grávida, mato-te — prosseguiu com voz calma, olhando para Coco. Era por isso que


levava um casaco por cima do vestido vermelho. A única pessoa que deveria saber era a responsável pelo seu guarda-roupa. Madison tinha assinado o contrato para o filme antes da gravidez e não quisera perder o papel. No entanto, Leslie quase perdera Coco. — Faz-me um favor — disse ele a Madison olhando-a nos olhos. — Temos de trabalhar juntos nos próximos meses. É trabalho para ambos. Tenta não destruir a minha vida pessoal enquanto aqui estamos. Eu não estrago a tua, tu não estragas a minha. — Está bem, está bem — disse ela, levantando-se do sofá, e Coco viu-lhe a leve saliência por baixo do roupão. Madison usava uma cinta apertada por baixo dos vestidos, mas tirava-a quando estava na roulotte. — Só não digas a ninguém que sou casada e estou grávida. É mau para a minha imagem. As sex symbols não podem ser casadas nem ficar grávidas. — Como vais explicar o bebé quando ele nascer? — perguntou-lhe Leslie, fascinado por aquelas mentiras, e Coco apercebeu-se de que ele não gostava dela. Era fácil entender porquê. — Basta que se saiba que o bebé é da minha irmã — disse Madison calmamente. — E onde estás a pensar tê-lo? Algures, debaixo de uma folha de couve? — Já está tudo tratado — disse ela, olhando para Coco. Madison era muito bela, mas Coco apercebia-se de que nela nada havia de simpático. Só se preocupava com a sua carreira, e não tinha o mínimo interesse em quem atropelava para conseguir o que queria. — Queridinha — disse a Coco —, leva-o para a roulotte e faz-lhe sexo oral. Ele precisa de se descontrair antes da próxima cena. Leslie empurrou Coco pela porta antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa e passaram por entre a multidão diante da roulotte de Madison. Coco seguiu-o e entrou na dele com uma expressão de profundo desgosto nos olhos. Fora uma cena muito desagradável para ambos. Nada embaraçava ou embaraçaria Madison Allbright. — Leslie, desculpa-me — disse ela com ar triste. — Só que eu pensei… quando vi a revista… — Bem, sei. Não te preocupes — disse ele, atirando-se para cima de uma cadeira. — Não podias imaginar que se tratava de uma treta fabricada. Aquela cabra é capaz de vender a mãe, se é que a tem, para fazer dinheiro e promover um filme. — Era um lado muito feio daquela atividade que Coco nunca experimentara. — Mas tens de saber também — disse, querendo avisá-la — que estou certo de que não vai ser a última vez que isto acontece. Madison é uma cabra cheia de truques e vai fazer mais


cenas. Pode acontecer noutro filme com ou sem intenção. Tens de saber que nunca te faria uma coisa dessas. Tenho demasiado respeito por ti e, além do mais, amo-te. Se me envolver com outra mulher ou quiser envolver-me, digo-te imediatamente e saio da tua vida. Não vais ter conhecimento por uma revista ou pelos tabloides. Por muito pouco juízo que tenha tido no passado, nunca fiz uma coisa dessas a ninguém e, certamente, não tenciono começar agora. Lamento que isto te tenha perturbado — disse, estendendo o braço e puxando-a para o colo. Coco estava terrivelmente incomodada. — Lamento ter armado tal confusão. Não queria ter causado um problema entre vocês. — Não ia tornar mais fácil o trabalho entre os dois, mas, até certo ponto, tinha esclarecido as coisas. Se Madison ia lançar boatos acerca de casos que pudesse ter com atores durante as filmagens, teriam de ser com outra pessoa. Leslie não tinha a mínima intenção de dar cabo da sua relação com Coco por causa dela. — Amo-te. E porque diabo quereria eu uma fulana como ela? — Madison aparecia por fim como era no meio de todos os seus vulgares assistentes e acompanhantes. Uma vagabunda barata. — Estas coisas acontecem neste meio, Coco. São boatos constantes, e a maioria das pessoas com quem trabalhas vai trepar por ti acima ou apunhalar-te nas costas para seguir em frente. É muito raro trabalhares num filme com gente decente que não te atraiçoe sempre que tiver oportunidade. Tens de te habituar a isso. — Vou tentar. — Abrira-lhe os olhos ver o modo como aquela atriz agia e como Leslie dera conta do assunto. Depois, de repente, ele soltou uma gargalhada. — Parece-me que quase te perdi ali. — Ambos tinham reparado que o marido dela se tinha esgueirado do quarto. — Até achei interessante aquela sugestão do sexo oral. O que achas? — Olhou para o relógio e, depois, de novo para ela. — Teremos tempo? — Estava apenas a brincar e desataram os dois a rir. Depois ele olhou-a mais sério. — Foi o primeiro assalto. Foi a tua primeira prova de fogo. Bem-vinda ao mundo do espetáculo. — Penso que me fui abaixo vergonhosamente — disse Coco ainda um pouco abatida. Estivera prestes a abandoná-lo quando pensara que ele tinha um caso com Madison. E se tivesse partido de Veneza sem falar com ele? Aprendera uma valiosa lição. — Pelo contrário — disse ele, orgulhoso. — Creio que te portaste surpreendentemente bem. Sobrevivemos a isto e não creio que essa bruxa malvada nos incomode de novo. — Para Leslie eram uma equipa invencível. Mas ambos sabiam, que, embora Madison nada pudesse fazer, mais cedo ou mais tarde talvez alguém o fizesse. Coco começava a compreender a natureza daquela profissão. As pessoas usavam-se umas às outras à mínima oportunidade e de todas as maneiras.


Almoçaram calmamente na roulotte, conversando sobre o filme e sobre as coisas que Coco queria ver em Veneza e, entretanto, ela apercebeu-se de que a irmã não tinha razão. Coco tinha enfrentado exatamente o problema que Jane mencionara. E, ao contrário do que a irmã previra, não se desmoronara como um castelo de cartas, e Leslie apoiara-a e não mentira. Ficara abalada, mas não destruída. Melhor ainda, a revista de escândalos enganara-se. Até ali, tudo corria bem.


CAPÍTULO 16 Todos os dias, Coco passava várias horas a ver Leslie no local das filmagens. Reparara várias vezes na tensão existente entre ele e Madison. Por vezes, aumentava a atmosfera eletrizante do filme e outras vezes tornava as cenas de amor quase dolorosas, o que certamente não era fácil para ele. Não gostava dela, e percebia-se. Mas, de qualquer forma, tinham de trabalhar juntos, e nenhum deles queria que isso se repercutisse no filme. Mais uma vez, Coco apercebeu-se de que aquilo era representação, não era amor. Leslie era espantosamente bom naquilo que fazia, ainda mais do que a atriz que contracenava com ele, que se esquecia constantemente do papel. Quando Coco se cansava de o ver nas filmagens, passava horas a passear por Veneza. Leslie troçava, dizendo que ela já entrara em todas as igrejas da cidade. Fora aos claustros de San Gregorio, Santa Maria della Salute e Santa Maria dei Miracoli. Passara horas a explorar a Academia di Belle Arti, o Teatro La Fenice e a Galeria Querini Stampalia. No final da semana tinha visto todos os recantos de Veneza e conseguia descrevê-los quando voltava à noite para o hotel. Ele estava cansado depois de longos dias de filmagens, de discussões com o realizador e do stresse de trabalhar com Madison. Mas, por muito exausto que estivesse, ficava sempre encantado por encontrar Coco à espera dele no hotel. E estavam ambos ansiosos pelo fim de semana em Florença. Ele alugara um carro e decidira ser ele a conduzir. Na noite antes de partirem, Leslie queixou-se de que havia paparazzi no local das filmagens. Alguns deles tinham vindo de Roma e de Milão. Suspeitava que Madison ou o seu agente de imprensa os tivessem avisado, embora admitisse que era natural aquilo acontecer. Quem quer que passasse pela Praça de São Marcos nessa semana tinha visto as filmagens. Não admirava que a imprensa aparecesse, já que havia importantes atores americanos a rodarem um filme na cidade. — Ainda bem que não estiveste lá hoje. Não quero que te incomodem. — Disselhe que os carabinieri os tinham afastado, mas que havia cerca de uma dezena à espera dele na roulotte. E se Coco lá tivesse estado teriam cercado os dois. Segundo Leslie, os paparazzi ingleses e italianos eram os piores e os mais persistentes. Sempre considerara a imprensa francesa mais respeitadora quando filmava em França. Nessa noite arranjou um mapa e planearam a viagem a Florença. Ele queria levála também ao Lido, mas ainda não tinham tido tempo, pois ficava a vinte minutos de barco. Enquanto ele estava ocupado a trabalhar, ela percorria Veneza a pé. Planeavam fazer uma paragem em Pádua e em Bolonha a caminho de Florença. Ela queria ver a Capela Scrovegni em Pádua, onde estavam as pinturas de Giotto que tinha estudado e de que já falara a Leslie, e as muralhas dos séculos XIII e XVI que rodeavam a cidade, bem como a catedral. Em Bolonha, queria ver a Basílica de São


Petrónio e, se tivessem tempo, a Pinacoteca Nacional. Pensavam chegar a Florença ao final da tarde e havia muita coisa que lá queriam visitar. A Galeria Uffizi, o Palácio Pitti, o Palazzo Vecchio, o Duomo. Não conseguiriam visitar tudo. Quando de manhã saíram de Veneza, o dia estava lindo. O motoscafo levou-os a um gigantesco parque de estacionamento onde o carro alugado os esperava. Leslie preferira um Maserati e sorria ao pôr a trabalhar aquele carro potente. A estrada para Pádua e Bolonha era linda, e depois meteram-se na autoestrada para chegarem a Florença. Ele tinha reservado uma suíte no Hotel Excelsior, mas Coco insistiu para que parassem primeiro na Galeria Uffizi. Estava desejando visitála. Tinha lá estado com os pais havia anos e Leslie nunca a tinha visitado. Descobria com ela um mundo novo. Estavam descontraídos e satisfeitos quando se registaram no hotel. Jantaram num restaurante que o hotel tinha recomendado e depois passearam pela praça. Comeram gelados, foram ouvir os músicos de rua e voltaram para o hotel. Era um conjunto de maravilhas totalmente diferente de Veneza e Coco disse que tinha pena de não poderem ir também a Roma. — Fica até eu terminar as filmagens — tentou-a. — Depois podemos ver isso tudo. — Ela ainda queria visitar Perugia e Assis. Mas ambos sabiam que Coco tinha de voltar. Não podia abandonar de repente os clientes e a empresa, e Erin apenas a podia substituir durante duas semanas. Estavam os dois tristes por não se poderem ver até ele regressar a Los Angeles. Passaria pelo menos um mês, talvez dois, se Madison não conseguisse decorar o seu papel. Estava a tornar-se extraordinariamente desgastante trabalhar com ela e Leslie não queria que ela arruinasse o filme. Prometera ao realizador passar todo o fim de semana a decorar o papel. Leslie assim o esperava, já que a sua figura não seria suficiente para terminar as filmagens. Coco e Leslie passaram uma noite calma na sua elegante suíte. No dia seguinte, quando estavam prestes a partir, sobressaltaram-se ao ver o gerente do hotel à porta do quarto. Vinha pedir desculpas, pois não sabia como tal tinha acontecido, mas alguém informara a imprensa de que Leslie estava ali. Havia um enxame de paparazzi à porta do hotel à espera deles. A segurança conseguira afastá-los do átrio, mas não havia maneira de saírem sem serem assediados. Era uma notícia sensacional saber que Leslie estava na cidade. Quando tomou conhecimento, Leslie olhou para Coco com um ar apreensivo. Felizmente, o hotel tinha-lhes metido o carro na garagem. O gerente fez-lhes a única sugestão de que se lembrou, que era saírem pela porta de serviço nas traseiras. Disse que, se se disfarçassem com óculos escuros, chapéus, o que quer que tivessem à mão, talvez pudessem escapar antes que os paparazzi os vissem sair. Lamentou o sucedido, o que deu a entender a Leslie que alguém no hotel


dera com a língua nos dentes. Veio um paquete para lhes levar as malas, enquanto Coco punha os óculos escuros e um lenço na cabeça. Ambos sabiam que eles não a queriam a ela, mas a Leslie. Entretanto, se o apanhassem, também a descobririam. E tendo-a visto com ele em Los Angeles, se ela aparecesse também em Itália, todos saberiam que se tratava de um romance sério. Por enquanto, Leslie queria poupá-la durante mais algum tempo a esse tipo de incómodo. Assim que soubessem quem ela era e de onde vinha, também a perseguiriam em Bolinas. Não queria que isso acontecesse. Já era desagradável ele ter de viver com isso, mas, por enquanto, queria Coco protegida da imprensa. Apanharam o elevador para a cave e saíram pela garagem. Leslie pusera óculos escuros e um boné de golfe que o gerente encontrara algures, entraram rapidamente no carro e saíram pela porta das traseiras atrás do camião da lavandaria e da carrinha da florista. Partiram muito antes de os paparazzi descobrirem que eles tinham desaparecido. Voltaram sossegadamente para Veneza, satisfeitos por terem enganado a imprensa. — Muito bem — disse Leslie sorrindo-lhe. Graças ao aviso do gerente, a saída tinha sido extremamente calma. Estavam ambos aliviados. Chegaram a tempo de apanhar o barco para o Lido e tomar uma bebida no Cipriani. Era um hotel espetacular com uma vista incrível de Veneza. Depois, voltaram ao Gritti para jantarem na privacidade dos aposentos de Leslie. Fora um fim de semana perfeito. Coco sentia-se entusiasmada por ter ainda mais cinco dias para estar com ele. Estava feliz por viver de novo com Leslie. Eram dias magníficos para ambos. Antes de se deitarem, telefonaram a Chloe. Ela contou-lhes tudo o que estava a fazer na escola e que tinha ganho um prémio pela melhor máscara do Halloween. Perguntou ao pai quando voltaria a vê-lo. Leslie prometeu passar o Dia de Ação de Graças com ela e com a mãe em Nova Iorque, se acabasse o filme a tempo. Depois de desligar, olhou para Coco como quem pede desculpas. — Foi uma estupidez da minha parte, não achas? Devia ter-te perguntado primeiro o que tencionavas fazer. Tento sempre passar os feriados com ela. — Coco sabia que ele não estava com a filha há dois meses e ainda faltavam quase três semanas para a poder ver. — Não te preocupes — disse Coco, sorrindo-lhe. — Passo sempre com a minha mãe em Los Angeles. Geralmente também lá passamos o Natal, mas este ano vai ser em casa de Jane. Nessa altura, dado o estado avançado da gravidez, vai ser difícil ela viajar. — Era estranho dizer aquilo. A ideia de Jane grávida e a ter um bebé era-lhe completamente estranha. — Vou ter contigo a seguir ao Dia de Ação de Graças — prometeu. — Espero que nessa altura já tenhamos acabado tudo aqui e possamos fazer um intervalo


enquanto preparam as coisas em Los Angeles. Também devemos ter uma interrupção decente no Natal e vou passar cada minuto contigo. Prometo. — Ela encostou-se a ele com uma expressão de felicidade. Nessa semana tentaram estar juntos sempre que possível. Ela ficava a vê-lo nas filmagens, durante horas e, no tempo livre, visitava as igrejas de que mais gostava e descobria outras. Nessa altura já se orientava bem em Veneza. Leslie estava impressionado. Ela já conhecia a cidade melhor do que ele, que raramente tinha tempo livre, a não ser à noite. Saíram para jantar na última noite e foram a um restaurante pequeno e engraçado numa rua discreta. Desta vez, foram levados por uma gôndola diferente que os deixou junto a uns prédios antigos e, a partir daí, seguiram a pé por uma ruela, pois o restaurante ficava ao voltar da esquina. Coco não teve qualquer problema em encontrá-lo depois das suas longas caminhadas em Veneza. Acharam-no encantador assim que entraram. Tinha um pequeno jardim, embora estivesse demasiado frio para se sentarem no exterior. A comida era deliciosa, a melhor que até ali tinham provado. Beberam uma garrafa de Chianti e saíram bem-dispostos, embora tristes por ela ter de partir no dia seguinte. Todavia, com sorte, ele estaria em casa dentro de poucas semanas. As filmagens tinham corrido bem durante toda a semana, melhor do que na anterior. Madison sabia, de facto, o seu papel. Um fim de semana a decorar o texto tinha resolvido as coisas. Leslie parou na rua à saída do restaurante e beijou Coco. A estadia dela em Veneza fora perfeita para ambos, quase como um sonho tornado realidade. E, melhor ainda, era real. — Fazes ideia do quanto eu te amo? — murmurou, beijando-a de novo. — Quase tanto como eu te amo — respondeu, quando recuperou o fôlego e sorriu, olhando-o nos olhos. Nesse momento houve uma explosão de flashes por todo o lado e pessoas a empurrá-los, e antes que qualquer deles pudesse entender o que se estava a passar, foram rodeados por paparazzi agressivos que tinham estado à espera para saltar sobre eles. Fora uma emboscada. Alguém avisara a imprensa e não eram dois ou três, era uma multidão. Leslie e Coco tinham uma boa distância a percorrer até chegarem ao barco. Leslie queria afastá-la da multidão e protegê-la, mas não fazia ideia como. Nem sabia para onde voltar, e a única possibilidade seria de gôndola. Havia pelo menos trinta fotógrafos entre eles e o barco. Coco olhava-o confusa e quase em estado de choque e ele gritava-lhe a perguntar por onde deveriam ir. Desorientara-se completamente e a meia garrafa de vinho não estava a ajudar. — Por ali! — apontou ela, por cima dos gritos da multidão que a empurrava a ela


e a Leslie para tirar fotografias. O fotógrafo mais próximo tinha um cigarro na boca e estava tão perto que a cinza caiu sobre o casaco dela e Leslie empurrou-o. — Então, rapazes — disse Leslie firmemente em inglês. — Já chega… Basta!… Não! — disse para um deles que lhes puxava os casacos, tentando detê-los e, ao fazêlo, toda a multidão pareceu voltar-se como um animal enfurecido e encostá-los à parede, e Coco bateu nela com muita força. Leslie começava a entrar em pânico. Já muitas vezes sofrera ataques de paparazzi, especialmente em Inglaterra e, inevitavelmente, alguém saía magoado. Não queria que fosse ela, mas não conseguia salvá-la da multidão. — Não! — gritou-lhe e empurrou-os, puxando ao mesmo tempo Coco por um braço e arrastando-a por entre os homens da imprensa que não haviam parado de tirar fotografias desde que os tinham encontrado. Foi um caminho terrível até ao barco, que pareceu durar para sempre. O gondoleiro estava à espera deles e assustou-se quando os viu. Estavam ali os três motoscafi em que os paparazzi tinham vindo e, de súbito, Leslie apercebeu-se de que ouvia falar inglês, francês e alemão. Tratava-se de um grupo de paparazzi internacionais que se tinham reunido para os atacar. Todos juntos eram muito fortes, ele e Coco não tinham qualquer possibilidade. Não se importava que tirassem fotografias, mas o espírito da multidão era impossível de controlar e claramente perigoso para eles. Dois paparazzi saltaram para a gôndola à frente deles e quase fizeram voltar o barco. Reagindo como se se tratasse de um ataque pirata, o gondoleiro bateu-lhes com os remos e ambos caíram no canal por entre gritos ofendidos. Leslie apercebeuse de que não se teriam importado se fosse ele ou Coco. Ela acocorou-se no assento, enquanto ele a protegia com o corpo e o gondoleiro partiu a toda a pressa. O grupo da imprensa de escândalos saltou para os motoscafi e tentou detê-los. O gondoleiro gritava insultos aos motoristas dos barcos que encolhiam os ombros e faziam gestos obscenos. Tinham sido pagos para fazerem aquele trabalho e o que acontecesse depois não era problema deles. — Estás bem? — perguntou Leslie, gritando por cima do barulho dos paparazzi e dos barcos. Os flashes continuavam a disparar e quase viraram a gôndola quando chegaram ao Grande Canal. Coco estava aterrorizada. Parecia-lhe que os iam matar. Leslie e o gondoleiro pouco podiam fazer para se protegerem. Ele rezava para que aparecesse um barco da polícia, mas tal não aconteceu. Regressaram então ao Gritti Palace o mais depressa possível, rodeados por paparazzi de motoscafi. Estes chegaram ao ancoradouro mais próximo do hotel antes de Coco e Leslie chegarem de gôndola. Leslie meteu trezentos euros na mão do gondoleiro, preparando-se para sair o mais rapidamente possível. Da doca até ao hotel, era apenas uma pequena corrida, mas os fotógrafos raivosos não iriam facilitar as coisas. Leslie quase se interrogou se não seria melhor pararem e posarem para eles, mas as coisas já tinham ido demasiado


longe. Tinha de se contar com a atitude da multidão, que fazia com que todas as pessoas agissem furiosamente. Leslie queria Coco fora de tudo aquilo e o mais possível longe daquela gente. Saiu da gôndola em primeiro lugar e puxou-a, mas já havia uma parede de fotógrafos entre eles e o hotel. Leslie sabia que teria de a atravessar para a pôr em segurança. Quando Coco ia pousar o pé no ancoradouro, um deles estendeu o braço, agarrou-lhe o tornozelo e puxou-a para a fazer parar. Ela gritou e caiu desamparada dentro da gôndola, não caindo à água por milagre. Leslie olhou para ela desesperado, voltou para o barco, levantou-a e correu para um sítio seguro com ela nos braços. Os treinos de rugby da sua juventude eram-lhe agora úteis, quebrou a barreira de corpos e meteu-se no hotel com os paparazzi atrás. O porteiro, os seguranças e os paquetes tentaram deter a multidão que os seguia e houve uma confusão de corpos e punhos no átrio, enquanto Leslie corria pelas escadas acima com Coco nos braços, seguido por um segurança com uma expressão preocupada. — Está tudo bem? — perguntou enquanto Leslie olhava para Coco e a ajudava a ficar de pé à entrada da suíte, e o segurança lhes abria a porta. Estavam ambos sem fôlego e Coco tremia violentamente dos pés à cabeça; tanto ela como Leslie tinham os casacos cheios de sangue. Ela cortara-se quando caíra no barco, depois de o fotógrafo lhe ter puxado o pé. — Chame um médico! — disse Leslie, nervoso, enquanto o segurança saía apressado para tratar do assunto. Antes, garantiu-lhes que haveria guardas à porta durante toda a noite e que chamaria o médico e a polícia. Disse que lamentava tudo aquilo. Leslie levou Coco para uma cadeira e foi à casa de banho buscar uma toalha. Ajudou-a a tirar o casaco e ela estremeceu ao ver que tinha o braço num ângulo estranho. Leslie teve a certeza de que estava partido. — Oh, meu Deus… querida… desculpa… nunca pensei… devíamos ter ido a outro lugar… ou ficado aqui… — Quase chorava ao vê-la chorar. Tomou-a nos braços enquanto ela tremia violentamente sem pronunciar palavra. Via-se pela expressão do seu rosto que estava em estado de choque. Até o médico chegar, e enquanto ela chorava, ele ficou ali a embalá-la e a dizer-lhe que a amava. Depois, Leslie explicou ao médico o que tinha acontecido e este examinou Coco com a maior delicadeza. Tinha um feio hematoma nas costas no sítio onde tinha batido na parede antes de chegar ao barco. O corte da mão precisava de sete pontos e tinha o pulso partido. Leslie sentiu-se mal quando o médico o informou de tudo isso. Deu a Coco uma injeção para lhe anestesiar a mão antes de coser o ferimento e depois outra contra o tétano, e ela estava atordoada quando chegou o ortopedista para lhe meter o pulso em fibra de vidro. Nenhum dos médicos quis arriscar levá-la ao


hospital e expô-la de novo à multidão. O ortopedista disse que havia vários paparazzi à espreita na rua, mas não vira nenhum no átrio. A segurança conseguira pô-los fora. Os médicos avisaram-na de que o pulso e a mão lhe doeriam durante uns dias, mas que podia viajar. Leslie queria que ela partisse. Não queria arriscar-se a que os jornalistas pagassem a alguém que lhes entrasse no quarto do hotel. A caçada tinha começado. Os tubarões sentiriam o cheiro a sangue e recusar-se-iam a deixá-los em paz. O seu idílio veneziano tinha acabado mal. Era tempo de ela voltar para casa. Leslie ficou acordado durante toda a noite a vigiá-la, acariciando-lhe a face e o cabelo enquanto ela dormitava. Colocou-lhe o braço sobre uma almofada, mas ela acordou uma ou duas vezes quando ele lhe pôs gelo na mão; entretanto os medicamentos fizeram efeito e Coco estava demasiado sedada. Apenas lhe disse que o amava e lhe agradeceu antes de voltar a adormecer. Quando, por fim, às seis da manhã acordou, já conseguiu falar com ele, mas começou de novo a chorar. — Tive tanto medo — disse ela, olhando-o com o pânico espelhado nos olhos. — Pensei que nos iam matar. — Também eu — disse ele tristemente. — Por vezes isto acontece. Enfurecem-se uns aos outros. — Leslie nunca se sentira tão indefeso na vida. Queria oferecer-lhe um último passeio romântico de gôndola e, como tal, tinham ficado completamente desprotegidos, sem fuga possível. — Lamento, Coco. Nunca quis que te acontecesse uma coisa destas. Alguém os deve ter avisado no restaurante ou aqui. Eles pagam e nunca se sabe quem foi. O pobre gondoleiro nem sabia o que lhe estava a acontecer. — Recebera uma boa gorjeta, mas Leslie duvidava que tivesse valido a pena. Também ficara aterrorizado, embora provavelmente tivesse ganho mais com o que Leslie lhe dera do que aqueles que os tinham vendido aos paparazzi. — O que aconteceu ao meu pulso? — perguntou Coco, olhando para a mão. Não se recordava do que o médico fizera na noite anterior pois estava completamente anestesiada. — Está partido — disse Leslie numa voz rouca. Tinha olheiras e a barba por fazer. — Disseram que devias tratar dele assim que chegasses a casa. Não quiseram levar-te ao hospital ontem à noite, para não se arriscarem a que acontecesse o mesmo. Levaste sete pontos na mão — disse com um olhar angustiado. — Deram-te uma injeção contra o tétano, pois eu não sabia se a tua vacina estava em dia. Ele cuidara maravilhosamente bem dela, mas não conseguira protegê-la do pesadelo dos paparazzi e lamentava-o amargamente. Era tudo o que ela receava na vida dele e a única razão por que hesitava numa vida em comum. Ele embarcara naquelas situações ao tornar-se ator. Ela fizera os possíveis por fugir delas. — Obrigada — disse ela em voz baixa e depois olhou-o com ar triste. — Como podes viver assim? — Estava mortalmente assustada.


— Não tenho escolha. Viriam atrás de mim, mesmo que eu deixasse de trabalhar. É uma das desvantagens da profissão. — E, aos olhos dela, era terrível. — E se tivermos filhos? E se os perseguirem assim? — Lia-se-lhe nos olhos aquilo que pensava. E Leslie viu neles puro terror, mas não a podia censurar. Fora uma noite horrível, uma das piores que já tivera. E fora logo acontecer quando estava com ela, e fora ela que ficara ferida. Sentia-se um monstro por a ter colocado numa situação assim. — Sempre tive muito cuidado com Chloe — disse ele em voz baixa. Mas também tinha cuidado com ela. Fora um azar incrível que as coisas se tivessem descontrolado daquela maneira e que estivessem naquele local tão vulnerável. — Nunca levo Chloe a acontecimentos públicos — explicou. Mas eles foram apenas jantar num pequeno restaurante, numa ruazinha de Veneza. Ambos sabiam que aquilo poderia ter acontecido em qualquer lugar. — Lamento muito Coco. De verdade. Não sei o que mais dizer. — Ela acenou afirmativamente e deixou-se ficar mais algum tempo na cama, em silêncio. Por fim, voltou a falar. Só se lembrava do momento em que um dos fotógrafos lhe tinha puxado o tornozelo e ela caíra de costas na gôndola. Sabia que se recordaria disso para sempre. — Amo-te. Amo-te de verdade — disse tristemente. — Não há nada que não ame em ti. És o melhor homem do mundo. O mais bondoso. Mas não creio que consiga viver assim. Ficaria assustada onde quer que fôssemos e preocupada pelos nossos filhos e por ti. — Foi um mau começo — admitiu ele tristemente. Coco vira os seus receios confirmados na noite anterior. Ela desatou a chorar e ele tomou-a de novo nos braços. — Amo-te tanto, mas estou tão assustada — soluçou angustiada. Continuava a recordar-se dos jornalistas horrivelmente descontrolados. — Bem sei, querida, bem sei — sussurrava ele, abraçando-a. — Compreendo. — Não queria perdê-la, mas compreendia. E desejava convencê-la do contrário, mas sentia que não seria justo para ela. Coco tinha sido muito corajosa e era pedir demasiado. Enfrentar os paparazzi e sobreviver-lhes fazia parte da vida dele, mas não teria de fazer parte da dela. Ela podia escolher, ele não. Teria de esperar que ela se acalmasse e recuperasse para então lhe pedir que não deixasse de querer ir viver com ele. — Agora vou pôr-te em segurança dentro do avião para Paris. Quando eu regressar, conversamos com calma. — Não queria que ela tomasse decisões finais naquele estado. Preocupava-o que quisesse acabar tudo. E isso poderia acontecer. Telefonou ao realizador e contou-lhe o que acontecera na noite anterior. Pediu-lhe


que filmassem sem ele naquela manhã. O realizador disse que lamentava e perguntou se podia fazer alguma coisa para ajudar. Leslie pediu-lhe que mandasse uma das cabeleireiras com várias perucas de todas as cores, exceto da cor do cabelo de Coco. Depois, telefonou ao gerente do hotel e pediu vários seguranças para a acompanharem ao motoscafo, e polícia, se necessário fosse. Mas o gerente era da opinião de que poderiam arranjar-se sozinhos. Leslie meteu-a no duche. Tinham-lhe colocado uma espécie de gesso que podia molhar-se. Manteve-a nos seus braços para que ela não tropeçasse, escorregasse ou desmaiasse, depois ajudou-a a vestir-se. Já tinha decidido não sair do hotel com ela. Não queria fazer nada que chamasse a atenção. Agora, reconhecê-la-iam, mas procuravam-no principalmente a ele, ou queriam fotografias dos dois juntos. Não queria fazê-la passar por isso e ia despedir-se ali no hotel e deixá-la partir do Gritti com os seguranças. Era um fim triste para aquela viagem. Enquanto a ajudava a vestir-se, Leslie não podia deixar de se interrogar se a voltaria a ver. Ela fizera as malas na noite anterior, por isso nada mais tinha a fazer do que vestir as calças de ganga, uma camisola e o casaco de pele de carneiro. A cabeleireira do estúdio chegou quando Coco acabava de se vestir. Leslie sentou-a junto do toucador e viu os olhos dela no espelho. Percebeu que ainda estava em estado de choque. A cabeleireira trouxera várias perucas louras e compridas que tinha à mão e uma curta e escura, de corte elegante e suficientemente cheia para cobrir o cabelo acobreado de Coco. Prendeu-lho no alto da cabeça e colocou-lhe a peruca. Foi um choque vê-la de cabelo escuro, mas, apesar de tudo, Leslie sorriu. Coco estava incrível, a peruca transformava-a completamente, era tudo o que ele queria. Ficava irreconhecível de cabelo preto. — Pareces uma Elizabeth Taylor muito nova. — Coco limitou-se a acenar. Não lhe importava o que parecia. Sentia um enorme desgosto por ir deixá-lo e não gostara daquilo que vira da vida dele. Tinham sobrevivido aos boatos de uma revista e ao falso caso com a atriz que contracenava com ele. Mas era muito mais difícil ultrapassar o pesadelo que vivera com ele na noite anterior. Leslie agradeceu à cabeleireira quando esta saiu e ficou a olhar para Coco. — Que mais posso dizer-te? Amo-te, Coco, mas não quero arruinar a tua vida. Sei como detestas tudo isto. Ela esboçou um sorriso triste. — Um dia de cada vez, acho eu — disse, repetindo as palavras dele e fazendo-o sorrir. — Quem me dera partir contigo. Por favor, não fujas de mim agora. Vamos tratar


disto juntos. Sabia que ela tinha todas as razões para terminar e não podia censurá-la, mas esperava que ela não o fizesse. Trocara o bilhete dela por um de primeira classe e oferecera-lho. Queria que ela regressasse com todo o conforto e ficara espantado por ela ter vindo em turística. Pelo menos agora poderia dormir a caminho de casa. Leslie sentia que era o mínimo que podia fazer por ela. — Só sei que te amo. Preciso de pensar no resto — disse Coco tristemente e ele acenou com a cabeça, sabendo que era o melhor que poderiam fazer naquele momento. Ela ainda parecia muito abalada e ele sabia que lhe devia doer o braço. Fora uma experiência terrível para ambos, principalmente para ela, que ficara ferida. Só de pensar nisso, Leslie sentia-se mal. Bateram à porta; os seguranças esperavam-na. Eram quatro homens corpulentos e um paquete para lhe levar as malas para baixo, até ao barco a motor que a esperava na entrada de serviço. Saía por trás como em Florença e como muitas vezes acontecia com Leslie. Ele tomou-a nos braços e, por momentos, nada disse. Só queria sentir o calor dela contra o seu peito e recordar-se dos mínimos pormenores do seu rosto. — Não te esqueças de que te amo e que compreendo tudo o que venha a acontecer. — Receava que tudo tivesse terminado. Era o que estava escrito nos olhos dela quando se voltou para lhe acenar. — Também te amo. — E depois acrescentou desajeitadamente: — Nunca esquecerei Veneza… bem sei que parece ridículo depois de ontem à noite, mas nunca fui tão feliz na minha vida. Foi perfeito até ontem à noite. — Não te esqueças disso — disse ele, atrevendo-se a ter esperança, apesar dos seus receios. — Cuidado com o teu pulso. Tens de tratar dele logo que chegues. Ela acenou afirmativamente e beijou-o nos lábios. — Amo-te — disse uma última vez e depois saiu da suíte e fechou a porta atrás de si. Leslie sentiu que lhe tinham arrancado o coração para o desfazerem em pedaços.


CAPÍTULO 17 Coco sentiu-se atordoada durante toda a viagem para São Francisco. Pensou telefonar-lhe de Paris enquanto aguardava o outro voo, mas sabia que ele já deveria estar no estúdio a trabalhar, por isso não o fez. O voo para São Francisco pareceu-lhe interminável. Doía-lhe o pulso e tinha uma dor de cabeça da noite anterior. Sentia-se como se lhe tivessem sacudido o corpo com força. Tinha as costas doridas do hematoma e apenas queria dormir. Não queria pensar em nada, nem falar com ninguém. E sempre que adormecia tinha pesadelos. Não só acerca dos paparazzi, mas também de Leslie. Sabia que não podia partilhar a vida dele. Era demasiado assustador e intenso. Por duas vezes acordou a chorar. Sentia-se como se tivesse perdido não só o único homem que amava, mas todos os seus sonhos. Era uma sensação terrível. Com a diferença horária, eram duas da tarde quando chegou a São Francisco, e seriam onze da noite em Veneza, contudo, o seu telemóvel estava desligado e ela não lhe telefonou. Conseguiu um bagageiro para lhe levar as malas e dirigiu-se ao terminal quase às cegas. Ia apanhar um táxi para Bolinas, pois estava demasiado cansada para viajar no autocarro do aeroporto. Quando olhou em volta, já na rua, viu Liz que se apressava em direção a ela. O avião adiantara-se e nunca lhe ocorrera ter alguém à espera. Ainda estava atordoada para pensar. — Olá. Vais a algum lado? — Coco olhou-a sem perceber, enquanto Liz a observava com ar preocupado. — Leslie telefonou-me. Contou-me o que se passou em Veneza. Lamento, Coco. — Sim, também eu — disse Coco com os olhos cheios de lágrimas. — Jane tinha razão. Foi assustador. — E sê-lo-ia para a maior parte das pessoas — disse Liz compadecida. — Ele compreende perfeitamente. Ama-te e não quer estragar a tua vida. — Não lhe disse que Leslie estava a chorar quando lhe telefonara, assustado por poder tê-la perdido para sempre. E pelo que Liz se apercebia, tinha uma forte suspeita de que seria esse o caso. — Porque é que aquilo teve de acontecer? — disse Coco, tristemente. — Estava tudo tão perfeito. Passámos uns dias maravilhosos. Nunca fui tão feliz na minha vida e ele é tão boa pessoa. — Eu sei que é. Mas essas situações fazem parte da vida dele. Talvez não tivesse sido mau teres visto como era. Agora sabes com o que tens de contar. — Ajudá-la-ia a tomar a decisão certa, uma decisão com que teria de viver. — É uma maneira terrível de viver — disse Coco, pensando no momento em que,


na noite anterior, tinha caído para dentro do barco. Não conseguia esquecer-se e estava completamente abalada. Liz disse-lhe que se sentasse num banco e esperasse um pouco enquanto ela ia buscar o carro. Coco continuava atordoada quando o bagageiro meteu as malas no porta-bagagem. — O que disse Jane? — perguntou Coco, infeliz, enquanto se afastavam do aeroporto. Liz olhou-a do lugar do condutor e depois voltou os olhos para a estrada. — Não lhe contei. Tu é que sabes o que lhe queres dizer. Não precisa de saber de nada se não quiseres. — Coco acenou com a cabeça, agradecida a Liz pela sua bondade e discrição. — O facto de te assustares com os paparazzi não é nenhum crime. Qualquer pessoa detestaria viver assim. Tenho a certeza de que ele também não gosta. Aconteceu, e ele não tem muita escolha na matéria. — Coco acenou afirmativamente. Sabia que era verdade. — É uma razão terrível para não se ficar com quem se ama — disse Coco sentindo remorsos. Amava-o, mas detestava o que rodeava o sucesso dele. Não queria levar a vida a esconder-se, a fugir e a usar perucas enquanto tinha de se esgueirar pela porta das traseiras dos hotéis. Era uma existência triste. E a fúria nos olhos dos paparazzi na noite anterior fora a coisa mais assustadora que já vira. — Tive medo que quisessem matar-nos — explicou. Liz acenou com a cabeça enquanto Coco desatava de novo a chorar. Liz apercebeu-se de que ela estava traumatizada com o que lhe tinha acontecido. — Parece-me que Leslie está como tu. Sente-se muito mal. — Bem sei — disse Coco em voz baixa. — Depois, foi maravilhoso para mim. — A propósito, vamos ao médico. — Não quero. Só quero ir para casa — disse Coco, exausta. — Leslie disse que tinhas de ir. Trataram-te do pulso sem te fazerem uma radiografia. Tiveram medo que saísses outra vez do hotel, porque os paparazzi ainda estavam lá fora. Por isso temos de ir ver isso. Coco concordou. Estava demasiado perturbada para discutir com ela. Liz marcara uma consulta com um ortopedista seu conhecido. A consulta foi em Laurel Village. O ortopedista confirmou que o pulso estava partido e disse que tinham feito um bom trabalho em Itália; substituiu o gesso por outro do mesmo tipo e, uma hora depois, estavam a caminho da praia. — Não precisas de me levar a casa — disse Coco, tristemente. Liz sorriu.


— Acho que até podia deixar-te ir a pé ou talvez à boleia. Mas, que diabo, o dia está tão bonito. Vai fazer-me bem ir à praia. — Coco sorriu pela primeira vez em muitas horas. — Obrigada por seres tão boa para mim — disse em voz baixa e depois recordouse: — Como vai o bebé? — A crescer de dia para dia. Jane está fabulosa, mas parece que vai ser um bebé grande. — Nessa altura estava grávida de seis meses, mas, mesmo assim, Coco não tinha pressa de se encontrar com a irmã. Esta perceberia imediatamente que tinha acontecido qualquer coisa de terrível na viagem e Coco não se sentia disposta a discutir o assunto com ela. Só com Liz. Liz era a irmã mais velha que sempre desejara ter. Coco adormeceu no carro a caminho da praia e Liz acordou-a devagar quando chegaram à porta. Coco olhou em volta, confusa por um momento e depois olhou tristemente para a sua casa. Desejou estar de novo em Veneza, com Leslie, e que o fim tivesse sido diferente. Pela primeira vez não queria estar em Bolinas. E tinha medo de não ficar com ele. Era uma situação terrível. — Vá lá. Entro contigo. — Liz levava as malas e Coco abriu a porta. Não tinham parado para ir buscar Sallie, mas Liz disse que não se importavam de ficar com ela mais um ou dois dias. O pulso chegava para dar trabalho a Coco. Liz dissera apenas a Jane que a irmã tivera um acidente em Itália e partira o pulso. — Obrigada por me teres ido buscar ao aeroporto — disse Coco, abraçando-a. — Estava um trapo e acho que ainda estou. — Vai dormir. Amanhã sentes-te melhor. E não tentes resolver já as coisas. Acabarás por saber o que fazer. — Coco acenou afirmativamente e Liz foi-se embora. Coco entrou no quarto e vestiu o velho pijama desbotado. Eram cinco da tarde em Bolinas e duas da manhã em Veneza. Só queria dormir, nem sequer tinha fome. Era muito tarde para telefonar a Leslie, mas também não queria fazê-lo. Não saberia o que dizer. E talvez Liz tivesse razão, disse para consigo, enquanto se metia debaixo dos cobertores: mais tarde conseguiria resolver as coisas. Agora só desejava tentar esquecer o que se passara e dormir.


CAPÍTULO 18 Leslie telefonou a Coco um dia depois de ela ter chegado a casa, para saber como estava o pulso. Não lhe disse que já tinha ligado para Liz na noite anterior às quatro da manhã. Liz dissera-lhe que tinham ido ao médico e que este lhe tinha posto um novo gesso, que Coco parecia atordoada e exausta, mas que estava tudo bem, sugerindo-lhe que deixasse o pó assentar e lhe desse um tempo. Mas Leslie queria que Coco soubesse que ele pensava nela, por isso telefonou-lhe no dia seguinte da sua roulotte. Disse-lhe que estava cheio de saudades e, mais uma vez, pediu desculpa por tudo o que acontecera. — A culpa não é tua — disse Coco, tentando consolá-lo. Mas ele apercebeu-se de qualquer coisa diferente na voz dela, como se Coco tivesse começado a recuar. — Que tal vai o filme? — perguntou ela para mudar de assunto. Sentira-se pior depois da viagem de avião, mas, mesmo assim, levantara-se. Erin não a podia substituir nesse dia e ela não queria deixar mal os clientes. O médico dissera que podia trabalhar se se sentisse bem, mas que não o recomendava. — Hoje correu tudo bem. Ontem a Madison falhou as suas falas e eu também, por isso, acho que estivemos bem um para o outro. — Leslie não conseguia pensar depois da partida de Coco. Ela tinha-lhe levado o coração e o espírito. — Mesmo assim, tenho esperança de voltar para o Dia de Ação de Graças. Nessa altura teriam passado sete semanas, mas ele não se atrevia a dizê-lo. Apercebia-se de que ela, tal como ele, ainda estava abalada. As suas fotografias estavam em todos os jornais da Europa. Ele parecia um louco a tentar protegê-la e ela tinha os olhos muito abertos e estava aterrorizada. Havia até uma de quando ela caíra desamparada no barco. Leslie quase nem as podia ver, pois sentia ainda mais saudades; o mesmo acontecia quando falava com ela. — Tenta ter calma durante uns dias. Foi um grande golpe ontem à noite. — Ele suspeitava que ela iria ficar abalada durante algum tempo e sofreria de stresse póstraumático. — Estou bem — disse ela, sentindo-se como um robô. Partia-se-lhe o coração ao falar com ele. Estava mais apaixonada do que nunca depois da viagem a Itália, mas o ataque dos paparazzi tinha-a convencido de que não tinha forças para aguentar aquilo por que ele passava. Não conseguiria viver daquela maneira. — Vou a caminho do trabalho — disse, enquanto atravessava a ponte. O tempo que tinham passado em Veneza parecia a ambos estar a uma vida de distância. — Telefona quando quiseres falar comigo — disse ele com uma voz triste. — Não quero pressionar-te, Coco. — Queria dar-lhe tempo para respirar, já que Liz sugerira que poderia ser boa ideia. O trauma fora muito grave.


— Obrigada — disse ela, voltando no cruzamento para Pacific Heights, desejando que ainda estivessem em casa de Jane, no princípio de tudo e não no fim. — Amo-te — murmurou, mas já não via maneira de fazer com que aquilo desse resultado, a menos que quisesse participar da mesma vida louca que ele levava, e isso seria impossível. Só que não conseguia dizer-lho. E ele sabia-o — Também te amo — foi o que Leslie disse. Coco foi então buscar Sallie antes de ir buscar os outros cães. Jane abriu a porta e disse que lamentava o que lhe tinha acontecido ao pulso. Coco sorriu quando a viu. Estava enorme. — Estás cada vez maior — comentou, e Jane acariciou a sua barriga redonda. Vestia leggings e uma camisola e estava mais bonita do que nunca. Tinha no rosto uma expressão mais suave. — Faltam três meses — disse Jane, um pouco apreensiva. — É difícil acreditar. — Nessa altura iam e vinham de Los Angeles para a pós-produção do filme. Liz dissera que terminariam por alturas do Dia de Ação de Graças, o que era muito bom. Assim Jane teria mais dois meses para se acalmar e preparar-se para ser mãe. — Tu e Leslie vão a casa da mãe passar o Dia de Ação de Graças? — perguntou distraidamente. Coco abanou a cabeça. — Eu vou, mas ele fica em Nova Iorque com a filha. — Coco não queria discutir o problema com ela e rapidamente mudou de assunto. — A propósito, como está Gabriel? — Recordou-se de que Jane o tinha conhecido em Los Angeles e que, desde aí, não falara com ela. Jane riu-se da pergunta. — Jovem. Meu Deus, como é jovem. E a mãe parece sentir-se com dezasseis anos. No mínimo, põe-me um pouco nervosa. Mas acho que ele é um fulano como deve ser, só não sei o que faz com uma mulher daquela idade. Não pode durar muito, mas, pelo menos, ela diverte-se. — Coco sentiu-se um pouco chocada ao ver que a irmã já aceitava as coisas. Esperara encontrá-la pronta a destruir tudo, mas, afinal, parecia não se importar. — Seja como for, penso que todos temos os nossos momentos de loucura e o direito de tomar decisões sobre as nossas próprias vidas, seja o que for que os outros pensem. A propósito, que tal correu tudo em Itália? Coco quase estremeceu ao ouvir a pergunta, mas estava preparada para ela. — Ótimo — disse ela com um enorme sorriso, rezando para que a irmã mais velha não se apercebesse do que havia por trás. — Exceto o meu pulso. — Foi um grande azar, mas, pelo menos, foi o esquerdo. Jane não disse uma palavra acerca de Leslie e, enquanto Sallie a seguia até ao carro, Coco perguntava a si própria se ela não o teria também aceitado. Enquanto conversavam, a irmã afagava a barriga, como é vulgar nas grávidas. Coco teve a


impressão de que alguma coisa tinha mudado. Iam voltar para Los Angeles até ao Dia de Ação de Graças, e Coco gostaria de saber se nessa altura ainda se sentiria como se a sua vida tivesse chegado ao fim. Quando Ian morrera sofrera muito, mas aguentarase. Poderia agora sofrer por causa de Leslie, mas também sobreviveria. Foi buscar os cães grandes e depois os de Cow Hollow. Seguia o caminho habitual e fazia tudo o que era preciso, voltava para Bolinas todas as tardes, mas sentia que tudo dentro de si estava morto. Leslie não lhe telefonou nas três semanas seguintes e ela também não lhe ligou. Ele não queria pressioná-la e ela tentava esquecê-lo e sabia bem que a melhor maneira de o fazer era não falar com ele. Não lhe queria ouvir a voz com medo de voltar a apaixonar-se como sabia que poderia acontecer. E tudo voltaria ao mesmo. Não queria, era demasiado assustador. Coco não falou com pessoa alguma até ir para Los Angeles no Dia de Ação de Graças, três semanas depois de voltar de Veneza. Deixou Sallie com Erin, pensando estar fora apenas dois dias. Liz convidara-a para ficar na casa que tinham alugado e Gabriel iria jantar com elas no Dia de Ação de Graças. Seria agora que o ia conhecer, embora o tivesse avistado naquela noite em Bel-Air, com a mãe. Liz foi buscá-la ao aeroporto em Los Angeles e levou-a para casa, onde Jane as esperava. Era a noite da véspera do Dia de Ação de Graças e as três iriam fazer um jantar sossegado. Liz não lhe perguntou por Leslie e Coco não falou nele, embora gostasse de saber se ele sempre teria ido passar o Dia de Ação de Graças com Chloe e a mãe. Não lhe telefonara, de modo que ela não fazia ideia se voltara ou não de Veneza. Pensava que o melhor seria deixar as coisas como estavam, para se afastarem. Os dados tinham sido lançados na última noite que passara em Veneza e tomara aquela decisão. Ele sabia-o pelo silêncio dela e, pelo de Leslie, Coco sabia que ele entendia as coisas. Amavam-se, mas no espírito de Coco não havia dúvidas de que não resultaria. Jane estava estendida no sofá quando ela e Liz voltaram do aeroporto e acenou ao ver a irmã entrar. Parecia uma bola de praia com pernas, braços e cabeça e Coco sorriu quando lhe foi dar um abraço. — Estás enorme! — A barriga de Jane parecia ter aumentado para o dobro em três semanas. — Se se trata de um cumprimento, muito obrigada — disse Jane a sorrir. — Se não, vai dar uma curva. Devias experimentar isto. — Coco quase estremeceu. Tinha desistido da ideia de casamento e de ter filhos e, ouvi-la falar assim, obrigou-a imediatamente a pensar em Leslie. — Nem quero pensar no tamanho que esta criança vai ter daqui a dois meses. Assusta-me de morte. Falaram e riram durante todo o jantar. Liz e Jane tinham terminado o filme e iam, por fim, regressar a São Francisco na semana seguinte. A meio do jantar e depois de


uma garrafa de vinho, Jane voltou-se de súbito para Coco e perguntou-lhe como estava Leslie. Apercebera-se de que a irmã não falara dele durante toda a noite. — Creio que está bem — disse Coco, tentando preparar-se para o que vinha a seguir. Lançou um olhar rápido a Liz que, obviamente não tinha dito nada e Coco estava-lhe agradecida. Precisara daquelas três semanas para se recompor e contar a Jane. — Está tudo bem entre vocês? — perguntou Jane, franzindo a testa. — Não, de facto não está — disse Coco em voz baixa. — Acabámos tudo. Tinhas razão. Tivemos alguns problemas menores com os paparazzi e, na minha última noite em Veneza, perseguiram-nos. E, como tu previste — disse cheia de coragem —, eu desmoronei como um castelo de cartas. Pregaram-me um susto de morte. Acabei com sete pontos e o pulso partido e achei que, para mim, bastava. Não consigo viver assim. Por isso, aqui estou, de novo sozinha. Só eu. Seguiu-se um longo silêncio depois de ela ter feito aquele breve discurso e estava à espera de uma catadupa de «eu bem te disse», mas, afinal, Jane inclinou-se e tocoulhe no gesso. Nessa altura os pontos já tinham sido retirados e a ferida da outra mão estava sarada. Havia apenas uma pequena cicatriz a recordá-la, o que nada era comparada com o estado do seu coração. Sentia-se como se lho tivessem partido. — Os paparazzi partiram-te o pulso? — perguntou Jane, incrédula. Estava admirada e cheia de pena. — Não foi intencional. Eu saía da gôndola no ancoradouro do Gritti e um deles puxou-me pelo tornozelo; caí desamparada dentro do barco. Quando tentei amparar a queda, cortei a mão e parti o pulso. Antes, tinham-nos feito uma espera quando saíamos do restaurante e atiraram-me contra uma parede. Quando por fim conseguimos chegar à gôndola, saltaram lá para dentro connosco e quase viraram o barco. Eram cerca de trinta, seguiram-nos em três motoscafi e depois tentaram impedir-nos de sair do barco. Foi muito desagradável. — Estás a brincar? — disse Jane, espantada. — Eu falava em andarem atrás de ti, invadirem a tua privacidade, e tu és uma pessoa tão discreta. Sabia que detestarias. Nunca pensei que seriam violentos, que te empurrassem contra as paredes, tentassem atirar-te dos barcos, cortar-te e partir-te os ossos. E onde estava Leslie no meio de tudo isso? — Queria saber se Leslie a tinha deixado com os lobos porque, se assim fosse, ia telefonar-lhe e dar cabo dele. — Estava comigo. Fez o que pôde, mas não havia como escapar. Estávamos numa ruazinha de Veneza e, a princípio, nem conseguíamos chegar ao barco. Eles eram cerca de trinta e nós apenas dois. Foi muito mau. — Meu Deus, também eu me teria ido abaixo como um castelo de cartas. E


acabaste com tudo a seguir a isso? — Mais ou menos. Ele sabe como eu me sinto. Não é assim que quero viver — disse, tentando mostrar-se descontraída, mas, pelo seu tom de voz, a irmã e Liz compreendiam. Coco ainda estava apaixonada por ele, mas tomara uma decisão e estava determinada a mantê-la, por muito difícil que fosse. Pensava que ficar com ele e viver daquela maneira seria pior. Perdê-lo também era horrível. Deixar Leslie era a coisa mais difícil que alguma vez fizera. — Ninguém quer viver assim. Ele deve sentir-se muito mal por causa disso. — Jane estava horrorizada com tudo o que ouvira e, sentindo uma enorme tristeza na expressão dos olhos da irmã, deu-lhe um abraço. — Pois sente. Foi maravilhoso comigo logo a seguir. Depois de eu ter caído no barco, agarrou-me, pegou em mim e passámos por eles a correr. Depois, no dia seguinte, tive de sair pela porta de serviço, com uma peruca preta e quatro guardacostas. — Meu Deus, que horror. Nestes anos todos já tinha ouvido falar em ataques desses, mas foram poucos. Geralmente puxam e empurram e disparam-nos as máquinas na cara. Surpreende-me que ele não matasse um deles. — Estava muito preocupado comigo. Nessa altura eu estava a deitar sangue. — Porque não me contaste quando voltaste de lá? — perguntou Jane, abalada. Olhara para Liz que não dissera uma palavra. — Estava muito perturbada. — Coco suspirou, olhou para a irmã e disse-lhe com toda a franqueza: — Tinha medo do que tu me pudesses dizer. Avisaste-me logo no princípio e tinhas razão. — Não tinha, não — disse Jane, embaraçada. — Falei por falar e Leslie deu-me uma descompostura muito bem dada. Liz também se zangou. Não sei, estava com medo que te atirasses de cabeça e que ele te estivesse a usar como romance de verão. Para mim és sempre uma miúda. Ele leva uma vida tão ao estilo de Hollywood que eu não conseguia imaginar-te a fazer parte dela. Mas vocês amam-se, Coco. O que te aconteceu em Itália foi uma coisa extrema. Se for preciso, tenho a certeza de que ele pode arranjar-te guarda-costas. Não podes desistir da pessoa que amas quando as coisas começam a correr mal. — Agora sentia-se arrependida do que antes dissera à irmã e esperava não tê-la influenciado a acabar com tudo. Leslie impressionara-a quando lhe telefonara zangado. Não tinha quaisquer dúvidas de que ele estava profundamente apaixonado por Coco e que a irmã sentia o mesmo. — Não fui talhada para esse tipo de vida — disse Coco, com simplicidade. — Ficaria louca. Teria medo de ir onde quer que fosse, de levar os meus filhos a passear, se os viéssemos a ter. E se uma das crianças fosse ferida por um desses lunáticos? E


se o teu bebé corresse esse risco todos os dias? — Arranjaria maneira de o proteger. Mas não haveria de desistir de Liz — disse calmamente. — Tu ama-lo, Coco, eu sei que sim. É uma coisa muito importante para perderes. — A minha vida também é importante. Podíamos ter morrido naquela noite. E depois continuei a pensar em todas aquelas histórias horrorosas que o pai contava acerca dos seus clientes. Nunca quis ser como eles quando crescesse e ainda não quero. — Enquanto falava, as lágrimas corriam-lhe pelas faces e ela limpava-as. — Leslie não tem escolha. Tem de viver assim. Eu não consigo. — Ao dizê-lo, a vida fugia-lhe do olhar. — Depois do que se passou, estou certa de que Leslie arranjará tudo para que as coisas não voltem a repetir-se. — Jane tentava descansá-la. Coco não respondeu, limitava-se a olhar para o prato e depois para a irmã e, por fim, abanou a cabeça. — Estou muito assustada — disse tristemente quando Jane estendeu o braço e lhe tocou na mão. Liz sentiu orgulho na companheira pelo que estava a dizer. Tinha de se arrepender de muita coisa e, finalmente, estava a fazer o que devia. A futura maternidade tinha-lhe limado as arestas. — Porque não lhe dás um tempo? — disse Jane calmamente, sem lhe largar a mão. — Quando é que ele volta? — Não sei. Não falo com ele há três semanas. Deve ser mais ou menos agora, se as filmagens não se atrasaram. — Não podes deixar que esses canalhas te derrotem. Não lhes podes dar isso também. — Mas ela já o tinha feito. Coco tinha a sensação de que não podia voltar atrás. Não era isto que tinha querido que acontecesse, mas, depois do ataque dos paparazzi, temia pela sua vida se ficasse com ele. Leslie sabia-o e era por isso que não tinha tentado convencê-la do contrário. Amava-a o suficiente para a deixar partir, já que era melhor para ela. Coco ajudou Liz a levantar a mesa enquanto Jane se sentava no sofá a ver televisão. — O que lhe fizeste? — perguntou a Liz num murmúrio na cozinha. — Foi simpática. Liz riu-se do que Coco tinha dito. — Penso que as hormonas estão finalmente a fazer efeito. O bebé ainda a vai transformar num ser humano. — Estou impressionada — disse Coco quando meteram o último prato na máquina e voltaram para o sofá para junto de Jane. Não falaram do ataque dos


paparazzi e, algum tempo depois, foram para a cama. No dia seguinte tinham de estar em casa da mãe à hora do almoço, que era sempre formal e tradicional. E, conforme Jane disse com um sorriso, desta vez o Rapaz Maravilha também lá ia. Levantaram-se tarde na manhã seguinte e, à uma hora, estavam na mansão de Florence em Bel-Air. Jane levava o único vestido decente que tinha e que ainda lhe servia. Era de seda azul e combinava com o seu longo cabelo louro. Coco usava um vestido de lã branca e Liz um fato de calças e casaco de bom corte. Quando abriu a porta, Florence trazia um saia e casaco Chanel cor-de-rosa que lhe ficava muito bem. E enquanto todas se abraçavam e se beijavam no hall, um rapaz bem-parecido, de fato cinzento assertoado e gravata Hermès, aproximou-se. Coco percebeu imediatamente de quem se tratava. — Olá, Gabriel — disse com um sorriso afetuoso e apertou-lhe a mão. A princípio ele parecia nervoso, mas, quando se sentaram na sala de Florence, por baixo do enorme retrato dela de vestido de baile e joias, pintado vários anos antes, todos começaram a descontrair-se e passaram um dia muito agradável. Liz e Gabriel falaram de filmes. Ele começaria um em breve e disse que Florence o tinha ajudado muito no guião. Ela acabara de escrever outro livro, e Jane estava entusiasmada com o filme que tinham terminado. Coco recordou-se dos velhos tempos, quando o pai estava vivo e todos falavam de livros e filmes, dos clientes novos e velhos, e das estrelas de cinema e autores famosos que passavam lá por casa. Era a mesma atmosfera em que tinha crescido e que lhe era familiar. Depois surpreendeu a todos quando disse ao almoço que pensava voltar a estudar. — Direito? — perguntou a mãe, admirada. — Não, mãe. — Coco sorriu. — Uma coisa inútil, como História de Arte. Penso que gostaria de estudar restauro, mas ainda não sei bem. — A ideia tinha de facto tomado forma desde que a discutira com Leslie dois meses antes e o que vira em Veneza e Florença tinham-na incentivado. — Não posso passar o resto da vida a passear cães — disse suavemente, e a mãe e a irmã sorriram. — Sempre quiseste estudar História de Arte — exclamou a mãe com afeto. Para grande espanto de Coco, pela primeira vez, ninguém a criticava, nem perguntava o que se passava com ela ou lhe dizia que os seus planos eram estúpidos. Tinha começado com Jane na noite anterior. Coco não tinha a certeza se seriam elas que tinham mudado. Era certo que todas haviam escolhido caminhos diferentes. Liz e Jane iam ter um bebé. A mãe estava apaixonada por um homem com praticamente metade da sua idade. E Coco afastara-se do amor da sua vida. Ao olhar para elas, apercebeu-se de que tinham vida própria, mas ela não. Decidira afastar-se por quase quatro anos. Talvez fosse tempo de avançar uma vez mais. Parecia-lhe que era tempo de o fazer mesmo sem Leslie na sua vida. Precisava de uma existência própria e mais


cheia, com ou sem ele. A ovelha negra voltava ao rebanho e, pela primeira vez, tinham a delicadeza de não lho dizer. Ao almoço, Coco sentou-se ao lado de Gabriel e teve com ele uma conversa interessante acerca de arte, política e literatura. Não era o género de homem por quem se sentisse atraída, era do estilo Hollywood, coisa que Leslie não era. Gabriel era elegante, parecia fazer parte de um cenário, mas era inteligente, e atento para com a mãe dela. Florence estava absolutamente encantada com as atenções de que era alvo e mostrava-se radiante e jovial. Gabriel ia levá-la à exposição da Art Basel em Miami na semana seguinte e iriam esquiar em Aspen depois do Natal. Recentemente tinham estado presentes em todas as exposições e peças de teatro, em concertos e ballets e, nos últimos seis meses, tinham ido duas vezes a Nova Iorque e visto todas as peças da Broadway. Era óbvio para elas que a mãe estava a divertir-se. A caminho de casa, Jane e Coco concordaram em que ele não era má pessoa. — É como ter um irmão — comentou Coco, e Jane riu. Ele falara com ela de bebés, pois tinha uma menina de dois anos. Estava divorciado há um ano e dizia que o casamento tinha sido um erro enorme, mas estava satisfeito por ter a filha, especialmente agora. Era evidente que ele e Florence não teriam filhos. — Achas que ela vai casar com ele? — perguntou com ar admirado. — Já aconteceram coisas mais estranhas, sobretudo nesta família — comentou Jane, parecendo retomar a sua antiga personalidade, mas com mais humor. Estava agora muito mais doce. — Mas para ser franca, espero que não. Não precisa de se casar com a idade que tem. Porquê estragarem tudo? Se não resultar, a mãe não precisa da confusão e das dores de cabeça de um divórcio. — Talvez precise de se casar — disse Coco, pensativa. — Mas o que vai fazer com uma criança de dois anos? — Gabriel parecia muito ligado à filha. — O mesmo que fez connosco — Jane riu. — Arranja uma ama. — Riram as três e conversaram animadamente durante a noite. Coco regressou a São Francisco no dia seguinte. Convidaram-na para passar o fim de semana, mas ela queria ir para casa. Ainda se sentia frágil. Antes de partir, Jane chamou-a à parte e falou-lhe mais uma vez a respeito de Leslie. — Não desistas ainda dele — disse calmamente, enquanto Coco acabava de fazer a mala. Voltara a vestir a sua velha sweatshirt e calças de ganga para a viagem. Parecia de novo uma garota, mas Jane apercebia-se, por fim, de que não o era. — Ele ama-te e é boa pessoa. O que aconteceu não foi culpa vossa e também lhe deve ter custado muito. A última coisa que desejaria era magoar-te. Parece ter sido um pesadelo para os dois. — E foi. Como se pode viver assim?


— Ele vai arranjar maneira para que não aconteça de novo. Deve ter sido um aviso muito aborrecido também para ele. Toda a gente é um pouco louca em Los Angeles. Estou encantada por poder voltar para São Francisco. Isto aqui é mais emocionante, mas creio que é um lugar difícil para educar uma criança. São só aparências, os valores parecem estar errados. Não me parece certo criar um filho aqui. — Sim, vê como eles ficam depois de crescidos — disse Coco, provocando-a. — Eu sou hippy, tu és lésbica. — Jane riu-se e abraçou-a. — Tu já não és muito hippy. E talvez nunca tivesses sido, eu é que pensava. E estou satisfeita por quereres voltar a estudar. Podes ir para a Universidade da Califórnia, se ficares aqui a viver com ele — disse Jane, prática, mas como Coco pareceu ficar em pânico, a irmã recuou. Só esperava que ela não desistisse de Leslie. Ficaria com pena dos dois. E, de facto, sentiu-se triste quando Coco partiu. Tinha sido um ótimo Dia de Ação de Graças e Gabriel fora uma excelente companhia. Prometera vir passar o Natal a São Francisco com Florence. Iam ficar no Ritz-Carlton e ele traria a filha. Coco pensou em tudo isto durante a viagem de regresso a São Francisco. Deixara a carrinha no aeroporto e ficara aliviada por voltar para Bolinas. Fora bom estar com a família durante dois dias, mas precisava de tempo para si própria. Continuava muito triste por causa de Leslie e não tinha vontade de estar sempre acompanhada. Queria tempo para fazer o luto. Gostara do que Jane dissera acerca dele, mas sabia melhor do que ninguém que, depois do que acontecera em Veneza, não podia levar uma vida assim. Uma coisa era ser a namorada de uma estrela de cinema, outra era ser atacada por trinta homens que poderiam ter-lhes causado a morte. Ainda se lembrava da sensação de terror quando tinham sido cercados na rua e quando caíra no barco. Se amá-lo significava viver assim, não poderia fazê-lo. Entrou em casa e olhou em volta. Parecia-lhe familiar e confortável, como se voltasse ao útero materno. O tempo estava frio. Decidiu enrolar-se no cobertor e sentou-se no alpendre. Adorava a praia no inverno e havia um milhão de estrelas no céu. Estendeu-se na cadeira, a olhá-las, recordando-se de quando ali estivera com Leslie, e uma lágrima correu-lhe pelo rosto. Nessa altura o telemóvel tocou e ela retirou-o do bolso. A ligação era feita de um número que Coco não conseguiu identificar. — Está? — Está? — Do outro lado ouviu uma vozinha engraçada. — Daqui fala Chloe Baxter. És tu, Coco? — Sim, sou — disse a sorrir. — Como estás? — Gostaria de saber se Leslie estava com ela e se teriam conseguido passar juntos o Dia de Ação de Graças. Talvez


fosse um estratagema para falar com ela. Mas, mesmo assim, não se importava. Adorava falar com Chloe. — Como estão os ursos? — Estão bem, e eu também. Que tal o peru? — Estava ótimo. Comi-o com a minha mãe e a minha irmã em Los Angeles. — É lá que estás agora? — Parecia muito interessada e, como era habitual nela, muito adulta. — Não. Estou na praia a olhar para as estrelas. Já é tarde para ti. Se aqui estivesses, podíamos assar marshmallows e comer s’mores. — Que delícia — disse ela, soltando uma gargalhadinha. — Passaste o Dia de Ação de Graças com o teu pai? — Coco não pôde deixar de perguntar, embora não lhe quisesse fazer muitas perguntas. Gostaria de saber se ele estava ali com ela ou se sabia que ela lhe ia telefonar. Chloe arranjava maneira de fazer o que queria, sem pedir a opinião de ninguém. — Sim — disse Chloe com um suspiro. — Trouxe-me um vestido de Itália. É muito bonito. Foi esta noite para Los Angeles. — Oh! — Coco não sabia o que dizer. Houve uma pausa e depois Chloe continuou. — Ele diz que tem muitas saudades tuas. — Eu também tenho saudades dele. Foi ele que te disse para me telefonares? — Não. Perdi o teu número. Fui buscá-lo ao computador dele, mas ele não sabe. — Coco sorriu ao ouvir aquilo. Era mesmo dela. — Ele disse que estavas furiosa com ele porque uns homens maus vos atacaram e te magoaram. Disse que tinhas partido o pulso quando te empurraram. Deve ter-te doído muito. — Doeu — admitiu Coco. — E assustei-me muito. — Foi o que ele disse. E disse que não deveria ter deixado que tal coisa acontecesse, mas que não pôde fazer nada. E agora está muito triste porque estás zangada com ele. Também tenho saudades tuas, Coco — disse, com tristeza. Os olhos de Coco encheram-se de lágrimas. Era difícil. Lembrava-se dos tempos maravilhosos que tinha passado com ela em agosto. — Também tenho muitas saudades tuas, Chloe. E estou muito triste. — Por favor, não continues zangada com ele — pediu Chloe. — Queria ver-te quando for passar o Natal com ele a Los Angeles. Vais lá estar? — Vou passar com a minha mãe e a minha irmã em São Francisco. A minha irmã vai ter um bebé daqui a pouco tempo, por isso temos de cá ficar.


— Talvez pudéssemos ir aí — sugeriu a menina, muito prática. — Se nos convidasses. Íamos ver-te à praia. Gostava tanto. — E eu também. Mas agora é um bocado complicado porque há muito tempo que não vejo o teu pai. — Talvez ele te telefone — disse ela esperançosa. — Está a trabalhar no filme e vai mudar-se para a casa dele em Los Angeles. — Que bom — redarguiu Coco, sem se comprometer, mas emocionada com o que Chloe lhe tinha dito. Também tinha saudades dela. — Espero ver-te em breve. A minha mãe está a dizer que tenho de ir já para a cama — disse com um bocejo e Coco sorriu. — Obrigada por me teres telefonado — exclamou Coco e foi sincera. Era quase tão bom como ouvir Leslie falar. — O meu pai diz que não te pode telefonar por estares tão zangada com ele. Por isso pensei em telefonar-te eu. — Ainda bem que ligaste. Adoro-te, Chloe. Feliz Dia de Ação de Graças. Chloe imitou um peru e Coco riu-se. A menina era a perfeita combinação de criança e adulto. Acabava de fazer sete anos. — Feliz peru para ti também. Boa noite — despediu-se Chloe, e depois desligou. Coco ficou com o telemóvel na mão, a olhar para o céu, perguntando a si própria se o telefonema de Chloe seria um sinal ou uma mensagem para ela. Provavelmente não, mas fora muito agradável. Sentou-se no alpendre a pensar naquilo durante muito tempo.


CAPÍTULO 19 Leslie não lhe telefonou quando voltou para Los Angeles. Tal como Coco, ainda se sentia traumatizado pelo que tinha acontecido em Veneza. E gostava demasiado dela para lhe pedir que arriscasse de novo a vida por ele. Sabia o que lhe desagradara quando anos antes o pai tinha sido ameaçado e os pesadelos que tivera nessa altura. Não lhe podia dizer que vivesse para sempre assim. Mas o seu coração doía-lhe a cada minuto e só pensava nela. Coco também não lhe telefonou. Censurava-se todos os dias pela sua cobardia. Tinha o coração partido e doía-lhe sempre que pensava em passar o resto da vida sem Leslie. Mas agora, viver com os riscos que isso lhe traria, parecia pior. Queria uma vida normal com ele, não uma situação de permanente loucura, como a que tinham experimentado em Veneza. Como tal, o silêncio entre eles era ameaçador, mas nada havia para dizer. O facto de se amarem um ao outro já não bastava. Não os protegia dos perigos do mundo nem da fama dele. As suas vidas eram incompatíveis, por isso não valia a pena torturarem-se continuando em contacto. E ela sabia que não precisava de lho explicar de novo. Ficara tudo dito da última vez que tinham falado, no dia em que ela chegara a casa. Ela sabia que ele compreendia e respeitava os seus medos. Coco tentava esquecer, mas os sentimentos permaneciam e, provavelmente, permaneceriam durante muito tempo. Talvez para sempre, juntamente com a dor de o perder. Um dia encontrou Jeff junto aos caixotes do lixo e este afirmou-lhe que Leslie era um fulano muito simpático, que se comportava como uma pessoa comum e não era arrogante embora fosse uma grande estrela. Disse que gostava muito dele e sentia a sua falta. Coco acenou a concordar com ele e, enquanto escutava, tentava não chorar. Tinha passado mal o dia. Todos os dias eram agora difíceis. Este ano receava o Natal; ia ser tão solitário sem ele. Tinham pensado passá-lo juntos, mas ele ficaria com Chloe em Los Angeles, ela passá-lo-ia com a mãe e a irmã e os seus respetivos acompanhantes. Até a casa de Bolinas lhe parecia triste. Tudo lhe parecia desbotado e velho. Viuse por fim livre do equipamento de mergulho de Ian porque vê-lo também a deprimia. E metera numa gaveta as fotografias que tirara com Leslie. Deixou apenas uma que ele lhe tirara com Chloe no dia em que tinham construído o primeiro castelo de areia. Chloe estava adorável e ela não tinha coragem de também a pôr de lado. Chloe não lhe telefonara mais. Coco pensara em comprar-lhe um presente de Natal, mas achou que seria maldade tentar agarrar-se a ela. Tinha de se esquecer de ambos, por muito engraçada que a menina fosse e por muito que amasse Leslie. Quando chegou a véspera de Natal, tinham passado sete semanas sem que Coco


falasse com ele. Tentara não os contabilizar, mas sabia exatamente que tinham passado cinquenta dias. Detestava lembrar-se. Um dia deixaria de pensar nesses dias e só se lembraria dos anos. Contava ficar em casa de Jane na véspera de Natal. Já tinham transformado o quarto de hóspedes no quarto para o bebé e ela dormiria noutro, mais pequeno, no andar de baixo. Sabia que seria difícil ficar de novo naquela casa, pois tudo nela lhe recordava Leslie e os meses agradáveis que lá vivera com ele. A mãe, Gabriel e a filha deste tinham chegado nessa tarde a São Francisco. Foram diretamente para o Ritz-Carlton para tratarem de tudo. Não tinham trazido a ama e seria o próprio Gabriel a cuidar da menina. Florence estava um pouco ansiosa, segundo admitira a Jane. Há muito tempo que não estava com uma criança daquela idade. — Então, mãe, é o que acontece quando se tem um namorado jovem — disse Jane para a provocar. Depois rira com Coco a respeito daquilo. Iam passar a véspera de Natal juntos, como sempre, e, no dia de Natal à noite, cada um iria para sua casa. A mãe e Gabriel voltariam para Los Angeles, já que partiriam para Aspen no dia seguinte e Coco voltaria para a praia. Mas durante vinte e quatro horas seriam uma família, muito pouco ortodoxa, mas uma família. E parecia serem-no cada vez mais. Agora Liz ia ter um bebé e a mãe tinha um namorado com idade para ser seu filho e a filha dele sua neta. — Já não éramos exatamente uma família padrão — comentou Jane quando levou Coco ao seu quarto. — Talvez nunca tenhamos sido. — Depois olhou para Coco de forma estranha, como se pensasse nos tempos em que eram pequenas e o pai estava vivo. — Eu tinha tantos ciúmes teus, nessa altura — disse em voz baixa. — O pai era louco por ti. Quando tu apareceste, comecei a sentir que já não tinha oportunidade. Eras tão pequena e tão gira. Até a mãe se entusiasmou contigo durante algum tempo. Tinha tão pouco tempo para nos dispensar que era impossível partilhála. Espero que os meus filhos nunca sintam isso em relação a mim. — Sempre pensei que a estrela eras tu e que não havia lugar para mim — confessou Coco. Dois anos antes dissera-o ao seu psicólogo, mas quase que era melhor dizê-lo em voz alta a Jane. — Talvez por isso eu fosse tão dura contigo. — Jane olhou-a como que a pedirlhe desculpas. — Mal havia espaço para mim naquela casa e depois apareceste tu. Nunca havia amor que bastasse. — Os dois eram pessoas muito importantes e ocupadas — comentou Coco, pensativa. — Não tinham tempo para ser pais. — E nós nunca tivemos a possibilidade de ser filhas. Tínhamos de ser duas


estrelas. Eu aceitei, tu não. Desligaste-te de tudo. Toda a minha vida tentei impressioná-los, mas, no fim, quem se importa com isso? Quem quer saber do número de filmes que produzo? Este bebé é muito mais importante — disse, acariciando a barriga que aumentava de dia para dia. Quase parecia uma mulher grávida de um desenho animado. — Parece-me que estás no caminho certo — disse Coco, delicadamente, e abraçou-a. Não poderia dizer o mesmo de si. Todos tinham companheiros menos ela. Fugira do homem que amava. — Estás a pensar ter mais filhos? — perguntou Coco à irmã. Jane falara em filhos, no plural, e não apenas num. — Talvez — respondeu esta com um sorriso. — Depende do que se passar com este, e se for giro. Se for um terrorzinho como eu, posso ter de o mandar de volta. Mas tu eras muito engraçada. Ainda te detestava mais por isso. Então Leslie tinha razão. E aquilo que ela dizia esclarecia as coisas. Já não competiam pela atenção da mãe, e o pai tinha morrido. Agora, a mãe estava mais interessada em Gabriel do que nelas. Já dissera a Jane que estariam nas Baamas quando o bebé nascesse e que só o veriam quando voltassem. Florence fora sempre assim. O homem da sua vida era agora outro, mas ela não e, na sua idade, não havia a mínima possibilidade de mudança. As filhas teriam de aceitar. — Liz e eu temos falado em ter outro bebé — admitiu Jane. — Para a próxima poderá ser com um óvulo meu, se for possível, e o esperma de um dador, e ser Liz a ficar grávida. Ainda bem que desta vez fui eu, mas, para ser franca, odeio estar gorda. Daqui a dois meses faço quarenta anos e, se ainda por cima estiver gorda, é demais para mim. Talvez eu seja como a mãe. — Riu-se. A mãe era a pessoa mais vaidosa deste mundo. Jane voltou-se para Coco com um olhar hesitante e sentou-se na cama do quarto dos hóspedes. O peso do bebé era demasiado para permitir que estivesse muito tempo de pé. Mal podia andar. — Haverá a possibilidade de estares comigo quando o bebé nascer? Eu queria pedir-te, mas não sei o que achas. Liz vai lá estar, claro, mas gostaria que tu também viesses. — Jane tinha as lágrimas nos olhos ao fazer este pedido e Coco sentou-se na cama ao lado dela e abraçou-a também com os olhos húmidos. — Gostaria muito — disse, e apertou a irmã contra si durante algum tempo. Sentia-se honrada por Jane a querer junto dela. Limpou as lágrimas das faces e riu-se. — Que diabo, pode ser que seja a única possibilidade que tenho de ver nascer um bebé, agora que decidi ficar solteirona. — Não creio que precises de te preocupar com isso para já — disse Jane a sorrir. — Julgo que não tenhas sabido nada de Leslie — comentou cautelosa, e Coco abanou a cabeça.


— Também não lhe telefonei. Chloe, a filhinha dele, ligou-me no Dia de Ação de Graças. Diz que ele tem saudades minhas. E eu também tenho dele. — Então telefona-lhe, por amor de Deus. Não percas tanto tempo. — Talvez o faça um dia destes — disse Coco com um suspiro, mas Jane sabia que não o faria porque estava assustada e era muito teimosa. Quase lhe apetecia ser ela a telefonar, mas Liz achava que não deviam intrometer-se. Jane morria de vontade de lhes dar uma ajuda. Foram então para cima e Coco riu-se ao ver a irmã rebolar-se a subir as escadas. Ficara entusiasmada com a ideia de assistir ao parto. Liz estava na cozinha a dar os últimos retoques no jantar dessa noite, e Jane contou-lhe imediatamente. — Graças a Deus que vais lá estar — disse Liz, aliviada. — Não tenho a mínima ideia do que fazer. Tivemos aulas de preparação para o parto, mas já me esqueci de tudo. É uma coisa do outro mundo — disse Liz sorrindo para Coco. — Pois é — concordou esta, atónita com todo aquele processo e impressionada pelas notáveis mudanças na irmã. A atmosfera entre Jane e Coco tinha-se transformado consideravelmente nos dois últimos meses. Depois de anos de ofensas mútuas, de se sentirem feridas uma pela outra, eram finalmente amigas. Era o que Coco sempre desejara. Durante algum tempo, sentaram-se a conversar à mesa da cozinha, e Coco contou-lhes o incidente com o xarope de ácer no dia em que ela e Leslie se tinham conhecido. Liz desatou a rir descontroladamente e Jane quase desmaiou quando soube o que se passara. — Graças a Deus que eu não estava aqui. Matava-te! — Bem sei. Foi por isso que nunca te contei. Nadámos em xarope de ácer até Leslie conseguir limpar tudo. — Lembra-me para nunca mais te pedir que tomes conta da casa. Por fim, Jane e Liz subiram para se vestir e Coco desceu a escada para o seu quartinho, aliviada por não ter de entrar naquele em que ela e Leslie tinham dormido. Mais tarde mostrar-lhe-iam o quarto do bebé, mas estava decidida a não pôr os pés na suíte principal. Custar-lhe-ia muito. Estava a ser muito difícil esquecê-lo, e Liz e Jane sabiam-no. A mãe ignorava ainda o que se passara e também nunca perguntava. Ela e Gabriel chegaram pontualmente às sete, trazendo a filha dele, uma adorável criança de dois anos, com um vestidinho vermelho de veludo, laços a condizer no cabelo e sapatinhos de verniz preto. Fora Gabriel que a vestira e trouxera a caminha de viagem para que ela pudesse dormir quando tivesse sono. Parecia ser uma menina bem-comportada e Florence falava-lhe como se ela já fosse uma pessoa crescida.


Coco recordou-se de Chloe. Florence usava um vestido preto muito elegante e Gabriel um fato azul-escuro. Estavam os dois fantásticos. Coco pegou em Alyson e foi brincar com ela enquanto Liz servia os martínis. De certo modo desempenhavam o papel de pais e sempre que Coco estava junto da mãe sentia-se de novo criança. Costumava sentir-se da mesma maneira com Jane, mas isso mudara. Na cozinha, Jane comentou que Gabriel se vestia como um homem de cinquenta anos. — Ainda bem, se não pareceriam ridículos — murmurou Coco enquanto Liz lhes preparava os martínis —, porque a mãe pensa que tem vinte e cinco. — Merda — disse Jane em voz alta. — Este mundo está todo ao contrário. — Pelo menos nós estamos — disse Coco a rir. — Tu és casada com uma mulher e a mãe está apaixonada por um miúdo. — Estavam as três a rir junto à mesa da cozinha quando Florence e Gabriel vieram buscar os martinis. Coco ficou encantada por poder tomar conta da menina que era adorável e parecia hipnotizada pela árvore de Natal que Liz colocara na sala. Jane tivera de se limitar a ficar deitada no sofá a ver a companheira pendurar os enfeites. — Nem quero pensar que ainda faltam cinco semanas. Sinto-me como se fosse ter a criança esta noite. Um destes dias a minha barriga explode — disse Jane, acompanhando-os à sala para logo se deixar cair no sofá. — Não se esqueçam de me telefonar assim que entrares em trabalho de parto — recordou-lhe Coco, que agora fazia parte da equipa. Mal podia esperar. Liz preparara-lhes um belo jantar. Começaram com caviar e depois rosbife com pudim Yorkshire, puré de batata, ervilhas, salada e pequenos pãezinhos. Uma refeição elegante e, para sobremesa, Jane preparara pudim de ameixas com uma calda grossa. Quando se sentaram a comer, já Alyson dormia na sua caminha. Era uma criança perfeita. Nessa noite dormiria com eles no quarto do Ritz-Carlton, mas Florence disse que tinha trazido tampões para os ouvidos para o caso de a menina chorar. Gabriel parecia ter uma tolerância infinita em relação às esquisitices de Florence e olhava-a com adoração. Voltaram para o hotel cerca das dez horas com Alyson profundamente adormecida nos braços do pai. A limusina esperava-os à porta. Florence vestiu um casaco de peles e Gabriel vestiu um sobretudo preto de caxemira enquanto agradeciam o jantar e prometiam voltar no dia seguinte. Depois, as três jovens foram arrumar a cozinha. Liz ia fazer peru para o dia seguinte. Jane mal conseguira comer nessa noite; a comida era deliciosa, mas ela parecia


não ter espaço. O bebé ocupava-o todo. — Isto não é tão fácil como parece — queixou-se esfregando as costas. Sentia-se cada vez mais desconfortável. — Quando te deitares, faço-te uma massagem — prometeu Liz. Era de facto a companheira perfeita e Coco disse à irmã que ela era uma mulher de sorte. Não achava estranho, nem nunca achara, que a irmã fosse lésbica. Coco sempre a conhecera assim e não tinha qualquer problema em aceitá-lo. Sempre o dissera às colegas da escola e não via nada de estranho no facto. — Nessa altura eras até muito engraçada — recordou-se Jane com uma gargalhada, enquanto Coco e Liz arrumavam as coisas. — Uma vez disseste a uma pessoa que eu era um leprechaun2 e, quando te corrigi, afirmaste que pensavas que era a mesma coisa. Já era meia-noite quando se foram deitar. Coco ficou em baixo, na sua cama, a pensar nos meses que passara com Leslie naquela casa. Desejava que ele e Chloe ali estivessem. O Natal teria sido perfeito. Como de costume, era ela que estava a mais. Perguntava a si mesma o que estariam a fazer naquela noite. Sabia que Chloe ficara com o pai, mas gostaria de saber se teriam feito a árvore, se passariam a noite com amigos, que tipo de Natal teriam, tradicional ou não. Adoraria tê-lo passado com eles, mas não pudera. Os paparazzi, que faziam parte da vida dele, tinham alterado tudo. A vida dela era agora mais simples, mas também incrivelmente triste. No dia seguinte voltaria para a sua casa da praia e Jane e Liz ficariam ali as duas. A mãe e Gabriel voltariam para Los Angeles e depois partiriam para Aspen. Ela tomara a decisão que, na altura, lhe parecia certa, e agora teria de viver com ela. A alternativa era muito difícil. A questão não era se o amava ou não, mas sim se era capaz de partilhar a sua vida para o melhor e para o pior. No dia seguinte, Coco levantou-se antes delas. Foi à cozinha fazer uma chávena de chá e viu que Liz já começara a tratar do peru. Levantara-se às seis para o preparar e voltara para a cama. Coco vagueou pela casa enquanto esperava que Jane e Liz se levantassem. Regressar ali causava-lhe uma estranha sensação. Jack e Sallie, lado a lado na cozinha, obrigavam-na a pensar ainda mais em Leslie e já não sabia o que fazer para o tirar da cabeça. Provavelmente só o tempo o conseguiria. — Levantaste-te cedo — disse Liz, quando desceu às nove para ir ver o peru. Coco estava levantada há muito tempo, sentada com ar infeliz junto à árvore. Liz nada lhe disse, mas apercebeu-se do que estaria a pensar. As saudades de Leslie estavam escritas no rosto dela e Liz sentiu pena. Durante algum tempo ficaram sentadas na cozinha a conversar, não sobre ele e, às


dez, Jane veio juntar-se-lhes, dizendo que já estava com azia. — És tu que vais ter o próximo — disse, olhando intencionalmente para Liz. — Encantada — disse esta enquanto Coco se oferecia para fazer o pequenoalmoço. — És uma ameaça para esta cozinha — resmungou Jane, e Coco soltou uma gargalhada. — Tens razão. Saí à mãe. — Não saíste, não — discordou Jane. — O pai era um péssimo cozinheiro. A mãe nem sabia onde ficava a cozinha. — Creio que Gabriel gosta de cozinhar — acrescentou Coco. — Pelo menos, sabemos que ela não vai morrer de fome na velhice, se por acaso despedir a cozinheira. — Achas mesmo que vai durar? — perguntou Jane com uma expressão de incredulidade. Era-lhe difícil imaginar. Tinha a certeza de que seria uma coisa passageira e que ele acabaria por tomar juízo e encontrar alguém da sua idade. Mas tinha de admitir que ele parecia feliz com a mãe e nada preocupado com os vários anos de diferença entre eles. — Penso que, se ela fosse um homem, a questão nem sequer se punha — respondeu Coco. — Os homens da idade da mãe casam muitas vezes com mulheres mais novas do que Gabriel e ninguém os questiona. Sessenta e dois anos e trinta e nove não seriam uma surpresa para ninguém se os sexos fossem ao contrário. — Talvez tenhas razão — disse Jane. — O que é estranho é que os dois ficam bem juntos. Ele é um pouco formal para a idade que tem. — Eu não saía com ele — disse Coco e riram todas. Parecia muito mais velho do que Leslie, mas, de facto, era até dois anos mais novo. — Bom, nós sabemos que nunca sairíamos com ele — disse Jane e riram ainda mais. — Mas percebo o que queres dizer. É um bocado antiquado. Hoje em dia ninguém anda sempre de fato senão ele. A mãe adora. Mas creio que já tinha aquele aspeto quando o conheci, antes de ele se envolver com a mãe. Acho que tem queda para as mulheres mais velhas. — Parece que sim — disse Coco. — Ou só pela nossa mãe. É capaz de beijar o chão que ela pisa. E a verdade é que, se ele continuar com ela, a nossa vida vai ser mais fácil daqui por uns anos. E ela vai ser feliz. — Jane acenou afirmativamente. Coco tinha razão. — O que acontecerá quando ela for velha? Quero dizer, mesmo velha.


— O mesmo que nos vai acontecer a nós — acrescentou Liz. — Esperamos que o nosso companheiro não morra nem nos abandone. E, às vezes, é assim — disse, olhando ternamente para Jane. — Nunca te vou deixar — murmurou Jane em voz baixa. — Prometo. — Será melhor não. — Liz inclinou-se e beijou-a. — Bom, vou deixar-vos às duas — disse Coco com um bocejo, levantando-se da mesa. — Tenho de me vestir. A mãe vai chegar daqui a menos de uma hora — recordou-lhes. Voltaram todas para os quartos e, um pouco antes do meio-dia, regressaram muito elegantes. Como sempre, a mãe chegou pontualmente envergando um Chanel branco, sapatos pretos de crocodilo e o casaco de peles do dia anterior, brincos de pérolas e uma maquilhagem perfeita. Gabriel vinha de calças cinzentas e blazer e outra gravata Hermès com uma camisa azul-clara. Pareciam saídos das páginas da Town & Country. Coco e Liz estavam menos formais, de calças e camisolas, e Jane usava uma túnica vermelha e pareceu tristemente incomodada durante todo o almoço. Antes trocaram presentes e todos adoraram o que receberam. A mãe ofereceu-lhes o que todos os anos costumava oferecer: um cheque a cada filha e outro, num valor ligeiramente inferior, a Liz. Dizia que tinha sempre medo de lhes dar coisas que elas não gostassem e preferia que fossem elas a comprar. Dera a Gabriel um relógio Cartier que ele já tinha posto e ela trazia no fato um lindo alfinete com um diamante, oferecido por ele. Florence dera a Alyson uma boneca enorme com um vestido corde-rosa que era quase do tamanho da menina. Às duas horas sentaram-se para almoçar e levantaram-se da mesa às quatro. Depois, ficaram na sala a conversar e a beber café. Por fim a mãe, Gabriel e Alyson partiram levando os seus presentes. Nessa noite voltariam a Los Angeles, deixariam Alyson com a mãe e, de manhã, seguiriam para Aspen. Coco ficou até às seis para ajudar a arrumar tudo e, a seguir, fez as suas despedidas. Disseram-lhe para passar lá essa noite, mas, depois de dois dias em família, pensou que a irmã e Liz gostariam de ficar sozinhas e ela queria ir para casa. Foi então buscar Sallie e partiu para Bolinas na carrinha. A casa parecia vazia e fria quando entrou. Acendeu a lareira, sentou-se no sofá, a olhar para o lume e a pensar nos últimos dois dias. Não se permitia pensar em Leslie, nem sequer em Chloe. Tinha de se sentir grata pela vida que tinha. E fora um Natal muito simpático. O ter-se aproximado de Jane fora uma alegria para ambas e já deveria ter acontecido antes. Coco deitou-se cedo e levantou-se às sete. Sentou-se no alpendre a ver o sol nascer. Era um novo dia, uma nova vida e devia recordar-se da sorte que tinha. Ouviu


então a sineta soar no portão. Nunca ninguém tocava, a maior parte das pessoas vinha até à porta e depois batia. Ainda estava de pijama, o pijama dos corações, embrulhouse no cobertor com que se tapara no alpendre e foi ver quem era. O cabelo arruivado que ainda não penteara agitou-se com o vento. Estava frio lá fora, mas o céu apresentava-se limpo e azul. Viu-os quando olhou para o portão. Leslie estava ali com a mão no ferrolho, a olhar para ela, sem saber se tinha feito bem. Chloe a seu lado, com um casaco azul-vivo e as longas tranças, tinha um enorme sorriso e trazia um presente. Assim que viu Coco, acenou e entrou a correr pelo portão. — Ela queria ver-te — explicou Leslie ao mesmo tempo que Chloe a abraçava, e ela andava pela areia com os pés descalços, olhando para ele como se fosse uma visão. — Eu também te queria ver — disse Coco. — E a ti. Tenho saudades tuas. E, antes que pudesse dizer o que quer que fosse, ele tomou-a nos braços e apertou-a contra si. Não queria ouvir mais nada, só queria abraçá-la, sentir-lhe o cheiro do cabelo e tê-la de novo nos braços. — Podemos entrar? — Claro que podemos — disse Coco, que deu a mão à menina e voltou-se para sorrir a Leslie. Ele fizera muito bem. A casa pareceu-lhe igual e olhou para a fotografia com Chloe. Sorriu lentamente e murmurou «amo-te» por sobre a cabeça da filha. — Também te amo — disse ela em voz mais alta. — O que é o pequeno-almoço? — interrompeu Chloe, e depois entregou o presente a Coco, que se sentou no sofá para o abrir. Era um pequeno urso castanho. Coco sorriu, abraçou-a e disse-lhe que era lindo. — Que tal waffles? — respondeu Coco. — E s’mores? — Ótimo! — disse Chloe batendo palmas de alegria, enquanto Coco ia para a cozinha e punha a chaleira ao lume. Continuava a olhar para Leslie como se ele pudesse desaparecer. Tinha passado dois longos meses sem ele e ainda não tinha a certeza do que aquilo significava. Estava apenas muito contente por ele ali estar. Sentaram-se para tomar o pequeno-almoço e Chloe começou a contar a Coco como fora o seu Natal. Tinham feito uma árvore e ido jantar a um hotel e, na noite anterior, haviam por fim decidido ir visitá-la. Apanharam o avião para São Francisco e ficaram num hotel porque o pai dissera que era muito tarde para irem para a praia nessa mesma noite e que seria má educação aparecerem assim, embora Chloe não concordasse. Por isso só tinham ido nessa manhã. A menina sorria e Coco fez o


mesmo, primeiro para ela e depois para Leslie. — Foi uma ideia ótima — disse Coco. Chloe olhou imediatamente para o pai. — Vês? Bem te disse que ela ficaria muito contente quando nos visse! — Os dois adultos sorriram um para o outro por cima da cabeça da menina. Depois do pequeno-almoço, Coco vestiu-se e foram dar um passeio na praia. Era o dia a seguir ao Natal e andava muita gente a passear por ali. — Tive umas saudades incríveis — disse Leslie, enquanto Chloe corria diante deles para apanhar conchas na areia. — Eu também. — Não sabia o que pensarias se aparecêssemos assim. Achava que não me querias ver. Chloe disse que querias. — Ela telefonou-me no Dia de Ação de Graças, foi quase tão bom como falar contigo. — Olhou de novo para ele como se estivesse a sonhar. — Coco, a respeito de Veneza… Ela abanou a cabeça, pararam, olharam um para o outro e ela colocou-lhe um dedo nos lábios. — Não tens de dizer nada… já percebi que não quero saber dos paparazzi, das revistas ou de todas essas coisas, mesmo que me preguem sustos de morte… Só quero estar contigo. Amo-te demais para deixar que nos separem. Soubera-o no momento em que o vira e era exatamente aquilo que Leslie queria ouvir, mas nem se atrevera a ter esperança. Ela tivera a certeza quando ele lhe aparecera ao portão e não se esquecera de que, no Dia de Ação de Graças, Jane lhe dissera que ainda não deveria desistir dele. — Amo-te. Juro que nunca mais deixo que aconteça a mesma coisa. Prefiro matálos. — Não me importo… enfrentaremos as coisas juntos… se nos puserem loucos, mudamo-nos. Vamos para outro sítio. Podemos sempre esconder-nos aqui. — Ela sorriu-lhe e ele abraçou-a. — Pensei que ia morrer sem ti — disse ele numa voz rouca. — Eu também. — Onde queres viver? — Leslie estava disposto a ir para onde ela quisesse. — Contigo.


Caminharam lentamente pela praia atrás de Chloe. E quando se levantou vento e ficou muito frio, voltaram para casa e acenderam a lareira. Coco fez-lhes o almoço e depois Leslie foi despejar o lixo. O caixote estava cheio. Viu Jeff, o bombeiro, que também ali estava e lhe deu uma palmada nas costas com um largo sorriso. — É bom vê-lo de volta! — disse, apertando-lhe a mão. — Ouvi dizer que estava a filmar em Veneza. O maldito carro está outra vez avariado. Acho que é a correia de transmissão. — Mais tarde trataremos disso — prometeu Leslie. — Sentimos a sua falta por aqui — disse Jeff, com um olhar intencional, lembrando-se de Coco. Mas também ele sentira a sua falta. — Obrigado. Também eu tive saudades. — Leslie entrou para ir ter com Coco que estava a jogar às cartas com Chloe. Depois de verem um filme na televisão, foi dar uma olhadela ao carro de Jeff e disse-lhe que o melhor seria vendê-lo. Coco fez piza para o jantar. Meteram Chloe na cama de Coco e ficaram no sofá durante muito tempo a fazer planos. Ele tinha de trabalhar em Los Angeles durante os próximos três meses para terminar o filme. Já estava a viver na casa que, entretanto, vagara. — Não posso sair daqui durante mais um mês, mas, depois, posso ir ter contigo. Podemos ver o que acontece e se dão connosco em loucos. Se assim for, podemos fazer as coisas de outra maneira. Podemos experimentar primeiro na tua casa. É aí que vives. — Coco resolvera-se no momento em que o vira. Tratava-se da pessoa e não do local e, mais uma vez, Jane tivera razão. Sabia perfeitamente que, quando se ama não se foge se as coisas ficam difíceis. Assustara-se em Veneza e depois perderase com os seus próprios medos. — Como está o teu pulso? — perguntou ele, preocupado, e ficou aflito quando lhe viu a cicatriz na mão. Beijaram-se. — O meu pulso já está bom. O meu coração estava partido, mas acabaste de o consertar. Agora estou muito melhor. — Ele sorriu e puxou-a para os seus braços. — Chloe é muito mais esperta do que nós. Disse que eu tinha de cá vir para tratar das coisas. Eu queria, mas tinha medo. Correu tudo tão mal em Veneza que pensei não ter o direito de te fazer outra vez o mesmo ou de te pedir que arriscasses. — Por ti vale a pena — disse Coco em voz baixa. — Lamento ter levado tanto tempo a descobrir. — Ele acenou afirmativamente e abraçou-a. Voltara e não importava o tempo que passara. Depois lembrou-se de outra coisa. — Porque é que só podes ir daqui a um mês? — O bebé de Jane — disse ela a sorrir. — Prometi que ia com ela. Deve nascer


daqui a cinco semanas. E, de qualquer forma, também tenho de tratar das coisas por aqui. — O que vais fazer com a tua empresa? — Acho que a vou oferecer a Erin. Tenho de falar com ela a esse respeito, mas estou certa de que a vai aceitar. Detesta o outro emprego que tem e, com este, consegue viver decentemente. Eu consegui — esboçou um largo sorriso. — Quero voltar a estudar. Vou inscrever-me na Universidade da Califórnia. — História de Arte? Ela acenou afirmativamente. — Quero arranjar as coisas para poder viajar contigo. — Quem me dera — Leslie parecia aliviado. — Os dois filmes que vou fazer a seguir são em Los Angeles. Aquilo significava que ficaria em casa no próximo ano, e esperavam que os paparazzi não lhes estragassem a vida. Ele já contratara um serviço de segurança para montar guarda num carro não identificado à porta de casa. Não iria arriscar-se a que acontecesse o mesmo que em Veneza a qualquer dos dois. Quando vivessem juntos, tudo seria esquecido. Ali ficou, abraçado a ela durante muito tempo e, depois, acabou por ir dormir com Chloe para o quarto. Não lhe agradava deixar Coco no sofá, mas ela insistiu. Não queria que a criança acordasse sozinha. — Ela poderia pensar que estávamos a fazer a tal coisa nojenta de que uma vez nos falou — troçou, e ele soltou uma gargalhada. — Vais ter de me recordar como isso se faz. Acho que já me esqueci. — Vou relembrar-to, mas só quando for ter contigo a Los Angeles. — Quando será? — perguntou ele, preocupado. Não queria passar mais um mês sem a ver. — Que tal no próximo fim de semana, a menos que queiras vir cá tu? — As peças do puzzle começaram, de novo, a encaixar-se. — Tanto faz — disse ele, beijando-a antes de se ir deitar. Tinham a vida inteira para tratar dos pormenores. 2 Duende, na Irlanda. (N. da T.)


CAPÍTULO 20 Nos quatro fins de semana seguintes, ela e Leslie visitaram-se alternadamente em Los Angeles e na praia. As visitas dela a Los Angeles foram pacíficas. Os paparazzi esperaram-nos à porta dos restaurantes e, de vez em quando, diante da casa dele para tirarem fotografias. Uma vez, um fotógrafo seguiu-os dentro de um supermercado, mas foi uma coisa mínima comparada com o que se tinha passado em Itália, e nenhum dos dois se preocupou. Foram juntos à Universidade da Califórnia para ela se inscrever e, depois de Chloe voltar para Nova Iorque, ele foi duas vezes a Bolinas. Leslie ainda estava de férias e, por isso, quando foi a São Francisco jantaram com Liz e Jane. Ele ficou espantado por ela estar tão grande. Quase não se podia mexer. — Não te rias de mim — protestou Jane, zangada. — Não tem graça nenhuma. Devias experimentar para veres como te sentias. Se os homens tivessem de passar por isto, ninguém tinha filhos. Eu própria não sei se repito a proeza. — Para a próxima sou eu — disse Liz, ansiosa. Apaixonara-se pela ideia de ter na barriga um bebé concebido com os óvulos de Jane. Estavam a pensar fazê-lo daí a seis meses. Liz desejava-o, mas, primeiro, Jane teria de dar à luz este bebé. Já várias vezes confessara a Liz que estava morta de medo, principalmente por ele ser tão grande, e todo o processo lhe parecia assustador. Ficaram as duas muito contentes por voltarem a ver Leslie e por Coco ter um ar tão feliz. Fora terrível ver a tristeza dela depois de voltar de Veneza. Chorara mais a falta de Leslie do que a de Ian. Leslie falou com Jane acerca do filme que estava a fazer. Queixou-se de Madison e Jane riu-se. Também já trabalhara com ela e sabia como era. Madison estava nessa altura grávida de sete meses e tinham de filmar sem ela e usar duplos quando era necessário que o corpo dela aparecesse. O realizador ficara furioso por ela não ter avisado que estava grávida quando começara o filme. Mas, com grandes dificuldades, lá tinham conseguido continuar. E, naquele último fim de semana em Bolinas, antes de voltar para o estúdio, Leslie ajudou Coco a guardar algumas das suas coisas para as mandar num camião para Los Angeles. Mesmo assim, ia conservar aquela casa, pois ainda não sabiam onde iriam viver. Também não importava. Estavam de novo juntos e a sua relação era melhor do que nunca. Entregara a empresa a Erin, o que lhe permitia ficar com Jane. Faltavam poucos dias para o bebé nascer e a irmã estava tão aborrecida que ela e Liz a levaram a jantar uma noite. Comeram comida mexicana picante, pois alguém dissera a Jane que aceleraria o parto e ela estava pronta a experimentar o que quer que fosse. Apenas conseguira ficar com mais azia. Entretanto, Coco levava-a a dar


grandes passeios em Crissy Field. Uma tarde, tinham acabado de chegar e conversavam na cozinha quando Jane olhou para a irmã com uma expressão aflita. — Sentes-te bem? — perguntou Coco. Parecia que o bebé nunca mais nasceria. Nessa altura, a mãe estava de férias nas Baamas e tinham prometido avisá-la quando nascesse. — Creio que rebentaram as águas — disse Jane, nervosa, enquanto uma poça de água se espalhava em seu redor, no mesmo sítio em que o xarope de ácer se entornara. — Boas notícias — disse Coco, a sorrir. — Chegou o momento. — Ajudou Jane a sentar-se numa cadeira sobre uma toalha, enquanto limpava o chão. — Não sei porque estás tão feliz — disse Jane tensa. — Sou eu que tenho de passar por isto. Tu e a Liz ficam a ver. — Eu vou ficar sempre contigo — garantiu-lhe Coco, e depois ajudou-a as subir a escadas para ir à casa de banho. Tinha a roupa encharcada. — Queres que avise a médica? — Ainda não. As contrações nem sequer começaram. — Vestiu um roupão turco, enrolou-se em toalhas e deitou-se. — Quem me dera saber quanto tempo isto vai levar. — Esperemos que não seja muito — disse Coco tentando parecer convincente. — Porque não tentas dormir antes que comece a sério? Jane acenou afirmativamente e fechou os olhos enquanto Coco apagava a luz e descia os estores. Depois voltou para a cozinha e telefonou a Liz, que tratava de uns assuntos na Baixa. Ficou entusiasmada assim que soube e disse que estaria em casa dentro de vinte minutos. Coco garantiu-lhe que as contrações ainda não tinham começado e, por isso, não valia a pena tanta pressa. — Pode não ser o caso porque já lhe rebentaram as águas. — Tinha lido todos os livros sobre gravidez e estava bem informada. — Vigia-a. As contrações podem começar imediatamente. Coco fez uma chávena de chá e subiu calmamente a escada. Ficou espantada quando encontrou a irmã agarrada à cama cheia de dores, no meio de uma interminável contração. Jane nem conseguia falar. — Quando começaram? — perguntou Coco preocupada. Não queria que a irmã tivesse o bebé em casa, mas isso estava longe de acontecer. — Há cerca de cinco minutos. É a terceira que tenho. São muito dolorosas, muito demoradas e surgem muito depressa. — Pouco depois teve outra e Coco cronometrou-a. Durou um minuto e surgiam a intervalos de três.


— E se eu ligasse à médica? — Jane acenou afirmativamente e deu-lhe o número de telefone. Quando a enfermeira atendeu, Coco disse-lhe o que se passava. Ela quis saber se as contrações eram regulares, mas não eram, porque tinham passado cinco minutos desde a última e, por isso, estavam a ficar mais espaçadas. A enfermeira disse que poderiam parar durante algum tempo, mas para a levarem se se mantivessem consistentemente a intervalos de cinco minutos ou menos. Ia informar a médica que devia esperá-las nas próximas horas. Durante dez minutos nada aconteceu, mas Jane estava com outra contração quando Liz chegou. Correu para a cama e segurou-lhe na mão, pousou a outra na barriga de Jane e sentiu-a dura como uma pedra. — Dói muito — disse Jane a Liz. — Bem sei, querida — disse esta com ternura. — Mas não demora muito e, depois, teremos o nosso menino. Coco saiu do quarto para telefonar a Leslie e contar-lhe o que se passava. Ele ficou calado durante uns instantes e depois disse: — Quem me dera que fosse nosso. — Coco já pensara o mesmo. — Que tal está ela? — perguntou preocupado. — Parece que dói muito. — Pois dói. — Leslie assistira ao nascimento de Chloe, e parecera-lhe horrível. Mas Monica ainda insistia em dizer que Chloe valera a pena. — Dá-lhe um beijinho meu. Coco voltou ao quarto para dar o recado a Jane, que estava a sentar-se com a ajuda de Liz. Ia à casa de banho de poucos em poucos minutos e, no caminho, dobrava-se com dores. Mal podia andar. Liz voltou-se para Coco com ar preocupado, mas, ao mesmo tempo, muito emocionada. Tinham esperado tanto tempo por aquilo e agora finalmente acontecia, só não gostava de ver Jane a sofrer tanto. — Ainda são irregulares — disse Liz a Coco. — Mas tem muitas e muito fortes. Creio que foi por lhe terem rebentado as águas. O livro diz que, depois, podem seguir-se a um ritmo galopante. Talvez seja melhor levá-la. — Era difícil decidir. — Não vou a galope para lado nenhum — disse Jane por entre dentes, encostada a Liz. — Quero qualquer coisa para as dores. — Estava combinado que receberia uma epidural no hospital, mas em casa não lhe podiam fazer nada. Esperaram mais meia hora até que as dores surgiram com intervalos de quatro minutos. Era altura de irem. Liz ajudou-a a vestir um fato de treino e a pôr uns chinelos e, com a ajuda de Coco, levou-a para o carro. Felizmente, o hospital era


perto, mas, quando lá chegaram, quase não conseguiam retirá-la do automóvel. Jane chorava com dores. — Isto é muito pior do que eu pensava — disse a Liz com uma voz rouca. — Bem sei. Talvez te deem já a epidural. — Diz-lhes que tenham a injeção pronta logo que eu passar aquela porta. — Teve outra contração e encostou-se a Liz, enquanto Coco corria a buscar uma cadeira de rodas. Disse à enfermeira que a iam levar para dentro. Sentaram-na e transportaramna na cadeira. Um minuto depois estava lá dentro e a enfermeira sorria-lhe. — Então como estamos? — perguntou a enfermeira. Depois encarregou-se de tudo e empurrou a cadeira para o elevador enquanto Coco e Liz a seguiam com ar aflito. As coisas tinham começado a ser difíceis mais depressa do que pensavam. — Não estamos lá muito bem — disse Jane, respondendo à pergunta da enfermeira. — Sinto-me realmente mal. — Vamos já tratar de si — respondeu a enfermeira num tom tranquilizador. Poucos minutos depois de ter entrado já estavam na sala de partos e a enfermeira que a tinha levado entregou-a às colegas do piso. — As dores estão com intervalos de três minutos — explicou Liz enquanto Jane tinha outra contração e lhe agarrava a mão. — Muito bem, vamos lá ver isso — disse a enfermeira com ar satisfeito. — Daqui a uns minutos, quando soubermos como estão as coisas, já chamamos a sua médica. A enfermeira não lhe disse que, por vezes, mesmo com contrações fortes não havia grandes progressos. Perguntou quem entraria para a sala com ela e Coco e Liz responderam que seriam elas. — Esperamos que chegue o papá? — perguntou a enfermeira em tom alegre. — Não, não esperamos — disse calmamente Liz. — Eu sou o papá. A enfermeira não reagiu e acompanhou as três à sala. Tivera já experiência de casais assim e cada vez mais nos últimos anos. Os pais eram pais fosse qual fosse o sexo. Sorriu para Coco e Liz e ajudou Jane a despir-se. Puseram-lhe a roupa do hospital e meteram-na na cama em que daria à luz. Pedindo desculpas pelo desconforto que pudesse causar, a enfermeira calçou luvas de látex e fez o exame. Jane teve uma contração mesmo a meio e agarrou-se a Liz. Antes de terminar, começou a chorar. A enfermeira levou bastante tempo e mais uma vez lhe pediu desculpa. — Lamento. Sei que foi doloroso. Mas temos de saber como está. Vou avisar a sua médica e trazer já um anestesista para lhe fazer a epidural.


— Vai doer? — perguntou Jane tristemente, olhando da enfermeira para Liz e desta para Coco. Ainda estava dorida do exame. Ninguém lhe dissera que seria assim. Era a pior dor que já sentira. — Depois da epidural já não vai doer. Colocou-lhe um monitor fetal para vigiar os batimentos cardíacos do bebé e as contrações. Agora Jane estava oficialmente em trabalho de parto. Liz sorria-lhe com uma expressão amorosa. — Sabem o sexo do bebé? — perguntou a enfermeira antes de sair. — É um rapaz — disse Liz orgulhosa e Jane fechou os olhos. Coco não gostava de ver a irmã sofrer tanto, mas também se sentia feliz por ela. Era assustador ver o que se estava a passar. Nunca vira um parto, nem sequer num filme. Só cachorrinhos a nascerem e era muito mais fácil. — Bom, parece-me que esta noite já terá o seu menino ao colo — garantiu-lhe a enfermeira. — As coisas estão a correr muito bem. — E desapareceu enquanto Jane tinha outra longa contração. A enfermeira voltou com uma papeleta para Liz preencher e Jane assinar. Esta já se tinha registado duas semanas antes, por isso estava no ficheiro do computador. Apenas precisavam da assinatura para procedimentos de emergência. Tecnicamente, Liz não podia assinar por ela, mas assinou e Jane também. Estavam juntas. A enfermeira voltou a tempo da segunda contração, trazendo o anestesista. Este explicou-lhes o procedimento da epidural enquanto a enfermeira verificava tudo de novo e Jane desatava a chorar. — Isto é horrível — disse ofegante a Liz. — Não consigo! — Claro que consegues — disse Liz em voz baixa, tentando não desviar os olhos de Jane. — Seis — disse a enfermeira ao médico e este pareceu preocupado. — Se isto vai depressa demais não poderemos dar-lhe a epidural — disse a Jane que estava a chorar. — Preciso mesmo. Não sou capaz se não ma der. — Ele olhou para a enfermeira que acenou afirmativamente. — Vamos lá ver se conseguimos. — Disse a Jane que se pusesse de lado e puxasse os joelhos para o peito. Ela sentiu outra contração e não conseguiu. Parecia que tudo se descontrolava no seu corpo e que as pessoas lhe estavam a fazer um mal terrível querendo que ela fizesse coisas que não conseguia. Estava a ser a pior experiência da sua vida. O anestesista conseguiu meter-lhe o cateter na coluna para injetar a medicação. Depois obrigou-a a deitar-se de costas, mas a contração seguinte invadiu-a como uma


onda. Teve outra a seguir sem que a anestesia tivesse qualquer efeito. O anestesista explicou que a dilatação poderia estar muito avançada, mas, de súbito, as dores pararam. Nada aconteceu nos cinco minutos seguintes, o que foi um alívio para Jane. — A epidural pode atrasar um pouco as coisas — explicou. Mas, tão depressa como tinham parado, as contrações recomeçaram. Jane disse que eram ainda piores. Tudo continuou durante mais dez minutos e depois a enfermeira teve de a examinar de novo. Jane chorou de dores e gritou para a enfermeira: — Pare com isso! Está a magoar-me! — Depois ficou na cama a soluçar. Até ali a epidural não lhe acalmara as dores. — Vou aumentar a dosagem para ver se dá mais resultado — disse calmamente o anestesista, enquanto a enfermeira lhe dizia: — Dez. Vou chamar a médica. — Ouviste? — disse-lhe Liz. — Dez. Significa que podes empurrar. Em breve o bebé estará cá fora. — Jane acenou com a cabeça, parecendo confusa, e o monitor indicou que ela estava a ter outra contração, mas, desta vez, Jane não reagiu. A medicação resultara, tudo acontecia depressa demais. Só lá estavam há uma hora, mas, para Jane, parecia uma eternidade. Cinco minutos depois, a obstetra entrou na sala. Sorriu, cumprimentou Jane e Liz e foi apresentada a Coco. — Temos aqui um belo grupo — disse a médica alegremente. — Jane, trago-lhe boas notícias. — Inclinou-se para ela de modo a fazer-se ouvir. — Na próxima contração, pode começar a empurrar. Vamos pôr-lhe esse menino ao colo o mais depressa possível. — Agora não sinto as contrações — disse Jane, aliviada. Tinha os olhos vidrados e Coco e Liz trocaram um olhar preocupado. — Podemos aliviar um pouco a anestesia para que nos possa ajudar — disse a médica a Jane, fazendo-a entrar em pânico. — Não, não — disse Jane, começando de novo a chorar. Coco estava abalada por ter diante dos olhos a irmã mais velha naquela aflição. — Está a ir muito bem. — A médica sorriu para Liz e para Coco e a enfermeira colocou a máscara de oxigénio em Jane, enquanto o anestesista saía da sala. Tinha de ir fazer outra epidural para uma cesariana, mas disse que voltava. Era uma noite movimentada no hospital. A enfermeira disse que, nessa noite, havia muitos partos. O monitor indicou outra contração. Colocaram as longas pernas de Jane nos estribos e disseram-lhe que começasse a fazer força. Veio outra enfermeira ajudar. Jane tinha uma enfermeira de cada lado, a médica em frente, a vigiar a cabeça da


criança e Liz junto de si. Sentia-se rodeada de pessoas que lhe iam dizendo para respirar e fazer força. Durante algum tempo, nada aconteceu. Coco viu Jane fazer força durante uma hora, mas em vão. Todos estavam pendentes do que se passava e, no quarto cheio de gente, entrou uma enfermeira com um berço de plástico. — Não consigo — declarou Jane exausta. — Já não consigo empurrar mais. Tirem-no cá para fora. — Não — disse a médica em tom alegre aos pés da cama. — Isso é consigo. Agora tem de nos ajudar. — Disseram-lhe que empurrasse com mais força e pediram a Liz que a segurasse pelos ombros, enquanto cada uma das enfermeiras lhe prendia os pés. O anestesista voltou e a médica pediu-lhe que diminuísse a dosagem, enquanto Jane lhe implorava que não o fizesse. Passou outra hora. Há duas horas que Jane fazia força sem que nada acontecesse. A médica disse que já conseguia ver o cabelo do bebé, mas mais nada. Fizeram então uma episiotomia e usaram os fórceps. Passou outra hora e Jane gritava, com Coco de um lado e Jane do outro, continuando a fazer força até dizer que ia morrer. Soltou um grito horrível que Coco pensou ter de recordar eternamente e, lentamente, muito lentamente a cabeça do bebé começou a aparecer até sair uma carinha que as fitava com os olhos muito abertos. Liz e Coco choravam e Jane olhava para ele, com o rosto arroxeado de tanto fazer força. Fizeram rodar os ombros, retiraram-no e ouviu-se na sala um choro prolongado, que, desta vez, não era de Jane, mas sim do bebé. Cortaram o cordão umbilical, enrolaram-no num cobertor e colocaram-no sobre Jane que soluçava e olhava para Liz com uma expressão dorida e extasiada. Nunca tinha feito uma coisa tão difícil em toda a sua vida e esperava não ter de o repetir. — É tão bonito — disseram todas quando o viram. Levaram-no para o limpar e pesar, enquanto retiravam a placenta e cosiam Jane. — Pesa quatro quilos e oitenta gramas — disse a enfermeira, orgulhosa, entregando o bebé a Liz. — Deu à luz um bebé com mais de quatro quilos — disse a Jane. O parto tinha durado três horas e era fácil ver porquê. O bebé era enorme e Coco olhava-o espantada. Deixaram que lhe pegasse e ela devolveu-o a Jane que o pôs ao peito, e ele ali ficou, calmamente, olhando a mãe com os seus enormes olhos azuis. Tinha as mãos muito bonitas e pernas compridas como as dela. Liz beijava-a e sorria e ambas falavam com o bebé que, olhando-as, já parecia reconhecer-lhes as vozes. Coco ficou com elas mais uma hora, até levarem Jane para um quarto. Estava exausta. Liz passaria lá a noite, por isso Coco regressaria a casa, ainda extasiada com o que tinha visto. Beijou Jane e Liz antes de sair e deu-lhes os parabéns, enquanto Liz


pegava no telefone para avisar Florence que Bernard Buzz Barrington II tinha, por fim, feito a sua entrada no mundo e todas elas estavam extasiadas. Quando Coco regressou a casa, telefonou a Leslie a contar tudo e como tinha sido doloroso para a irmã, mas que ela parecia feliz depois de o bebé nascer. — O próximo será o nosso — disse Leslie. — Dá por mim os parabéns a Jane e a Liz. Prometeu ir lá no fim de semana e Coco voltaria com ele para Los Angeles. O bebé nascera dois dias antes da data prevista e era agora a vez de Coco começar uma nova vida. Tinham passado exatamente oito meses desde o dia em que Coco e Leslie se tinham conhecido. Quase tanto tempo como o bebé de Jane levara a nascer.


CAPÍTULO 21 Conforme prometera, Leslie foi a São Francisco no sábado. Nessa altura, já Jane tinha saído do hospital. Estava fraca, dorida e muito feliz. Ela e Liz preocupavam-se constantemente com o bebé. Estava lá a enfermeira, contratada por elas, que lhes ensinava tudo o que era necessário para cuidar da criança. Jane estava a amamentar, era, pois, a altura perfeita para Coco partir. Leslie e Coco jantaram com Jane e Liz nessa noite e Leslie pegou no bebé ao colo parecendo ter muito jeito. Coco despediu-se comovidamente da irmã. Sentia-se agora mais perto dela depois de ter partilhado o nascimento do bebé. No dia seguinte, Coco e Leslie foram para Los Angeles. Leslie enchera a casa de flores para ela antes de partir. Estava tudo imaculado e perfeito. Arranjara-lhe dois armários enormes para as coisas dela e não havia paparazzi quando lá chegaram. O serviço de segurança vigiava a casa. E foi ele mesmo que fez o jantar. — Como é que eu tenho tanta sorte? — perguntou ela, admirada, beijando-o. — Eu é que tenho sorte — disse, olhando-a espantado. Não podia acreditar que Coco estava por fim com ele. Ambos tinham ultrapassado o que se passara em Veneza e aqueles dois meses agonizantes. Já não tinham qualquer dúvida, sabiam que iam ficar juntos. Nessa noite telefonaram a Chloe para dizer que Coco se tinha mudado para lá. Quando Chloe partira para ir passar o Ano Novo em Nova Iorque, já lhe tinham dito que isso haveria de acontecer e a criança ficara encantada. Mal podia esperar para os ir visitar. — E agora? Vais ter um bebé? — perguntou Chloe curiosa e Coco ficou a pensar se ela estaria preocupada, como Jane tinha estado quando ela nascera. Não queria que tal acontecesse a Chloe. Havia amor que chegasse para todos e queria que a menina o soubesse. — Ainda não — respondeu o pai com solenidade, mas desejando que tal acontecesse. — Vão casar-se? — perguntou ela, com um sorriso na voz. — Ainda não discutimos isso, mas, se o fizermos, não o faremos sem ti. Prometo — disse-lhe o pai. — Quero ser dama de honor. — Estás já contratada. Agora só precisamos do noivo e da noiva. — És tu e a Coco, pai — disse a rir. — És tão parvo.


— E tu também. É por isso que gosto tanto de ti — disse Leslie com graça. Depois de desligar voltou-se para Coco que estava a ouvir no outro telefone. — Ela tem razão, sabes, acerca de nos casarmos. Sou um homem respeitável. Seria um grande descaramento da tua parte esperares que viva em pecado contigo. Pensa no que diriam os tabloides: «Importante estrela de cinema vive com acompanhante de cães!» Perfeitamente chocante — disse, beijando-a. — Já não passeio cães. Não precisas de te preocupar — disse ela rolando na cama com uma expressão de prazer. Agora, e mais do que nunca, sentia-se a Gata Borralheira. O sapatinho de cristal era seu e servia-lhe na perfeição. — Bom, embora já não passeies cães, tenho de defender a minha reputação. O que achas? Vamos a isso? Só para dar a Chloe a alegria de ser dama de honor. Penso que é uma razão excelente. A outra razão é amar-te loucamente e, antes que voltes a fugir, gostava de estabelecer o meu território. Queres casar comigo, Coco? — Saíra da cama e ajoelhara-se, olhando-a nos olhos com uma expressão séria, como se fosse chorar de emoção. Coco sentiu-se comovida ao ouvi-lo. — Quero, sim — disse ela, calmamente. Iam começar uma vida juntos e ela seria eternamente a Gata Borralheira. Tinha encontrado o seu príncipe encantado. — E tu também queres casar comigo? — perguntou-lhe também com ternura. — Com todo o prazer. — Ele sorriu e meteu-se na cama com ela. Era a primeira noite que passavam naquela casa, a que iriam partilhar para o bem e para o mal, ou até que os paparazzi acabassem com eles.


CAPÍTULO 22 Jane e Liz passaram toda a manhã a tratar das flores. Os empregados do serviço de catering encontravam-se na cozinha desde a noite anterior. A casa estava espetacular, cheia de rosas brancas. Jane teve de deixar de dar instruções aos homens que mudavam os móveis para dar de mamar ao bebé, mas voltou logo para mudar tudo de novo. Esperavam cem pessoas às seis da tarde, e queria que tudo estivesse perfeito. Mandara a ama do bebé coser fitas brancas nas grinaldas que a florista colocara na escada. O bebé tinha quatro meses, mas era tão grande que parecia ter quase um ano. Era espantosa a atividade da casa e, às quatro horas, Liz e Jane subiram para se vestir, enquanto a ama punha o menino a dormir a sesta. Era um bebé fácil e ela gostava de trabalhar ali. Dizia que eram as pessoas mais simpáticas que já conhecera. Jane ainda não voltara ao trabalho e Liz pensava fazer inseminação artificial em julho, usando os óvulos de Jane. Jane já tinha quarenta anos, mas os testes mostravam que continuava fértil. E Liz queria ficar grávida de um bebé dela. A chegada de Buzz fora um acontecimento maravilhoso na vida de ambas. Esperavam que o segundo bebé fosse uma menina. — Talvez devêssemos casar — sugeriu Liz, enquanto estavam as duas na casa de banho para se vestirem. — Se quiseres… mas, no meu coração, há muito que estou casada contigo — disse Jane com um sorriso. — Eu também — disse Liz, puxando o fecho do vestido de Jane. Era um elegante vestido azul-claro e o de Liz de cetim cinzento. Tinham tratado de todos os pormenores e estavam orgulhosas do resultado. Para ambas era perfeitamente adequado que a festa fosse ali em casa, onde tudo começara. Desceram às cinco e meia, mesmo a tempo de receberem a mãe de Jane e Gabriel. Não ficaram admiradas quando a mãe apareceu num fato de cetim cor de champanhe. Jane apostara com Liz que ela faria uma coisa assim, e iria vestida de branco ou quase branco ao casamento da filha. Era mesmo dela, totalmente previsível. — Não se atreverá — dissera Liz. — Não faria uma coisa dessas a Coco. — Dez dólares em como o faz — dissera Jane, e Liz aceitara a aposta. Quando Florence entrou, Jane voltou-se para Liz com um largo sorriso. — Deves-me dez dólares! — Desataram as duas a rir e cumprimentaram Gabriel, que vinha de fato azul-escuro, trazendo ao colo Alyson, já com três anos. Ele e Florence acabavam de celebrar o segundo aniversário da sua união e, em julho, iriam para Paris e para o Sul de França. Ficariam no Hotel du Cap e depois Florence alugara um iate para passarem duas semanas na Sardenha de visita a uns amigos.


Gabriel não tinha feito um único filme nesse ano, pois estava demasiado ocupado a viajar com Florence. Liz comentou que ela parecia mais feliz de cada vez que a via; não o dizia, mas nunca a vira tão feliz quando estava casada com o pai de Jane. Gabriel fazia-lhe bem. E ele parecia à vontade e descontraído. A sua vida em comum era semelhante a umas longas férias. Ele acabara de se mudar para casa dela. Os pais de Leslie tinham vindo de Inglaterra e conversavam com Jane e Liz. Todos os convidados tinham chegado às seis e meia. Coco esperava em baixo, para que ninguém a visse, quando Leslie chegou com Chloe que trazia um vestido de organdi cor-de-rosa até aos pés e parecia uma princesinha. Liz disse-lho e ela sorriu. Queria ir brincar com o bebé, mas Jane teve medo que ele bolçasse e lhe estragasse o vestido, por isso disse-lhe que tinha de esperar até mais tarde. A música começou às seis e meia, quando ouviram um helicóptero lá em cima. Havia polícia a pé a guardar a casa e polícia motorizada a percorrer a rua. Olharam para cima e identificaram a imprensa. Havia um fotógrafo quase pendurado da janela com uma teleobjetiva. Os polícias encolheram os ombros. Não conseguiriam grande coisa, porque todos estavam dentro de casa. Quando a encarregada do catering a avisou, Coco subiu a escada. Entrou na sala de jantar, imponente e espetacular num vestido de cetim branco, com uma cauda que lhe moldava a figura, e, por entre tantas pessoas presentes na sala de Liz e Jane, apenas viu Leslie com Chloe a seu lado. Só precisava de o ver a ele, nada mais. Ouviu o helicóptero passar, mas não se importou. Sabia do que se tratava e que, possivelmente, muitos outros passariam no futuro. Só lhe importava Leslie, Chloe e a vida que iriam partilhar. Fizeram o juramento solene, enquanto a mãe chorava de mão dada com Gabriel; apertou-lha ligeiramente quando o noivo disse «Sim». Depois Leslie beijou Coco e a sua nova vida começou. Foi um casamento perfeito, exatamente como Coco desejava. A família estava ali, tal como as pessoas de quem gostavam e que gostavam deles. Os amigos de Leslie tinham vindo de Los Angeles, a família dele viera de Inglaterra e Jeff da praia. Ele e a mulher tinham ficado imensamente lisonjeados com o convite. O casamento realizara-se em casa de Jane para evitar a imprensa. Era mais seguro ali, com as portas fechadas, em casa da irmã. Iam de avião para a lua de mel num sítio não divulgado e levavam Chloe. Coco quisera que ela fosse com eles e Leslie esperava dar-lhe em breve um irmãozinho ou irmãzinha. Havia uma pista de dança na sala de jantar e as pessoas dispersavam-se pelo jardim naquela noite quente. Tinham instalado uma pista acrílica sobre a piscina. Era a melhor festa que São Francisco já vira.


À meia-noite, depois de terem servido o bolo, Coco subiu até meio da escada para atirar o ramo. Fez pontaria e atingiu a mãe no peito. Queria que fosse ela a apanhá-lo. Florence apertou as flores contra o peito enquanto Gabriel sorria. Sabia o que ela tinha na ideia e concordava. Dançaram mais uma vez depois da saída dos noivos e ele beijou-a. Nesse momento, Jane e Liz estavam lá em baixo a dançar com todos os amigos de Leslie vindos de Los Angeles. Leslie, Coco e Chloe partiram de limusina. A polícia conteve a multidão e, lá em cima, o helicóptero continuava a pairar. Dois polícias de motorizada seguiam na frente do carro dos noivos que se dirigiam para o aeroporto a toda a velocidade, com Chloe entre eles. Coco sorria e Leslie parecia o homem mais feliz do mundo. Iam os três de mãos dadas. — Conseguimos — murmurou Coco com uma expressão vitoriosa. Os paparazzi não os tinham apanhado. Ninguém se ferira, ninguém os aterrorizara, a eles ou a Chloe. Estavam em segurança e tinham chegado ali tal como Leslie lhe dissera. — Então? Agora vais fazer aquilo? — perguntou Chloe ao pai quando já iam a caminho. — O quê? — Ele olhava para Coco a pensar noutras coisas. — Aquela coisa nojenta? — perguntou Chloe com uma gargalhada. — Chloe! — repreendeu-a, mas depois sorriu. — Não faço ideia do que estás a falar. — Tu sabes. Aquilo que a mãe disse que… O pai interrompeu-a imediatamente. — Esquece! — Está bem — disse a menina, sorrindo para Coco. — Gosto muito dos dois — continuou com ar feliz. Adorava o pai e Coco era a sua melhor amiga. — Nós também gostamos muito de ti — disseram Leslie e Coco em uníssono e depois inclinaram-se para a beijarem no cabelo e na face. Enquanto seguiam a toda a pressa para o aeroporto, Coco sorria para Leslie. Afinal, ele tivera razão. As coisas tinham acabado como devia ser. Um dia de cada vez.


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