Clive Cussler - Inferno nos Açores PT

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SAÍDA DE EMERGÊNCIA Para quem quer fugir da rotina Inferno nos Açores Clive Cussler e Graham Brown Editor: Antônio Vilaça Esta edição © 2013 Edições Saída de Emergência Título original Devil's Gate © 2011 Clive Cussler. Publicado originalmente nos EUA por Penguin Group, 2011 Tradução: Renato Carreira Revisão: Saída de Emergência Composição: Saída de Emergência, em caracteres Minion, corpo 12 Impressão e acabamento: Cafilesa, soluções Gráficas, Lda 1ª edição: Janeiro, 2013 ISBN: 978-989-637-480-8 Depósito Legal: 352975/12 Edições Saída de Emergência R. Adelino Mendes nº 152, Quinta do Choupal, 2765-082 S. Pedro do Estoril, Portugal Tel e Fax: 214 583 770 www.saidadeemergencia.com


Contracapa Mais de 150 milhões de leitores em 100 países! Clive Cussler já espantou os leitores com as “incrivelmente divertidas” (New York Times) e “emocionantes” (Chicago Tribune) aventuras de Kurt Austin, Joe Zavala e o resto da Equipe de Missões Especiais da NUMA, mas, em Inferno nos Açores, talvez tenham encontrado um adversário à altura.

Uma aventura dos Arquivos NUMA

Um cargueiro japonês cruza o Atlântico oriental perto dos Açores quando irrompe em chamas. Um bando de piratas avança para se aproveitar da catástrofe, mas seu barco explode. Qual a relação com o sequestro de um cientista nas ruas de Genebra? Ou com a deserção de um russo misterioso sessenta anos antes? E com a descoberta de um extraordinário cemitério submarino de navios e aviões dispersos no fundo marinho? Quando Austin, Zavala e o resto da equipe iniciam a investigação, veem-se arrastados para as ambições mirabolantes de um ditador africano, para a criação de uma arma com capacidade destrutiva quase mítica e para um plano de audácia inimaginável para chantagear as principais potências mundiais. O castigo pela recusa? A destruição das maiores cidades do planeta. Começando por Washington, D.C.... Repleto de suspense intenso e da criatividade quase ilimitada que são exclusivos de Cussler, Inferno nos Açores é um dos livros mais emocionantes do grande mestre da aventura.


O Autor CLIVE CUSSLER cresceu em Alhambra, Califórnia. Durante dois anos estudou no Pasadena City College e depois alistou-se na Força Aérea durante a Guerra da Coreia, onde cumpriu serviço como mecânico, engenheiro e técnico de voo. Cussler escreve desde 1965 e é fundador da NUMA (National Underwater and Marine Agency), organização de fins não-lucrativos que se dedica à investigação da história marítima e naval. Cussler e seus peritos da NUMA descobriram mais de 60 navios afundados, oferecendo o fruto de seu trabalho a universidades e governos um pouco por todo o mundo. Foi honrado com vários prêmios de clubes de exploradores americanos e até ingleses por seu trabalho de exploração subaquática. Hoje divide o tempo entre as montanhas do Colorado e os desertos do Arizona.

Já publicados: ARQUIVOS NUMA

Serpente Ouro Azul Gelo Ardente Morte Branca Cidade Perdida Mutação Polar Medusa AVENTURAS DE DIRK PITT

Mediterrâneo Pacífico Iceberg


Prólogo Aeroporto de Santa Maria, arquipélago dos Açores, 1951

Hudson Wallace erguia-se na pista diante do terminal numa noite fria e úmida. O seu casaco de couro pouco fazia para o proteger do frio enquanto uma mistura de chuvisco e nevoeiro cobria o aeroporto e toda a ilha em redor. À sua frente, luzes azuis de rolagem reluziam em silêncio estoico, sem conseguir aquecer o cenário, enquanto, por cima, um feixe de luz branca dançava entre o nevoeiro seguido momentos depois por um clarão verde quando o foco do aeroporto girou de forma lenta e repetida. Hudson duvidou que houvesse alguém lá em cima para o ver, com as nuvens tão densas e baixas como estavam, mas, se estivesse enganado, que Deus ajudasse o pobre coitado. Montanhas rodeavam o aeroporto por três lados e a ilha era apenas um ponto no mapa no meio do escuro Atlântico. Mesmo em 1951, encontrar tal local não era tarefa fácil. E, se alguém conseguisse encontrar Santa Maria com aquelas condições adversas, supôs que bateria nos picos muito antes de ver as luzes de aterrissagem entre a chuva. Chegar à ilha era uma coisa. Partir era algo completamente diferente. Mesmo com aquele tempo, Hudson queria partir. Na verdade, mal conseguia esperar. Por razões que conhecia demasiado bem, ficar tornara-se perigoso. Apesar desse fato e apesar de ser o piloto e proprietário do Lockheed Constellation estacionado na pista, a decisão final não seria sua. Pouco podia fazer além de observar e esperar. Retirou uma cigarreira de prata de um bolso do casaco. Extraiu do interior um cigarro Dunhill e prendeu-o entre os lábios. Ignorando os sinais de “Proibido Fumar” afixados de cinco em cinco metros, aproximou da cara um isqueiro Zippo e acendeu o cigarro. Estava a cem metros do avião ou do abastecimento de combustível mais próximo e todo o aeroporto estava ensopado. Calculou que as hipóteses de causar um problema seriam praticamente nulas. Quanto às hipóteses de alguém se dar ao trabalho de sair do terminal quente e seco para vir protestar? Achou que seriam ainda menores. Depois de uma inalação profunda e satisfatória, Hudson expirou. A nuvem de fumaça cinza dispersou-se enquanto a porta do terminal se


abria atrás dele. Um homem vestindo roupas que lhe assentavam mal saiu. A sua face redonda estava parcialmente escondida por um chapéu castanho. O casaco e as calças eram feitos de pano tosco de lã e pareciam restos de coleção do catálogo de inverno do Exército Vermelho. Luvas finas e sem dedos completavam a aparência de camponês em viagem, mas Hudson não se deixava enganar. Aquele homem, aquele passageiro, não tardaria a ser rico. Se conseguisse sobreviver durante tempo suficiente para chegar à América. — O tempo vai melhorar? — perguntou o homem. Mais uma inalação do Dunhill. Mais uma nuvem de fumaça antes de responder. — Não — disse, desolado. — Hoje não. Talvez para a semana. O passageiro de Hudson era um russo chamado Tarasov. Era um refugiado da União Soviética. A sua bagagem era composta por dois baús de aço inoxidável, suficientemente pesados para poderem estar cheios de pedras. Ambos estavam trancados e acorrentados ao chão dentro do avião. Não fora informado do que se escondia dentro dos baús, mas a recémformada Central Intelligence Agency pagava-lhe uma pequena fortuna para os trazer para os Estados Unidos juntamente com Tarasov. Calculou que pagassem muito mais ao russo para desertar e trazer os baús. Até ali, tudo bem. Um agente americano conseguira levar Tarasov até à Jugoslávia, outro país comunista mas governado por Tito, onde não havia qualquer amor por Estaline. Um suborno considerável conseguira trazer o avião de Hudson até Sarajevo, permitindo-lhe também que descolasse antes que alguém começasse a fazer perguntas. Desde então, tinham viajado para o ocidente, mas o segredo perdera-se e uma tentativa de eliminar o homem deixara Tarasov a coxear e com uma bala ainda no interior da perna. Hudson recebera ordens para o levar para os Estados Unidos tão depressa quanto possível e mantendo a discrição, mas nunca fora especificada uma rota a seguir. Ainda bem, porque não a teria seguido. Até ali, evitara todas as cidades europeias de relevo, viajando ao invés para os Açores, onde poderia reabastecer e seguir diretamente para os Estados Unidos. Era um bom plano, mas não contara com o tempo ou com o medo de voar de Tarasov. — Vão nos encontrar mais cedo ou mais tarde — disse Hudson. Virou-se para o passageiro. — Têm agentes por toda a parte. Em todos os portos e aeroportos, pelo menos. — Mas disse que isto ficava fora de caminho. — Sim — confirmou Hudson. — E quando não nos encontrarem em


nenhum lugar que fique “em caminho”, começarão a procurar no resto. Talvez já tenham começado. Hudson levou novamente o cigarro à boca. Não sabia se os russos procurariam nos Açores. Mas dois americanos e um estrangeiro aterrissando no que era, essencialmente, um avião comercial e esperando três dias sem falar com ninguém seria o tipo de coisa capaz de atrair atenções. — Nalgum ponto, terá de decidir o que o assusta mais — disse, indicando com a cabeça o avião parado sob a chuva. — Um pouco de turbulência ou uma faca no estômago. Tarasov ergueu os olhos para o céu revolto. Encolheu os ombros e ergueu as mãos com as palmas voltadas para cima, como um homem tentando mostrar que não tinha dinheiro. — Mas não podemos voar assim — disse. — Aterrissar — corrigiu Hudson. — Não podemos aterrissar assim. — Fez um movimento com a mão, imitando um avião descendo e inclinando-se para a aterrissagem. — Mas podemos decolar sem qualquer dúvida — continuou, voltando a erguer a mão. — E depois, podemos seguir para oeste. Não há montanhas nessa direção. Nada além de oceano... e liberdade. Tarasov sacudiu a cabeça, mas Hudson percebia que a sua determinação começava a vacilar. — Verifiquei as condições atmosféricas que nos esperam em Nova York — disse, mentindo novamente. Não fizera tal coisa por não querer que alguém soubesse do seu destino. — Céu limpo durante as próximas quarenta e oito horas. Mas, depois disso... Tarasov pareceu compreender. — Partimos agora ou ficamos presos aqui durante uma semana. O passageiro pareceu não apreciar aquela possibilidade. Olhou para o chão e, a seguir, para o grande Constellation prateado com os seus quatro enormes motores de pistão e empenagem tripla. Olhou para a chuva e a noite que os rodeava. — Consegue nos tirar daqui? Hudson atirou o cigarro no chão e esmagou-o com a bota. Vencera-o. — Consigo nos tirar daqui — disse. Tarasov acenou afirmativamente com a cabeça, relutante. Hudson voltou-se para o avião e fez um movimento giratório com a mão. Ouviu-se o som trovejante do motor de ignição e o motor número três cuspiu fumaça negra. As velas faiscaram e o grande engenho radial ganhou vida. Momentos depois, a enorme hélice rodava a mil e quinhentas rotações por minuto, repelindo pingos de chuva e neblina para longe da aeronave. Segundos


depois, o motor número um também ganhou vida. Hudson esperara conseguir convencer o passageiro a voar. Deixara Charlie Simpkins, seu copiloto, no cockpit e disse que mantivesse o avião pronto para partir. — Venha — disse Hudson. Tarasov inspirou fundo e afastou-se da porta. Começou a caminhar em direção ao avião expectante. A meio caminho, ouviu-se um tiro. Ecoou sobre o alcatrão molhado e Tarasov lançou-se para a frente, arqueando as costas e torcendo-se para um lado. — Não! — gritou Hudson. Correu para diante, segurando Tarasov e conseguindo mantê-lo de pé enquanto o empurrava em direção ao avião. Ouviu-se outro tiro. Aquele falhou o alvo, ricocheteando no cimento à direita. Tarasov tropeçou. — Vamos! — gritou Hudson, tentando erguê-lo. A bala seguinte atingiu o piloto no ombro, fazendo-o girar. Caiu no chão e rolou. A bala projetara-o para baixo como se alguém o golpeasse de cima. Calculou que o tiro tivesse vindo do telhado do terminal. Com um esgar de dor, Hudson retirou um Colt .45 do coldre de ombro. Virou-se e mirou o telhado do edifício, disparando às cegas na direção aproximada que calculou ser ocupada pelo atirador furtivo. Depois de disparar quatro tiros, pareceu-lhe ver um vulto agachar-se atrás do vértice do telhado do terminal. Disparou outro tiro nessa direção e voltou a segurar Tarasov, puxando-o em direção ao avião, arrastando-o pelo chão como se fosse um trenó, até alcançarem as escadas perto do nariz. — Levante-se — gritou Hudson, tentando içá-lo. — Não... consigo — disse Tarasov. — Eu ajudo — disse, puxando-o. — Só tem que... Enquanto tentava erguer Tarasov, ouviu outro tiro e o homem caiu de bruços. Hudson escondeu-se atrás da escada e gritou para as portas abertas do avião. — Charlie! Não houve resposta. — Charlie! Qual é a situação? — Estamos prontos para partir! — gritou uma voz em resposta. Hudson ouviu a ignição do último motor, segurou Tarasov e voltou-o. O corpo do homem estava inerte como o de uma boneca de trapos. O último tiro atravessara -lhe o pescoço. Os olhos abertos reviravam-se parcialmente,


fitando o vazio. — Bolas — disse Hudson. Metade da missão fora arruinada, mas ainda tinham os baús de aço e o seu Conteúdo misterioso. Mesmo que a CIA fosse uma organização secreta, tinham uma sede e uma morada. Se fosse preciso, Hudson procurá-los-ia e bateria à porta até que alguém abrisse e lhe pagasse. Virou-se e voltou a disparar para o terminal. E, nesse momento, viu as luzes de dois carros acelerando na sua direção vindos do extremo oposto da pista. Não acreditou que fossem a cavalaria. Correu pelas escadas acima e mergulhou pela porta dentro enquanto uma bala ricocheteava na pele lisa do Connie. — Vai! — gritou. — E nosso passageiro? — Não podemos fazer nada por ele. Enquanto o copiloto empurrava as alavancas de aceleração para diante, Hudson fechou a porta com estrondo, girando o fecho no momento em que o avião começava a mover-se. Sobre o zumbido constante dos motores, ouviu vidro partir. Virou-se e viu Charlie Simpkins curvado sobre o painel de instrumentos, com o cinto de segurança mantendo-o na vertical. — Charlie? O avião movia-se enquanto Hudson corria. Atirou-se para o interior do cockpit quando se ouviu outro tiro, seguido por outro logo a seguir. Equilibrando-se, ergueu a mão e empurrou as alavancas para a frente. Os motores rugiram e ele rastejou para baixo da cadeira do piloto e empurrou com força o controle do leme direito. O grande avião começou a ganhar ímpeto, movendo-se de forma incerta, mas aumentando a velocidade e virando. Outro tiro de espingarda atingiu o painel metálico atrás dele, seguindo-se outros dois. Hudson achou que teria virado o suficiente e que o avião estaria apontado na direção oposta ao terminal. Subiu para a cadeira e virou para a pista. Naquele ponto, teria de partir. Não restava nenhum ponto seguro na pista. O avião estava virado na direção certa e não pretendia esperar autorização para decolar. Empurrou as alavancas até o fim e a grande aeronave começou a acelerar. Durante um segundo ou dois, ouviu balas abrindo buracos na pele do avião, mas depressa ficou fora do seu alcance, rugindo pela pista fora e aproximando-se da velocidade rotacional. Com a visibilidade má como estava e com o vidro estilhaçado do lado esquerdo, esforçou-se para conseguir ver as luzes vermelhas no extremo da pista.


Aproximavam-se com rapidez. Baixou os flaps cinco graus e esperou até ficar a cem metros do fim do asfalto antes de começar a puxar a manche. O Connie ergueu o nariz, hesitou durante um instante longo e agonizante, e ergueu-se no fim do asfalto, com as rodas roçando a erva alta além da pista. Ganhando altitude e voltando se para oeste, Hudson fez subir o trem de aterrissagem e, a seguir, estendeu a mão para o copiloto. — Charlie? — disse, sacudindo-o. — Charlie! Simpkins não reagiu. Hudson procurou-lhe o pulso sem sucesso. — Maldição — exclamou para si mesmo. Mais uma baixa. Durante a guerra, meia década atrás, Hudson perdera demasiados amigos para conseguir contá-los, mas houvera sempre um motivo válido. Ali, não tinha a certeza. Esperava que o conteúdo dos baús valesse as vidas de dois homens. Empurrou Simpkins novamente contra a sua cadeira e concentrou-se em pilotar o avião. O vento lateral era intenso, a turbulência era pior, e olhar para uma parede de neblina cinza enquanto subia através das nuvens era desorientador e perigoso. Sem horizonte para avaliar visualmente a orientação do avião, nenhuma sensação merecia confiança. Muitos pilotos tinham voado para o chão em condições semelhantes, pensando voar em linha reta em altitude estável. Muitos caíram com aviões perfeitamente estabilizados porque suas sensações diziam que giravam e caíam. Era como estar bêbado e sentir a cama rodar. Sabe-se que não está, mas a sensação era inevitável. Para evitá-lo, manteve os olhos baixos, fixando os instrumentos e certificando-se de que as asas permaneciam niveladas. Manteve a ascensão num ângulo seguro de cinco graus. Quando atingiu dois mil pés e se afastou três milhas do aeroporto, o tempo piorou. A turbulência sacudiu o avião, com correntes violentas ascendentes e descendentes ameaçando rasgá-lo ao meio. A chuva fustigava o para-brisas e o metal em redor. A deslocação de ar de duzentos e quarenta quilômetros por hora impedia a maior parte da água de se infiltrar pelo canto estilhaçado do vidro, mas alguma conseguia entrar no cockpit e o ruído constante que provocava fazia lembrar um trem de carga passando em velocidade máxima. Com os buracos de bala e o para-brisas partido, Hudson não conseguia pressurizar o interior do avião, mas poderia subir até os catorze mil pés ou mais sem recear que a temperatura baixasse o suficiente para o impedir de funcionar devidamente. Levou a mão atrás da cadeira e tocou uma botija verde cheia de oxigênio puro. Precisaria dela mais acima. Nova onda de turbulência abalou o avião. Com o trem de pouso erguido e


os quatro motores em funcionamento, calculou que conseguiria atravessar a tempestade e sair pelo outro lado. O Constellation era uma das aeronaves mais avançadas da época. Desenhado pela Lockheed com ajuda do famoso aviador Howard Hughes, conseguia atingir uma velocidade de cruzeiro de trezentos e cinquenta nós e percorrer cerca de cinco mil quilômetros sem reabastecer. Se tivessem recolhido Tarasov um pouco mais para oeste, Hudson teria conseguido chegar à Terra Nova ou a Boston sem parar. Virou-se para conferir o rumo. Seguia mais para norte do que pretendia. Corrigiu a direção e sentiu uma tontura. Conseguiu nivelar no momento em que uma luz de aviso se acendia. O gerador do motor número um falhava e o motor funcionava com grandes dificuldades. Um momento depois, foi o motor número dois que começou a falhar e a luz principal de aviso de falha elétrica acendeu-se. Hudson tentou concentrar-se. Sentiu-se zonzo como se tivesse sido drogado. Levou a mão ao ombro onde a bala o atingira. O ferimento era doloroso, mas não conseguia perceber a quantidade de sangue perdida. No painel de instrumentos à sua frente, o horizonte artificial (um instrumento que os pilotos usam para manter as asas niveladas quando não conseguem ver nada no exterior) rodopiava. A seu lado, o giroscópio direcional girava sem parar. De alguma forma, o avião falhava em simultâneo com o corpo de Hudson. Olhou para a velha bússola, o mais antigo dos instrumentos, que funcionava como último recurso de um piloto quando todos os dispositivos mecânicos falhavam. Indicava uma curva apertada para a esquerda. Tentou nivelar, mas exagerou na compensação. O aviso de inclinação começou a soar porque a velocidade baixou e, um instante depois, o painel de instrumentos iluminou-se com luzes de aviso. Quase tudo o que podia piscar, piscava. O aviso de inclinação enchia-lhe os ouvidos. Ouviu também o aviso do trem de pouco. Viu um relâmpago suficientemente perto para o cegar e pensou se teria atingido o avião. Levou a mão ao rádio, selecionou a frequência de onda curta que a CIA lhe dera e começou a transmitir. — Mayday, mayday, mayday — disse. — Aqui... O avião guinou para a direita e para a esquerda. Voltou a ver um relâmpago, uma faísca de um milhão de voltes demasiado perto dos seus olhos. Sentiu um choque pelo rádio e deixou cair o microfone como se fosse uma batata quente. Pendeu sob o painel de instrumentos na extremidade do fio. Estendeu a mão para o erguer. Falhou o alvo. Inclinou-se para diante e


tentou novamente, esticando-se e segurando-o com as pontas dos dedos. Puxou-o para si, pronto para recomeçar a transmissão. A seguir, ergueu o olhar a tempo de ver as nuvens afastarem-se e as águas negras do Atlântico preenchendo o horizonte e vindo ao seu encontro a grande velocidade.


1. Genebra, Suíça, 19 de janeiro de 2011

Alexander Cochrane percorria as ruas silenciosas de Genebra. Passava muito da meia-noite numa noite escura de inverno. A neve pairava até o chão em linha reta, reforçando os sete centímetros caídos durante o dia, mas não havia vento digno do nome e a noite mantinha-se contida e tranquila. Cochrane puxou o gorro de malha para baixo, apertou melhor o casaco de lã pesada à sua volta e enfiou as mãos até o fundo dos bolsos. A Suíça em janeiro. Esperava-se que nevasse e nevava com frequência, habitualmente apanhando-o de surpresa. Acontecia porque passava seus dias noventa metros abaixo do solo, nos túneis e na sala de controle de um enorme acelerador de partículas conhecido como Grande Colisor de Hadrões ou GCH. O GCH era gerido pelo Conselho Europeu para a Pesquisa Nuclear, entidade conhecida pela sigla CERN, as iniciais da designação francesa Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire. A temperatura na sala de controle do GCH era estabilizada nos vinte graus, a iluminação era constante e o ruído de fundo um zumbido inalterável de geradores e de energia pulsante. Algumas horas passadas lá embaixo eram como alguns dias ou algumas semanas, como se o tempo não passasse. Mas claro que passava e, frequentemente, Cochrane espantava-se ao ver como o mundo parecia diferente quando regressava à superfície. Entrara no edifício naquela manhã com céus azuis e um sol intenso, ainda que distante. Naquele momento, havia nuvens densas, pesadas e baixas, iluminadas de baixo pelo brilho alaranjado das luzes de Genebra. À volta, um manto de sete centímetros de neve que não existira doze horas antes. Cochrane caminhava sobre o tapete branco em direção à estação ferroviária. Os grandes figurões do CERN, os físicos e outros cientistas, iam e vinham em carros fornecidos pelo CERN com motoristas e bancos aquecidos. Cochrane não era físico ou especialista em teoria de partículas nem tinha qualquer outra designação semelhante. Sem dúvida que era um homem qualificado. Tinha um mestrado em teoria eletromagnética, vinte anos de experiência no ramo da transferência energética e compensação generosa pelos seus serviços. Mas a glória do CERN era reservada aos físicos e aos outros peritos que procuravam os tijolos com que fora construído o universo. Para eles,


Cochrane não era mais do que um mecânico muito bem pago. Eram mais importantes que ele. Até a máquina em que trabalhava era mais importante. Aliás, era mais importante e maior do que qualquer um deles. O Grande Colisor de Hadrões era o maior instrumento científico em todo o mundo. Os seus túneis ocupavam uma extensão circular de vinte e sete quilômetros, alongando-se para fora do território da Suíça e entrando em França. Cochrane ajudara a projetar e a construir os ímãs supercondutores que aceleravam as partículas dentro dos túneis. E, como funcionário do CERN, mantinha-os funcionais. Quando o GCH era ativado, usava uma quantidade incrível de energia, a maior parte canalizada para os ímãs de Cochrane. Depois de um esfriamento até cento e vinte e sete graus negativos, esses ímãs conseguiam acelerar protões quase até a velocidade da luz. As partículas no GCH viajavam tão depressa que percorriam os vinte e sete quilômetros onze mil vezes num único segundo. O único problema para Cochrane era a consequência de uma falha num ímã, que inutilizava todo o mecanismo durante dias ou semanas de cada vez que ocorria. Sentira-se particularmente irritado alguns meses antes quando um técnico subcontratado instalou uma placa de circuitos de qualidade inferior, que explodira quase de imediato. Continuava sem perceber. Uma máquina que custava dez mil milhões de dólares inutilizada porque alguém quis poupar alguns euros. O reparo dos estragos levara três semanas, com cada dia passado sob pressão intensa dos seus superiores. De alguma forma, a culpa passara a ser sua. A culpa era sempre sua. Mesmo que as coisas decorressem com normalidade naquele momento, os físicos e a liderança do CERN pareciam ver os ímãs como o elo mais fraco do sistema. Como resultado, Cochrane tinha rédea curta e quase parecia viver nas instalações. Enfureceu-o por um instante, mas acabou por encolher os ombros. Em breve, o problema deixaria de ser seu. Continuou a pisar na neve a caminho da estação. De certo modo, a neve tornava-se uma vantagem. Deixaria pegadas. E queria deixar pegadas naquela noite. Subiu à plataforma e viu a hora. Cinco minutos até o trem seguinte. Chegara a tempo. A plataforma estava vazia. Em cinco minutos ou menos, iria a caminho de uma nova vida, sentindo-se certo de que seria mais compensadora que a sua vida atual. Uma voz o chamou. — Alex?


Virou-se e olhou para o fundo da plataforma. Um homem subira a escadaria distante e avançava na sua direção, passando por baixo das lâmpadas de halogêneo. — Pareceu-me que eras tu — disse o homem, aproximando-se. Cochrane reconheceu-o. Era Philippe Revior, diretor-adjunto de segurança do GCH. Sentiu um aperto na garganta. Esperou que não houvesse um problema. Não naquela noite. Retirou o telefone do bolso para se assegurar de que não tinha sido convocado de volta. Não tinha mensagens. Nem chamadas por atender. Que raio faria Revior ali? — Philippe — disse Cochrane, de forma tão alegre quanto conseguiu. — Esperei que te preparasses para o teste de amanhã. — Fizemos o nosso trabalho — replicou Revior. — O pessoal da noite conseguirá lidar com o resto. Subitamente, Cochrane sentiu-se nervoso. Apesar do frio, começou a transpirar. Sentiu que a chegada de Revior não poderia ser apenas uma coincidência. Teriam descoberto alguma coisa? Saberiam o que fizera? — Esperas o trem? — perguntou. — Claro — respondeu o responsável pela segurança. — Quem dirige com esse tempo? Quem dirige com este tempo? Sete centímetros de neve era um dia normal de inverno em Genebra. Todos dirigiam com aquele tempo. Enquanto Revior se aproximava, Cochrane sentia a mente rodopiar num turbilhão. Tinha uma única certeza. O diretor-adjunto de segurança não podia ir junto. Não ali, não naquele momento. Pensou em voltar ao GCH, afirmando subitamente ter esquecido alguma coisa. Olhou para o relógio. Não tinha tempo suficiente. Sentiu-se aprisionado. — Vou contigo — disse Revior, mostrando-lhe uma garrafa de bolso. — Podemos partilhar isto. Cochrane olhou para os trilhos. Ouvia o trem chegando. Via o brilho das luzes à distância. — Eu... hmm... eu... — começou Cochrane. Antes que conseguisse terminar, ouviu passos vindos de trás. Alguém subia as escadas. Virou-se e viu dois homens. Vestiam sobretudos escuros e traziamnos abertos, expondo-se aos elementos. Durante um segundo, presumiu que fossem homens de Philippe, membros da equipe de segurança ou até agentes policiais, mas a verdade tornou-se clara pela expressão na cara de Revior. Estudava-os com suspeição. Uma vida passada a avaliar ameaças dir-lhe-ia sem dúvida o que Cochrane já sabia. Os dois


homens eram uma ameaça. Cochrane tentou pensar, tentou encontrar uma solução para evitar o que estava prestes a acontecer, mas os seus pensamentos moviam-se como melaço enregelado. Antes que conseguisse abrir a boca, os homens puxaram por armas, pistolas automáticas de cano curto. Uma foi apontada a Cochrane e a outra a Philippe Revior. — Achaste que confiaríamos em ti? — perguntou o líder da dupla a Cochrane. — O que é isto? — perguntou Revior. — Cala-te — disse o segundo homem, erguendo a arma na sua direção. O líder dos dois gorilas segurou Cochrane pelo ombro e puxou-o para si. A situação descontrolava-se. — Vens conosco — disse o homem. — Garantiremos que sairás na paragem certa. Enquanto o segundo gorila se ria e fitava Cochrane, Revior atacou, golpeando-o com um joelho entre as pernas e lançando-o ao chão. Cochrane não sabia o que fazer, mas, quando o líder se voltou para disparar, segurou-lhe o braço e empurrou-o para cima. A arma disparou e o tiro ecoou pela escuridão. Obrigado a lutar, projetou-se para diante, fazendo o adversário maior e mais corpulento cair, rolando com ele no chão. Um golpe na cara com as costas da mão atordoou-o. Uma cotovelada violenta nas costelas fê-lo tombar para o lado. Quando se ergueu, viu Revior cabeceando o segundo gorila. Depois de o inutilizar, correu e lançou-se sobre o líder, que acabara de se libertar de Cochrane. Disputaram a arma, trocando vários golpes violentos. Um som trovejante começou a aproximar-se quando o trem contornou a curva a quatrocentos metros da estação. Cochrane ouvia os freios guinchando enquanto as rodas de metal se aproximavam. — Alex! — gritou Revior. O atacante conseguira virá-lo e tentava apontar-lhe a arma à cabeça. O velho diretor de segurança mantinha a pistola afastada com todas as suas forças. A seguir, aproximou-a, num movimento que pareceu surpreender o adversário. Cravou-lhe os dentes na mão e o gorila recuou instintivamente o braço. A arma voou-lhe da mão e caiu sobre a neve ao lado de Cochrane. — Atira! — berrou Revior, segurando o atacante e tentando imobilizá-lo. O ruído do trem ecoava nos ouvidos de Cochrane juntamente com o seu batimento cardíaco acelerado enquanto estendia a mão para a arma. — Atira! — repetiu Revior.


Olhou para os trilhos. Não tinha mais que alguns segundos. Tinha de escolher. Mirou o atacante. A seguir, baixou a mira e atirou. A cabeça de Philippe Revior foi projetada para trás e um jorro de sangue salpicou a plataforma coberta de neve. Revior estava morto e o homem de sobretudo cinza não perdeu tempo em arrastá-lo para as sombras, escondendo-o atrás de um banco enquanto o trem cada vez mais próximo passava um aglomerado de árvores ao fundo da estação. Sentindo-se capaz de vomitar, Cochrane enfiou a pistola nas calças e cobriu-a com a camisa. — Deviam ter recuado — disse Cochrane. — Não podíamos — respondeu o seu pretenso atacante. — Não havia plano de contingência para esta situação. O trem deslizava junto à plataforma, remexendo a neve e criando uma brisa. — Devia ter parecido um sequestro — gritou Cochrane sobre o ruído. — E assim será — assegurou o homem. Moveu rapidamente a mão direita e atingiu Cochrane na têmpora, fazendo-o cair e chutando-o nas costelas. O trem parou a seu lado e os dois atacantes ergueram Cochrane e o arrastaram para a escada. Cochrane sentia-se zonzo enquanto o levavam, desorientado e confuso. Ouviu um par de tiros disparados e alguns gritos dos passageiros que saíam do trem quase vazio. Quando deu por si, estava nas traseiras de uma van, olhando pela janela enquanto percorriam ruas a grande velocidade com a neve caindo.


2. Atlântico Oriental, 14 de junho de 2012

As águas do Atlântico Oriental ondulavam suavemente enquanto o Kinjara Maru se dirigia para o norte, na direção de Gibraltar e à entrada do Mediterrâneo. O navio seguia a oito nós, metade da sua velocidade máxima, mas era a velocidade mais eficiente em termos de gasto de combustível. O capitão Heinrich Nordegrun encontrava-se dentro da ponte de comando climatizada, com os olhos fixos na tela do radar. O clima era favorável e havia pouco tráfego. Não havia navios à sua frente e um único atrás, à distância de dez milhas. Um TCGD, Transportador de Crude de Grandes Dimensões, habitualmente conhecido como superpetroleiro. Os TCGD eram os maiores navios a cruzar os mares, maiores do que porta-aviões americanos, demasiado grandes para usarem os canais do Panamá e do Suez e ultrapassando com frequência as quinhentas mil toneladas com a carga máxima. Mas o navio que os seguia estaria vazio, avaliando pela sua velocidade. Nordegrun tentara comunicar com o petroleiro. Gostava de saber quem estava por perto, sobretudo em águas questionáveis. Ali, junto à costa ocidental africana, as coisas não eram tão inseguras como podiam ser do outro lado do continente, junto à Somália. Mas continuava a ser recomendável contactar os outros navios e descobrir o que sabiam e o que tinham ouvido. O navio não respondera, mas não o surpreendeu realmente. Algumas tripulações comunicavam, outras não. Esquecendo o petroleiro, olhou pelas janelas à sua frente. O mar aberto e a noite tranquila tornavam a viagem agradável. — Velocidade de doze nós — disse. O timoneiro, um filipino chamado Isagani Talan, respondeu: — Sim, capitão. A situação das marinhas mercantes mundiais era tal que Nordegrun, um cidadão norueguês, capitaneava uma embarcação registrada nas Bahamas, construída na Coreia do Sul, propriedade de uma empresa japonesa e com tripulação constituída maioritariamente por marinheiros filipinos. Para coroar a natureza cosmopolita da viagem, transportavam uma carga de minerais africanos destinados a uma fábrica chinesa.


Quem visse a situação de fora, consideraria que era loucura, mas a única coisa que importava era que os intervenientes conhecessem bem o seu trabalho. Nordegrun navegara com Talan durante dois anos e depositava nele total confiança. A vibração do navio alterou-se quando os motores reagiram à ordem. Nordegrun moveu o olhar do radar para um monitor à sua frente. Estava colocado na horizontal, sobre uma bancada, como os mapas de antigamente, mas era uma moderna tela de toque de alta definição. Mostrava o mar em volta e posição, rumo e velocidade do navio. Tudo parecia bem à distância, mas, com um toque na tela, conseguiu ampliar a imagem e ver que uma corrente para sul os afastara quatrocentos e cinquenta metros da rota. Não há motivo para preocupação, pensou Nordegrun. Mas, se a perfeição é possível, por que não tentar alcançá-la? — Dois graus para bombordo — disse. Talan posicionava-se diante de Nordegrun na ponte de comando junto ao painel de controles do navio. Também não se parecia nada com os comandos de um navio clássico. Não havia sinal da grande roda de leme ou da imagem de um homem girando-a para um lado e para o outro para mudar o rumo. Longe iam os tempos do telégrafo, a grande alavanca de latão que transmitia as mudanças de velocidade à casa das máquinas. Ao invés, Talan sentava-se numa cadeira alta com uma tela de computador na frente. A roda fora substituída por um pequeno manípulo de aço e a velocidade era controlada por uma alavanca semelhante em tamanho à alavanca das mudanças de um automóvel. Enquanto Talan procedia aos ajustamentos, sinais eletrônicos eram transmitidos às unidades de controle do leme e aos motores na popa do navio. A mudança de rumo foi tão ligeira que não foi perceptível pelos sentidos, mas o capitão viu-a na tela. Demorou vários minutos, mas o grande navio voltou à rota e prosseguiu com a nova velocidade. Satisfeito, Nordegrun ergueu o olhar. — Mantém-nos nesta rota — disse. — Já que nos deram todo este equipamento avançado, será melhor que o usemos. — Sim, capitão — respondeu Talan. Com o navio novamente no rumo certo, Nordegrun conferiu o cronômetro. Passavam das dez horas locais e o terceiro turno iniciara funções. Confiante de que a embarcação estaria em boas mãos, olhou para o oficial de serviço. — É todo teu — disse-lhe. Virou-se para descer, conferindo uma última vez a posição do petroleiro que


os seguia. Este acompanhara a mudança de rumo do Kinjara Maru e, estranhamente, acelerara também para doze nós. — Macacos de imitação — murmurou enquanto saía. Dirigindo-se para a popa, forçou os olhos para tentar ver na escuridão. Conseguia avistar as luzes do navio que os seguia. Tinham uma cor estranha, pensou. Eram de um branco-azulado, como os faróis de alta intensidade dos modernos carros de luxo. Nunca os vira antes num navio, mesmo à distância. Pensava na luz amarelada ou branca emitida por lâmpadas incandescentes ou fluorescentes. Mas, anos antes, também ninguém acreditara na possibilidade de um navio ser manobrado por um computador. Passou a escotilha e fechou-a. Descendo os degraus a caminho dos seus aposentos, sentiu-se animado. Ao contrário do que sucedera a gerações anteriores, era-lhe permitido e aos outros oficiais trazerem familiares para bordo. A sua esposa (casara dois anos antes) esperava-o lá embaixo, juntando-se a ele pela primeira vez no mar. Iria com ele até o Cairo, onde desembarcaria e voaria para casa enquanto o Kinjara Maru passasse o Canal do Suez. Pensou que seria uma boa semana. Férias não oficiais. Se acelerasse o passo, teria tempo para se juntar a ela na messe do navio. Quando chegou ao convés inferior, as luzes que iluminavam as escadas diminuíram. Olhou para cima. Os filamentos da lâmpada incandescente sobre a porta pareciam brasas prestes a extinguir-se. Mais acima, os tubos fluorescentes começaram a piscar com intervalos irregulares. Voltaram ao normal no segundo seguinte, mas Nordegrun não teve qualquer dúvida de que teriam um problema qualquer com o gerador. Contrariado, virouse para subir novamente. A luz voltou a diminuir e, a seguir, aumentou de intensidade até as lâmpadas brilharem com intensidade cegante. Os tubos fluorescentes fizeram um ruído estranho e estilhaçaram-se em simultâneo, cobrindo-o com pedaços de vidro. Na parede, a lâmpada incandescente fundiu-se com um estalido sonoro, iluminando as escadas com um clarão elétrico azulado que antecedeu a escuridão. Nordegrun segurou o corrimão, chocado e surpreso. Nunca vira nada assim. Sentiu que o navio se movia como se efetuasse uma curva apertada. Sem fazer ideia do que se passaria, correu pelas escadas escuras e seguiu em frente. Havia luzes a explodir por todo o navio. Sentiu uma pontada dolorosa no pescoço e no queixo. Pensou que seria a tensão, a reação ao inesperado provocada pelo problema repentino com o seu navio.


Irrompeu pela ponte de comando dentro. — Que raio se passa? — gritou. Nem Talan nem o oficial de serviço responderam. Talan estava ocupado a berrar para o intercomunicador do navio. O oficial debatia-se com o computador, pressionando em desespero as teclas dos controles de emergência enquanto o navio continuava a virar. Nordegrun avistou o indicador de leme completamente virado para bombordo. No instante seguinte, a tela tremeu e ficou vazio. Saíram faíscas de outro instrumento e, subitamente, a dor na cabeça do capitão agravou-se. Quase em simultâneo, o oficial de serviço caiu ao chão, segurando a cabeça e gemendo de dor. — Talan — gritou Nordegrun. — Desce. Procura a minha mulher. O timoneiro hesitou. — Agora! Talan deixou o seu posto enquanto Nordegrun erguia o rádio do navio e tentava transmitir. Pressionou o botão que permitia falar, mas o rádio emitiu um guincho agudo. Estendeu a mão para outro instrumento e sentiu um ardor súbito no peito. Olhando para baixo, viu que os botões do seu casaco estavam incandescentes. Segurou um e puxou, mas queimou a mão. O ruído na cabeça não parava de aumentar e caiu ao chão. Até com as pálpebras cerradas, viu estrelas e clarões luminosos como se alguém lhe pressionasse os olhos com os polegares. Um estalo na cabeça fê-lo começar a sangrar do nariz. Algo nas suas fossas nasais se rompera. Abriu os olhos e viu que a ponte de comando se enchia de fumaça. Rastejou para a porta. Com o sangue a escorrer-lhe pela face abaixo, empurrou a escotilha e conseguiu sair parcialmente. Enquanto o fazia, o ruído na sua cabeça tornou-se um grito. Caiu no convés, com a cara voltada para a popa. Atrás dele, algo que parecia eletricidade alongava-se do corrimão à estrutura do navio. Mais além, viu que o navio com as luzes estranhas continuava a segui-los. Permanecia a dez milhas de distância, mas via-o dez vezes mais iluminado, como se estivesse coberto de fogo de santelmo. A mente de Nordegrun encontrava-se tão abalada que não conseguiu fazer nada além de olhar fixamente. A seguir, o seu corpo ficou rígido com algum tipo de convulsão, a dor aumentou além de qualquer limite imaginável e gritou enquanto a pele lhe irrompia em chamas.


3. Atlântico Oriental, 15 de junho

Enquanto o amanhecer alastrava sobre o Atlântico, Kurt Austin mantinha-se junto à proa do navio Argo da NUMA, limpando o suor da cara com uma toalha. Completara cinquenta voltas em redor do convés principal. Mas, como o convés não contornava todo o navio, fora forçado a entrar no fim de cada volta, correndo por dois lances de escadas acima e atravessando o cadaste. A seguir, descera dois lances e voltara a sair para iniciar nova volta. Teria sido muito mais fácil exercitar-se no ginásio, correndo oito quilômetros na passadeira rolante, seguindo-se uma subida no StairMaster, mas estavam em alto-mar e, para Austin, o mar sempre significara liberdade. Liberdade para vaguear e explorar o mundo, liberdade do trânsito, da poluição e da existência muitas vezes claustrofóbica da vida urbana moderna. Ali, com a promessa do amanhecer sobre o horizonte, não pretendia trancar-se numa sala apertada e sem janelas para fazer os seus exercícios matinais. Mesmo que tivesse ar condicionado. Vestindo moletom preto e camiseta cinza desbotada com o logotipo da NUMA, Kurt se sentia tão bem quanto conseguia imaginar. Passava de um metro e oitenta, tinha ombros largos e cabelo encaracolado grisalho que, por vezes, parecia quase platinado. Considerava ter olhos azuis, mas, ao que parecia, tinham uma tonalidade peculiar como muitas pessoas (sobretudo as mulheres da sua vida) tentaram explicar-lhe. Aproximando-se do seu quadragésimo aniversário, Kurt passara a aplicar-se mais no exercício físico. Sempre estivera em forma. Uma carreira na Marinha e vários anos integrando uma equipe de resgates secretos da CIA exigiram-no. Mas, prestes a completar a quarta década de existência, mostrou-se determinado em alcançar a melhor forma física da sua vida, superior à dos seus trinta anos e até a dos vinte. Era um projeto ambicioso. Exigia muito trabalho, provocava mais dores e revelava-se mais lento na concretização do que quando fora mais jovem. Mas estava quase lá. Cinco quilos mais leve do que no ano anterior, fazendo mais flexões e abdominais e levantando pesos mais elevados no ginásio, sentia a força a voltar aos níveis da sua juventude, quando acreditava ser capaz de fazer qualquer coisa.


Também era necessário. Uma carreira na NUMA exigia grandes níveis de esforço físico. Além do trabalho intensivo de qualquer operação de resgate submarino, também era espancado, alvejado e quase afogado com regularidade. Após algum tempo, as mossas começavam a acumular-se. Um ano antes, ponderara aceitar uma oferta para voltar a trabalhar para o seu pai, proprietário de uma afamada empresa de resgates. Mas pareceu-lhe que isso seria resignar-se a condições alheias e, se havia coisa que Kurt Austin não fazia, era seguir rumos além do seu próprio. Fitou o horizonte que passava de um roxo intenso para um azul-cinza pálido. A luz intensificava-se mesmo que o sol ainda não tivesse mostrado a face. Alongou-se e virou-se, tentando fazer estalar as costas. Sobre a amurada de estibordo, algo captou a sua atenção. Uma fina coluna de fumaça erguendo-se para o alto. Não a vira durante a corrida, obscurecida pela escuridão, mas não se tratava de uma ilusão. Semicerrou os olhos e forçou a vista, mas a penumbra da aurora não lhe permitia avistar a origem da fumaça. Olhou uma última vez e dirigiu-se para as escadas. Entrou na ponte de comando e encontrou o capitão Robert Haynes, comandante do Argo, junto ao oficial de serviço, a traçar o rumo para os Açores, onde a equipe da NUMA participaria numa corrida semelhante às promovidas pela Fundação X Prize para coroar o submarino com dois tripulantes mais rápido do mundo. Era uma operação fácil. Uma missão exclusivamente de investigação atribuída a Kurt e ao seu parceiro, Joe Zavala, como recompensa pelo esforço intenso em missões recentes. Joe estava já na ilha de Santa Maria, ocupando-se dos preparativos, e, como Kurt supôs, fazendo amigos, sobretudo entre as mulheres. Ansiava pelo reencontro, mas, antes que as miniférias pudessem iniciar-se, teriam de fazer um ligeiro desvio. Haynes não ergueu os olhos dos mapas. — Já se fartou de me gastar o convés? — perguntou. — Por agora — replicou Kurt. — Mas teremos de mudar o rumo para umnove-zero. O capitão ergueu brevemente o olhar e voltou a baixá-lo para a mesa dos mapas. — Já lhe disse antes, Kurt. Se deixar cair alguma coisa borda fora, terá de nadar se a quiser recuperar. Kurt esboçou um sorriso breve, mas a situação era séria. — Há uma coluna de fumaça a estibordo — disse. — Não há fumaça sem


fogo. E não me parece que seja um churrasco. O capitão endireitou-se, com a expressão bem-humorada a desaparecer-lhe da face. Um incêndio em alto-mar era algo incrivelmente perigoso. Os navios enchiam-se com tubos e dutos transportando líquidos inflamáveis como combustível e fluido hidráulico. E transportando frequentemente cargas perigosas ou mesmo explosivas: petróleo, gás natural, carvão, químicos variados e até metais capazes de arder, como o magnésio e o alumínio. Além disso, ao contrário de um incêndio em terra, não existe num navio um local seguro para onde fugir a não ser que se abandone a embarcação, a última opção na lista de qualquer comandante. Kurt sabia-o, tal como qualquer outro homem a bordo do Argo. O capitão Haynes não hesitou nem tentou confirmar a veracidade da afirmação de Kurt. Virou-se para o timoneiro. — Vire-nos — disse. — Rota um-nove-zero. Velocidade máxima. Enquanto o timoneiro executava a ordem, o capitão ergueu um par de binóculos e dirigiuse para o extremo da ponte de comando voltado para estibordo. Kurt seguiu-o. O Argo encontrava-se relativamente próximo do equador e, em tais latitudes, o dia clareava rapidamente. Kurt conseguia já ver a fumaça com clareza mesmo sem binóculos. Espesso e escuro, erguia-se para o alto numa coluna vertical estreita, tornando-se menos denso apenas de forma marginal enquanto se erguia e inclinando-se ligeiramente para leste. — Parece ser um cargueiro — afirmou o capitão Haynes. Passou os binóculos a Kurt, que os fixou no navio. Era uma embarcação de tamanho médio. Não um navio de contêineres, mas de carga convencional. Parecia à deriva. — É fumaça de combustível — disse. — O navio está completamente coberto, mas a fumaça é mais densa na popa. — Incêndio na casa de máquinas — considerou Haynes. — Ou um problema num dos compartimentos de combustível. Teria sido também o palpite de Kurt. — Captou algum pedido de auxílio? O capitão Haynes sacudiu a cabeça. — Nada. Apenas comunicações corriqueiras. Kurt pensou se o incêndio poderia ter destruído o sistema elétrico. Mas, mesmo que tivesse acontecido, a maioria dos navios tinha sistemas elétricos alternativos e qualquer embarcação com aquelas dimensões teria alguns rádios transmissores portáteis, um sinalizador de emergência e até rádios nos salvavidas principais. Não ouvir nada de um navio de cento e cinquenta metros em chamas e à deriva parecia impossível.


O Argo completara a mudança de direção e dirigia-se em linha reta para o navio em apuros. A velocidade aumentava e Kurt sentia que cortavam as ondas. O Argo era capaz de alcançar trinta nós em mar calmo. Calculou que a distância que os separava do alvo seria ligeiramente superior a cinco milhas, menor do que inicialmente julgara. Isso era positivo. Mas, dez minutos depois, enquanto fixava os binóculos na estrutura do navio e aumentava a ampliação, avistou várias coisas muito menos positivas. Saíam línguas de chama por várias escotilhas distribuídas sobre o convés, significando que todo o navio ardia e não apenas a casa das máquinas. Era evidente que se inclinava para bombordo e que tinha a proa mais baixa, significando que, além do incêndio, também se enchia de água. O pior de tudo era a presença de homens no convés que pareciam arrastar algo para a amurada. A princípio, Kurt pensou que pudesse ser um tripulante ferido, mas, logo a seguir, largaram-no, deixando-o cair sobre o convés. O homem tombou como se tivesse sido empurrado e ergueu-se novamente logo a seguir, começando a correr. Deu três ou quatro passos, acabando por cair subitamente para diante. Kurt moveu os binóculos para a direita para ter a certeza. Via claramente um homem empunhando uma espingarda de assalto. Viu o clarão no cano sem ouvir qualquer som. Uma rajada e outra logo a seguir. Voltou a olhar para o homem caído. Estava completamente imóvel, deitado de bruços sobre o convés. Piratas, pensou Kurt. Bandidos com armas automáticas. Os problemas do cargueiro eram ainda mais graves do que pensara. Baixou os binóculos, plenamente consciente de que se dirigiam para algo mais do que um simples resgate. — Capitão — começou —, os nossos problemas acabam de se multiplicar.


4. A bordo do Kinjara Maru, Kristi Nordegrun estava envolta pela escuridão. Um estranho ruído enchia-lhe os ouvidos e a cabeça palpitava-lhe como se tivesse passado toda a noite a beber. Estava deitada no chão, com os braços doridos e presos sob o corpo num ângulo desconfortável. Por mais que tentasse, não conseguia sequer recordar como chegara ali e muito menos o que acontecera. Baseando-se na dormência das pernas, calculou que passara muito tempo naquela posição. Ainda incapaz de se pôr de pé, ergueu-se contra a parede, alcançando com grande esforço um equilíbrio instável. Estava na parte mais profunda dos aposentos da tripulação, vários lances de escada abaixo do convés principal e próxima do centro da embarcação. Viera para ali porque era onde ficava o refeitório e encontraria o marido para um jantar tardio antes de se retirarem para dormir. Olhou em volta, mas não o viu. Isso a preocupou. Se tivesse passado algum tempo inconsciente, certamente teria sido encontrada pelo marido. Mas, se o navio se encontrasse em situação de apuro, o seu primeiro dever seria como capitão. Percebeu o cheiro de fumaça. Não recordava qualquer explosão, mas não havia dúvidas de que o navio se encontrava em chamas. Lembrava-se de ter ouvido ao marido que havia partes do mundo onde terroristas colocavam minas aquáticas. Mas parecera-lhe que não o preocupara que pudesse acontecer durante aquela viagem. Tentou novamente ficar em pé e derrubou uma mesa com latas de refrigerante. Na escuridão, ouviu um ruído estranho, como se tivesse sido provocado por berlindes a rolar. O barulho afastou-se dela, mas prosseguiu até terminar com vários ruídos secos. Nesse momento, Kristi percebeu o que acontecera. As latas rolavam para longe dela, ganhando velocidade até baterem na parede. Não duvidava que o seu equilíbrio estava abalado, mas o equilíbrio do chão também. O navio inclinava-se. Sentiu crescer o pânico. Percebeu que o navio se afundava. Rastejou até a parede, chocou contra ela e seguiu-a até a porta. Empurrou-a. Esta moveu-se alguns centímetros e embateu contra algo macio. Voltou a empurrar, pressionando com o ombro e conseguindo movê-la mais alguns centímetros. Tentando esgueirar-se pela abertura, percebeu que o objeto que


bloqueava a porta era o corpo caído de um homem. Enquanto empurrava, o homem moveu-se um pouco, rolando e gemendo. — Quem é? — perguntou. — Está ferido? — Sra. Nordegrun — conseguiu dizer o homem. Reconheceu a voz. Era um dos tripulantes que acompanhavam o seu marido na ponte de comando. Um homem simpático das Filipinas. O marido dissera-lhe que viria a ser um bom oficial no futuro. — Sr. Talan? Sentou-se. — Sim — respondeu. — Está bem? — Não consigo se equilibrar — disse. — Acho que estamos afundando. — Aconteceu alguma coisa — disse. — Temos de abandonar o navio. — E meu marido? — Está na ponte — respondeu Talan. — Me mandou vir ajudar. Consegue chegar às escadas? — Consigo — disse. — Mesmo que precise rastejar. — Será melhor assim — disse ele, encontrando-lhe a mão e guiando-a na direção certa. — Sim — concordou ela. — Temos que ficar abaixo da fumaça se conseguirmos. Antes de se casar, Kristi fora paramédica e enfermeira numa unidade de traumatizados. Estivera presente em muitos acidentes e incêndios e até no desmoronamento de um edifício. E, apesar do medo e da confusão que sentia, a sua formação e experiência ativavam-se e tomavam conta dos acontecimentos. Juntos, começaram a rastejar. Quinze metros mais à frente, encontraram outro tripulante, mas não conseguiram despertá-lo. Kristi receou o pior, mas teve de se certificar. Procurou o pulso do homem. — Está morto. — Como? — perguntou Talan. Não sabia. Não conseguia encontrar nele quaisquer marcas e o pescoço parecia não estar ferido. — Talvez a fumaça? A fumaça estava mais densa ali, mas não parecia suficientemente densa para matar. Kristi largou a mão do morto, deixando-a cair no peito, e os dois continuaram a rastejar. Alcançaram as escadas e empurraram a porta. Para alívio de Kristi, havia menos fumaça do outro lado e conseguiu se apoiar no corrimão para se levantar. Enquanto começavam a subir, um fino feixe de luz atingiu-os vindo do alto. No corredor, algumas luzes de emergência funcionavam e outras não. A


princípio, Kristi calculou que o feixe de luz viria de uma das luzes nas escadas, mas tinha qualquer coisa de estranho. A luz era mais branca, mais natural e parecia aumentar e diminuir de intensidade esporadicamente. Dois pisos acima, alcançaram uma porta com uma janela de vidro temperado. Kristi supôs que a luz viria daí, mas não lhe fazia grande sentido. Escurecera antes de se dirigir à messe do navio. Como podia haver luz do dia? Sabia que teria de existir outra explicação. Continuou a subir, tentando acompanhar Talan. Quando chegaram ao topo, a luz do dia entrava vinda do exterior, obscurecida ocasionalmente pelas nuvens de fumaça que passavam. — É manhã — disse, espantada. — Teremos passado muitas horas inconscientes — disse Talan. — E ninguém veio procurar-nos? — perguntou, sentindo despertar o medo no coração ao considerar as implicações. Não parecia possível que tivesse passado tanto tempo ou que ninguém tivesse ido procurá-los, mas, baseando-se no que via, só poderia ser verdade. Avançou e quase perdeu o equilíbrio. Talan segurou-a e ajudou-a a encostar-se à parede. — Espere — disse-lhe. — Estou bem — murmurou ela. Talan libertou-a e dirigiu-se à porta, tocando-a para verificar se estaria quente. Kristi notou que o vidro da janela estava deformado e descolorido como cera derretida. — Está tudo bem — disse Talan. — Não há fogo. Empurrou a porta, fazendo-a guinchar enquanto abria. Saiu e gesticulou-lhe que o seguisse. Ela seguiu-o e amparou-se na amurada. Enquanto Talan olhava para a proa, tentando avaliar a condição do navio, viram um homem surgir da fumaça, quase vinte metros mais atrás. Era corpulento, tinha ombros largos e vestia-se de preto. Kristi não recordou alguém na tripulação que se vestisse de preto. O homem se virou para eles e ela percebeu que ele empunhava uma metralhadora. Abriu a boca, chocada. E, talvez por instinto, Talan empurrou-a para o chão no momento em que a metralhadora disparou. Olhou, indefesa, enquanto o peito dele ficava cravado de balas. Talan caiu para trás, tombando sobre a amurada e caindo ao mar. Kristi lançou-se para a porta e puxou-a, mas, antes que conseguisse abrir, o homem que surgira da fumaça estava a seu lado. Fechou a porta com violência, empurrando-a com uma bota pesada.


— Não, querida — disse, com um rosnado claro. — Vens comigo. Kristi tentou se afastar, mas o homem esticou uma grande manopla, segurou-a pelo colarinho e puxou-a até ficar em pé. Kurt Austin erguia-se na ponte de comando do Argo enquanto o navio deslizava sobre as águas. Com uma velocidade de trinta nós, a proa cortava o oceano em dois, criando ondas e projetando borrifos ao vento. Lençóis de água ergueram-se e caíram, cobrindo a superfície com manchas de espuma que depressa eram deixadas para trás. Estudou o cargueiro em apuros com os binóculos. Vira homens movendo-se de escotilha em escotilha, largando granadas ou outro tipo de explosivo no interior, uma após outra. — É muito estranho — considerou. — Parece que pretendem afundar o navio. — Com piratas, nunca se sabe — afirmou o capitão Haynes. — Nunca — concordou Kurt. — Mas, normalmente, querem dinheiro. Dinheiro de resgates ou a possibilidade de vender a carga no mercado negro. Não poderão fazê-lo se o navio for ao fundo. — Bem visto — disse Haynes. — Talvez levem a tripulação. Kurt voltou a observar demoradamente o convés. O bloco onde se situavam os aposentos e restantes estruturas para uso da tripulação erguia-se na popa. A estrutura, a que alguns marinheiros chamavam “castelo”, tinha cinco andares e erguia-se do convés como um edifício de apartamentos. Erguia-se de forma orgulhosa, mas o convés dianteiro do navio estava pouco acima da água, com a extremidade da proa a cerca de um metro de ficar submersa. O fogo e a fumaça não lhe permitiam ver muito mais. — Vi-os abaterem pelo menos uma pobre alma — disse. — Talvez houvesse um passageiro importante a bordo e os outros fossem dispensáveis. Seja como for, duvido que se rendam. — Temos três botes prontos para partir — informou Haynes. — O bote rápido e dois balizadores. Quer participar? Kurt pousou os binóculos. — Não acreditou que eu aceitasse ficar olhando, certo? — Então desça ao arsenal — disse o capitão. — Estão preparando uma equipe de abordagem agora mesmo. A bordo do Kinjara Maru, o líder corpulento do bando “pirata” arrastrou Kristi Nordegrun sobre o convés. Chamava-se Andras, mas, ocasionalmente, seus homens o chamavam de “Faca” porque adorava brincar com lâminas afiadas. — Por que faz isso? — perguntou ela. — Onde está meu marido?


— Teu marido? — repetiu ele. — O capitão do navio. Andras sacudiu a cabeça. — Desculpa, querida. Podes te considerar solteira outra vez. Ouvir aquilo a fez se lançar sobre ele, golpeando seu rosto. Foi como se tivesse esmurrado uma parede de pedra. Ele se esquivou do golpe, jogou-a no convés e puxou um de seus brinquedos preferidos, uma navalha de mola com uma lâmina de titânio de doze centímetros. Abriu-a e apontou. Ela se encolher. — Se me irritas, abro-te com isto — disse. — Percebes? Ela acenou lentamente com a cabeça. O medo era bem visível em seus olhos. Na verdade, Andras não queria cortá-la. Valia muito mais com a cara intacta, mas não precisava contar. Assobiou aos seus homens. Com a tripulação morta e o navio a afundar-se, a última parte de um trabalho longo estava concluída. Chegara o momento de as ratazanas abandonarem o barco. Reuniram-se em seu redor e um deles, um homem de aparência desleixada com dentes amarelos e uma cicatriz no lábio superior provocada por um anzol, dedicou especial atenção a Kristi. Baixou-se e tocou-lhe o cabelo. — Bonita — considerou, esfregando-lhe as madeixas douradas entre os dedos. No mesmo instante, uma bota pesada atingiu-o na cabeça. — Para trás — disse-lhe Andras. — Este prêmio é meu. Com uma nova marca na cara e uma expressão chocada, Anzol afastou-se como um cão chutado. — Que fará comigo? — perguntou Kristi com uma intensidade surpreendente. Andras sorriu. Ia se servir dela e, depois, vendê-la no mercado negro. Um belo bônus para acrescentar ao dinheiro recebido pelo trabalho. Mas também não precisava de lhe dizer isso. Ignorando a pergunta, guardou a navalha e agachou-se junto a ela. Prendeulhe as mãos com arame, rodeando-lhe os pulsos várias vezes antes de torcer as extremidades. Amordaçou-a com um pedaço de pano. Aquilo mantê-la-ia calada. Antes que se levantasse, uma voz gritou do alto. — Navio à vista! Parece um cúter ou uma fragata. Andras ergueu a cabeça. Tentou ver através da fumaça densa. Não conseguia ver nada. — Onde, maldito imbecil? — gritou. — Dá uma direção.


— Oeste-noroeste — gritou o homem. Andras continuou a forçar a vista, procurando entre a fumaça e a fuligem. Um navio de grandes dimensões se aproximando não era uma boa notícia, mas algo ainda pior captou sua atenção. Um rastro branco fino perto do casco do Kinjara. Conseguia vê-lo nos vãos entre a fumaça. Alongava-se para a dianteira do navio, onde desaparecia entre nuvens escuras. Olhou para a proa submersa em meio metro de água. Um segundo mais tarde, a névoa dissipou-se por um momento e um bote inflável surgiu, deslizando diretamente para a proa. Dois homens estavam deitados na frente, mirando e disparando metralhadoras Ml6. Andras viu dois dos seus homens caírem e outro ser atingido e cambalear. Os restantes procuraram abrigo enquanto o bote rápido encostava ao convés, perto da segunda escotilha de carga do Kinjara. Vários homens fardados saíram de ambos os lados do bote enquanto um dos atiradores, um homem com cabelo branco, mirava e disparava com eficácia letal. Mais dois homens de Faca caíram antes que o atirador rolasse para fora do bote, abrigando-se atrás da cobertura aberta de uma das escotilhas de carga. — Americanos — praguejou Andras. De onde teriam aparecido?


5. Num ápice, o convés do cargueiro tornou-se um campo de batalha. Balas e cartuchos vazios voavam em todas as direções. Andras moveu-se rapidamente, segurando Kristi e puxando-a para trás. Acrescentou rajadas ocasionais ao que se tornou um tiroteio furioso, mas o seu plano era fazer mais do que limitar-se a lutar. Enquanto recuava, avaliou corretamente a situação: um ataque inesperado. Os americanos tinham avançado, eliminando meia dúzia dos seus homens, mas estavam agora presos no convés, rodeados por uma espécie de fogo cruzado enquanto o navio ardia e se afundava lentamente. Supôs que não o teriam feito de forma intencional, a não ser que esperassem reforços. O som de um alto-falante ecoou do cúter cada vez mais próximo. — Pousem as armas e rendam-se — exigiu uma voz autoritária. Não tendo intenção de fazer algo semelhante, Andras apercebeu-se do perigo que corria. Mas era um homem que fizera carreira com a transformação de desvantagens em situações favoráveis. Alcançou uma das gruas de carga. Segurando o gancho que dela pendia, colocou-o sob o arame com que prendera as mãos de Kristi. Pressionou o interruptor e foi recompensado com o ruído da bomba hidráulica entrando em funcionamento. Antes de a fazer subir, arrancou-lhe a mordaça. Olhou-o. — Vais querer gritar — disse-lhe. — Acredita. Com isto, empurrou a alavanca e a grua ganhou vida e puxou-a para cima, começando a fazê-la balouçar sobre o campo de batalha para que todos a vissem. Kurt Austin agachava-se atrás de uma cobertura de escotilha metálica. O seu plano de contornar a proa do navio e de subir por ela acima de forma muito literal fora astucioso. Com a fumaça rodeando e o Argo se aproximando da direção oposta, Kurt e seus homens surpreenderam os piratas, entrando de rompante no convés e abatendo de imediato vários inimigos. A única falha no plano fora o número de piratas. Eram muitos mais do que esperara, mais de uma dúzia, talvez aproximando-se dos vinte. Os que tinham sobrevivido abrigaram-se e conseguiram impedir-lhes a movimentação. Mais cedo ou mais tarde, os dois botes restantes do Argo chegariam, dandolhes vantagem numérica, mas, até lá, passariam por momentos difíceis. Ouviu um estalido vindo do rádio preso ao cinto. Era uma chamada de um


dos botes. — Kurt, aproximamo-nos da popa. Sem resistência até agora. Não teve tempo de responder com os tiros que começaram a ricochetear da escotilha atrás de si. Agachou-se mais ainda, tentando ver de onde vinham. Antes que conseguisse decidir o que fazer a seguir, ouviu um grito feminino. Ergueu o olhar e viu uma mulher na casa dos trinta pendurada do gancho de uma grua. Segundos mais tarde, uma voz elevou-se sobre o frenesim. — Estamos prontos para acabar com esta loucura? — gritou a voz. Kurt não ergueu a cabeça, pois essa seria a melhor forma de ficar sem ela, mas as armas em redor silenciaram-se. Olhou para a mulher. Escorria-lhe sangue pelos braços, manchando-lhe a roupa. — Agora que tenho sua atenção — trovejou a voz —, vão me deixar sair desta banheira fedorenta com meus homens ou arrebento esta mulher como se fosse uma piñata. Kurt olhou em redor, o suor e a fumaça ardendo em seus olhos. Viu água começando a cobrir seus tornozelos e, a vários metros de distância, escorria numa escotilha de carga aberta. O navio afundava a grande velocidade. A proa já estava completamente submersa com apenas alguns pontos elevados erguendo-se como árvores mortas num campo inundado. Pior ainda, enquanto a água enchia os compartimentos de carga dianteiros, o peso naquela seção do navio aumentaria rapidamente. Em minutos, o Kinjara Maru passaria de uma lenta submersão para um mergulho a pique na direção do abismo. — Estou à espera! — gritou o homem escondido. — Kurt? — perguntou uma voz pelo rádio. — Que queres fazer? Kurt voltou a olhar para a mulher. — Mantenham as posições — disse para o rádio. — Então? — berrou a voz desconhecida, exigindo uma resposta. — Está bem — gritou Kurt em resposta. — Leva os teus homens e desaparece. — Gritou aos homens que o acompanhavam: — Não disparem e deixem-nos partir. Quase instantaneamente, ouviu movimento. Os piratas afastavam-se. — Alguém o vê? — sussurrou para o rádio. — Tem de estar num ponto alto. Alguém terá arriscado olhar porque se ouviu um tiro. Ouviu-se um gemido pelo rádio. — Não vale espreitar — gritou a voz.


— Maldição — murmurou Kurt. Aproximou o rádio da boca. — Quem foi atingido? Não houve resposta. A seguir, alguém disse: — Foster. Kurt sacudiu a cabeça, irado. — Se alvejares mais algum dos meus homens — gritou à figura invisível —, prometo que morrerás neste navio! — Não duvido — replicou o homem escondido — que gostes de acreditar nisso. A água subira-lhe até as coxas. Era como se a maré subisse, mas muito mais depressa do que seria normal. O equilíbrio do navio mudava. Enquanto a inclinação aumentava, objetos soltos começaram a deslizar pelo convés abaixo na sua direção. Voltou a olhar para a mulher. Sentiria dores tremendas. Quis alvejar a escumalha que a prendera lá, mas não arriscava procurar o seu torturador. A seguir, o som de grandes motores fora de bordo ecoaram a estibordo. No momento seguinte, o murmúrio suave transformou-se num rugido terrível e o que pareceu uma lancha de grande velocidade começou a afastar-se em direção ao horizonte. — Agora — gritou Kurt. Os seus homens moveram-se. — O Hawthorne foi atingido — disse alguém. — Ajudem-no — gritou Kurt. — Levem-no para o bote. E ao Foster também. — E a revista? — Duvido que estes tipos tenham deixado sobreviventes — respondeu. — Seja como for, não terão tempo para procurar. A inclinação do navio aumentara dez graus com a proa para baixo, o suficiente para fazer uma corrente deslizar na sua direção como uma grande serpente metálica. Kurt esquivou-se. A corrente embateu numa extremidade da escotilha de carga e deslizou para o espaço cavernoso embaixo, tilintando de forma tenebrosa enquanto os elos iam passando pela abertura até a corrente tombar para o esquecimento. — Saiam do navio — ordenou. — Que vais fazer? — perguntou um dos seus homens. — Vou buscar aquela mulher.


6. Enquanto o Kinjara Maru afundava, Kurt Austin subia pelo convés inclinado. A progressão era traiçoeira nos pontos em que uma mistura de água, óleo e fuligem cobriam o piso. Içou-se, usando tudo o que conseguia alcançar. Chegando à escada que permitia ascender à grua, subiu-a, avistando os piratas a afastar-se para sul. Ignorando-os e segurando-se ao corrimão, conseguiu alcançar a cabine do operador da grua. Uma navalha de forma estranha com cabo preto e lâmina de aço ou titânio estava espetada na cadeira. Um pequeno presente deixado pelo bandido que pendurara a mulher. Kurt segurou-a, dobrou a lâmina e guardou-a no bolso. Voltando-se para o painel de controle, verificou se estava ativo. Felizmente, as luzes do painel permaneciam iluminadas. — Aguente — gritou à mulher, percebendo enquanto gritava que berrar “segure-se” teria sido terrivelmente insensível. Anos no ramo de resgate permitiram a Kurt ficar muito familiarizado com gruas. Ergueu a mão para a alavanca de controle que a faria recuar para a posição inicial. Enquanto ativava o comando, ouviu um zumbido e a grua recuou alguns metros antes de parar. A pobre mulher balouçou para trás e para diante como um pêndulo, chorando e gritando de dor. Segundos depois, uma luz de aviso do sistema hidráulico acendeu-se. Foi só então que Kurt viu o líquido vermelho escorrendo pela lateral da grua. Olhou melhor e viu que a linha hidráulica tinha sido cortada. O presente espetado na cadeira passava a fazer sentido. Quase conseguia ouvir o riso do bandido. Ouviu um estalido nos fones — - Kurt, estamos fora do navio, mas temos de avisar que conseguimos ver o topo do leme. A popa desta coisa sai da água. Kurt olhou para a frente. O quarto dianteiro do navio estava submerso e havia destroços flutuando por toda a parte. O tempo esgotava-se. Com a grua morta, não lhe restavam grandes hipóteses. Largou a arma e começou a trepar ao braço da grua. Era uma manobra arriscada e dificultada ainda mais pela sujidade, pelo óleo e pelo fluido hidráulico. Tentando manter o braço sob o seu corpo, rastejou em diante. Atrás dele, um grupo de bidões de aço tombou sobre o convés. Um deles embateu contra algo afiado, faiscou e explodiu. A explosão lançou Kurt para o lado. Os pés escorregaram-lhe e o peso das botas ameaçou fazê-lo cair da grua. À sua frente, a mulher berrava, soluçando quando lhe suplicou: — Por


favor. Depressa. Kurt fazia os possíveis para conseguir segurar-se. Olhou para trás. As chamas envolviam a cabine em que se erguera momentos antes. Sair de lá fora uma sorte, mas esperou não ter apenas adiado o inevitável. Passou as pernas para um dos lados e novamente para o outro, conseguindo segurar o braço da grua com uma perna. Uma segunda explosão menos intensa ecoou embaixo e viu-se envolvido por um cheiro a querosene. Em meio à fumaça negra, conseguia ver chamas se alastrando pela água enquanto o combustível incendiado se espalhava, ameaçando assá-lo com o calor insuportável que projetava para cima. Mais uns três metros e alcançou o local de onde a mulher estava pendurada. O arame que lhe rodeava os pulsos cortava-lhe a pele. Tinha os braços escarlates com a concentração sanguínea e a cara apresentava uma palidez cadavérica. Segurou-a pelos braços e tentou puxá-la para cima, mas não conseguiu apoio. Ondas de calor subiram das chamas embaixo. O navio estremeceu quando algo no interior se soltou: um dos motores ou até mesmo a carga a deslizar. — Kurt, está quase — disse uma voz no rádio. — Vai abaixo a qualquer minuto. Eu sei, pensou Kurt. Voltou a segurar-lhe os braços. — Puxe-se para cima — gritou. — Não consigo — bradou a mulher. — Meu ombro está deslocado. Não o surpreendeu. Mas deixou-lhe uma única escolha. Retirou a navalha do bolso, abriu-a e enfiou a lâmina sob o arame que prendia a mulher, tentando desesperadamente não cortá-la, mas sabendo que não lhe restava muito tempo, e começou a serrar. O arame cedeu e a mulher caiu no oceano. Kurt lançou-se atrás dela. Passou pela fumaça e pelo fogo em segundos. Atingiu a água e sentiu uma perna tocar algo submerso. Quando voltou à superfície, viu a mulher na sua frente, tentando corajosamente manter-se à tona apenas com um braço. Segurou-a e afastou-se das chamas alimentadas pelo combustível e pelo óleo. Não demorou a perceber um perigo muito maior. A água rodopiava. Sentiua puxando seus pés como o recuo das ondas na praia. O navio afundava. Olhou a popa. Erguera-se como no Titanic. A proa começava a mergulhar. Segurando o braço intacto da mulher, começou a nadar, puxando-a. Quando o navio afundasse por completo, criaria uma enorme sucção que arrastaria tudo num raio de trinta metros. Iam se afogar muito antes de os corpos voltarem à superfície.


Era inútil, mas, mesmo assim, nadou com todas as forças. No momento seguinte, a lancha rápida do Argo surgiu de repente. Deslizou a seu lado até parar. Os homens içaram a mulher para dentro, arrancando-a literalmente da água enquanto Kurt subia a bordo. Os motores voltaram a roncar. Kurt deixou-se cair na lancha. Olhando para cima, viu o “castelo”, a estrutura de cinco andares dos aposentos da tripulação, a ponte de comando e as antenas caindo sobre eles num ângulo de quarenta e cinco graus, como um edifício tombando do céu. A lancha avançou rapidamente como um cavalo numa corrida frenética quando o piloto empurrou a alavanca de velocidade até o fim. E lá se foram, para longe da nuvem que encobria o sol. O castelo bateu na água a menos de seis metros de distância. Uma onda espumosa projetou-os para a frente e cuspiu-os como um surfista lançado por uma gigantesca crista de água. Segundos depois, o Kinjara Maru desaparecia. Enquanto aceleravam para longe, ruídos trovejantes se ergueram das profundezas, com grandes explosões de ar e detritos. Kurt olhou para a mulher. Estava coberta com fuligem e óleo. O ombro estaria quebrado ou deslocado, os pulsos tinham sido cortados pelo arame e tinha os olhos inchados e quase tão vermelhos como o sangue que manchava sua roupa. Usando a mão menos ferida, ela pressionou o corte no outro pulso. — Temos um médico a bordo — disse Kurt. — Tratará dos ferimentos logo que cheguemos. Ela acenou afirmativamente. Pelo menos, estava viva. — Para o Argo? — perguntou o timoneiro. Kurt acenou que sim. — A não ser que tenhas outra sugestão melhor? O timoneiro sacudiu a cabeça. — Não, senhor — disse, apontando a proa para o Argo. Dez minutos depois, estavam novamente a bordo do Argo. Enquanto o médico do navio se ocupava da mulher e a equipe de resgate recolhia a lancha, Kurt subiu à ponte de comando. O navio acelerava e mudava de rumo. — Está com péssimo aspecto — considerou o capitão Haynes. — Por que não está na enfermaria? — Porque não estou doente — replicou Kurt. O capitão fixou nele um olhar estranho e, logo a seguir, moveu-o para alguém em redor.


— Tragam uma toalha a este homem. Está a pingar a minha ponte de comando. Um imediato atirou-lhe uma toalha, que Kurt usou para secar a cara e o cabelo. — Conseguiremos alcançá-los? — perguntou. Haynes olhou para a tela do radar. — São mais rápidos que nós. Movem-se a quarenta nós. Mas um barco pequeno como aquele não conseguiria trazer esta gente de África. Aposto um jantar de bife de lombo que vão a caminho de um navio em algum lugar. Kurt acenou com a cabeça. Os piratas tinham-se tornado mais sofisticados nos últimos anos. Enquanto a maioria continuava a operar a partir de pequenos povoados costeiros em países do Terceiro Mundo, alguns tinham embarcações maiores que os levavam até o mar. Navios que serviam de base de operações, disfarçados muitas vezes como velhos cargueiros. Escondiam as suas lanchas alteradas no interior e era frequente usarem viagens parcialmente legítimas para disfarçar o seu verdadeiro intuito. Kurt ouvira a alguém das chefias navais que os piratas seriam fáceis de capturar se as autoridades do mundo procurassem cargueiros que descarregassem nos portos sem voltar a carregar. Mas os compradores eram demasiado espertos para perguntar de onde vinham bens que compravam a preços tão favoráveis. — Alguma coisa no radar? — perguntou Kurt. — Ainda nada — respondeu Haynes. Tão seco como poderia ficar, Kurt largou a toalha e ergueu os binóculos do capitão, olhando na direção do alvo. O barco em fuga era difícil de ver, mas o longo rastro branco era uma seta gigante apontando-o. Estavam a cinco milhas de distância e afastavam-se cada vez mais do Argo, mas precisariam de horas para sair do alcance do radar e, quando acontecesse... Um brilho súbito surpreendeu Kurt, cegando-o momentaneamente pelos binóculos. Logo a seguir, viu detritos voando em todas as direções e uma nuvem em expansão. — Que raio... Segundos mais tarde, o som alcançou-os. Um estrondo único e grave, como a explosão de um enorme foguete festivo. Quando a nuvem se dissipou, a lancha tinha desaparecido, obliterada numa explosão devastadora e repentina.


7. Kurt Austin passara mais de uma hora na sala de comunicações do Argo. Os quarenta minutos anteriores tinham sido gastos em conversa com o diretor operacional da NUMA, Dirk Pitt. Kurt se dava bem com o diretor, conhecendo-o desde que Pitt fazia trabalho de campo para a agência. Considerando o tipo de missões que a Equipa de Operações Especiais da NUMA acabava por aceitar com frequência, ajudava terem um chefe que conhecia bem o que faziam. Pitt estivera um pouco por toda a parte e fizera quase tudo. A promoção a uma posição de autoridade não lhe entorpecera os sentidos, mesmo que o tivesse colocado no centro das correntes contraditórias do mundo político. Enquanto o Argo patrulhava um círculo amplo perto do local onde o Kinjara Maru afundara, Kurt explicara-lhe o que sabiam e o que não sabiam. Pitt fez perguntas. Incluindo algumas a que Kurt não conseguiu responder. — O mais estranho — disse — é que afundaram o navio deliberadamente em vez de o sequestrarem para obter resgate. E mataram a tripulação. Foi mais como um ato terrorista do que como um ataque de piratas. Uma tela plana na parede mostrava as feições agrestes de Pitt. Pareceu cerrar os dentes enquanto pensava. — E não encontraram sinais do navio que servia de base de operações? — perguntou. — Avançamos cinquenta milhas na direção em que seguiam — explicou Kurt. — A seguir, o capitão Haynes levou-nos numa curva para sul durante cinco milhas e voltou a virar para norte durante dez. Nada no radar em qualquer direção. — Talvez o rumo que seguiram fosse um engodo. Para distraí-los até conseguirem se distanciar — sugeriu Pitt. — Pensamos nisso — disse Kurt, recordando uma conversa com o capitão quando a busca começou a parecer infrutífera. — Ou poderiam ter combustível suficiente a bordo para voltar à costa. Um bidão ou dois presos à lancha poderiam explicar a explosão. — Mas não explicam o que faziam naquele navio — disse Pitt. — Reféns? — Talvez — disse Kurt. — Mas temos a mulher do capitão conosco. Deixaram-na para trás deliberadamente para nos atrasar. Disse que não vinha ninguém fora do normal a bordo. Aliás, se alguém pretendesse pedir um resgate,


parece-me que seria ela a melhor candidata, mas não obteriam uma quantia muito elevada. Na tela, Pitt afastou o olhar. Passou uma mão pelo queixo por um segundo e voltou a olhar em diante. — Alguma ideia? — perguntou por fim. Kurt propôs uma teoria. Fiz muitos trabalhos de resgate marítimo com o meu pai quando era novo — começou. — Os barcos afundam por muitos motivos, mas só são afundados de propósito por dois. Dinheiro do seguro ou para esconder alguma coisa transportada a bordo. Numa ocasião, encontramos um tipo baleado na cabeça ainda preso à cadeira no interior de um barco afundado. Descobriu que o parceiro o tinha alvejado e afundado o barco, esperando conseguir encobrir o crime. Não esperou que a companhia de seguros decidisse que conseguiriam resgatar o barco e usá-lo para recuperar parte do dinheiro. Pitt acenou afirmativamente. — Parece-te que será o mesmo tipo de coisa? — Mataram a tripulação e afundaram o navio — disse Kurt. — Alguém tenta manter algo em grande segredo. Pitt sorriu. — É por isto que ganhas tão bem, Kurt. — Ganho bem? — repetiu Kurt, rindo. — Prefiro não saber o que pagas aos outros. — É escandaloso — respondeu Pitt. — Mas é muito mais do que o almirante me pagava quando comecei. Kurt riu. Pitt contara-lhe certa vez que o seu primeiro salário na NUMA não chegaria para pagar o tratamento de um braço partido, mesmo que tivesse arriscado a vida meia dúzia de vezes nesse mês. Mas nenhum deles o fazia pelo dinheiro. Continuou: — Kristi Nordegrun, a mulher que sobreviveu, disse não saber o que aconteceu, mas viu as luzes piscarem e fundirem-se. Pareceu-lhe ouvir um zumbido e perdeu o equilíbrio e os sentidos. Acredita que terão passado pelo menos oito horas até acordar. Ainda parece desorientada. Não consegue andar sem usar alguma coisa para se apoiar. — Que nos diz isso? — perguntou Pitt. — Não sei — respondeu Kurt. — Talvez tenha sido usado algum tipo de gás nervoso ou anestésico. É só mais um elemento que me faz considerar que não terá sido um simples ataque de piratas. Pitt interiorizou o que ouvia. — Que queres fazer? — Descer e dar uma olhada — disse Kurt. — Descobrir o que tentavam esconder-nos.


Pitt fitou um mapa afixado na parede. Um alfinete antiquado assinalava a posição do Argo. — A não ser que tenha assinalado mal a sua posição, o fundo oceânico fica a três milhas de distância. Têm algum VCR a bordo? — Não — respondeu Kurt. — Nada que consiga atingir essa profundidade. Mas o Joe tem o Barracuda em Santa Maria. Poderia modificá-lo e conseguiríamos voltar aqui em alguns dias. Uma semana no máximo. Pitt acenou com a cabeça como se ponderasse, mas Kurt sentiu que o fazia mais por admirar a sua atitude determinada do que para autorizar a expedição. — Mereceste tempo de descanso — disse. — Vai aos Açores. Volta a contactar-me quando chegares. Entretanto, vou pensar no assunto. Kurt conhecia aquele tom na voz de Pitt. Não era homem para rejeitar possibilidades, mas seria provável que lhe ocorresse um plano próprio antes que Kurt entrasse em contato. — Entendido — disse-lhe. Na tela, a cara de Pitt foi substituída pelo logótipo da NUMA. No seu coração, Kurt sabia que havia mais naquele incidente do que o óbvio. A questão seria descobrir até que ponto. Os “piratas” poderiam pretender apenas cobrir o seu rastro. Talvez tivessem levado dinheiro ou objetos de valor. Talvez tivessem matado alguns elementos da tripulação no ataque, decidindo encobrir o incidente com a execução dos restantes e afundando o navio. Mas até esse cenário levantava interrogações. Por que incendiar o navio? A fumaça podia denunciá-los e foi realmente o que aconteceu. Teria sido mais fácil afundá-lo sem explosões. E quanto aos próprios piratas? A história recente registrava ocorrências de pirataria em todo o mundo, sobretudo cometida por gente de países pobres que via a riqueza do mundo passar diante dos olhos em grandes navios e decidia ficar com uma parcela. Mas os poucos homens que Kurt vira no Kinjara Maru não pareciam piratas típicos. Assemelhavam-se mais a mercenários. Olhou para a navalha que colocara sobre a mesa a seu lado, uma arma letal e única. Lembrou-se de a ver espetada na cadeira. Parecera em simultâneo uma provocação, um cartão de visita e um tabefe. Recordou a arrogância das palavras do homem e a sua voz. Não fora a voz de um pirata miserável da África Ocidental. Mais estranha ainda era a sensação de que conhecia aquela voz de algum lado.


8. O continente africano é situado numa encruzilhada de oceanos. Mas, apesar desse posicionamento, sempre foi mais uma barreira do que uma via comercial. As suas dimensões e múltiplas regiões nada hospitaleiras, das areias do Sara às selvas impenetráveis na vasta região central, tornam impossível cruzá-lo de forma lucrativa. No passado, navios que desejaram passar de um oceano ao outro foram forçados a fazer uma viagem de dez mil milhas contornando a África do Sul, atravessando algumas das águas mais traiçoeiras do planeta e passando um ponto batizado com um nome promissor, Cabo da Boa Esperança, apesar de a sua designação original ser mais acertada: Cabo das Tormentas. A conclusão do Canal do Suez tornou a viagem desnecessária, mas fez pouco para trazer África para o mundo moderno. Muito pelo contrário. A partir desse momento, os navios precisavam apenas de entrar pelo atalho, atravessando o Suez e alcançando o Médio Oriente e os seus campos petrolíferos, a Ásia e as suas fábricas, a Austrália e as suas minas. Enquanto o comércio mundial florescia, África apodrecia como legumes abandonados na doca sob o sol inclemente. No interior do continente, proliferavam o genocídio, a fome e a doença, enquanto as costas se cobriam com alguns dos locais mais perigosos do mundo. A Somália permanece, para todos os efeitos, uma terra entregue à anarquia. O Sudão será pouco melhor. Menos conhecidos, mas igualmente fustigados são os países da África Ocidental como a Costa do Marfim, a Libéria e a Serra Leoa. Os problemas da Libéria foram amplamente acompanhados pela imprensa, enquanto líderes sucessivos tombavam entre escândalos e corrupções, lançando o país na anarquia e no caos. Na Costa do Marfim, aconteceu praticamente o mesmo. E, durante a maior parte da sua história, a Serra Leoa teve um destino ainda pior. Há relativamente pouco tempo, o país foi considerado mais perigoso do que o Afeganistão e tinha padrões de vida mais baixos do que o Haiti e a Etiópia. Na verdade, tornou-se tão débil que um pequeno grupo de mercenários sul-africanos conseguiu dominá-lo quase por completo. Operando por “convite” do regime no poder e adotando o nome Executive Outcomes, conseguiram expulsar um grupo de rebeldes muito mais numeroso que ameaçava controlar as minas, a única fonte de riqueza real do país. Os mercenários começaram a proteger e controlar esses bens,


quadruplicando a produção e apossando-se de uma grande percentagem. Foi este mundo instável que viu surgir Djemma Garand. Natural de Serra Leoa, mas treinado pelos mercenários sul-africanos, Djemma passou a dominar as forças armadas do país, fazendo amigos importantes e assegurando que os seus homens seriam adequadamente treinados e que permaneceriam disciplinados e prontos. Levou décadas, mas, eventualmente, a oportunidade surgiu e Djemma subiu ao poder num golpe de Estado sem sangue. Nos anos que se passaram desde então, consolidou a sua posição, elevou os padrões de vida do país e conquistou a aprovação contrariada do Ocidente. O seu regime era estável, pelo menos, mesmo que não fosse democrático. Como se pretendessem que fosse uma forma de demonstrar aprovação, pararam de fazer perguntas acerca do paradeiro e do estado de saúde de Nathaniel Garand, irmão de Djemma e voz robusta a favor da democracia, que apodrecera numa das prisões do país durante os três anos anteriores. Djemma considerava a prisão do irmão simultaneamente o seu momento mais sombrio e também o mais glorioso. Pessoalmente, agoniava-o, mas, no momento em que finalmente dera a ordem, quaisquer receios que tivesse quanto à sua capacidade para fazer o que seria necessário pelo país desvaneceram-se. Sítios como a Serra Leoa não estavam preparados para a democracia, mas, com uma mão forte e não questionada, talvez conseguissem alcançar esse ponto no futuro. Erguendo-se sobre o piso de mármore do seu palácio, Djemma seria confundido com qualquer outro ditador africano. Envergava uma farda militar com meio quilo de medalhas pendurado ao peito. Escudava os olhos com óculos escuros caros e segurava na mão um chicote de montar, que gostava de bater sobre superfícies planas quando sentia que a sua argumentação não era recebida com a seriedade devida. Vira o filme Patton várias vezes e admirava a personalidade do general. Também achava interessante que Patton se considerasse uma reencarnação de Aníbal, africano como ele. Porque a lenda de Aníbal e dos seus feitos interessavam especialmente a Djemma Garand. De muitas formas, o general cartaginês fora o último africano a abalar o mundo com a sua espada. Atravessou os Alpes com um exército e com os seus elefantes, devastando o Império Romano no seu berço durante anos, derrotando legião após legião e não conseguindo levar os seus intuitos até o fim apenas por não ter armas de cerco com que pudesse atacar a capital, Roma. Desde então, entre guerras, golpes de Estado e tudo o resto que ocorrera no continente africano, o resto do mundo limitara-se a assistir com desinteresse.


Preocupavam-se com o fluxo de minerais, petróleo e metais preciosos, mas uma quebra temporária, uma guerra civil ou um aumento da fome não conseguiam motivar grande preocupação. Após um período de turbulência, novos ditadores concordariam avidamente com os termos aceitos pelos seus antecessores, apoderando-se da maior parte do lucro e deixando tostões para os pobres. Enquanto o negócio fosse conduzido desta forma, que motivo de preocupação teria o mundo? Vendo isto, vivendo-o, respirando-o, Djemma Garand pretendia que o seu governo fosse mais além. Apesar de se deslocar num Rolls Royce blindado ladeado por homens armados com metralhadoras, Djemma jurava ser mais do que um déspota. Desejava construir um legado que melhorasse as condições de vida do seu povo para toda a eternidade. Mas fazer aquilo implicaria mais do que mudar o seu país. Exigiria uma alteração do lugar ocupado pela Serra Leoa no mundo. Para o conseguir, precisava de uma arma capaz de ir além das costas africanas e de abalar o mundo, uma versão moderna dos elefantes de Aníbal. E essa arma estava quase ao seu alcance. Sentando-se atrás de uma imponente mesa de mogno, Djemma pousou cuidadosamente os seus óculos escuros num canto e esperou que o telefone tocasse. Finalmente, acendeu-se uma luz. Cuidadosamente, sem qualquer pressa, ergueu o fone. — Andras — disse, em voz baixa. — Espero que tenhas boas notícias. — Algumas — respondeu a voz grave. — Não é o tipo de resposta que espero de ti — disse Djemma. — Explicate. — A tua arma não funcionou como devia — explicou Andras. — Danificou o navio, mas sem melhores resultados do que na última vez. Destruiu os sistemas de navegação e a maior parte dos controles, mas o navio seguiu em frente com potência reduzida e metade da tripulação sobreviveu, os que se encontravam no interior. Este dispositivo não faz o que esperas. Djemma não gostou de ouvir aquilo. Não havia muito mais que conseguisse enraivecê-lo tanto como ouvir dizer que o seu projeto, a sua Arma de Destruição Massiva, voltara a não conseguir atingir os objetivos esperados. Cobriu o telefone, estalou os dedos a um adido e rabiscou um nome num pedaço de papel. — Trá-lo até mim — disse, passando-lhe o papel. — Quantos membros da tripulação sobreviveram? — perguntou, voltando a falar para o telefone.


— Cerca de metade — disse Andras. — Confio que não tenham sobrevivido durante muito tempo. — Não — assegurou Andras. — Estão mortos. Uma ligeira hesitação na voz de Andras preocupou Djemma, mas continuou. — E a carga? — Transferida e a caminho — continuou Andras. — E o navio? — A enferrujar, no fundo. — O que não me dizes? — perguntou Djemma, cansando-se de ter de arrancar informação ao mais bem pago dos seus homens. Andras pigarreou. — Alguém tentou deter-nos. Americanos. Suponho que seriam uma equipe SEAL ou duas. Faz-me pensar que o teu segredo deixou de o ser. Djemma ponderou a possibilidade e rejeitou-a. Se tivesse existido uma fuga de informação, teriam sido travados antes do início do ataque. Seria mais provável que se tratasse de uma simples equipe de resgate armada. — Lidaste com eles? — Fugi e cobri o nosso rastro — disse Andras. — Não pude fazer mais nada. Djemma não estava habituado a ouvir contar que alguém que se atravessara no caminho de Faca sobrevivera. — Não me agrada pensar que perdes qualidades — disse. — Nada disso. Estes homens sabiam o que faziam. Será melhor que descubras quem eram. Djemma acenou afirmativamente com a cabeça. Para variar, concordavam. — E quanto à tua operação... — começou Andras. — Pitão, não é? Mantém-se? A Operação Pitão era o golpe de mestre de Djemma. Se tivesse sucesso, traria ao seu país riqueza interminável, estabilidade e prosperidade. Se fracassasse... Djemma não queria pensar nessa possibilidade. Mas, se a sua arma não funcionasse como fora planejado, o fracasso tornava-se uma possibilidade real. — Não pode ser adiada durante muito mais tempo — afirmou Djemma. — Queres que ajude? — propôs Andras. A sua voz estava carregada de cinismo. Deixara claro antes que achava Djemma louco por tentar fazer o que pretendia. Mais louco ainda por confiar no seu exército para o fazer. Mas Andras era um estrangeiro e não conhecia as tropas de Djemma como o seu general e líder.


Djemma sorriu. Ao recorrer aos serviços de Andras, tornava-o incrivelmente rico, mas se surgisse uma possibilidade de conseguir ainda maior riqueza e poder, Djemma esperou que Andras a seguisse. Era impossível encherlhe os bolsos insaciáveis. — No lugar onde cresci — disse Djemma —, as anciãs tinham um ditado. Uma serpente no jardim é uma coisa boa. Come os ratos que devoram as colheitas. Mas uma serpente em casa é um perigo. Matará o marido, comerá o bebé e mergulhará a casa na angústia. Depois de uma pausa, clarificou: — Receberás o teu dinheiro, Andras. Talvez o suficiente para comprares um pequeno país. Mas, se algum dia pisares o solo de Serra Leoa, mandarei matar-te e servirei os ossos aos cães no meu pátio. A linha permaneceu em silêncio. A seguir, ouviu-se um riso baixo. — A ONU está enganada a teu respeito — disse Andras. — És implacável. África precisa de mais homens como tu e não de menos. Mas, entretanto, enquanto continuares a pagar-me, continuarei a trabalhar. Não fiques sem dinheiro como os jornais dizem que poderá acontecer a qualquer momento. Odiaria ter de extrair os meus honorários de formas menos agradáveis. Os dois homens compreendiam-se. Faca não receava Djemma, mesmo que tivesse motivos para isso. Não receava nada. Fora por isso que Djemma o escolhera. — Vai para Santa Maria — disse. — Envio-te novas instruções quando chegares. — E o Kinjara Maru? — perguntou Andras. — E se alguém mergulhar para o ver? — Essa possibilidade está coberta — respondeu Djemma. Andras voltou a rir. — Planos para tudo — disse, sarcástico. — Fazes-me rir, Garand. Boa sorte com os teus planos tresloucados, intrépido líder. Manter-me-ei atento aos jornais e torcerei por ti. Ouviu-se um estalido, a chamada foi terminada e Djemma pousou o fone. Bebeu um gole de água de um copo de cristal fino e ergueu o olhar quando as portas do gabinete se abriram. O adido voltara. Seguiam-no dois membros da sua guarda pessoal, escoltando um homem branco que não parecia inteiramente feliz por ali estar. Os guardas e o adido saíram. As portas com três metros de altura fecharamse ruidosamente. Djemma e o caucasiano olharam-se. — Sr. Cochrane — começou Djemma, num tom formal. — A sua arma falhou... mais uma vez. Alexander Cochrane mantinha-se como uma criança que ouvisse um


ralhete, fitando com insolĂŞncia a figura paterna. Djemma nĂŁo se importou. O sucesso viria. Ou haveria consequĂŞncias.


9. Alexander Cochrane aproximou-se da mesa de Djemma com uma apreensão que ia muito além de algo que conseguisse recordar. Durante dezessete meses, esforçara-se para construir uma arma de energia dirigida de potência incrível. A arma usaria ímãs supercondutores como os que desenhara para o Grande Colisor de Hadrões, algo que lhe parecia ter ocorrido séculos antes. Aceleraria e dispararia partículas carregadas a uma velocidade próxima da velocidade da luz, num feixe certeiro que poderia ser rapidamente “varrido” sobre o alvo, destruindo sistemas eletrônicos, computadores e outros circuitos. Se fosse corretamente afinada, a arma poderia funcionar como um feixe de micro-ondas gigante, aquecendo matéria orgânica e cozinhando os alvos a partir do interior, inflamando-os mesmo que se abrigassem atrás de paredes de metal e cimento. No céu, a arma de Cochrane conseguiria abater aviões a distâncias de trezentos quilômetros ou mais ou conseguiria aniquilar exércitos em manobra de ataque, movendo-se sobre o campo de batalha como uma mangueira de jardim apontada a formigas. No último patamar de desenvolvimento, a arma conseguiria destruir uma cidade, não como uma bomba atômica, não com chamas e força explosiva, mas com precisão, cortando aqui e ali como o bisturi de um cirurgião, devastando quarteirão após quarteirão. Conseguiria matar os ocupantes dos edifícios ou deixá-los vivos, de acordo com a escolha de Cochrane (ou de Djemma). Mas, mesmo que fosse afinada apenas para destruir sistemas eletrônicos, deixaria uma cidade inabitável ao destruir toda a sua tecnologia moderna em segundos. Sem computadores, telefones, rede elétrica ou água corrente, a cidade moderna e integrada de nossos dias viraria um palco de anarquia ou uma cidade fantasma, pouco depois de Cochrane (ou Djemma) a ter mirado. Mas, para fazer tudo isso, a arma teria de funcionar e, até ali, os resultados permaneciam inconclusivos. — Disse-lhe que precisava de mais testes — gaguejou Cochrane. — Este deveria ter sido o teste final — disse Djemma. — Que aconteceu ao barco? — Ao navio — corrigiu Djemma. — Barco, navio — disse Cochrane. — É igual.


— A sua falta de precisão incomoda-me — replicou Djemma, dando uma entoação sinistra às palavras. — Uma embarcação de noventa mil toneladas não é um barco. — O que aconteceu ao navio? — perguntou Cochrane, cansado da atitude condescendente de Djemma. O homem agia como se lhe pedisse a construção de uma televisão ou a montagem de um computador de componentes préfabricados. — O Kinjara Maru repousa no... Como você chamam na América? Ah, sim. No baú de Davy Jones. — E a carga? — perguntou. Nada melhoraria sem a carga. — Cem toneladas métricas de YBCO reforçado com titânio — enunciou Djemma. — Removidas segundo seu pedido. Cochrane suspirou de alívio. — É uma excelente notícia. — Não — ripostou Djemma, batendo com o chicote de montar no tampo da secretária. — Uma excelente notícia implicaria que as suas promessas fossem cumpridas. Uma excelente notícia seria ouvir dizer que a sua arma funcionou como disse que funcionaria, inutilizando por completo o navio e matando imediatamente toda a tripulação. O navio continuou a mover-se com energia parcial e houve sobreviventes com que fomos forçados a lidar. Cochrane habituara-se ao temperamento de Djemma, mas sentiu-se atordoado pela raiva repentina. O estrondo do chicote fê-lo saltar. Mesmo assim, a sua confiança não foi abalada. — E então? — disse, por fim. — E então, os nossos homens foram expostos — disse Djemma. — Um grupo de americanos tentou interferir. Atraímos a atenção das pessoas erradas. Tudo graças a si e à sua falta de precisão. Cochrane moveu se na cadeira. Um único fato simples impedia que o seu desconforto se transformasse em medo. Apesar de Djemma poder ordenar a sua morte com um estalar de dedos, nunca o faria enquanto precisasse dele e precisasse de fazer a arma funcionar. Até ali, Cochrane dera os passos certos. Da insistência em fazer o seu desaparecimento parecer um sequestro (para poder voltar ao mundo industrial no futuro) à forma como construíra a arma de Djemma. Fizera o trabalho de desenvolvimento sozinho, traçara os planos e supervisionara os trabalhos de construção pessoalmente. Tornara-se tão crucial para o projeto que Djemma podia fazer pouca coisa que o ameaçasse, a não ser que abandonasse a esperança de ver o trabalho concluído e de possuir uma versão final da arma.


Recordando isto, Cochrane falou com confiança renovada. — Qualquer sistema precisa de tempo para ser afinado — insistiu. — Acha que os colisores foram construídos do nada e, a seguir, se limitaram a ligar o interruptor e a esperar que funcionassem? Claro que não. São necessários meses de testes e calibrações antes da experiência mais básica. — Teve meses para o fazer — recordou Djemma. — E não quero mais testes. O próximo teste será em grande escala. — A arma não está pronta — insistiu Cochrane. O desagrado no olhar de Djemma tornou-se mais intenso. — É melhor que esteja — advertiu. — Ou arderá comigo quando vierem buscar-nos. Cochrane hesitou. As palavras de Djemma confundiam-no. Porque arderiam? Djemma sempre insistira que não venderiam a arma a uma única potência mundial, mas sim a todas. Que a apontassem às cabeças uns dos outros como tinham feito com os mísseis nucleares durante cinquenta anos. Nunca a usariam e tanto Cochrane como Djemma seriam ricos. Não havia nisso qualquer perigo. Nem qualquer necessidade de pressa. — De que fala? — perguntou. — Tenho algo mais em mente além do que lhe disse — confessou Djemma. — Perdoe-me por enganar um homem tão honrado. O sarcasmo na sua voz mostrava o que realmente pensava de Cochrane e, apesar do apelo da fortuna ou até da fama clandestina, Cochrane sentiu-se subitamente muito pior do que alguma vez se sentira no CERN. Djemma ergueu um ficheiro e folheou-o. — Vem ao meu país com os seus planos cuidadosos — disse. — Planos para ficar com o bolo e comê-lo. Para construir uma Arma de Destruição Massiva, depositar milhões em contas bancárias nas Bahamas e na Suíça e voltar à boa vida, sem dúvida contando histórias cheias de peripécias e de fuga arrojada. — Fizemos um acordo. — Os acordos mudam, Cochrane — disse o líder africano. — E facilitoume a vida. Retirou uma foto do ficheiro e deslizou-a pela mesa para Cochrane. A imagem captada por uma câmera da polícia mostrava o cadáver de Philippe Revior caído sobre a neve. Uma imagem mais pequena inserida no canto superior direito mostrava uma pistola colocada sobre um pano branco. A arma pareceu terrivelmente familiar a Cochrane. — É um assassino, Sr. Cochrane. Cochrane se encolheu.


— Não seja tímido — insistiu Djemma. — É verdade. Só a posição das câmeras de segurança impede que o mundo conheça este fato. Se tentar partir, se me atraiçoar ou se continuar a arrastar os pés, certificar-me-ei de que a história será divulgada. Como prova, tenho a arma coberta com as suas impressões digitais. A expressão de Cochrane transformou-se numa máscara de repulsa. Estava encurralado e sabia-o. Independentemente do que Djemma tivesse em mente, Cochrane teria de fazer o que ele queria. Se recusasse, a sua vida seria arruinada. Após um momento de reflexão silenciosa, Cochrane abriu finalmente a boca. — Sabe que não o atraiçoaria. Concluir o trabalho vale demasiado. — E, mesmo assim, falha. — Apenas pelo seu calendário. Djemma sacudiu a cabeça. — Não pode ser alterado. Cochrane receou ouvir aquilo. Significava que teria de encarar a verdade. — Muito bem — disse. — Farei os possíveis. Mas existem apenas duas formas de aumentar a potência da arma. Ou precisamos de materiais melhores ou, se quiser rapidez, precisarei de ajuda. Djemma sorriu e o sorriso quase se transformou numa gargalhada, como se lhe desse grande prazer arrancar aquela confissão a Cochrane. — Admite-o finalmente — disse. — Prometeu-me mais do que conseguiria fazer. Está acima das suas capacidades. — Não é isso — insistiu Cochrane. — O sistema está... — Teve ano e meio e todo o dinheiro que pediu — rosnou Djemma. — Dinheiro que poderia ser usado para pagar alimentos e habitação para o meu povo. Cochrane olhou em redor. O palácio era imenso, construído com mármore e outras pedras importadas. Todas os banheiros estavam equipados com torneiras revestidas a ouro. E este dinheiro? — É uma máquina incrivelmente complexa — disse. — Para a fazer funcionar da melhor forma, poderei precisar de assistência. Djemma olhou-o. Os seus olhos queimavam, abrindo dois buracos na mente de Cochrane, como a arma deveria conseguir fazer. — Já sabia — disse o líder africano. — Volte ao trabalho. Terá materiais e ajuda. Prometo.


10. Ilha de Santa Maria, Açores, 17 de junho

Os habitantes de Vila do Porto avistaram as linhas esguias do navio Argo da NUMA pouco depois do meio-dia local. Porque o Argo fora originalmente construído para a Guarda Costeira e concebido para trabalhos de salvamento, policiamento e bloqueio, seu perfil fazia lembrar um navio de guerra de pequenas dimensões: era longo, estreito e anguloso. Duzentos e cinquenta anos antes, o surgimento desse navio ou do equivalente da época teria sido acompanhado com cautela, das ruas e das torres de vigia do Forte de São Brás. Construído no século XVI, com canhões nas paredes sólidas de pedra e argamassa, o forte passara a ser usado como depósito naval português, albergando pessoal de serviço e as autoridades locais, apesar de poucos navios da sua Marinha visitarem a ilha com regularidade. Enquanto o Argo largava âncora fora do porto, Kurt Austin pensava no ato de pirataria que tinha testemunhado recentemente e no crescimento de atos semelhantes a nível global. Duvidou que fortes semelhantes àquele voltassem a ser necessários, mas questionou-se quanto ao momento em que as nações do mundo ficariam suficientemente revoltadas para se unirem e começarem a combater a pirataria a nível internacional. Pelo que ouvira, o afundamento do Kinjara Maru provocara ondas de choque na comunidade marítima e a severidade dos discursos aumentava. Era um passo válido, mas algo na cabeça de Kurt lhe dizia que a conversa voltaria a acalmar antes que fossem tomadas medidas reais e que a situação se manteria insatisfatória e inalterada. Qualquer que fosse o resultado, outro pensamento dominara a sua mente, mesmo enquanto repetia a história em conversas com a Interpol, com os seguradores do Kinjara Maru e com várias associações de combate à pirataria. Todos dirigiram as suas perguntas para a pirataria e pareceram ignorar quando Kurt lhes disse que os piratas não afundavam navios que podiam sequestrar nem matavam tripulações pelas quais pudessem pedir resgate. Ouviam os seus argumentos e, logo a seguir, parecia-lhe que estes eram arquivados e provavelmente esquecidos. Mas ele não os esquecia, tal como não conseguia esquecer a imagem dos tripulantes baleados enquanto tentavam fugir


ou a estranha história de Kristi Nordegrun acerca do falhanço das luzes, do ruído ensurdecedor ouvido dentro da cabeça e de perder os sentidos até o amanhecer. Passava-se ali mais alguma coisa. Quer o mundo quisesse reconhecê-lo ou não, Kurt tinha um mau pressentimento de que, com o tempo, seriam forçados a fazê-lo. Depois de ancorado o Argo, o capitão Haynes autorizou a maior parte dos tripulantes a irem a terra. Passariam duas semanas ali enquanto Kurt e Joe terminavam os seus testes e competiam na Corrida Submarina. Durante esse período, permaneceria a bordo do navio uma tripulação mínima, composta por marinheiros cumprindo turnos de poucos dias. Como últimas recomendações à tripulação, o capitão recomendou cautela e que se mantivessem longe de sarilhos, já que os ilhéus, apesar de tidos como afáveis, não estariam dispostos a aturar forasteiros problemáticos, tendo detido muitos no passado, incluindo a tripulação do próprio Cristóvão Colombo. Saindo do bote do Argo na sombra do Forte de São Brás, Austin pensou no significado que teria essa reputação para o seu bom amigo Joe Zavala. Joe era um cidadão respeitador, mas tendia a envolver-se na teia social onde quer que fosse e, não sendo um arruaceiro, apreciava alguma turbulência e gostava de se divertir. Quando chegou à oficina onde o Barracuda era preparado, não encontrou sinais de Joe. Um segurança riu quando lhe perguntou por ele. — Chegou a tempo de o ver lutar — disse. — No centro de convívio. Se não tiver perdido já por KO. Kurt encarou aquilo com suspeição, ouviu as direções para o centro de convívio e apressou-se a chegar lá. Entrando, avançou até um grande ginásio de onde ouvia ruídos de uma multidão entusiástica. Abriu a porta e deparou com cerca de duzentas ou trezentas pessoas ocupando bancadas dispostas à volta de um ringue de boxe. Não era exatamente o Madison Square Garden, mas o lugar estava apinhado. Quando soou a campainha, o público ergueu-se, aplaudiu e bateu com os pés, fazendo tremer o edifício. Kurt ouviu o ruído em pés sobre a lona e de punhos protegidos por luvas acolchoadas trocando golpes. Desceu a coxia e captou um vislumbre do que se passava no ringue. Viu Joe Zavala com calções vermelhos. O cabelo preto curto do amigo estava quase totalmente escondido pela proteção que usava na cabeça. Mas, enquanto Joe se movia para trás e para diante com pés ligeiros, o seu físico musculado e os braços e ombros bronzeados e torneados reluziam com uma película de suor. À sua frente, com calções e proteção na cabeça de cor preta, Kurt viu um


homem maior. Parecia uma versão de Thor, o deus nórdico. Passaria do metro e oitenta, com cabelo louro, olhos azuis e físico cinzelado. O adversário de Joe movia-se com muito menos graça, mas os seus murros eram como trovões. Joe esquivou-se a um, agachou-se por baixo de outro e recuou. Por um momento, pareceu-se um pouco com Oscar De La Hoya, o campeão de pesos médios. A comparação teria deixado Joe orgulhoso. A seguir, avançou, acertou alguns golpes que pareceram não surtir qualquer efeito e, subitamente, pareceuse menos com a estrela de pesos médios quando a mão direita trovejante de Thor o atingiu na cabeça. A multidão gritou, sobretudo uma fileira de mulheres na primeira fila. Joe cambaleou para trás, segurou as cordas à frente das mulheres, ajustou a proteção da cabeça e sorriu. A seguir, voltou-se e continuou a mover-se até a campainha soar novamente. Quando chegou ao seu canto, Kurt já lá estava. O treinador deu-lhe água e aproximou os sais de cheiro. Entre inspirações profundas e mais alguns goles de água, Joe disse: — Finalmente aparece. — Sim — disse Kurt. — Parece que está cansando — acrescentou. — Se ele continuar a acertar sua cabeça daquela forma, vai cansar os braços. Joe moveu a água de bochecha para bochecha, cuspiu e olhou para Kurt. — Está onde o quero. Kurt acenou afirmativamente, achando aquilo duvidoso. Joe praticara boxe no liceu, na faculdade e na Marinha, mas há muito tempo que não entrava num ringue. — Pelo menos, tens fãs — disse Kurt, indicando com a cabeça a primeira fila, que incluía um grupo com idades que iam de uma universitária com uma flor no cabelo a várias mulheres que teriam a idade de Joe e duas mais velhas com roupas e maquiagem cuidadas demais para um evento daqueles. — Deixeme adivinhar — continuou Kurt. — Luta para defender a honra coletiva delas. — Nada disso — afirmou Joe enquanto o treinador mergulhava a proteção dos dentes e voltava a enfiar em sua boca. — A'ro'ei a 'aca da’ém. A campainha soou e Joe se ergueu, batendo as luvas e regressando ao combate. Suas palavras tinham sido distorcidas pela proteção, e pareceu a Kurt que dissera: Atropelei a vaca de alguém. Aquele assalto foi rápido, com Joe esquivando-se aos golpes trovejantes e atingindo algumas vezes o tronco de Thor. Era como se esmurrasse uma parede de pedra. Quando voltou, estava notoriamente sem fôlego. — Atropelou uma vaca? — perguntou-lhe Kurt.


— Só dei um toque, na verdade — respondeu Joe, com respiração ofegante. — A vaca era do Deus do Trovão? — perguntou Kurt, indicando o adversário. — Não — respondeu Joe. — De um rancheiro local. Kurt não se sentia menos confuso. — Como é que isso se transforma num combate de boxe? — Há regras aqui — disse Joe. — Mas não há cercas. As vacas andam por todo lado, incluindo as estradas. Quando se atropela uma vaca de noite, a culpa é da vaca. Mas, se acontece durante o dia, a culpa é do motorista. Acertei-lhe ao anoitecer. Aparentemente, é... hmm... una zona gris... uma zona cinzenta. — E por isso tens de lutar até a morte contra este tipo? — perguntou Kurt, gracejando. — Parece-te um combate até a morte? — perguntou Joe. — Bom... — O tipo a quem pertencia a vaca é dono do ginásio. Este escandinavo mudou-se para cá e tornou-se o campeão amador local há um ano. Os ilhéus gostam dele, mas preferiam ver outro tipo como campeão. Alguém que se parecesse mais com eles. Kurt sorriu. Com o seu sangue latino, Joe parecia-se mais com os ilhéus do que Thor. A campainha voltou a soar e Joe reagiu, levantando e tentando ultrapassar o longo alcance do nórdico. Era perigoso, mas, além de alguns golpes de raspão, Joe se saía bem e o escandinavo parecia recuar. Joe voltou a sentar e Kurt mudou de assunto. — Precisamos falar sobre o Barracuda — disse. — O que tem ele? — Consegue mergulhar a cinco mil metros? Joe sacudiu a cabeça. — Não é uma batisfera, Kurt. Foi projetado para velocidade e não para profundidade. — Mas conseguirias modificá-lo para essa função? — Sim — disse Joe. — Enfiando-o dentro de uma batisfera. Kurt se calou. Joe era um gênio mecânico. Mesmo assim, era limitado pelas leis da física. Joe bochechou e cuspiu. — Mordo o anzol — disse. — O que queres ver no fundo do Atlântico? — Ouviste falar do que aconteceu no outro dia? Joe acenou afirmativamente. — Quase caiu um navio na tua cabeça.


— É verdade — confirmou Kurt. — Gostaria de vê-lo melhor agora que está seguro no fundo. A campainha soou e Joe ergueu-se, mantendo os olhos fixos em Kurt. Parecia pensativo. — Talvez haja uma forma — disse, com um brilho nos olhos. Demorou demais. O Deus do Trovão atravessou o ringue no tempo que levou falando. — Cuidado — gritou-lhe o treinador. Joe se virou e se agachou, protegendo-se do golpe que lhe raspou o braço. Recuou para as cordas, escudando-se enquanto o outro pugilista aplicava golpes pela esquerda e pela direita. Subitamente, Kurt se sentiu mal pelo amigo, vendo que o combate supostamente amigável se parecia mais com um espancamento. E a culpa era em parte sua por ter distraído Joe. Se fosse um combate de luta livre, teria pegado uma cadeira e jogado nos ombros de Thor. Mas calculou que isso violaria as regras do Marquês de Queensbury. As luvas de Thor faziam um ruído seco enquanto batiam nos braços, nas costelas e na cabeça de Joe. — Para as cordas — gritou Kurt, partilhando o único conselho de boxe que lhe ocorria. Sua voz foi abafada por um rugido da multidão. A claque feminina de Joe parecia horrorizada. As mulheres mais velhas afastaram os olhos como se não aguentassem ver aquilo. Com pouco espaço de manobra, Joe continuou a se proteger, incapaz sequer de abrir os braços e atingir o adversário. Kurt olhou o relógio. Era o último assalto, mas faltava mais de um minuto. Não parecia provável que Joe aguentasse até a campainha. Depois, surgiu uma oportunidade. Enquanto o escandinavo preparava outro golpe avassalador, baixou a guarda. Nesse mesmo instante, Joe baixou o ombro e aplicou um gancho ascendente. Atingiu Thor no queixo e projetou a cabeça do outro para trás. Aparentemente, Thor não esperava de Joe nada além de defesa àquela altura. Kurt viu-o revirar os olhos enquanto caía para trás. Joe avançou e aplicou um golpe poderoso com a direita, lançando Thor na lona. A multidão manifestou ruidosamente seu espanto e as admiradoras de Joe guincharam de prazer como adolescentes vendo os Beatles saindo do avião. O árbitro iniciou a contagem. O pugilista escandinavo rolou para se apoiar nas mãos e nos joelhos quando a contagem chegou a quatro. Enquanto isso, Joe dançava em volta do ringue


como Sugar Ray Leonard. Ouvindo o árbitro contar até seis, Thor usava as cordas para conseguir levantar e Joe pareceu um pouco menos feliz com a situação. Aos oito, Thor estava em pé, parecendo lúcido e olhando para o outro lado do ringue. A expressão de Joe ficou decididamente amarga. O árbitro segurou as luvas de Thor e parecia pronto para reiniciar o combate. Nesse instante, a campainha soou. O assalto chegara ao fim e o combate também. Foi declarado um empate. Ninguém ficou satisfeito, mas todos aplaudiram. Quinze minutos mais tarde, tendo pago a sua dívida à sociedade, assinado alguns autógrafos e com pelo menos um número de telefone no bolso, Joe Zavala sentava-se com Kurt, arrancando o adesivo das mãos e pressionando um saco de gelo sobre o olho. — Espero que tenhas aprendido a não atropelar vacas alheias — disse Kurt, usando uma tesoura para ajudar Joe com o adesivo. — Da próxima vez que combater — replicou Joe —, sentas-te na última fila. Ou, melhor ainda, procuras outra coisa para fazer. — De que falas? — perguntou Kurt. — Pareceu-me que correu bem. Joe teve de rir. Kurt era um amigo tão bom e leal como Joe alguma vez tivera, mas tinha uma inclinação para polir o lado negativo das coisas. — O teu conceito de “bem” sempre me intrigou. Já sem o adesivo, Joe transferiu o saco de gelo para a nuca enquanto Kurt explicava o que acontecera a bordo do Kinjara Maru. Pareceu-lhe tão estranho como parecera a Kurt. — O sexto sentido deu sinal? — perguntou. — Três alarmes seguidos — respondeu Kurt. — Estranho — disse Joe. — Ouço o mesmo ruído dentro da cabeça agora mesmo. Mas acho que será por um motivo diferente. Kurt riu. — Só quero dar uma olhada — insistiu. — Achas que o Barracuda conseguirá levar-nos lá? — Talvez haja uma forma de o fazer — respondeu Joe. — Mas apenas como VCR. Não confiaria nas modificações para manterem alguém seguro a essa profundidade. Além disso, não haveria espaço para nós. Kurt sorriu. — Em que pensas? — Poderíamos construir um casco externo e encaixar o Barracuda no interior — começou. Enquanto falava, conseguia ver o projeto desenhado na sua cabeça,


conseguia sentir a forma nas mãos. Projetava de forma intuitiva. Fazia os cálculos apenas para suportar o que já sabia. — Enchemos esse compartimento com um líquido não compressor ou hiperpressurizamos com nitrogênio. A seguir, inundamos o interior do Barracuda ou pressurizamo-lo também com várias atmosferas e o desnível tripartido deverá ser suficiente para equilibrar as forças. Nem o casco externo nem o interno terão de suportar a pressão toda. — E quanto aos instrumentos de controle? — perguntou Kurt. Joe encolheu os ombros. — Não há problema — disse. — Tudo o que colocarmos no interior será impermeabilizado e concebido para um ambiente de pressão elevada. — Soa-me bem — considerou Kurt. Pareceu agradado. Joe sabia que lhe agradaria. E, por isso, decidiu largar a bomba. — Há um ligeiro problema. Kurt semicerrou os olhos. — Qual? — O Dirk ligou-me antes de chegares. — E? — E ordenou que não te deixasse convencer-me a fazer alguma coisa imprudente. — Imprudente? — Conhece-nos bem demais — disse Joe, supondo que só uma mente aventurosa e até “imprudente” conseguiria compreender o funcionamento de outra. Kurt acenou com a cabeça, sorrindo um pouco. — É verdade. Por outro lado, “imprudente” dá-nos uma grande margem de manobra. — Às vezes, assustas-me — disse Joe. — Só para que fique registrado. — Trata dos planos — disse Kurt. — A corrida é daqui a dois dias. Depois disso, estamos por nossa conta. Joe sorriu. Gostava do desafio. E, apesar de temer a ira de Dirk Pitt se perdessem o Barracuda, que custara um milhão de dólares à NUMA, estava bastante seguro de que ele e Kurt tinham conseguido acumular créditos suficientes com a agência para cobrir o prejuízo. Além disso, se as histórias que circulavam fossem verdadeiras, Dirk perdera alguns dos brinquedos mais caros do almirante Sandecker ao longo dos anos. Poderia realmente ficar muito irritado?


11. Percorrendo um corredor do navio Matador da NUMA, Paul Trout precisava se abaixar a cada vez que chegava a uma porta estanque. Se qualquer pessoa com um metro e oitenta precisava de baixar a cabeça nas portas para evitar uma pancada desagradável, Paul media dois metros e sete descalço, com ombros largos e membros longos. Quase precisava de se contorcer para conseguir avançar incólume. Como pescador ávido que preferia o ar livre, não fora feito para o interior apertado de um navio moderno. Naturalmente, passava grande parte do seu tempo em navios, torcendo-se para entrar em pequenos compartimentos repletos de maquinaria, curvando-se de formas desconfortáveis para conseguir encaixarse dentro de submersíveis ou simplesmente para percorrer os corredores internos de navios. Em outro dia, teria feito um desvio pelo convés para ir da popa à proa, mas o Matador operava ao largo das Ilhas Malvinas no Atlântico Sul. Era inverno no hemisfério sul, o vento e o mar estavam agitados. Enfiando-se por outra escotilha, Paul alcançou um compartimento mais espaçoso. Espreitou para o interior. A sala pouco iluminada estava silenciosa e a maior parte da luz provinha de mostradores, teclados iluminados e de um trio de monitores planos de alta definição. Dois investigadores de aspecto desmazelado sentavam-se diante dos monitores e, entre eles, sobre uma placa de vidro iluminado coberta com uma grelha, estava uma mulher de silhueta esguia com os braços esticados como se se equilibrasse sobre um arame. Um visor cobria-lhe os olhos e prendia-lhe o cabelo vermelho de vinho como uma bandolete, enquanto luvas de aspecto estranho com fios projetando-se delas lhe envolviam as mãos. Nos pés, um par de botas de alta tecnologia também com fios, todos dirigindo-se para um grande computador colocado alguns metros atrás. Paul sorriu enquanto olhava para a sua mulher, Gamay. Parecia uma bailarina robótica. Moveu a cabeça para a direita e a imagem nos monitores moveu-se de forma semelhante, com luzes intensas iluminando uma superfície lisa e coberta de sedimentos com um buraco irregular no que fora outrora o casco de um navio da Marinha Britânica. — Cavalheiros — disse —, aqui está o ponto de entrada do míssil Exocet que afundou o seu prezado navio. — Não parece assim tão mau — disse um dos homens. O seu sotaque


inglês era tão denso como a barba. O Sheffield tinha sido a primeira grande baixa britânica na Guerra das Malvinas, atingido por um míssil de fabricação francesa que não detonou, mas provocou mesmo assim incêndios que se alastraram ao resto do navio. Sobreviveu durante seis dias após o ataque antes de se afundar durante uma tentativa de reboque para o porto. — Malditos franceses — disse o outro inglês. — Seria vingança por Waterloo e Trafalgar. O barbudo riu. — Na verdade, fizeram questão de partilhar conosco as fraquezas destes mísseis e ajudaram-nos a travá-los, mas preferia que tivessem sido um pouco mais cautelosos com a escolha dos compradores. — Apontou a abertura. — Consegue entrar? — Claro — respondeu Gamay. Moveu a mão direita e fechou os dedos sobre um manípulo de controle invisível. Um segundo depois, os sedimentos agitaram-se um pouco e a câmera começou a se aproximar do rombo no casco. Paul observou um dos monitores na parede. Numa imagem que fazia lembrar um videojogo de tiros com perspetiva de primeira pessoa, viu o que Gamay via no seu visor: um painel de controle e vários medidores indicando a profundidade, a pressão, a temperatura e a orientação horizontal e vertical. Também viu um segundo monitor que mostrava a imagem captada vários metros atrás do veículo que pilotava. Voltava a parecer um videojogo. Uma figura robótica pequena, quase com forma humana, movia-se para diante em direção às placas blindadas destruídas do casco. — Desligar umbilical — disse Gamay. Muito mais pequeno que um VCR comum e com uma forma que se aproximava mais de uma pessoa do que de um veículo submarino, a figura era conhecida por uma designação que soava pessimamente: Explorador Robótico Submarino Autônomo Antropomórfico Avançado. Porque o acrônimo formava RAPUNZE1, a equipe de testes começara a chamar de Rapunzel a pequena figura. E aquele momento, quando se desligava de todos os contatos com a superfície, era visto como o momento em que Rapunzel “deixava cair os seus longos cabelos”. Em circunstâncias normais, Rapunzel conseguia desligar-se do cabo com quilômetro e meio de comprimento que a mantinha ligada ao Matador, operando de forma autônoma em ambientes onde cabos, fios e tudo o resto que arrastasse constituiriam um risco. Alimentada por baterias que durariam três horas sem ligação, era impelida por uma hélice colocada no que seria a sua barriga. Com


capacidade de oscilação plena, podia ser girada trezentos e sessenta graus em qualquer direção, permitindo-lhe subir, descer, mover-se de lado, recuar ou qualquer combinação intermédia. A forma humana permitia-lhe curvar-se e atingir locais inacessíveis a um VCR comum. Conseguia mesmo encolher, retraindo os braços e as pernas para não ocupar mais espaço do que uma bola de praia com uma luz e uma câmera no alto. Usando o controle de realidade virtual e as botas e luvas com captação de impulsos, os seus criadores tinham tornado possível controlar Rapunzel como se um humano estivesse nas profundezas a fazer o trabalho pessoalmente. Esperava-se que fosse um grande avanço para o mundo dos resgates, mantendo mergulhadores longe de destroços perigosos e permitindo a exploração de destroços há muito considerados demasiado perigosos ou demasiado profundos. Explorar o Sheffield deveria ser a inauguração de Rapunzel, mas algo estava mal. Uma luz vermelha de aviso piscava repetidamente num dos teclados e também no cockpit virtual. O umbilical não se soltava. — Deixem-me tentar isto outra vez — disse Gamay, reiniciando a sequência. Paul avançou em silêncio. — Não queria interromper — disse —, mas receio que Rapunzel tenha que vir comer. — É o meu marido maravilhoso? — perguntou Gamay, continuando a manipular controles imaginários. — É. Temos uma tempestade começando — explicou Paul, com o seu sotaque do Nordeste alterando a pronúncia da palavra “tempestade”. — Precisamos preparar o navio e seguir para norte antes que se intensifique mais. Gamay deixou cair um pouco os ombros. Não importava. O umbilical não se soltava e não podiam enviar Rapunzel para o interior do navio com os cabos ainda presos. Pressionou alguns interruptores. A inscrição “Retorno Automático” surgiu na tela e a mão virtual de Gamay ergueu-se e pressionou. Rapunzel começou a afastar-se do Sheffield e a ascender das profundezas. Os LED nas luvas e botas de Gamay apagaram-se. Tirou o visor e pestanejou na direção de Paul. Avançou para ele e quase perdeu o equilíbrio. Paul apanhou-a. — Estás bem? — É um pouco desorientador quando saímos — explicou. Pestanejou mais algumas vezes, como se tentasse focar-se novamente no mundo real. A seguir, sorriu-lhe. Paul retribuiu o sorriso. Nunca deixara de sentir alguma incredulidade por


ter tido a sorte de encontrar uma mulher tão bonita e tão perfeita para ele. — Como foi? — perguntou. — É como estar lá embaixo — respondeu. — Só que não fico molhada e enregelada e posso almoçar contigo enquanto a Rapunzel faz a viagem de quinze minutos até a superfície. Aproximou-se e beijou-o. — Hmm-hmm... — Um dos ingleses pigarreou ruidosamente. — Desculpem — disse ela, voltando-se novamente para eles. — Diria que a Rapunzel será uma enorme vantagem para nós. Vamos resolver os problemas enquanto a tempestade dura e voltaremos a lançá-la ao mar para tentar novamente. — Na verdade — começou Paul —, não o faremos. Pelo menos até outubro. — O tempo está a ficar demasiado duro para si, meu rapaz? — perguntou o inglês. — Quando era miúdo, enfrentávamos ondulação desta numa lancha. Paul não duvidava que o homem dizia a verdade. Era um veterano da Marinha Real com vinte e cinco anos de experiência, reformado uma década antes. Estava a bordo do Sheffield quando este foi atingido pelo projétil letal. — Suponho que esteja — disse Paul, aceitando a justificação. — Seguimos para norte. Quando tivermos deixado a tempestade para trás, um helicóptero virá buscá-los. Calculo que voltem à Inglaterra. Vou cuidar para que tenham chá a bordo. — Ah! — exclamou o barbudo. — Muito simpático da sua parte. Os dois ingleses se ergueram. — Parece que vimos o que queríamos ver. Adoraria receber um convite quando voltarem. — Claro — disse-lhe Gamay. Apertaram-lhe a mão e saíram, percorrendo o corredor com uma progressão muito mais fácil que a de Paul, minutos antes. Gamay acompanhou-os com o olhar. — Abandonamos o local por uma tempestade que acalmará em poucos dias? — perguntou, desconfiada. — Pareceu-me uma boa desculpa para os nossos convidados — replicou Paul. — Que se passa? — perguntou ela. — E não me mintas ou dormes sozinho esta noite. — Ouviste falar do cargueiro que se afundou no outro dia? O Kurt estava presente quando aconteceu. Salvou a mulher do capitão. — Claro — disse Gamay. — Os sarilhos encontram-no sempre. Paul riu. Era verdade que os sarilhos conseguiam localizar Kurt e fazer-lhe


visitas. Paul e Gamay participavam frequentemente no que se seguia. Pareceulhes que não seria uma exceção. — O afundamento teve mais pormenores do que os que foram transmitidos à imprensa — explicou. — Que tipo de pormenores? — Piratas que matam a tripulação e afundam deliberadamente o navio — disse Paul. — Não soa bem, hein? — perguntou Gamay. — Não — respondeu. — Não para Kurt ou para Dirk ou mesmo para a companhia de seguros. Depois da autorização, Dirk pediu que levássemos a Rapunzel até o local para dar uma olhada. Gamay descalçou as luvas robóticas e sentou-se para tirar as botas. — Parece-me simples — considerou. — Por que pareces tão preocupado? — Porque Dirk me disse que não havia motivo para preocupação — disse Paul. — Acha que alguém se deu a grande trabalho para esconder o que aconteceu naquele navio. Se for esse o caso, sejam quem forem, poderão ficar um pouco incomodados se formos espiolhar. Gamay ergueu o braço e Paul ofereceu-lhe a mão. — Achas que consegues fazer a Rapunzel entrar num navio afundado? — perguntou. — Gostaria de ter completado o teste — disse. — Mas sim, acho que conseguiremos que entre.

________________ 1 No original: Robotic Advanced Zeroconnection Explorer. (N. do T.)

Person-shaped

Underwater


12. Enquanto avançava trinta metros abaixo da superfície, o Barracuda parecia mais uma jamanta de asas atarracadas do que um submarino (ou uma barracuda). Tinha metade do tamanho de um carro compacto, o nariz em cunha estreitado tanto horizontal como verticalmente, com ligeira projeção bulbosa na extremidade. Era um detalhe hidrodinâmico que fazia a água deslizar suavemente em volta do veículo e por cima, reduzindo o atrito e aumentando ao mesmo tempo sua capacidade de aceleração e sua velocidade máxima. Além disso, a pele de aço inoxidável estava coberta com sulcos microscópicos em V, demasiado pequenos para serem encarados à distância como algo mais do que um acabamento. Os sulcos eram muito semelhantes aos usados no casco de iates de corrida, pois também contribuíam para um aumento da velocidade ao reduzirem o atrito. Porque se esperara que viesse a ser usada para fazer trabalhos de resgate, um compartimento fechado na base de cada asa continha equipamento variado: maçaricos de corte, ganchos e outras ferramentas. Na verdade, o Barracuda fora concebido mais como um caça invisível ao radar do que como um submarino. A questão era: conseguiria voar como um? Com Kurt e Joe sentados um atrás do outro, Kurt aos comandos e Joe atrás, monitorizando os sistemas, o Barracuda movia-se a trinta e quatro nós. Joe insistia que conseguiria atingir os quarenta e cinco, mas isso esgotaria rapidamente a bateria. Para completar duas voltas ao percurso de cinquenta milhas da corrida, trinta e quatro seria a velocidade máxima. — Aproximamo-nos de uma mudança de profundidade — disse Joe. A corrida não decorria apenas num plano horizontal, em que os submarinos poderiam mover-se à velocidade máxima e voltar ao ponto de partida. Implicava manobras: mudanças de profundidade, mudanças de curso e até uma seção que exigia que contornassem um grupo de marcos, avançando até certo ponto e recuando antes de se voltarem e correrem até a boia seguinte. A competição envolvia três fases, com um prêmio de cem mil dólares oferecido ao vencedor de cada fase e dez milhões para o grande vencedor. — Acreditas que estes tipos oferecem dez milhões ao vencedor? — perguntou Joe, entusiasmado. — Espero que percebas que, se ganharmos, o dinheiro irá para a NUMA — replicou Kurt.


— Não me deprimas — pediu Joe. — Estou a sonhar. Vou comprar um rancho em Midland e uma van do tamanho de uma pequena retroescavadora. Kurt riu. Por um momento, pensou no que poderia fazer com dez milhões de dólares. A seguir, percebeu que talvez fizesse exatamente o que fazia naquele momento. Trabalharia para a NUMA. Veria o mundo. Ocasionalmente, salvaria um oceano ou dois. — Quem oferece o dinheiro? — A African Offshore Corporation — respondeu Joe. — Interessam-se muito por perfurações de profundidade. Kurt acenou com a cabeça. O suposto objetivo da competição era desenvolver submersíveis que pudessem ser usados para funcionar com rapidez, segurança e autonomia a profundidades até trezentos metros. Supôs que tivesse mais a ver com publicidade do que com qualquer outra coisa. Mesmo que não recebesse o dinheiro, gostava de ganhar. — Dentro de quinze segundos, iniciar descida até os setenta e seis metros — disse Joe. Kurt levou a mão a um teclado, introduziu 7-6 e fez o dedo pairar sobre a tecla “Enter”. Poderiam alterar manualmente a profundidade se quisessem, mas o computador seria mais preciso. — Três... dois... um... agora. Kurt pressionou “Enter” e ouviram uma pequena bomba expelir óleo da traseira para uma câmera dianteira do submersível. Isto fez com que o nariz se tornasse mais pesado e descesse. Sem necessidade de deixar entrar água para descidas em ângulo ou de ajustar a potência, o Barracuda prosseguiu em velocidade de flanco, descendo e acelerando. À volta, a luz começou a diminuir e o azul que os envolvia escureceu. No alto, o dia estava bonito e ensolarado, com pressões altas a toda a volta. — Como estamos? — perguntou Kurt. — Quatro milhas para o marco exterior — disse Joe. — E os outros participantes? A corrida era cronometrada. Os submersíveis tinham partido com intervalos de dez minutos para manter a distância entre cada um, mas Kurt e Joe tinham já ultrapassado um deles. Mais para a frente, alcançariam outro participante. — Podemos pegar quem atravessar na nossa frente — disse Joe. — Não é uma corrida NASCAR — replicou Kurt. — Desconfio que haveria subtração de pontos. Enquanto Kurt mantinha o Barracuda perfeitamente estável, ouviu Joe pressionando teclas atrás dele. — De acordo com a telemetria — começou Joe —, o XP-4 está meia milha


à nossa frente. Deveremos ver-lhe as luzes traseiras daqui a cerca de dez minutos. Kurt gostou de ouvir aquilo. A mudança de profundidade seguinte ocorreria dali a sete minutos. Subiriam até os quarenta e cinco metros, passariam uma ravina, e continuariam sobre o topo de uma meseta submarina, uma planície que, outrora, fora um campo de lava submerso. — É mais fácil e mais divertido ultrapassar alguém quando conseguem vernos passar — disse. Sete minutos depois, Kurt fez subir o Barracuda, passaram a ravina e nivelaram imediatamente nos quarenta e cinco metros. No momento seguinte, o rádio deu sinais de vida. — ... problemas elétr... icos... bateria... avaria de sistem... A transmissão intermitente de baixa frequência era difícil de perceber. Mas fez soar sinais de alarme na cabeça de Kurt. — Ouviste? — Não consegui perceber — disse Joe. — Mas alguém passa por dificuldades. Kurt permaneceu calado. Todos os submersíveis tinham sido equipados com um rádio de baixa frequência que, em teoria, conseguiria alcançar boias flutuantes distribuídas pelo percurso capazes de retransmissão para os juízes e para os navios de segurança posicionados em pontos predeterminados. Mas o sinal era tão fraco que Kurt não conseguiu perceber quem transmitia. — Falou em problemas elétricos? — Acho que sim — respondeu Joe. — Contacta-o — pediu Kurt. No momento seguinte, Joe usava o rádio. — Embarcação transmitindo problemas. Transmissão com interferências. Repita, por favor. Os segundos passaram sem resposta. O pressentimento de Kurt tornou-se ainda mais negro. Para tornar os submarinos rápidos, a maioria tinha sido construída com tecnologia algo experimental. Alguns usavam mesmo baterias de lítio ionizado que, em circunstâncias raras, podiam incendiar-se. Outros tinham motores elétricos experimentais e até cascos de polímeros finos. — Embarcação transmitindo problemas — repetiu Joe. — Daqui Barracuda. Repitam a mensagem, por favor. Transmitiremos para a superfície. À frente, Kurt viu um rastro de bolhas. Tinha de ser deixado pelo XP-4. Esquecera-o por completo e avançava em direção à sua traseira. Guinou o Barracuda para a esquerda e notou algo estranho: o rastro de bolhas arqueava para cima e para a direita. Não fazia sentido. A não ser...


— É o XP-4 — disse. — Tem de ser. — Tens a certeza? — Verifica o GPS. Kurt esperou enquanto Joe trocava de tela. — Estamos em cima dele. — Mas não o vejo em lugar nenhum — disse Kurt. Joe voltou ao rádio. — Barracuda para XP-4, na escuta — disse. — Transmitem problemas? Um ruído estático breve ouviu-se pelo rádio. A seguir, mais nada. — Se mudamos de direção, perdemos — advertiu Joe. Kurt ponderara essa possibilidade. As regras eram rigorosas. — Esquece a corrida — disse Kurt, iniciando uma curva apertada para a direita, diminuindo a velocidade e ocupando-se manualmente dos controles de profundidade. Ligando as luzes do Barracuda, procurou o rastro de bolhas. — De que é feito o XP-4? — perguntou. Joe conhecia melhor os outros participantes do que ele. — De aço inoxidável como nós — respondeu Joe. — Talvez possamos usar o magnetômetro para ajudar a encontrá-lo. Quinhentos quilos de aço deverão ser captados a esta distância. Kurt avistou o que pensou ser o rastro de bolhas. Virou para seguir o rastro curvo e descendente. Atrás dele, Joe ativou o magnetômetro. — Há alguma coisa mal — disse Joe, mexendo nos controles. — Que se passa? — Vê por ti mesmo. Joe pressionou um botão e a tela central no painel de instrumentos de Kurt alterou-se. As linhas de azimute e de densidade magnética deveriam ser relativamente estáveis, mas as várias linhas subiam e desciam e o indicador direcional girava como uma agulha de bússola descontrolada. — Que raio se passa com isto? — murmurou Kurt. — Não sei. Voltou a ouvir-se estática no rádio e, daquela vez, uma voz. — ... problemas... fumaça na cabine... possível fogo elétrico... desligar todos os sistemas... por favor... A transmissão terminou abruptamente e conseguiu gelar o sangue de Kurt. Olhou o para-brisas de acrílico curvo do Barracuda, reduzindo ainda mais o pequeno submarino. Enquanto a velocidade ia caindo, baixou o nariz até ficarem quase na vertical. Descendo lentamente, sondou o fundo. A quarenta e cinco metros de profundidade, a luz da superfície ainda conseguia perceber-se, mas a cor em redor era um azul-escuro denso e a visibilidade ficara limitada a uma distância


rondando os quinze metros. As luzes do Barracuda serviam para ampliar essa visibilidade. Porque a água do mar dispersa e absorve cumprimentos de onda luminosos mais rapidamente, Joe instalara lâmpadas especiais com luz intensa que se enquadrava entre o amarelo e o verde no espectro visível. As luzes ajudaram a romper a escuridão e, quando o Barracuda se aproximou do fundo, Kurt avistou o que lhe pareceu um sulco arenoso. Virou-se para o seguir. — Ali — disse Joe. Mais à frente, um cilindro de aço mais enquadrado na imagem convencional de um submarino repousava de lado. O nome “XP-4” era visível, pintado com grandes letras pretas. Kurt contornou-o até alcançar um ponto em que conseguia ver a cobertura da cabine. Viam-se bolhas saindo lentamente da popa, mas a cabine parecia intacta. Desligou as luzes e tentou pairar ao lado do veículo em apuros, mas a corrente dificultava-o. — Faz-lhes sinal. Enquanto Kurt se esforçava para manter o Barracuda na posição certa, Joe pegou numa lanterna, apontou-a à cobertura do XP-4 e transmitiu uma mensagem em código morse. Kurt conseguiu ver movimento no interior. A seguir, viu a transmissão de uma resposta. — Toda... eletr... desligad — disse Joe, traduzindo. Kurt sentiu que a corrente os arrastava novamente e acelerou. — Terão oxigênio — disse, recordando as regras de segurança determinadas pelos organizadores da corrida. — Conseguem soltar a cobertura? Joe acendeu e apagou a lanterna, transmitindo a mensagem. A resposta dilacerou as esperanças. — Cobertura... eletr... presos. — Quem teve a ideia de fazer uma cobertura elétrica? — murmurou Kurt. A seguir, virou-se para fitar Joe. — A nossa tem controle manual — assegurou-lhe Joe. — Estava só confirmando. Joe sorriu. — Conseguiremos rebocá-los? — Parece que precisamos fazê-lo — respondeu Kurt. — Use o gancho. Atrás dele, Joe ativou os controles do gancho enquanto se abria um painel na asa direita do Barracuda. Um mecanismo metálico dobrado emergiu. Quando


ficou corretamente posicionado, desdobrou-se, formando um longo braço metálico com uma garra na extremidade. Kurt percebeu que se afastavam do XP-4 enquanto a garra se estendia. — Aproxima-nos — pediu Joe. Kurt voltou a acelerar e o Barracuda avançou em direção à popa do XP-4, alcançando um ponto em que uma pega se projetava do casco. Na superfície, o navio de apoio do XP-4 podia prender uma grua àquela pega e içá-lo para fora de água. Kurt e Joe tentariam fazer o mesmo no fundo. — Talvez isto conte para a nossa pontuação de resgate — disse Joe. — Esquece isso e apanha-os — disse Kurt. A garra estendeu-se e falhou o alvo. Kurt ajustou o posicionamento e Joe voltou a tentar e a falhar. — Algo está mal — disse Joe. — Sim. A tua pontaria — disse Kurt. — Ou a tua navegação — disse Joe. Kurt não queria ouvi-lo, mas era verdade. E, no entanto, de cada vez que compensava a força da corrente, o Barracuda parecia ser novamente empurrado. Olhou os sedimentos no exterior numa tentativa de perceber melhor a corrente. — Ah... Kurt? — disse Joe. Kurt ignorou-o. Algo estava realmente mal. A não ser que os seus olhos tivessem sido danificados de alguma forma, o Barracuda movia-se na direção oposta à da corrente. E, estranhamente, o XP-4 também se movia, apesar de o fazer com uma velocidade inferior, por se arrastar sobre o fundo. — Kurt — repetiu Joe com maior urgência. — O que foi? — Olha para trás. Kurt virou o submarino alguns graus e rodou o pescoço. O fundo arenoso cedeu lugar à escuridão. Deslizavam para algum tipo de penhasco. Nos mapas, surgia como uma depressão circular profunda com uma elevação ao centro: a caldeira de um vulcão ativo naquele local milhares de anos antes. Pensar no XP-4 danificado caindo ao fundo da caldeira com dois homens presos dentro bastou para fazer Kurt esquecer os movimentos estranhos dos dois submersíveis. Tudo o que queria era agarrar o XP-4 e sair dali. Avançou até quase ficarem com o nariz colado ao da outra embarcação. Joe raspou a garra metálica pela pega, mas sem conseguir segurá-la. Os sedimentos começaram a agitar-se em redor enquanto Kurt aumentava mais a velocidade. Alcançaram o ponto em que o fundo começava a inclinar-se. Eram arrastados para a caldeira por um motivo qualquer. Kurt aplicou a potência máxima, bloqueando a progressão do XP-4, acelerando numa tentativa


de impedir que caíssem. O XP-4 começou a sacudir, inclinando-se contra o nariz do Barracuda. Era arrastado para além do submersível que viera em seu auxílio. A caldeira abria-se diante deles. — Agora ou nunca, Joe. Joe gemeu enquanto forçava os controles. O braço estendeu-se e a garra fechou-se sobre a pega. — Apanhei-os — disse Joe. O XP-4 atingira o limiar do penhasco e caía. Kurt não teve escolha além de deixar cair também o Barracuda durante um momento. Se acelerasse bruscamente, o braço dobraria e o peso fá-lo-ia partir-se. Deslizaram para o abismo, deixando-se envolver pela escuridão. Kurt moveu o nariz do Barracuda na direção oposta. A garra girou até apontar para a popa e os dois submersíveis caíram lado a lado enquanto Kurt aumentava lentamente a velocidade do propulsor principal. Lentamente, o Barracuda puxou o XP-4 para longe da parede da caldeira e começou a nivelar-se. As duas embarcações continuavam a afundar-se, estranhamente atraídas para o centro do vulcão. O Barracuda começou a acelerar, com a forma de torpedo do XP-4 seguindo-o. Desde que Kurt os rebocasse sem mudanças de direção bruscas e sem dobrar o braço, sentia-se relativamente confiante de que resistiria. — Continuamos a descer — disse Joe. Kurt percebeu que sim, mas não conseguia explicá-lo. — Talvez lhes tenha entrado água — calculou. Aumentou a potência quase até o máximo. A descida diminuiu e começaram a ganhar a velocidade que lhes seria necessária para a subida. Uma forma surgiu-lhes pela frente, um pilar rochoso de trinta metros que se erguia do centro da caldeira como uma chaminé. Se tivesse que adivinhar, Kurt diria ser um jorro de lava que esfriara e endurecera quando aquela abertura em particular do sistema de ventilação interna do planeta adormecera. O problema era que ficava diretamente na frente. — Devo esvaziar os tanques? — perguntou Joe. — Não. Podemos perdê-los — respondeu Kurt. Atingiu a velocidade máxima e ergueu lentamente o nariz. Aproximavam-se da coluna rochosa com uma rapidez assustadora. — Vamos — suplicou Kurt. A coluna parecia atraí-los como um buraco negro. E, com o peso que rebocavam, pareciam quase incapazes de ultrapassar a velocidade mínima na subida.


— Vamos, maldição. Para cima — gemeu Kurt. Dirigiam-se para ela, como um avião voando contra a encosta de uma montanha. Toda a luz da superfície fora bloqueada pela sombra da rocha. Subiam, mas não com velocidade suficiente. Uma colisão frontal parecia inevitável. — Vamos — disse Kurt. — Kurt? — disse Joe, com a mão sobre o controle do lastro. — Vamos, seu... Subitamente, voltaram a ver luz e, no último segundo, conseguiram erguerse sobre a coluna. Kurt nivelou, permitindo o aumento da velocidade. — Acho que raspamos a pintura — disse. Atrás dele, Joe suspirou de alívio. — Olha para o magnetômetro — disse. Kurt nem ouviu o que disse. — Aponta para trás, para aquele pilar de rocha. É um tipo de campo magnético de grande intensidade — disse Joe. Em qualquer outro momento, Kurt teria considerado aquilo interessante, mas, à sua frente, iluminada pelas luzes amarelo-esverdeadas, contemplou uma visão em que lhe pareceu difícil acreditar. O mastro de um grande navio erguia-se do fundo oceânico como uma árvore isolada e desprovida de ramos. Mais além, repousava um navio de pesca mais pequeno e, imediatamente à esquerda, o que teria sido outrora o casco de um cargueiro a vapor. — Joe, estás a ver isto? — perguntou. Enquanto Joe se posicionava para ver melhor, Kurt levou o Barracuda três graus para a direita, passando sobre as três embarcações naufragadas. Enquanto o fazia, avistaram outras. Navios de carga semelhantes aos velhos Liberty, com os cascos enferrujados cobertos por uma fina camada de algas e sedimentos. A toda a volta, contentores retangulares estavam espalhados como se tivessem sido lançados borda fora de forma aleatória por algum navio. Viram a asa de um pequeno avião e mais quatro ou cinco objetos irreconhecíveis que pareciam ser de fabricação humano. — O que é este lugar? — perguntou Kurt, pensando em voz alta. — Parece uma espécie de cemitério de navios — respondeu Joe. — Que fazem todos aqui? Joe sacudiu a cabeça. — Não faço ideia. Passaram sobre os navios e o fundo do oceano voltou lentamente ao normal, passando a ficar coberto sobretudo com sedimentos salpicados ocasionalmente por algas e corais. Querendo voltar ao local, mas percebendo que tinham um encontro mais urgente com a superfície, Kurt ergueu novamente o nariz do Barracuda,


iniciando a subida. Lentamente, o fundo começou a distanciar-se. Nesse momento, com a última passagem das luzes, Kurt viu algo mais: a fuselagem de um grande avião parcialmente enterrado nos sedimentos. A sua cabine comprida e estreita alongava-se com linhas graciosas até terminar numa empenagem tripla facilmente identificável. Kurt conhecia aquele avião. Quando era mais jovem, construíra um modelo com o seu pai que o reproduzira à escala. Juntamente com um amigo, destruiu-o numa explosão com fogos de artifício que encontraram. O avião com as linhas arrojadas e a empenagem tripla era único. Era o belíssimo Lockheed Constellation.


13. Nova York, 19 de junho

Os escritórios nova-iorquinos da Shokara Shipping Company ocupavam vários pisos de uma estrutura moderna de vidro e aço na baixa de Manhattan. Como operadora internacional de cento e dezessete navios mercantes, a Shokara acompanhava a localização de cada um a partir de uma sala de controle no quadragésimo sexto andar, recebia clientes potenciais no quadragésimo sétimo e geria a contabilidade no quadragésimo oitavo. O quadragésimo nono piso estava reservado para VIP e para executivos e costumava estar vazio além das equipes de limpeza, que mantinham imaculado o espaço projetado segundo os princípios do feng shui. Aquela semana, no entanto, foi muito diferente. O presidente e administrador executivo da Shokara, Haruto Takagawa, estava presente. Como resultado, tanto o nível de atividade como o nível de segurança tinham sido multiplicados várias vezes. Takagawa planejara originalmente passar um mês em Nova York, desfrutando da Broadway, da vida noturna e dos maravilhosos museus da cidade. Ao mesmo tempo, encontraria vários corretores da bolsa e gente da Securities and Exchange Commission. No fim do mês, esperava anunciar a cotação da Shokara na bolsa de Nova York, uma oferta privada de aumento de capital e o estabelecimento de uma nova filial, a Shokara New York, que começaria a ocupar-se das viagens entre os Estados Unidos e a Europa. E, mesmo que estas tarefas continuassem presentes no seu horário, Takagawa passara a maior parte da semana anterior lidando com os resultados de um ataque de piratas e consequente afundamento de um dos seus navios, o Kinjara Maru. A situação era para ele duplamente sensível. Em primeiro lugar, porque surgia num momento horrível, imediatamente antes das movimentações empresariais que planejara. Em segundo lugar, porque o navio fora registrado para viagens entre Singapura e a Austrália e não entre África e Hong Kong. Esse fato fizera a companhia de seguros alegar que a apólice se tornara nula, já que os navios eram atacados com maior frequência junto à costa africana do que em viagens entre a Ásia e Perth ou Sidney. Sendo verdade que estes dois espinhos cravados eram incômodos, não


teriam consequências a longo prazo. Chegariam a acordo com a companhia de seguros depois de abaterem um ou dois pontos percentuais ao pagamento e, dias depois, ninguém em Nova York daria maior atenção ao seu navio afundado do que a um camião com um pneu furado. Aquelas coisas aconteciam. O que realmente importava era a exigência dos compradores chineses, forçando o reembolso pela carga perdida. Era complicado por muitas razões, mas sobretudo pela natureza da própria carga. Como conglomerado japonês, a Shokara operava segundo a lei japonesa, mas, ao tentar abrir uma filial americana, esperavam que Takagaua se submetesse aos regulamentos locais. Esses regulamentos proibiam a transferência de determinadas tecnologias para outros países e alguns dos materiais a bordo do Kinjara Maru podiam se enquadrar nessa categoria. Naquele momento específico, não podia permitir que essa informação fosse divulgada. Se acontecesse ou se as pessoas erradas ouvissem a verdade e se enfurecessem, os dias que Takagawa passasse em Nova York poderiam transformar-se em férias muito dispendiosas. Quando sentia que as coisas começavam a serenar, o seu intercomunicador deu sinal. — Sr. Takagawa — disse a secretária. — Há dois homens no piso térreo que gostariam de ser recebidos. Takagawa não se deu ao trabalho de perguntar se tinham entrevista marcada. Se tivessem, teriam permitido que subissem. — Quem são? — As credenciais indicam que integram uma organização americana chamada Agência Nacional Subaquática e Marítima1 — explicou. — Querem falar do Kinjara Maru. A NUMA. Takagawa conhecia bem a agência e não apenas porque o destino fizera seus membros perceberem o ataque a seu navio e tentar intervir. Conhecia a NUMA graças a um incidente ocorrido mais de uma década antes. Ao contrário de outros no mundo da navegação comercial japonesa, sentia grande afinidade com homens e mulheres da NUMA. Esse fato tornava sua resposta muito mais difícil. — Diga que não posso discutir esse assunto — disse. O silêncio imperou por um momento e Takagawa inclinou-se para o lado. Ligou um monitor e pressionou um botão que lhe permitia ver o balcão da recepção no átrio do edifício. Dois jovens de fato mantinham-se lá embaixo, aparentando ansiedade. Pareciam mais advogados da Ivy League ou contadores do que os homens intrépidos com que lidara outrora. Mas haveria apenas um motivo para quererem


falar com ele do Kinjara Maru. Fazia sentido que fossem advogados. A voz da secretária voltou. — Dizem que estão dispostos a esperar o dia todo se for necessário e que esse é urgente. — Podem esperar até o fim do mundo — respondeu —, mas não falarei com eles. Peça à segurança que os escolte até o exterior do edifício. Desligou o monitor de vídeo e voltou ao trabalho. A NUMA poderia dificultar-lhe a vida. Takagawa descobrira que podiam dificultar a vida a qualquer pessoa se o desejassem.

________________ 1 National Underwater and Marine Agency no original. (N. do T.)


14. Atlântico Oriental, 20 de junho

Vinte e quatro horas depois da descoberta do cemitério submarino, Kurt Austin encontrava-se junto à amurada de bombordo do Argo. O navio ancorara sobre a caldeira que quase engolira o XP-4, juntamente com Kurt, Joe e o Barracuda. Enquanto olhava para o mar, o sol vespertino começava a cair sobre o horizonte. Conferia à luz uma vaga tonalidade de bronze enquanto as sombras se alongavam e o ar se tornava mais úmido. Sob esta luz agradável, o mar mostrava-se plácido, com ondulação lenta, como se o sol quente o tivesse adormecido como um tigre na savana africana. Kurt pensava nos acontecimentos recentes. Depois de participarem a descoberta, Kurt e Joe tinham recebido um agradecimento público das autoridades portuguesas. Depois, em privado, tinham sido repreendidos e, imediatamente, foi-lhes ordenado que não perturbassem o local, que não retirassem dele qualquer objeto e que não regressassem, como se fossem vândalos ou ladrões. Ordens de vários tipos sucederam-se. Oficialmente, os portugueses insistiam que estas precauções eram motivadas por preocupações com a segurança. De certa forma, Kurt conseguia compreendê-lo. As propriedades magnéticas flutuantes à volta da formação rochosa dificultavam a navegação submarina. Ocasionalmente, quando o campo magnético atingia o seu ponto máximo, submersíveis de casco de aço, incluindo o Barracuda, eram literalmente puxados para ele como se estivessem presos a um cabo. Lutar contra essa força tornava-se cada vez mais difícil com o aumento da proximidade da coluna. Numa das movimentações, Kurt colocara-se numa posição em que a corrente e a atração magnética agiam no mesmo sentido. Pensou que só Deus o salvaria se chocasse. Pouco depois da sua experiência, um segundo submersível comunicou problemas elétricos. E, dias depois da exposição, o timoneiro e o navegador do XP-4 continuavam a queixar-se de dores de cabeça e de problemas de visão estranhos. Tudo aquilo era acrescentado ao mistério do local e às teorias da conspiração que já circulavam.


Quanto ao governo português, não tinha motivo para abafar as histórias. Podiam conduzir a um aumento repentino de dólares trazidos por turistas, algo que poderia ser muito útil a qualquer ilha pequena. De certa forma, esse influxo já começara. Na manhã posterior à descoberta, apenas o Argo estava presente no local. Naquele dia, havia já outros três navios e, acreditando nos boatos, chegariam dez no dia seguinte, todos repletos de turistas esperando dar uma olhada ao famoso “Cemitério Subaquático”. Promoviam-se visitas ao local, com comunicados de imprensa jorrando em catadupa e um vídeo com má definição conseguindo mais de um milhão de visualizações no YouTube. Em poucos dias, Kurt esperou que se instalasse o caos. Seria como tentar fazer mergulho com mil outros turistas e os seus fatos de banho berrantes e flutuadores de esferovite, sem deixar de imaginar que se tinha uma experiência aquática “real”. Enquanto pensava nisto, ouviu passos a aproximarem-se por trás. Virou-se e viu Joe Zavala, transportando uma garrafa de cerveja gelada em cada mão. — Bohemia — disse, passando-lhe uma. — A melhor cerveja do México. Kurt aceitou a garrafa e ergueu-a, saboreando a frescura gélida num dia tão quente e úmido. — Onde encontraste isto? — perguntou. — No abastecimento privativo do capitão — respondeu Joe. — Destinavase a celebrar a nossa vitória. — E o capitão permitiu-te acesso antecipado? — perguntou Kurt. Joe acenou afirmativamente. — É mau sinal — replicou Kurt. — Vamos ser fuzilados ao anoitecer? — Nah — disse Joe. — Mas fomos oficialmente expulsos da competição. Kurt não evitou a gargalhada. As regras existiam para serem cumpridas, mas parar para ajudar outro participante parecia um bom motivo para abrir uma exceção. — Que tal é perder dez milhões de dólares? — perguntou Joe. Kurt pensou no assunto. As suas hipóteses de vitória tinham sido elevadas. Bebeu outro gole da garrafa e debruçou-se sobre a amurada. — De repente — começou —, sinto-me muito feliz por saber que o dinheiro teria ido para a NUMA. Joe riu e os dois homens voltaram-se ao ouvir o som de um helicóptero a aproximar-se. Viram um MK 95 Super Lynx movendo-se em linha reta para o Argo, vindo de leste. Quando se aproximou, a insígnia verde e vermelha da Marinha Portuguesa era visível com clareza no flanco. Abrandou, pairando sobre a popa e começando a descer para o heliporto.


Um tripulante saiu de uma escotilha perto do local onde Kurt e Joe se encontravam enquanto o helicóptero pousava. — O capitão quer vê-los na sala de serviço — disse o tripulante. A escolha do momento pareceu suspeita. — Disse por quê? — perguntou Kurt. O tripulante hesitou, parecendo desconfortável. — Tem alguma coisa a ver com os recém-chegados, senhor. Segurou-lhes a porta, aparentemente incapaz de dar mais pormenores ou não pretendendo fazêlo. Joe olhou para Kurt. — Agora é que a fizeste bonita. Kurt arqueou as sobrancelhas. — O que te faz pensar que a culpa é minha? — É sempre — disse Joe. O tripulante passou nervosamente o peso do corpo de uma perna para a outra e murmurou: — O capitão pediu para não demorarem. Kurt acenou com a cabeça e começou a andar. — Eu disse que a cerveja gelada era mau sinal. Entrou. Joe o seguiu. — Pelo menos, estamos num navio nosso — disse. — Não podem nos fazer caminhar sobre a prancha num navio nosso... certo? A porta se fechou atrás deles e Kurt supôs que estivessem prestes a descobrir. Minutos mais tarde, Kurt, Joe e o capitão Haynes sentavam-se em cadeiras à volta de uma pequena mesa de reuniões. Como tudo o resto num navio com as dimensões do Argo, a sala de serviço era compacta e eficiente. Mas, com sete homens amontoados no interior, incluindo dois representantes de alta patente da Marinha Portuguesa e o chefe de governo dos Açores, o espaço tornava-se um pouco claustrofóbico. O capitão Haynes virou-se para eles. — Cavalheiros, este é o contra-almirante Alexandre Sienna da Marinha Portuguesa. Foi encarregue de gerir esta descoberta. Houve apertos de mão e troca de cordialidades. A seguir, o almirante Sienna foi direto ao assunto. — O meu governo acredita que encontraram algo de grande importância científica — começou. — Por isso, Portugal agradece. Era a reviravolta número três, pensou Kurt. E era provável que fosse inútil. — Sem amostras, não sabemos o que encontramos — disse Kurt. — Mas é provável que seja apenas um enorme aglomerado de uma liga de ferro magnetizado. Admito que será uma quantidade grande deste tipo de rocha muito específico concentrada num mesmo local, mas trata-se de um vulcão muito


antigo. Será invulgar, mas... — Asseguro-lhe, Sr. Austin, que isto será mais do que invulgar — disse o almirante. — Talvez tenha visto as aeronaves sobrevoando o local várias vezes por dia? Kurt recordou os voos. P-3 Orions portugueses. Presumira que vigiavam o Argo e os outros navios. Como se a presença a bordo de pessoal naval do Forte de São Brás não fosse suficiente. O almirante prosseguiu: — Temos usado instrumentos sofisticados para estudar o magnetismo. O que descobrimos até agora vai espantá-lo. A força magnética nesta área mantém-se num fluxo constante. Em dado ponto, seria suficiente para erguer várias centenas de toneladas. Uma hora mais tarde, não será muito mais forte do que o magnetismo natural da Terra. E, no entanto, várias horas mais à frente, o campo magnético torna-se mais poderoso que nunca. Era verdade que aquilo espantava Kurt e talvez explicasse por que manobrar em volta da torre de rocha vulcânica tinha sido tão complicado. No entanto, pelo que sabia, o magnetismo ferroso não oscilava muito. Era isso que permitia a extração mineira de rochas usadas como ímã que não precisavam de contenção especial. Alguns ímãs corriam o risco de desmagnetização, mas nada como o que o almirante descrevia. — Que explicação sugere? — perguntou Kurt. — Teremos de estudar as propriedades para ter a certeza — respondeu o almirante. — Mas os meus cientistas dizem-me que poderá ter descoberto a ocorrência natural de... — hesitou como se procurasse a palavra certa — “um material condutor”. E que, em condições geológicas específicas, talvez relacionadas com movimentos magmáticos subterrâneos ou mesmo com flutuações no campo magnético terrestre, esta torre de rocha e metal poderá adquirir uma carga vigorosa. Será assim que exercerá força magnética incrível sobre os objetos em redor. — Vigorosa — repetiu Kurt. — Gosto disso. Quase nos arrastrou durante uma dessas flutuações vigorosas. — Sim — disse o almirante. — Parece ser o que faz. Os peritos com que falamos acreditam que esta estrutura magnética poderá ter puxado todos os navios e os outros objetos que viu no fundo da caldeira. Kurt arregalou os olhos. Sentiu que se aproximavam a passos largos do domínio dos OVNI e das teorias sobre o desaparecimento de Amélia Earhart. — Está a brincar comigo? — perguntou. — Conseguimos sair de lá rebocando conosco o XP-4. Vi cargueiros lá embaixo e pelo menos dois aviões. Diz-me que acha que esta coisa os atraiu como uma sereia da mitologia grega?


O almirante pareceu chocado pelo arrojo de Kurt. O capitão Haynes parecia igualmente estarrecido. Joe debruçou-se. — Lembra-te da prancha — sussurrou. — Caminhar sobre ela. Nadar com los tubarones. Kurt inspirou fundo. — As minhas desculpas, almirante. Deixei-me levar pelo sentimento porque estamos perante uma descoberta de grande interesse científico que, pelo visto, está sendo transformada num parque de diversões. Devíamos investigá-la. Ou alguém deveria fazê-lo, mesmo que não fôssemos nós. Torna-se muito mais difícil fazer ciência real quando as hipóteses são tão astronômicas. — Sim — disse o almirante, parecendo desiludido. — Talvez esteja certo, mas asseguro-lhe que as forças eletromagnéticas que já medimos são realmente... astronômicas. Kurt sentiu que o almirante esperava que dissesse alguma coisa, talvez que mordesse um isco, mas não conseguiu impedir-se de o fazer. — Onde quer chegar? — Sabe o que é um supercondutor? — Sei o básico — respondeu Kurt, não estando realmente seguro de saber o básico. — São materiais condutores de eletricidade sem resistência. Ouço sempre que acabarão por ser usados em trens magnética e em coisas semelhantes no futuro. O capitão Haynes tomou a palavra e, por um momento, Kurt teve a impressão distinta de que os dois homens já tinham discutido o assunto. Talvez com outros participantes na discussão. — Os supercondutores são capazes disso e de muito mais — começou Haynes. — As suas propriedades tornam-nos perfeitos para qualquer aplicação eletrônica. Desde o fornecimento de energia a um computador, à levitação magnética de um trem ou à construção de motores elétricos para automóveis que alcancem resultados equivalentes a oitocentos quilômetros por litro. De acordo com um estudo, substituir a rede elétrica dos Estados Unidos por fios supercondutores reduziria em quarenta por cento a potência necessária para iluminar o país. Seria possível encerrar imediatamente pelo menos quinhentas centrais elétricas a carvão. — Não o sabia um perito, capitão. — E não era, até há três horas — replicou o capitão. — Conversei com o almirante e também com as pessoas da NUMA durante todo o dia. — Compreendo — disse Kurt. — Então, esses supercondutores poderão fazer alguma coisa pelo aquecimento global. Sobretudo se a tecnologia for aplicada no resto do mundo. Qual é o senão?


— A maioria dos supercondutores só funciona a temperaturas incrivelmente baixas — explicou o capitão. — Normalmente, é necessário esfriá-los com nitrogênio líquido ou algo semelhante para criar o efeito de supercondução. — Suponho que isso não funcione numa rede elétrica — disse Kurt. — Não funciona com nenhuma aplicação convencional — explicou o capitão Haynes. — Então por que falamos nisso? O almirante Sienna respondeu. — Porque, Sr. Austin, o que descobriu com seu amigo pode ser uma liga supercondutora que funciona quase na temperatura ambiente. Passava a fazer sentido. Nada de amostras. Nada de aproximações. Os marinheiros portugueses colocados a bordo do Argo, o patrulheiro que rondara o local desde o seu regresso. — Se for isso o que temos lá embaixo — explicou o capitão Haynes —, poderá valer milhões incalculáveis depois de ser analisada, sintetizada e produzida em massa. Fazia sentido para Kurt, mas até um supercondutor precisava de uma fonte de energia. — De onde vem a potência? — perguntou. — Estamos num arquipélago de origem vulcânica — recordou o almirante Sienna. — Poderá existir um trilião de toneladas métricas de magma por baixo da caldeira. E o magma incluirá na sua composição metal fundido. O movimento do magma criará um campo magnético próprio. Os nossos peritos asseguram-nos de que será possível que tais forças sejam muito grandes. — E acredita que esse magnetismo puxou estes navios e aviões para o fundo do oceano? — perguntou Kurt. — Na verdade, não sabemos — respondeu o almirante. — Estas águas têm uma reputação e tanto. Semelhante à do seu Triângulo das Bermudas. Não sabemos o que aconteceu aqui, mas a teoria que seguiremos defende que os navios, os contentores e os aviões que viu caíram nas águas a noroeste da caldeira. Há uma corrente forte que traça uma linha diagonal entre duas cadeias montanhosas baixas. Nos pontos em que o funil formado pelas montanhas se torna mais estreito, a força da corrente aumenta até decrescer no limiar da caldeira. Tudo o que tinham visto no fundo, os navios afundados, os aviões, os contentores e o resto da sucata, tudo isso repousava a noroeste da torre rochosa. — Diz que a soma da corrente e do magnetismo teria força suficiente para puxar tudo aquilo? O almirante acenou afirmativamente e Kurt pensou que quase fazia sentido.


— Então o que quer de nós? — Bom — começou o almirante Sienna —, estamos numa situação bastante delicada. Estas águas são disputadas entre o meu país e Espanha. Desde o tempo de Colombo, há mais de quinhentos anos. Porque a caldeira se situa a mais de doze milhas da ilha açoriana mais próxima, situa-se na zona disputada. A pesca e outras atividades são reguladas por uma teia intrincada de acordos. Temos um acordo até para a descoberta de petróleo. Kurt não gostou do rumo que a conversa parecia seguir. — Mas nada regula a exploração mineira submarina ou a descoberta de novas ligas metálicas — terminou o almirante. — Estão a discutir a quem pertence — disse Kurt. — Estamos... a debater — corrigiu o almirante. — Mas o meu país sente-se inclinado a enviar um dos seus melhores navios de guerra, a Corte Real, uma fragata da classe Vasco da Gama, para este local. Os espanhóis querem enviar também um navio da sua Marinha. Talvez não tão agradável ou impressionante, mas o suficiente para marcar presença. Compreende onde isto chegará. — Está bem. Teremos de nos afastar — disse Kurt. — Avise-me quando acertarem os pormenores. De certeza que conseguirá contactar-me no lar de idosos onde estarei quando isso acontecer. O almirante pareceu incomodado. — Tubarones — recordou-lhe Joe, entre dentes. — Sim — disse o almirante —, é provável que evolua para alguma forma de litígio. A não ser... Kurt inspirou fundo. — A não ser o quê? — A não ser que uma organização neutra de renome mundial se mostre disposta a assegurar a segurança do local e coordene a pesquisa inicial enquanto discutimos os pormenores com os nossos vizinhos. Kurt olhou para o capitão Haynes, vendo-o acenar com a cabeça. — Já transmiti a proposta ao diretor. Está de acordo. — Há muitos grupos a quererem visitar este local — disse o almirante. — Tenho já uma pilha de pedidos de cientistas que querem vir estudá-lo. Mas será necessário estabelecer regras e essas regras terão de ser seguidas. Se nos ajudarem a implementá-las... Kurt se virou para Haynes. — Capitão, é com você e com Dirk. Não conosco. Cumprimos ordens. — São os descobridores — disse o almirante Sienna. — E são bem conhecidos por outras coisas que descobriram, incluindo a estátua do Navegador, e pelo papel que desempenharam na descoberta da verdade sobre a medusa-azul


e no fim da praga que ameaçou o mundo no ano passado. Seria positivo que aqui estivessem. Todas as partes envolvidas respeitariam a sua presença. — Seremos os curadores — disse Kurt, incapaz de esconder o seu desdém pelo plano. — Os outros oficiais e eu trataríamos da burocracia e da logística — disse o capitão Haynes. — Você e o Joe cuidariam de manter tudo na linha. — Quer que sejamos os disciplinadores? — perguntou Kurt. O capitão sorriu. — Uma reviravolta e tanto. Kurt olhou para o mapa na parede. Quinhentas milhas a leste da posição que ocupavam, os Trout preparavam-se para mergulhar até o Kinjara Maru. O afundamento continuava a monopolizar-lhe os pensamentos sempre que tinha tempo para pensar e, depois do abandono repentino da corrida, esperara poder voltar e participar na descida. Parecia-lhe que os desenvolvimentos não o permitiriam. Estavam presos ali. Sabia-o. E, sendo esse o caso, calculou que seria melhor controlar a situação e gerir a burocracia do que tentar ultrapassá-la. Virou-se para Joe. — Sr. Zavala? — Sabes que estou sempre contigo — respondeu. Se Joe estava de acordo e se o capitão Haynes dava o seu aval, Kurt sabia, pelo menos, que não estaria sozinho. — Está bem — disse. — Aceito.


15. Moscou, Rússia, 21 de junho

Katarina Luskaya subiu a escadaria na fachada do edifício do Ministério da Ciência, regressando do almoço num dos magníficos parques moscovitas. Num dia ensolarado de junho, a temperatura era de vinte e sete graus, não havia muita umidade e a grande cidade parecia absolutamente fabulosa. Era difícil acreditar que, dali a três meses, as primeiras neves cairiam e, seis semanas depois, os termômetros desceriam aos trinta graus negativos e seria perigoso andar na rua. Aproveita enquanto podes, disse a si própria. Magra e atlética, Katarina tinha um sorriso caloroso, mas uma aparência relativamente discreta. O cabelo curto cor de mogno estava cortado num ângulo atraente que acompanhava a linha do queixo. Ocasionalmente, pendia-lhe sobre a cara, escondendo-lhe os olhos. Não era o tipo de mulher que atraísse atenções ao entrar numa sala, mas, depois de lá passar algum tempo, era possível que tivesse uma multidão à sua volta, atraída pela sua energia, pelo seu riso e pelo carisma, que superariam os encantos mais superficiais de outras mulheres. Com trinta e um anos, Katarina concluíra recentemente o seu doutoramento em sistemas energéticos avançados e tornara-se membro de pleno direito do Diretório Científico. A sua unidade tinha a missão de descobrir o que a Rússia deveria fazer se algum dia se esgotassem as reservas de petróleo e gás natural. As estimativas correntes referiam que o esgotamento aconteceria num período entre cinquenta e cem anos, o que fazia com que todos os elementos da equipe soubessem que o seu trabalho não satisfazia uma necessidade urgente. De certa forma, isso tornava tudo melhor. Ninguém os incomodava, ninguém interferia. Eram um dos poucos grupos do Diretório Científico a que era permitido efetuar pesquisa não adulterada, apenas em nome da ciência. Katarina gostava disso. Não construía armas. Não poluía o céu, o mar ou o solo. Não trabalhava para uma empresa que usasse o seu trabalho para conseguir lucros milionários, dando muito pouco em troca. Aquelas circunstâncias permitiam liberdade, uma certa pureza. E, no entanto, se fosse sincera, era frequente sentir-se intranquila. O suficiente para, num dia tão bonito, não lhe agradar voltar ao trabalho. Essa sensação multiplicou-se no instante em que chegou ao seu gabinete.


Entrou e encontrou um par de homens de fatos escuros à sua espera. Um, de face larga, nariz achatado e com barba que recuperava a bom ritmo do escanhoamento matinal, encontrava-se junto da parede mais distante. Parecia uma estátua, com as mãos unidas à frente. O outro homem, calvo e atarracado, sentava-se atrás da secretária dela. — Sente-se — disse o calvo. — Quem é você? — perguntou. — O que faz no meu... — Estamos ao serviço do Estado — disse o calvo em tom ominoso. Nunca era uma coisa positiva para se ouvir. Com relutância, Katarina sentou-se à sua frente, achando estranho estar daquele lado da sua secretária. — É Katarina Luskaya — disse o calvo. A seguir, apontou o homem de nariz achatado junto à parede. — Aquele é o major Sergei Komarov. Katarina esperou, mas o calvo não disse o seu nome. Um medo impossível de concretizar começou a crescer dentro dela. Até na Rússia contemporânea, uma visita do Estado podia ter resultados negativos. E, no entanto, por mais que tentasse, não lhe ocorria qualquer ocasião em que pudesse ter ofendido o governo. Não se envolvia em política. Não era criminosa. Fazia o seu trabalho e pagava os impostos. Anos antes, chegara mesmo a agitar a bandeira russa como patinadora nas Olimpíadas de Inverno. E, mesmo não tendo vencido, o seu desempenho fora notável, terminando em quarto lugar, mesmo com uma rutura parcial num ligamento do joelho. — O que querem? — perguntou. — Não fiz nada de errado. — Seu irmão era paraquedista — disse o careca, ignorando a pergunta. — Sim — confirmou. — Morreu há dois anos. — Lamentável — - disse-lhe. — Era um soldado leal. Fez o que o país esperava dele. Notou que as palavras eram respeitosas. O homem inclinou-se para a frente, unindo as pontas dos dedos e olhando-a nos olhos. — Sabemos que também é leal — disse. — E queremos que faça algo por seu país. A primeira afirmação amansou um pouco seus medos, mas a segunda voltou a agitá-los. — Sou só uma cientista. E não trabalho aqui há muito tempo. O que posso fazer além do meu trabalho? — Algo em que seu passado, sua capacidade atlética e uma fama discreta serão vantagens. O careca deslizou uma pasta pela mesa. Ficou na sua frente, mas Katarina


manteve as mãos embaixo. — Faz mergulho — disse o calvo. — No Mar Negro. Todos os verões. Verdade. Era um passatempo. — Sim — respondeu. — Então vai se sair bem — disse. Indicou a pasta com a cabeça. — Abra. Estudou o que continha. Viu fotos de um arquipélago, alguns navios e alguns recortes. Percebeu que olhava para uma coleta de informações sobre a estranha descoberta nos Açores. Seu grupo já falara sobre o assunto. — Queremos que vá lá — disse o homem calvo. Imaginou as praias, o sol, os prazeres simples de umas férias nas ilhas. Subitamente, trabalhar para o Estado não parecia tão desagradável. — Querem que investigue a descoberta? — Sim — respondeu, de forma nada convincente. — Pelo menos, deve parecer fazê-lo. Os nervos voltaram a ficar tensos. — E o que farei na realidade? — Veja a última página. Passou vários papéis soltos e encontrou o último. Viu várias fotos em preto e branco. Uma de um velho de face marcada pelos elementos. A própria foto parecia velha, como uma da avó, em tons ligeiramente desbotados, vestuário de mau corte e tecido rude. A segunda foto mostrava dois baús de aço inoxidável. A terceira era de um avião com hélices. Notou a cauda tripla. — O homem é Vladimir Tarasov — disse o calvo. — Foi outrora soldado do Exército Vermelho. Lutou contra o tsar na Grande Libertação, mas nos traiu em 1951. — O que fez? — perguntou. Na foto, parecia um agricultor acabado pelos anos no campo. Parecia inofensivo. — Tentou desertar, levando propriedade dos povos da União Soviética. Propriedade que agora pertence legitimamente à Rússia. — Que tipo de propriedade? — perguntou. A seguir, perante os olhares frios que lhe foram dirigidos, desejou não ter feito. O careca uniu os lábios com força, mas, para sua surpresa, voltou a falar. — Suponho que conheça a história de Anastásia Nikolaevna — disse. — Anastásia? — repetiu. — A filha do tsar Nicolau? — Sim — confirmou o calvo. — Quando Nicolau II foi morto por seus crimes contra o povo, toda a família partilhou seu destino. A mulher, o filho Alexei, e as filhas Olga, Tatiana, Maria e também Anastásia. Morreram outras quatro pessoas com eles. Katarina sentiu que sonhava.


— Durante um século, houve quem afirmasse que Anastásia teria sobrevivido — disse. Sabia. Teria sido difícil não saber. — Lembro-me de uma mulher que dizia ser ela, anos atrás. — Sim — disse o calvo, não dando grande importância ao fato. — Uma alemã iludida ou simplesmente louca. Mas não foi a única. Houve dúzias de afirmações semelhantes. Talvez por culpa do que realmente aconteceu durante as execuções. A afirmação exigia uma pergunta que Katarina não faria: o que aconteceu? Mesmo assim, seguiu-se a explicação. — Na época, os responsáveis pela ordem de execução recearam que os partidários dos Romanov descobrissem antes de que solidificassem seu poder. Por isso, espalharam histórias dizendo que a família do tsar teria sido transferida para um local mais seguro para mantê-los a salvo dos grupos revoltosos que se formavam. Foram dadas ordens para enterrar os mortos em locais separados para que ninguém suspeitasse do que acontecera. Os corpos de Anastásia e do irmão Alexei foram levados. Seus restos foram recentemente descobertos e suas identidades confirmadas por exames de DNA. — Mas que tem isso a ver com um avião americano no meio do oceano? — Aquando das execuções, os Romanov mantinham a ilusão de que conseguiriam pagar a liberdade com subornos. Foram levados para uma sala, alinhados e alvejados à queima-roupa. Incrivelmente, alguns sobreviveram aos disparos iniciais e até os que foram feitos em seguida. Katarina conhecia aquela parte da história. — Tinham joias cosidas no interior das roupas, juntamente com pequenas placas de ouro derretido — disse. O major Komarov inclinou-se para a frente e acrescentou: — Um colete à prova de bala muito dispendioso. — Da — disse o calvo. — Acabaram por ser mortos com tiros na cabeça e golpes de baioneta, mas, naturalmente, os guardas ficaram chocados. Ninguém sabia de onde viera aquele tesouro, pois acreditava-se que toda a riqueza do tsar fora confiscada. Iniciou-se uma busca e um criado cuja vida foi poupada levou os soldados até baús repletos de joias e moedas. Mas, antes que estes itens chegassem aos bolcheviques, desapareceram. Trinta anos mais tarde, um desertor que fora um dos soldados presentes, desenterrou-os do seu esconderijo e tentou levá-los para a América. Compreendia finalmente. — Tarasov. O calvo acenou com a cabeça.


— Os americanos recebê-lo-iam com grande agrado, mas não o fariam de forma oficial até ele conseguir chegar ao território deles — disse. — Enviaram um homem chamado Hudson Wallace, um dos seus agentes freelance, para vir buscá-lo. O avião pertencia-lhe. Tarasov embarcou em Sarajevo e o avião decolou durante a noite. — Que tem isto a ver com a descoberta nos Açores? O calvo sorriu e a sua face redonda cobriu de pregas como as de um perdigueiro. — Wallace não conseguiria voar de Sarajevo até os Estados Unidos sem paragem — disse. — Excedia a autonomia do avião. — Foi para os Açores — disse. — Enquanto a maioria dos nossos agentes vigiava em vão os céus sobre Paris, Madrid e Londres, um dos meus antecessores de maior visão supôs que Wallace escolheria uma localização menos óbvia para reabastecer. Um local amistoso e fora de caminho. Enviou uma mensagem aos nossos agentes em Santa Maria. O grande avião prateado de Hudson aterrou várias horas mais tarde. Quando Wallace e Tarasov tentaram escapar, os nossos agentes alvejaram-nos, matando Tarasov. Infelizmente, o americano conseguiu chegar ao avião e levantou voo em direção à tempestade. — Uma infelicidade — acrescentou o major Komarov. — Uma enorme infelicidade — concordou o calvo. — Wallace não conseguiu chegar aos Estados Unidos — prosseguiu. — Nem à Terra Nova ou ao Canadá. O voo durou precisamente nove minutos até transmitir um mayday, despenhando-se no Atlântico. Miraculosamente, sobreviveu. Foi salvo uma semana depois por pescadores portugueses e contou uma história estranha sobre interferência eletromagnética, a falha de todos os seus instrumentos e uma súbita perda de potência elétrica. Uma história em que, naturalmente, não acreditamos. — Não acreditaram que se tivesse despenhado. O homem à sua frente sorriu, sem dúvida agradado pela sua curiosidade. — Durante anos, acreditamos que fosse uma mentira — disse. — Sua ou da CIA. Os Estados Unidos não procuraram o avião e a nossa busca não produziu resultados. Parecia recomendável encobrir a história. Mas mudamos de opinião. Katarina inclinou a cabeça. — Olhe para o fundo da fotografia, Sra. Luskaya. Voltou a olhar para a página que segurava. Viu uma imagem desfocada e difícil de perceber. Por um momento, não conseguiu compreender o que via. Depois, atingiu-a: três barbatanas metálicas erguendo-se dos sedimentos. Ligada a elas, viu o que só poderia ser a fuselagem de um avião. — É o avião de Hudson Wallace — informou o calvo ao serviço do Estado.


— Aparenta estar maioritariamente intacto. — Espantoso — disse ela, erguendo o olhar. — Bastante — replicou. — E queremos que vá lá. Fingirá querer estudar o estranho magnetismo que os americanos afirmam ter descoberto. E, quando tiver oportunidade, investigue o avião. Se os baús continuarem no interior, ou se conseguir localizá-los por perto, deverá recuperá-los e trazê-los de volta para a Rússia. Era estranhamente elogioso. O seu país precisava dela para uma missão de algum tipo. Mas por quê? — Posso perguntar por que não enviam um agente profissional? — É um membro conhecido da comunidade científica — respondeu o calvo. — Esteve muitas vezes no estrangeiro e as suas atividades foram sempre legítimas. Enviando-a a si em vez de um agente com identidade falsa, reduziremos muito a possibilidade de levantar suspeitas. — E se não quiser ir? — perguntou, cautelosamente. O calvo semicerrou os olhos e fitou-a. Sobre o ombro, sentiu a presença igualmente ameaçadora do major Komarov. Deixara de parecer que lhe pediam um favor. Não deveria tê-la surpreendido. O Estado raramente fazia pedidos. — Conseguimos ser selvagens quando é preciso, Sra. Luskaya — disse o calvo. — Mas, neste caso, não haverá necessidade. Quer ir. Quer testar os seus limites. Vejo-o nos seus olhos. Voltou a olhar para as fotografias. Uma mistura estranha de medo e excitação percorreram-na. A sensação era tão semelhante à descarga de adrenalina que sentia antes das competições que se assustou. Estava bastante segura de que recusar não seria opção, mas não importava. O homem calvo ao serviço do Estado estava certo. Ela queria ir.


16. Depois de chegar às coordenadas de destino no dia anterior, o navio Matador da NUMA preparara-se para o trabalho e começara a “cortar a relva”: um padrão de busca que permitia sondar o fundo oceânico em faixas, dez milhas para nordeste e outras dez milhas para sudoeste, voltando ao ponto de partida. Com informação relativamente precisa quanto ao ponto onde o Kinjara Maru afundara e bons registros das correntes da área, conseguiram encontrar o navio em menos de doze horas. Depois de localizado, o casco do Kinjara Maru e os destroços em redor foram vistoriados por um par de VCR capazes de mergulhar a grande profundidade. A informação e as fotografias captadas foram passadas para um computador, que criou um modelo tridimensional, permitindo à equipe a bordo do Matador examinar o navio e traçar um plano para a exploração sem sequer mergulharem. Era a missão perfeita para Rapunzel. Mas havia um problema. — Ninguém trouxe um cabo de extensão? — resmungou Paul Trout. — Não esperávamos fazer pesca de profundidade — respondeu Gamay com o seu tom de voz mais tranquilizante. Conhecia suficientemente bem o marido para saber que não se irritava com facilidade, mas era difícil de acalmar quando acontecia. — O material de profundidade vem a caminho — acrescentou. — Chegará depois de amanhã. Entretanto... — Dirk quer que a gente dê uma olhada — lembrou. Gamay acenou afirmativamente. — O navio repousa no meio de uma encosta bem íngreme. Dirk quer que coletemos amostras antes que afunde mais. Ambos sabiam o que isso significava. Apesar do perigo, teriam que descer no submersível. — Podemos ligar a Rapunzel ao submersível e manobrá-la sem cabos quando chegarmos ao local. — Vou contigo — disse Paul. — Mal caberia — replicou. — Então será um pouco apertado — insistiu. — Gosto de ficar em lugares apertados contigo. Três horas mais tarde, Paul e Gamay pairavam sobre os destroços num submersível semelhante a um batíscafo chamado Grouper. Rapunzel estava presa ao casco exterior, carregando as baterias. Deitavam-se de bruços, lado a


lado, como crianças partilhando um trenó. Paul pilotava o Grouper enquanto Gamay preparava Rapunzel para a sua saída. A temperatura no interior do Grouper era de nove graus enquanto as correntes de profundidade que os rodeavam desceram alguns graus abaixo de zero. Com a falta de espaço e o frio, todo o corpo de Paul lhe doía. — É como o Maine em novembro — disse no intercomunicador. — Pelo menos, não chove — replicou Gamay. — Se começar a chover aqui dentro, teremos um problema sério. Paul olhou em redor. O Grouper era o mais sólido de todos os veículos de profundidade elevada da NUMA. Mergulhara já a mais de sete mil metros. Cinco mil era canja. — Vai correr tudo bem — disse. — Eu sei — disse Gamay. — Mas faz-me pensar na nossa sorte. Aproximavam-se do casco do navio naufragado. Paul reduziu a velocidade. — De que forma? — Em algum lugar, Kurt e Joe estão sentados numa praia, tomando sol e se deleitando com a fama recente. E provavelmente lançando olhares apreciadores a mulheres bonitas. — Estou lançando olhares apreciadores a uma agora mesmo — disse Paul. — E, quando terminarmos aqui, posso te beijar. — Prometes? — respondeu ela, parecendo animada. — Vou fazer com que valha a pena. Ouviram tossir no intercomunicador e recordaram-se de que havia outros a ouvir a conversa e a acompanhar o que se passava dentro do submersível. Subitamente, Paul ficou sem resposta. Sentiu-se corar, um efeito que Gamay conseguia provocar-lhe muitas vezes. — Paul, o teu ritmo cardíaco está a acelerar — disse uma voz no intercomunicador. — Hmm... chegamos ao local do afundamento — disse, num tom muito oficial. — Seguimos junto ao costado de bombordo. — É melhor me equipar — disse Gamay. Paul aproximou o Grouper e fê-lo pairar sobre o convés do Kinjara Maru. O grande navio estava profundamente inclinado para um lado sobre a encosta. As escotilhas colossais mostravam-se escancaradas, com peixes nadando aqui e ali, mas o navio ainda não fora reclamado pelo mar. Pareceu algo estranho a Paul. A maioria dos destroços que explorara eram velhos, cobertos de sedimentos, lapas e vida marinha. O Kinjara Maru parecia não pertencer ali, com a sua pintura brilhante e apresentando marcas apenas onde fora tocado pelas chamas.


— Todas as escotilhas de carga estão abertas — disse Paul. — O Kurt disse que os piratas lançavam bombas incendiárias aos porões — replicou Gamay. — Não seria necessário abri-las todas — disse Paul. — Procurariam alguma coisa? De certa forma, aquilo fazia sentido a Paul, apesar de não conseguir perceber o que um grupo de piratas numa lancha poderia procurar num cargueiro. — Talvez quisessem apenas que afundasse mais rapidamente — disse. — Assim que a escotilha da proa começou a inundar-se, o navio ficou condenado. — De volta à teoria de que tentaram esconder alguma coisa — disse Gamay. Até ali, os proprietários do navio e a companhia de seguros não se tinham mostrado colaborantes. Pareciam sentir repulsa pela divulgação do manifesto de carga ou até pela confirmação do tipo de carga que o navio levaria a bordo. Uma situação que seria, no mínimo, estranha. — O armador já deu notícias? — perguntou Paul. — Negativo — respondeu o controlador de superfície. — Silêncio absoluto. — Tecnicamente, o navio é um destroço — disse Paul. — Se recuperarmos a carga, é nossa. — Não acredito que o Dirk aprove o orçamento para isso — considerou Gamay. — Mas nada nos impede de dar uma olhada no interior. Vamos procurar uma abertura por onde consigamos fazer passar a Rapunzel. Paul levou o Grouper até a popa do grande navio. Os aposentos da tripulação e a ponte de comando situavam-se aí, parcialmente dilacerados. O impacto colossal com o fundo marinho separara um terço da estrutura. — Parece um corte longitudinal — disse Paul. — Poderá ser-nos favorável — disse Gamay. — Nada como uma penetração fácil. Paul voltou a corar, não percebendo se Gamay tivera consciência do duplo sentido das suas palavras. Fez o Grouper pairar a seis metros do que restava da ponte. Momentos depois, Rapunzel foi lançada à água e avançava para o buraco medonho outrora ocupado por uma parede. Com o piloto automático mantendo o Grouper na posição que ocupava, Paul voltou-se para a sua mulher. Estava deitada na seção posterior do submersível, o visor familiar cobria-lhe a cara e calçara as luvas e botas com fios. O resto dela estava coberto por neoprene justo. — Que tal? — perguntou ele. — É estranho estar deitada — respondeu. — Estou habituada a fazê-lo em


pé. O intercomunicador deu sinal de vida. — Paul, o teu ritmo cardíaco acelera novamente. Estás bem? — Sim — respondeu, tenso. A seguir, cobriu o intercomunicador. — Querida, podes ter cuidado com o que dizes até voltarmos a subir? Gamay riu e Paul percebeu que o provocara. Havia poucas coisas que lhe agradassem mais do que abrir buracos na sua postura reservada típica da Nova Inglaterra. Era um dos pormenores que o faziam amá-la tanto. — Desculpa — disse-lhe ela, com um sorriso matreiro. Paul olhou para o exterior e viu a pequena figura mecânica mover-se em direção à ponte destruída, desaparecendo no interior. Num monitor do tamanho de um smartphone, viu o que Gamay via no seu visor: o que os olhos de Rapunzel captavam enquanto penetrava mais no navio. Num canto da ponte, descobriram uma coisa. — É um corpo? — perguntou Paul. — Parece — respondeu Gamay. — Que lhe aconteceu? Rapunzel aproximou-se mais. — Parece ter sido queimado — disse Gamay. — Mas... As câmeras de Rapunzel moveram-se em redor. As paredes estavam limpas e lisas. A pintura cinza não apresentava marcas. Até a cadeira ao lado do homem parecia intacta. — Não há vestígio de fogo — disse Paul. — Por mais nojento que soe — disse Gamay —, vou recolher uma amostra. Rapunzel avançou, estendendo uma pequena broca com um tubo de vácuo preso. A broca tocou a coxa do homem e começou a girar, extraindo um cilindro de cinco centímetros. O sistema de vácuo puxou-o para um recipiente imediatamente selado. — Vou levá-la mais para dentro do navio. Com Gamay ocupada a controlar Rapunzel e com o piloto automático mantendo o Grouper estacionário, Paul não tinha muito para fazer. Tédio a cinco mil metros de profundidade. Era pior do que fazer um voo longo num avião comercial. O intercomunicador soou. — Paul, o sonar captou alguma coisa. O seu ritmo cardíaco teve um motivo diferente para acelerar. — Que tipo de coisa? — Impossível de determinar — respondeu o controlador de superfície. — A oeste da sua posição e muito ténue. Mas movendo-se a grande velocidade. — Mecânico ou natural? — perguntou Paul.


— Desconhecido... — começou o controlador. A seguir, disse: — É pequeno... Paul e Gamay podiam apenas esperar em silêncio. Paul imaginou o operador do sonar a olhar fixamente para a tela, atento ao som que lhe chegava pelos fones e a tentar determinar a natureza do objeto. — Bolas — disse. — É um torpedo. Dois. Ao seu encontro. Paul levou a mão ao controle de aceleração do Grouper, desligando o piloto automático. — Traz a Rapunzel de volta — disse. Gamay começou a mover-se, gesticulando rapidamente enquanto invertia o rumo do pequeno explorador remoto. — Depressa, Paul — insistiu o controlador. — Estão cada vez mais próximos. Esquecendo Rapunzel, Paul fez recuar o Grouper, afastando-se do destroço e virando o submersível ao contrário. — Consigo tirá-la de lá — disse Gamay. — Não temos tempo. Paul empurrou o manípulo até o fim e libertou parte do lastro. O Grouper começou a subir e a acelerar, mas não era como o Barracuda. Sete nós era a sua velocidade máxima. Subitamente, ouviram a voz do controlador em pânico. — Os torpedos estão sobre vós, Paul. Vocês estão a subir ao encontro deles. Paul voltou a mergulhar, pensando que teria sido agradável saber aquilo alguns minutos antes. — De onde vêm? — Não sei — respondeu a voz. — Vai para o sul. Para a proa. Isso os afasta da rota deles. Paul virou o Grouper. Incapaz de ver os pontos captados pelo sonar e sem saber onde estavam, estava dependente do controlador. — Continua — disse a voz no intercomunicador. — Tens dez segundos. Era impossível que o Grouper conseguisse escapar a um torpedo que o tivesse fixado como alvo. A sua única esperança seria confundi-lo, colocando outros objetos em redor. Paul decidiu subir, fazendo o Grouper passar o convés, tão perto do Kinjara Maru quanto seria possível. Um estrondo o fez perceber que batera em alguma coisa saliente. O eco foi sonoro, mas não teve consequências e Paul não se atreveu a afastar-se do navio. — Três segundos. Dois... Um... — Paul? — chamou Gamay. Estava assustada. Conseguia percebê-lo na sua voz. Não podia fazer nada por ela.


Um guincho agudo dilacerante ecoou sobre eles quando o primeiro torpedo passou. Seguiu-se outro, momentos depois, afastando-se. Os torpedos tinham falhado o alvo. E Paul não conseguiu ouvi-los a voltar. Suspirou de alívio, mas precisava de ter a certeza. — Estão a virar? — Não — respondeu o controlador. — Continuam em frente. Sem desvios. Paul suspirou novamente de alívio, baixando os ombros de forma visível. A seguir, um par de explosões quebrou o silêncio das profundezas do Atlântico. A onda de choque atingiu o Grouper. Paul bateu com a cabeça e sentiu o submersível inclinar-se. Gamay deslizou contra ele e atingiram uma das gruas do Kinjara Maru. Seguiu-se outra explosão, mais distante, mas com efeitos intensos, mesmo assim. O Grouper estremeceu e estabilizou quando as ondas de choque passaram. — Estamos bem? — gritou Gamay, erguendo o visor. Paul olhou em redor. Não viu infiltrações. Chegara o momento de voltarem à superfície. — De onde raios veio? — gritou. — Desculpem — disse o controlador. — Os primeiros dois disfarçaram. Isso não é propriamente um sonar de classe Seawolf. Paul compreendia que o equipamento se destinava a localizar pequenos objetos e a traçar um perfil do fundo marinho e não a acompanhar o movimento de tos pedos velozes a grandes profundidades. Pensou que estaria na altura de uma atualização. — Há mais? — perguntou pelo intercomunicador. O controlador permaneceu em silêncio por um momento, como se verificasse uma e outra vez. — Não — disse, por fim. — Mas captamos uma vibração. Parece... Não completou a frase, o que preocupou Paul. Uma vibração. Que quererá dizer com isso? Enquanto esperava uma explicação, começou a sentir alguma coisa. As mãos pousadas sobre o painel de controle sentiam um tremor de algum tipo. A princípio, foi subtil, mas, a seguir, o Grouper começou a estremecer e a deslizar para o lado como se fosse puxado por alguma força ou corrente. Em segundos, o tremor transformou-se num rugido intenso, como o de um trem se aproximando. — O que é isso? — perguntou. — Captamos um sinal enorme aqui em cima. Nunca vi nada assim. Movimento de vários tipos. — Onde?


— Em toda parte — respondeu a voz, parecendo em pânico. Seguiu-se uma pausa terrível enquanto o rugido aumentava de intensidade. O controlador voltou a falar. — Santo Deus! — gritou. — É uma avalanche!


17. O rugido nas profundezas sacudiu o Grouper. rochas e sedimentos em deslizamento pela encosta em que repousava o Kinjara Maru desciam sobre eles com uma velocidade cada vez maior, abalados pela explosão dos torpedos. Enquanto a avalanche se aproximava, empurrava a água e criava uma corrente própria que agitava ainda mais sedimentos. Foram engolidos por uma nuvem iluminada pelas luzes do submersível. O mundo fora da vigia de bombordo tornou-se um rodopio castanho e cinzento. — Tire-nos daqui — gritou Gamay. Paul pretendia fazê-lo, mas era provável que a embarcação que tivesse disparado os torpedos contra eles continuasse à espera. E, com toda a honestidade, ser destruído numa explosão parecia tão horrendo como ser sepultado vivo. Rodou o interruptor do lastro e largou o resto do ferro que os mantinha no fundo. Empurrou o manípulo de aceleração até o fundo e virou o nariz do Grouper para cima, mas o submersível não tinha potência suficiente para superar uma corrente daquelas e embateu novamente contra o casco do Kinjara Maru. Gamay pousou-lhe a mão sobre o braço enquanto começavam a subir. De repente, pararam com um solavanco. — Estamos presos nalguma coisa — disse Gamay, movendo a cabeça em redor, tentando desesperadamente perceber o que poderia ser. Paul inverteu a marcha, recuou alguns metros e avançou novamente num ângulo diferente. O mesmo resultado: uma aceleração gradual seguida por uma paragem repentina que torceu o Grouper como um cão sendo puxado para trás pela trela. Entre os sedimentos, Paul conseguia ver objetos a deslizar sobre o convés e pedaços da estrutura do Kinjara Maru a ser arrancados. O som trovejante atingiu uma intensidade ensurdecedora. Uma onda de sedimentos mais densa atingiu o submersível e tudo ficou escuro. Algo metálico estalou e o Grouper começou a tombar. O visor de Gamay e alguns objetos deslizaram para o lado e caíram contra a parede lateral e depois contra o teto. Paul segurou-se, mas viu que a mulher não conseguia fazer o mesmo. Embateu contra a parede e depois contra o teto, meio metro acima, antes de tombar novamente. Percebeu que tinham rolado, ficando momentaneamente invertidos. Estendeu a mão e puxou Gamay para si.


— Segura-te a mim — gritou. Ela rodeou-o com os braços enquanto continuavam a rodopiar à mercê da corrente e da avalanche. Algo bateu contra a vigia por um segundo, destacandose da água lodosa, embatendo com violência e sendo levado em seguida. As luzes falharam e o som dilacerante de algo a ser rasgado do casco do Grouper terminou com um estalido. A seguir, pararam. O som trovejante continuou por cerca de um minuto, dissipando-se à distância como uma manada de búfalos que os tivesse deixado para trás. Paul prendeu a respiração. Espantosamente, incrivelmente, continuavam vivos. Na escuridão, sentiu a respiração ofegante da mulher. O seu coração estava também acelerado e sentia um formigueiro na pele provocado pela adrenalina. Nenhum dos dois disse uma palavra, como se o mero som das suas vozes pudesse desencadear nova avalanche. Mas, após um minuto completo de silêncio e sem novos sinais de perigo, Paul sentiu que Gamay se movia. Olhou-o, iluminada pelas ténues luzes de emergência. Parecia tão surpresa por estar viva como ele. — Há infiltrações? — perguntou. Paul olhou em redor. — Nada aqui. Saiu de cima dele. — Quando voltarmos para casa, vou descobrir quem construiu esta coisa e pagar-lhe uma garrafa de uísque. — Uma garrafa de uísque? Eu penso em pagar-lhe a universidade dos filhos. Ouviu-a rir também. Quando Gamay se afastou, Paul aproximou-se do painel de controles. Estavam obviamente num ângulo estranho, talvez de quarenta e cinco graus com o nariz a apontar para baixo e com cerca de trinta graus de rotação. — A potência principal morreu — disse. — Mas as baterias parecem bem. — Vê se consegues reiniciá-las — disse ela, retirando a combinação de fones e microfone que a queda destruíra. Paul iniciou o processo de reativação e conseguiu reiniciar a maior parte dos sistemas. As luzes voltaram a acender-se. — Vejamos se conseguimos... Parou a meio da frase. Gamay fitava alguma coisa atrás dele, com um olhar vazio. Virou-se. Sedimento compacto acumulara-se contra o vidro da vigia. Parecia quase uma pintura de areia, com algumas ondas e linhas. — Estamos enterrados — sussurrou Gamay. — É essa a explicação do


silĂŞncio repentino. Fomos enterrados vivos.


18. As primeiras setenta e duas horas de Kurt como ama-seca marítima foram duas vezes mais desagradáveis do que esperara. Não, pensou. Tinham sido pelo menos três vezes mais desagradáveis. Todos os grupos de investigadores queriam tratamento especial e todos pareciam questionar as regras, as suas decisões e até a sua autoridade. Uma equipe islandesa insistia que uma experiência levada a cabo por um dos grupos italianos interferiria com os dados que tentavam recolher no fundo marinho. Um grupo espanhol fora apanhado a tentar colocar uma bandeira na torre rochosa, indo contra o acordo estabelecido. E, sendo verdade que Kurt achava o seu arrojo algo enternecedor, os portugueses estariam preparados para passar das palavras aos atos como consequência do incidente. A forma como falavam quase o fez esperar pistolas ao amanhecer. Entretanto, os chineses queixavam-se da presença de três equipes japonesas, ao que os japoneses responderam, afirmando que os chineses não precisavam de ninguém no terreno, já que se limitariam a roubar os dados num ataque cibernético logo que fossem transmitidos. Lidar com quezílias internacionais suficientes para fazer ciúmes à ONU não era o único problema. Juntamente com Joe e o resto da tripulação do Argo, Kurt também tinha de desempenhar o papel de salva-vidas. A maioria das equipes científicas tinha apenas treino rudimentar em operações marítimas, à superfície ou abaixo dela. Duas equipes tinham já estado envolvidas numa colisão frontal. Os seus botes sofreram apenas danos menores, mas bastou para os mandar de volta a Santa Maria para serem reparados. Outros tiveram problemas com o mergulho. Uma equipe drogou-se por acidente ao usar a mistura errada e dois dos mergulhadores de resgate do Argo tiveram de os alcançar antes que perdessem os sentidos. Outro membro de uma equipe diferente teve de ser forçado a parar para fazer uma descompressão que não julgou ser necessária e um cientista francês quase se afogou quando um técnico de mergulho inexperiente colocou peso demasiado no seu cinto, fazendoo afundar como uma pedra. Com equipamento completo, Kurt e Joe mergulharam para salvar o cientista, voltando à superfície para descobrirem que outra equipe tinha um fogo na casa das máquinas do seu navio alugado. Era suficiente para fazer Kurt desejar nunca ter encontrado a maldita torre. Quando o sol começou a passar os mastros, a loucura do dia pareceu


acalmar. A maior parte dos barcos mais pequenos regressava a Santa Maria. Kurt calculou que os bares encheriam depressa e que começariam a circular histórias, tornando-se mais extravagantes com cada narração. Ou talvez não. Não sabia ao certo o que os cientistas faziam para ocupar o seu tempo livre. Talvez conspirassem uns contra os outros durante toda a noite e, quando a manhã chegasse, estivessem preparados para lhe provocar mais dores de cabeça a si e também a Joe. De qualquer forma, arrependia-se da decisão de aceitar ser árbitro quando saiu da ponte de comando do Argo pela passagem de estibordo e se deparou com um arrastão de quinze metros e casco negro que não vira antes. — Reconhece-o? — perguntou a Joe. Joe semicerrou os olhos para o navio. — Não estava aqui de manhã. — Também me pareceu que não — replicou Kurt. — Prepara o Zodiac. Cinco minutos mais tarde, Kurt, Joe e dois homens da tripulação do Argo deslizavam sobre as ondas, dirigindo-se para o arrastão. Alcançaram-no e contornaram-no. — Vês alguém a bordo? — perguntou Kurt. Joe sacudiu a cabeça. — Sabes — começou Joe —, tecnicamente, este barco está fora da zona de exclusão. — Como? — disse Kurt. — Estamos a três quartos de milha da torre — disse Joe. — A zona de exclusão mede uma milha de diâmetro. Tecnicamente, este barco fica fora desse limite. É suposto termos autoridade apenas sobre navios, mergulhadores e submersíveis dentro dessa área. Kurt fixou em Joe um olhar estranho. — Quem inventou essa regra? — Eu. — Quando começaste a transformar-te num burocrata? Zavala encolheu os ombros, com um sorriso matreiro na face. — Sentas-me atrás de uma secretária grande e dizes-me para tomar conta. Era inevitável que este tipo de coisa acontecesse. Kurt quase se riu. Governador Joe. — Se és tu quem manda, vamos ampliar a área. — Precisamos de quórum — disse Joe. — O pugilista acertou-te com mais força do que pareceu? — perguntou Kurt. Joe sacudiu a cabeça e olhou para os tripulantes. — Quem estiver a favor do alargamento da zona de exclusão, diga sim. Kurt e os dois tripulantes disseram “sim” em simultâneo. — Moção aprovada — disse Joe. Kurt esforçou-se para não rir.


— Ótimo. Agora vamos subir a bordo. A bordo do arrastão, encontraram mapas, equipamento de mergulho e um papel com letras cirílicas. — É russo — disse Kurt. — Temos alguma equipe russa registrada? Joe sacudiu a cabeça. — Recebemos pedidos de informação do seu Ministério da Ciência, mas ninguém se inscreveu. — Parece que vieram, mesmo assim. Kurt dirigiu-se à popa do pequeno barco. Uma âncora de cabo longo fora largada. Não havia uma bandeira de sinalização, mas Kurt soube que um mergulhador teria descido com o cabo. Notou um par de sapatos junto à escada que descia para o mar. — Só um par de sapatos — disse. — Alguém mergulhou sozinho — deduziu Joe. Um mergulho solitário era uma loucura. Não deixar ninguém a bordo era ainda mais louco. Um pouco de vento, uma ligeira mudança na corrente ou a chegada de um pirata oportunista e o mergulhador poderia voltar à superfície e se ver sozinho no meio do oceano. — Olhem — disse um dos tripulantes do Argo, apontando uma tela. Kurt se virou. O monitor mostrava uma imagem obscurecida por sedimentos revoltos sendo transmitida por uma câmera subaquática. — Será ao vivo? — perguntou. — Parece — respondeu o tripulante, examinando o equipamento. Kurt estudou a tela. A água escura e os sedimentos eram óbvios enquanto a câmera se movia no que parecia ser um espaço confinado. Viu paredes metálicas e equipamento. — Quem quer que seja, entrou num dos destroços — disse Joe. — Inacreditável — considerou Kurt. Com a possível exceção de provocar um cardume de tubarões, mergulhar em destroços seria a mais perigosa de todas as atividades submarinas. Não acreditava que alguém tivesse decidido fazê-lo sem companhia. — Esta pessoa é demasiado estúpida para estar dentro da nossa zona de exclusão. Joe riu e acenou afirmativamente. Kurt apontou um conjunto de tanques de ar alternativos. — Estão cheios? Joe verificou o medidor. — Sim. — Vou descer — disse Kurt.


Um minuto depois, estava na água, respirando o ar comprimido e impelindo-se com movimentos largos das pernas enquanto descia pelo cabo abaixo. Quando se aproximava do fundo, viu um ponto de luz e dirigiu-se na sua direção. O mergulhador desconhecido entrara nos destroços do Constellation. Considerando que a fuselagem intermédia do avião fora partida como uma casca de ovo, não parecia demasiado perigoso. Mas os movimentos da câmera pareciam estranhos e, enquanto observava o feixe de luz trêmulo, pensou se o mergulhador estaria em apuros. Acelerando os movimentos, alcançou a empenagem tripla do avião. O cone luminoso vindo do interior da fuselagem continuou a mover-se num padrão aleatório. Nadou até a fratura. A luz vinha da seção dianteira. Os movimentos aleatórios fizeram Kurt pensar que a lanterna poderia flutuar sem uma mão que a segurasse. Receou estar prestes a encontrar um mergulhador morto, que tivesse ficado sem ar, mas cuja luz, provavelmente presa ao braço por uma correia, ainda tivesse bateria suficiente e flutuasse à sua volta como um balão de hélio preso com cordel. Entrou com cuidado, contornando material isolador emaranhado e metal retorcido. Nuvens de sedimentos deslizaram do nariz do avião e o feixe de luz com movimentos erráticos penetrou a escuridão, tornando-se menos visível e voltando à intensidade original. Kurt nadou nessa direção. Emergindo da nuvem, encontrou um mergulhador escavando vorazmente, torcendo-se e puxando com movimentos frenéticos. A lanterna estava presa ao seu cinto. Estendeu o braço e pousou-lhe uma mão no ombro. A figura voltou-se, apontando-lhe uma faca. Kurt viu a lâmina refletir a luz. Bloqueou o braço do mergulhador e torceuo, forçando-o a libertar a faca. As bolhas saindo dos dois reguladores encheram a cabine. Combinadas com os sedimentos em turbilhão e a luz trêmula, dificultavam a visão. A faca caiu e desapareceu. Kurt prendia o braço direito do mergulhador. O seu outro braço moveu-se e segurou-o pelo pescoço. Estava prestes a arrancarlhe a máscara, uma técnica de combate subaquático clássica, quando percebeu que era uma mulher com o pânico bem visível nos olhos. soltou-a e ergueu uma mão com os dedos afastados. Acalma-te. A mulher acenou com a cabeça, mas permaneceu hirta. Apontou os pés. Kurt baixou o olhar. De alguma forma, conseguira prender a perna entre um pedaço torcido da fuselagem e uma caixa de equipamento. Um corte irregular na


placa de metal assinalava as suas tentativas de usar a faca para serrar. Parecia não ter conseguido grandes resultados. Ocorreu a Kurt uma ideia melhor. Agachou-se, colocou as costas contra a fuselagem e posicionou os dois pés contra a caixa. Aplicando toda a força das costas e das pernas, empurrou o metal. Esperou que partisse, soltando a caixa, mas apenas amolgou o suficiente. A mulher puxou o pé e começou imediatamente a esfregar o tornozelo. Quando olhou para cima, Kurt uniu o indicador e o polegar, formando um círculo. Um OK universal. Estás bem? Ela acenou afirmativamente. A seguir, Kurt ergueu os dois indicadores em paralelo e fixou nela um olhar interrogador. Balançou a cabeça. Aparentemente, não mergulhava com um companheiro. Tal como pensara. Apontou-a de forma veemente e, a seguir ergueu o polegar para a superfície. A mulher hesitou, mas acabou por acenar afirmativamente de forma relutante. Segurando a lanterna, começou a nadar para fora do avião. Kurt olhou uma última vez em redor e seguiu-a. Após uma pausa para descompressão da mergulhadora, romperam a superfície em conjunto a alguns metros do seu barco. Viu-a a nadar para ele e subir a bordo. Kurt seguiu-a. Joe e os tripulantes do Argo permaneceram a bordo para os receberem. A mulher retirou a máscara, puxou o capuz do fato e sacudiu o cabelo. Não parecia satisfeita por ter visitas. Kurt não se importava. — Deve ser louca para fazer um mergulho destes sozinha. — Mergulho sozinha há dez anos — disse. — Sim — replicou Kurt. — Passa muito tempo a explorar destroços submarinos? Ela pegou numa toalha, secou a cara e olhou-o com uma expressão defensiva. — Quem é você para me dizer o que devo fazer? E que fazem no meu barco, já agora? Joe encheu o peito de ar, prestes a iniciar uma explicação. Kurt antecipouse. — A nossa função é assegurar que os cientistas não se afogam nem violam as regras que determinamos. Parecia fazer as duas coisas. Viemos verificar — disse. — Este barco não está registrado como parte da expedição científica. Quer explicar por quê?


— Não tenho que me registrar — disse, arrogante. — Estou fora da sua zona de exclusão. Fora da sua jurisdição, como os americanos gostam de dizer. Kurt olhou para Joe de relance. — Já não — disse, olhando novamente para a mulher. — Ampliamos a zona de exclusão. — Até votamos e tudo — acrescentou Joe. A mulher moveu o olhar de Kurt para Joe e novamente para Kurt. — Arrogância americana típica — disse. — Mudam as regras para se favorecerem sempre que é necessário. Kurt quase conseguiria compreender o sentimento se não falhasse um fato importante. Segurou o medidor de pressão no seu tanque de ar e voltou-o. Como suspeitava, há muito que entrara na reserva. — Teimosia russa típica — replicou. — Enfurece-se contra as pessoas que acabam de lhe salvar a vida. — Mostrou-lhe o medidor. — Tinha menos de cinco minutos de ar. A mulher fixou os olhos no medidor e Kurt largou-o. Viu-a estender a mão e segurá-lo, estudando-o por um longo momento. — Devia sentir-se feliz por sermos tão arrogantes — disse-lhe Kurt. A mulher largou delicadamente o medidor e olhou para cima. Ele percebeu que ela cerrava os dentes, mas não sabia ao certo se seria por embaraço ou fúria. — Tem razão — disse ela, por fim, falando num tom mais contido. — Fico... agradecida. Apenas... Parou e olhou para Kurt fixamente. O que pretendesse dizer foi substituído por um simples: — Obrigada. — De nada — disse Kurt. Notou uma mudança na sua postura, até mesmo um indício de sorriso na cara. — São vocês que mandam aqui? — perguntou. — Infelizmente — respondeu Kurt. — Chamo-me Katarina Luskaya — disse. — Estou aqui em representação do meu país. Gostaria de discutir convosco esta descoberta. — Pode registrar-se com o oficial de ligação na... — Pensava que poderíamos falar esta noite — disse, mantendo os olhos fixos em Kurt. — Talvez durante o jantar? Joe revirou os olhos. — Aqui vamos nós. O charme Austin a todo o vapor. Kurt estava demasiado ocupado para aquilo. — Viu demasiados filmes, Sra. Luskaya. Seja como for, não teria grande coisa para lhe dizer.


A mulher endireitou-se, correndo o fecho da metade superior do fato e expondo um biquíni que lhe acentuava as curvas e um tronco atlético. — Talvez haja alguma coisa que lhe possa dizer a si — disse. — Já que é o responsável, tenho informação que talvez lhe interesse. — A sério? — Muito a sério — assegurou. — Além disso, todos precisamos de comer. Porquê fazê-lo sem companhia? — Então estamos todos convidados? — perguntou Joe. Kurt olhou-o. — Talvez não — disse Joe. — Tenho muita papelada para preencher. Kurt duvidou que a mulher tivesse alguma informação que lhe fosse útil, mas admirou a tentativa descarada para ficar a sós com ele e, sem dúvida, tentar extrair-lhe o que sabia. Ocorreu-lhe subitamente que, se houvesse uma hipótese remota de aprender alguma coisa importante com a Sra. Luskaya, era o seu dever descobrir. — Está alojada em Santa Maria? — perguntou-lhe. Ela acenou afirmativamente e Kurt voltou-se para Joe. — Suponho que conseguirão voltar ao Argo sozinhos. — E se não conseguirmos? — perguntou Joe. — Enviem um pedido de ajuda — respondeu Kurt, sorrindo. Joe acenou relutantemente com a cabeça e apontou o Zodiac. Os tripulantes do Argo subiram a bordo e Joe seguiu-os, murmurando qualquer coisa sobre “evadir responsabilidades” enquanto se punha a caminho. Kurt olhou para a jovem mulher. — Tem um carro na povoação? Sorriu-lhe. — Sim — disse ela. — E sei precisamente onde quero levá-lo.


19. Andras, o Faca, encontrava-se junto a um telefone público com vista para o ancoradouro de Vila do Porto. Sentia que tinha recuado no tempo ao usar semelhante telefone para fazer uma chamada. Quase não conseguia recordar ter visto um nos anos anteriores. Mas, apesar do seu estatuto como destino de férias, os Açores não estavam totalmente atualizados no que dizia respeito à tecnologia. Muitos dos habitantes da ilha eram gente com poucas posses e, frequentemente, não tinham telefones fixos ou móveis próprios e os telefones públicos ainda existiam em muitos locais. Para Andras, isso significava a possibilidade de fazer um telefonema impossível de localizar, que o governo dos Estados Unidos ou a Interpol não conseguiriam interceptar enquanto o sinal digital se erguesse no espaço e fosse refletido por um qualquer satélite. Para ouvir aquela conversa, teriam de desviar um cabo pesado enterrado sob o solo açoriano que se alongava através do fundo oceânico até o Norte de África, onde voltava a terra. Não era impossível. Aliás, numa ocasião célebre, os americanos tinham feito precisamente isso a um cabo telefônico submarino russo durante a Guerra Fria. Mas era improvável, considerando que ninguém tinha um motivo estratégico para se preocupar com as conversas entre os ilhéus açorianos e os seus familiares e amigos no continente. E isso confortava Andras porque descobertas recentes tinham intensificado o perigo que corria. Marcou o número e pareceu-lhe que teve de esperar horas. Finalmente, ouviu um operador em Serra Leoa e, depois disso, a chamada foi transferida para um gabinete no palácio de Djemma. Eventualmente, um adido passou o telefone ao Presidente Vitalício. — Por que me ligas? — perguntou Djemma. Parecia estar num túnel. Aparentemente, usar uma linha telefônica fixa antiquada tinha desvantagens. — Tenho notícias — disse. — Algumas boas, outras ruins. — Fala. Depressa. — Estavas certo. Pelo menos vinte grupos de cientistas chegaram e há outros a caminho. Este fenômeno magnético parece despertar grande interesse. — Claro que sim — disse Djemma. — Por que achas que te enviei para aí? — E não é apenas interesse científico. Também há pessoal militar. Djemma não pareceu preocupado. — Era previsível. Não terás problemas com eles se seguires o plano.


— Talvez — disse Andras. — Mas o problema real não é esse. Os americanos que quase nos apanharam no Kinjara Maru estão aqui. Vi o seu navio no porto. Agora está ancorado sobre a torre magnética. De acordo com os portugueses, foi-lhes entregue a gestão dos trabalhos de investigação. Haverá certamente um interesse militar nisto. Djemma riu. — Continuas a dar maior importância aos teus inimigos do que aquela que merecem. Talvez para aumentar a tua glória quando os derrotares. Mas soa a paranoia. — De que falas? — perguntou Andras. — Não foste atacado pelos SEAL ou outra força especial americana, meu caro. Estes homens da NUMA são oceanógrafos e mergulhadores. Encontram destroços, resgatam navios e fotografam a vida marinha. Na verdade, acho que devias ter conseguido lidar com eles. Não contaria a ninguém que conseguiram te superar tão facilmente. Pode reduzir tuas possibilidades de exigir honorários tão absurdos. Djemma riu enquanto falava e Andras sentiu o sangue começar a ferver. — Receias voltar a enfrentá-los? — perguntou Djemma, provocando-o. — Ouve-me — disse Andras, começando a ficar furioso. A seguir, calou-se, contemplando uma visão em que lhe parecia difícil acreditar caminhando pela doca acima na sua direção. O mesmo americano de cabelo branco que interferira com o seu trabalho no Kinjara Maru, acompanhado por uma mulher de cabelo escuro que reconheceu como a cientista russa de que lhe tinham falado. Quando se aproximaram, Andras reforçou o reconhecimento do homem. — Vejam só — suspirou para si próprio. — O que foi? — perguntou Djemma. — De que falas? Encolhendo-se no interior da cobertura do telefone público e virando as costas, Andras ignorou-os enquanto passavam do outro lado da rua. — Andras — disse Djemma. — Que raio se passa? Andras voltou a dedicar atenção ao telefonema, calculando uma nova jogada. — Esta NUMA não é tão inofensiva como possa pensar — disse. — Preocupa-me que possam interferir novamente. Um deles em particular. Seria melhor que os eliminasse. — Não os antagonize — advertiu Djemma. — Servirá apenas para atrair atenção no momento errado. Estamos muito perto do objetivo. — Não se preocupe — disse Andras. — Será sem problemas, prometo. — Não é pago para vinganças — disse Djemma. Andras riu.


— Não se preocupe — replicou. — Esta será por conta da casa. Antes que Djemma pudesse responder, Andras bateu com o fone de plástico sobre o suporte metálico. O som e a sensação provocados fizeram-lhe surgir um sorriso maníaco na face. Era muito mais satisfatório do que pressionar uma tecla vermelha num celular.


20. Gamay esforçou-se para permanecer calma, para controlar a respiração e as emoções. A seu lado, Paul insistia numa tentativa inútil de contato com o Matador pelo rádio. — Matador, aqui é Grouper. Na escuta... Não houve resposta. — Matador, aqui é Grouper... Passara trinta minutos assim. Que mais poderia fazer? A sua única esperança era que o Matador enviasse os VCR para tentarem desenterrá-los. Se pudessem ser encontrados e não estivessem sepultados sob trinta metros de sedimentos. Paul continuou a tentar. “Matador, daqui Grouper. Matador, respondam, por favor.” E, de cada vez que proferia as palavras, o som forçava os nervos de Gamay como uma forma de tortura chinesa. Não houvera qualquer resposta durante meia hora. Continuaria a não haver resposta nos trinta ou trinta mil minutos seguintes, se continuasse a tentar. Ou a antena fora arrancada durante o deslizamento ou estavam enterrados demais para que o sinal fosse captado. Enchendo novamente os pulmões para se acalmar, massageou os ombros dela. — Talvez consigam nos ouvir — disse-lhe Paul. — Mesmo que não consigamos ouvi-los. Gamay acenou afirmativamente com a cabeça, virou-se na direção oposta e verificou o medidor de ar. Restavam-lhes dezenove horas. Mais dezenove horas à espera da morte. Apercebeu-se pela primeira vez de como o espaço no interior do Grouper era reduzido. Era um caixão. Um túmulo. Uma onda de claustrofobia dominou-a de forma tão intensa que começou a tremer, desejando ter morrido durante o deslizamento ou desejando conseguir abrir a escotilha e deixar que a água os esmagasse. Era irracional, era o pânico, mas parecia-lhe profundamente real. — Matador, aqui é Grouper... Na escuta. Recompôs-se, reprimindo lágrimas que ameaçavam escorrer. Cansada da posição desconfortável em que se sentava com a cabeça baixa no veículo apertado, deitou-se e fechou os olhos, colocando a cara sobre o metal frio do chão como alguém descansaria sobre os mosaicos de uma casa de banho depois de uma noite de copos.


Acalmou-a um pouco, pelo menos até abrir os olhos e notar algo que não vira antes: uma gota de água escorrendo por uma placa metálica abaixo. Qualquer esperança de que fosse condensação dissipou-se quando outra gota se seguiu pouco depois. E mais outra. Ping... Ping... Ping... Talvez não lhe restassem dezenove horas, afinal. — Matador, aqui é Grouper... Seria inútil contar a Paul. Acabaria por perceber e, de qualquer forma, não podiam fazer nada. A quase cinco mil metros de profundidade, a pressão exterior rondaria as quatro toneladas por cada dois centímetros quadrados. As gotas pequenas e lentas ficariam mais rápidas enquanto a água forçasse a separação das placas metálicas e, nalgum ponto, seriam atingidos por um jorro de água gélida suficientemente poderoso para cortar uma pessoa ao meio. E seria o fim. Gamay olhou em redor, procurando outras infiltrações. Não viu nada, mas algo novo captou-lhe a atenção: luz nas telas minúsculas do seu visor de realidade virtual. Ergueu-o. Continuava a funcionar. Viu uma parede metálica e sedimento flutuando em redor. As partículas rodopiavam e refletiam a luz. — A Rapunzel sobreviveu — disse, em voz baixa. — O quê? — perguntou Paul. — Estou a ver imagens em direto — disse. — A Rapunzel ainda funciona. Gamay enfiou o visor pela cabeça e calçou as luvas. Demorou um momento a orientar-se, mas percebeu rapidamente que Rapunzel se movia sem restrição. Fez o pequeno robô dar uma volta de trezentos e sessenta graus. O mar aberto saudava-a através do mesmo buraco que usara para entrar no navio. — Vou trazê-la para fora. — Por que continuamos em contato? — perguntou Paul. — Os cabos de ligação ao Grouper medem dois metros. Devem estar fora dos sedimentos. — Isso significa que não estamos enterrados muito profundamente — disse Paul. — Talvez consiga libertar-nos. Gamay manobrou Rapunzel para fora do navio enquanto Paul começava a olhar para o monitor no seu painel de controle. — Fá-la subir — disse. — Precisamos de uma vista geral. Gamay acenou afirmativamente e iniciou a ascensão de Rapunzel. Ergueuse verticalmente durante trinta metros, o suficiente para ver melhor, mas ainda suficientemente perto para que as suas luzes e a câmera capaz de captar imagens com iluminação reduzida conseguissem distinguir o destroço e o fundo. A avalanche mudara tudo. O Kinjara Maru passara a repousar de lado como


um brinquedo derrubado. A proa estava quase sepultada em sedimento e o fundo por baixo apresentava-se mais plano e liso. Gamay supôs que a avalanche movera o navio cerca de cem metros. — Fazes ideia de onde estaremos? — perguntou. — Dirigíamo-nos para a proa — respondeu Paul. — Não faço ideia do que terá acontecido depois de sermos levados pelo deslizamento. Gamay conduziu Rapunzel para a proa do navio e fê-la pairar sobre a planície de sedimentos. Após dez minutos de movimentos de avanço e recuo, nem ela nem Paul viram qualquer sinal da sua presença. Nalgum recanto da sua mente, a estranheza da situação atingiu-a. Que bizarro, pensou, procurar-se a si mesma de forma consciente sem fazer ideia de onde pudesse estar. Após outra passagem, perguntou: — Vês alguma coisa? — Nada. Os cabos que transmitiam sinais a Rapunzel e recebiam o sinal que reenviava tinham de estar fora, mas seria difícil localizar trinta ou sessenta centímetros de cabo entre tantos detritos. Continuando deitada de costas, Gamay fez Rapunzel iniciar outra passagem. Enquanto o fazia, sentiu água gelada no cotovelo. Ergueu o visor por um segundo. Uma pequena poça formava-se a seu lado. Talvez tivesse água suficiente para encher duas colheres de sopa. Os pingos aumentavam de velocidade. Voltou a puxar o visor para baixo. Tinham de se apressar. — Talvez se estivesses mais próxima do fundo — disse Paul. Aumentaria a definição, mas estreitaria o campo de visão. Seria como a diferença entre procurar uma lente de contato caída estando em pé ou fazê-lo agachada, analisando o chão centímetro a centímetro. Não acreditou que tivessem tempo suficiente. — Vou levá-la mais para cima — disse. — Mas mal conseguimos ver assim. — Liberta um pouco de ar — disse ela. Paul não respondeu imediatamente. — Não sei — disse Paul. — Mesmo que não nos tenham ouvido, o Matador sabe que estamos em apuros. Enviarão VCR em breve. — Vai ajudar-nos — insistiu Gamay. A hesitação de Paul manteve-se. — Mesmo que enviem os VCR, precisarão de saber onde estamos — acrescentou. — Está bem — disse Paul, por fim, talvez reagindo ao desespero que lhe percebia na voz ou talvez percebendo que ela tinha razão. — Leva a Rapunzel até a velocidade que te parecer melhor — acrescentou. — Diz-me quando e


esvazio o cilindro que temos usado. Está meio vazio. Gamay guiou Rapunzel novamente sobre a proa do cargueiro afundado e deixou-a subir até o limite da visibilidade. O campo de visão permitido era o mais amplo possível. — Pronta — disse. Paul virou uma alavanca e trancou-a nessa posição. Estendeu a mão e pressionou o botão de esvaziamento de emergência. Ouviu-se um silvo de ar pelos canos, o ruído das bolhas explodindo no exterior e o movimento de água turbulenta. Durou cerca de quinze segundos e dissipou-se lentamente. O silêncio que se seguiu foi sinistro. — Vês alguma coisa? — perguntou. Gamay movia Rapunzel em frente, fazendo-a virar a cabeça para a esquerda e para a direita, procurando uma coluna identificativa de bolhas refletindo a luz. Deveria ser fácil de ver e inconfundível, mas nem ela nem Paul conseguiram vêla. — Tem de estar aqui. — Não vejo nada — disse Paul. — Esvazia outro tanque — disse Gamay. Paul sacudiu a cabeça. — Dois cilindros contêm um quarto do nosso ar. — Não fará diferença — disse ela. — Claro que sim. Se estamos enterrados, precisarão de tempo para nos desenterrarem. Não quero asfixiar enquanto cavarem. Pela primeira vez, ouviu tensão real na voz dele. Até ali, mantivera-se sereno. O Paul forte e silencioso que conhecia. Talvez o fizesse por ela. Talvez estivesse tão assustado como ela. Tinha de lhe contar a verdade. — Temos uma infiltração — disse. Silêncio a princípio. Depois: — Uma infiltração? Ela acenou afirmativamente. — É grave? — Ainda não — respondeu. — Mas não duraremos tempo suficiente para nos preocuparmos com o ar. Fitou-a por um momento e acabou por acenar afirmativamente. — Diz-me quando. Gamay voltou a baixar o visor e levou Rapunzel de volta à proa do cargueiro. Daquela vez, escolheu focar a sua atenção no espaço a bombordo do destroço. — Estou pronta — disse. Paul girou a alavanca do cilindro número dois, trancou-a e esvaziou o segundo tanque de ar. O som turbulento do ar em fuga fez estremecer novamente


o Grouper e Gamay forçou a visão, procurando algum vestígio. Virou-se, olhou e voltou a virar-se. Nada. Nada em nenhuma direção. Sentiu crescer um novo medo. E se não estivessem perto da proa? E se a avalanche tivesse virado o Kinjara Maru ao contrário ou os tivesse levado para tão longe do navio que seria virtualmente impossível encontrá-los? O cargueiro podia mesmo estar tombado sobre eles. As pequenas telas na frente dos olhos estremeceram. Por um segundo, receou que perdessem a transmissão. Mas, a seguir, a imagem estabilizou com exceção de uma área no alto. Algo distorcia a imagem captada pela câmera. Esperou que não fosse uma fratura no vidro, que seria tão fatal para Rapunzel como a infiltração no casco do Grouper revelaria ser para eles dali a pouco tempo. Mas a câmera continuava a funcionar e Gamay percebeu que a distorção não era uma fratura. Algo a provocava. Uma bolha presa na lente. Fez recuar o vídeo da perturbação em câmera lenta. Sim, era um jorro de bolhas passando junto a Rapunzel. Rodou o pequeno VCR para olhar diretamente para o fundo. Ali, quase diretamente por baixo, viu a forma oblonga do Grouper. Não sepultado, como recearam, mas com o nariz enfiado nos sedimentos e com destroços do Kinjara Maru empilhados por cima. Paul também viu. — Há quanto tempo não digo que amo a minha mulher? — disse, entusiasmado. — Também te amo — replicou ela, conduzindo Rapunzel na sua direção. — A Rapunzel tem um maçarico? Acenou afirmativamente e, quando o pequeno robô os alcançou, Gamay ativou o maçarico de acetileno e começou a cortar uma das traves metálicas que tinham caído sobre o Grouper. O maçarico cortou a trave em dois minutos, quebrando-a em duas partes que caíram com estrondo. O Grouper, com a capacidade de flutuação desimpedida, moveu-se quando o peso foi removido. Era como se o pequeno submersível tentasse libertar-se. Mas havia ainda alguma coisa a prendê-los. — Vês os cabos junto ao leme? — perguntou Paul. — Estamos presos neles. Gamay viu os cabos, manobrou Rapunzel mais uma vez e ergueu o maçarico. Aquela seção dos destroços era mais leve, mas mais complexa de eliminar. Assim que o maçarico de Rapunzel cortava cada um dos cabos de aço, tinha de os afastar e impedir que voltassem a emaranhar-se no Grouper. Quando o último cabo foi retirado, o Grouper girou e começou a erguer-se.


Com os destroços restantes caindo com o movimento, iniciou a ascensão. No interior, o ruído fazia lembrar latas de lixo sendo chutadas no meio da noite. Mas, quando o último estrondo metálico se dissipou e os cabos caíram sobre o casco, ficaram livres. — Subimos — gritou Paul. Gamay ativou o modo de regresso automático à superfície de Rapunzel e ergueu o visor. Ver água movendo-se pela vigia de bombordo em vez de uma pilha de areia e sedimentos era magnífico. Sentir a aceleração vertical enquanto o pequeno submarino se erguia era inebriante. Inspirou fundo, descontraiu por um segundo e, a seguir, ouviu algo estalar. O som fazia lembrar um painel de vidro a partir-se ao meio. Virou a cabeça. As gotas de água infiltrando-se no interior do submersível transformaramse num fio contínuo.


21. O restaurante chamava-se Escarpa, palavra portuguesa para designar um penhasco. O nome se adequava, já que o edifício baixo e amplo construído de pedra nativa e argamassa se erguia nas colinas de Santa Maria, a três quartos do caminho do topo do Pico Alto. Uma viagem de doze quilômetros por uma estrada sinuosa de montanha trouxera Kurt e Katarina até a sua porta. Pelo caminho, passaram por campos abertos, vistas tremendas e até por um local onde alugavam asas-delta e ultraleves aos turistas. Katarina só tocara o cascalho da beira com as rodas do seu pequeno Focus alugado uma dúzia de vezes, em curvas durante a subida. E, para ser sincero, Kurt tinha de admitir que só três dessas ocasiões pareceram destinadas a provocar morte certa, quando os railes de proteção, intermitentes ao longo do percurso, desapareceram. Mas, depois de ver a jovem meter mudanças, travar e pisar o acelerador nos momentos certos, Kurt decidiu que era uma excelente condutora. Era óbvio que tinha experiência e depreendeu que tentava apenas testar-lhe os nervos. Optou por não reagir, abrindo languidamente o tejadilho e comentando como o vale parecia incrível sem nada a separá-los de uma queda. — Agrada-lhe o passeio? — perguntou ela. — Imensamente — respondeu. — Tente não atropelar vacas. Não conseguir uma reação pareceu apenas fazê-la acelerar mais. E Kurt mal conseguiu conter o riso. Sentados a uma mesa, vendo o sol cair sobre a ilha e mergulhar no oceano, podiam escolher o que comer. Katarina cedeu-lhe o privilégio e Kurt escolheu a especialidade da ilha: Bacalhau à Gomes de Sá, bacalhau salgado português com batatas, acompanhado com legumes locais. Estudou a lista de vinhos. Apesar de várias excelentes escolhas francesas e espanholas, achou que um prato local deveria ser acompanhado por um vinho local. Os Açores produziam vinho desde o século XVI e algum desse vinho tinha excelente reputação. Pelo que lhe fora dito, a maioria das uvas continuava a ser colhida manualmente. Sentiu que seria uma pena desperdiçar esse esforço. — Uma garrafa de Terras de Lava — disse, escolhendo um vinho para acompanhar o peixe. A sua frente, Katarina acenou com a cabeça em aprovação. — Eu escolho a sobremesa — insistiu, sorrindo como uma negociante que tivesse conseguido um acordo favorável. Kurt retribuiu o sorriso.


— Parece-me justo. Supondo que não descobriria o seu segredo antes de terminar a sobremesa, mudou de assunto. — Disse que veio a serviço de seu governo — recordou. Pareceu um pouco incomodada. — Diz isso como se fosse algo negativo. Como se não estivesse aqui ao serviço do seu. — Na verdade, não estou — disse. — O Joe e eu viemos para uma corrida. Ficamos a pedido dos governos de Portugal e Espanha. Para manter a paz entre os dois países. — Uma distinção e tanto — disse ela, mordendo um aperitivo. — Penso que, da última vez que se desentenderam, o Papa teve de traçar uma linha sobre o mundo para resolver o diferendo. Kurt não evitou o riso. — Infelizmente, não temos o mesmo poder. O vinho chegou. Provou-o e acenou com a cabeça em aprovação. — Por que a enviaram para cá? — perguntou. — Pensei que fosse mais discreto — disse ela. — Não é o meu forte. — Trabalho para o Diretório Científico — explicou. — Claro que se interessaram por esta descoberta. Uma dúzia de destroços supostamente arrastados sobre o fundo oceânico pelo magnetismo poderoso desta rocha. Quem não se interessaria? Fazia sentido, mesmo que algumas das suas outras ações não fizessem. — Ninguém diz que foram arrastados sobre o fundo pelo magnetismo — disse. — Apenas que, durante ou após os afundamentos, as correntes e o magnetismo se uniram para os puxar lentamente. — Sim — disse ela. — Eu sei. Mas não é mais romântico imaginar que este local será como as sereias da mitologia grega? — Mais romântico — concordou Kurt. — Mas menos rigoroso. O brilho da aventura iluminava-lhe os olhos. — Tem a certeza? Afinal, esta parte do oceano engoliu um número desproporcionado de navios e aviões ao longo dos anos. Antes que pudesse comentar, ouviu-a declamar uma lista. — Em 1880, o HMS Atalanta afundou-se nestas águas. Os sobreviventes referiram ataques de tonturas e indisposição e disseram ter visto coisas bizarras. Mais tarde, considerou-se que tinham sido alucinações atribuídas a uma epidemia de febre amarela a bordo. Mas estávamos em 1880 e o diagnóstico foi feito muito depois dos fatos. Ninguém sabe ao certo. Em 1938, um cargueiro


chamado Anglo-Australian e a sua tripulação desapareceram ao largo deste arquipélago. Nunca se encontraram quaisquer destroços. Em 1948, um avião conhecido como Star Tiger desapareceu depois de decolar daqui. Não houve qualquer pedido de auxílio. Também não se encontraram destroços. Em 1968, depois de problemas inexplicáveis com o rádio, um dos seus submarinos, o USS Scorpion desapareceu não muito longe daqui. Tanto quanto sei, os destroços sugeriram a ocorrência de uma explosão interna. Kurt conhecia algumas das histórias. O Star Tiger desaparecera muito a oeste dos Açores, talvez a mil e quinhentos quilômetros de distância, e acreditava-se que o Scorpion teria sofrido algum tipo de falha catastrófica a grande profundidade. Havia na Marinha quem insistisse que teria sido abalroado ou atingido por um torpedo russo como retaliação pelo abalroamento acidental de um submarino russo no Oceano Pacífico. Decidiu não partilhar essa teoria. — Este local assemelha-se muito ao Triângulo das Bermudas — disse ela. — Não podemos permitir que seja místico apenas por um momento? — Claro — respondeu. — Mas informo-a de que estudos levados a cabo pela Guarda Costeira americana não encontraram diferença significativa entre o número de desaparecimentos de navios e aviões no Triângulo das Bermudas e ocorrências semelhantes noutros pontos. Os oceanos são perigosos em todo o planeta. Parecendo novamente desiludida, bebeu um gole de vinho. — Sabe que lhe chamam Porta do Inferno? — Quem? — Os outros cientistas — respondeu. — Talvez a comunicação social. Era a primeira vez que ouvia aquilo. — Não vejo ninguém da comunicação social desde o primeiro dia — disse. — E não sei se consigo ver a referência. — Os destroços lá embaixo — começou. — Repousam sobre uma plataforma em forma de cunha, estreitando-se de oeste para leste e apontando a torre. No ponto mais próximo, existe uma abertura estreita por onde a corrente acelera e atinge águas mais profundas. No extremo oposto, o alegado ponto de entrada, há uma abertura maior entre duas seções rochosas com elevação distinta que se assemelham vagamente a pilares. — E é essa a porta — disse Kurt. Katarina acenou afirmativamente. — Larga é a porta e amplo é o caminho que conduz à perdição — recitou. — Mateus, capítulo sete, versículo treze. A teoria que ouvi referida diz que os navios, os aviões e os outros destroços foram arrastados pela porta larga e curva e não conseguem sair pelo extremo estreito. Um cemitério de condenados. A Porta do Inferno.


Kurt teve de admitir que soava muito mais excitante do que Anomalia Magnética do Atlântico Central Norte ou qualquer que fosse a designação oficial. — Os navios entram, mas não conseguem sair — disse. — Exatamente — disse ela, sorrindo-lhe. — Nada disso explica por que mergulhava nos destroços de um avião submerso na entrada dessa porta — disse Kurt. — Não — concordou, sem tentar defender as suas ações ou sequer oferecer uma explicação. — Nem explica por que um avião feito de alumínio, um metal que não é férreo nem magnético, seria atraído por esta anomalia decididamente magnética. Tinha razão. Kurt nunca pensara naquilo. Enquanto interiorizava as suas palavras, viu-a beber um novo gole de vinho. — O vinho é excelente — considerou. — Dá-me licença? Preciso de retocar a maquiagem. Retocar a maquiagem? Depois de experimentar três vestidos diferentes, passara meia hora na casa de banho do hotel a ajeitar o cabelo e a aplicar maquiagem. De que retoques precisaria? Kurt ergueu-se educadamente enquanto Katarina se afastava. Parecia fantástica com um vestido de noite preto simples e sapatos de salto alto vermelhos. Sobretudo por contraste com a aparência dele algo desmazelada. Continuava com a roupa que vestira de manhã, com uma mudança para equipamento de mergulho, outra mudança rápida e sem duche pelo meio. Viu-a afastar-se, pensou no que acabara de dizer e aproveitou a oportunidade para usar o telefone e enviar uma mensagem escrita a Joe. Passou os dedos sobre as teclas com uma velocidade furiosa. Preciso de tudo o que conseguires encontrar sobre esta Katarina Luskaya. O que a trouxe aqui. Para quem trabalhou no passado. E tudo sobre o velho avião onde a encontrei. Rápido. A resposta de Joe chegou segundos depois. Devo ser telepata. Já tratava disso. Aqui vão alguns links. O avião foi dado como perdido ao largo de Santa Maria em 1951. Há um ficheiro do Departamento de Aeronáutica Civil e um relatório de acidente. Também há uma entrada da CIA a esse respeito, mas não consigo acessar os dados. Uma entrada da CIA. Supôs que não o devia surpreender. Começou a acessar aos links que Joe enviara, dividindo a sua atenção entre a entrada das casas de banho e o telefone. No banheiro feminino, Katarina demorou-se em frente do espelho, pairando sobre uma pia de mármore. Não dava atenção à maquiagem, ao cabelo ou a


qualquer outra coisa além do telefone. — Vamos — insistiu, enquanto a transferência progredia lentamente. Por fim, a tela mudou e viu surgir uma espécie de biografia de Kurt Austin. Continha mais informação do que esperava, mais do que teria tempo para ler. Passou em revista os pontos principais, enviou uma resposta ao posto de comando dizendo que tinha recebido e guardou o telefone na bolsa. Um olhar rápido ao cabelo fê-la perceber que estava tão bom como poderia estar e voltou-se para a saída.

Kurt olhou para as casas de banho, novamente para o telefone e para as casas de banho mais uma vez. Viu a porta abrir-se, leu mais uma linha e guardou o telefone no bolso. Ergueu-se e puxou-lhe a cadeira quando ela se aproximou. — A maquiagem está ainda mais perfeita — disse-lhe, sorrindo. — Obrigada — replicou ela. — Por vezes, é difícil sentirmo-nos tão bonitas como queremos. Kurt sentiu uma verdade acidental no que dissera. Atribuiu-a a uma vida passada competindo num desporto em que os participantes eram julgados e que contrastava com desportos em que ou se marcava ou não. Demasiada subjetividade conseguia deixar as pessoas inseguras. — Está fantástica — disse. — Aliás, todos aqui se perguntam por que está jantando com um cara rústico como eu. Sorriu e Kurt viu um ligeiro rubor. O sol se escondera por completo. Mantiveram conversa de circunstância até chegar a comida. Depois, após mais um copo de vinho, Kurt decidiu voltar à conversa anterior. — Tenho uma pergunta — disse. — Por que mergulhou sozinha até aquele avião? Tinha dois tanques a bordo. Não veio com um parceiro? — São duas perguntas — constatou ela, sorrindo. — Vim a Santa Maria com outro representante do governo. Mas não faz parte do Diretório Científico. A missão é minha — acrescentou. — Os tanques vieram com o barco. Kurt supôs que o outro representante seria uma espécie de supervisor, enviado para a vigiar e para a manter na linha e fora de perigo. — É a sua vez — disse-lhe, levando à boca outra garfada de peixe. — Acho que vou gostar deste jogo — disse ela, antes de disparar: — Pareceu muito irritado quando subimos — disse. — Por quê? Foi a minha violação da sua preciosa “zona de exclusão” ou o fato de nunca me ter registrado?


— Nem uma coisa nem a outra — respondeu. — Não gosto de ver pessoas magoarem-se. Poderia ter morrido naquele destroço. Mais cinco minutos e teria morrido. — Então Kurt Austin é um homem que se preocupa? — Absolutamente — respondeu ele, dirigindo-lhe um sorriso intencionalmente caloroso. — É por isso que está no negócio dos resgates? — Não percebi. — Qualquer idiota consegue fazer explodir um barco e afundá-lo — disse. — Mas é necessária perícia e dedicação para o trazer de novo à superfície. Além de os riscos serem muito mais elevados. Imagino que o faça precisamente por estes motivos: por ser mais difícil e por ser melhor. E também porque gosta de salvar coisas. Kurt nunca pensara no assunto daquela forma, mas havia alguma verdade no que dizia. O mundo estava cheio de homens que destruíam coisas e se livravam delas. Orgulhava-se de restaurar coisas velhas em vez de as deitar fora. — Suponho que deva agradecer-lhe — disse ela. — Depreendo que tenha mergulhado para me salvar. Não soubera ao certo que estava em apuros quando entrara na água, mas agradou-lhe trazê-la viva e não morta. Tentou perceber qual teria sido a motivação dela para correr tamanho risco. — E você é uma competidora — disse, fazendo também a sua análise amadora. — Tem pontos positivos e negativos — replicou ela. — Competições nacionais, campeonatos mundiais, os Jogos Olímpicos — disse Kurt. — Passou a vida tentando provar a treinadores, a juízes e ao público que era digna de pontuações elevadas e que merecia estar ali. Mesmo com uma rutura parcial de um ligamento, quase conseguiu a medalha de bronze em Turim. — Quase consegui a medalha de ouro — corrigiu. — Caí no último salto. Completei o programa só com um pé. — Se bem me lembro, não conseguiu andar durante um par de meses — disse, referindo um fato que acabara de ler nas informações recolhidas por Joe. — Mas o que disse mantém-se. Uma patinadora diferente teria desistido e poupado a perna para outro dia. — Por vezes, não temos outro dia — disse. — Foi essa a motivação? Uniu os lábios, estudando-o e girando o garfo na massa capellini. Falou, por fim: — Não se esperava que tivesse hipóteses de ganhar uma medalha — disse. — Quase deram o meu lugar a outra patinadora. O mais provável seria que não


tivesse outra oportunidade. — Tinha alguma coisa a provar — replicou. Acenou afirmativamente. — E tudo isto, uma missão fora do seu laboratório, suponho que será algo novo para si — continuou. — Terá gente que quererá impressionar no seu país ou talvez sinta que terá algo a provar-lhes. Ou poderá não ter outra oportunidade. — Talvez — admitiu. — Não tenho nada contra — disse Kurt. — Todos queremos impressionar os nossos patrões. Mas há lugares no planeta onde não podemos correr riscos. O interior de um avião quarenta metros abaixo da superfície é um deles. — Nunca quis mostrar a alguém que uma opinião a seu respeito estava errada? Kurt hesitou e proferiu uma meia-verdade. — Tento não me preocupar com o que as outras pessoas pensam sobre mim. — Então não tem nada a provar a ninguém? — perguntou ela. — Não disse isso — respondeu. — Ou seja, há alguém — insistiu. — Diga-me quem é. É uma mulher? Existe uma Sra. Austin ou uma futura Sra. Austin à sua espera em casa? Kurt sacudiu a cabeça. — Não estaria aqui se existisse. — Então quem é? Riu. A conversa dera uma grande volta. — Conte-me o segredo que guarda e responderei. Pareceu novamente desapontada. — Suponho que o jantar termine quando lhe der o que pretende. Kurt não queria que terminasse, mas, por outro lado... — Depende do segredo — disse. Katarina ergueu o garfo como se conseguisse ganhar um pouco mais de tempo. A seguir, pousou-o, desconsolada. — Ontem, salvou um mergulhador francês — disse. — É verdade — confirmou Kurt. — O tipo tinha mais de quarenta quilos de peso no cinto. Você foi descuidada, ele foi apenas estúpido. — Talvez não — disse-lhe. — Que quer dizer? — Foi combinado — disse. — Enquanto você e o seu parceiro o retiravam da água, outro membro da equipe francesa usava uma broca para tirar uma amostra de um metro da rocha magnética. Têm-se gabado do triunfo. Kurt sentiu uma raiva repentina. Expirou de forma ruidosa, ergueu o guardanapo e atirou-o à mesa. — Tinha razão — disse-lhe. — Ficamos por aqui.


— Bolas — exclamou ela. Kurt ergueu-se, deixou um punhado de notas na mesa e segurou-lhe a mão. Dirigiram-se para a saída. — E o seu segredo? — perguntou ela. — Mais tarde — disse. Puxando Katarina, abriu a porta e saiu. Algo se moveu nas sombras. Um objeto cortou o ar à sua frente, vindo da direita. Aproveitou o instante que lhe restava para se preparar e um bastão ou barra de algum tipo atingiu-o no estômago. Apesar da sua força, o golpe abalou-o e deixou-o sem fôlego. Curvou-se para diante e caiu de joelhos no chão.


22. Paul e Gamay subiam a grande velocidade no Grouper. Com todo o lastro libertado no fundo, o nariz do submersível apontado para cima e o motor elétrico na potência máxima, erguiam-se a um ritmo que rondava os cem metros por minuto. Com a diminuição da profundidade, a pressão também diminuiu. Mas vinte minutos depois do início da subida, continuavam três mil metros abaixo da superfície e o fluxo contínuo de água aumentava. — A parte mais fraca do casco é o rebordo — gritou Paul, notando que a água entrava pela junção de duas seções do submersível unidas como seções de um tubo. — Temos braçadeiras. Podemos tentar selá-la — gritou Gamay em resposta. Paul aproximou-se da parede e puxou uma cobertura presa com velcro. Por trás, um conjunto de ferramentas que os responsáveis pela concepção do submersível tinham acreditado poder ser útil aos tripulantes. Havia quatro braçadeiras incluídas no pacote. Grandes, sólidas e concebidas para se adequarem à estrutura específica do Grouper, não eram muito diferentes de uma braçadeira comum que se pudesse usar numa bancada de reparações doméstica. A única diferença era que funcionavam com um sistema de alavanca, como o macaco usado para erguer um carro. Aparentemente, quem tivesse projetado a embarcação teria percebido que o rebordo entre as duas metades do submersível seria o ponto mais frágil. Paul puxou uma das braçadeiras e passou-a a Gamay. Era demasiado alto para chegar ao local necessário e ajudá-la. — Há um ponto no rebordo com uma reentrância, como a que um carro terá por baixo para acomodar o macaco. Enfia a braçadeira aí. Quando estiver no lugar, torce-a com toda a força e passo-te outra. Ela acenou afirmativamente e aceitou a braçadeira. Passando a mão pelo rebordo, localizou a reentrância, alinhou a braçadeira e começou a apertá-la. — Devo deixar uma folga como nas porcas dos pneus? — perguntou. — Não — respondeu Paul. — Aperta-a até onde conseguires. Enquanto Gamay trabalhava, Paul sentiu que o Grouper girava ligeiramente. Fitou o painel de controle. Mantinham um ângulo de trinta e cinco graus, mas o submersível desviava-se para a direita. Calculou que uma das barbatanas do leme teria sido danificada e estaria torta. Corrigiu o alinhamento e


olhou para Gamay. Percebia o esforço na sua face enquanto tentava torcer uma última vez a primeira braçadeira. — Como estamos? Apertou e largou. — Acho que esta já está. Paul olhou para a infiltração. Não parara. Parecia até um pouco pior. Olhando além de Gamay, viu água formando uma poça na popa do submersível. Talvez cinco ou seis litros. Alcançou outra braçadeira enquanto passavam a marca dos dois mil e quinhentos metros. — Toma — disse. — Ataca o outro lado da infiltração a seguir.

Kurt Austin sentiu que caía em câmera lenta. Vira o cano mover-se na sua direção e, pelo canto do olho, percebeu a presença de um homem corpulento movendo-o como um jogador de basebol amador, descrevendo um arco largo, um golpe mais lento do que poderia ter sido. Conseguira reagir com rapidez suficiente para se encolher e endurecer o corpo em preparação para o impacto, mas não conseguiu esquivar-se. Enquanto se curvava, a sua mente ocupava-se quase na totalidade com a dor intensa no abdômen, restando espaço à justa para ouvir Katarina gritar e perceber que a pancada seguinte lhe racharia o crânio. Moveu-se no instante em que os joelhos tocaram o chão. Viu pernas e lançou-se para elas, empurrando-as com força e forçando um joelho do homem com o ombro. A articulação dobrou para trás e cedeu com um estalo agoniante. O bandido gritou e caiu de costas. Kurt colocou-se sobre ele e soltou o punho na cara do homem, explodindo o nariz dele num jorro de sangue. Um segundo golpe fraturou uma maçã do rosto ou uma órbita e a cabeça do homem virou de lado e ficou imóvel. Kurt não sabia se estava morto ou apenas inconsciente, mas também não se preocupou muito com isso. Tinha assuntos mais urgentes para resolver, especialmente a presença de um segundo bandido que se lançara nas suas costas e o prendia numa chave de braço. — Saia daqui — gritou para Katarina, forçando a voz. Tentou afastar um braço do homem, uma reação natural que seria impossível de levar a cabo na melhor das circunstâncias. Naquele momento, com os abdominais ardendo de dor pelo impacto com o cano, Kurt não tinha força


nem apoio e o adversário sabia. O braço apertou mais, bloqueando o fluxo sanguíneo para o cérebro. Tentando respirar, Kurt girou e tentou jogar o homem contra uma van estacionada ao lado. Empurrou e sentiu o impacto. Repetiu, mas com muito menos força e o homem não o soltou. Tateou em busca de uma arma de algum tipo, uma pedra ou um pau. Subitamente, ouviu uma pancada seca e a tensão afrouxou. Inspirou violentamente enquanto ouvia uma segunda pancada e o homem deslizava para o chão como um ramo seco caindo de uma árvore. Tentou se virar, mas não conseguiu. Tentou ficar em pé, mas também falhou. Conseguia apenas ficar agachado no chão negro do estacionamento. Sentiu mãos rodeando seu braço, mãos pequenas, mas firmes. Puxaram-no para cima, ajudando-o a levantar. — Segure-se em mim — disse Katarina. Colocou o braço dele em seu ombro, ignorando a dor que sentia. Apoiando-se nela, cambalearam pelo parque de estacionamento e conseguiram chegar ao pequeno carro. Quase tombou sobre o banco ao lado do condutor enquanto ela corria para o volante. Abriu a porta, jogou o cano que tirara do primeiro atacante no banco de trás e sentou. O pequeno motor ganhou vida com uma torção rápida da chave e, segundos depois, aceleravam para fora do parque de estacionamento em direção à sinuosa estrada de montanha. Sem que nenhum deles visse, dois Audis ligaram os faróis e começaram a segui-los.

Gamay colocara a terceira braçadeira no lugar e torcera-a com toda a força do seu corpo esguio. Com respiração ofegante e sentindo arder os músculos dos braços, olhou para a fissura por onde a água forçava a entrada. A infiltração fora reduzida a uma gota durante algum tempo, mas aumentara novamente e voltava a aproximar-se do fluxo contínuo. — Dá-me a última — gritou a Paul. Esperou que fizesse a diferença. Esperou que quatro braçadeiras e algumas centenas de quilos de pressão adicional conseguissem selar a fissura e reprimir o efeito dos milhares de quilos de pressão que tentavam forçar a entrada no Grouper. — Toma — disse Paul, enquanto lhe passava a última braçadeira. Encontrou a quarta reentrância e colocou a braçadeira no lugar. — A que profundidade estamos?


— Mil e duzentos metros — respondeu Paul. Começou a torcer. A braçadeira fechou-se sobre o rebordo e trancou-se. Cada torção adicional tornou-se mais difícil até quase não conseguir continuar a movê-la. O último esforço motivou-lhe um gemido animalesco e esgotou o que restava das suas forças. — É tudo o que posso fazer — disse, deixando-se cair, exausta. A infiltração diminuíra novamente. Não era apenas uma gota, mas deixara de parecer que alguém esquecera uma torneira aberta. — A que velocidade subimos? — perguntou. — Sessenta metros por minuto — respondeu Paul. — Reduzimos? — disse Gamay. — Por que subimos mais devagar? Estamos perdendo potência? — Não — disse Paul. — Ganhamos peso. Indicou a popa do submersível e Gamay se virou. Pelo menos cem litros de água acumulavam-se na cauda do Grouper. Cem litros, cento e vinte quilos de peso adicional, aumentando a grande velocidade. Gamay percebeu que não era apenas uma corrida contra a fratura do casco. Era também uma corrida contra o tempo. Mesmo com a contenção da infiltração, o Grouper continuaria a deixar entrar água e continuaria a tornar-se mais pesado. A sobrevivência ou a destruição seriam determinadas pelo equilíbrio entre a quantidade de água que entrava e a rapidez com que conseguissem continuar a subir. Se não alcançassem a superfície em breve, chegariam a um ponto em que a flutuação do Grouper seria superada pelo peso acrescido. Nesse momento, a ascensão longa e lenta se transformaria numa descida ainda mais longa e mais lenta. Uma descida de que não haveria escapatória.

Os pneus do carro alugado guincharam sobre o alcatrão da estrada montanhosa. Kurt olhou para trás. Dois pares de faróis tinham aparecido subitamente e aproximavam-se mais com cada curva. — Deveríamos ter regressado ao restaurante — disse ela. Pensara nisso, mas havia apenas cerca de dez pessoas no edifício e talvez uns dois cozinheiros nas traseiras. Não chegavam para tornar o local seguro e era um número de vidas demasiado elevado para arriscar. — Continue — disse Kurt. — Estamos mortos se nos apanharem aqui. O melhor que podemos fazer será tentar chegar à cidade e ir à polícia. Katarina continuou a pisar o acelerador até o fundo, fazendo o carro contornar as curvas da mesma forma como subira. Manteve-os à frente dos


perseguidores, mas duas retas longas permitiram que os Audis mais poderosos os alcançassem. Uma nova sequência de curvas apertadas permitiu-lhes respirar, mas, se Kurt recordava corretamente o trajeto, a reta mais longa viria a seguir. — Tem uma arma? — perguntou. Katarina sacudiu a cabeça. Infelizmente, ele também não. Os Açores tinham leis rigorosas regulando o porte de arma. Talvez fosse positivo. De outra forma, o bandido no alto da montanha podia ter uma Luger ou uma Glock em vez de um cano. Mesmo assim, causava problemas. — Outra reta — disse Katarina. Contornaram a curva e Katarina acelerou, mas os Audis continuaram a se aproximar, parecendo cada vez maiores no espelho retrovisor. Subitamente, a janela do lado de Kurt estilhaçou-se e ouviram o som de balas abrindo buracos no metal. Kurt baixou-se. Lá se ia a proibição de porte de arma. Katarina começou a guinar para a direita e para a esquerda, tentando manter os perseguidores à distância. Enquanto o fazia, Kurt avistou algo deslizando no banco de trás: o cano com que fora atingido. Segurou-o, olhou pelo espelho lateral e teve uma ideia. O Audi da frente estava poucos metros atrás, do seu lado. — Trave — gritou. — O quê? — Trave! Katarina moveu-se sobre o banco, segurou o volante com força e pisou com toda a força o pedal do travão. Enquanto o fazia, Kurt abria a porta. Os pneus do carro alugado derraparam no asfalto, guinchando e erguendo fumaça branca. O condutor do Audi foi apanhado de surpresa. Freou tarde demais, arrancou a porta do carro alugado e seguiu em frente. Chocado e confuso, não viu Kurt estender-se para fora do carro, segurandose à pega por cima da porta e brandindo o cano com um movimento digno de Rafael Nadai. A pancada partiu o para-brisas. Uma teia de fraturas alastrou sobre o vidro diante do condutor, bloqueando por completo a visão. O Audi guinou e voltou a aproximar-se como se estivesse prestes a abalroá-los. Kurt golpeou novamente com o cano, daquela vez com um movimento lateral. Atingiu a janela do condutor e raspou-lhe contra a cabeça. O Audi guinou com maior violência, regressando e movendo-se na direção do penhasco antes de virar bruscamente para a direita. Embateu contra a encosta rochosa


desse lado da estrada e capotou sobre o asfalto. Deslizou sobre o tejadilho amolgado, espalhando peças e pedaços de vidro ao longo de cem metros, mas conseguindo evitar uma queda ao abismo. — Vai deixar marca — disse Kurt. O segundo Audi contornou o primeiro e começou a acelerar. Kurt duvidou que o mesmo plano funcionasse duas vezes. Olhou em frente. Mais dois pares de luzes subiam a montanha. Podiam ser locais ou turistas, mas mantinham-se lado a lado, como se um dos carros tentasse ultrapassar o outro sem conseguir. Não teve dúvidas quanto ao significado. — Estão a tentar encurralar-nos — disse, erguendo a voz sobre o vento que entrava pela porta em falta. Por um momento, captou um vislumbre de trepidação na cara de Katarina e, a seguir, a jovem agente com alguma coisa para provar pisou o acelerador e segurou o volante como uma louca. O pequeno Focus disparou em frente enquanto Katarina ligava os máximos para reforçar o efeito. — Não vou parar — gritou. Kurt não duvidou, mas, enquanto olhava em frente, calculou que os condutores dos carros que avançavam para eles a grande velocidade também não tivessem intenção de parar.


23. Durante dez minutos completos, o Grouper continuou a subir, mas cada vez mais devagar. — Passamos os trezentos — disse Paul. Trezentos metros, pensou Gamay. Parecia-lhe muito melhor do que cinco mil, dois mil ou mil e quinhentos, mas continuava a ser uma profundidade a que muitos submarinos de casco de aço não conseguiam descer. Recordou um passeio com a Marinha anos antes, num submarino de classe Los Angeles que estava prestes a ser abatido ao efetivo. A duzentos metros de profundidade, o casco amolgara com um estrondo metálico tremendo. O susto fê-la dar um salto enorme, mas o capitão e a tripulação limitaram-se a rir com gosto. “É a nossa profundidade de teste”, dissera o capitão. “Esse amassado aparece sempre.” Aparentemente, era uma partida pregada a todos os convidados, mas assustou-a muito e o fato de, juntamente com Paul, continuar cem metros abaixo dessa profundidade significava que trezentos metros poderia ser tão letal como cinco mil. — Duzentos e setenta — disse Paul, anunciando novamente a profundidade. — A que velocidade? — perguntou. — Cinquenta — respondeu. — Aproximadamente. Menos de quatro minutos para a superfície, menos de quatro minutos para sobreviver. Algo se soltou no exterior do casco e o Grouper começou a tremer. — Acho que perdemos o leme — disse Paul. — Consegues controlá-lo? — Posso tentar direcionar a propulsão — respondeu, movendo as mãos furiosamente sobre os dois manípulos no painel. Gamay olhou para a popa. Pelo menos trezentos litros tinham entrado no interior do submersível. O líquido gélido já lhe alcançara os pés, fazendo-a encolher as pernas contra o corpo. Passou um minuto e começaram a aproximar-se dos cento e cinquenta metros. Uma sucessão de estranhos estalidos ecoou pelo casco. Eram como os ruídos de expansão e contração da estrutura de uma casa ou como metal sendo dobrado. Iam, vinham e tornavam a ir. — O que é isto? — perguntou. Vinha algures do espaço sobre a sua cabeça.


Olhou para cima. A braçadeira no topo da junção tremia. O ruído vinha do casco imediatamente sobre ela. Gamay olhou para a popa. A cauda do submarino estava cheia de água. Mais de quatrocentos litros. Mais trezentos quilos do que o peso do nariz. Todo o peso adicional torcia e puxava o submersível, forçando a junção já frágil, tentando rasgá-lo ao meio como quem partisse um galho. Precisavam nivelar antes que o Grouper fosse destruído. Precisavam distribuir o peso de forma mais equilibrada, mesmo que isso implicasse confiar apenas na flutuação para a subida. — Paul — disse Gamay. — Sessenta metros — anunciou este. — Precisamos nivelar — disse. — O quê? Os protestos sonoros do casco aumentaram de intensidade. Gamay viu a braçadeira de cima soltar. — Paul! — Lançou-se para a frente quando a braçadeira foi projetada da junção. Atingiu-a atrás da perna, fazendo-a gritar. Sua voz foi abafada pelo ruído da segunda braçadeira sendo disparada e pela dissonância desagradável da água entrando no submersível como que por uma mangueira de bombeiro de alta pressão.

A meio da estrada de montanha sinuosa que conduzia a Vila do Porto, o jogo aproximava-se do momento fulcral. Katarina pisava o acelerador a fundo. Os carros que subiam ao seu encontro não pareciam incomodados. Pelo contrário, tinham acelerado também e continuaram a avançar lado a lado, com os máximos ligados. Kurt ergueu uma mão para proteger os olhos da luz intensa, tentando poupar a visão para captar alguma coisa na escuridão em redor. Olhou pelo espelho. O carro que continuava a persegui-los aproximava-se. Pensava se teriam enlouquecido todos. Olhou novamente em frente e viu uma placa com uma seta. Dizia: “ASAS DELTA — ULTRALEVES”. Segurou o volante e virou o carro para a direita. — Que faz? — gritou Katarina. Derraparam para uma estrada de cascalho, ficaram virados de lado por um momento e endireitaram-se quando Katarina girou loucamente o volante numa direção e depois na outra. Atrás deles, o guincho de pneus sobre o alcatrão encheu a noite. A seguir,


ouviu-se um ligeiro embate. Não o impacto colossal que Kurt esperara, mas, mesmo assim, era um som agradável. — Siga em frente — disse. — Não sabemos onde isto vai dar. — Importa? Claro que não importava. E, momentos mais tarde, os faróis iluminaram a estrada secundária muito atrás deles. Mesmo que importasse, deixara de haver alternativa. — Mais à frente — disse Kurt. — Dirija-se para o penhasco. — Enlouqueceu? — gritou ela. — Mal consigo ficar em pé aqui. — Precisamente. Continuaram pelo caminho coberto de cascalho. Uma enorme nuvem de poeira elevava-se atrás deles. Não era o suficiente para bloquear a luz por completo, mas bastava para obscurecer tudo. Conseguia imaginar o condutor do Audi, sem conseguir ver, com pedras a voarem na sua direção, deslizando para aqui e para ali enquanto tentava acompanhá-los. Por vezes, potência superior e pneus maiores eram uma desvantagem. Em água rasa e cascalho, era precisamente o que acontecia. Aumentando a velocidade além de um certo nível, o Audi ficaria impossível de controlar. Começaria literalmente a deslizar sobre as pequenas pedras por baixo dos pneus. Mas o pequeno Focus, com os seus pneus estreitos, avançava sobre o cascalho com a mesma facilidade com que avançaria sobre terreno mais sólido. — Deixe-o se aproximar um pouco mais — disse Kurt, olhando para o terreno em diante. Katarina acenou afirmativamente. Parecia entender sua ideia. — Acelere e vire agora. Pisou mais o acelerador, levantando mais pó e projetando mais cascalho enquanto se distanciava do Audi. Mas o motorista do Audi teria também acelerado a fundo, porque o carro aumentara a velocidade. — Vire — gritou Kurt. Katarina girou o volante, mas o Focus derrapou e Kurt percebeu que cometera um erro de cálculo. Segurou-a pelo ombro, puxou-a para o seu lado e saiu do carro pela abertura antes ocupada pela porta, arrastando-a consigo. Rolaram no mato que ladeava a estrada. O Audi passou por eles a grande velocidade, não os atingindo por meio metro. O Focus passou o penhasco e desapareceu e as luzes dos freios do Audi acenderam. — Tarde demais — disse Kurt. O Audi derrapou entre a nuvem de pó e desapareceu, mergulhando no abismo a uma velocidade que rondaria os trinta quilômetros por hora.


Seguiu-se um silêncio assustador durante três segundos, antes de duas explosões ecoarem pela noite, uma atrás da outra. O pó rodopiou em seu redor. Por um segundo, foi como se estivessem sozinhos. — Caíram — disse Katarina. Kurt acenou com a cabeça e olhou para a estrada de cascalho. Via-se luz branca entre a nuvem de pó, avançando para eles. Restavam dois carros. — Vêm para aqui — disse. Segurou na mão de Katarina e afastaram-se da estrada. — Venha — disse. — Não podemos fugir, mas podemos esconder-nos. Paul puxou Gamay para o cockpit do Grouper. Segurava a perna como se tivesse sido ferida. — Estou bem — disse-lhe. Atrás dela, o submersível enchia-se de água. Virou-se para examinar o medidor de profundidade. 45.42. O ponteiro continuava a mover-se, mas de forma cada vez mais lenta. Mesmo com as hélices em rotação máxima e apesar da libertação do lastro, o Grouper lutava para subir. 41. O submersível enchia-se com água borbulhante. Atingira o meio do casco e subia rapidamente para eles. Paul voltou-se novamente para os controles. Apontou o nariz do Grouper para cima, tentando maximizar a verticalidade da propulsão das hélices. Deu-lhes um ligeiro impulso, mas, enquanto a água lhe chegava às pernas, sentia que o impulso se esgotava. O ponteiro tocou os 39 metros, passou-o por um milímetro e parou. O Grouper estava totalmente vertical, com as hélices esforçando-se por manter a subida. Não seria suficiente. A água atingiu a cintura de Paul e Gamay segurou-se a ele com força. — Temos de ir — disse. Gamay esforçava-se por manter a cabeça acima da água enquanto o mar enchia o pequeno submersível como se enchesse uma garrafa. — Respira fundo — disse-lhe Paul, puxando-a para cima e sentindo-a tremer na água fria. — Três inspirações profundas — corrigiu. — Mantém a última. Lembra-te de expirar durante a subida. Viu-a fazer o que lhe tinha dito, inclinando a cabeça para uma última inspiração enquanto a água lhe cobria a cara. Conseguiu também inalar uma última vez e mergulhou. Em segundos, alcançou a escotilha. Porque a pressão era igual no interior e no exterior, a escotilha abriu sem dificuldade. Empurrou-a e ajudou Gamay a sair. Assim que a viu livre, empurrou-a para cima, vendo-a dar às pernas enquanto se erguia para a superfície.


O Grouper começara já a cair. Paul tinha de se libertar. Lançou-se para fora enquanto o casco do submarino se afastava. Nadou para a superfície, tentando usar movimentos de pernas longos e suaves. Os trajes de neoprene ajudaram a flutuação. Sem cinturão de pesos, eram quase como coletes de salvação. O desejo de viver também ajudou. Tal como o fato de terem respirado ar comprimido. Expirou um pouco enquanto subia, esperando que Gamay se lembrasse de fazer o mesmo. De outra forma, o ar comprimido e pressurizado expandiria em seu peito e estouraria os pulmões como um balão demasiado cheio. Um minuto depois de iniciar a subida, Paul sentia o ardor nos pulmões. Continuou a dar às pernas ao mesmo ritmo. A sua volta, não via nada além do vazio aquático. Muito abaixo, um ponto de luz cada vez mais distante assinalava a posição do Grouper enquanto mergulhava para as profundezas. Trinta segundos depois, expirou um pouco mais, sentindo a pressão no peito aumentar. Via luz em cima, mas não conseguia ver Gamay. Aos dois minutos de subida, os músculos exigiam oxigênio. Sentia a cabeça latejar e as forças esgotando-se. Continuou a mover as pernas, mas fazia-o com lentidão cada vez maior. Sentia o início de espasmos musculares, de tremores e convulsões corporais. Os espasmos passaram. A superfície reluzia no alto, mas Paul já não conseguia perceber a que distância se encontrava. A luz diminuiu. O azul trêmulo que conseguia ver reduziu-se a um ponto pequeno enquanto os braços e as pernas se tornavam demasiado pesados para mover. Todo o movimento cessou. Deixou cair a cabeça para o lado. A luz extinguiu-se e o último pensamento de Paul Trout foi: Onde... está... a minha... mulher?


24. Poeira e escuridão os cobriram enquanto Kurt conduzia Katarina por um espaço plano e coberto de erva junto ao penhasco. Os carros que se aproximavam faziam-no de forma lenta, percorrendo com dificuldade a estrada de cascalho. Ambos apresentavam danos à frente e a um deles restava um único farol em funcionamento. O desafio aos carros que subiam a estrada funcionara em favor de Austin, conseguindo danificar os veículos e atrasá-los. Enquanto se aproximavam, Kurt imaginou que os condutores tentariam perceber o destino dos seus companheiros. Ou a localização das presas e a possibilidade de terem conseguido escapar no seu pequeno carro alugado. Deitado de bruços sobre a erva, Kurt esperou que os carros passassem. A seguir, continuou em frente com Katarina, até chegarem a uma vedação de arame. Olhou para o espaço do outro lado da vedação. Um pequeno edifício semelhante a um hangar erguia-se do outro lado, sombrio e silencioso. Uma placa anunciava: “Aluguer de Ultraleves — $50 Meia Hora”. — Trepe — disse a Katarina. — Em silêncio. Viu-a colocar as mãos no topo da vedação, enfiar os dedos dos pés nos espaços em forma de diamante e subir com dois movimentos velozes. Kurt sentiu-se grato por estar em fuga com uma atleta. Fez o mesmo, caindo sem ruído a seu lado. — Onde estão os seus sapatos? — perguntou-lhe. — Refere-se aos meus sapatos italianos e caros de salto agulha? — Sim. Seus sapatos. — Caíram quando me jogou de um carro em movimento. Kurt notou que tinha o vestido rasgado e sangrava de arranhões no cotovelo e no antebraço. Ele também sangrava do joelho e do ombro e sentia as pequenas partículas de cascalho cravadas na palma das mãos. Mesmo assim, era melhor do que estar morto. — Compro novos para você se sairmos vivos — disse. — Temos que continuar. Correram pelo mato e se agacharam-se atrás de um grande tanque que parecia de propano. Pelo cheiro, Kurt percebeu que conteria AvGas, combustível de cem octanas para pequenas aeronaves a hélice, como os ultraleves. Escondido atrás do tanque, Kurt viu os dois Audis restantes se aproximarem lentamente do penhasco. Pararam no ponto onde os carros tinham caído,


deixando os faróis que restavam ligados. Dois homens saíram de cada carro. Um deles trazia uma lanterna. Os demais empunhavam rifles de assalto de cano curto. — Vamos sair daqui — sussurrou Katarina. — Não se mexa — disse-lhe Kurt. — Não conseguem ver onde estamos. Não quero que nos ouçam. Os homens armados se aproximaram do penhasco e espreitaram. Algo arderia no fundo porque a fumaça e a poeira estavam iluminados, transformando-os em silhuetas. — Parece que caíram — disse um deles. Kurt não conseguiu ouvir a resposta, mas o homem com a lanterna se aproximou mais do abismo. — Tragam-me uma mira telescópica — disse. Percebendo que a ordem não era cumprida com a rapidez que desejava, elevou a voz: — Vamos! Não temos a noite toda. Enquanto o homem falava, Kurt reconheceu a voz. Pertencia ao bandido a bordo do Kinjara Maru. — Então não estás morto — murmurou. Achou suspeita a explosão em alto-mar que destruíra a lancha dos piratas. Parecia conveniente demais. Perfeita demais, o desfecho do que parecia uma operação sofisticada. — Conhece esta gente? — perguntou Katarina. — Reconheço a voz daquele homem — explicou Kurt. — Participou do ataque a um navio uma semana atrás. Achávamos que tinha morrido numa explosão. Mas, obviamente, foi um truque para nos fazer pensar que sim. — Então estão atrás de você? — perguntou. Kurt se virou para ela. — Não viriam atrás de você? Pareceu ofendida. — É possível. Sou um membro muito importante da hierarquia científica russa. Estou bem segura de que conseguiriam obter um resgate maior por mim do que por você. Kurt sorriu e conteve o riso. Era provável que estivesse certa. — Não quis ofendê-la — disse. Pareceu aceitar e Kurt se virou-se novamente para os bandidos junto ao penhasco. Estavam perfeitamente iluminados contra a fumaça. Se tivesse uma arma, poderia abatê-los ali mesmo, fazendo-os cair um atrás do outro como patos em barraca de feira. Mas tudo o que tinha era o cano e a faca que o líder do grupo deixara no Kinjara Maru. Kurt viu o homem se aproximar do abismo com a mira telescópica. Kurt


supôs que olharia para o segundo carro. — Estão mortos — disse outro bandido. — Todos. — Não tenhas tanta certeza — disse o líder. — É uma descida longa — replicou o primeiro. — Ninguém sobreviveria a isso. O líder empurrou o subalterno contra o carro de forma ameaçadora. Um gesto muito arrojado, considerando que era o único sem arma. Obviamente, aqueles homens não questionavam sua autoridade. — Tens razão — disse o líder. — Ninguém sobreviveria a uma queda destas. A não ser que não tenham caído. Colocou a mira telescópica na mão do homem com violência. — Não há cadáveres no carro ou em volta — disse. — Droga — sussurrou Kurt. Até ali, sua maior dificuldade parecia ser a longa caminhada de volta à civilização, mas passavam a ter um problema mais urgente. Os homens não deixariam o local até encontrá-los ou até chegar a polícia, que demoraria pelo menos uma hora. Duvidou que conseguissem ficar escondidos tanto tempo. Enquanto o líder começava a mover a luz pelo campo, Kurt se encolheu atrás do tanque. Quando o feixe de luz apontou para outra direção, segurou novamente a mão de Katarina. — Espero que não tenha vertigens. Atravessaram o espaço aberto e chegaram ao hangar escuro. Depois de forçarem o cadeado com o cano, conseguiram entrar. — O que faremos? — perguntou Katarina. — Tem cinquenta dólares? — perguntou Kurt, aproximando-se de um dos ultraleves e abrindo a cobertura do tanque de combustível. — Não comigo — respondeu ela. — Por quê? — Teremos que deixar uma nota de dívida — disse Kurt, erguendo um capacete e passando-o. — Vamos voar? — deduziu. Kurt acenou afirmativamente. O sorriso dela foi tão amplo que lhe pareceu que iluminava o espaço em redor. — Sempre quis experimentar uma coisa destas — disse. Kurt verificou o tanque para se certificar de que continha combustível. Vendo que estava meio cheio, voltou a colocar a tampa, aproximou-se da porta do hangar e começou a empurrá-la lentamente. No exterior, sobre o penhasco, Andras e os seus homens dispersavam. Andras fora buscar uma Glock de nove milímetros que segurava na mão esquerda, mantendo a lanterna na direita. Um dos seus homens avançava junto


ao abismo e outro seguia na direção oposta. Supôs que as presas se tinham movido mais para o interior. O terreno alargava-se e forçá-lo-ia e aos seus homens a considerarem muitos mais esconderijos. Pensou que seria a tática melhor. Depois do primeiro contato com o homem da NUMA, não tinha dúvidas de que era muito inteligente. Tornaria muito mais agradável matá-lo. A lanterna iluminou o chão. Se receasse que estivessem armados, teria se movido na escuridão, usando a mira telescópica de visão noturna. Mas os alvos não tinham usado armas durante a perseguição além do cano metálico e da sua inteligência. Isso fazia-o ter a certeza de que poderia prosseguir em segurança. Foi recompensado por algo que refletiu a luz. Um sapato de mulher. Apesar de empoeirado, a cor vermelha do couro continuava visível. A três metros, viu outro. Assobiou aos seus homens e, quando se aproximaram, moveu a lanterna em redor, avistando a vedação e o edifício do outro lado. — Cerquem o edifício — disse. — Estão lá dentro. Os homens correram para a vedação e começaram a trepar. Enquanto o faziam, um som semelhante ao da ignição de um cortador de grama anulou o silêncio da noite. Andras saltou a vedação e apontou a lanterna ao edifício a tempo de ver um dos ultraleves sair e acelerar sobre a erva. — Disparem — ordenou. Dois dos seus homens agacharam-se e abriram fogo enquanto o ultraleve ganhava velocidade. No momento seguinte, explodiu e a asa de náilon foi engolida pelas chamas. Fácil demais, pensou. E estava certo.

Enquanto o primeiro ultraleve começava a acelerar sobre a erva, Kurt e Katarina subiram ao segundo e ligaram o motor. Kurt esperou que o ruído e o movimento do primeiro camuflassem a sua partida noutra direção. Enviou o chamariz para a direita e, segundos depois, virou o seu ultraleve para a esquerda. Enquanto empurrava a alavanca de aceleração, ouviu tiros. No momento seguinte, viu um clarão sobre o campo coberto de erva que servia de pista aos ultraleves. A luz era suficiente para lhe permitir ver. Empurrou a alavanca até o fim, percebendo que o tempo para permanecer invisível passara. O pequeno motor de cinquenta cavalos zumbiu como um enxame furioso e a pequena hélice de madeira atingiu a rotação máxima num segundo. A aeronave longa e estreita avançou, acelerando sobre a erva e erguendo-se


num espaço que rondaria os trinta metros. Kurt virou para o penhasco, tentando colocar o hangar entre eles e os homens armados. Ouviu alguns disparos esporádicos e, pouco depois, veio o silêncio. Afastaram-se, sobrevoando o penhasco e ganhando velocidade enquanto se dirigiam para as luzes de Vila do Porto.

Sobre a pista de erva, Andras percebeu o erro que cometera. Tinham sido enganados por uma manobra de diversão. Virou-se a tempo de ver o segundo ultraleve decolar. Disparou e correu para o hangar com os seus homens. No interior, encontraram uma frota inteira das engenhocas voadoras. Quatro pareciam prontas a usar. — Entrem — gritou. — Vamos abatê-los no ar. Enquanto os seus homens subiam para um segundo ultraleve, Andras preparou-se para ocupar o lugar dianteiro do que se encontrava mais à frente e parou. Um objeto familiar erguia-se verticalmente, espetado no banco acolchoado. Reconheceu o cabo preto polido, a lâmina dobrável de titânio e os buracos no cabo. Era a faca que cravara no banco do operador da grua do Kinjara Maru, depois de cortar os cabos hidráulicos. O homem da NUMA ficara com ela. E acabara de lha devolver. Teria de haver um motivo. Claramente, mostrava a Andras que sabia quem o perseguia, mas suspeitou de algo mais. Saiu do ultraleve, procurando o perigo. — Não liguem o motor — ordenou, vendo que um dos seus homens estendia a mão para a ignição. Andras aproximou-se do motor da aeronave que estivera prestes a pilotar. Verificou as linhas hidráulicas e os tubos de combustível, achando que seriam alvos poéticos para o seu adversário. E possivelmente também letais, se ele ou os seus homens tivessem ligado os motores no espaço confinado do hangar semelhante a um celeiro. Não encontrou nada errado nas seções expostas de tubos e não viu líquidos a pingar sobre o chão. Olhou para cima. As asas tinham cortes enormes, longos, retos e difíceis de ver. Pelo que parecia, tinham sido feitos com cuidado para não deixar o náilon pendurado. Os danos poderiam não ser suficientes para manter os ultraleves em terra, mas não duvidou que, depois de decolarem, a deslocação de ar forçaria os cortes, desfiando o tecido em segundos. Supôs que, se tivessem levantado voo, descobririam a sabotagem pouco depois de passarem o penhasco.


— Podemos verificar os outros — sugeriu um dos seus homens. Andras permitiu que o fizessem, mas sabia que seria escusado. Estariam todos iguais. Uniu os lábios, desiludido, mas sentindo algo novo no seu coração: admiração. O tipo de excitação sentida por um caçador quando percebe que a presa poderá ser maior, mais forte, mais feroz e inteligente do que esperava. Tal pensamento nunca provocava raiva, apenas aumentava o entusiasmo. Até ali, sentira por aquele homem da NUMA um respeito hesitante, sem deixar de o subestimar. Um erro que não repetiria. — Há muito tempo que não enfrento um desafio como este — sussurrou, sem que ninguém o ouvisse. — Vou gostar de te matar.


25. Plataforma continental, ao largo da costa de Serra Leoa, 23 de junho Djemma Garand

Garand estava na cabine de passageiros de um Eurocopter EC155. O helicóptero de design moderno incluía um rotor de cauda com resguardo, um painel de instrumentos totalmente em vidro e um interior forrado a couro cosido pela mesma empresa que fabricava os bancos para Rolls Royces personalizados. Era rápido, relativamente silencioso no interior e o topo do luxo para qualquer bilionário ou ditador de um pequeno país digno desse nome. Mesmo assim, Djemma o odiava. Preferia deslocar-se de barco ou de carro para qualquer lugar onde precisasse de estar. Os seus dias no campo de batalha mostraram-lhe em primeira mão como helicópteros de pequenas dimensões eram vulneráveis a fogo terrestre. Um morteiro explodindo por perto conseguiria derrubar muitos helicópteros. Um impacto direto teria consequências ainda mais devastadoras. Armas de pequeno calibre poderiam fazer o mesmo. Mas, mais do que um ataque, Djemma sentia que era demasiado fácil que pequenos aviões e helicópteros sofressem acidentes inexplicados, do tipo que parecia abundar entre líderes de nações dilaceradas pela guerra num ritmo completamente desproporcional para a quantidade de tempo que passavam em viagem. Habitualmente, estes acidentes aéreos não tinham testemunhas, sobretudo quando ocorriam sobre terreno montanhoso ou coberto por selva. Sem uma equipe de especialistas forenses para analisar os destroços, tornava-se quase impossível determinar se uma aeronave teria caído devido a uma falha, atingida por um míssil ou tiros ou se tinha explodido com uma bomba colocada a bordo por um sabotador. Normalmente, Djemma não viajava pelo ar. Mas, naquele caso, abrira uma exceção. Fizera-o porque a velocidade era essencial, porque os acontecimentos e até aliados em quem confiava pareciam conspirar contra ele, porque, se o seu plano fosse descoberto, precisava saber se a arma estava pronta. O EC155 sobrevoou a costa e avançou sobre o Atlântico. A dezesseis quilômetros da costa, quatro pequenos pontos surgiram no horizonte. Enquanto o helicóptero se aproximava, tornaram-se formas mais distintas: enormes


plataformas petrolíferas, dispostas quase num quadrado perfeito e separadas por vários quilômetros. Pelo menos uma dúzia de barcos patrulhava as águas em volta das plataformas e enormes barcaças com equipamento estavam presas com cabos a uma delas. — Leva-nos para a número três — ordenou Djemma. O piloto obedeceu e, minutos mais tarde, Djemma retirava os fones e saía do helicóptero brilhante pintado de vermelho e branco, caminhando sobre a plataforma com passos largos. O supervisor e o seu pessoal superior aguardavam numa linha de inspeção formal. — Meu presidente — começou o supervisor. — É uma honra recebê-lo... — Poupa-me — interrompeu Djemma. — Leva-me até Cochrane. — Imediatamente. Djemma seguiu o homem sobre o heliporto em direção ao bloco principal da plataforma. Entraram, passando uma área repleta de tubos de refrigeração cobertos com condensação e gelo, passando a uma área preenchida com monitores de computador e telas planas. Na tela mais central, surgiu um desenho com uma forma estranha. Parecia a planta de um circuito de corridas ou de uma estação ferroviária. A melhor forma de o descrever seria como uma oval longa ligada a um círculo mais amplo, a partir do qual se alongavam duas dúzias de linhas retas, dispostas como tangentes. Pequenos pontos de dados, ilegíveis de qualquer distância, pareciam indicar condições dentro de cada seção definida pelas tangentes. As seções estavam ainda codificadas por cores. Djemma notou que a maioria estava iluminada de verde. Aquilo agradou-lhe. — Todas as seções na estrutura estão ativas? — Sim, presidente — respondeu o supervisor. — Ativamos de manhã. No momento, são apenas testes, mas Cochrane confirmou que nos enquadramos nas expetativas. — Excelente — considerou Djemma. — Onde está ele? — Num dos túneis de alvo — respondeu o supervisor. — Supervisiona a fase final da construção. — Mostra-me — ordenou Djemma. Atravessaram a sala climatizada e alcançaram um elevador que mal tinha espaço para os dois. Fê-los descer pela plataforma e, por baixo desta, num tubo de acrílico transparente como os que se usavam em parques de diversões e em locais como o SeaWorld. Luz brilhante tremeluzia e dançava na água. Cardumes nadavam por toda a


parte, como acontecia frequentemente perto de plataformas petrolíferas e de outras estruturas fabricadas pelo homem. Abaixo deles, uma cicatriz marcava o fundo oceânico, traçando uma grande linha indo de leste para oeste. A linha parecia reta apenas porque a curva era muito gradual, mas, se o oceano fosse drenado, seria visível do espaço que seguia o diagrama mostrado na sala de controle. No extremo oposto, homens vestindo trajes de mergulho rígidos e pequenos submersíveis do tamanho de carros familiares ocupavam-se a preencher a última seção. Mais além, nos limites da visibilidade subaquática, Djemma avistou um outro submarino caído de lado. Não se tratava de uma pequena embarcação, mas de um gigante, com o casco aberto como uma baleia esventrada. Ao contrário das outras coisas que via, aquela enfureceu-o. O elevador aproximou-se do fundo arenoso e desceu mais abaixo, continuando no tubo ao longo de mais dez metros de escuridão antes de parar. A escuridão foi repelida quando as portas se abriram para um átrio de betão iluminado por luzes fluorescentes. O supervisor saiu e Djemma seguiu-o. Notou que o átrio não era quadrado, mas fora construído com forma oval, fazendo lembrar os arcos dos antigos aquedutos romanos, o que ajudava o túnel a suportar a pressão externa da rocha e da água. Também notou outra coisa. — Está úmido aqui dentro — disse, vendo poças de água no chão e manchas de umidade nas paredes. — Até terminar o processo de endurecimento, o cimento será poroso — explicou o supervisor. — Tratamos e enterramos dez metros abaixo do fundo do mar, mas ainda temos infiltrações. A situação vai se resolver em aproximadamente um mês. Djemma esperou que estivesse certo. Continuou pelo túnel fora até alcançar um ponto de interseção. Uma escada conduzia a um nível inferior. Desceu e chegou a um túnel de tipo diferente. Aquele era perfeitamente circular, suficientemente amplo para permitir a passagem de um carro pequeno, e revestido com dutos elétricos e tubos de resfriamento como os que vira acima. Pontos de iluminação LED e retângulos metálicos reluzentes alongavam-se de três lados até onde a vista alcançava. Na direção oposta, viu Cochrane. — Está quase terminado — disse Djemma. — Agrada-me mais do que conseguirá perceber. — A construção está quase completa — disse Cochrane. — Ainda precisamos de a testar. E, se acha que conseguirá obter o tipo de potência que me exige, espero que tenha alguma coisa na manga. Porque, como está, poderei


conseguir-lhe apenas sessenta por cento do que exige. — Os seus falhanços deixaram de me surpreender ou enfurecer — disse Djemma. — Habituei-me a eles. Ouviu falar desta Porta do Inferno perto dos Açores? — Não recebo muitas notícias aqui embaixo — disse Cochrane. — Mas sim. Ouvi falar da Porta do Inferno. Um tipo de supercondutor de ocorrência natural. — É isso que dizem — confirmou Djemma. — Tenho homens lá embaixo. Acredito que será essa a resposta. Cochrane pousou o dispositivo de teste de fibra ótica com que trabalhava e limpou o suor da testa. — Não sei se percebo — disse. — Acabamos de acomodar trezentas toneladas de material que o seu submarino nos trouxe do cargueiro. Não temos espaço para mais nada. — Espaço — repetiu Djemma. — É interessante que use essa palavra. Porque me preocupa o espaço e o que possa ser visto a partir dele. — De que fala? — perguntou Cochrane. — O submarino russo a que extraímos os reatores. Foi-lhe dito que o desmantelasse e dispersasse os componentes. Não quero que ninguém encontre os destroços com um satélite. — Está tombado de lado, a quinze metros da superfície, coberto com redes — disse Cochrane. — E não o procuram — insistiu. — Os russos venderam-no. Não lhes importa o que lhe aconteça. Quanto aos americanos, os únicos submarinos que lhes interessam são os que transportam mísseis balísticos nas profundezas. Só o presidente e o camarada Gorshkov conhecem o destino deste e nem Gorshkov conhece o fim que lhe foi destinado. — Termine a desmontagem — ordenou Djemma. — E não volte a questionar-me ou desmontá-lo-ei a si... pedaço a pedaço, de forma muito dolorosa. Cochrane passou uma mão pela cara. — Temos onze submarinos de construção e quarenta trajes rígidos. Não é suficiente para os dois trabalhos. Terá que escolher. Quer os túneis de alvo terminados ou prefere que o casco enferrujado do submarino seja reciclado? Djemma esforçou-se para conter a fúria. Queria as duas coisas e um projetista menos insolente e mais competente que Cochrane. Mas, com os relatórios que recebia de Andras, os americanos a vasculharem o Kinjara Maru e as perguntas cada vez mais urgentes que lhe chegavam do Banco Mundial e dos seus outros credores, não tinha tempo para as duas coisas. Decidiu que a carcaça do submarino ficaria onde estava. Depois de agir, não


importaria que o mundo conhecesse a sua localização. Seria a menor das suas preocupações. — Termine os túneis de alvo e os emissores — disse. — Washington, Londres, Moscou, Pequim. Estes quatro deverão estar prontos dentro de uma semana ou ficaremos vulneráveis. Esperou a leva seguinte de queixumes e desculpas de Cochrane, tentando justificar por que não poderia obedecer, mas, pela primeira vez em muito tempo, não disse nada. — Estarão prontos — disse Cochrane. — Prometo.


26. Atlântico Oriental, 23 de junho

Gamay Trout sentava-se numa pequena cadeira na enfermaria do Matador com um cobertor sobre os ombros e uma xícara de descafeinado a ferver à sua frente. O médico de bordo não lhe permitiria que bebesse café a sério durante pelo menos vinte e quatro horas. Não bebia. Apenas usava a xícara para aquecer as mãos. Por isso, que lhe importava? Na verdade, nada lhe importava naquele momento. Nada além do homem deitado à sua frente, imóvel, numa cama de hospital. A tripulação do Matador resgatara-a da água cinco minutos depois de alcançar a superfície. Mas, com o céu cada vez mais escuro e com a ondulação cada vez mais forte, não vira Paul. Vinte minutos depois, após duas buscas de lentidão agonizante, um vigia avistou Paul a flutuar de peito para cima. Não fez qualquer esforço para chamar a atenção e flutuava apenas por ação do traje impermeável. Trouxeram-no para a enfermaria, onde Gamay recebia tratamento pela hipotermia ligeira e pela privação de oxigênio. Imediatamente, puxaram uma cortina entre ambos, mas conseguiu ouvi-los a trabalhar arduamente. Alguém disse: “Sem pulsação”. A seguir, o médico disse qualquer coisa sobre “choque cardiogênico”. Nesse ponto, estendeu a mão para a cortina e puxou-a. O seu marido parecia um fantasma. Voltou a cara e começou a chorar. Três horas mais tarde, estava em pé, movia-se e funcionava quase com normalidade. Paul permanecia inconsciente, soterrado sob cobertores, com um tubo intravenoso de fluidos quentes preso ao braço e uma máscara de oxigênio puro sobre o nariz e a boca. Mantinha os olhos fechados e há mais de uma hora que permanecia imóvel. Vê-lo deitado ali numa imobilidade tão completa fez Gamay olhar para o monitor cardíaco para se recordar de que estava vivo. Apertou-lhe a mão. Era como apertar barro molhado. Não conseguia lembrar um momento em que as suas mãos não estivessem quentes, mesmo nos dias mais frios da Nova Inglaterra. — Volta para mim — sussurrou. — Não me deixes aqui, Paul. Por favor, não partas.


A porta atrás dela abriu e o médico de bordo, Hobson Smith, entrou. Quase suficientemente alto para precisar de baixar a cabeça ao passar a porta, Smith tinha um bigode de Fu Manchu, olhos vivos e um temperamento descontraído e quase paternal. Ninguém a bordo sabia a sua idade, mas, se a NUMA tivesse alguma idade de aposentação compulsiva, Smith tê-la-ia passado há muito. E o navio ficaria mais pobre sem ele. Tê-lo por perto era como estar acompanhado por um tio extremoso. — Sem alteração? — disse, como se lhe perguntasse. — Não se mexeu — respondeu Gamay. — O ritmo cardíaco está... — Está forte — disse Smith, completando a frase. — A pulsação está boa. O nível de oxigênio no sangue também está a melhorar. — Mas continua inconsciente — disse ela, incapaz de usar a palavra “coma”. — Sim — disse o Dr. Smith. — Por agora. O Paul é forte. Dê-lhe tempo para recuperar. Sabia que tinha razão, compreendia que os sinais vitais evoluíam favoravelmente, mas precisava que acordasse, que lhe sorrisse e lhe dissesse alguma coisa profundamente atabalhoada e enternecedora. Smith puxou uma cadeira e sentou-se a seu lado. — Estenda o braço — pediu. Gamay estendeu o braço e o médico rodeou-lhe o bíceps com uma braçadeira e deu à bomba para medir a pressão sanguínea. A seguir, verificou-lhe a pulsação. — Tal como pensava — disse. — O que foi? — Os seus sinais vitais não estão famosos — explicou. — Preocupar-se com ele agrava-lhe a condição. Expirou. Não comera, nem bebera grande coisa desde que conseguira voltar a levantar-se. Mas não acreditou que conseguisse manter comida no estômago. — Não percebo — disse. — Como cheguei à superfície muito antes dele? O Dr. Smith olhou-a por um momento, como se pensasse na pergunta. — Disse que a empurrou? Ela acenou afirmativamente. — Quando o Grouper se encheu de água, abriu a escotilha, fez-me passar por ela e empurrou-me. Estiquei as pernas e usei-as para me afastar dele. Mas achei que viesse atrás de mim. Inspirou fundo, tentando conter a emoção. — O submersível caía a pique nesse ponto. Talvez tenha sido puxado com ele. Talvez tenha precisado de lutar contra a sucção antes de poder iniciar a subida.


— Estou certo de que terá sido um dos motivos — disse Smith. — Além disso, é mais denso, com músculos e ossos mais pesados. Não interprete isto mal, mas os homens têm em média uma percentagem de gordura corporal inferior à das mulheres. Acrescentando a isto o fato de ambos estarem envolvidos pela mesma quantidade de neoprene e o seu nível de flutuação teria sido muito superior ao dele. Mesmo que não a tivesse empurrado, teria subido mais depressa e alcançado a superfície em primeiro lugar. Olhou novamente para o seu marido, pensando em todos os mergulhos que tinham feito, em toda a formação que tinham tido. — Além disso — acrescentou o Dr. Smith —, o Paul disse sempre que era a melhor nadadora que alguma vez viu. Mais um motivo para se casar com você e torná-la uma verdadeira Trout1. Gamay sorriu, recordando a forma como Paul repetira a piada cem vezes durante o copo d'agua. No fim, quase não conseguia suportar que a repetisse mais uma vez, mas, naquele momento, desejava que acordasse para poder dizer outra vez o mesmo. — Devia ter ido primeiro — disse, com as palavras a saírem-lhe da garganta como o guincho de uma dobradiça ferrugenta. O Dr. Smith ergueu a cabeça. — Nenhum homem no seu perfeito juízo sairia primeiro, deixando a esposa para trás — disse. — Um homem como o Paul não o faria, pelo menos. — E se me deixar agora? — perguntou, nunca tendo sentido medo maior em toda a vida. — Não sei como fazer isto sozinha. — Acredito francamente que não será necessário — disse Smith. — Mas precisa de deixar de pensar nisto e começar a pensar noutra coisa qualquer. Para seu próprio bem. — Em que sugere que pense? — perguntou, soando um pouco mais irritada do que desejara. O Dr. Smith coçou atrás da orelha e levantou-se. Retirou a mão de Paul das mãos de Gamay e colocou-a novamente no peito. A seguir, pegou a mão dela e a levou para a sala ao lado: o laboratório do navio. — Esqueceu o outro sobrevivente — disse, com um brilho nos olhos. — Chama-se Rapunzel. Gamay esquecera por completo o pequeno robô. E mesmo que Rapunzel fosse um objeto inanimado, não conseguia evitar sentir alegria pela sobrevivência e recuperação do robô. Afinal, Rapunzel salvara-lhes as vidas. — Resgataram-na — disse. — Sim — confirmou Smith. — E trouxe três amostras com ela. Gamay semicerrou os olhos para o médico.


— Três? — Uma amostra de tecido retirada de um dos tripulantes — disse Smith, ligando uma lâmpada fluorescente embutida sobre uma bancada. — Lembro-me disso — disse Gamay — Mas não me lembro de recolher outras amostras. — Não? — Com um movimento da mão digno de um vendedor demonstrando o seu produto, dirigiu a sua atenção para outra bancada. Um pedaço de cabo de aço estava esticado sobre a superfície plana. — Rapunzel continuava a segurar isto quando chegou à superfície — disse Smith. O cabo que os prendera no fundo, pensou. Lembrava-se de o ter cortado com o maçarico de acetileno de Rapunzel antes de a fazer subir. Nunca lhe ordenara que largasse o cabo. — E a terceira amostra? — perguntou. — Um pedaço de plástico preso na armação de Rapunzel. Um fragmento com forma triangular, provavelmente resultante de algum tombo no interior do cargueiro. O Dr. Smith aproximou-se do cabo e Gamay seguiu-o. Apontou várias marcas escurecidas. — Que lhe parece que será isto? Debruçou-se. Tocando os pontos enegrecidos, conseguia sentir uma textura diferente da que sentia no resto do cabo, quase como se o metal tivesse estado pousado sobre algo suficientemente quente para começar a derretê-lo. — Lembram-me pontos de solda — disse. — Pensei o mesmo — disse o médico. — Mas nunca ouvi falar de alguém que soldasse um cabo. E não estava preso a nada. — Talvez tenha sido o maçarico — sugeriu Gamay. — Vi o vídeo — disse Smith. — Rapunzel cortou-o num movimento rápido. Segurou o cabo com a garra e apontou-lhe o maçarico. Esta seção, sessenta centímetros à esquerda, nunca foi tocada. Gamay ergueu o olhar, ligeiramente intrigada. — Talvez quando Paul se sentir melhor, possamos... — Gamay — interrompeu o Dr. Smith —, precisamos que faça isto. — Não estou em condições — argumentou. — O diretor Pitt falou com o capitão hoje de manhã — explicou Smith. — Quer que se ocupe disto. Sabe que é duro para si neste momento, mas alguém se esforçou muito para nos impedir de descobrir o que aconteceu naquele navio e quer saber por quê. Estes são os únicos indícios que temos. — Ordenou-lhe que me fizesse pensar nisto? — perguntou, surpresa. O Dr. Smith acenou afirmativamente com a cabeça.


— Sabe como é o Dirk. Quando há um trabalho para fazer... Pela primeira vez desde que conseguia lembrar-se, sentiu-se irritada com Dirk Pitt. Mas, lá no fundo, sabia que estava certo. A única esperança de encontrar as pessoas que tinham ferido Paul começava com a identificação de quem quisera afundar aquele navio e com o esclarecimento dos seus motivos. — Muito bem — disse, tentando pôr os sentimentos de lado. — Por onde começamos? Levou-a até os microscópios. — Espreite a amostra de plástico. Curvou-se sobre o primeiro microscópio e espreitou pelo óculo, pestanejando até tudo se tornar cristalino. — São aparas do plástico — explicou o Dr. Smith. — Por que têm cores diferentes? — perguntou. — São dois tipos de plástico diferentes. Pensamos que virão de algum tipo de contentor. O plástico mais escuro é muito mais duro e denso. O fragmento mais claro é também mais leve. Estudou ambos. Estranhamente, o plástico mais escuro parecia deformado. A cor variava em vários pontos e havia distorções no próprio material. — Parece que o plástico mais escuro derreteu — disse. — Mas o mais claro não parece ter sido afetado. — Foi precisamente o que pensei — disse o médico. — Sugere uma inversão do processo natural — disse Gamay, erguendo o olhar. — O plástico mais leve deveria derreter a uma temperatura mais baixa e, com a mesma temperatura, teria uma capacidade menor para absorver calor sem se deformar porque há menos material para a acumulação térmica. — É muito boa nisto, Sra. Trout — considerou Smith. — De certeza que não quer trabalhar no laboratório? — Depois do que aconteceu — disse —, é provável que não volte a sair daqui. O médico sorriu, formando rugas à volta dos olhos. — Guarda a amostra de tecido para o fim — disse Gamay. — Porque é a mais interessante — replicou Smith. Gamay se aproximou. — Posso? — Por favor. Espreitou pelo microscópio, aumentou a magnificação uma vez e voltou a fazê-lo. Viu estruturas celulares, mas alguma coisa estava errada. — Que aconteceu aqui? — Vou esperar que a perita em biologia marinha explique — disse o Dr.


Smith. Moveu o ponto de foco, fazendo-o passar sobre a amostra. — As células do lado direito são células epidérmicas — disse ela. — Parecem maioritariamente normais. Mas as células à esquerda... — Retirou um cilindro de cinco centímetros da coxa do tripulante. As células à direita são superficiais. As células à esquerda são de tecido muscular inferior. — Sim. Parecem estranhas. Quase como se tivessem explodido. — E explodiram — disse o Dr. Smith. — Quanto maior for a profundidade, maiores serão os danos que encontrará. O nível mais elevado de tecido epidérmico não apresenta quaisquer danos. — Poderá ser uma queimadura química? — perguntou, incapaz de afastar o olhar das células arruinadas. — Talvez alguma coisa que se tenha infiltrado na pele, provocando uma reação. — Não há sinais de resíduo — disse Smith. — E qualquer químico suficientemente poderoso para fazer isto destruiria também a epiderme. Alguma vez teve lixívia forte nas mãos? — Bem visto — disse ela. — Mas que outra substância poderia fazer isto? — O que poderia provocar os efeitos observados em todas as amostras? — perguntou. — Será essa a questão a colocar. Gamay endireitou as costas e voltou-se para ele. — Uma causa. Três resultados. — Se lhe ocorrer alguma coisa que se enquadre... — disse. A sua mente entrou em turbilhão. Não se movia em círculos desesperados e impotentes como sucedera quando se sentara junto a Paul, mas avançava em frente. Quase conseguia sentir as sinapses despertando e ativando-se, como luzes acendendo-se uma a uma num edifício de escritórios à noite. — Os danos parecem ter natureza térmica — disse. — Mas o calor elevado ou o fogo danificariam mais a camada superficial da epiderme do que as camadas inferiores. — Precisamente — disse o médico. — É por isso que temos uma camada epidérmica formada por células mortas. Por mais fina e fraca que seja, é basicamente uma carapaça para impedir a perda de umidade e a entrada de substâncias nocivas. Gamay voltou-se novamente para o microscópio e olhou novamente para as células. Pensou nas aparas de plástico sob o microscópio a seu lado. Que conseguiria deformar plástico grosso e pesado sem derreter plástico mais fino e leve, provocar depósitos carbônicos em metal como se tivesse sido soldado e destruir tecido humano a partir do interior?


Voltou a erguer o olhar. — A Sra. Nordegrun disse ao Kurt que viu coisas. Smith conferiu os seus apontamentos. — Disse-lhe que tinha visto estrelas imediatamente antes de cair. Disse: “Não quero parecer maluca, mas era como fogos de artifício em miniatura explodindo diante dos meus olhos. Achei que via alguma coisa, mas, mesmo quando fechei os olhos com força, continuava lá.” — Li algures sobre astronautas com experiências semelhantes — disse Gamay. — Numa missão num vaivém, há alguns anos, viram faíscas ou estrelas cadentes mesmo que fechassem os olhos. Smith endireitou ligeiramente as costas. — Lembra-se de qual era a causa? Pensou. — Estavam em órbita durante uma tempestade solar. Apesar das proteções sobre os compartimentos tripulados, uma fração dos raios energéticos de intensidade elevada acabou por entrar. Quando atingiram as íris, estes raios desencadearam respostas neurológicas interpretadas como explosões de luzes diante dos olhos. — Não são alucinações? — Não — respondeu Gamay. — Os indivíduos afetados veem realmente estas coisas com a mesma clareza com que o vejo a si. Os olhos captam um sinal e transmitem-no ao cérebro. O Dr. Smith ouviu e acenou com a cabeça, pensativo. Ergueu-se, aproximou-se do microscópio e espreitou novamente a amostra de tecido. — Quando estive na Força Aérea, provavelmente anos antes do seu nascimento, conheci um jovem que passou diante de um dos nossos jatos Phantom durante um teste de radares. Era um miúdo que completara a recruta um mês antes. Ninguém o viu aproximar-se. Infelizmente para ele, esse jato em particular era de um tipo a que chamávamos Wild Weasel, concebido para emitir ondas de radar poderosas e inutilizar as telas do inimigo com sinais em quantidade tão elevada que os impedia de localizar nossos aviões. — O que aconteceu? — Gritou, caiu de joelhos e depois no chão — disse Smith. — O responsável desligou o radar e levamos o garoto para a enfermaria, mas já estava morto. Estranhamente, a pele não estava quente ao toque. Fritara de dentro para fora. Por mais horrível que pareça, o que aconteceu é que basicamente foi aquecido como num micro-ondas. Era apenas um enfermeiro na altura, mas lembro-me de ver o seu tecido através de um microscópio. Parecia-se muito com isto. Gamay inspirou fundo, tentando repelir o horror do que acabara de ouvir e


concentrar-se nas provas científicas. — E o metal parece ter sido soldado — disse. Smith acenou afirmativamente.. — Descargas energéticas elevadas podem anular a resistência no ar, fazendo a eletricidade preencher os vãos — disse ela. — Passei tempo suficiente com o Kurt e o Joe para saber muito bem como funciona a soldagem. — Relâmpagos feitos pelo homem — disse Smith. — É por isso que o combustível e o armamento precisam ser manuseados de formas específicas numa base. Bastará uma descarga de eletricidade estática para incendiar vapores de gasolina. — As marcas no cabo parecem muito mais do que uma descarga estática — disse. Ele voltou a acenar afirmativamente, com uma expressão severa na face. Gamay supôs que o médico teria uma teoria acerca do que acontecera. Supôs que se enquadraria no que estava prestes a sugerir. — As luzes apagaram-se — começou. — O equipamento falhou, incluindo a sinalização de emergência. De outra forma, alguém teria captado um pedido de socorro. A mulher do capitão viu estrelas e os pobres tripulantes nos níveis superiores foram cozinhados de dentro para fora. — Olhou-o nos olhos. — O navio foi atingido por algum tipo de descarga eletromagnética. A intensidade teria de ser bastante elevada para provocar os estragos que vimos. — Mil radares ligados na potência máxima não fariam o que vimos — disse o médico. — Então terá de ser algo mais poderoso — disse Gamay. O Dr. Smith acenou com a cabeça, parecendo preocupado. — Sem dúvida. Gamay pensou por um instante, tentando não deixar as ideias correrem desgovernadas. — Queremos considerar que poderá ter acontecido naturalmente? — perguntou, pensando na anomalia que Kurt e Joe investigavam algumas centenas de quilômetros para leste. — E que foi uma coincidência os piratas terem encontrado um navio em apuros? E que alguém tentou matá-la a si e ao Paul por acidente quando tentavam investigar? Claro que não, pensou. — Tem de ser uma arma — disse ela. — Algo suficientemente poderoso para queimar um navio de cento e cinquenta metros sem aviso. Smith esboçou um sorriso triste. — Concordo — disse. — Como se o mundo não tivesse já motivos de


preocupação suficientes. Gamay sentiu que era ela quem concordava com ele, mas não importava. — Preciso de falar com o Dirk — disse. O Dr. Smith acenou afirmativamente. — Claro. Ficarei atento ao Paul.

________________ 1 “Truta” em inglês. (N. do T.)


27. Washington, DC, 23 de junho

A vista da sala de Dirk Pitt no vigésimo nono andar da sede da NUMA abrangia uma grande parte de Washington, DC. Pela janela retangular generosa, conseguia ver uma seção reluzente do Potomac, os monumentos a Lincoln e Washington e o edifício do Capitólio, todos iluminados por luz branca intensa durante a noite. Apesar da vista, a atenção de Dirk estava focada noutro lugar, no monitor do seu computador, em que decorria uma teleconferência tripartida. Num canto, via a face sorridente de Hiram Yaeger, o gênio da informática residente da NUMA. Parecia alguém que acabasse de chegar da estrada numa Harley. Vestia um colete de couro e tinha o cabelo longo grisalho preso num rabo-de-cavalo. No canto oposto da tela de Pitt, uma versão abatida de Gamay Trout olhavao. O seu cabelo ruivo intenso também estava preso, mas por necessidade e não por estilo. Ocasionalmente, enquanto falava, uma madeixa rebelde soltava-se e caía-lhe diante dos olhos. Prendia-a diligentemente atrás da orelha ou continuava a falar como se não tivesse notado. Apesar da dor notória e dos olhos que Pitt nunca vira tão escuros, parecia aguentar-se. Não havia dúvidas de que os ajudara a dar um grande passo em direção à solução do mistério do que acontecera ao Kinjara Maru. Enquanto explicava a teoria formulada em conjunto com o médico do Matador, Pitt viu-se forçado a admirar a sua tenacidade e devoção ao dever. Tais qualidades existiam com abundância na NUMA, mas brilhavam sempre com maior intensidade nas circunstâncias mais sombrias. Enquanto a ouvia e lhe colocava as perguntas que lhe pareciam pertinentes, Yaeger tomava notas e grunhia palavras de acordo ocasionais. Quando Gamay terminou, Pitt voltou-se para Yaeger. — Consegues programar uma simulação do que a Gamay descreveu? — Acho que sim — respondeu. — O resultado não será muito seguro, mas permitirá ter uma ideia aproximada. — Ideias aproximadas não chegam, Hiram. Quero ideias muito próximas. — Claro — disse Yaeger, pronunciando lentamente a palavra. — Mas o mais próximo que consigo é o tipo de potência necessária e a forma como isto


poderá ter sido conseguido. Pode ser uma ideia próxima, mas continuarás a precisar de mais dados. — Começa a trabalhar — disse Pitt. — Aposto uma grade de cerveja importada de que conseguiremos mais dados antes de completares o primeiro ensaio. — Canadense? — perguntou Hiram. — Ou alemã. O vencedor escolhe. — Muito bem — disse Yaeger. — Aposta aceita. O seu canto da tela ficou negro e Dirk voltou-se para Gamay. — Não vou perguntar como te estás a aguentar — disse. — Só quero que saibas que me orgulho de ti. Acenou afirmativamente. — Obrigada — disse ela. — E obrigada por me teres mandado estudar as amostras. Ajudou-me... a voltar a ser eu. Pitt sentiu-se confuso. — Nunca dei semelhante ordem — disse. — Mas o médico... — começou. Um sorriso surgiu-lhe na cara pela primeira vez. — Ordens do médico — adivinhou Pitt. — Aparentemente, fazia parte do tratamento — disse. — O Hobson é um tipo muito experiente e manhoso — considerou Pitt, referindo-se calorosamente ao médico. — E é também muito inteligente. Se alguém por aí tiver desenvolvido uma arma como esta, a nossa melhor alternativa será encontrá-la e neutralizá-la antes que volte a ser usada. Graças ao seu esforço, teremos hipótese de o fazer. — Que ajuda poderemos esperar? — perguntou Gamay. — Já falei com o almirante — disse Pitt. — Ou melhor, com o vicepresidente. Levará o que descobrimos diretamente ao presidente e aos chefes de estado-maior. De certeza que ficarão muito interessados, mas, quanto a um envolvimento direto... Temos de lhes encontrar alguma coisa tangível que justifique o envolvimento. Por agora, é só um fantasma que nos visitou e deixou marca. Temos de dar corpo ao fantasma, algo com que consigam lidar. Permitiste-nos o primeiro passo. A madeixa rebelde voltou a cair-lhe sobre a cara e Gamay prendeu-a cuidadosamente atrás da orelha. — Discuti com o Dr. Smith a possibilidade de a tripulação ter sido eliminada por culpa do que viram. Por outras palavras, depois de sobreviverem à explosão eletromagnética, teriam de morrer e o navio teria de ser destruído para manter a discrição.


— Parece-me razoável — considerou Pitt. — Os mortos não contam histórias. — Eu sei — disse Gamay. — Mas pensei que teria de haver algo mais. Dispararam torpedos contra nós. Temos de presumir que fizeram o mesmo ao cargueiro. Pitt pensou no que ouvira. Por vezes, aprendia-se mais pelo que não era feito do que pelo que era. — Teria sido mais fácil do que uma abordagem ao navio. — E mais rápido — acrescentou Gamay. — Sim — disse Pitt. — É verdade. Nesse caso, por que não o fizeram? — E por que atingir este navio específico? Outra boa pergunta. Supôs que haveria apenas um motivo. Uma resposta às duas perguntas. — Havia alguma coisa no navio que queriam — disse. — Alguma coisa que tiveram de tirar antes do afundamento. E, independentemente do que fosse, quem estiver por trás disto não queria que o mundo soubesse do seu desaparecimento. Na tela, Gamay acenou afirmativamente. — Também foi essa a conclusão a que cheguei. Explicava algumas coisas. O administrador executivo da Shokara era um velho amigo de Dirk. Ou melhor, era mais um velho conhecido. Salvara-lhe a vida numa ocasião. Mas, para um homem que prometera fazer tudo aquilo que Dirk ou a NUMA precisassem que fizesse, Haruto Takagaua tornara-se subitamente muito difícil de contactar. Pouco depois do afundamento do cargueiro, Pitt deixara-lhe uma mensagem. Mas, até aquele momento, não fora contactado. Talvez fosse compreensível, considerando as circunstâncias, mas poderia ser um sinal de aviso. Alguns dias mais tarde, apenas para cobrir todas as possibilidades, Pitt enviara um par de membros jovens e ávidos da NUMA aos escritórios de Takagawa em Nova York para obterem o tipo de informação que a Guarda Costeira exigiria se o navio se tivesse afundado em águas dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, o manifesto de carga. Os dois jovens tinham sido barrados no átrio, forçados a esperar horas e praticamente expulsos. Pitt sentiu aquilo como um tabefe. Era suficiente para inflamar uma raiva considerável. Até ali, estivera demasiado ocupado para insistir. Mas, naquele momento, parecia-lhe urgente. — Precisamos de saber o que o Kinjara Maru transportava — disse Gamay. Pitt acenou afirmativamente. Sabia o que precisava de fazer. Sabia que só


havia uma forma de descobrir a verdade.


28. Atlântico Oriental, 24 de junho

Joe Zavala foi acordado por batidas na porta da sua cabine. Sentou-se na cama, quase correu para a porta como se tivesse soado um toque de alerta e só então recordou que já não estava na Marinha. As batidas repetiram-se. — O capitão quer ver-te na ponte, Zavala — gritou uma voz. — Diz-lhe que já vou — disse Joe, estendendo a mão para as calças e vestindo-as. Ouviu passos enquanto o mensageiro se afastava a correr. Só então sentiu que o Argo se movia, não mudando de direção, manobrando ou permanecendo ancorado perto da anomalia, mas movendo-se sobre as ondas como se avançasse a grande velocidade para algum ponto. Joe enfiou a camisola pela cabeça e os pés descalços nos tênis que nunca desatava. A seguir, correu pela porta fora. Um minuto mais tarde, estava na ponte de comando. O Argo movia-se realmente à velocidade máxima, com a proa erguendo-se e caindo enquanto cavalgava as ondas agitadas. — Capitão — disse Joe, apresentando-se ao serviço mesmo que, tecnicamente, não fizesse parte da tripulação. — Pelas barbas de Neptuno, onde se enfiou o Austin? — bradou o capitão Haynes. Ainda um pouco zonzo, Joe partilhou a sua opinião mais sincera. — É provável que tenha tido um despertar muito mais agradável que o meu. — De que fala? — Teve um encontro — explicou Joe. — Um encontro? — Haynes sacudiu a cabeça. — Como é possível que alguém consiga marcar um encontro no meio do oceano? Joe coçou a cabeça. — Boa pergunta — admitiu. — Gostaria de descobrir o segredo porque, sinceramente, sinto-me um pouco sozinho quando... — Zavala! — gritou o capitão. — Acorde, homem. Não está sonhando. Preciso que me dê toda a sua atenção. Com quem saiu o Austin? Por um segundo, Joe pensou se seria um sonho. O capitão agia de forma estranha. Kurt era adulto e Joe informara o oficial de serviço da sua partida


quando voltou no Zodiac. — Com a cientista russa que salvou de um dos destroços — explicou. — Ela disse-lhe que tinha informação secreta que poderia interessar-lhe. — A que horas planejava voltar? — Bom — começou Joe —, suponho que isso dependerá do sucesso do encontro... senhor. O capitão fixou em Joe um olhar aborrecido e o fez rir. — Desculpe — disse Joe. — Mas faz-me lembrar o meu pai quando o meu irmão levava o carro sem pedir autorização e voltava depois da hora. Que se passa? O capitão explicou o ataque ao Grouper, o estado de Paul Trout e a teoria da NUMA de que algum tipo de arma eletromagnética tinha sido usado contra o Kinjara Maru. Sublinhou que quem atacara o Grouper usara torpedos. — Que fazem agora? — perguntou Joe. — Dirigem-se para oeste a toda a velocidade — respondeu o capitão. — Amanhã ficarão ao alcance de uma fragata armada com mísseis guiados. Ficarão seguros e Paul será transferido para um navio-hospital. — E nós? É por isso que recolhemos? — O diretor acha demasiado perigoso ficarmos aqui sozinhos — explicou o capitão. — Se alguém tem motivos para atacar quem souber alguma coisa sobre o assunto, este navio e o Austin poderão ser os alvos seguintes. Disse-me que contactaria os almirantados espanhol e português amanhã para nos obter alguma proteção. Até lá, quer-nos no porto e com toda a tripulação localizada. É por isso que estou preocupado. Porque o Kurt não atendeu o telefone durante toda a noite. — Contactamos a polícia local? — Sim — respondeu o capitão. — Informamos sobre a identidade do Kurt, partilhamos a sua descrição e explicamos que tentamos localizá-lo. Por seu lado, informaram-nos a nós de um confronto envolvendo disparos e de uma perseguição automóvel que terminou com dois carros a voar de um penhasco numa ilha habitualmente pacífica. Esteve envolvido um homem que encaixa na descrição do Kurt, mas não foi recuperado nenhum cadáver que pudesse ser seu. Graças a Deus, pensou Joe. Espreitou pelas janelas dianteiras do Argo. As luzes de Santa Maria tornavam-se visíveis mais à frente. — Chegaremos ao porto nos próximos vinte minutos. Espero de si um plano para o encontrar — disse o capitão. — Tanto me faz que use o telefone, foguetes de sinalização ou que alugue um avião para sobrevoar a ilha com uma faixa a dizer “Kurt Austin, contacta a NUMA”. Quero apenas que o encontre antes que algo mais aconteça.


Joe acenou afirmativamente. Começaria com a cientista russa. Esperou que alguém num dos hotéis a reconhecesse. Enquanto o Argo avançava para a costa, Kurt e Katarina desciam para as luzes de Vila do Porto. A sensação era muito diferente de algo que Kurt conseguisse recordar. O cockpit aberto fora concebido para utilização diurna num clima quente. Não havia luzes que iluminassem o painel de instrumentos. Além disso, apesar de a pequena aeronave nunca ultrapassar os cinquenta nós, o ar montanhoso úmido a soprar sobre eles a oitenta quilômetros por hora era suficiente para os gelar até os ossos. Durante o dia, Kurt poderia reduzir a altitude a que seguiam logo que fosse possível, mas voar de noite constituía um desafio diferente. Pilotar uma aeronave com aquelas caraterísticas e com montanhas por perto e sem luz era como atravessar um quarto desconhecido sem luzes, só que chocar contra a mobília ali não provocaria apenas um dedo do pé dorido. Num dado ponto, avistou as luzes de um carro na estrada sinuosa embaixo. Inclinou a aeronave nessa direção, sabendo que a estrada atravessava os vales. Seguindo o carro e mantendo-se muito acima e atrás, conseguia seguir o percurso da própria estrada. Mas, de forma que talvez não devesse surpreendêlo, o carro revelou ser mais rápido do que o cortador de grama voador que pilotava. Quando as luzes do carro se tornaram demasiado distantes para ver, avistou luzes de outro tipo: as luzes comparativamente mais intensas das ruas de Vila do Porto. Orientou-se nessa direção, sabendo que, se conseguisse mantê-las no seu campo de visão, não haveria montanhas erguendo-se subitamente no seu caminho para os fazer desabar do céu. Katarina também viu as luzes. — Estamos quase lá? — perguntou. Os seus dentes batiam. Sentava-se atrás dele no cockpit de dois lugares. Kurt recordou o vestido preto simples. Não fora feito para velocidades de cinquenta nós nem para temperaturas de quatro graus. — Está com frio — disse-lhe. — Estou gelada — corrigiu ela. Estaria a ficar azul. — Pensei que os russos estivessem habituados ao frio. — Sim e sabemos nos vestir para resistir, em camadas e chapéu de pele. Não tem um aqui escondido para mim, hein? Não conseguiu evitar rir, imaginando-a com um gorro de pele gigante. — Incline-se para a frente — disse-lhe. — Encoste em mim e me abrace. — Finalmente — replicou.


Num instante, sentiu-a pressionada contra ele, rodeando seu peito com os braços. Ficava muito mais quente e confortável. Seguiram em frente, atravessando o último vale e vendo Vila do Porto revelar-se em todo o esplendor. A cidade tinha cerca de cinquenta mil habitantes, mas, naquele momento, parecia-lhe uma metrópole. — Onde aterrissamos? — perguntou Katarina. Kurt pensara naquilo durante toda a descida. O ultraleve precisava de uma faixa com apenas sessenta metros para aterrissar. Durante o dia, encontraria cinquenta locais diferentes onde pudesse aterrissar em segurança, mas, à noite, tudo o que não estava iluminado parecia igual quando visto de cima. Pensando que descia para um campo aberto, poderia facilmente bater num poste, numa casa ou numa árvore. Tinham que aterrissar em algum lugar iluminado para não correrem risco. O único problema era que a maior parte das áreas iluminadas tinham cabos de alta tensão por cima. Kurt avistou algo que lhe pareceu tão glorioso como as luzes da pista do Aeroporto Internacional JFK. Um campo de futebol iluminado para um jogo noturno e sem nada que o cobrisse. Cem metros de relva plana sem cabos de alta tensão por cima ou outro tipo de obstruções. Era perfeito. Iniciou a descida gradual. Ventos laterais sopravam do Atlântico e teve de colocar o pequeno avião num ângulo de trinta e cinco graus para impedir que o empurrassem para o interior da ilha. Aos cento e cinquenta metros de altitude, conseguiu ver uma multidão à volta do campo, mas sem jogadores. Katarina apertou-o com mais força. — Preciso que me devolva os braços — disse-lhe Kurt. — Desculpe — disse ela. — Não gosto de voar. Não gosto sobretudo de decolagens e aterrissagens. — Não se preocupe — disse. — Esta será canja. Um minuto depois de dizer aquilo, desejou ter mantido a boca fechada. Viu as equipes a entrar em campo, não sabendo se seria o início do jogo ou da segunda parte. Estavam ainda a trinta metros do solo e a noventa do local onde a relva terminava. Era impossível que não o ouvissem. Claro que ouvir um avião não fazia ninguém procurar abrigo. Supôs que isso pudesse mudar dali a segundos. O motor começou a vacilar ruidosamente. — Estamos quase sem combustível — disse Kurt. — Então aterre — gritou Katarina. Continuou em frente, desejando que a maldita coisa tivesse uma buzina. — É uma pena não ter trazido a minha vuvuzela — berrou. Via os jogadores a trocar apertos de mão e o árbitro no centro com o pé


sobre a bola e prestes a soprar o apito. O motor voltou a vacilar e Kurt baixou o nariz para ganhar velocidade. A hélice tornou a acelerar e viu os jogadores olharem na sua direção. O público fez o mesmo. Sobrevoou-os. Um mastro de bandeira ou algo semelhante que não conseguiu ver bateu na asa direita. A armação dobrou, o lado direito da aeronave baixou e Kurt compensou, girando para a esquerda. Os jogadores começaram a correr para as linhas laterais enquanto a aeronave em apuros descia sobre a área iluminada. Embateram contra a relva e ressaltaram. O ultraleve quase se virou ao contrário, mas Kurt corrigiu o movimento e pousou as rodas com firmeza sobre o campo, precisamente sobre a linha da grande área. Levou a mão ao travão, puxou-o e sentiu o pequeno avião deslizar sobre a relva úmida. Um jogador mergulhou para fora do caminho e o ultraleve embateu contra a baliza no extremo do campo. A rede envolveu-os, a hélice morreu e o ultraleve parou. Kurt ergueu o olhar e olhou para trás. O público, os jogadores, o árbitro e todos os presentes fitavam-nos num silêncio incrédulo. Fitavam-no e a Katarina. A seguir, olharam uns para os outros e, finalmente, olharam para o árbitro. Este não fez nada durante um segundo. A seguir, ergueu lentamente o braço, soprou o apito e gritou: — Gooooooool! O público gritou em uníssono, erguendo os braços em triunfo, como se fosse um gol nos descontos que valesse uma vitória na Copa do Mundo para a minúscula Vila do Porto. Momentos depois, os jogadores alcançaram Katarina e Kurt, rindo e aplaudindo enquanto libertavam o avião da rede e o faziam recuar no campo. Os jogadores ajudaram Katarina a sair, admirando suas formas enquanto o faziam. O árbitro ajudou Kurt. A seguir, foram escoltados até a linha lateral. Kurt explicou a alguém uma versão do que acontecera, prometendo pagar os estragos e insistindo que a empresa de aluguel de ultraleves viria buscar o avião no dia seguinte. Enquanto o jogo recomeçava, saiu para a rua com Katarina. Perto do campo, teria que haver um táxi ou um ônibus que pudessem pegar. Uma van decorada com um letreiro de algum tipo parou. — Precisamos ir para o porto — disse Kurt. — Posso levá-los — assegurou o motorista. Kurt abriu a porta. Katarina preparava-se para entrar, mas hesitou. — Foi realmente incrível — disse, olhando Kurt nos olhos. Quase tinham morrido em três ocasiões diferentes. O carro alugado voara do alto de um penhasco e se transformara numa carcaça em chamas. E o frio


quase a deixara azul, mas os olhos brilhavam como se nunca na vida tivesse se divertido tanto. Kurt teve de a admirar por isso. Ele estendeu a mão, puxou-a para si e beijou-a nos lábios. O beijo prolongou-se mais alguns segundos, com os braços dela rodeando-o novamente, mas daquela vez pela frente, até o motorista tossir. Afastaram-se. — Foi para me aquecer? — perguntou ela. Kurt sorriu. — Funcionou? — Nem imagina quanto — respondeu, voltando-se e entrando no táxi. Entrou atrás dela e a pequena van com forma arredondada iniciou o percurso até o porto. — Sabe — começou Katarina —, estamos apenas a quilômetro e meio da casa onde se alojam os investigadores franceses. — A sério? — perguntou Kurt, recordando o que lhe dissera antes. — Tem a morada? — Fica junto ao mar, na Praia Formosa. A casa para aluguel mais luxuosa na cidade. Pareceu-lhe algo digno dos franceses. — Motorista — disse Kurt. — Leve-nos para Praia Formosa.


29. Nova York, 24 de junho

As avenidas de Manhattan enchiam-se de tráfego e energia em noites quentes de verão. As pessoas moviam-se em magotes, a pé, formando multidões, e outras em carros, táxis e até em carruagens, dando passeios românticos à volta do Central Park. Anoitecera vinte minutos antes e, na cidade que nunca dorme, a animação apenas começara. Dirk Pitt viajava num táxi a caminho de um restaurante de cinco estrelas. Enquanto descia a Park Avenue, o reflexo alaranjado das luzes da cidade deslizava metodicamente sobre a superfície amarela polida do tejadilho do carro. Passavam uma após outra, ritmadas e lentas como batimentos cardíacos lentos. Imaginou o batimento cardíaco de Paul Trout, rezou para que permanecesse forte e pensou em Gamay, vigiando-o, tentando forçar o marido a recuperar os sentidos pela força da sua vontade. Dirigia-se para um encontro cara a cara com Takagawa, mas, presumindo que seria travado na recepção, decidiu procurar o seu velho conhecido noutro local que não o escritório. Obtivera informações acerca do lugar onde jantaria naquela noite e decidiu surpreendê-lo num terreno neutro. O restaurante se chamava Miyako, local conhecido pela frequência de celebridades locais e jogadores de basebol que ali levavam as suas acompanhantes supermodelos a horas adiantadas da noite. Servia comida japonesa tradicional numa decoração requintada e ultramoderna. Martinis de vinte dólares e copos de saquê fluíam como água, enquanto iguarias tradicionais como peixe-balão venenoso, intestinos de pepino-do-mar e um (conhecido como ouriço-do-mar) preenchiam a ementa. Haruto Takagawa jantaria com o seu filho Ren, vários membros destacados da equipe executiva da Shokara Shipping e com pelo menos dois gestores de fundos de investimento interessados em investir no mais recente empreendimento da Shokara. Dirk sabia que ocupariam uma sala privada nas traseiras, mas não esperava que o convidassem a juntar-se a eles. Como precaução, trouxera uma pequena lembrança da dívida de Takagawa. O táxi parou junto ao passeio diante do Miyako e o passageiro saiu. Pagou ao taxista e acrescentou uma gorjeta generosa, antes de entrar no


átrio do restaurante, olhando em redor. Uma parede alta com água caindo sobre ela em cascata separava a sala de jantar principal das salas privadas nas traseiras. Dirk avançou e um homem de pose formal contornou uma esquina. Colocou-se à sua frente, olhando-o com suspeição. — Desculpe — disse o homem. — Apenas aceitamos reservas. E deverá apresentar-se com o vestuário adequado. Dirk vestia calças pretas com vinco afiado como um gume de faca, um casaco de oitocentos dólares e uma camisa de duzentos com o colarinho aberto. — Terá de usar uma gravata para jantar aqui — explicou o homem. — Não vim para comer — disse Dirk, passando à sua frente. Deixando o recepcionista para trás, atravessou a sala. Numa cidade repleta de políticos, de homens poderosos capazes de influenciar o governo e de celebridades, Dirk era um desconhecido, mas a sua aparência enquanto se movia pelo restaurante dentro era igualmente distinta. Pelo menos uma dúzia de clientes interromperam as suas conversas importantes para o verem passar. Se lhes perguntassem, responderiam que tinha uma certa aura, uma aura que atraía atenção, uma determinação inabalável nos passos, confiança sem arrogância ou presunção. Ou poderiam não dizer nada. Mas viram-no passar até desaparecer atrás da parede de água corrente. Entrou na sala de jantar privada e a conversa cessou. A sua chegada foi abrupta e inesperada. Abalou os presentes tal como esperou que acontecesse. Um a um, os convivas olharam-no. Takagawa foi o último a erguer o olhar. Sentava-se na extremidade mais distante da mesa e a sua expressão sugeriria que olhava para o Anjo da Morte. Os outros membros do grupo ficaram atordoados, mas mais próximos da ira do que de outra coisa. Um dos gestores de um fundo de investimento levantou-se. Seu terno de cinco mil dólares fazia a roupa de Dirk parecer de camelô. — Seja quem for, está no lugar errado — disse, aproximando-se de Dirk e estendendo uma mão como se pretendesse conduzi-lo à saída. Dirk nem sequer o olhou, mas falou com uma entoação que era quase um rosnado. — Ponha-me essa mão em cima e não voltará a usá-la para contar dinheiro. O gestor do fundo de investimento pareceu ter sido esbofeteado, mas recuou e não disse nada. Ren, o filho de Takagawa, levantou-se a seguir. — Vou chamar a segurança — disse, voltando-se para o pai. Takagawa não reagiu. Limitou-se a fitar Dirk como se estivesse em transe. O recém-chegado supôs que teria chegado o momento para o arrancar ao torpor. Lançou um pedaço de metal com vinte centímetros para a mesa à sua frente.


Tilintou ao bater na madeira e alguns dos outros convivas saltaram como se pudesse ganhar vida e atacá-los. Parou diante de Takagawa. O administrador executivo da Shokara estendeu a mão para o objeto metálico. Uma placa identificativa torcida e enegrecida com fuligem. Dizia: Minoru. Números mais pequenos por baixo do nome indicavam a tonelagem. A chamada do filho foi atendida. — Segurança, fala Ren. Tenho um... Takagawa pousou a mão no braço do filho, parando-o a meio da frase. — Desliga o telefone, meu filho — disse. — Mas este homem poderá ser perigoso — disse Ren. — Não o respeita. — Não — disse Takagawa, fatigado. — Fui eu quem o desrespeitei. Tem o direito de vir até aqui para me confrontar. Sinto vergonha. Sou como um inseto escondido sob uma pedra. Pelo telefone, ouviu-se uma voz. — Ren, fala da equipe de segurança. Precisa de alguma coisa? Estamos à porta do restaurante. Ren olhou para o pai, que voltara a fitar o pedaço de metal. — Se não fosse este homem — começou —, teria morrido queimado há trinta anos quando o meu navio se afundou. Nunca teria visto a tua cara. A tua mãe deu-te à luz quando estava no mar e o envio de fotografias não era tão fácil como agora. Takagawa estudou a placa metálica queimada. Dera-a a Dirk como agradecimento por lhe ter salvado a vida e as vidas de outros membros da tripulação. Olhou para a mão direita. Espreitando sob o punho da camisa, via uma área de pele coberta por cicatrizes de uma queimadura. Dirk sabia que se alongava até o cotovelo. — Está tudo bem? — perguntou o segurança pelo telefone. Ren ergueu o telefone até a boca. — Sim — disse, por fim. — Falso alarme. Desligou. Olhou para Pitt com desagrado por um instante, inspirou fundo e baixou a cabeça em sinal de respeito. — Peço desculpa — disse. — Um filho defendendo o pai não tem qualquer motivo para se desculpar — considerou Dirk. Ren Takagawa afastou-se e puxou a sua cadeira, oferecendo o lugar ao lado do seu pai a Dirk. — Arigato — disse Dirk, sentando-se. Os gestores dos fundos de investimento e os outros integrantes do grupo continuavam confusos.


— Isto é altamente irregular — disse um deles. — Deixem-nos, por favor — disse Takagawa, com gravidade. — Precisamos discutir algo mais importante do que negócios. — Haruto... — começou um deles. — Não sei o que se passa aqui, mas... — Um olhar de Takagawa calou-o e, um a um, levantaram e saíram, alguns murmurando até a porta. — Vou falar com eles — disse Ren. Seguiu-os e os dois velhos conhecidos ficaram a sós. — Lamento ter que ser assim — disse Dirk. — Nada a lamentar — replicou Takagawa. — Sabes o que quero — disse Dirk. Takagawa acenou afirmativamente com a cabeça. — Então por que não o deste aos meus homens? Pela primeira vez, o velho olhou Dirk nos olhos. — Vieram pelo manifesto — disse. — Poderia tê-lo entregado, mas não o fiz porque te induziria a erro. E não pretendia mentir-te. — E não lhes deste nada — disse Dirk. Takagawa acenou com a cabeça. — Pareceu-me que haveria alguma honra em não mentir conscientemente. Se não dissesse nada, não mentiria. Serviria, pelo menos, para que soubesses que havia motivo de preocupação. Dizer-te uma falsidade depois do que fizeste por mim... Não poderia fazer tal coisa e encarar-te. — Por que não disseste a verdade? — perguntou Dirk — A minha posição na Shokara não é absoluta — explicou Takagawa. — É sempre necessário lidar com a intriga palaciana. Dizer-te a verdade ofenderia outros. Talvez expusesse a Shokara a culpas. Ou a sanções do teu governo. Pitt não pestanejou. Precisava de respostas. Naquele momento, os custos para a Shokara Shipping não lhe importavam. — Haruto —, três elementos da minha organização ficaram feridos ao tentar impedir o ataque ao teu navio. Mais dois foram atacados desde que iniciamos a investigação e um deles encontra-se atualmente em coma enquanto a sua mulher reza pelo seu despertar. Por isso, perdoa-me se sou demasiado rude, mas não me interessam os problemas que provoque. Se és o homem que acredito que és, saberás que chegou o momento de falar. Takagawa fitou a placa metálica torcida à sua frente e, a seguir, olhou Dirk nos olhos. Fitou-o intensamente durante muito tempo antes de falar. — Talvez me tenhas salvado duas vezes — sussurrou. Com isto, levou a mão à pasta a seus pés e colocou-a sobre a mesa. Deitoua, abriu os fechos e elevou a cobertura. Retirou um ficheiro do interior e passouo a Dirk.


— É esta a informação que procuras — disse. — Que encontrarei aqui? — perguntou Dirk. — A verdade. — Qual é a verdade? — A carga do Kinjara Maru ia a caminho de Hong Kong. A maior parte era constituída por materiais em bruto, mas incluía também trezentas toneladas de YBCO reforçado com titânio não registradas no manifesto. — O que é YBCO? — perguntou Dirk. — Óxido de ítrio, bário e cádmio — explicou Takagawa. — É um composto cristalino complexo que pode ser usado como supercondutor em temperaturas elevadas. Desenvolveu-se uma versão mais nova e avançada que pode ser reforçada com titânio e péptidos de ferro. A versão Ti. É, de longe, o supercondutor mais potente alguma vez criado. — Mais potente? — repetiu Pitt. — Que queres dizer com isso? — Não saberia explicar — admitiu Takagawa. — Não passo de um velho capitão. Mas terás gente que compreenda. A informação que possuo a esse respeito está nesse ficheiro. Pitt pediria explicações a Hiram Yaeger assim que regressasse ao seu gabinete. — Por que receava contar isso? — perguntou. — Porque não é um composto que exista na natureza — respondeu Takagawa. — É criado em laboratório. A versão Ti foi patenteada por uma empresa americana e, o que é mais importante, está registrada como tecnologia restrita. A transferência para outros países, incluindo a China, é ilegal. Ao permitir a sua entrada no nosso navio, a Shokara violou esta lei. Pitt começou a compreender. Com as tensões econômicas entre os Estados Unidos e a China sempre ativas e com acusações, maioritariamente sem fundamentação, de que o governo chinês e as empresas do país preferiam a espionagem e o roubo à investigação honesta, nem os chineses nem o governo dos Estados Unidos ficariam felizes por saber que aquele composto fora enviado para Hong Kong. No entanto, com a relação de interdependência entre os dois países, o candidato mais provável a punição e a conversão em bode expiatório seria o armador: a Shokara. — Por que te envolveste em algo assim? — perguntou Pitt. — Este país tem-te tratado excecionalmente bem. — Não soube até o afundamento — disse Takagawa. Dirk acreditou. Percebeu o coração pesado e o peso da desonra que esmagavam Takagawa. — Acredito que alguém terá atacado o navio para roubar alguma coisa —


disse Pitt. — Parece-me que este YBCO será o alvo mais provável. — Vale mais do que o seu peso em ouro — admitiu Takagawa. — Sabes alguma coisa sobre quem terá atacado o navio? — perguntou Pitt. — Alguns rumores? Takagawa sacudiu a cabeça. Teria de haver alguma coisa. — Onde carregaram o composto? — Em Freetown — respondeu Takagawa. — em Serra Leoa. Dirk estivera em Freetown anos antes, quando a NUMA fora consultora num projeto para aumentar a profundidade do canal navegável. Apesar de o país estar reduzido a escombros, Freetown continuava a ser na época um dos portos mais movimentados da África Ocidental. Pelo que ouvira, as coisas tinham melhorado bastante sob a liderança autocrática do presidente Djemma Garand, mas não seria propriamente um polo de alta tecnologia. — Poderá ter vindo daí? — perguntou. Takagawa sacudiu a cabeça. — A Serra Leoa tem minas e riqueza mineral, mas, como disse, o YBCO não vem do solo. — Então Freetown foi um ponto de transferência. — É assim que acontece — explicou Takagawa. — É este o vazio legal que é aproveitado. Transfere-se a carga para um país autorizado a receber o material e esse país envia-o para um novo destinatário sem violar qualquer legislação nacional. Esse novo destinatário envia posteriormente a carga para a Rússia, a China ou o Paquistão. — Fazes alguma ideia de quem será o comprador? — perguntou Dirk. — Negarão, mas está aí — disse Takagawa. — Certamente já não importará. Não receberam o que pagaram. A mente de Dirk acelerava, esforçando-se por acompanhar. — E o vendedor? Takagawa sacudiu a cabeça. — Não o conheço. Dirk não gostou do cenário que aquilo formava. — Preciso de um favor — disse, respeitosamente. — Não posso te dar mais nada. Pitt o olhou. — Muitos tripulantes teus morreram nas chamas, Haruto. Takagawa fechou os olhos, como se sentisse dor. A sua mão esquerda moveu-se inconscientemente para as cicatrizes no pulso direito. — Estás atrás deles? — perguntou. — Pretendo começar a fazê-lo — disse Dirk.


— Dar-te-ei tudo o que conseguir encontrar. Pitt ergueu-se e baixou ligeiramente a cabeça. — Obrigado — disse. — Prometo que não passará daqui. Takagawa acenou afirmativamente, mas parecia incapaz de o olhar diretamente. Por fim, Pitt voltou-se para sair. — Estava a pensar — disse Takagawa —, continuas a ter aqueles carros maravilhosos? Também comecei a colecioná-los. Pitt parou e virou-se novamente. — Sim, ainda os tenho. E mais alguns. — Qual trouxeste hoje? — perguntou Takagawa, sorrindo ligeiramente, sem dúvida recordando a forma como tinham discutido carros como forma de manter a calma durante a sua fuga do inferno trinta anos antes. Pitt sacudiu a cabeça. — Vim de táxi. Takagawa pareceu desapontado. — Uma pena. — Mas no outro dia — acrescentou Pitt — levei o roadster Duesenberg para dar uma volta. A face de Takagawa iluminou-se, como se imaginar Pitt ao volante do carro luxuoso conseguisse de alguma forma animá-lo. — Sexta-feira — disse. Dirk acenou afirmativamente. — Foi um bom dia para um passeio.


30. Kurt Austin fez deslizar a porta da van e saiu para a rua diante da Praia Formosa. A noite estava silenciosa. Conseguia ouvir as ondas na praia. Ofereceu a mão a Katarina, ajudou-a a passar a porta e pagou ao motorista. — Quer ganhar outra viagem? — perguntou. — Claro — respondeu o condutor, sorrindo. — Contorne o quarteirão — disse Kurt. — E espere no fim da rua com os faróis desligados. Fique atento. Ergueu uma nota de cem dólares. Rasgou-a ao meio e deu metade ao condutor. — Quanto tempo quer que espere? — perguntou este. — Até voltarmos aqui — disse Kurt. O motorista acenou afirmativamente, meteu a mudança e começou a afastar-se. — De certeza que não o coloca em perigo? — perguntou Katarina. Kurt estava bastante seguro de que teriam despistado quem os perseguira desde o restaurante. — Não corre perigo — afirmou, com confiança. — Nem nós. A não ser que a equipe francesa queira defender a amostra que levaram. — Não me parece que esse seja um modo de agir tradicionalmente francês — considerou ela. — Qual é a casa? — perguntou, notando a existência de várias vivendas junto ao areal. — Por aqui — disse Katarina. Virou-se e começou a caminhar, saindo do passeio rudimentar e pisando a relva. Kurt supôs que seria mais confortável para os seus pés descalços. — Temos de lhe encontrar uns sapatos — disse. — Ou de o livrar dos seus para darmos um passeio pela praia — replicou ela, sorrindo-lhe. Parecia-lhe mais divertido do que acordar um grupo de cientistas para os acusar de roubo. Pararam diante de uma casa pintada de amarelo. — É esta — disse Katarina. Kurt bateu. E bateu novamente. Esperaram. Não houve resposta. A casa estava às escuras. Até as luzes exteriores estavam apagadas.


— De certeza que é esta? — perguntou Kurt. — Deram uma festa aqui ontem à noite — respondeu. — Todos vieram. Kurt bateu outra vez, com mais força, nada preocupado com a possibilidade de acordar os vizinhos. Enquanto golpeava a porta, algo estranho aconteceu. A luz exterior desligada cintilou com cada batida. — Mas que... Parou de bater e olhou para a lâmpada. Estendendo a mão, rodeou-a com os dedos. Estava solta. Girou-a e acendeu-se. Mais duas voltas e ficou fixa. — Trabalhos de manutenção? — perguntou Katarina. Kurt gesticulou, pedindo-lhe silêncio. Agachou-se e estudou a porta. Arranhões à volta da fechadura prenunciavam más notícias. — Que se passa? — Alguém forçou a fechadura — disse. — soltaram a lâmpada para que ninguém os visse trabalhar. Velho truque de gatuno. Kurt testou a porta. Estava trancada. Contornou a casa. Katarina seguiu-o. — Fique aqui — disse-lhe. — Nem pensar — replicou. Não tinha tempo para discutir. Passou uma fileira de buganvílias e dirigiuse para as traseiras, avistando um alpendre. Subiu-o e aproximou-se de uma porta de vidro deslizante. No interior, havia apenas escuridão. Bastaram três segundos para erguer a porta do encaixe e abri-la. — Tem experiência como ladrão? — sussurrou Katarina. — Recordações de uma juventude desorientada — sussurrou Kurt em resposta. — Fique aqui, por favor. — E se mais alguém tentar estrangulá-lo? — perguntou. — E eu não estiver presente para o salvar? Kurt supôs que não lhe agradaria a possibilidade. Esgueirou-se para dentro com Katarina imediatamente atrás. De imediato, percebeu que algo estava mal. O interior da casa estava reduzido ao caos. Katarina encolheu-se subitamente, emitiu um ruído ligeiro e ajoelhou-se. Kurt baixou-se a seu lado. Além dos dois, mais nada na casa se movia. — O que foi? — Vidro — respondeu ela, puxando um fragmento do pé. — Dê-me dois minutos — disse Kurt. Daquela vez, concordou e manteve-se onde estava. Kurt moveu-se com rapidez, explorando o resto da vivenda e regressando com uma expressão severa. De volta à sala, acendeu as luzes. O local parecia ter sido atingido por um


tornado. Sofás virados, armários abertos e objetos espalhados pelo chão. Um candeeiro de vidro fora partido e o chão estava coberto de estilhaços. — Teremos de chamar a polícia — disse Kurt. Procurou um telefone, avistou um par de chinelos junto à porta e passou-os a Katarina. — Calce isto. Enquanto enfiava os chinelos nos pés, Kurt encontrou o telefone e ergueu o fone. Não havia sinal. Encontrou a tomada e percebeu que o fio fora arrancado. A tomada parecia danificada. Teriam de encontrar outra. Dirigiu-se para a cozinha. — O que aconteceu aqui? — perguntou Katarina. — O velho hábito francês de falar demasiado voltou-se contra eles — disse Kurt. Encontrou outra tomada telefônica perto do lava-louça. Introduziu o fio, ouviu o sinal de chamada e marcou o número. Enquanto esperava que atendessem, reparou numa gaveta aberta. Talheres e outros utensílios tinham caído ao chão, incluindo uma faca de trinchar de aspecto assustador. Parecia que os franceses tinham resistido. Distraído, não reparou que Katarina começara a mover-se em redor. Quando ergueu o olhar, ela estava junto à porta de outra divisão, estendendo o braço para acender a luz. — Não — disse-lhe. Tarde demais. Ela conseguira alcançar o interruptor e o quarto se iluminou. Katarina conteve um grito e se afastou. Kurt pousou o telefone e a amparou. Parecia prestes a desmaiar. Ela voltou a olhar para o interior do quarto e escondeu a cara no peito dele. — Estão mortos — disse. — Sinto muito — disse Kurt. — Não queria que visse isso. Toda a equipe de investigação francesa fora assassinada. Havia quatro corpos no quarto, atirados desrespeitosamente contra a parede como lixo descartado. Um dos homens tinha o corpo cravado de balas, outro parecia ter sido estrangulado, avaliando pelas marcas no pescoço. A causa da morte dos outros era mais difícil de perceber e Kurt não se aproximara muito. Mas, até da porta, reconheceu o homem que trouxera das profundezas com demasiado peso no cinto. Nos seus braços, Katarina tremia, cobrindo a boca com a mão e fechando os olhos com força. Kurt voltou-se e levou-a até a sala. Endireitou o sofá e sentoua. — Tenho de ligar para a polícia — disse. Ela acenou afirmativamente, incapaz de falar. Quando voltou à cozinha aberta, manteve-se atento à Katarina. Era verdade que não eram as primeiras mortes da noite, mas as anteriores foram de homens


que pretendiam matar ou feri-los aos dois. E tinham caído de um penhasco, ocultados pelo carro. Aquilo era diferente. Eram colegas cientistas. Aparentemente, Katarina partilhara bebidas com eles em pelo menos uma ocasião. — Como é possível que a polícia não saiba já? — perguntou. — É provável que tenha acontecido rapidamente — disse Kurt, esperando para bem dos mortos que fosse verdade. — Os atacantes teriam silenciadores nas armas e terão surpreendido estes homens. — Mas por quê? — perguntou. — O que levaria alguém a... — Tinham a amostra — disse Kurt. — Pelo que sei, o material será extremamente valioso. É por isso que aqui estamos enquanto portugueses e espanhóis decidem a quem pertence e em que percentagem. Estes tipos foram suficientemente arrojados para recolher a amostra ilegalmente, mas foram também demasiado estúpidos para evitarem falar no assunto. — Vinho a mais — disse Katarina. — Os homens gostam de se gabar quando bebem demais. A polícia atendeu finalmente e prometeu enviar investigadores e o médicolegista. Enquanto esperava, Kurt procurou a amostra em vão. Encontrou uma caixa retangular longa revestida com esponja numa divisão ocupada por equipamento. Estava aberta e tombada. Supôs que a amostra estaria no interior. Seguiu-se uma hora de conversa com a polícia até lhes ser permitido que partissem. — Que fará agora? — perguntou Katarina. — Tenho de contactar o meu navio — disse Kurt, erguendo o olhar para o porto e surpreendendo-se com o que via. — Tenho um rádio no meu barco — disse ela. — Pode usá-lo. — Acho que não será preciso. Olhou para cima. — Aquele é o meu navio — disse. — O que está iluminado como uma árvore de Natal. Enquanto Kurt tentava perceber o que faria o Argo no porto com todas as luzes acesas, começou a olhar em redor, esperando que conseguissem boleia de um dos polícias. De repente, uma pequena van aproximou-se. Kurt reconheceu a cara redonda e sorridente do condutor. — Começava a pensar que a polícia não os deixaria sair — disse. — Prontos? Kurt considerou que uma espera de duas horas era mais do que suficiente para merecer cem dólares. Retirou a outra metade da nota de cem do bolso e entregou. — Prontos — respondeu.


31. Enquanto Katarina aguardava na ponte do Argo, Kurt Austin sentava-se na sala de reuniões com o capitão Haynes e Joe Zavala. Passou dez minutos a relatar os eventos da noite, terminando com a descoberta sinistra na casa de praia dos investigadores franceses. Em seguida, o capitão Haynes contou-lhe o ataque ao Grouper, o quase afogamento de Paul e o seu estado atual. Alternou com Joe as explicações dos pormenores que conheciam da teoria de Gamay, segundo a qual o Kinjara Maru fora atingido por algum tipo de arma de energia concentrada. — Falamos de alguma coisa semelhante ao SDI? — perguntou Kurt, referindo-se à Strategic Defense Initiative1. — Alguma coisa capaz de abater mísseis? — É possível — respondeu o capitão. — Não sabemos ao certo. Mas é possível. — E por que atacar um cargueiro aleatório no meio do Atlântico? — perguntou Kurt. Antes que alguém pudesse responder, a luz do intercomunicador acendeu e o oficial de comunicações falou. — É o diretor Pitt, capitão. — Transfere para o alto-falante — instruiu o capitão. O alto-falante estalou por um segundo antes de se ouvir a voz de Dirk Pitt. — Sei que é tarde aí, cavalheiros, mas sei que ainda estão todos acordados. — Discutíamos os acontecimentos — disse o capitão. — E eu acabo de colocar uma pergunta que me atormenta desde o início de tudo isto — afirmou Kurt. — Porquê atacar um cargueiro no meio do Atlântico? Aplica-se tanto a pirataria simples como a esta arma eletromagnética de que falamos. — Julgo ter a resposta — disse Dirk. — O Hiram Yaeger está ocupado agora mesmo com um estudo para calcular as exigências de potência e as capacidades de uma arma com essas características, mas, quando lhe perguntei o que seria necessário para a criar, deu-me uma resposta curta. “Mais.” — Mais? — repetiu Kurt. — Mais quê? — Mais tudo — replicou Dirk. — Mais energia, mais materiais, mais dinheiro. Mais do que será facilmente acessível. Neste caso, é provável que o Kinjara Maru tenha sido escolhido como alvo por culpa de um carregamento de YBCO reforçado com titânio. É um composto muito avançado e


inacreditavelmente caro usado para construir ímãs supercondutores incrivelmente potentes. — E esses ímãs podem ser usados para construir armas energéticas — supôs Kurt. — Tal como a que Gamay julga ter atingido o navio. — Exatamente — confirmou Pitt. — Basicamente, estes ímãs supercondutores são essenciais em qualquer projeto que envolva energia de alta intensidade. Os ímãs normais criam demasiado calor em níveis de potência elevados, mas os supercondutores transferem a energia sem criar qualquer resistência. — Parece que alguém adaptou essa tecnologia a um fim militar — disse Joe. — O Yaeger concorda contigo — disse-lhe Pitt. — E os testes da Gamay com as amostras do Kinjara Maru praticamente não deixam margem para dúvidas. — Alguma ideia quanto ao responsável? — perguntou Kurt. — Ainda não — respondeu Pitt. — Poderá ser um grupo terrorista ou alguma nação ou fação movendo-se à margem das esferas de consenso internacional. No ano passado, lutamos contra uma tríade chinesa que tinha criado uma arma biológica. Suponho que tudo será possível. — E o rastro do dinheiro? — quis saber Kurt. — Se falamos de materiais caros, terá de haver algum registro da sua compra. — Tentamos descobrir — disse Pitt. — Até agora, conseguimos identificar compras de quantidades massivas de vários materiais supercondutores feitas por dúzias de empresas que revelaram ser apenas fachadas. É como se alguém tentasse controlar o mercado dos supercondutores poderosos. Kurt olhou para Joe e o capitão. Pitt continuou a falar. — O problema é que todas as compras isoladas levam a empresas de fachada que, por sua vez, operam como filiais de outras empresas de fachada. Os fundos vêm de fontes não identificadas e as fachadas encerram operações imediatamente após completarem a transação. O rastro é difícil de seguir. À superfície, tudo parece legítimo. Os pagamentos são feitos. Não se levantam suspeitas. E ninguém sabe pormenores. Pelo menos até agora. Kurt perguntou: — Se controlam o mercado, por que precisam roubar? — O YBCO reforçado com titânio é o supercondutor mais poderoso já criado — disse Pitt. — Pode operar eficazmente em campos com potência até novecentos teslas. — Além da excelente banda de rock dos anos noventa — perguntou Joe —, o que é um tesla?


— É uma unidade de potência que mede a intensidade de campos magnéticos — explicou Pitt. — Não sei dizer-te com precisão o que significam novecentos teslas em números compreensíveis por leigos na matéria, mas, por comparação, os supercondutores usados para levitar trens no Japão entram em sobrecarga aos quatro teslas. Se quatro teslas conseguem erguer um trem, novecentos conseguirão erguer duzentos e vinte e cinco trens. O capitão Haynes expirou de forma lenta e audível. — Corrida ao armamento — disse. — Quando se constrói uma arma, será melhor construir a arma mais poderosa permitida pela tecnologia. Mas havia ainda alguma coisa que não fazia sentido para Kurt. — Se tudo isto é tão clandestino, como souberam os piratas que o navio transportava YBCO? — Apesar de todo o secretismo — começou Pitt —, havia três entidades que sabiam. — O comprador, o vendedor e o armador — disse Kurt. — E, entre os três — continuou Pitt —, quem teria motivo para afundar o navio e fazer o material desaparecer? — O vendedor — respondeu Kurt, percebendo onde Pitt queria chegar. — Conseguem um bom preço, tratam do envio do material supercondutor aos chineses e, a seguir, atacam o navio e recuperam-no. — Um plano tortuoso — considerou Haynes. — Temos a certeza de não ladrar à perdiz errada? — Tenho o manifesto de carga do Kinjara Maru — disse Pitt. — Juntamente com o diário do capitão e com as notas do responsável por carga e descarga. São transmitidos eletronicamente para a sede da Shokara quando os navios abandonam o porto. Poderia ler o que temos, mas estou dirigindo. Faço um resumo. Penso que compreenderão quando chegar ao fim. — E continuou: — O navio atracou em Freetown, em Serra Leoa, três dias antes de afundar. Recebeu uma carga comum de minérios variados destinados à China e recebeu ordens para permanecer no porto durante dois dias, aguardando mais uma entrega. — O YBCO — adivinhou Kurt. — Certo — disse Pitt. — Mas, quando o carregamento chegou finalmente, ocorreram várias coisas suficientemente estranhas para que o capitão as registrasse no diário. Em primeiro lugar, a carga foi levada para bordo por um grupo de homens que não eram estivadores. Um grupo misturando brancos e negros ocupou-se da maior parte do processo. O capitão disse que “pareciam uma unidade militar ou paramilitar”. — Ouvi rumores de mercenários apoderando-se de minas por essas


paragens e gerindo-as para obter lucro — disse Kurt. — Mas o YBCO não é extraído do solo — disse Pitt. — Além disso, o líder deste grupo insistiu que fosse armazenado num porão com temperatura controlada sem contato com os outros minérios. Um pedido que pareceu suficientemente estranho ao responsável pelas cargas e descargas para arriscar uma discussão com um destes indivíduos de aparência militar. Uma discussão que perdeu. — Por que o fariam? — perguntou Joe. — O material é afetado pela temperatura? — Não — respondeu Pitt. — Mas o Kinjara Maru tem apenas um porão de pequenas dimensões com temperatura controlada. — Tornando o material fácil de encontrar e descarregar — disse Kurt. — É o que me parece — disse Pitt. — Então o vendedor é também o pirata — resumiu o capitão Haynes. — E o pirata possui a arma energética — acrescentou Kurt. — O que significa que as pessoas que venderam este YBCO, as mesmas que atacaram o navio, são também quem usa o material para construir uma arma. Terão de ser ainda os que dominaram o mercado. — Faz pensar em qual será a sua intenção — disse o capitão. — Exatamente — concordou Pitt. — Seja quem for, precisam de uma quantidade tão alta de material para o que fazem que estão dispostos a enfurecer os chineses e a arriscar a exposição para se apossar de cada grama. Incluindo quantidades que venderam. — Talvez isso explique por que estão em Santa Maria — disse Kurt. — Cruzei-me com um deles. O mesmo tipo com que interagimos quando o Kinjara Maru se afundou. Não sei quem levou a amostra e assassinou os investigadores franceses, mas aposto que está tudo ligado. — Mas vimos o seu barco explodir — recordou o capitão Haynes. — Até encontramos alguns cadáveres. — Cordeiros sacrificiais — disse Kurt. — Os outros terão saltado antes da explosão, deixando-os para trás. — Não vimos outros navios na área que pudessem recolhê-los ou um helicóptero — disse o capitão. — Não terão nadado até África. — Não — disse Kurt. — Mas o Paul e a Gamay foram atacados debaixo de água. Isso significa que terão um submarino de algum tipo. — Então havia um navio de apoio — disse o capitão. — Terroristas com um submarino. Que aconteceu ao mundo? — Tal como acontece com o espaço — disse Pitt —, as profundezas deixaram de ser acessíveis apenas às nações. Conhecemos meia dúzia de


submarinos chineses que deveriam ter ido para a sucata e desapareceram. E há outros modelos à venda, além de submarinos construídos por privados. — Para não referir os submarinos russos da classe Typhoon que foram adaptados ao transporte de carga — disse Kurt. — Lidamos com um no ano passado. — E pelo menos um deles continua por localizar — acrescentou Pitt. — Maravilhoso — disse o capitão, desconsolado. — Então estes bandidos têm um submarino — disse Kurt. — Talvez um Typhoon convertido em cargueiro. Têm algum tipo de arma eletromagnética letal que frita os alvos antes mesmo que consigam perceber que há um problema e estão dispostos a arriscar a exposição e a fúria dos chineses para conseguir mais material. Além disso, enquanto falamos, a torre rochosa constituída pelo que acreditamos ser um supercondutor natural está no fundo do mar, sozinha e sem qualquer vigilância. — A mesa está posta — disse Pitt. — Acreditam que virão jantar? — Como o St. Julien Perlmutter num bufete livre — disse Kurt. Haynes acenou afirmativamente. — Faz sentido. Conseguiram afastar-nos do local ao demonstrarem a sua capacidade de ataque. — E sabem que nos afastamos — disse Kurt, supondo que teriam visto o Argo no porto, tal como ele vira. — Uma fragata portuguesa equipada com armas antissubmarino chegará ao local amanhã à tarde — explicou Pitt. — Suponho que também o saberão ou esperarão que aconteça — disse Kurt. — Isso dá-lhes doze horas para agir. O silêncio instalou-se enquanto consideravam as implicações. — Os Typhoons foram convertidos em cargueiros — lembrou Kurt. — Capazes de transportar quinze mil toneladas no espaço antes ocupado pelos mísseis. — E trinta toneladas de YBCO serão motivo suficiente para afundar um navio — disse Kurt. — Quais as possibilidades de uma entidade interessada em “mais” desperdiçar um carregamento gratuito como este? O silêncio voltou. Pelo alto-falante, ouvia-se apenas um ruído de fundo. — Se tiverem um Typhoon — disse Pitt —, bastaria tirar seções do casco e colocar a carga nos silos de mísseis como se fosse a caixa de um camião. Mas sejamos claros. Não sabemos se o têm realmente. Kurt acenou com a cabeça, aceitando o que ouvia e Joe olhou-o, erguendo as sobrancelhas. — Mesmo que soubéssemos o que têm — começou —, que poderíamos


fazer? Kurt ponderou as palavras de Joe. Um Typhoon armado com torpedos e tripulado por mercenários estaria muito além das capacidades do Argo. — O Joe está certo — disse o capitão. — Não podemos arriscar o navio. até a chegada de forças navais, seremos forçados a dar espaço a esta gente, independentemente do que pretendam fazer. Kurt sabia que estavam certos, mas pareceu-lhe que equivaleria a uma desistência. Teria de haver uma forma de os travar. Olhou pelo vidro na porta da sala de reuniões e fixou os olhos em Katarina. Sentava-se em silêncio na ponte de comando, agasalhada com um casaco da NUMA, bebendo café e conversando com um tripulante enquanto esperava. Ocorreu-lhe algo. — E se não tentássemos detê-los? — disse. — E se avançássemos, nos escondêssemos nos destroços e esperássemos a sua chegada? Se chegarem, esperamos o momento adequado e colocamos-lhes um transmissor no casco. Assim, conseguiremos localizar a sua base de operações e deixar que sejam as Marinhas a tratar do resto. O capitão e Joe pareceram gostar do plano. Pitt permaneceu calado. — Diretor? — disse o capitão. — Parece muito arriscado — disse Dirk — Será mais fácil esperar patrulhas de detecção de submarinos com aviões e helicópteros. — Isso conseguirá apenas assustá-los — disse Kurt. — Assim, descobriríamos quem são e de onde vêm. — E como pretendes chegar até eles sem que percebam? — perguntou Pitt. — Ficarão atentos assim que deixares o porto. Kurt sorriu e olhou para Joe. — Levaremos o Barracuda — disse.

________________ 1 Iniciativa Estratégica de Defesa. Programa de defesa contra mísseis nucleares proposto por Ronald Reagan e conhecido popularmente como “Guerra nas Estrelas”. (N. do T.)


32. Ilha de Santa Maria, Vila do Porto, 24 de junho

Depois de terminada a sessão de planejamento na sala de reuniões, Kurt, Joe e o capitão dedicaram-se a tarefas separadas. Joe foi à oficina do Argo para começar a trabalhar num transmissor suficientemente poderoso para prender ao casco de um submarino viajando a vinte e cinco nós e também suficientemente pequeno para não ser detetado. Prometeu um milagre no prazo de uma hora. O capitão ordenou que as luzes do Argo fossem apagadas e contatou a polícia de Vila do Porto. Pediu que enviassem dois carros e que os estacionassem junto à doca com as luzes de tejadilho ligadas. Presumiu que isso manteria os problemas à distância e conseguiria também distrair possíveis vigias enquanto o Barracuda fosse discretamente colocado no mar. Entretanto, Kurt acompanhou Katarina até o fundo do cais, esperando a chegada de um carro. — O seu acompanhante — disse, evitando chamar-lhe “supervisor”. — Não sou uma espia — insistiu ela. — Mas parece-me que tive alguém a vigiar-me durante toda a vida. — Como lida com isso? — perguntou Kurt. — Estou habituada — respondeu. — Mas não imagina como foi difícil sair com alguém em Turim. Teve que rir. — E este tipo? — Sergei — disse. — Major Sergei Komarov. O nome parecia digno de um gorila forte do KGB/FSB. Pela primeira vez na sua vida, Kurt ficou feliz com isso. — Não se afaste do Sergei — disse. — Mantenha as portas trancadas. Estou certo de que esta gente terá alvos mais urgentes agora, mas nunca se sabe. Sabem que os viu, mesmo à distância e com pouca luz. — Farei o que me pede — replicou. — Quer explicar-me o que procurava naquele Constellation? Sorriu e sacudiu a cabeça. — Isso não agradaria ao major. — Talvez amanhã ou no dia seguinte — disse Kurt. A tristeza voltou-lhe ao olhar.


— Se estiver certa, partiremos amanhã de manhã. Poderei não voltar a vêlo. — Não conte com isso. Sempre quis visitar a Rússia como turista. Talvez até o faça no inverno e compre um daqueles gorros de pele gigantes. — Visite-me — disse. — Prometo que não precisará de um chapéu para ficar quente. O carro chegou. Sergei saiu e esperou junto à porta. Katarina despediu-se de Kurt com um beijo demorado e entrou. Trinta minutos depois, era apenas uma recordação enquanto Kurt e Joe deslizavam pelas águas negras do Atlântico dentro do Barracuda, a caminho da torre de rocha magnética. Alcançaram-na em menos de duas horas, aproximando-se da área com cautela. — Não ouço nada no sonar — disse Joe. — Se já estivessem no local, soaria como uma escavação num monte de cascalho — disse Kurt. — Pelo menos se pretenderem levar uma grande quantidade do material. Penso que teremos alcance visual — acrescentou. — Acende as luzes. Joe fez o que lhe pedia e os longos feixes de luz amarelada varreram a paisagem submarina. Mais uma vez, Kurt maravilhou-se com a visão das carcaças de navios cobrindo o fundo. No passado, tivera o privilégio de mergulhar na Lagoa de Truk, cenário de uma batalha da Segunda Guerra Mundial em que a Marinha dos Estados Unidos afundara sessenta navios japoneses e abatera duzentos aviões. Os destroços apresentavam-se mais dispersos do que na Porta do Inferno, mas era o maior paralelo que conseguia estabelecer com o que via naquele momento. — Pousemos junto ao destroço daquele velho Liberty — sugeriu Joe. — Ficaremos quase invisíveis aí. Kurt olhou para o diagrama da disposição dos destroços. Com mão hábil, conduziu o Barracuda para um local no fundo arenoso ao lado do grande navio. Pousando, teve a sensação estranha de ser um peixinho dourado num aquário, descansando ao lado de uma miniatura decorativa a representar um navio afundado com o inevitável rombo no casco. — Apaga as luzes — pediu Kurt. Joe pressionou alguns interruptores e o Barracuda ficou imediatamente envolvido numa escuridão total. Kurt ergueu a mão para testar o velho adágio que referia escuridão tão extrema que tornaria impossível ver a mão à frente da cara. Ali embaixo, pelo menos antes do nascer do sol, era verdade.


— Quanto ar temos? — perguntou. — O suficiente para quase dez horas — respondeu Joe. — Bom — disse Kurt, tentando ficar confortável —, não poderemos fazer nada além de esperar. Quatro horas mais tarde, Kurt sentiu que Joe lhe tocava no ombro. Tinham decidido dormir em turnos de duas horas. Kurt esperou que o toque de Joe significasse que tinham chegado as visitas que esperavam. — Passa-se alguma coisa? — perguntou, endireitando-se e batendo com a cabeça na cobertura e com o joelho no painel à sua frente. — Sim — disse Joe. — O sol está a nascer. Kurt olhou para cima. Uma mancha de luz era visível, filtrada pela superfície. E, mesmo que continuasse suficientemente escuro ali no fundo para conseguir ver apenas os pontos fluorescentes do seu relógio de mergulho, notou que eram quase sete da manhã. O dia estaria muito luminoso lá em cima. Tentou alongar-se, mas era escusado. — Da próxima vez que projetares um submersível, tenta incluir espaço para a cabeça. — Com certeza — disse Joe. — Isto é pior do que um voo para a Austrália em classe econômica. — Serviriam comida se estivéssemos num desses — disse Joe. — Mesmo que fossem só amendoins. — Sim — concordou Kurt, pensando que deviam ter planejado melhor. Na verdade, não achara que seria necessário. O seu maior medo fora chegarem e descobrirem os assassinos em ação, o que teria tornado a sua tarefa muito mais difícil ou mesmo impossível. — Não percebo — disse. — Achava que usariam todo o tempo disponível para extraírem o que conseguissem. Ouves alguma coisa nos fones? — Não — respondeu Joe. — De certeza? — Tenho-os postos há tanto tempo que acho que se fundiram com o meu cérebro — respondeu Joe. — Mas não se passa nada lá fora além de uns peixes nadando em redor e acasalando. — Consegues ouvi-los a acasalar? — perguntou Kurt. — Só ouço a música funk que puseram — disse Joe. — Mas percebo o que fazem. Demasiado tempo a ouvir os ruídos do mar começava a afetar o cérebro do seu companheiro. Esfregou os olhos e pestanejou repetidamente. “Demasiado tempo”, pensou. — Não vêm — disse. — Acende as luzes.


— Tens a certeza? — Já quase não terão tempo para levar nada antes de precisarem de fugir — disse. — Lá se vai a minha grande ideia. Joe começou por acender as luzes operacionais e a iluminação do painel. Quando os olhos se habituaram à iluminação mais fraca, acendeu as luzes exteriores e a área em redor ficou iluminada por um brilho familiar amareloesverdeado. — Não mudou nada — disse Kurt, quase esperando que a torre de rocha magnética tivesse desaparecido. Continuava a erguer-se à distância como um monólito. Kurt olhou para a direita, para a sombra escura do Liberty junto ao qual se tinham abrigado. Um rombo medonho imediatamente abaixo da linha de flutuação parecia ter sido o golpe fatal para aquele navio em particular. Por um segundo, pensou se teria sido afundado durante a Segunda Guerra Mundial como os navios que vira em Truk. Não podia ter a mesma idade, avaliando pela quantidade de vida marinha cobrindo o casco. Na verdade, esta não teria mais de um par de anos. Olhou na direção oposta, para o ponto do fundo oceânico em que repousavam os destroços mais próximos. O primeiro era um pequeno avião ou, pelo menos, seria o que restava de um Cessna de motores duplos. Recordou o que Katarina dissera sobre a empenagem tripla do Constellation ser construída com alumínio, um metal não férreo que não seria afetado pelo magnetismo. Repousava no limite exterior da área, mas os destroços daquele outro avião estavam próximos. Por quê? Olhou para outra embarcação submersa além do avião. Era um arrastão, talvez com vinte e cinco metros de comprimento. Um barco de pesca comum com redes múltiplas. Não conseguia vê-lo com clareza do local em que se encontravam, mas lembrava-se de ter pairado sobre ele durante a vistoria inicial. E, pensando no assunto, o arrastão também tinha uma cobertura de vida marinha reduzida. Ainda menos do que o Liberty ao lado. Pensou se o magnetismo afetaria a vegetação e a fauna. Alguns navios usavam cargas elétricas de potência reduzida para impedir o crescimento de algas nos cascos. Talvez fosse um efeito semelhante. Virou-se novamente para o navio que se erguia a seu lado, fixando o olhar no rombo no casco. Foi então que lhe ocorreu. — Sou um idiota — afirmou, de repente. — Um completo idiota. — De que falas? — perguntou Joe. — Como pudemos ser tão estúpidos? — murmurou Kurt, continuando perdido em pensamentos.


— Bom, temos muitos anos de prática — disse Joe. — Há outra coisa em que temos prática — disse Kurt. — Em resgatar navios afundados. E em afundá-los. Virou-se, tentando olhar para Joe. — Quantos navios afundaste como parte de programas de reconstrução de recifes? — Pelo menos quarenta — respondeu Joe. — Contando todos os da última década. — Estive presente em metade das ocasiões — disse Kurt. — E como os afundamos? — Colocamos cargas explosivas abaixo da linha de flutuação — respondeu Joe. — Abrimos buracos no casco. De que outra forma poderíamos fazê-lo? — Olha para os estragos neste navio — disse. O Barracuda tinha as luzes acesas, mas Joe ativou um projetor secundário direcional. Apontou-o ao buraco no casco do Liberty. Não deixou dúvidas. — As placas de aço explodiram para fora — disse. — Alguém afundou este navio intencionalmente — disse Kurt. — Poderá ter sido uma explosão interna — considerou Joe. — Não sabemos o que transportava. Além disso, é um buraco muito maior do que os que faríamos. — Porque, quando os fazemos, queremos que o navio pouse no fundo de forma nivelada e segura, para poder tornar-se um bom recife. Mas, se tentasses afundar um navio rapidamente para que ninguém visse, poderias fazê-lo desta forma. Kurt acelerou o propulsor e o Barracuda ergueu-se do fundo. Levou-os até a entrada daquela Porta do Inferno junto ao arrastão. Encontraram o mesmo tipo de estrago. Uma grande explosão de dentro para fora destruíra o barco. Passavase o mesmo com um terceiro cargueiro. — Nenhum destes navios e aviões tem cobertura vegetal e animal superior a um ano — disse Kurt. — A única exceção é aquele Constellation. Este lugar não acumula destroços há anos. Todos estes afundaram ao mesmo tempo. — Como é possível que não o tenhamos percebido antes? — perguntou Joe. — Estávamos demasiado ocupados com os cientistas — respondeu Kurt. — Todos estavam obcecados com a torre rochosa e, além de Katarina, mais ninguém se interessou pelos destroços. Enquanto pairavam diante do rombo no terceiro navio, Kurt esforçou a mente cansada, tentando perceber. — Tudo isto é um embuste. — Parece-me que sim — concordou Joe. — Mas por quê? Qual o objetivo?


Quem conseguiria preparar algo assim? Kurt supôs que ambos saberiam a resposta à última pergunta, mas não os motivos. Recordou novamente os acontecimentos, procurando desesperadamente uma ligação. Sentiu a aproximação de algo ameaçador, como uma tempestade demasiado rápida para conseguir escapar-lhe. Não percebia que benefícios poderia alguém ter com um embuste daquelas dimensões. Se as mesmas pessoas que tinham atacado o Kinjara Maru fossem responsáveis, de que forma isso as ajudaria? Não lhes permitia obter mais material. Não lhes daria mais dinheiro. Aliás, teria custado uma pequena fortuna a construção do cenário. — Há grupos terroristas que gostam muito de publicidade — disse. — Haverá formas mais eficazes de a conseguir — disse Joe. Estava certo. Até ali, além de alguns repórteres insignificantes, Kurt não assistira a um grande interesse pelo local. Na verdade, depois do anúncio oficial, parecia haver poucos no mundo exterior que se importassem com a descoberta. As únicas pessoas que surgiram em magotes foram os especialistas em magnetismo e supercondutores. Kurt abriu a boca de espanto ao perceber a verdade. — Os cientistas — disse. — É isso que querem. Joe precisou apenas de um instante para concordar. Aparentemente, o grupo que precisava de maiores quantidades de tudo incluíra pessoal especializado na sua lista de compras. Se Kurt estivesse certo, tinham preparado uma armadilha para atrair peritos de todo o mundo àquele local. Podia esperar apenas que a armadilha não tivesse já sido ativada. Kurt segurou os controles e aumentou a aceleração. Assim que recomeçaram a mover-se, apontou o nariz do Barracuda para cima e começaram a acelerar e a subir para a luz cinzenta que vinha de cima. Tinham de chegar à superfície e transmitir uma mensagem ao Argo. Os cientistas tinham de ser avisados.


33. Várias horas antes, pouco depois de Kurt e Joe terem pousado no fundo do mar ao lado do Liberty, Katarina Luskaya fazia a mala sob o olhar atento do major Sergei Komarov. Com tudo o que acontecera, o comando decidira suspender temporariamente a missão. — Envolveu-se romanticamente com o americano — disse ele, num tom de voz reprovador. — Não me envolvi tanto como desejaria — respondeu, brusca. — Não a enviamos para aqui para isso — recordou-lhe. Quase o esquecera, com tantas e variadas experiências em tão pouco tempo. — Era o responsável pela área de mergulho — disse. — Pensei que seria benéfico afeiçoar-se a mim. É o que vejo em todos os filmes antigos. O major olhou-a com suspeição e esboçou um sorriso muito ligeiro, fazendo surgir um vinco na sua barba por fazer. — Uma excelente resposta — considerou. — Quer seja verdade ou não, está a aprender. Ela retribuiu com um sorriso abatido e voltou a fazer a mala quando se ouviu uma batida na porta. O major não era assim tão mau. Era mais como um irmão mais velho do que como o Big Brother. Ele foi abrir a porta, enfiando mão no bolso onde guardava sua pistola Makarov.

No corredor, dois homens estavam diante da porta. Um homem baixo de cabelo escuro segurava o que parecia ser um pequeno monóculo. Seu companheiro mais alto tinha nas mãos um cano com algo que se assemelhava a gelo sobre o topo curvo e algum tipo de bateria elétrica pesada de um dos lados. O homem mais baixo colocou o monóculo sobre o óculo da porta. — Movimento — disse, espreitando. — É o homem. Três segundos. Afastou-se e foi substituído pelo homem do cano, segurando uma extremidade contra a madeira à altura do peito. — Sim — disse a voz grave e russa do major Komarov do outro lado da porta. — O que se passa? — Agora — disse o homem mais baixo. O do cano pressionou um botão. Um zumbido durante um segundo e um


ruído repentino e farpas de madeira foram projetadas do ponto onde a extremidade se pressionava contra a porta. Era uma arma de apoio fixo em miniatura alimentada por ímãs supercondutores e com um espigão metálico aguçado de um quilo como projétil. Pressionando um botão, a arma acelerava imediatamente o projétil até uma velocidade de cento e sessenta quilômetros por hora, mais do que suficiente para atravessar a porta e atingir o major russo. O homem do cano recuou e chutou a porta. A fechadura cedeu e o que restava da porta girou sobre as dobradiças. Katarina Luskaya ouviu um som estranho e ergueu o olhar. Farpas de madeira voavam pelo quarto. O major caiu para trás, levando a mão ao estômago, com um pedaço de metal curto semelhante a uma lança projetando-se do seu abdômen. O sangue ensopava-lhe a camisa branca. Embateu no chão sem uma palavra. A princípio, Katarina reagiu com lentidão, mas, logo a seguir, moveu-se com toda a velocidade que o seu corpo permitiria. Lançou-se na direção do major enquanto ouvia a porta ser chutada. Aterrissando a seu lado, retirou-lhe a arma do bolso do casaco. Puxou-a do coldre, procurou desesperadamente a patilha de segurança e virou-se para a porta. Uma bota atingiu-lhe a cara, projetando-lhe a cabeça para o lado antes que conseguisse disparar. Caiu, largou a pistola e sentiu alguém sobre ela no instante seguinte. Atordoada pelo golpe, debateu-se apenas durante um instante antes que um trapo embebido em clorofórmio fosse pressionado contra a sua cara. Sentiu as mãos ficarem dormentes e, a seguir, apenas escuridão.


34. Enquanto o Barracuda acelerava para a superfície, Kurt mal conseguia conter a raiva que sentia por ter sido tão tolo. As suas conclusões tinham sido precipitadas, presumindo que ele e o Argo seriam os alvos daqueles loucos, percebendo apenas naquele momento que o seu valor sempre fora muito reduzido. Tinham de conseguir transmitir uma mensagem. Tinham de alcançar a superfície para que o rádio de onda curta pudesse ser usado para contactar o Argo a trinta milhas de distância no porto de Santa Maria. Pensou nos cientistas franceses mortos e tentou entender por que não teriam sido levados e recordou os indícios de que teriam resistido com um vigor considerável. Supôs que todos os cientistas teriam a mesma escolha: lutar ou renderem-se. A maioria acabaria por ceder. Alguns morreriam. Pensou no que aconteceria a Katarina. Esperou que, juntamente com o seu “supervisor” do Estado, estivessem já no aeroporto, embarcando num avião. — Doze metros — anunciou Joe. Kurt afrouxou muito ligeiramente a pressão sobre a alavanca de aceleração. Romper a superfície à velocidade máxima seria uma boa forma de deixar entrar ar ou mesmo de virar o submersível. Nivelou e emergiram. — Transmite a mensagem — disse. A ordem era inútil. Ouvia Joe a pressionar interruptores e o ruído da antena de superfície a alongar-se. — Argo, aqui Barracuda — disse Joe. — Na escuta. Temos uma mensagem urgente para transmitir. Enquanto esperavam, Kurt mantinha o Barracuda estável. Tinha sido concebido para voar embaixo de água e era menos manobrável à superfície. — Argo, aqui Barracuda. A voz que ouviram a seguir pertencia ao capitão Haynes, o que foi uma surpresa, apesar de Kurt compreender que passasse a noite em claro preocupado com a operação perigosa que Kurt e Joe acreditaram levar a cabo. — Joe, fala o capitão — disse Haynes. — Ouça, temos um problema aqui. Tentamos... Ouviu-se um estouro e, de repente, a cobertura do cockpit ficou repleta de furos e amassados. Uma sombra aproximou-se deles, vinda da esquerda. Ouviuse outro estouro e Kurt percebeu que era um disparo de escopeta. Daquela vez,


viu um buraco enorme abrir-se na asa esquerda. Aumentou a velocidade e virou bruscamente à direita. Viu uma lancha se aproximando deles. Parecia prestes a cortá-los ao meio. Não tinha escolha. Baixou o nariz e submergiram. A água começou a entrar pelos buracos minúsculos na cobertura. A lancha passou sobre eles com um rugido e com novo estouro, projetando o Barracuda num movimento lateral. Kurt olhou para a direita, vendo que a pequena asa que funcionava como leme fora arrancada. Sentiu água acumular-se aos seus pés e notou como os movimentos do pequeno submersível se tinham tornado erráticos. Puxou o manípulo de controle e o Barracuda virou-se para cima, rompendo novamente a superfície e sendo erguido por uma onda antes de descer novamente. — Depressa — disse a Joe. — Capitão, ouve-nos? — disse este. Viu a lancha virar na sua direção, descrevendo uma curva ampla à direita. Mais além, viu outra lancha acelerar para se juntar ao confronto. Não sabia como poderiam escapar, mas sabia que tinham de transmitir a mensagem. Ouviu Joe ajustando o rádio uma e outra vez, mas ouviram apenas estática. — Argo, daqui Barracuda — disse novamente. — Os cientistas são o alvo. Repito. Os cientistas são o alvo. Kurt ouviu um clique quando Joe libertou o botão de transmissão. Esperaram. — Não há resposta — disse Joe. Kurt virou a cabeça, pronto para dizer a Joe que tentasse novamente, quando viu a cauda do Barracuda. A antena de frequências elevadas desaparecera. As placas de metal pareciam ter sido dilaceradas pela hélice da lancha que passara por eles. — Nada — disse Joe. As lanchas avançavam novamente para eles em formação. O Barracuda não tinha hipóteses de lhes escapar. E o único outro rádio a bordo era o emissor subaquático, que tinha um alcance máximo rondando aproximadamente uma milha. — Usa o adesivo — disse Kurt. — Tapa os buracos. Enquanto se esquivava às lanchas cada vez mais próximas e empurrava a alavanca de aceleração até o fim, Joe movia-se no seu banco. No instante seguinte, tinha retirado o adesivo de um pequeno compartimento e arrancava pequenos pedaços ao rolo, tentando selar os buracos na cobertura provocados pelos disparos de escopeta.


— Aí vêm eles — disse Kurt. — Sabes que isto não aguentará a profundidade — lembrou Joe. — Tentarei ficar perto da superfície — afirmou Kurt. Ouviu o ruído do adesivo a ser cortado e colado, o rugido dos motores das lanchas e o estouro abafado de outro disparo. Daquela vez, falhou o alvo, projetando salpicos da onda a seu lado. — Mergulha — disse Joe. Kurt baixou o nariz. A água engoliu a cobertura e o Barracuda submergiu abaixo das ondas, nivelando três metros abaixo. Continuava a entrar bastante água, mas não com a intensidade anterior e Joe continuava a colar adesivo. Quando terminou, segurou o que parecia ser um tubo de pasta de dentes, mas que era, na realidade, um poliepóxido solidificador. Vapores amoníacos encheram o cockpit enquanto Joe aplicava a substância sobre o adesivo. Reagiria com os compostos no adesivo e endureceria os remendos em menos de um minuto. Dois metros e meio abaixo das ondas, Kurt viu um rastro e depois outro passando sobre eles. Virou imediatamente à esquerda, uma direção que parecia mais favorável ao Barracuda depois dos estragos sofridos. — Vês outros buracos? — perguntou Joe. Kurt olhou em redor. Os remendos e as aplicações de poliepóxido sugeriam que alguém tinha coberto metade do cockpit com graffiti. Os vapores provocavam-lhe dor de cabeça e faziam-lhe arder os olhos. Mas a água já não entrava. Com o endurecimento gradual dos remendos, as infiltrações cessariam quase por completo. — Bom trabalho, Joe — disse. — Não é a minha melhor obra em termos estéticos — disse Joe. — Mas nunca remendei nada enquanto submergia debaixo de fogo. — Parece-me arte — considerou Kurt, esforçando-se para ver além das manchas e localizar as lanchas que sabia aproximarem-se. — Numa vida futura, trabalharei numa equipe de reparações nas corridas NASCAR — disse Joe. — Concentremo-nos em ampliar um pouco as nossas vidas presentes — disse Kurt. — Ocorre-te alguma forma de contactar o Argo? Instalou-se o silêncio enquanto ambos se esforçavam. Kurt não se lembrava de nada. — O sinal de dados — disse Joe. — Podemos enviar-lhes um e-mail. — Um e-mail? — Não exatamente, mas podemos transmitir uma mensagem de dados. Vai até um satélite e volta a descer. Desde que alguém veja o equipamento de telemetria ligar-se, receberão o que transmitirmos.


Kurt pensou na probabilidade de os monitores da unidade de telemetria ligarem sem ninguém reparar. Certamente, não haveria ninguém vigiando naquele momento. — Mais alguma coisa? — Ou isso ou voltamos para Santa Maria e fazemos sinais de luzes — disse Joe. — Foi o que me pareceu — disse Kurt. — Ativa o sistema de telemetria. Diz-me quando estiveres pronto. — Precisaremos de trinta segundos à superfície para captar o sinal do satélite. — Acho que não teremos tanto tempo — disse Kurt. Como se reforçasse o que dissera, viu um dos rastros voltar na sua direção, duplicando a velocidade do submersível e descrevendo um rumo paralelo. O segundo rastro fez o mesmo do lado oposto, pela retaguarda. Kurt guinou à esquerda, em direção ao cemitério submarino. As lanchas o seguiram. — Eles podem nos ver, Kemo Sabe — disse Joe. — Somos como um peixe moribundo deixando um rastro de sangue — disse Kurt, pensando nas bolhas que o submersível libertaria. Um estranho estrondo alcançou-os e Kurt viu traços rasgados na água à sua frente e acima. Supôs que os perseguidores disparassem as escopetas contra o mar. O perigo não era real, mas seria mais um sinal de que a situação se tornara incomportável. Talvez se descêssemos mais. Baixou o nariz alguns graus. O medidor de profundidade marcou quatro, depois seis e depois... Craque! Um dos remendos soltou-se, substituído por um novo jorro de água. Enquanto Joe colocava novamente o remendo no local e começava a cobrilo com mais adesivo, Kurt fez subir o submersível, nivelando nos três metros. Mudou de rumo novamente, mas sem resultado. — É provável que tenham aqueles óculos Maui Jim — disse Joe. — Os que permitem ver peixes na água. Kurt sentia-se como um peixe aprisionado num tanque. Ou como uma baleia sendo caçada da superfície por um par de barcos arpoeiros. Mais cedo ou mais tarde, teriam de subir. Para enviar a mensagem ou apenas para sobreviver. Apesar dos esforços de Joe, o Barracuda metia água lentamente, não apenas pelos buracos dos disparos na cobertura, mas também de estragos noutros locais. Compartimentos normalmente selados cediam a infiltrações.


E, tal como sucedia com as baleias, os adversários de Kurt e Joe à superfície eram mais rápidos, maiores e bem armados. Naquele ponto, apenas precisavam seguir Kurt e Joe no Barracuda e esperar que subissem para reabastecer de ar. Um clarão iluminou o mar à frente e à direita. As ondas de choque de uma explosão sacudiram o submersível no momento em que Kurt virava à esquerda. Instantes depois, um segundo clarão surgia-lhes imediatamente por cima. Kurt viu as ondas contraírem, expandirem e baterem no nariz do Barracuda. — Granadas — disse. Começavam a surgir fraturas na cobertura. Linhas minúsculas, quase invisíveis alongavam-se por baixo dos remendos de Joe enquanto o acrílico enfraquecia e começava a ceder. Quando outra explosão os sacudiu, Kurt percebeu que não lhes restava muito tempo. — Prepara a mensagem — disse. — Não sobreviveremos dez segundos à superfície. — Sobreviveremos se nos rendermos — replicou Kurt, percebendo que, assim que Joe pressionasse o Enter, não haveria sinais visíveis de que a mensagem de dados era transmitida e poderiam erguer as mãos e esperar que não os alvejassem por capricho. Joe não disse nada, mas Kurt ouviu-o dedilhar o teclado. — Estou pronto — disse Joe. Kurt apontou o nariz para a superfície, esperando que não fossem recebidos por uma rajada de metralhadora. No momento em que emergiram, reduziu a velocidade. O Barracuda reduziu imediatamente e as lanchas passaram por ele. — Agora — disse Kurt. Joe pressionou o Enter e Kurt ativou o interruptor que fazia erguer a cobertura do cockpit. — Vamos — murmurava Joe. — Depressa, por favor. Kurt ergueu-se, elevando bem alto as mãos num gesto de rendição inconfundível enquanto as lanchas voltavam a aproximar-se. O Barracuda balouçava sobre as ondas e as lanchas pararam a seu lado. A meia milha de distância, Kurt viu também um barco maior dirigindo-se para eles. — Rendemo-nos — disse. Dois homens apontaram-lhe escopetas. Um clique quase inaudível ergueu-se das traseiras do cockpit e Joe também se ergueu. — Mensagem enviada — sussurrou.


Kurt respondeu com um aceno de cabeça quase imperceptível. Independentemente do que acontecesse a seguir, independentemente do destino que lhes estivesse reservado, pelo menos tinham conseguido transmitir a mensagem. Podia apenas esperar que ainda fosse a tempo. À sua frente, um dos homens baixou a arma e lançou-lhes uma corda. No momento seguinte, o Barracuda estava preso à maior das duas lanchas e Kurt e Joe erguiam-se a bordo com os pulsos algemados. Aparentemente, os seus adversários tinham vindo preparados. O barco maior aproximou-se. Era um iate de dezoito metros de um modelo que Kurt nunca vira. Parecia muito mais utilitário do que qualquer coisa que conhecesse naquela classe. Seria mais semelhante a uma embarcação militar do que a um barco de recreio. Abeirou-se e Kurt viu um homem com uma farda de camuflado erguer-se à proa, fitando-o. Era o mesmo homem que vira na noite anterior e também a bordo do Kinjara Maru. Um sorriso de conquistador decorava-lhe a face e saltou para o convés da lancha antes mesmo que o iate a tocasse. Avançou para Kurt e Joe, indefesos como estavam, parecendo preparado para infligir dor. Kurt olhou-o, sem pestanejar ou desviar o olhar. — Andras — disse, entre dentes cerrados. — Amigo teu? — perguntou Joe. Antes que Kurt pudesse responder, o homem moveu-se e golpeou-o no queixo, fazendo-o cair ao convés. Kurt olhou para cima, com sangue a escorrer do lábio rasgado. — Desculpa — disse Joe. — Esquece a pergunta.


35. Dois homens seguraram a corrente das algemas de Kurt e puxaram-no até ficar novamente em pé. — Quero que vejas uma coisa — disse Andras. Fez um gesto ao iate para avançar. Um movimento breve bastou e, quando o motor voltou novamente a silenciar-se, as duas embarcações tocaram-se. No convés de popa do iate, um grupo variado de trinta ou mais homens e mulheres sentavam-se com mãos e pés acorrentados e com as costas contra a amurada mais distante. Por mais dolorosos que fossem o corte no lábio e a ferida no seu orgulho, ver aquilo provocou uma agonia muito maior. Kurt reconheceu-os como membros das várias equipes de investigadores científicos enviados para estudar o magnetismo. Katarina sentava-se entre eles, com uma nódoa negra cobrindolhe a face direita. Ela ergueu o olhar ao encontro do seu e, a seguir, voltou a baixá-lo novamente para o convés, triste e abatida, como se, de alguma forma, tivesse falhado. Kurt cuspiu uma mistura de sangue e saliva no convés. — Que preparas, Andras? — perguntou. — O que é isto? — Sinto-me lisonjeado por finalmente me reconheceres — disse Andras. — Claro que também me sinto um pouco ofendido por teres levado tanto tempo. Pensei que tivesse provocado melhor impressão quando nos conhecemos há tantos anos. Mas também não te reconheci — admitiu. — Não tinhas cabelo grisalho quando te vi pela primeira vez. Agrada-me pensar que poderei ter embranquecido uma parte. Kurt sentiu o corpo tenso. Os seus instintos ordenavam-lhe que resistisse e lutasse. O desespero dos cientistas, o ferimento na face de Katarina, a arrogância que jorrava da boca de Andras como detritos de um esgoto. Tudo aquilo desafiava a sua capacidade de controle. Se conseguisse arrebentar a corrente, se jogaria em cima de Andras e lutariam até a morte ali mesmo, mas, algemado e em desvantagem, antagonizar o homem apenas faria dele um saco de boxe humano. Andras contornou-o num círculo largo. Kurt esquecera como o homem gostava de falar. — Quando ouvi falar desta NUMA — disse —, devia ter adivinhado que estarias envolvido. Parece o tipo de coisa em que Kurt Austin estaria envolvido. Sempre tão sério e nobre. Aposto que juram fidelidade à bandeira todas as


manhãs. E que têm casacos e chaveiros combinando. — Sim — respondeu Kurt, entre dentes. — Talvez te leve nosso merchandising quando isso acabar e estiveres cumprindo cem anos em solitária. — Em solitária? — repetiu Andras. — Que cruel. Eu, pelo menos, quando te jogar no mar, não te deixarei ir sozinho. — Aproximou-se mais. — E sejamos claros. Quando isso acabar, serás comida para peixe. E eu serei rei. Sorriu e Kurt achou algo estranho nas palavras e na forma como Andras as tinha sussurrado para que só ele ouvisse. Enquanto sentia um arrepio gelado subir pelas costas, pensou no que Andras lhe destinaria. Esperou que não incluísse Katarina. Apesar dos seus desejos, Andras voltou ao iate e caminhou diretamente para ela. Agachou-se, colocou uma mão sobre a cara enegrecida e voltou a erguer-se. — Ponham o Sr. Austin no seu pequeno submarino — ordenou. Três homens aproximaram-se de Kurt, dois brancos e um preto. Ergueram-no e atiraram-no literalmente para dentro do Barracuda. — Mathias — disse Andras, dirigindo-se ao africano —, acorrenta-o à pega de elevação. Kurt olhou. Era uma pega semelhante a um suporte de toalhas fixa no casco do Barracuda junto ao cockpit. Era um ponto reforçado do casco, o mais resistente em toda a estrutura do submersível. soldada diretamente à estrutura e fabricada em aço de construção, destinava-se a suportar a totalidade do peso do submersível quando a grua do Argo o retirasse da água. Não era algo a que Kurt quisesse ser algemado. Mathias ergueu uma chave que trazia pendurada ao pescoço e abriu-lhe as algemas. Imediatamente, Kurt moveu um cotovelo, atingindo um dos brancos na boca. Quase de imediato, o outro golpeou-o na nuca, fazendo o crânio bater contra a armação do cockpit. Kurt ficou tonto. Quando as ideias clarearam, sentiu os braços caídos sobre o casco do Barracuda, apesar de ter a maior parte do corpo no interior do cockpit. As algemas tinham sido recolocadas e estava preso à pega de elevação. — O outro também — disse Andras. Joe foi lançado para o lado de Kurt e recebeu o mesmo tratamento. Enquanto se sentavam ali, indefesos, Andras ergueu uma escopeta. — Cartuchos — exigiu. Passaram-lhe uma caixa e começou a carregar a arma com projéteis sólidos. Quando terminou, armou a escopeta e caminhou até a popa do submarino. Disparou dois tiros rápidos contra o propulsor e um terceiro contra a asa de estibordo. A asa oca do Barracuda começou a encher-se de água. Andras ergueu a


arma e abriu um buraco na asa de bombordo. Kurt não conseguia recordar a última ocasião em que se sentira tão desesperado. Sabia que estavam prestes a afundar-se, com uma morte terrível esperando-os, e a sua mente procurava uma forma de evitar que acontecesse. — Acreditas que afogar-nos terminará isto? — gritou. — Sabemos tudo. A nossa organização sabe. Joe não disse nada. Kurt ouvia-lhe a respiração pesada, tentando encher os pulmões de ar. Sabia que deveria fazer o mesmo, mas não conseguia evitar. Não pretendia morrer calado. Enquanto a água enchia as asas do Barracuda, esforçou-se por gritar alguma coisa que fizesse Andras ordenar a suspensão da sua execução. Se conseguisse convencê-los de que teriam algo que pudesse ser-lhes suficientemente valioso para merecer que fossem poupados, mesmo que apenas por um instante, poderiam ter uma hipótese. — Sabemos do submarino — gritou. Andras arqueou uma sobrancelha. — Sabem? — perguntou. — Não achei que soubessem tanto. Mas, seja como for, não é meu. Sentindo que poderia ser aquele o caminho, Kurt insistiu. — Sabemos o que preparam. Sabemos da arma energética. Pareceu aproximar-se mais do alvo. Algo em Andras pareceu agitar-se e os seus olhos começaram a brilhar. Acercou-se. — Sim — disse. — É isso mesmo. Sabia que não desistirias. Aparentemente, percebera a jogada desesperada de Kurt e deleitava-se com ela. — Vamos. Que mais? — gritou. Kurt não respondeu de imediato e Andras segurou Mathias e puxou a chave do fio pendurado ao pescoço do homem. — Vamos — gritou, sarcástico. — És o Kurt Austin da NUMA! De certeza que consegues fazer melhor. Dá-me mais. Dá-me alguma coisa que te torne relevante. Katarina ergueu-se e avançou tão depressa quanto podia. Kurt não percebeu o que tinha em mente e era provável que ela também não percebesse, mas não foi longe. Um dos homens armados segurou-a e puxou-a para trás, lançando-a ao convés. O sangue de Kurt ferveu. — O tempo esgota-se, Austin — disse o seu torturador. Ergueu a faca que já tinha sido trocada em duas ocasiões com Austin e expôs a lâmina de titânio. Fixou-a e atou o fio que prendia a chave a uma das aberturas no cabo. As asas do Barracuda estavam submersas. A qualquer segundo, o cockpit começaria a encher. Restavam segundos preciosos. — Sabemos do supercondutor — disse Kurt, odiando-se por se deixar levar.


— Sabemos quem o vendeu — mentiu. — Sabemos que foi carregado a bordo do Kinjara Maru em Freetown. Andras olhou para baixo como se pensasse. Moveu brevemente o olhar para Mathias e voltou a olhar para Kurt, esboçando um sorriso maníaco. — Serve — disse, avançando com a faca na mão. — Para metade, pelo menos. Inclinou-se para o Barracuda, ergueu o braço e lançou a faca contra a pele fina do casco exterior. A lâmina perfurou e fixou-se centímetros além do alcance de Kurt. — Infelizmente, metade não será suficiente para salvar os dois. A água entrou no cockpit e formou um redemoinho em volta dos joelhos de Kurt. Afundavam-se. Olhou para Joe. — Aconteça o que acontecer — disse. — Faz o que eu fizer. Joe acenou afirmativamente enquanto Kurt enchia os pulmões de ar com inspirações profundas e rápidas e o Barracuda começava a afundar-se com o nariz para baixo. A água agitou-se, o nariz do submersível desapareceu e seguiu-se o resto, arrastando-os. A última coisa que Kurt ouviu com clareza foi o seu nome gritado por Katarina.


36. A bordo do iate, Katarina tombou para diante enquanto o Barracuda afundava. Olhou para a água agitada no ponto ocupado pelo pequeno submersível momentos antes. — Não — disse, com um sussurro sonoro. — Não. Baixou os olhos e permaneceu deitada de bruços no convés, com os ombros a tremer enquanto chorava. Andras a olhou. — Que visão patética. Caminhou até ela e agachou-se. Colocou os dedos sob o queixo dela e ergueu seu rosto até olhá-la nos olhos. — Não se preocupe — disse. — Tenho planos mais agradáveis para você. Katarina tentou cuspir na cara dele, mas ele se afastou com facilidade. — Por que tentam sempre os mesmos truques? — perguntou. Recuou e chutou-a com força. Virou-se para a cabine de pilotagem. — Liga os motores. Enquanto os motores a diesel ganhavam vida abaixo do convés, Mathias, o guardador da chave, veio até ele. Não era um dos homens de Andras. Djemma colocara-o a bordo, talvez para observar o que fazia. — Deu-lhes a chave — disse. — E se fogem? Andras riu. — Quase espero que consigam. Tornaria as coisas muito mais interessantes — disse. — Mas não acontecerá — acrescentou. — Não conseguirão escapar, não os dois, pelo menos. — Por quê? — Porque as pessoas têm que pagar por seus crimes e a morte não é grande castigo. — Andras olhou para o guardador da chave com fúria nos olhos. Sentia uma mistura peculiar de ódio e respeito por Kurt Austin. Outrora, também sofrera nas suas mãos. Satisfeito por ter colocado Mathias no seu lugar, voltou-se para a proa. Mathias segurou-lhe um braço, fazendo-o virar-se. — Informarei Djemma. Não achará isto tão divertido. Os olhos de Andras semicerraram-se. — Não o fiz por diversão. — Então por que foi? Não consigo ver o propósito. — Há um propósito em tudo o que faço — assegurou Andras. — Nisto, por


exemplo. Num piscar de olhos, ergueu uma pistola e disparou-a. O tiro não foi mais sonoro que o disparo de uma pistola de fulminantes. Não houve gritos nem gemidos de dor. Nem mesmo uma reação significativa de Mathias. Apenas uma súbita expressão vazia na cara quando um buraco minúsculo lhe surgiu no centro da testa. Cambaleou para trás, revirando os olhos e tremendo, mas sem estar ainda morto. Enquanto o guardador da chave recuava para a amurada, Andras puxou novamente o gatilho. Mathias caiu borda fora, atingindo a água com estrondo. Desapareceu por um segundo e flutuou novamente até a superfície, trazido pelo colete de salvação cinzento que vestia. Um fio de sangue carmesim era alimentado pelos dois pequenos buracos na cabeça. Deixara de se mover. Andras guardou a pistola e ergueu a escopeta para que todos a vissem, gritando a plenos pulmões: — Mais alguém tem um problema com a autoridade? — Olhou em redor, de face em face. Ninguém falou e Andras olhou novamente para a cabine de pilotagem. — Vamos disse. Os motores rugiram e o iate afastou-se. As duas lanchas apressaram-se a segui-lo e as três embarcações seguiram para norte, deixando rastros de espuma longos.

Dez metros abaixo da superfície e com a profundidade aumentando, Kurt prendeu a respiração enquanto o Barracuda afundava com ele e Joe no interior. Sentindo a pressão aumentar nos tímpanos e vendo a luz do alto perdendo intensidade, tentou acalmar-se. Formulava um plano, mas, primeiro, tinha de reprimir as reações naturais do medo e do pânico, sabendo que o matariam tão rapidamente como qualquer outra coisa. Sem óculos de mergulho, tudo à sua volta se tornava um borrão, mas era um borrão amarelo-esverdeado, o que significava que as luzes do Barracuda continuavam ligadas. E significava também que os disparos de escopeta não tinham inutilizado o sistema elétrico. Mesmo cheio de água, Joe dera ao submersível instrumentos e controles impermeáveis até grandes profundidades. Se estivesse certo quanto à sua localização, tocariam o fundo marinho a uma profundidade de trinta e cinco metros. Quando acontecesse, Kurt tentaria transformá-lo em algo mais do que uma sepultura. Não seria fácil, mas tinham uma hipótese. Aliás, da forma como Kurt via as coisas, as probabilidades de sobrevivência ou morte seriam praticamente iguais. Dependeria tudo da forma como o Barracuda pousasse.


Forçou os olhos a manterem-se abertos apesar de a água salgada os magoar. Com o nariz do submersível apontado para baixo, as luzes dianteiras começaram a iluminar o fundo dez segundos antes de o atingirem. Kurt viu areia clara com algumas manchas escuras que supôs serem rocha vulcânica. Surgiu mais depressa do que a previsão de Kurt. Preparou-se para o embate e foi projetado para diante enquanto o nariz do pequeno submersível embatia contra o fundo como um dardo gigante. O impacto abalou-o, mas manteve o controle e passou imediatamente à ação. Com as mãos ainda algemadas à pega de elevação do Barracuda, Kurt moveu o corpo totalmente para fora do submersível, impelindo-se com movimentos das pernas. Segundos depois, viu Joe fazer o mesmo, duplicando os seus movimentos como combinaram. A sua única esperança seria criarem uma bolsa de ar que lhes permitisse respirar enquanto levavam a cabo o resto do plano. E a única forma de o conseguirem seria virando o Barracuda ao contrário, fazendo fluir o oxigênio dos tanques de ar comprimido. A seguir, o interior do cockpit funcionaria como um balde virado e se encheria de ar que Kurt e Joe poderiam respirar. O único problema era que, apesar de o Barracuda ter embatido no fundo com o nariz para baixo, o peso do submersível forçava a metade inferior, onde estavam alojados os sistemas principais: o motor, as baterias, a hélice. E, mesmo que tivesse caído quase verticalmente sobre o nariz, ameaçava já tombar para trás. A única força que impedia que isso acontecesse resultava dos esforços de Kurt e Joe, mas cessariam em menos de um minuto. Kurt moveu as pernas com vigor e puxou com toda a força. O ardor nos pulmões começava a tornar-se insuportável. Se conseguissem empurrar o submersível alguns centímetros além da verticalidade, o peso seria seu aliado. Dando tudo o que tinha, os pés de Kurt tocaram o fundo arenoso e cravaram-se. O pé esquerdo deslizou e bateu contra uma rocha, permitindo-lhe algum apoio. Daquela vez, enquanto puxava, a cauda do submarino moveu-se e começou a cair sobre ele. Puxou novamente, apoiando os dois pés contra a rocha e aplicando todo o seu peso. Finalmente, o nariz moveu-se para trás e a cauda caiu na sua direção, fazendo Kurt desviar-se para evitar ser atingido pela asa. O submersível pousou ligeiramente de lado e a cobertura arruinada manteve-o num ângulo de trinta graus.


Não era perfeito, mas era suficiente para considerar a primeira fase do plano um sucesso. No entanto, com os pulmões prestes a arrebentar e com as palpitações na cabeça, restavam-lhes segundos preciosos para fazerem o ar fluir ou teria sido tudo em vão. Nem Kurt nem Joe conseguiriam alcançar o interruptor com as mãos algemadas, mas os pés seriam uma possibilidade. Kurt esticou-se para o painel, pressionando com um dedo do pé à volta do interruptor do oxigênio uma e outra vez. De cada vez que tentava, os resultados eram nulos e sentia os movimentos tornar-se mais débeis e menos coordenados. Lutou contra o impulso de abrir a boca e inspirar. Lutou contra os tremores e tentou mais uma vez. Terá atingido o interruptor das luzes porque tudo ficou escuro por um segundo antes de as luzes voltarem. Sentia que as pernas e os braços eram feitos de chumbo e não conseguia forçá-los a fazer o que queria que fizessem. A mente começou a sabotar o seu esforço e o seu subconsciente sussurrava-lhe que desistisse. O pensamento enfurecia-o e forçou-se a tentar uma vez mais, retesando os músculos com a força que lhe restava. Antes que conseguisse mover-se, uma súbita coluna de bolhas encheu o cockpit. A princípio, Kurt conseguiu ver apenas a turbulência, mas, quando as bolhas começaram a encher o cockpit invertido, viu uma bolsa de ar formar-se sobre a sua cabeça no que seria o espaço para os pés se o submersível estivesse colocado na orientação certa. Torceu o corpo, esticou o pescoço e ergueu a cara para a salvação em alastramento rápido. Expirando uma enorme nuvem de dióxido de carbono, inspirou. Tossiu por inalar também um pouco de água, mas não se importou e continuou a respirar. O ar era vida, outra hipótese para inverter as probabilidades e conseguir um sete aos dados no fundo do mar. Enquanto a bolha se enchia de ar, pestanejou para tirar dos olhos o que restava da água salgada e olhou em redor. A face sorridente de Joe Zavala estava por perto. — Que aconteceu? — perguntou Kurt, percebendo que não concluíra a sua última tentativa de ligar o ar. Joe sorriu e contorceu o corpo, erguendo um pé acima da água. Estava descalço. Sem sapato nem meia. Moveu os dedos. — É como fechar a torneira no banho — disse. Kurt sentiu um riso muito perto de sair. Ainda não tinha ar suficiente nos pulmões para o libertar, mas a sensação era formidável. — Não consegui alcançar o interruptor — admitiu. — Estava a perder os


sentidos. — Devias ter pouco ar nos pulmões — disse Joe. — Conversas longas com lunáticos à superfície podem ter esse efeito. Kurt acenou afirmativamente. Na próxima vez, manteria a boca fechada e respiraria pelo nariz. Com o ar do Barracuda a começar a abastecer-lhe o corpo, sentia voltarem as suas forças. — Nunca acreditei que viesse a dever a vida aos teus pés de gorila — disse. — Bom trabalho. Joe riu e, em seguida, ficou muito sério. — Os dutos estão completamente abertos e o sistema tenta compensar as falhas. Isso nos manterá algum tempo neste pequeno oásis, mas o abastecimento não durará. Talvez vinte minutos até se esgotar. Kurt olhou em redor. O Barracuda repousava num ângulo pouco favorável e, apesar de conseguirem manter as cabeças e os ombros na bolsa de ar sem grandes dificuldades, as mãos continuavam algemadas ao exterior e as bolhas saíam por um canto erguido do cockpit. Kurt inspirou fundo, baixou a cabeça e moveu-a para o exterior. Olhou em redor, aproveitando a ténue luz esverdeada. Ali, fora do seu alcance, viu a chave e a faca que Andras cravara no casco do Barracuda. Não sabia por que Andras lhe dera aquela chance. Talvez apenas como provocação ou por outro motivo doentio, mas não achou que fosse importante. Girou, livrou-se dos sapatos e das meias com movimentos dos pés, como Joe fizera, e esticou-se para o fio que prendia a chave. Tocou-a, mas não conseguiu prendê-la à primeira tentativa. Voltou a colocar a cabeça no interior, inspirando e voltando a tentar. Daquela vez, prendeu o fio com os dedos dos pés e conseguiu enrolá-lo ao pé direito. A seguir, ergueu o outro pé e chutou a faca de forma firme mas controlada. Moveu-se, mas não se soltou. Um segundo chute a soltou e Kurt puxou-a para dentro, segurando o fio fino com toda a força de seus dedos. Baixou a cabeça e voltou ao interior do cockpit, deleitou-se com mais uma inspiração profunda e trouxe o pé à superfície. Joe riu. — Declaro-te King Kong honorário. — Aceito o título — replicou Kurt. — Mas nenhum de nós conseguirá abrir as algemas com os pés. Kurt voltou a inspirar fundo, baixou novamente a cabeça para fora e moveu o corpo. Com grande esforço, dobrou o joelho e torceu a anca. Era difícil, mas, no momento seguinte, conseguira colocar o pé perto das duas mãos presas à pega


de elevação. Sentiu primeiro o gume da faca e, a seguir, o toque do fio. Segurou-o e puxou. Voltando a passar a cabeça para o interior, inspirou novamente. Trazia a chave na mão. Estavam um pouco mais perto. — Estás livre? — perguntou Joe. — Ainda não — respondeu Kurt. — Não tenho grande talento para fazer de Houdini, mas será apenas uma questão de tempo. Incapaz de ver as mãos do interior do cockpit, teria de confiar no tato. Recordou-se de que precisava de ter cuidado. Acima de tudo, não podia deixar cair a chave como alguma personagem idiota de um filme mau. Abrandou a respiração um pouco e procurou o buraco da fechadura nas algemas. Apesar da dormência rápida provocada nos dedos pela água fria, conseguiu sentir uma abertura. Introduziu a chave, agitou-a um pouco e conseguiu encaixá-la. Girou, produzindo um clique no aro metálico esquerdo. A mão esquerda estava livre. Deslizou-a para fora e conseguiu fazer passar as algemas sob a pega de elevação, trazendo-as para o alto. — Voilà! — exclamou, erguendo as mãos como um ilusionista amador para inspeção de Joe. — Magnífico — considerou este. — Qual será seu próximo truque? — Libertar o campeão da liga de boxe amador do Grupo Oriental do Arquipélago dos Açores. Joe riu. — Ande logo. Estou ficando com as mãos dormentes. Kurt acenou com a cabeça. A temperatura da água em redor não passaria acima dos quinze graus. A hipotermia não tardaria a instalar-se. Mergulhou e aproximou-se das algemas de Joe, descobrindo que havia um problema. Tentou forçar a chave, mas não conseguiu fazê-la girar. Tentou novamente, mas sem grande sorte. Puxou a chave e voltou à bolsa de ar. — Continuo preso — disse Joe. — Eu sei — confirmou Kurt, estudando a chave. — Espera. Inspirou fundo, voltou a mergulhar e tentou novamente. Daquela vez, tentou abrir os dois aros, mas sem sucesso. A chave entrava, mas não deslizava facilmente e não girava um milímetro depois de entrar. Subitamente, lembrou-se de Andras lhe ter dito que as suas respostas serviriam apenas “para metade”. Não fizera sentido quando ouvira, mas, naquele momento, percebeu. Deralhes uma das chaves. Abria as algemas de Kurt, mas não as de Joe. Batia certo


com o homem que recordava. Nunca se contentava apenas com a derrota dos adversários, mas sentia quase uma necessidade de torturar os que vencia, de provocar dor antes de desferir o último golpe. Quaisquer que fossem os motivos de Andras para permitir uma hipótese de salvação a Kurt, aquele jogo cruel faria parte do plano. Conseguia imaginá-lo vendo a cena em sua mente e rindo. Como alguma divindade malévola da mitologia grega, concedera-lhe a possibilidade de viver, mas aceitá-la implicaria abandonar à morte o seu melhor amigo. Kurt não permitiria que isso acontecesse. Voltou para dentro, erguendo novamente a cabeça dentro da bolsa de ar. — Acho que te está a escapar o conceito — disse Joe. — Quando regressas, é suposto que eu esteja solto. — Temos um problema — disse Kurt. — A chave não abre. Joe olhou para a chave e, a seguir, para Kurt. — O tipo usou uma chave diferente nas minhas algemas. Vi-a. Eram diferentes. Kurt guardou a chave no bolso e começou a procurar uma ferramenta no cockpit que pudesse usar para libertar Joe. Encontrou duas chaves de fenda, um conjunto de chaves Allen e mais alguns instrumentos. Todos miniaturizados pela necessidade de caberem no cockpit minúsculo do submersível. — Alguma coisa aqui que possamos usar? — perguntou. Joe construíra o submarino. Conhecia-o muito melhor que Kurt. — Não — respondeu. — E a pega de elevação? — perguntou Kurt, referindo-se à peça metálica a que Joe continuava algemado. — Conseguiremos retirá-la de alguma forma? Joe sacudiu a cabeça. — Não sem arrancar primeiro metade do revestimento metálico. — Conseguiremos parti-la? — perguntou Kurt, apesar de já saber qual seria a resposta. — É o ponto mais resistente do submersível — disse Joe, começando a tremer como efeito da água fria. — Está soldada à estrutura. Desenhei-a para aguentar o peso total quando erguido para fora de água. Os dois homens olharam-se. — Não conseguirás libertar-me — disse Joe, proferindo uma conclusão assustadora. — Tem de haver uma forma — murmurou Kurt, pensando e tentando resistir ao frio que começava a entorpecer-lhe também a mente. — Não com o que temos a bordo — disse Joe. — Vai-te. Não te afogues


comigo. — Para quê? Para poderes assombrar-me? — perguntou Kurt, tentando animar Joe. — Não, obrigado. — Talvez haja um barco à superfície. Ou um helicóptero — disse Joe. — Talvez alguém tenha recebido a nossa mensagem. Kurt pensou no assunto. Parecia-lhe pouco provável. E, se Joe estivesse certo acerca da duração do ar, duvidou que pudessem esperar mais de quinze minutos. Não seria suficiente para que alguém chegasse até eles mesmo que pudesse pedir ajuda. Precisava de uma resposta diferente. Algo que se situasse entre abandonar Joe e deixar que se afogasse ou morrer a seu lado. Precisava de uma serra ou de um maçarico que permitisse cortar a pega. Ou, melhor ainda, que cortasse a corrente das algemas. Foi então que lhe ocorreu. Não precisava de um maçarico. Apenas de algo muito quente. Recordou o tanque verde que vira no cockpit do Constellation quando salvara Katarina. Um tanque verde significava oxigênio puro. O oxigênio puro ardia com intensidade. Regulado da forma certa, poderia usá-lo como maçarico. Abriu um pequeno compartimento. Continha as provisões de segurança do Barracuda. Duas máscaras de mergulho, dois conjuntos de barbatanas e dois pequenos tanques de ar. Desejou que estivessem cheios com oxigênio puro, mas sabia que continham apenas ar comum. Uma mistura de vinte e um por cento de oxigênio com setenta e oito por cento de nitrogênio não ardia, mas, pelo menos, era respirável. Puxou-os para fora. Atrás dos tanques, viu um pacote de foguetes de sinalização e um transmissor de localização de emergência, um ELT1. Uma jangada inflável para duas pessoas completava o equipamento. Bastaria para se salvarem se conseguisse libertar Joe. Pegou um tanque de ar e prendeu-o ao braço de Joe como se aplicasse a braçadeira de um esfigmomanômetro. Girou a válvula e colocou-lhe o regulador junto à boca. — Respira pelo nariz até o ar do Barracuda se esgotar. Depois, usa isto — disse. Joe acenou afirmativamente. — Onde vais? — perguntou. — Regressas à superfície? Kurt calçava um par de barbatanas pequenas. — Nada disso — respondeu. — Vou à loja de ferragens comprar um maçarico.


Joe semicerrou os olhos. — Perdeste o juízo. — Há muitos anos — disse Kurt, colocando a máscara. Prendeu o tanque de ar ao seu braço e girou a válvula. — Mas isso não significa que esteja maluco. Testou o regulador do tanque amarelo. Joe arqueou as sobrancelhas. — Falas sério? Kurt acenou com a cabeça. — Nesse caso, espero que não fique longe demais — acrescentou Joe. Kurt esperou o mesmo. Conhecia a sua localização aproximada quando tinham sido capturados. Achou que seria capaz. Colocou o regulador na boca e baixou a cabeça para a água, procurando mais uma coisa de que precisaria para ter sucesso. Encontrou-a e submergiu. — Não demores — disse Joe. Mas Kurt já se afastava.

________________ 1 Emergency Locator Transmitter. (N. do T.)


37. Se Joe disse mais alguma coisa, Kurt não o ouviu. Saiu do Barracuda como se nadasse para fora de uma caverna, começando a impelir-se com movimentos vigorosos das pernas. As barbatanas não tinham o tamanho habitual, mas ajudavam muito e, com a máscara posta, conseguia ver com clareza. Mas continuava a ter apenas um palpite aproximado quanto à sua localização. Ergueu o instrumento que tirara do painel do Barracuda: a bússola. Era apenas um ponteiro selado num globo cheio até metade com querosene. Desde que não fosse rachada ou partida, continuaria capaz de desempenhar a sua única função. E essa função seria apontar o caminho para o ponto magnético mais forte. Normalmente, seria o norte magnético. Mas, naquele caso, Kurt supôs que apontaria a torre de rocha magnética. Apesar de se sentir bastante seguro de que resultaria de uma fraude de algum tipo, o magnetismo que emanava da torre era real. Se o magnetismo era gerado por algum tipo de dispositivo implantado na rocha que criava uma corrente eletromagnética ou se era apenas o resultado de minerais com carga elevada posicionados no lugar certo, não saberia dizer. Acendeu um dos foguetes de sinalização e ergueu a bússola. O ponteiro girou e fixou-se lentamente numa direção. A velocidade com que estabilizou disse-lhe que reagia a algo muito forte e teve a certeza que apontava a torre. Sabendo que, juntamente com Joe, tinha seguido um rumo para leste antes de serem apanhados, fez um cálculo mental de triangulação e conseguiu obter uma direção que pudesse seguir até o Constellation. Cinco minutos mais tarde, alcançou um dos navios no cemitério. Dois minutos depois, avistou a empenagem tripla do velho avião. Moveu as pernas com mais força, sabendo que o tempo se esgotava e que precisava de se manter tão ativo quanto lhe fosse possível para adiar a hipotermia. Introduziu-se pelo rombo no flanco do avião, nadou para a frente, rodeado pelas bolhas que expirava, e alcançou o cockpit. Um esqueleto ocupava o lugar do copiloto, ainda com o cinto posto e completamente descarnado. Estava coberto com o plástico do colete salva-vidas, com um par de placas identificativas metálicas enferrujadas e só o náilon e o metal do cinto de segurança o mantinham no lugar. Mais alguns anos e até os ossos acabariam por desaparecer. Olhando uma segunda vez, percebeu que a presença daquele avião fora um


dos motivos para ter acreditado no embuste. Fora um indício que o cegara para o resto. O esqueleto no banco do copiloto, os registros da CIA acerca da missão secreta, a sua partida de Santa Maria e queda nove minutos depois, tudo aquilo conferira alguma credibilidade ao mistério. Afastando o pensamento da mente, baixou a mão e abriu o fecho que prendia o tanque de oxigênio ao chão. Erguendo-o, estudou a válvula, procurando sinais de corrosão ou decadência. Havia sinais de vegetação começando a crescer no topo do tanque, mas não parecia ter provocado grandes danos. Esperou que o tanque de metal grosso conservasse a sua carga preciosa.

Joe Zavala permaneceu aprisionado no casco invertido do Barracuda. A cabeça e os ombros erguiam-se no cockpit e na bolsa de ar que continha. Os braços permaneciam desconfortavelmente caídos junto ao tronco, dobrados no cotovelo e projetando-se do aro do cockpit. Já não sentia as mãos e os pés. Mas ainda conseguia pensar e percebeu que ativar o ar na máxima potência fora um erro. O excesso escorria para fora antes de poder ser usado. Conseguiu esticar novamente a perna e usar os dedos dos pés, mesmo dormentes, para pressionar o interruptor. O jorro de bolhas cessou. O cockpit ficou silencioso e Joe continuou a respirar lentamente e a contar os segundos até Kurt voltar com o que tivesse em mente. Seria apenas uma questão de tempo, disse a si próprio. Voltaria sem dúvida. Sabia que o seu amigo não desistiria até não restar qualquer hipótese. Mas esperou que o que Kurt tivesse em mente funcionasse e depressa. Enquanto esperava em silêncio, Joe percebeu que contar era uma forma de passar o tempo incrivelmente entediante. Aliás, começara a acreditar que, daquela forma, o tempo corria mais. Ao invés, decidiu cantar como forma de combater o silêncio e de se manter desperto e também para esquecer o medo e o frio gelado que lhe subia pelo corpo. A princípio, ponderou cantar algo relacionado a calor, mas, de alguma forma, achou que Heat Wave na versão das Supremes ou algo semelhante pioraria as coisas num ambiente gélido. Optou por outra música, mais apropriada. Precisou de um segundo para formular as palavras, mas conseguiu. — We all live in a yellow submarine... — começou. Até Joe teria admitido que era mais falar do que cantar, mas mantinha-o


ocupado. E deu-lhe ideias. — Nota para mim mesmo — disse. — Pintar o próximo submarino de amarelo. E incluir um aquecedor que funcione debaixo de água, mesmo que o cockpit se encha de água. E mísseis. Decididamente mísseis. Arquivada a nota, continuou a cantar, elevando mais a voz com cada refrão. Ia no terceiro quando começou a apanhar-lhe o jeito, achando a acústica no interior do Barracuda invertido muito agradável ao ouvido quando percebeu que começava a ficar delirante. O ar tornava-se rarefeito. Esticou a perna e moveu-a contra o painel de controle. Tinha os pés tão dormentes que conseguiu sentir o impacto apenas na metade superior da canela, mas sabia que estava na área certa. Repetiu o movimento uma e outra vez, continuando as tentativas desajeitadas até o ar voltar a ligar-se. Ouvindo novamente o ruído das bolhas a encher o cockpit, alegrou-se e recomeçou a cantar. E então, no meio de um verso, Kurt Austin emergiu entre bolhas e espuma, interrompendo rudemente o seu desempenho. Cuspiu o regulador e ergueu a máscara. — Como te divertes... mais do que esperava. — Estou ensaiando para o American Idol — conseguiu dizer Joe. Seus dentes tinham começado a bater. — Que te parece? — Podes não ir para Hollywood, mas acho que conseguimos te tirar deste submersível. Kurt ergueu um tanque verde. — Cem por cento de oxigênio — disse. — Vou te soltar. Joe tentou sorrir. Quanto mais depressa melhor, foi tudo o que conseguiu pensar. Kurt começara já a trabalhar, usando uma chave de fenda para abrir a válvula do tanque. Conseguiu limpá-la parcialmente e parou. Mostrou o furo a Joe. — Parece-te suficiente? — Testa-o. Kurt girou a válvula por quase um minuto, chegando mesmo a fazê-la bater na estrutura do cockpit até se mover. Finalmente, cedeu. Alguns pedaços de detrito foram projetados da abertura da válvula. Kurt submergiu-a. As bolhas formavam um jato estreito. Retirou outro foguete de sinalização do kit de sobrevivência e arrancou uma apara de alumínio ao painel de controle. A fina vareta de metal seria necessária para o seu intuito. Olhou para Joe. — Vai aquecer — disse.


— Não me parece nada mau — respondeu este. Ao contrário de Kurt, não se movia há uns bons vinte minutos e ficar parado na água fria sem traje impermeável seria suficiente para provocar hipotermia. Aproximava-se desse ponto. — Terei cuidado — disse Kurt, puxando novamente a máscara para baixo. — Kurt — disse Joe, muito sério. — Não quero morrer aqui embaixo. Se tiveres de me cortar a mão, fá-lo. Seja como for, não a sinto. — E privaria o mundo dos teus talentos como pugilista? — perguntou Kurt. — Jamais. — Kurt, digo apenas que... — Por que não volta a cantar? — disse Kurt. Ergueu o tanque. — Vou fazer um pedido. Light My Fire dos Doors. Com isto, colocou novamente o regulador na boca e mergulhou. Joe sabia que daria o seu melhor, mas também sabia que Kurt faria o que lhe pedira se fosse necessário. E, para evitar que pensasse no assunto, não o avisaria. Para ocupar a cabeça, seguiu a sua sugestão... mas sem atender ao pedido. Daquela vez, daria tudo o que tinha, cantando com todas as forças: — We all live in a yellow submarine... Fora do Barracuda, Kurt ouviu a voz distorcida de Joe e sentiu-se secretamente alegre por estar fora do espaço limitado no cockpit do submersível. Apesar de tudo, sorriu. Aproximou-se da pega de elevação. As mãos de Joe formavam punhos gelados. Afastou a direita da esquerda o quanto podia. A seguir, acendeu o sinalizador e ergueu a vareta de alumínio. Pressionou a ponta afiada da vareta contra os elos estreitos da corrente de aço que prendia as mãos de Joe. Aproximou atabalhoadamente o tanque e girou a válvula. O jato de bolhas recomeçou. Apontou-o para a vareta de alumínio, para a corrente e para a extremidade incandescente do foguete. De imediato, viu o que parecia ser um jato de fogo. Não eram as melhores condições para trabalhar. Sentiu que precisava de três mãos, mas, segurando o foguete e a vareta com uma mão e o tanque de oxigênio com a outra, conseguiu manter operacional o maçarico improvisado. Parecia ser o oxigênio a arder, mas Kurt sabia que, na verdade, era um agente oxidante. Não ardia. Fazia outras substâncias arderem rapidamente e com temperatura elevada. Naquele caso, queimava o alumínio e, depois de surgir um pequeno corte num elo da corrente, queimava também o aço das algemas. O maçarico vacilou várias vezes e a chama pareceu prestes a extinguir-se,


mas permaneceu acesa. Após trinta segundos, afastou-o. Os elos metálicos brilhavam, reluzentes, mas ainda não se tinham derretido. Voltou a aproximar o maçarico. Após quinze segundos, as mãos de Joe soltaram-se. Estava livre. Kurt fechou o oxigênio, pensando que poderiam precisar dele e voltou ao submersível. Joe recebeu-o com um grande sorriso. — Abraçava-te — disse, erguendo os punhos. — Mas tenho demasiado frio. — Quanto tempo passamos aqui embaixo? — perguntou Kurt. — Meia hora — respondeu Joe. Kurt concordou com a estimativa. Trinta minutos a trinta metros. Precisariam de pelo menos uma paragem para descompressão. Com o tanque de emergência de Joe praticamente intocado e com o que restava no seu, juntamente com o tanque verde de oxigênio, estava certo de que conseguiriam sem problemas. Colocou a máscara de Joe sobre a sua cara e calçou-lhe as barbatanas com dificuldade. Prendendo a jangada inflável e o ELT debaixo do braço, orientou-o para fora do submersível. No exterior, girou o ELT até começar a piscar, soltou-o e viu-o flutuar para a superfície. Olhou para Joe e apontou para cima. Joe acenou afirmativamente e começou a nadar, movendo lentamente as pernas para se impelir até a superfície. Kurt olhou para o Barracuda uma última vez e notou algo brilhante no fundo, abaixo das luzes. A faca. A mesma faca outra vez. Mais uma provocação de Andras. Irado, estendeu a mão e segurou-a. A seguir, começou a nadar atrás de Joe e da luz intermitente distante do ELT.

Alcançaram a luz do dia dez minutos depois. Kurt tentou manter a subida a um ritmo de trinta centímetros por segundo, como ditavam as regras da Marinha. Mas, para não correrem riscos, pararam os dois durante dois minutos aos doze metros e novamente aos seis durante mais três. Reencontrar finalmente o sol era uma sensação fantástica. Kurt puxou o cordel que insuflava a jangada. A carga de dióxido de carbono encheu-a em segundos, fazendo-a desdobrar-se e tornar-se rígida. — Pronta para receber passageiros — disse Kurt. Ajudou Joe a subir a bordo e, a seguir, juntou-se a ele.


Depois de entrarem na jangada, ficarem deitados e quietos era altamente recomendável. Kurt sentia-se bastante seguro de que não conseguiria fazer mais nada. Permaneceu deitado, respirando, dorido e exausto. Surpreendia-o como se sentia frio e dormente naquele momento, por comparação com o que sentira no fundo. Após vários minutos sem qualquer som além da água a bater contra a jangada, Joe falou. — Qual é o lugar mais seco do planeta? — Não sei — disse Kurt, pensando. — Talvez o deserto de Atacama. — Na próxima aventura, será esse o nosso destino — disse Joe. — Ou outro lugar igualmente quente e seco. — Não sei se a Agência Nacional Subaquática e Marítima terá muito para fazer em lugares quentes e secos — disse Kurt. Joe sacudiu a cabeça. — O Dirk e o Al passaram algum tempo no Sara. — É verdade — confirmou Kurt. — Mas não sei se recomendariam a experiência. — Quente e seco — afirmou Joe com firmeza. — Faço questão. Kurt riu. Naquele momento, não lhe parecia nada mal. Apercebia-se dolorosamente de como tinham estado próximos da morte. Não teria sido preciso muito para empurrar a balança da sobrevivência para a destruição de qualquer um deles. E sabia que o excesso de confiança acerca das ações dos seus adversários era a principal razão. Olhou para Joe, que começava finalmente a recuperar alguma cor na cara. — Enganei-me — disse-lhe. Joe virou a cabeça com dificuldade. — O quê? — Enganei-me quando falei no St. Julien — explicou Kurt. — É um gourmet. Nunca comeria até arrebentar num bufê livre. Joe fitou-o por um momento e começou a rir e a tossir ao mesmo tempo. Kurt também se riu. Sabia que Joe compreendera o que tentava dizer. — Todos cometemos erros, Kurt — disse. — Tu apenas o fazes com maior estrondo. Kurt acenou afirmativamente. Era realmente o que parecia. Observou a superfície do mar. A trinta metros de distância, viu o transmissor de localização de emergência, continuando a piscar e dançando sobre as ondas. Esperou que o resgate chegasse logo porque havia trabalho a fazer.


Pela forma como via as coisas, Andras cometera um erro ainda maior que o seu. Deixara-o vivo e atiçara-lhe no coração a centelha amarga da vingança.


38. Ao largo da costa de Serra Leoa, 26 de junho

Djemma Garand estava na ponta do heliporto na falsa plataforma petrolífera a que fora atribuído o número 4. Albergava o centro de controle da sua arma e seria o seu posto de comando se algum dia precisasse de a usar. O centro de controle erguia-se três pisos acima do heliporto, com o revestimento de vidro da sala principal projetando-se como a ponte de comando de um navio. Naquele momento, a atenção de Djemma estava em noutro ponto. Debruçou-se sobre um parapeito, à sombra, com os olhos escondidos atrás do escudo com reflexos verdes dos seus omnipresentes Ray-Ban. No centro do heliporto, sofrendo sob o tórrido sol equatorial, erguiam-se os cientistas capturados das várias equipes de investigação que tinham acorrido ao engodo que preparara: a anomalia magnética açoriana. Djemma sorriu ao pensar na sua astúcia. Até ali, as coisas aconteciam segundo o seu plano. Com os cientistas forçados a formar uma linha para a sua inspeção, esperou. De cada vez que um deles se movia ou saía da linha, Andras ou um dos seus homens avançavam e ameaçavam-nos com represálias muito piores do que ficar em pé ao sol. Em redor, alguns homens circulavam pelo perímetro armados com metralhadoras. Por fim, quando a frequência dos gemidos e dos queixumes começou a diminuir, Andras aproximou-se do local onde Djemma repousava à sombra. — Se os deixares aqui fora mais tempo, fritas-lhes o cérebro — disse-lhe. — Se não me engano, não foi para isso que os trouxeste até aqui. Djemma voltou-se para Andras. Não responderia às invetivas do homem. — Havia em Santa Maria trinta e oito peritos em supercondutores, física de partículas e energia eletromagnética — disse. — Conto apenas trinta e três prisioneiros. Explica-me a discrepância. Andras virou a cabeça, cuspiu borda fora e voltou a fitar Djemma. — A equipe francesa retirou uma amostra da torre. Teria destruído a operação antes de agirmos. Fui obrigado a eliminá-los. A perita russa revelou ser uma espia. Tentou escapar duas vezes. Também a matei. Andras não pestanejou enquanto falava, mas parecia não lhe agradar ter de dar explicações.


— E Mathias? — perguntou Djemma. — O teu homem das chaves esqueceu o seu lugar — disse Andras. — Questionou as minhas ordens à frente dos outros. Não posso permiti-lo. Por um momento, Djemma sentiu-se furioso. Enviara Mathias com Andras para o vigiar, talvez para o manter sob controle. Não duvidava de que teria sido parcialmente por esse motivo que Andras o matara. Mesmo assim, não podia mostrar a ira. Começou a rir. — Que líder poderia permitir tal insolência? Afastou-se do parapeito e de Andras, caminhando para o sol quente para se dirigir ao grupo reunido. Quando se posicionou diante deles, uma gota de suor escorria-lhe pela face. Os cientistas pareciam prestes a desmaiar. A maioria vinha de climas mais frios na América, Europa, Japão. Percebendo a sua fraqueza, tirou os óculos. Queria que vissem a sua força e o fogo no olhar. — Bem-vindos a África — disse. — Todos são pessoas inteligentes e, por isso, dispensarei jogos e secretismo. Sou Djemma Garand, presidente de Serra Leoa. Trabalharão para mim. — Em quê? — perguntou um dos cientistas. Aparentemente, o calor não tinha conseguido vencê-los a todos. — Serão fornecidas as especificações e os objetivos de um acelerador de partículas que construí — disse Djemma. — Terão uma única função: torná-lo mais poderoso. Serão pagos pelo seu trabalho, obviamente. Tal como fui pago outrora pelo meu trabalho nas minas. Pelo seu esforço, receberão três dólares por dia. À sua direita, ouviu o grunhido trocista de um dos cientistas, um homem com cabelo grisalho curto e dentes irregulares. — Não trabalho para si — disse. — Por três dólares por dia ou por três milhões. Djemma não respondeu imediatamente. Um americano, claro. Nenhum povo no mundo estaria menos habituado à impotência do que os americanos. — Terão essa opção, claro — disse, olhando para Andras. Andras avançou e golpeou o estômago do homem com a coronha de uma espingarda. O cientista tombou sobre o convés, foi arrastado para o limite da plataforma e sumariamente lançado ao mar. O seu grito ecoou enquanto caía e parou abruptamente. A água ficava seis metros abaixo. — Verifica como está — disse Djemma. — Se tiver sobrevivido, renova a nossa oferta de emprego. Andras gesticulou a dois dos seus homens, que se apressaram para a escada.


Entretanto, os cientistas restantes olhavam para o limite da plataforma de onde o seu colega acabara de ser atirado. Alguns cobriram a boca com a mão. Um deles caiu de joelhos. — Entretanto — continuou Djemma, bastante agradado por alguém ter sido estúpido ao ponto de resistir logo no início —, explicarei o nosso programa de incentivos. Estou certo de que o considerarão bastante generoso. Serão divididos em quatro grupos e trabalharão a mesma informação. O grupo que obtiver a melhor resposta, a melhor forma de aumentar a potência do meu sistema, sobreviverá. Todos os olhares se voltaram para ele. — Um membro de cada um dos grupos restantes morrerá — concluiu. Com isto, os homens de Djemma avançaram e começaram a separá-los. — Mais uma coisa — acrescentou Djemma, elevando suficientemente a voz para travar os procedimentos. — Terão setenta e duas horas para apresentar a primeira proposta. Se não obtiver uma resposta satisfatória nesse prazo, um membro de cada grupo morrerá e começaremos do início. Enquanto os trinta e dois membros sobreviventes daquela comunidade científica internacional eram separados e empurrados para os elevadores que aguardavam no centro da plataforma, Djemma Garand sorriu. Via o choque e o medo nas suas expressões. Sabia que a maioria, ou mesmo todos, obedeceria. Virou-se para Andras e para outro africano fardado, um general das suas forças armadas. — Vão para o Onyx — ordenou. — Coloquem-no na posição adequada. Andras acenou afirmativamente e afastou-se. O general deu um passo em frente. — Chegou o momento, velho amigo — disse-lhe Djemma. — Podes começar a reclamar o que é nosso por direito. O general bateu continência e partiu.


39. Washington, DC, 27 de junho

Kurt Austin saiu do elevador no décimo primeiro piso do edifício da NUMA na margem do Rio Potomac em Washington, DC. Movia-se lentamente, com o corpo dorido e o ego abalado pela decisão tragicamente errada que os levara à torre rochosa no meio da noite. Caminhava com dores visíveis. A pele da cara e dos braços caía-lhe das queimaduras provocadas pelo contato prolongado com a água salgada e pelas oito horas passadas sob um sol inclemente, esperando salvamento. Doíam-lhe as costelas do ataque com o cano metálico e uma maçã do rosto, a cana do nariz e os lábios apresentavam crostas nos locais onde Andras e os seus gorilas o tinham esmurrado e ferido a pele. Como se não bastasse tudo isso, seguiram-se horas sentado na minúscula sala de reuniões do Argo, respondendo a questões das autoridades portuguesas e espanholas juntamente com Joe e o capitão Haynes e um voo de catorze horas de Santa Maria para Lisboa e de Lisboa para DC. O mínimo que alguém poderia ter feito seria marcar as passagens na classe executiva. Lutando contra o jet lag, a exaustão e o orgulho ferido, Kurt arrastava-se para outra sala de reuniões, onde, juntamente com Joe, discutiriam com Dirk Pitt e oficiais da Marinha dos Estados Unidos e da ASN coisas que já tinham explicado meia dúzia de vezes. Enquanto isso, o rastro que Andras tivesse deixado esfriava. Aproximava-se do fundo do corredor e, apesar da dor e da fadiga, avistou um motivo para sorrir e seguir em frente. À porta da sala de reuniões, viu Gamay Trout. Perturbou-o que estivesse sozinha. Abraçaram-se e conseguiu sentir que lhe faltava uma grande parte da habitual confiança. — Não estás com grande aspecto, Kurt. Como te sentes? — Nunca me senti melhor — respondeu. Viu-lhe um sorriso. — O Paul? — Continua inconsciente — conseguiu responder. — Sinto muito. — O ECG apresenta melhoras e uma TAC não revelou danos, mas tenho medo, Kurt.


— Voltará — disse Kurt, esperançoso. — Afinal, olha o que tem à sua espera. Ela tentou sorrir novamente antes de levar a mão à porta, abrindo-a. Kurt a seguiu e se sentou a seu lado, adotando postura protetora. Joe chegou um momento depois e sentou-se do outro lado de Gamay. Dirk Pitt, Hiram Yaeger e alguns oficiais da Marinha estavam no fim da mesa. Na extremidade, um homem de terno da NSA1 ocupava posição de destaque. Dirk Pitt ergueu-se e explicou: — Sei que todos passaram por muito, mas estamos aqui porque a situação se agravou consideravelmente. Indicou o homem de terno. — Este é Cameron Brinks da NSA. Ele e o contra-almirante Farnsworth encabeçam a resposta ao que acreditamos ser uma ameaça muito real à paz internacional. Cameron Brinks levantou. — Devemos agradecer por descobrirem esta ameaça e por nos alertarem. Como sucederá convosco, também acreditamos que um grupo bem financiado ou mesmo com patrocínio de um governo terá desenvolvido uma arma de energia dirigida de incrível potência. Se as extrapolações a partir destes dados estiverem corretas, a arma poderá conseguir minar o equilíbrio sociomilitar global presente. Kurt não sabia ao certo o que significaria a expressão “equilíbrio sociomilitar”, mas parecia-lhe um conceito inventado por políticos e supôs que Brinks fosse mais um político do que um homem de ação. Isso significava que o discurso seria longo. Perfeito. Brinks prosseguiu. — Depois de consultar o Sr. Yaeger e também de fazermos estudos próprios, concluímos que esta arma usa um sistema de aceleração de partículas semelhante ao que sugerimos anos antes para o escudo antimísseis da Strategic Defense Initiative. Kurt ponderou as suas palavras e permitiu que dispersasse parte do desagrado que sentia. Pelo menos, pareciam compreender a dimensão do perigo em que se encontravam. — Para piorar as coisas — continuou Brinks —, os cientistas sequestrados são precisamente as pessoas necessárias para melhorar o que estes terroristas já possuem. — Faz ideia de quem serão? — perguntou Kurt. Brinks acenou afirmativamente. — Além do indivíduo que identificou, temos duas provas credíveis sugerindo que a sua base de operações se situará em África.


— África? — repetiu Gamay. — Sim, Sra. Trout — replicou Brinks. — Hoje de manhã, recuperamos um cadáver a duas milhas do local onde Kurt e Joe foram salvos. Fez um gesto com a cabeça para um adido, que trouxe fotografias, passando-as a Kurt e Joe. — Reconhecem-no? — perguntou Brinks. A água inchara a face do homem, mas não o suficiente para lhe esconder a identidade. — O guardador das chaves — sussurrou Joe. Kurt acenou com a cabeça. — Este tipo estava com o Andras — disse. — Que lhe aconteceu? — Calibre vinte e dois. Ao estilo do Velho Oeste — explicou Brinks. — Em cheio entre os olhos. Alguma ideia quanto ao motivo? — Estava vivo quando afundamos — disse Kurt. Pousou a fotografia. — Quem é? — Foi identificado como cidadão de Serra Leoa — disse Brinks. — Um antigo major das suas forças armadas. Sabemos que o minério supercondutor foi transferido em Freetown, mas, até agora, pensamos que tivesse sido obra de um grupo de mercenários controlando o porto. O seu amigo Andras poderá ter sido um deles. Kurt não gostava que referissem Andras como seu amigo, mesmo que de forma irônica. Além disso, havia algo estranho naquela avaliação. — A Serra Leoa é um dos países mais pobres do mundo. Mal conseguem alimentar e vestir o seu povo. Diz-me que têm meios para criar um acelerador de partículas usando supercondutores avançados? — Temos o cadáver deste homem para provar que existe uma ligação — disse Brinks, não parecendo particularmente agradado por ter de responder a perguntas. — Temos outras informações sugerindo uma ligação, incluindo movimentações militares estranhas nos últimos tempos. — Que medidas tomaram? — perguntou Kurt, incapaz de aguentar o preâmbulo prolongado. Brinks fixou o olhar nele. — Para começar, reforçamos a vigilância do país em questão. Até agora, não tínhamos grandes motivos para o fazermos. Isso alterou-se. — Que mais? — Acredite ou não — disse Brinks —, continuamos a considerar correto o seu palpite inicial. Não haverá grandes dúvidas de que esta gente operará a partir de um submarino. Mergulhadores portugueses vasculharam a área em redor da torre rochosa e descobriram túneis concebidos para provocar as correntes através de turbinas, aglomerados de baterias e engenhos eletromagnéticos poderosos.


Tudo concebido para criar a aparência de uma anomalia magnética. A construção terá exigido o uso extenso de veículos submersíveis. Kurt sentiu algum agrado, mas, mesmo assim, tinha cometido um erro com custos elevados. — E? — perguntou. — E serão os três integrados numa equipe da Marinha encarregue de descobrir este submarino — disse Brinks. — A Sra. Trout trabalhará com a equipe acústica para tentar apurar o sinal gravado nos registros do sonar aquando do ataque ao Grouper. — E que faremos nós? — perguntou Kurt, começando a irritar-se cada vez mais com o que lhe parecia ser um gigantesco desvio. — Pela sua experiência em operações de resgate e na construção de submersíveis, serão destacados para equipes cujo objetivo será a detecção deste submarino. Kurt não teve a certeza de ter ouvido corretamente. — Detecção? — repetiu. — Pretende vaguear pelo oceano com fones nos ouvidos, tentando captar algo além de gemidos sexuais das baleias? Nem Brinks nem o almirante Farnsworth reagiram. — Estão a brincar? — continuou Kurt. — São quarenta milhões de milhas quadradas de oceano. E isto se aqueles idiotas continuarem a navegar, esperando a captura. O mais provável será que tenham escondido o submarino algures, passando à etapa seguinte do plano. — As nossas equipes antissubmarino são as melhores do mundo, Sr. Austin — disse o almirante. — Sei que sim, almirante, mas que meios poderá dispensar? — Sete fragatas e vinte aviões — respondeu. — Também usaremos a linha SOSUS2, além de outros postos de vigilância no Atlântico Sul. Era melhor do que Kurt esperava, mas não seria suficiente. E, a não ser que lhe escapasse alguma coisa, nem sequer sabiam o que procuravam. — Captamos alguma coisa na SOSUS em algum dos incidentes? — perguntou. — Não — admitiu o almirante. — Nada além dos ruídos da destruição do Kinjara Maru durante o afundamento e das explosões dos torpedos durante o ataque ao Grouper. — Então tudo o que temos é a gravação com interferências feita pelo Matador — disse Kurt. — Tem uma ideia melhor, Sr. Austin? — perguntou Brinks. — Sim — respondeu. — Vou localizar Andras. E, quando o encontrar, isso nos levará a seu empregador.


— A CIA o procura há anos — disse Brinks. — Nunca passa tempo suficiente no mesmo lugar para que se consiga pegá-lo. O que o faz pensar que conseguirá sucesso onde tantos falharam? — Certas pedras não gostam de ser viradas — afirmou, secamente. — Eu não tenho os mesmos pruridos. Brinks uniu os lábios, parecendo desdenhoso. A seguir, virou-se novamente para o diretor da NUMA. — Sr. Pitt, pode fazer alguma coisa? Dirk recostou-se na cadeira, parecendo tão casual quanto conseguiria parecer. — Claro — respondeu a Brinks, antes de se virar para Kurt. — Levas a sério esse plano? — Sim, senhor — respondeu Kurt. — Conheço alguém que o Andras usava como contato há anos. Acredito que ainda esteja na ativa. — Então por que perdes tempo conosco? Começa a andar. Kurt sorriu e levantou. — Sim, senhor — disse. — Isto é ridículo — considerou Brinks. — E leva o Joe contigo — acrescentou Pitt. — Se quiser ir. — Até que enfim — disse este. Brinks cerrou os dentes e debruçou-se sobre a mesa, fitando Dirk Pitt. — Um telefonema e anulo a sua ordem — disse. — Não — respondeu Pitt, confiante. — Por um lado, o Kurt tem razão. Enfiá-lo com o Joe num contratorpedeiro seria um desperdício de recursos. Por outro lado, colocaria todos os nossos ovos no mesmo cesto. O cesto dele. E percebo, depois de tanto tempo em Washington, que seria parcialmente essa a intenção. Ficaria com os créditos se tivéssemos sucesso e culparia a NUMA se falhasse. Matemática simples. Mas esquece uma variável muito importante: não trabalho para você e estes homens também não. E todos os raios me partam se permitirei que coloque o país ou a comunidade marítima em risco por sua agenda política pessoal. Brinks parecia um homem chifrado numa corrida de touros. Até o almirante Farnsworth parecia feliz com o resultado, sem dúvida pensando para que precisaria de civis da NUMA em seus navios. O almirante riu e olhou para Gamay. — Seria útil mesmo assim, Sra. Trout. Nossos técnicos de sonar são muito amistosos. — Darei meu melhor para ajudar — disse. Kurt se aproximou da porta.


— Mais uma coisa — disse Dirk. Kurt olhou para trás. — Fica no rumo certo. Isto é uma missão — recordou —, não uma retaliação. Kurt compreendeu a preocupação de Dirk. Sentia o conflito dentro de si e, sem dúvida, era fácil de perceber por alguém como Dirk Pitt. Acenou com a cabeça, olhou para Brinks e continuou para a porta. Abriu-a e deparou-se com uma assistente administrativa da NUMA, uma jovem que não conhecia. — Tudo bem? — perguntou Kurt. A jovem acenou afirmativamente. — Tenho notícias para a Sra. Trout. Kurt abriu mais a porta e deixou-a entrar. — Paul acordou — disse. — Pergunta por ti.

________________ 1 National Security Agency, Agência de Segurança Nacional. (N. do T.) 2 Sound Surveillance System, em inglê. Sistema de Vigilância Sônica, cadeia de postos de escuta submarinos em linha que vai da Groenlândia ao Reino Unido.


40. Freetown, Serra Leoa, 28 de junho

Djemma Garand erguia-se com imponência no posto do comandante sobre a torre de um velho tanque de fabricação russa. A sua nação possuía apenas quarenta e, planejando impor o seu plano de nacionalização ao mundo, pretendia demonstrar a sua força da forma mais pública que fosse possível. Enquanto unidades de Infantaria apoiadas por helicópteros e milícias populares se apoderavam das minas no interior do país, Djemma e vinte dos seus tanques preciosos avançavam sobre a baixa da cidade. Moviam-se numa coluna longa, flanqueados por lança-mísseis, jipes e transportes blindados. Fluíam para o centro da cidade ao som de gritos de júbilo. Milhares de civis tinham saído por sua própria vontade depois de ouvirem Djemma prometer melhores empregos e salários mais altos assim que a nacionalização estivesse completada. Outros milhares tinham sido motivados a ladear o cortejo triunfal por sugestões subtis dos seus serviços de segurança. Enquanto o trem militar passava, o júbilo parecia genuíno e Djemma orgulhava-se do que fazia. As suas forças dirigiam-se para o porto num gesto simbólico. Já o controlavam, tal como controlavam a grande refinaria alguns quilômetros para norte, o aeroporto e as poucas fábricas situadas em solo de Serra Leoa. Viajando a seu lado, um repórter e um operador de câmera escolhidos a dedo registravam o evento. — Presidente Garand — disse o repórter, quase precisando de gritar para ser ouvido sobre o rugido trovejante do motor do tanque e sobre o ruído das lagartas metálicas. — Sei que informou o FMI de que a Serra Leoa deixará de fazer pagamentos relativos à sua bolsa de empréstimos. Esta informação está correta? — Sim — respondeu Djemma. — Estamos cansados de trabalhar como escravos para pagar juros. — E essa opção está relacionada com as ações do dia de hoje? — perguntou o repórter, seguindo o guião previamente acordado. — Hoje é um dia de libertação — disse Djemma. — Outrora nos libertamos do colonialismo. Hoje, de um tipo diferente de opressão. A opressão econômica. O repórter acenou afirmativamente.


— Preocupa-o que possam existir represálias? — perguntou. — Certamente o mundo não tolerará que viole os direitos de propriedade de dúzias de empresas multinacionais. — Obedeço apenas ao princípio do olho por olho, dente por dente — respondeu Djemma. — Durante séculos, violaram os direitos de propriedade do meu povo. Vieram ao nosso país e roubaram-nos pedras e metais preciosos e outros tesouros, dando-nos apenas dor em troca. Um cozinheiro no refeitório dos executivos de uma dessas empresas ganha vinte vezes mais do que um mineiro que enfrenta o calor e o perigo, arriscando a vida todos os dias. Para não referir o executivo que trabalha menos do que o cozinheiro. Djemma riu enquanto falava. Um pouco de boa disposição conseguiria chegar muito longe. — Mas as minas, a refinaria, as infraestruturas, essas coisas custaram milhões de dólares em investimento — disse o repórter. — E o meu povo já as pagou — disse Djemma. — Com o seu sangue. Os tanques seguiram caminho, dirigindo-se para as gruas do porto. Uma pequena nuvem de fumaça negra erguia-se no céu a oeste. Não havia dúvida de que seria um incêndio, mas Djemma duvidou que encontrassem resistência real. Talvez alguém tivesse feito alguma coisa tola. Ou talvez a fumaça negra não tivesse qualquer relação com os acontecimentos. Um carro ou camião em chamas ou um acidente industrial. Não importava. Enriquecia o efeito visual. — Filma a fumaça — disse ao operador de câmera. — Que saibam que não brincamos. O operador de câmera virou-se e aumentou o zoom, conseguindo um plano mais aproximado da nuvem. Aquela imagem e todo o vídeo de Djemma no tanque seriam repetidos até a exaustão na CNN, na FOX e na BBC. Dali a vinte e quatro horas, pessoas em todo o mundo saberiam o seu nome e conheceriam um país de que a maioria nunca ouvira falar. Quando acontecesse, Djemma teria a maioria dos estrangeiros localizados e enfiados em voos de volta aos países respectivos. A comunidade internacional protestaria e congelaria os quase inexistentes bens de Serra Leoa no exterior do país. Exigiriam explicações, que facultaria de bom grado, uma e outra vez se fosse necessário. Na sua cabeça, as suas ações eram legítimas. Que motivo poderia existir para não falar delas? Depois, viriam até ele com as suas exigências. As negociações começariam e se esforçariam muito para não oferecer nada em primeiro lugar, para que não parecesse que cediam. Mas importaria pouco porque não pretendia ceder.


Ficariam irritados, bateriam na mesa, diriam palavras iradas e fariam ameaças. Seria esse o momento crucial. Porque, com os países do mundo finalmente interessados nele, Djemma não cederia e, ao invés, exigiria ainda mais. Conhecia os riscos. Mas, pela primeira vez em dois mil anos, um general africano tinha na sua posse uma arma capaz de derrubar um império.


41. Paul Trout estava sentado em sua cama de hospital. Sua mulher estava ao lado. Abraçara-o, beijara-o e apertara sua mão sem parar durante uma hora. Apesar de todas as dores, gostava que ela o fizesse. As costas díam. Doía a cabeça e os pensamentos surgiam devagar, como se tivesse tomado uma superdose de medicamentos ou tivesse bebido vinho demais. Mesmo assim, sentia-se surpreendentemente bem, considerando o que Gamay contava. — Não lembro nada disso — disse, depois de ouvi-la explicar a fuga do Grouper e contar que ele passaou os quatro dias anteriores em coma. — De que se lembra? — perguntou. Paul procurou alguma coisa na escuridão que toldava sua mente. Desde que acordara, tinham-lhe surgido pensamentos aleatórios. Como um computador reiniciando depois de um encerramento inesperado, era como se sua mente reorganizasse as coisas. O cheiro de comida do refeitório invocou um pensamento estranho. — Lembro daquele Dia de Ação de Graças em Santa Fé quando queimaste o peru e admitiste que eu tinha razão quando sugeri como assá-lo. — O quê? — disse ela, rindo-se. — É disso que lembras? — Bom... — começou ele. — Ter razão numa coisa e ver-te admitir no mesmo dia é uma experiência bem rara. Gamay uniu os lábios. — Ouvi dizer que pessoas com traumatismo na cabeça podem acordar com novos talentos que nunca tiveram. Não aconteceu contigo, meu amor. Nunca foste um comediante e continuas não sendo. Ela o fez rir. Sentia que pensava com maior clareza a cada segundo que passava. — Lembro do sol refletido no mar — disse. — E de nos prepararmos para mergulhar no Grouper. E de pensar que não devíamos ir os dois juntos. Tinham conseguido conjugar esforços com perfeição e quase conseguiram trazer o submersível de volta à superfície. Paul não se lembrava, mas Gamay acreditava que podia ter morrido se ele não estivesse lá. — O que fazemos agora? — perguntou. Informou-o dos detalhes, terminando com a próxima missão. — Amanhã a esta hora estarei num avião a caminho de uma fragata de combate a submarinos no Atlântico. Vamos analisar os registros do sonar.


Paul a fitou. Compreendia o peso do dever e não pretendia interferir. Mas não conseguia se libertar da sensação intensa de quase tê-la perdido, mesmo que não lembrasse de tudo. Afastou o lençol. — Vou contigo — disse, movendo uma perna para fora da cama. Gamay pôs a mão em cima dele. — Paul. — Estou bem — insistiu. — Foi o médico que disse. Além disso, tenho muito mais experiência com sonares do que tu. Mais especificamente, com a unidade GEO do Matador. Percebia que ela se opunha e que estava preocupada. Depois do que acontecera, quem não estaria? Mas não pretendia ficar para trás. Forçou-se a sair da cama e ergueu-se de forma algo instável. Era tão alto que a bata do hospital parecia nele uma minissaia. — Não fazem em tamanho longo? — perguntou. Gamay continuou amuada. — Estaremos num navio de guerra — disse Paul. — Casco blindado, mísseis, canhões, torpedos. Não podíamos estar mais seguros. Ela sacudiu a cabeça e expirou ruidosamente. — Está bem — disse. — Seja como for, nunca consegui te demover de fazer o que não devias. Paul riu, pressionou a campainha que chamava uma enfermeira e começou a procurar um roupão ou alguma coisa para se cobrir. — Há uma coisa — disse Gamay, com seriedade. Paul se virou. — Não quero mergulhar — disse ela. Paul inclinou a cabeça. — O quê? — Não volto para a água — explicou. — Num submersível, num traje de mergulho ou de outra forma qualquer. Não estou preparada para isso. Desde que a conhecia, Gamay nunca tivera medo de nada, mas o medo era nítido na sua voz naquele momento. — Não te lembras — disse-lhe ela. — De alguma forma, acho que tens sorte nesse aspecto. Foi horrível. — Ficaremos no convés — garantiu Paul. — Ou na nossa cabine com ar condicionado. Se possível, perto do refeitório e da máquina de sorvete. Sorriu, esperando extrair dela um sorriso também, mas não aconteceu e Paul começou a se preocupar com ela como nunca antes.


42. Cingapura, Malásia, 30 de junho

Vinte e oito horas depois de serem libertados das garras da NSA, Kurt e Joe aterrissaram em Singapura. Embarcaram em Dulles, pagaram de bom grado o preço elevado dos bilhetes de primeira classe e voaram literalmente até o outro lado do mundo. Foram ao hotel para desfazer as malas e, depois de uma chamada a um velho amigo que os ajudara anos antes, Kurt não podia fazer nada além de dormir um pouco. Percebeu que estava demasiado cansado para se levantar do sofá e adormeceu ali mesmo. A sesta de duas horas terminou quando o telefone tocou na escuridão. Acordando sobressaltado como se tivesse levado um choque elétrico, correu para o telefone. Ergueu o fone enquanto se levantava do sofá, no momento exato para impedir a ativação do atendedor automático. — White Rajah — disse uma voz que não reconheceu. — O quê? — perguntou Kurt. — Falo com Kurt Austin? — Sim. — Me disseram que ligasse — disse a voz. — E que explicasse onde encontrar o que procura. No White Rajah. — Espere — disse Kurt. — O que é o...? A chamada terminou e ouviu apenas o tom da linha. Recolocou o fone sobre o suporte e encostou-se ao sofá. — Onde estou? — murmurou para si próprio. Lembrou-se do voo, da mudança de aviões em Los Angeles e da segunda etapa da viagem. Lembrou-se de fazer o check-in no hotel. — Ah sim — disse. — Singapura. Olhou em redor. O quarto estava completamente escuro. A única luz provinha do despertador entre as camas. Marcava 7h17pm. Sentiu como se fossem três da manhã. Endireitou-se com dificuldade e foi bater à porta do quarto ao lado. — Levante-se — resmungou para Joe. — Temos coisas para fazer. A porta abriu segundos depois. Joe estava barbeado, com gel no cabelo e vestindo uma camisa Armani com calças de linho branco. Kurt olhou-o,


incrédulo. — Não dormes? — A noite chama por mim — disse Joe, sorrindo. — Quem sou eu para lhe dizer que não? — Sim. Bom, também houve alguém a ligar-me — disse Kurt. — Enquanto tomo banho, vê se descobres o que é o White Rajah. Suponho que será um hotel, um bar ou uma rua. — É para lá que vamos? Kurt acenou afirmativamente. — Alguém se encontrará conosco lá — explicou. — Quem? — É essa a questão — disse Kurt. — Não faço ideia. Quarenta minutos mais tarde, parecendo refrescado e uma versão mais conservadora de Joe, Kurt Austin penetrou no interior aprazível do White Rajah, um restaurante e bar que, outrora, fora um clube exclusivo para cavalheiros na era vitoriana, quando os ingleses exerciam influência substancial na ilha malaia. Kurt deambulou por várias salas grandes revestidas com belos painéis de mogno esculpido, com claraboias compostas por blocos de vidro soprado artesanalmente e cadeiras e sofás de estofo exagerado que pareciam ter sido ocupadas por Churchill em pessoa. Em vez de torneios de bridge entre membros aposentados da Companhia Britânica das Índias Orientais e capitães da indústria fumando cachimbos e charutos grossos, viu a juventude abonada de Singapura jantando ostras regadas com bebidas caras. Uma contagem informal permitiu-lhe saber que a clientela se dividia mais ou menos a meio entre dois grupos. Metade seriam ocidentais ali residentes e os restantes gente local ou homens de negócios asiáticos de visita. Regressando à primeira sala, ocupou um banco junto ao bar principal, que parecia construído com uma placa fina de alabastro iluminado por baixo. Parecia quase âmbar fluorescente. — Posso lhe trazer alguma coisa? — perguntou prontamente um barman. Joe sorriu. Kurt sabia que já estivera em Singapura. — Tomo um Tiger — disse. — Excelente escolha — considerou o barman. A seguir, voltou-se para Kurt. — E o senhor? Kurt continuava a olhar em redor, procurando caras que reconhecesse, incluindo a cara do contato a que ligara depois de aterrissar. Ninguém lhe parecia familiar. — Vai querer? — Café — disse Kurt. — Sem açúcar.


O homem acenou afirmativamente e afastou-se para satisfazer os pedidos. Acima deles, luzes azuis faiscavam sobre os blocos de vidro da claraboia. Seriam relâmpagos tropicais à distância ou uma tempestade em aproximação. — Nem sequer sei que dia é — disse Kurt. — Mal sei em que planeta estamos. Joe riu. — Não me culpe se passar a noite em claro. — De alguma forma — começou Kurt —, sinto que vou passar. Observou a parede atrás do bar. Uma tela de quase dois metros representando um inglês de porte impressionante com traje colonial ocupava uma posição de destaque. — Sir James Brooke — disse Kurt, lendo a inscrição na placa de latão ao fundo. O barman voltou com as bebidas e notou o seu interesse. — O Rajá Branco — disse. — Ah sim? — Reprimiu a rebelião contra o sultão do Brunei em 1841 e foi-lhe concedido o título de rajá de Sarawak. Ele e a família governaram um pequeno império na área a que hoje chamamos Kuching durante cerca de um século até a invasão japonesa em 1941. — Mas Sarawak fica do outro lado do estreito — disse Kurt, sabendo que Sarawak e Kuching se situavam na ilha vizinha, o Bornéu. — Sim — confirmou o barman. — Mas, quando a guerra terminou, a família devolveu o território ao império britânico. Este clube foi rebatizado em sua honra. Enquanto o barman voltava a afastar-se, Kurt bebeu um gole do café rico e intenso. Mais um passo no caminho para se sentir novamente como ele próprio. Joe olhou-o. — Que fazemos nós em Singapura? — perguntou. — Além de recebermos uma lição de História? Kurt começou a explicação. — Há doze anos, fiz aqui um trabalho de resgate — disse. — Um dos meus últimos trabalhos para a empresa antes de ingressar na NUMA. Joe inclinou a cabeça. — Nunca ouvi essa história. — É provável que continue a ser confidencial — explicou Kurt. — Mas, como se tornou relevante, resumo-te o essencial. Joe aproximou mais a cadeira e olhou em redor como se procurasse espiões. Kurt riu.


— Um avião de espionagem E-6B teve problemas e despencou no Mar da China Meridional — começou. — Era um protótipo. Continha todo tipo de equipamento que não queríamos que o outro lado descobrisse. E o outro lado incluía a China, a Rússia e a Coreia do Norte. — Em grande parte, continua a incluir — disse Joe. Kurt acenou com a cabeça. — O piloto usava um novo radar de varrimento lateral e permanecia junto ao limite do espaço aéreo chinês. Acreditamos que tinha saído do rumo e atravessado a fronteira. — Ah — exclamou Joe. — Percebo que seria problemático. — Conheces as regras dos resgates — disse Kurt. — Em mar aberto, a descoberta pertence a quem a faz, mas, se o avião estivesse um metro dentro das águas territoriais chinesas e o descobrissem, colocariam metade da frota por cima e alvejariam quem se aproximasse a menos de dez milhas. Mesmo que não fosse descoberto, sabíamos que o procurariam. — Sim — disse Joe. — Uma oportunidade única. — Precisamente — concordou Kurt. — Por isso, inventamos uma história dizendo que tínhamos resgatado o piloto e recuperado os destroços. Até simulamos num vídeo a retirada do mar do piloto e de seções de uma asa para bordo de um barco. Entretanto, a minha equipe e eu reuníamos um grupo de locais que poderiam procurar os destroços e resgatá-los sem levantar suspeitas aos chineses. O tipo que ajudou a preparar tudo foi um contato da CIA conhecido como Mr. Ion. É um operacional meio americano, meio malaio. Conhece todo mundo e sabia como conseguir quase tudo. Ainda consegue, pelo que ouço. Mas move-se em terreno incerto. Normalmente, pode-se confiar que fará o que promete e que guardará segredo, mas não se pode esperar que não trabalhe para o inimigo quando terminarmos. Seja como for, ajudou-nos a construir a equipe, incluindo um tipo que esteve conosco desde o primeiro dia. O Andras. — Era problemático? — perguntou Joe, bebendo um gole de cerveja. — Não até o fim — disse Kurt. — Aliás, conseguiu encontrar um traidor ligado ao serviço secreto chinês. Mas, depois de prepararmos a estrutura de resgate e de estarmos prestes a avançar, pegamos mau tempo. Três dias de espera deixaram-me nervoso. Estávamos demasiado próximos da meta para parar daquela forma. Decidi que ergueríamos os destroços do avião mesmo com mau tempo. Preparei a equipe, mas não consegui encontrar Andras. — O que aconteceu? Kurt levou a xícara de café à boca. — Fomos para o local e o avião tinha desaparecido. Disse-se que o Andras


tinha sido comprado pelos russos. Começavam a apaixonar-se pelo capitalismo e uma coisa que vendiam com grande saída eram os MIG. Com a navegação e a tecnologia no nosso avião, poderiam saltar uma geração do dia para a noite. — Então esse tipo já era uma víbora nessa altura — disse Joe. Kurt acenou com a cabeça. — O que fizeram? — No meu primeiro mergulho para chegar ao avião afundado, tinha colocado vinte quilos de explosivos. Tinha ordens para explodir o avião se não conseguíssemos trazê-lo para a superfície, evitando que caísse nas mãos dos chineses. Os explosivos continuavam no avião e esperavam o sinal de detonação. Liguei-me ao satélite e detonei-os. Sobre a Kamchatka, um avião russo explodiu. Os pobres coitados que o pilotavam nem saberiam que carga transportavam. Joe sacudiu a cabeça lentamente. — Uma situação complicada. — Sim — concordou Kurt, sentindo uma pontada de remorso pela pobre tripulação, mesmo após tanto tempo. — Esta também. E, desta vez, se alguém sofrer, pretendo certificar-me de que será o Andras. Joe olhou em redor. — Estou contigo. Achas que o encontraremos aqui? — A ele não — respondeu Kurt. — Mas encontraremos alguém que saberá onde encontrá-lo. Tomou outro gole de café. Na sua forma de ver as coisas, Andras vencera-o duas vezes. Não havia dúvidas de que o homem fora pago quando entregou o E-6B aos russos. A explosão seria um problema deles. E, a confiar na história, seria provável que já contasse o dinheiro por entregar os cientistas sequestrados a quem tivesse encomendado o sequestro. Ou então... Kurt olhou para o retrato a óleo do Rajá Branco. Recordou que Andras insistira que seria um rei quando tudo terminasse. Pensou no que planejaria. Terminou o café e pediu outro com um gesto. Enquanto o barman lhe enchia a xícara, voltou-se para observar a sala. Presumira que quem os tivesse contactado conseguiria encontrá-lo e proporia algum acordo em troca das informações que procurava. Mas, até ali, ninguém se aproximara, não lhe tinha sido entregue qualquer mensagem, nenhum empregado ou barman sugerira que havia alguém que queria vê-los. À volta, os clientes jantavam, faziam brindes e clarões azulados esporádicos viam-se pela claraboia no alto, mas não acontecia nada de extraordinário. Era estranho. Em várias ocasiões no seu passado, Kurt acreditara que um sexto sentido lhe dizia que era vigiado. Não sentia o mesmo ali. Era mais como


se tivessem sido empurrados para o lado, ficando ali a apodrecer, como um vagão sendo corroído pela ferrugem entre erva pela cintura. Começou a questionar a validade da informação que lhe fora dada. E, então, as portas duplas à sua frente abriram, permitindo a entrada de um trio de homens. Dois guarda-costas enormes. Com caras morenas e maxilares quadrados, pareciam mais samoanos do que malaios. À sua frente, vinha um homem mais pequeno, com aparência americana, mas incluindo alguns traços malaios. Tinha olhos de linhas suaves e pele relativamente suave. Cabelo escuro e curto espetado coberto de gel erguia-se sobre a cabeça redonda e grande. Parecia demasiado grande para o corpo pequeno. Um indício muito ligeiro de grisalho coloria-lhe as têmporas. Pela roupa e pela postura casual, talvez conseguisse parecer ter entre trinta e cinco e quarenta anos, mas Kurt sabia que era mais velho. Aproximava-se dos cinquenta. — Ion — disse Kurt, pondo-se em pé. O homem voltou-se ao ouvir a sua voz. Fixou o olhar em Kurt, posicionado entre os dois guarda-costas. Demorou alguns segundos a reconhecê-lo e sorriu. O sorriso era falso e forçado e desapareceu quase tão rapidamente como surgira. Um sinal que poderia significar apenas uma coisa: perigo.


43. No interior requintado do White Rajah, o homem que chamavam de Ion recuou um passo. A sua nova posição colocou-o mais ainda entre os dois guardacostas, que retesaram os músculos e fixaram os olhares intensos em Kurt. Enquanto Kurt os estudava, conseguia ver apenas uma dupla de luta livre preparando-se para avançar sobre ele e sobre Joe se fizessem algum movimento em falso. Sentindo-se seguro, Ion falou: — Os padrões devem ter baixado muito para deixarem entrar alguém como tu aqui, Austin. Vou queixar-me à gerência. — Não será necessário — disse Kurt. — Dá-me a informação que procuro e parto como o vento. — A informação tem preço — disse Ion. — Com a inflação como está, o preço sobe todos os dias. Mas diz-me, o que procuras? E quanto estás disposto a pagar? — Tens uma dívida por saldar — recordou Kurt. — O que procuro será pagamento suficiente. — Não te devo nada — insistiu Ion. Kurt já esperava que ele dissesse isso. — Nesse caso, ofereço-te a possibilidade de manteres a tua reputação. Podes decidir sozinho o que valerá. — A minha reputação? — repetiu Ion. — Que dizes, Austin? E despachate. Tenho uma reserva. Kurt encheu o peito, mas não fez qualquer outro movimento. — Explicarei as consequências depois de varrer o chão com os teus guardacostas e de arrancar a informação dessa cabeça de ovo gigante à pancada. — Indicou o resto da sala com a mão. — Posso imaginar os estragos para a tua reputação entre esta boa gente. A cara de Ion mostrou a reação exata que Kurt esperara: raiva, mas misturada com um indício de medo e calculismo. Talvez lhe desse ouvidos. Ou talvez... Viu-o encher os pulmões de forma inquieta por alguns segundos, falando com os guarda-costas. — Este homem é uma ameaça — disse. — Lidem com ele. Uma parede de músculo samoano começou a mover-se na direção de Kurt. Um dos homens bateu um punho na palma da mão e o outro girou o pescoço, fazendo-o estalar e sorrindo. Aparentemente, estavam prontos para a batalha. Kurt percebeu a única vantagem que lhe restava. Os dois homens olhavam-


no a ele e a mais ninguém. Ion dissera “este homem é uma ameaça” e não “estes homens...”. Não percebera que Joe, com a sua roupa cara, estava com ele. Levou a mão à xícara de café que tinha atrás. Quando os gorilas ficaram a uma distância de um metro e meio, jogou-a. O líquido quente salpicou a face dos dois. O café não estava suficientemente quente para queimar com gravidade, mas a surpresa e o calor fizeram-nos virar as cabeças para o lado, fechando os olhos com força. Nesse instante, Kurt carregou, baixando o ombro e usando-o para golpear o tronco do primeiro homem imediatamente abaixo do esterno. Sentiu que batia numa árvore. A diferença foi que o homem cambaleou para trás quando Kurt o empurrou, aplicando toda a força das pernas. Era uma rasteira perfeita que teria deixado orgulhoso qualquer linebacker da NFL e que fez os dois homens caírem numa mesa e rolarem para o chão. No preciso instante em que Kurt atacava, Joe também agiu. Pôs-se em pé, segurou um banco de bar e atingiu com ele os ombros do outro guarda-costas. O homem tombou e começou a rastejar para longe com dificuldade. Joe deixou-o ir e virou-se para ver se Kurt precisava de ajuda. Kurt caíra em cima do homem, mas ele não estava vencido. Golpeou Kurt embaixo do queixo. Foi um golpe tremendo, mas Kurt tentou se recompor e bateu com força o cotovelo entre o pescoço e o ombro do homem, atingindo um ponto de pressão. A dor fez o guarda-costas projetar a cabeça para trás, oferecendo um alvo perfeito no maxilar. Kurt aplicou um murro com a direita, com toda a força e a adrenalina do corpo. Atingiu-o em cheio e ele ficou inconsciente. Aconteceu tudo tão depressa que os clientes do restaurante tiveram tempo suficiente apenas para sentirem o choque inicial, afastando-se, horrorizados. Um casal levantou-se da mesa, mas continuou a segurar as bebidas. Não era o tipo de clube que precisasse de seguranças e ninguém apareceu para expulsar Kurt e Joe, apesar de o barman empunhar um taco de basebol. Kurt ergueu-se devagar e os ânimos começaram a serenar. Alguns clientes pareciam desagradados por terem perdido a diversão. Kurt voltou-se novamente para Ion, surpreso por ter corrido tão bem. O olhar de Ion moveu-se de Kurt para Joe e para cada um dos seus homens. A princípio, pareceu horrorizado, mas, logo a seguir, pareceu apenas desiludido. Fixou o olhar em Kurt e encolheu os ombros como se dissesse: “Ups.” Nesse momento, quando Kurt esperava que cedesse e falasse, correu como um gato e saiu pela porta fora. — Bolas — exclamou Kurt. Surpreendido pela fuga de Ion, saltou sobre o samoano inconsciente e


perseguiu-o. Joe vinha imediatamente atrás. — Ali — disse Joe, apontando. Ion estava à sua direita, correndo pela rua fora. Correram atrás dele pelo passeio vazio. Teria esperado que se dirigisse para um carro, mas o mais provável seria que não conduzisse. Os samoanos ocupavam-se disso. E, mesmo que tivesse as chaves, um homem como Ion não estacionava o seu próprio carro. Recorreria a um empregado que o faria por ele. Não querendo ser apanhado e espancado enquanto o rapaz procurasse o seu Maserati ou Mercedes, não teve escolha que não fugir a pé para onde quer que fosse. Kurt não se sentiu incomodado. Apanhar Ion numa corrida a pé não lhe parecia demasiado difícil. Pelo menos, até começar a chover. Por um lado, a chuva desimpedia os passeios dos poucos peões que restavam. Pelo outro, reduzia muito a visibilidade. E, quando Ion virou à direita, saindo do passeio e enfiando-se por um beco, Kurt quase o perdeu de vista. Contornou a curva e viu-o cinquenta metros à frente, passando por baixo do cone de luz de um candeeiro. Correu com Joe enquanto a chuva começava a cair com mais força. — Não acredito que este minorca corra tanto — gritou Kurt. — Deve conhecer bem quem vem atrás dele — replicou Joe. Kurt supôs que a adrenalina também desempenharia o seu papel, mas duvidou que Ion conseguisse manter aquela velocidade durante tanto tempo como ele próprio ou Joe. E todas as voltas dadas em casa, no ginásio e no Argo estariam prestes a ser muito úteis. Ion olhou para trás e virou rapidamente para outro beco. Kurt e Joe mantiveram a perseguição. Enquanto Kurt fazia a curva, Joe escorregou no pavimento molhado e caiu com violência. Deslizou pelo passeio e embateu contra um grande vaso de betão. Voltou a erguer-se de imediato, quase sem perder um passo. Tinha a camisa rasgada e ensanguentada no cotovelo e as calças ficaram esburacadas num joelho, mas continuou a correr. — Lembras do que disse sobre a nossa próxima aventura num lugar seco? — gritou. — Insisto. Kurt tentou não rir. Precisava poupar o fôlego. No fundo do beco, havia uma cerca, que Ion escalou como um acrobata, aterrissando do lado oposto. Kurt foi o primeiro a subir e Joe aterrou a seu lado no segundo seguinte. Chegaram a um parque de algum tipo e a visibilidade tornou-se ainda menor. Havia muitos esconderijos, mas o coelho continuava a correr e, quando Kurt o avistou, pareceu que diminuía a velocidade.


Ion cambaleou e virou para outra rua. Kurt acelerou mais, invocando todas as forças que lhe restavam. Era a sua oportunidade. Mas, quando chegaram à rua, não viram quaisquer sinais de Ion. Kurt derrapou e parou, olhando em redor. — Onde se meteu? — Veio por aqui de certeza — disse Joe. — Vi-o virar. Kurt pestanejou para afastar a chuva dos olhos e olhou novamente em redor. Havia muitos nichos naquela parte da cidade. Eram formados por portas e pelas alcovas onde se aninhavam as pequenas fileiras de lojas. Havia também alguns carros estacionados, resistindo estoicamente à chuva que os atingia e que os fazia brilhar. Apesar do candeeiro em cada extremo da rua, o alcatrão molhado parecia absorver toda a luz. — Aquela ratazana tem de estar escondida por aqui — disse Kurt. — Vai por aquele lado da rua e eu vou por este. Devagar. Está aqui em algum lugar. Joe acenou afirmativamente e atravessou a rua. Enquanto começava a mover-se pelo lado direito, Kurt fez o mesmo pelo lado esquerdo. Espreitou debaixo de carros e dentro deles, mas não viu ninguém escondido por baixo dos veículos ou nos bancos traseiros. As lojas tinham portas em nicho. Kurt verificou cada um, preparado para um ataque de surpresa, mas não encontrou nada. Do outro la lo da rua, Joe sacudiu a cabeça. Um carro passou por eles sob a chuva. Os faróis iluminaram a rua por um momento com claridade cegante. Kurt viu uma mulher no banco do condutor, mas mais ninguém. Vinha de tão longe que Ion teria precisado de um motor a jato para o alcançar e para se esconder no interior. Um novo relâmpago faiscou e, daquela vez, ouviu-se um murmúrio de trovão. A chuva caía com mais força e Kurt abrigou-se na porta atrás dele. Estava preparado para admitir que Ion conseguira escapar quando um novo relâmpago iluminou os céus. Olhando para baixo, viu pegadas molhadas no betão maioritariamente seco do piso. Era óbvio quais eram as suas, mas as outras recuavam em pontos que Kurt não pisara. Permanecendo imóvel, levou a mão atrás. Os seus dedos encontraram a maçaneta da porta e rodearam-na, mas não precisou de a girar. Mesmo com um toque leve, a porta abriu sozinha.


44. Kurt sentiu um arrepio na espinha que não tinha nada a ver com seu estado ensopado. Debruçou-se, contendo a reação. Gesticulou para Joe que se aproximasse. — Encontrou alguma coisa? — perguntou-lhe, um pouco mais alto do que seria necessário. — Nada — respondeu Joe. — Desapareceu. Kurt indicou com a cabeça a porta atrás. Joe olhou-a, vendo que estava ligeiramente aberta. Acenou afirmativamente. Compreendia. — Está bem — disse Kurt. — Vamos embora. Mas, em vez de se afastar, colocou a mão na maçaneta redonda. Respirando fundo, empurrou-a com um movimento do pulso. Ouviu-se um coro de grasnados e um raspar de patas, mas não havia ninguém. Kurt viu uma gaiola cheia de tucanos e outras aves de cores garridas que não reconheceu. Atrás desta, outra gaiola continha uma enorme iguana do tamanho de um cão médio. Depois de as aves acalmarem, algumas penas flutuaram pelo ar. — Lá se vai o elemento surpresa — murmurou Joe. Kurt teve de concordar, mas ver mais pegadas molhadas no chão deu-lhe a certeza de que estavam no rastro de Ion. — Uma loja de animais de algum tipo — disse, apesar de não conseguir imaginar alguém passeando a iguana gigante, que parecia um dinossauro em ponto pequeno. Olhou novamente para a porta. A armação de madeira estava partida e lascada onde fora forçada com um chute. Ion teria empurrado a porta, tentando fechá-la novamente depois de entrar, mas os estragos impediriam que o trinco funcionasse. Olhou para cima. Uma placa dizia: “Raros e Exóticos”. Aparentemente, era a respeito dos animais. Havia dois corredores na loja estreita e longa. Entre estes, erguia-se uma fileira de gaiolas cuidadosamente empilhadas. De cada lado, havia gaiolas maiores, algumas com grades, outras com paredes e portas de plástico transparente. Kurt apontou para a direita e Joe dirigiu-se para esse corredor. Kurt seguiu pelo outro. Enquanto avançava, viu um dragão de komodo dormindo sob uma luz


ténue. Lêmures, macacos e uma preguiça dormiam em grandes jaulas a meio do corredor. Um caracal, um felino selvagem com pelagem acastanhada e orelhas pretas, ocupava a jaula média ao lado destas. Dando passos cuidadosos, Kurt tentava ouvir movimento. Ouvia ruídos, mas pareciam os roncos e os movimentos dos animais, tanto quanto percebia. A seguir, ouviu um clique de metal embatendo contra metal. Seguiu-se silêncio e novo ruído metálico. Ouviu passos logo a seguir, mas de quatro pernas e não de duas. Pararam e Kurt ouviu um rugido baixo. Subitamente, um silvo, o rugido e o alvoroço provocado pela queda de gaiolas. Os macacos acordaram sobressaltados e guincharam enquanto golpeavam as grades da sua jaula. Outro grande gato rugiu. Kurt lançou-se para diante e viu Joe enfiado no espaço estreito entre o topo da jaula dos macacos e o teto. Um leopardo juvenil tentava atingi-lo com a pata, expondo os dentes e com as orelhas esticadas para trás. Kurt segurou o que lhe pareceu ser um recipiente com comida e atirou-o contra o leopardo, atingindo o animal no ombro. Este voltou-se para si, chocado, rosnou novamente e correu na direção oposta em direção à entrada da loja. Kurt seguiu-o com o olhar até se esgueirar pela porta entreaberta. — Lembra-me de ligar para as autoridades de controle animal quando terminarmos — disse, enquanto Joe descia. Antes que Joe pudesse responder, uma sombra moveu-se perto das traseiras da loja. Daquela vez, era uma sombra bípede. Kurt correu nessa direção. Ion chegara à porta dos fundos e puxava-a com toda a sua força, mas a porta de aço estava trancada. E, ao contrário da porta da frente, fora concebida para ser segura e não para ser ornamental. Desistiu de puxar e começou a lançar-se contra ela. Finalmente, voltou-se, fitando Kurt. Desesperado, tentou passar por ele, mas Kurt segurou-o e lançou-o novamente contra a porta. Correu para o outro corredor, viu Joe e parou. Num ato de desespero, empurrou um aquário de uma estante para cima de Kurt. O aquário embateu no chão e explodiu, projetando vidro, água, peixes e uma avalanche de minúsculas pedras azuis sobre o chão. Kurt supôs que, em algum lugar do aquário, haveria piranhas ou outro tipo de peixe tropical, mas não se importou muito com isso naquele momento. Saltou para trás. Evitou o impacto e ergueu o olhar a tempo de ver Ion correndo novamente para a porta da frente. Kurt baixou-se, lançou-se contra o homenzinho esquivo e imobilizou-o no chão. Atordoado e derrotado, Ion ergueu o olhar, rodeado por cascalho azul e peixes saltitando num esforço para escapar da asfixia.


— Poderia ter sido muito mais fácil — disse Kurt, segurando-o pelas lapelas e puxando-o até ficar em pé. — Não te digo nada — disse Ion. — Nem sequer sabes o que quero — replicou Kurt. — Queres o Andras — disse Ion. — Sei que o procuras. Talvez fosse aquele o motivo da sua resistência. — Mata-me se falar contigo — explicou Ion. — Não se o matar a ele primeiro — disse Kurt. — Nunca conseguirás matá-lo — disse Ion. — Tem estado sempre um passo à tua frente. — É melhor que estejas enganado a esse respeito — disse Kurt. — Porque vais dizer onde está. — Qualquer coisa que possas me fazer não será pior do que o que Andras faria — disse Ion. Kurt percebeu que seria provavelmente verdade. Uma desvantagem de ser um ser humano decente implicava que, salvo nas piores circunstâncias, não desceria aos níveis mais sombrios da desumanidade. E isso significava que gente como Ion recearia mais alguém como Andras do que alguém como ele. Olhando para um arranhão que sangrava no braço de Joe que coincidia com a disposição das garras do leopardo, Kurt teve uma ideia repentina. Teria de haver alguma criatura naquela loja de animais “raros e exóticos” que fosse um pouco menos evoluída. Segurou Ion pelo pescoço e arrastrou-o pelo chão. — Onde iremos enfiar-te? — murmurou, parando à frente de cada uma das jaulas. — Os macacos são demasiado espertos para ti. A preguiça talvez te deixasse em mau estado, mas não temos a noite toda. Com Ion a olhá-lo como se tivesse enlouquecido, Kurt arrastrou-o até a jaula do dragão de komodo. O lagarto gigante não movera um músculo apesar do alarido. — Este amigo talvez sirva — disse Kurt, colocando a mão sobre a porta e elevando o trinco. — O quê? — gritou Ion. — Estás doido? Enquanto Kurt abria a porta, a língua do lagarto saiu-lhe da boca e provou o ar. Abriu um olho, mas continuou sem se mover. Ion tentou libertar-se, mas Kurt levou a mão livre a uma coleira na prateleira a seu lado. Tinha uma longa vara presa. Parecia algum dispositivo de controle animal que permitisse empurrar ou puxar o animal conforme fosse necessário, especialmente concebido para manter uma boca perigosa longe de um treinador.


Da sua forma específica, Ion também tinha uma boca perigosa, mas Kurt precisava que a abrisse. Colocou a coleira sobre a cabeça de Ion até chegar ao pescoço e empurrouo para a frente com a vara, pressionando-o contra a porta aberta. — Não sei se será a melhor escolha — disse Joe. Kurt olhou-o. — Falo do dragão — disse Joe. — Não concordas com o dragão? — perguntou Kurt. — Pela dentada — disse Joe. — É venenosa. Mas não como o veneno de uma serpente. Mordem e deixam a vítima morrer. Leva dias. — Hmm... — disse Kurt. — És cheio de surpresas, Joe. Desde quando percebes de lagartos? — Trabalhei num jardim zoológico durante um verão — disse Joe. — Havia uma rapariga envolvida nessa história? — Callie Romano — admitiu Joe. — Claro. Kurt puxou a coleira e Ion foi arrastado pelo chão e quase caiu de cara. Quando Kurt fechou a porta, o dragão-de-komodo fechou o olho e voltou a adormecer. — Então que sugeres? — perguntou Kurt, começando a divertir-se. Joe moveu-se lentamente pelo corredor. — Que tal isto? Parou diante de um dos maiores cubículos da loja. Dois metros e meio de profundidade e um metro e oitenta de largura, com alguma folhagem, um pequeno tanque de água e terra no chão. Havia também uma caixa com uma grelha. Duas grandes ratazanas encolhiam-se no interior. Kurt olhou para o cubículo. A sua primeira impressão foi de que parte de uma árvore se movera ligeiramente. — Píton reticulada — disse Joe, estudando o cartaz colado na porta de plástico transparente. — Caçadoras noturnas. Podem atingir nove metros de comprimento — acrescentou. — Mas esta não passará dos sete. — Constritora — disse Kurt, pensando em voz alta. — Uma cobra de sete metros com cento e vinte quilos. Perfeito. — Não vai me... Antes que Ion conseguisse terminar a frase, Kurt abriu a porta, colocou-o diante da abertura e o empurrou para dentro. Caiu em cheio no tanque de água da cobra. Kurt afrouxou a coleira e puxou-a sobre a cabeça, retirando-a. Joe fechou a porta e trancou. — Esta coisa é muito útil — disse Kurt, olhando para a coleira e pousando-


a. Ion levantou-se e olhou em redor. A cobra começara já se mover. Apenas a cabeça e o pescoço, farejando em redor, ainda nada agressiva, mas parecendo interessada. — Visitei alguns jardins zoológicos — disse Kurt. — Nunca tinha visto uma coisa destas se mexer. — Sim — disse Joe. — As pítons dos jardins zoológicos são alimentadas com frequência e ficam tão gordas que não fazem grande coisa. Mas essa está magra. Joe apontou. A cobra não parecia propriamente magra para Kurt, mas entrou no jogo. — É verdade. Parece um pouco magra — disse Kurt. — É provável que não coma há meses — disse Joe. Ion começara a se aproximar da porta. — Por que a fariam passar fome? — perguntou Kurt. — Os donos dessas lojas vendem a colecionadores ricos que querem ver as cobras em ação, esmagando um animal e comendo — disse Joe. — Mantêm-nas famintas até terem um comprador. É por isso as ratazanas estão ali. Kurt não sabia se Joe falava sério ou se apenas inventava aquilo, mas era um número muito convincente. A cobra também colaborava, deslizando do fundo do cubículo e começando a se alongar. Ion encostou-se na porta. — Deixe-me sair, Austin. Kurt o ignorou enquanto olhava para um cartaz que descrevia a píton. Olhou para Joe. — Diz aqui que estas coisas conseguem comer uma cabra. — Sim, claro — disse Joe. Kurt olhou para o homem no interior. — Não é muito maior do que uma cabra. Conseguirá engoli-lo? — Não sei — respondeu Joe. — Tem uma cabeça grande. Kurt se virou. — É verdade, é cabeçudo. O pescoço deve cansar de suportar aquele peso todo. Ion pareceu querer falar, mas não o fez. A cobra se aproximara dele e tocara de leve sua coxa com a língua. Kurt pensou se o morderia primeiro ou se começaria simplesmente a se enrolar em volta dele. Antes que pudesse fazer uma coisa ou outra, decidiu conceder a Ion outra chance.


— Quer falar do Andras? — perguntou. O tom jocoso de sua voz desaparecera. — Não posso — sussurrou Ion. — Quando a cobra se enrolar, não vou poder fazer nada além de sair e fechar a porta atrás de mim — explicou Kurt. — Melhor falar enquanto não é tarde demais. Ion pressionava-se contra a porta de plástico. Parecia quase não respirar. A cobra deslizou junto às pernas dele e começou a mudar de direção. — Consegue senti-lo? — perguntou Kurt a Joe. — Sim. Com a língua. A cobra começou a se encolher como se estivesse pronta para atacar. Ion pressentiu. Tremia, sem conseguir falar. No momento seguinte, a cobra atacou, derrubando-o e enrolando em volta dele. Kurt não esperara realmente que acontecesse. Ion gritou e se debateu. As duas reações foram um erro, porque gastaram ar e, quando seu peito se encolhia um centímetro, a serpente apertava. — Austin — conseguiu dizer, libertando um braço e segurando o pescoço do animal. — Austin... Não conseguiu dizer mais nada e, obviamente, não falaria se estivesse morto. Kurt decidiu agir e abriu a porta. Colocou a coleira na cabeça da serpente e apertou. Movendo-se para obter apoio, forçou a cabeça a subir, afastando-a de Ion. Puxou com toda força. A força da cobra era inacreditável. Resistiu, torceuse e puxou na direção oposta, sem libertar Ion. — Joe — gritou Kurt. — Uma ajuda do tratador do zoo, por favor? Joe já se aproximara. Agachara-se junto a Ion e segurou a parte média do corpo da cobra, puxando com toda a força. Arqueou as costas e conseguiu algum espaço no anel principal. Magro, molhado e lutando pela vida, Ion conseguiu se libertar, rastejou para fora da jaula e desabou no chão. Joe o seguiu, Kurt libertou a cobra e fechou a porta. Recolocou imediatamente a coleira no pescoço de Ion. O homem nem sequer resistiu. — Onde posso encontrar Andras? — perguntou Kurt. Ion olhou para ele, expressão vencida. — Não o vejo há mais de um ano — disse. — Mentira — disse Kurt. — É a você que recorre quando precisa de trabalho. Sabemos. — Já não precisa de trabalho — disse Ion. — Tem emprego fixo. Há dois anos que não procura nada.


— E, no entanto, viu-o há um ano — disse Kurt, apertando novamente a coleira. — Trate de acertar os detalhes da história. — Vi — admitiu Ion. — Mas não procurava trabalho. Contratava. — Contratava? — Precisava de homens — explicou Ion. — Precisava de caras que entendessem de demolições e navios. Mais do que os que conseguiria reunir sozinho. Kurt pensou no assunto. Pensou no ataque pirata ao Kinjara Maru e na informação de Dirk Pitt acerca do grupo de mercenários que carregara o material supercondutor em Freetown. Parecia -lhe que Andras construíra um pequeno exército. Mas para quê? — Como o encontramos? — perguntou Kurt. — Por e-mail — respondeu Ion. — Quer espancar um servidor em algum escritório? Um dos problemas do mundo moderno: as pessoas podem enviar e receber informação em qualquer lugar a qualquer momento. Os dias de encontros sombrios e entregas anônimas tinham passado quase que por completo. Kurt olhou para Ion. Continuava escondendo alguma coisa. Sabia. — Sabe mais do que fala — disse-lhe. — De outra forma, teria dito isso tudo sem tanto incômodo. Ion não respondeu. — Joe — começou Kurt. — Se não se importa, acho que é hora de novo de refeição. Joe destrancou novamente a porta da cobra. Kurt começou a arrastar Ion para lá. — Espere... espere... — disse. — Fale comigo — disse Kurt. — Ou com a cobra. — Vive no mar — disse Ion. — Andras vive no mar. Não tem casa. Vai de lugar em lugar num navio. É por isso que ninguém consegue encontrá-lo. É por isso que consegue entrar e sair em praticamente qualquer país mesmo que não tenha passaporte ou cidadania conhecida e mesmo que seja procurado em todo o mundo. Vem a terra como parte da tripulação ou escondido entre a carga. Passava a fazer sentido. Sempre que a CIA, o FBI ou a Interpol recebiam informações sobre Andras, parecia desaparecer como um fantasma, voltando a surgir em outro local um mês depois. Era como um jogo internacional de Whack-A-Mole. Mas ninguém conseguia perceber como fazia. Afinal, revelava ser uma versão malévola de João Rodrigues Cabrilho. — Como se chama o seu navio? — perguntou Kurt. — Pode ser qualquer um — disse Ion. Kurt empurrou-o para a porta.


— Juro — disse Ion. — Achas que me diria? Kurt descontraiu. Teve uma ideia melhor. — Quando esteve em Singapura pela última vez? — perguntou. — Quero datas precisas. — Vi-o pela última vez a quatro de fevereiro — respondeu Ion. — Sei porque foi no dia seguinte ao Ano Novo Chinês. É feriado aqui. Kurt sentiu que Ion lhe dizia a verdade. Olhou para Joe, que fechara bem a porta do cubículo da cobra. A pitão voltara ao fundo e, como precaução, enrolouse numa postura defensiva. Largou Ion e ergueu-se sobre ele. — Vamos embora — disse. — Nem penses em avisar o Andras. Se o fizeres, saberei que foste tu. E tens razão. Far-te-á muito pior do que usar-te como alimento de cobra. — Que vais fazer? — perguntou Ion, olhando para cima e esfregando o pescoço no local onde a coleira quase o sufocara. — Já te disse. Vou matá-lo — disse Kurt. — Para teu bem, reza para que consiga.


45. Kurt Austin sentava-se curvado sobre um computador portátil no seu quarto. Juntamente com Joe, tinham conseguido voltar em segurança para o hotel e informaram as autoridades competentes de que tinham avistado um leopardo na zona comercial. Depois, fizeram o que tinha de ser feito. Para Joe, isso implicava um duche quente e o tratamento dos seus ferimentos múltiplos. Para Kurt, significava secar o rosto e o cabelo, vestir roupa seca e ligar para a sede da NUMA. Precisava descarregar informação, incluindo informação a que a NUMA tinha acesso e outra pela qual teriam de suplicar à Interpol, ao FBI e a outros organismos. Felizmente, a NUMA tinha um histórico longo e favorável no relacionamento com estes organismos e existiam favores a cobrar em número suficiente para manterem o saldo positivo. Trabalhava há quase quarenta e cinco minutos quando Joe entrou pela porta do quarto. — Por que demorou tanto? — Tirava cascalho do joelho. Kurt riu. — É o que acontece quando usa sapatos italianos para correr na chuva. — Não sabia que correríamos pela cidade toda — disse Joe. Na verdade, Kurt também não. — Como está o braço? Joe ergueu-o. As marcas de garras tinham sido ligadas, mas as linhas de sangue tornavam-nas perfeitamente visíveis. — Vai dar uma excelente história um dia. Talvez até para a tua antiga namorada no jardim zoológico. Joe não pareceu muito divertido. — Muito engraçado — disse. — Diz-me que a minha camisa Armani preferida não morreu em vão. Kurt virou-se novamente para o computador. — Foi um sacrifício valente, meu amigo. E com resultados. — Maximizou listas paralelas. — À direita, temos avistamentos com confirmação oficial do nosso amigo Andras. Cortesia da Interpol, do FBI e de alguém que Dirk conhece na CIA. Enquanto Joe estudava a lista, Kurt lia-lhe as entradas. — Pyongyang, há dezoito meses. Singapura, cinco semanas mais tarde. Na


data precisa que o Ion nos deu. — Um ponto a favor da intimidação com serpentes — considerou Joe. — Sim — disse Kurt. — É uma nova forma de apertar um suspeito até falar. Joe riu e Kurt prosseguiu. — Depois de Singapura, encontramos o Andras em Kaohsiung, Taiwan. Passa lá vinte e quatro horas antes de desaparecer durante três meses. Segue-se um possível avistamento no Iêmen. Seis semanas depois, temos confirmação da sua presença em Madagáscar. — Madagáscar? Kurt acenou afirmativamente. — Outro possível avistamento na Cidade do Cabo, África do Sul. Madagáscar novamente e depois, há três meses, uma estadia prolongada no Lobito, Angola. Bom... prolongada para os seus padrões. Quatro avistamentos em aproximadamente três semanas antes de desaparecer. Quando voltou a ser localizado, estava a bordo do Kinjara Maru, onde o encontrei. Mas, se a teoria de Dirk estiver certa e fizesse parte da tripulação que carregou o material supercondutor no navio, isso colocá-lo-ia em Freetown, Serra Leoa, há menos de um mês. — Está bem — disse Joe. — Conhecemos o seu percurso. Como descobrimos em que viaja? Pode estar a bordo de um iate preparado para viagens de longo curso, de um cargueiro, de um transportador de resíduos. Talvez o submarino que procuramos lhe pertença. — Não me parece — considerou Kurt. — O meu encontro com ele em Santa Maria ocorreu quase em simultâneo com o ataque ao Paul e à Gamay a oitocentos quilômetros de distância. O submarino que tentam localizar terá de ser comandado por outra pessoa. Mas o rumor que circula sobre Andras diz que ele não confia em ninguém para ter um braço-direito. Trabalha com uma estrutura de comando singular. Ele manda e os outros obedecem. Assim, ninguém ocupará uma posição privilegiada para o desafiar e para lhe roubar o poder. — Parece paranoico — disse Joe. — Completamente — concordou Kurt. — E isso significa que, se tivesse um submarino, não confiaria as chaves a ninguém, sobretudo não a alguém que tivesse encontrado na Loja de Mercenários do Sr. Ion. — Bem visto — disse Joe. — Então é um navio de superfície. Mas haverá dez mil navios capazes de fazer as viagens que tem feito. — Talvez mais ainda — corrigiu Kurt. — Vê as coisas assim. Começando pelos registros do porto de Singapura, conseguiremos limitar substancialmente


essa lista. Se presumirmos que esteve aqui a quatro de fevereiro e que o seu navio estava no porto ou perto dele, poderemos eliminar noventa e oito por cento dos navios na frota mundial. Olhou para as notas. — Durante os dias que o Andras passou aqui, cento e setenta e um navios de longo curso estiveram atracados ou ancorados ao largo e entregaram documentação aos serviços de alfândega. — Não é um número pequeno, Kurt. — Não — concordou Kurt. — Mas, se o cruzarmos com os outros locais em que foi visto e com os navios atracados nesses portos no mesmo período, conseguiremos dados mais concretos. — Suponho que não tenhas registros do Iêmen, de Madagáscar ou de Angola — disse Joe. — Não — respondeu Kurt. — Mas temos imagens captadas por satélite dos portos em praticamente todos os dias do ano, incluindo os dias em que o Andras terá estado presente. — E? — Com a exceção da África do Sul, houve um navio presente ou próximo dos locais onde o nosso amigo Andras esteve durante o último ano e meio. Apenas um. Kurt clicou num nome da lista no lado direito da tela. Abriu uma fotografia de um navio de grandes dimensões com casco pintado de preto, convés principal branco e bandeira liberiana esvoaçando no mastro. — O Onyx — afirmou Kurt, orgulhoso. Joe pareceu impressionado, mas manteve-se cético. De acordo com os dados ao fundo da tela, tratava-se de um superpetroleiro de trezentas mil toneladas. — Estás a dizer-me que este tipo tem fundos suficientes para pagar isto? — Nunca leste Sherlock Holmes? — Vi o filme — disse Joe. — Conta? — Elementar, meu caro Zavala — disse Kurt. — Exclui o impossível e o que restar, por mais improvável, terá de ser a verdade. Este navio esteve presente em todos os portos onde o Andras surgiu durante um ano. Com a exceção da Cidade do Cabo. Mas o avistamento aí é duvidoso. Além disso, o casco é demasiado largo para o Canal do Suez, o que explica o longo percurso à volta de África até Freetown para executarem o seu plano com o Kinjara Maru. Joe começou a parecer convencido. — Por quem foi registrado? — Por uma empresa liberiana de que ninguém ouviu falar — explicou Kurt.


Joe deu um passo atrás, continuando a parecer preocupado. — Digamos ao Dirk e ao Brinks que achamos que este navio poderá ter o nosso suspeito a bordo, encerremos o expediente e vamos pescar. Kurt sacudiu a cabeça. Precisavam de provas inequívocas. E se, por acaso, Andras tivesse os cientistas a bordo, precisavam do elemento surpresa. De outra forma, as pessoas que tentavam salvar, Katarina em particular, correriam maior perigo que nunca. — Quantas vezes a máquina do governo entrou em ação porque um Kurt ou um Joe qualquer pensaram alguma coisa? Joe afastou o olhar. — Não muitas. — Exatamente — disse Kurt. — Precisamos de provas. — Queres subir a bordo deste navio — supôs Joe. Kurt acenou afirmativamente. Joe pareceu resignado a ajudá-lo como era habitual, mas não lhe agradava o rumo dos acontecimentos. — E como pretendes abordar sem ser visto um navio hostil tripulado por terroristas e assassinos que estarão, sem dúvida, à espera de ataques vindos de qualquer direção? Kurt sorriu. Tinha um plano. Poderia ser ainda mais tresloucado do que o anterior, mas esse funcionara. — Da mesma forma que arrancamos os dentes a um tigre — disse. — Com muito cuidado.


46. USS Truxton, 1º de julho

Paul Trout sentava-se com um operador de sonar no conforto de uma sala de controle escurecida e com ar condicionado do USS Truxton. O espaço em redor era ocupado por monitores planos e controles informáticos. Parte assemelhava-se a um estúdio de misturas, o que era apropriado porque os sons gravados eram cortados e colados em segmentos. Uma das dificuldades de obter informação coerente a partir do sinal residia na natureza do sistema de sonar do Matador. Tinha vinte anos e fora concebido para mapear o fundo marinho em varrimentos amplos para auxiliar trabalhos de investigação. No seu modo ativo, uma onda sonora era enviada de um emissor por baixo do Matador, sendo rebatida pelo fundo e captada pelos hidrofones do sistema. No modo passivo, limitava-se a ouvir e captar ruído ambiente. Outra limitação era o fato de cada hidrofone apontar para baixo, cobrindo uma área estreita, mas ampliando-se enquanto penetrava nas profundezas, como um cone de luz por baixo de um candeeiro. O problema era que, tal como sucederia com o candeeiro metafórico numa noite incrivelmente escura, nada era visível fora do cone. Um dos operadores de combate antissubmarino do Truxton, o sargento Collier, também estava presente. Um jovem magro com porte sereno, Collier cortara e colara trechos sonoros com eles durante horas. Enquanto Paul achava o trabalho entediante, o sargento parecia aplicar-se nos pormenores mais ínfimos, sentindo entusiasmo com a necessidade de recomeçar. — Aqui vamos nós — disse pela quinquagésima vez. Paul colocou uma mão sobre os fones de revestimento macio e pressionouos no ouvido. Viu Gamay expondo o bico de uma caneta com um clique no botão e inclinando a cabeça em antecipação. O jovem sargento pressionou a tecla de reprodução e Paul ouviu pela enésima vez os ruídos da gravação a iniciar. De cada vez, houvera uma ligeira diferença depois de Collier e os seus computadores terem filtrado ruídos de fundo. Naquela ocasião, acrescentou também alguma coisa. — Para melhor orientá-los no que estão ouvindo — disse o sargento Collier. — Sincronizei com a gravação os registros de voz nas comunicações com a superfície.


Enquanto a reprodução prosseguia, Paul ouviu a sua voz. Juntamente com a de Gamay. Falavam com o Matador e depois um com o outro. Era tudo tão surreal. Era ele, sabia que era, mas não conseguia lembrar-se de ter dito alguma das coisas que ouvia. Não conseguia recordar o que fazia enquanto as palavras eram proferidas. Gamay o olhou. — Alguma coisa? — Referes-te à minha memória? Acenou afirmativamente. — Não. Gamay voltou a olhar para as suas notas e a gravação prosseguiu. Por fim, atingiu o ponto do primeiro ataque. Paul pressionou novamente os fones sobre os ouvidos, mas manteve os olhos fixos em Gamay. De cada vez que chegavam àquele ponto, via-a ficar agitada. E não foi diferente naquela repetição. Começara já a bater com a caneta no papel de forma nervosa. Vou levá-la mais para dentro do navio, ouviu dizer Gamay na gravação, referindo-se a Rapunzel. Uma ligeira mudança no ruído envolvente foi captada e assinalada por um pico súbito em algumas das frequências na tela do computador. Vários segundos depois, o controlador do Matador falou. Paul, o sonar captou alguma coisa. Que tipo de coisa? Impossível de determinar. A oeste da sua posição e muito ténue. Mas movendo-se a grande velocidade. Paul ouviu o ruído. Daquela vez, era mais perceptível, como se tivesse sido ampliado. Ouviu a sua própria voz perguntar se o som era mecânico ou natural e, a seguir, o sinal aumentou de volume e a voz do controlador também mudou de tom, subindo de repente uma oitava. Mecânico ou natural? Desconhecido... É pequeno... É um torpedo. Dois. Ao seu encontro. — Pare a gravação — pediu Paul. — Repita os últimos vinte segundos. — Acho que não precisamos, Paul — disse Gamay. — É inútil. — Não — considerou Paul. — Ouvi qualquer coisa. Algo que não ouvi na ocasião anterior. Repita. Gamay afastou o olhar, parecendo frustrada e pensativa. As suas unhas estavam roídas até restar muito pouco e não parava de olhar em redor,


concentrando-se na porta e no relógio como uma criança na última aula do último dia de escola. Paul calculou que ouvir a gravação uma e outra vez a forçasse a viver novamente o incidente e compreendeu como poderia afetá-la, mas, apesar das sugestões repetidas que lhe fez, ela recusava-se a deixá-lo sozinho. A gravação foi repetida e Paul ouviu com atenção. Quando terminou, pediu para ouvir novamente. Viu Gamay engolir em seco quando a gravação voltou a avançar. Paul, o sonar captou alguma coisa. Que tipo de coisa? Impossível de determinar. A oeste da sua posição e muito ténue. Mas movendo-se a grande velocidade. — Pare! — disse Paul. — Aí mesmo. Gamay retirou os fones e pousou-os na mesa. — Preciso de apanhar ar — disse. Paul acenou-lhe com a cabeça e viu-a sair. De uma forma bizarra, a sua amnésia parecia ajudá-lo, já que não tinha qualquer ligação emocional com o que acontecera nas profundezas. Era uma investigação como qualquer outra. Um mistério que queria desvendar. Mas não lhe despertava quaisquer sentimentos. — Consegue isolar a vibração e tirar as vozes? — perguntou Paul. — Claro — respondeu o sargento. Demorou um minuto e a gravação ficou pronta para nova repetição. Havia mais alguma coisa bloqueando o som. Paul fitou a tela. Um gráfico de frequências mostrava vários ruídos de fundo de baixa intensidade e duas grandes fontes de vibração. Uma ocupava uma largura de banda inferior. — O que é isto? — perguntou, apontando um pico no gráfico. — É o ruído do motor do Grouper — respondeu o sargento. — Consegue retirá-lo? Collier acenou afirmativamente e, segundos depois, indicou que estava pronto. — Repita — pediu Paul. Daquela vez, enquanto a gravação era reproduzida, Paul teve certeza do que ouvia. Não compreendia o que significava, mas sabia que não imaginava coisas. Apontou outro pico na frequência. — Consegue eliminar todos os outros ruídos de fundo e reproduzir apenas isto? E consegue ampliar? — Sr. Trout — começou o sargento —, o governo assegura-se de que temos o melhor equipamento do mundo. Se quiser, posso fazer a gravação tocar o hino nacional.


Paul riu. — Basta que aumente esta onda sonora — disse. — E que a alongue um pouco. Daquela vez, quando a gravação foi reproduzida, parecia-lhe ouvir um motociclo a acelerar na sua direção numa rua deserta. Não ouvia outros ruídos. Nem os rugidos urgentes dos torpedos que se aproximavam, apenas uma vibração ligeira que se tornava ligeiramente mais sonora e baixava o volume, não uma vez, mas duas. Como se tivesse passado por eles e mudasse de direção. — É o que penso? — perguntou Paul. O sargento reproduziu novamente a gravação e acenou afirmativamente. — Compressão — disse. — O som inicial está comprimido numa frequência elevada porque a origem se aproxima do Grouper e, nos últimos três segundos de gravação, o som alonga-se numa frequência mais baixa porque a origem se afasta. — Como o apito de um trem — disse Paul. — Ou um carro que passa por alguém numa rua. O veículo continua a fazer o mesmo som, mas a nossa percepção muda. Não podem ser os torpedos. — Não — concordou o sargento. — É decididamente um veículo. Pelo que ouço, diria que serão dois. Paul acenou afirmativamente. Era o que pensava. — Mas por que não os ouvimos antes? — Foi a distorção — disse Collier. — E os torpedos. Aliás, o sinal é captado quase na mesma largura de banda que os torpedos. — Que significa isso? — Para mim, Sr. Trout, significa que foram atacados por algo pequeno e rápido. Submarinos com rotações elevadas por minuto equipados com hélices pequenas. Muito semelhantes a um torpedo. — Não um submarino grande, mas dois pequenos — disse Paul. Não sabia ao certo o que significaria, mas supôs que traria novamente para a equação a hipótese do navio de apoio. Pelo menos, faziam progressos. Collier repetiu novamente a gravação apenas para terem certeza. O som era audível apenas por um par de segundos em tempo real antes que o ruído dos torpedos se impusesse. Collier retirou os fones. — Vou informar o capitão. E continuaremos a trabalhar nisso. — Quer que fique por aqui? — perguntou Paul. — Penso que terá trabalho próprio para fazer, Sr. Trout. — Moveu a cabeça para cima, sugerindo que Paul devia subir ao nível superior do navio. — Certo — concordou Paul. Largou os fones, levantou-se e dirigiu-se para


a porta estanque. Dois minutos depois, saía no convés de popa do Truxton. Foi recebido pelo sol, pelo ar fresco e pelo som de um rotor de helicóptero. Um SH-60B Seahawk cinza descia sobre o heliporto com uma carga suspensa por baixo. Viu Gamay a observá-lo e colocou-se ao seu lado. — Acho que descobrimos alguma coisa — gritou sobre o ruído. Ela não disse nada. Limitou-se a reagir à sua presença. — Acho que isolamos o sinal acústico do submarino que nos atacou — explicou. — Foram dois submarinos. — Ótimo — disse ela, parecendo tudo menos entusiasmada. — Achei que ficarias feliz — disse Paul. — Não temos de voltar a ouvir a gravação. Porque ficaste assim? Ela fitou-o e, em seguida, indicou o helicóptero com a cabeça. — O que faz aquilo aqui? Paul olhou. A carga por baixo do helicóptero descia sobre o convés num suporte. Estava suficientemente próxima para que Paul conseguisse perceber o que era: um pequeno submersível. Preso à traseira, um volume de equipamento mecânico e uma pequena figura antropomórfica metálica. Rapunzel. — Dirk enviou-a — disse Paul. — Sabias disso? — Disse-me hoje de manhã — admitiu Paul. — Apenas como plano de contingência. Se precisarmos dela. Gamay não disse nada. Limitou-se a sacudir a cabeça, furiosa, fixando nele um olhar raivoso durante um segundo antes de se afastar e voltar ao interior do navio.


47. Serra Leoa, 5 de julho

Em seu palácio presidencial, com os seus pisos de mármore, Djemma Garand sentava-se com Alexander Cochrane. Cochrane passara a noite a rever as conclusões dos cientistas recém-chegados. — Basicamente — começou Cochrane —, todos apresentam a mesma solução. Vejo apenas diferenças superficiais. Parecia cansado. A sua petulância habitual fora substituída por uma sensação de exaustão e talvez de medo. — E qual é a sua avaliação das soluções apresentadas? — perguntou Djemma, ansioso por chegar ao ponto crucial. — O fato de todos terem chegado à mesma conclusão de forma isolada permite-me pensar que é provável que esteja correta. Não encontro erros nos seus cálculos. — E a implementação? — perguntou Djemma. — Essencialmente, podemos usar o acelerador de partículas no seu estado presente — explicou Cochrane. — Teremos apenas de gerar uma partícula de carga mais elevada para o disparo. Será como trocar um projétil de calibre vinte e dois por outro de calibre quarenta e cinco. Tudo o resto será igual. As partículas mover-se-ão um pouco mais devagar, não o suficiente para afetar a operação, mas atingirão o alvo com uma potência triplicada. — Pousou os apontamentos. — Na verdade, é bastante simples. — É uma pena que não lhe tenha ocorrido meses atrás — disse Djemma, com as palavras a deslizar-lhe da língua com um desdém indisfarçado. — É trabalho teórico — disse Cochrane. — Não é o meu campo. — Sim — concordou Djemma. — Afinal, é apenas um mecânico. O intercomunicador no telefone de Djemma vibrou. — Sr. Presidente — disse a secretária —, chegou um convidado que deseja ser recebido. O embaixador americano. — Excelente — considerou Djemma. — Peça-lhe que entre. Cochrane levantou-se. — Preciso de vinte e quatro horas para executar as mudanças. — Então sugiro que se aplique — disse Djemma. Apontou uma porta ao fundo. — Saia por ali.


Cochrane obedeceu, apressando-se a sair pela porta traseira enquanto a porta principal do gabinete se abria, permitindo a entrada do embaixador americano. Normalmente, Djemma receberia um homem da sua posição a meio caminho, mas permaneceu sentado, indicando-lhe que se sentasse à sua frente, na cadeira que Cochrane acabara de desocupar. — Presidente Garand — começou o embaixador, falando com sotaque do Texas —, estou certo de que saberá qual o assunto infeliz que me traz aqui. — A que se refere, Sr. Embaixador? — perguntou Djemma. — Celebramos o nosso Quatro de Julho. Talvez com um dia de atraso. O embaixador conseguiu forçar um sorriso, mas sacudiu a cabeça. — Aquilo a que chama independência não passa de agressão clara, roubo e a violação da lei internacional. Para lhe ser sincero, não consigo recordar outro ato tão insolente. — Então desconhecerá a história — considerou Djemma. — Em 1950, sob ameaça de nacionalizar todo o patrimônio da Standard Oil, a família real saudita recebeu metade do petróleo árabe. Esse petróleo gerou três milhões de biliões e meio de dólares ao longo dos últimos sessenta anos. Em 2001, Hugo Chávez fez praticamente o mesmo na Venezuela. Em 1972, o Chile nacionalizou as suas minas de cobre sob orientação do governo de Salvador Allende. Em 1973, a índia nacionalizou toda a sua indústria do carvão. Em 1959, Fidel Castro conquistou Havana, esperando pacientemente até o Hilton da cidade estar construído para poder usá-lo como sede do Partido Comunista. Apossou-se de todos os bens estrangeiros e nunca os devolveu. Não recorda nenhum desses acontecimentos, Sr. Embaixador? O embaixador respirou fundo. — Claro que recordo, mas isto é diferente. — Sim — concordou Djemma. — Mas ainda não compreendeu até que ponto é diferente. Entretanto, falando apenas em dólares, as minhas ações serão relativamente menores em comparação com os acontecimentos que acabo de lhe recordar. Para ser sincero, surpreende-me vê-lo. Teria esperado que o embaixador chinês viesse primeiro. Perderão muito mais do que o seu país. A última afirmação feriu o orgulho do embaixador, mas não reagiu. — Estamos aqui em sua representação — disse. — E em representação de todos os países prejudicados. Apenas entre nós, posso dizer-lhe que estamos preparados para ponderar uma modificação das condições de pagamento dos seus empréstimos, mas não perdoaremos a dívida principal. E, antes que se inicie qualquer negociação, suas forças deverão deixar as instalações industriais pertencentes a entidades estrangeiras. Djemma sorriu.


— Faço-lhe uma contraproposta — disse. Venderei o que nos pertence por direito. E pedirei apenas vinte mil milhões por ano em fundos do seu país. — O quê? — perguntou o embaixador. — Pediria novos empréstimos — começou Djemma —, mas, considerando que não paguei os anteriores, receio que ninguém nos concedesse crédito. Portanto, terão de ser fundos transferidos de forma incondicional. Não se preocupe, exigiremos idênticas contribuições à China e à Europa. — Não pode falar a sério — respondeu o embaixador, secamente. — Rouba propriedade internacional e exige que lhe entreguemos sessenta mil milhões de dólares por ano como um donativo? — É uma quantia pequena — assegurou-lhe Djemma. — Concederam aos seus bancos setecentos mil milhões há alguns anos. Gastaram um milhão de biliões no Iraque, vinte mil milhões por mês. Peço uma fração dessa quantia e ninguém terá de sofrer. Em troca, permitirei que muitos dos meus projetos de construção sejam desenvolvidos por empresas americanas. Poderá considerar isto um programa de estímulo. Djemma sorria como um louco. Passara tanto tempo a ouvir europeus e americanos a fazer discursos aos países pobres acerca da responsabilidade fiscal. Achava-os hipócritas. Bastava ver a forma como se tinham prejudicado a si mesmos. Chegara o momento de lhes atirar tudo à cara. A face do embaixador avermelhava. — As suas ambições alongam-se para além do seu poder, Sr. Presidente — exclamou. — Isto não será tolerado. — Os sauditas foram tolerados — disse Djemma. — E Chávez continua no poder. Tal como Castro. Parece-me que terão mais facilidade para negociar do que dá a entender. E, se não tiverem... aviso que haverá consequências. Era o primeiro indício de ameaça feito por Djemma. Precisava de ser subtil. Pela atenção que surgira prontamente na expressão do embaixador, sabia que não fora demasiado obscuro. Mas, quando o embaixador começou a rir, Djemma sentiu a sua ira crescer. — Qual é a graça? — exigiu saber. O embaixador acalmou-se, mas manteve um sorriso na cara. — Sinto que estou dentro do filme O Rato que Ruge — disse. — Conseguiria ocupar este país com um agrupamento de escuteiros e alguns polícias estaduais e julga que poderá ameaçar-nos? O riso voltou e Djemma perdeu o controle. Bateu na secretária com o seu chicote de montar num movimento incrivelmente rápido. O embaixador deu um salto ao ouvir o som, chocado. — A sua arrogância o trai, Sr. Embaixador — disse Djemma. Ergueu-se da


cadeira e olhou para o diplomata do alto do seu metro e oitenta e oito. — Por tempo demais seu país e os outros países ricos zombaram de nações como a minha — disse. — Quer acredite ou não, esses dias chegaram ao fim. O mundo industrializado passará a nos sustentar, não com esmolas, mas com quantias substanciais. Vai nos ajudar a nos erguer ou o arrastamos para a lama conosco! Só então entenderão a verdade. Não somos ratos com que possam brincar. Serra Leoa é um país de leões. E, se não tiverem cautela, sentirão os nossos dentes nos seus pescoços macios e decadentes. Djemma não esperou resposta do embaixador americano. Pressionou o botão do intercomunicador e um grupo de guardas entrou no gabinete. — Levem o embaixador ao aeródromo — gritou. — Será imediatamente deportado. — Isto é um ultraje! — gritou o embaixador. — Levem-no! — ordenou Djemma. O embaixador foi levado e a porta bateu depois de sair. Djemma sentou-se, sozinho e furioso. Sentia-se furioso com a arrogância e desdém do embaixador. Não esperava que acontecesse tão cedo. Mas estava ainda mais furioso consigo mesmo por ter mordido a isca e declarado a sua ameaça de forma tão clara. Não pretendia falar tão cedo. Graças a isso, não haveria negociações. A não ser... Não tinha escolha. Fizera uma afirmação que os americanos considerariam blefe. Teria de demonstrar o seu poder ou americanos e o resto do mundo ririam com desdém de suas palavras: outro ditador louco numa república das bananas. Usaria a sua arma em todo o seu glorioso poder e não lhes deixaria escolha que não fosse tratarem-no com respeito.


48. Washington, DC, 6 de julho, 13h30

Dirk Pitt ocupava um lugar na primeira fila da Situation Room, a sala de crise do Pentágono. Cameron Brinks da NSA dava espetáculo. O presidente não participava, mas o seu chefe de gabinete, chefias militares dos quatro ramos e vários membros do executivo estavam presentes. Assim como o vice-presidente dos Estados Unidos, o almirante James D. Sandecker, antigo chefe de Dirk Pitt. Com os acontecimentos bizarros em Serra Leoa durante os dias anteriores, depois de ameaças feitas pelo seu presidente, Brinks aceitara por completo a possibilidade de um envolvimento de Serra Leoa no sequestro dos cientistas para criação de algum tipo de arma energética. De que outra forma poderia ter a ousadia de ameaçar o mundo e a América em particular? Após vários dias de busca com seus satélites, Brinks afirmou ter identificado a localização de tal arma, uma ameaça declarada e urgente. A frente da sala, numa tela apenas ligeiramente menor do que muitas telas gigantes que vira, Pitt observava uma transmissão de satélite. Mostrava uma área ao largo da costa de Serra Leoa, uma baía pouco profunda com quinze quilômetros de diâmetro que albergava uma zona de produção petrolífera conhecida como Quadrângulo pelas suas dimensões e pelas quatro plataformas distribuídas a uma distância uniforme. Num plano tão alargado, surgiam como quatro pontos cinzentos. Mais de perto, os pontos eram facilmente identificáveis como enormes plataformas marinhas de exploração petrolífera. Havia outros dados exibidos na tela, números e códigos com que Pitt não estava familiarizado. Não conseguia entender por completo por que estava ali. A NUMA tinha um envolvimento periférico com a busca, mas a maior parte das ações naquele nível estariam muito fora das suas mãos. Durante os minutos concedidos aos presentes para estudarem os ficheiros à sua frente, Dirk aproveitou para passar novamente em revista o que lhe fora entregue. Um pormenor que lhe captou imediatamente a atenção foi o fato de toda a zona petrolífera e as quatro plataformas pertencerem ao governo de Serra Leoa e sempre terem pertencido, ao contrário das estruturas abrangidas pela nacionalização em grande escala ocorrida dias antes. Outro alerta foi provocado pelo fato de os técnicos com quem a CIA falara terem insistido que não existia petróleo por baixo das áreas em que o governo de


Serra Leoa perfurava. Era um projeto inútil, insistiam. Um desperdício dos fundos que o FMI injetava no país. Acrescentando a isso a presença continuada de barcaças de construção e as entregas constantes de equipamento muito depois de concluídas as plataformas, percebia-se que algo estava mal. Pitt fechou o ficheiro à sua frente e ergueu o olhar, vendo Brinks e o vicepresidente Sandecker aproximando-se. Pararam para falar com o chefe do Estado-Maior da Marinha antes de se juntarem a Pitt. Este ergueu-se e apertou as mãos de ambos. — Disse-lhe que o seu homem seguia um caminho sem saída ao procurar este mercenário — disse Brinks. Pitt sorriu e não havia nada além de alegria pura nos seus olhos verdes, apesar do desejo de esmurrar Brinks na boca. — Espero sinceramente que tenha razão — disse Pitt. — Depois de tudo o que passou, o Austin precisa de férias. — Bom — disse Brinks, confiante —, estamos prestes a permitir-lhe umas. Enquanto Brinks se afastava, Sandecker sentou-se ao lado de Pitt. — Obrigado pelo convite — disse Pitt, sarcástico. — É como uma festa na piscina com tubarões e jacarés. — Achas que te queria aqui? — troçou Sandecker. — Foi o Brinks que te envolveu. — Por quê? — Talvez por querer gabar-se. — Nada como saber ganhar — disse Pitt. Sandecker concordou. — Ouvi dizer que o deitaste abaixo com violência no outro dia. — Estava a pedi-las — disse Pitt. O vice-presidente riu e endireitou-se, olhando para a tela. — Aposto que sim. Pitt apreciava o apoio de Sandecker. Sempre apreciara. — Sabes que é estranho ver-te sem um charuto na boca — disse-lhe Pitt. — É proibido fumar na Sala de Reuniões de Segurança — replicou Sandecker. — Agora cala-te e pode ser que aprendas alguma coisa. À frente, Cameron Brinks levantou-se e iniciou a sua apresentação. Depois de explicar o que Dirk já descobrira no ficheiro, elaborou. — Serei tão rápido quanto possível — disse. — Todos sabemos que a situação em Serra Leoa se agrava. O que ainda não sabíamos era se as ameaças que nos foram feitas teriam alguma credibilidade. Acreditamos agora, baseandonos em informação obtida através de várias fontes, que sim. Por mais estranho que pareça, a Serra Leoa, um dos países mais pobres do mundo, possui uma


arma de incrível poder destrutivo. Caminhou até uma parede lateral, conversando durante um segundo com um assistente que parecia estar em contato com a sede da NSA em Fort Meade, Maryland, o local de onde era reenviada a transmissão do satélite. — Entretanto, compilamos os ficheiros que têm à sua frente — explicou Brinks. — Realizamos varrimentos de satélite adicionais na área neles descrita. O Quadrângulo. O vídeo na tela é um desses varrimentos transmitido em direto. Baixou o olhar, esperou que o seu assistente pressionasse algumas teclas no terminal de computador que tinha à frente e ergueu um dispositivo de controle remoto, apontando-o na tela. Com o pressionar de um botão, as cores da imagem mudaram. Tonalidades artificiais iluminaram a água, a terra e pormenores que não eram visíveis na imagem anterior. — Isto é um varrimento infravermelho da área do Quadrângulo — disse Brinks. Pitt olhou. A área em redor de cada plataforma petrolífera estava banhada numa cor avermelhada que se alongava com a maré. Seria uma descarga de algum tipo, que elevava a temperatura do mar em volta das estruturas e se deixava dispersar lentamente pela corrente. Começou por pensar que se tratava de poluição. Poderia ser uma fuga de petróleo ou de algum produto destilado, mas, a seguir, recordou que não havia petróleo ali. — As plataformas bombeiam água aquecida — disse. Brinks acenou afirmativamente. — Muito bem, Sr. Pitt. Cada uma destas plataformas bombeia água aquecida para o Atlântico. Milhares de metros cúbicos de água com temperatura elevada todo dia. E apenas um motivo: o que fazem exigirá uma enorme capacidade de resfriamento. — Geram energia — sussurrou Pitt a Sandecker alguns segundos antes de Brinks confirmar. — Resta-nos saber por quê — disse Brinks. — A resposta é simples. Usamna num acelerador de partículas gigantesco que transformaram em arma. Brinks pressionou um botão no controle remoto e a imagem voltou a mudar, acrescentando roxo ao azul-escuro, cinzento e magenta que já coloriam a tela. A nova cor berrante formava uma linha estreita que cercava as quatro plataformas petrolíferas separadas por quilômetros. Formava um enorme círculo. Outros traços mais finos partiam deste círculo e infiltravam-se pelo Atlântico dentro. Um grupo de traços seguia para oeste e noroeste, outro para norte e nordeste. Um terceiro grupo destes filamentos finos e roxos dirigia-se para o continente africano. — Este círculo assinala a presença de uma estrutura submarina identificada


por uma combinação de varrimentos infravermelhos e radares de grande intensidade a bordo de um avião espião Aurora. Tem vinte e cinco quilômetros de diâmetro — explicou Brinks, usando um ponteiro laser para indicar o círculo. — E cada uma destas supostas plataformas petrolíferas é apenas uma fachada para nos despistar. Por baixo das estruturas, existem centrais energéticas potentes, cada uma suficientemente grande para iluminar uma pequena cidade. — Que tipo de centrais energéticas? — perguntou alguém. — Geradores com turbinas a gás, alimentados por um grande gasoduto construído alegadamente para exportar gás natural da área. Sabemos agora que funciona em sentido inverso. — E que acontece a toda a energia produzida? — perguntou outro dos presentes. — É usada nos ímãs supercondutores que aceleram as partículas — explicou Brinks. — E no colossal sistema de resfriamento exigido para manter o sistema a uma temperatura sustentável. Brinks afastou-se um passo da tela e explicou. — Pelos nossos cálculos, este sistema gera e utiliza vinte vezes mais energia do que a usada pelo CERN no seu Grande Colisor de Hádrons. Encontramos apenas uma explicação para tamanha necessidade energética. Esta coisa é uma arma. Poderá abater satélites em órbita sobre a Europa, o Atlântico e África, claro. Conseguirá ameaçar a navegação atlântica, talvez num alcance de cento e cinquenta quilômetros. Poderá ameaçar a aviação comercial num raio de quase quinhentos quilômetros. — O alcance da arma é de apenas quinhentos quilômetros? — perguntou Pitt. — Não — respondeu Brinks. — É provável que consiga causar danos a maior distância, talvez até a milhares de quilômetros de distância, mas dispara em linha reta, como um laser. Não consegue acompanhar a curva da superfície terrestre como acontecerá com um míssil balístico. Fazia sentido, mas algo não batia. — E o Kinjara Maru? — perguntou Pitt. — O navio estava muito distante de Serra Leoa quando foi atingido. — É verdade — admitiu Brinks. — É provável que tenham uma arma derivada desta no submarino que procuramos. Mas será uma arma tática. Coisa de pouca monta. Esta coisa é uma arma estratégica e ameaça uma região inteira. Lidaremos primeiro com isso e com o submarino depois. Brinks dirigiu-se novamente ao grupo. — Recomendamos que seja destruída num ataque aéreo cirúrgico antes que Djemma possa usá-la contra alguém.


A afirmação foi seguida por silêncio. Ninguém discordou, não depois das ações de Djemma Garand nos dias precedentes e das suas ameaças, mesmo que vagas, contra os Estados Unidos. — Recomendação quanto ao método a seguir, Sr. Brinks? — perguntou o vice-presidente Sandecker. — Recomendamos que se ataquem as plataformas em primeiro lugar, Sr. Vice-presidente — disse Brinks. — Assim, conseguiremos cortar o abastecimento energético. E, sem energia, o acelerador de partículas será apenas um grande túnel com muito equipamento caro guardado no interior. Mesmo que Pitt não apreciasse o tom entusiasmado de Brinks, fez uma avaliação semelhante da situação. A ameaça existia e era controlada por um líder aparentemente instável. Um ataque aéreo provocaria uma destruição mínima e um número reduzido de baixas. A tecnologia seria preservada para estudo posterior. Por mais que lhe desagradasse, tinha de concordar com a avaliação de Brinks. — Transmitirei as suas recomendações ao presidente — disse Sandecker, levantando-se. Era frequente que reuniões como aquela não fossem longas. E, mesmo que continuasse, o vice-presidente ouvira o suficiente. Mas, antes que partisse, aconteceu alguma coisa estranha na tela na parede da sala. As cores alteraram-se por um segundo e acabaram por se fundir, como se algo interferisse com o sinal. Todos os olhares se voltaram na mesma direção. Brinks olhou para o seu assistente. — Que se passa? O assistente movia os dedos sobre o teclado de um computador portátil. Ergueu o olhar e sacudiu a cabeça. Um segundo depois, um clarão branco iluminou a tela e, logo a seguir, tudo ficou negro. Seguiu-se estática e a tela acabou por ficar vazio. Texto no canto inferior direito indicava perda completa de sinal. Brinks parecia embaraçado. — Descobre o que aconteceu à transmissão. — A linha está desimpedida — disse o assistente. — O sinal chega sem problemas. Apenas não contém dados. Pitt observara algo estranho na tela imediatamente antes do clarão. Duvidava que mais alguém tivesse reparado enquanto o vice-presidente se preparava para partir. Quando Sandecker se ergueu, todos os outros se ergueram e Pitt também o fez, mas sem nunca afastar os olhos da tela.


Isso permitiu-lhe ver um número indicando a produção térmica de uma das plataformas petrolíferas a aumentar subitamente. Aumentava como um odômetro desgovernado. Uma nova área de vermelho e magenta surgira sobre um dos filamentos. Fora visível apenas por um segundo, mas Pitt sentiu-se bastante seguro de saber o que era. Em Fort Meade, os técnicos também teriam percebido. Apenas se sentiram demasiado atordoados para o transmitirem a alguém antes de verificarem todas as outras possibilidades. — O computador não tem qualquer problema — anunciou Pitt. — É o seu satélite. Todos os olhares se voltaram para ele. — Ah sim? — disse Brinks. — E quando se tornou perito em diagnósticos feitos à distância de transmissões digitais? — Não sou um perito — afirmou Pitt. — Mas repita os últimos cinco segundos. Verá um pico de energia imediatamente antes do clarão. Fritaram-lhe o satélite, Brinks. Já não existe. Brinks olhou para o assistente. — Tentamos restabelecer a ligação — disse. — Esqueça — disse-lhe Pitt. — Está a tentar chamar um pássaro morto. — Muda para o Keyhole Bravo — disse Brinks, referindo-se ao satélite secundário que orbitava num ângulo diferente e a uma altitude maior. O assistente de Brinks terminou a sua última tentativa desesperada de contato e olhou para cima. Não havia nada a dizer. — Dois satélites destruídos — afirmou Sandecker. — É uma declaração de guerra. Todos os presentes receberam aquela frase com severidade. — Achei que ficaria feliz — disse Pitt a Brinks. — Prova sua teoria. Djemma Garand é perigoso, sua arma está operacional e não receia usá-la. Até eu passei a concordar. Tem que ser eliminado.


49. Em algum lugar sobre o Atlântico, 7 de julho

Kurt Austin e Joe Zavala estavam no cockpit ruidoso de um IL-76 de fabricação russa, voando a uma velocidade de cruzeiro a dez mil metros de altitude. Sentavam-se em bancos dobráveis imediatamente atrás dos pilotos. Tinham fones e trajes de aviador e viam pelo para-brisas um pôr-do-sol resplandecente sobre o Atlântico. Depois de deixarem Singapura, tinham passado vários dias reunindo o equipamento que Kurt julgava necessário para uma abordagem ao Onyx. A última peça do puzzle fora um avião com capacidade para voo transatlântico pilotado por gente que não fizesse perguntas. Tinham-no alugado em Tânger, seguindo uma cadeia de conhecimentos algo sombria que se iniciara com um amigo egípcio de Joe, que conhecia um grego com bons contatos em Marrocos. Sendo verdade que a cadeia de comando preocupava ligeiramente Kurt, a idade do avião em que voavam era ainda mais preocupante. Abanava, vibrava e o cheiro parecia indicar fugas de combustível em meia dúzia de pontos diferentes. Os pilotos batiam nos velhos mostradores analógicos como se não funcionassem, ajeitaram um par de fusíveis em dado ponto da viagem e trocavam palavras em inglês com sotaque da Europa de Leste, fazendo referências constantes a “mecânicos inúteis”. Até ali, as asas não tinham caído. Kurt considerava isso uma pequena vitória. Enquanto pensava se a sorte se manteria, o copiloto voltou-se para ele. — Chamada para si no rádio — disse-lhe. — Mude os fones para o canal dois. Kurt observou o botão ao lado da ficha onde ligara os fones. Viu letras cirílicas e os números 1 e 2. Rodou o botão para o número 2. — Daqui fala Kurt — disse. — És uma pessoa difícil de encontrar, Kurt. — A voz pertencia a Dirk Pitt. — Se não fosse uma entrada bastante volumosa na tua linha de crédito da NUMA relativa ao aluguel de um avião, não teria conseguido localizar-te. — Pois — murmurou Kurt. — Posso explicar isso. Tocou no ombro do copiloto.


— Esta linha é segura? — perguntou. O copiloto acenou afirmativamente. — É um canal privativo. Encriptado até chegar ao avião. — Sorriu. As pontas do grande bigode ergueram-se com os cantos da boca. — Faz tudo parte do serviço que lhe prestamos. Kurt quase se riu. Não era exatamente um cone de silêncio, pensou. Mas teria de servir. — Acho que descobrimos alguma coisa — disse, desejando ter aquela conversa depois de ter confirmado a sua suposição. — Acho que encontramos nosso homem. — Onde? — perguntou Dirk. — Num navio no meio do Atlântico. — Então por que estás no ar? Kurt olhou pela janela. O sol mergulhava abaixo do horizonte à frente. O momento da verdade estaria ainda a duas horas de distância. — Era a única forma de me aproximar o suficiente — explicou. — O navio está no meio do Atlântico, movendo-se a poucos nós de velocidade e, basicamente, sem pretender ir a parte alguma. O problema é que se situa a cem milhas da rota comercial mais próxima, numa área vazia no meio do oceano. Uma aproximação marinha denunciaria as nossas intenções. Não teríamos muito tempo de vida. A nossa única hipótese será chegar por via aérea. Dirk permaneceu calado. Talvez avaliasse a bravura do seu subalterno ou ponderasse despedi-lo por insanidade. — De certeza que terão radar — disse, por fim. — Presumo que não pretendas sobrevoá-los e saltar. — Não, senhor — disse Kurt. — Está bem — replicou Dirk, percebendo obviamente o que Kurt planejava. — Isso explica o segundo item na tua linha de crédito. — Fiz questão de pedir recibos — assegurou Kurt, como se importasse. — Falamos disso mais tarde — disse Dirk. — Mas acredito que não precisarás de saltar. — Por quê? — Digamos que confirmamos outra localização para o nosso alvo prioritário — disse Dirk. — Infelizmente, já o enfrentamos hoje e perdemos o primeiro assalto. O Brinks estava certo. O teu homem foi contratado para entregar os reféns e partiu logo a seguir. Sendo verdade que terá algum valor localizá-lo, não arriscaria a tua vida por isso. Kurt ponderou o que Pitt lhe dizia. As chefias tinham presumido que Andras seria um soldado da fortuna. E por que não? Era o que sempre tinha sido. Aparentemente, acreditavam que o seu papel naquela história estava concluído e


que iria a caminho de férias ou do trabalho seguinte. Talvez o capturassem depois ou talvez não, mas, se Kurt compreendia bem o que ouvia, havia confirmação de que era a Serra Leoa a patrocinar toda aquela loucura. — Talvez seja melhor desistires desta vez — disse Dirk. — Sabes que o faria — respondeu Kurt. — Mas ainda há algo que me perturba. O nosso alvo não age como um mercenário. Comporta-se mais como se a operação fosse sua. Não sei ao certo o que significará, mas juro que haverá nesta história qualquer coisa que nos escapa. Olhou para Joe. — Além disso, o Sr. Zavala diz que há coisas muito estranhas neste petroleiro. Para começar, tem mais doze metros de largura do que a maioria dos petroleiros de igual comprimento, o que lhe confere uma aparência anafada mesmo com os trezentos e sessenta metros de comprimento. E também tem saliências estranhas junto à proa, por baixo das âncoras, e uma seção elevada a meio. Não fazemos ideia do que isto signifique, mas não agrada a nenhum de nós. Se não te importares, preferia vê-lo de perto. — Mereceste o direito de tomar esta decisão — disse-lhe Pitt. — Mas certifica-te de que a tomas pelos motivos certos. — Não tento ser um herói — disse Kurt. — Se não houver nada de interesse lá embaixo, salto borda fora, puxo a corda da minha jangada inflável e espero que enviem uma loura, uma morena e uma ruiva para me virem resgatar. Mas, se o Joe e eu estivermos certos, será melhor que o descubramos agora do que mais tarde. Pitt demorou a responder. — Está bem — disse, por fim. — Não vás pelos ares antes que possa gritar contigo por estas contas que têm chegado. Kurt riu. — Darei o meu melhor. Com aquilo, Pitt terminou a chamada. Kurt olhou para o círculo laranja do sol terminando de mergulhar abaixo do horizonte. A verdade esperava-o oitocentas milhas adiante, movendo-se lentamente pela noite escura.


50. Duas horas depois, ainda no velho avião, Kurt e Joe passaram do cockpit para a seção principal da fuselagem. Encontravam-se numa caverna de metal, rodeados por equipamento, pequenos contentores e correias. Apesar do traje pressurizado, luvas, botas e capacete idêntico aos que eram usados por pilotos de caça, com fones que filtravam ruído e sistema de oxigênio, Kurt conseguia sentir uma pontada do frio gélido, numa altitude que quase atingia os onze mil metros. Sentia cada solavanco do avião e não ouvia nada além do zumbido penetrante dos motores a jato estreitos construídos na década de setenta. Eram aquelas as condições do compartimento de carga de um avião de transporte russo. Mantendo-se a seu lado, com uma parka forrada de pele em volta da cabeça e também com fones e máscara de oxigênio, Joe Zavala parecia dizer qualquer coisa, mas Kurt não conseguiu distinguir as palavras. — Não entendi — gritou. Joe pressionou a máscara de oxigênio e o microfone sobre a cara e repetiu: — Disse que deve estar doido — gritou. Kurt não respondeu. Começava a pensar que Joe poderia estar certo. Segurando com firmeza uma correia presa à estrutura do avião como um passageiro num metropolitano lotado, Kurt virou-se para a cauda. Uma fissura começou a surgir quando a rampa se abriu. Enquanto a rampa descia, o velho avião tremeu mais do que nunca e o vento encheu o compartimento de carga, empurrando-o e a Joe e ameaçando fazê-los cair. O avião fora despressurizado meia hora antes e, por isso, não houve fuga súbita de ar, mas a temperatura baixou imediatamente do zero para os vinte e cinco graus negativos e o rugido dos motores aumentou pelo menos quatro vezes. Kurt fitou a abertura para a escuridão do céu noturno. Inspirava oxigênio de um tanque e usava um paraquedas especialmente concebido. E, apesar de ter feito mais de duzentos saltos na sua vida, incluindo vinte HALO1 (Altitude Elevada-Abertura Tardia), o que estava prestes a tentar era algo que nunca tentara, algo que Joe aconselhara repetidamente que reconsiderasse. Até ali, reagira ao pessimismo de Joe com sorrisos, chamando-lhe “mãe galinha”, mas, naquele momento, olhando pela abertura na traseira do jato, as


suas certezas esfumaram-se. Largando a correia, avançou cautelosamente para um objeto perto da rampa aberta. Parecia um cruzamento de bobsled olímpico com o “torpedo de fótons” da série Star Trek. Os seus criadores chamaram-lhe Unidade de Inserção Tática de Longo Alcance para Ocupante Singular. Os homens que o tinham testado chamavam-lhe XL ou Expresso Lunático. Funcionava como um planador individual. Largado de uma altitude de onze quilômetros, com um rácio de sustentação de vinte para um, o Expresso Lunático conseguia transportar o seu ocupante numa viagem de sentido único ao longo de duzentos e vinte quilômetros, fazendo-o sem qualquer som, rastro térmico ou presença captável por um radar, já que era fabricado com plástico especializado e estava coberto por uma camada que absorvia ondas de radar e que, quando Kurt a tocara, lhe parecera borracha macia de pneu. Para o pilotar, o ocupante deitava-se no interior virado para baixo e segurava um par de manípulos que não pareciam muito diferentes do guiador de uma velha bicicleta de dez velocidades. A seguir, colocava os pés em suportes semelhantes a botas de esqui. A seção dianteira da aeronave era de acrílico transparente, com uma imagem projetada por cima. Mostrava leituras de velocidade, altitude, direção, rácio de sustentação e de descida. Incluía ainda um indicador visual destinado a ajudar o piloto a manter o ângulo correto e a alcançar o destino desejado. Naquele caso, era o petroleiro Onyx, a cento e vinte quilômetros de distância. Sua posição bizarra no oceano tornara-o difícil de alcançar. Não apenas por estar distante da rota comercial mais próxima, mas também porque não existiam rotas aéreas que passassem perto da área. Sobrevoar o navio, mesmo a onze mil metros de altitude, teria levantado suspeitas imediatas, mas existia uma rota aérea muito usada a apenas cento e vinte quilômetros para sul. No radar, o IL-76 pareceria apenas mais um avião de passageiros percorrendo a autoestrada aérea. Kurt acreditava que ninguém acharia necessária uma observação mais cuidada. E, mesmo que a fizessem, nenhum sistema que Kurt conhecesse conseguiria captar o planador e o ocupante. Em teoria, era um plano simples. No simulador, Kurt sentira que jogava um jogo de vídeo. Mas a realidade era um pouco mais intimidante. — Vamos — disse a Joe. — Ajuda-me a entrar nesta coisa antes que mude de ideias. Joe aproximou-se do planador. — Fazes ideia de quantos pormenores podem correr mal no teu plano? — Não — respondeu Kurt. — E não quero que me digas. — O lançamento pode correr mal, podes ser dilacerado pelo rastro de um


motor, o oxigênio pode falhar, o que significa que perderás os sentidos antes de conseguires atingir uma altitude segura... Kurt ergueu o olhar. — Não ouviste o que disse? — ... podes morrer gelado — continuou Joe, ignorando-o. — Podes não conseguir abrir a cobertura ou ativar o paraquedas. Podes ficar com os pés presos. As asas poderão não abrir corretamente. Kurt passou para o interior do planador em forma de torpedo, desistindo de tentar travar Joe. — E tu? — perguntou. — Tens que ficar a bordo destes destroços. Viste a ferrugem perto da junção da asa? Viste a fumaça que saía do motor número três quando estavam todos ligados? Difícil acreditar que este pássaro velho tenha conseguido levantar voo. — Faz tudo parte da experiência Aeroflot — respondeu Joe. — Claro que preferia voar num avião de fabricação americana, mas acho que é mais seguro do que o que estás prestes a tentar. Kurt quis discordar, mas não conseguiu. Na verdade, acreditava que o avião era seguro, mesmo que sacudisse e estremecesse e guinchasse como uma banshee. Mas, se Joe pretendia fazê-lo transpirar, teria de retribuir o favor. — E não te esqueças dos pilotos — acrescentou Kurt. — Acho que vi um deles tomando saquê antes de decolar como os pilotos kamikaze faziam. Joe riu. — Sim. À tua saúde, amigo. Uma luz amarela acendeu-se. Faltava um minuto para o salto. Kurt prendeu os pés, deitou-se de bruços e ligou os mostradores de vídeo. Quando tudo se ativou, fez um sinal a Joe com o polegar erguido. Este colocou a cobertura fina sobre as suas costas, cobrindo-o e ao seu paraquedas especial. Uma segunda luz amarela acendeu-se e uma luz vermelha começou a piscar. Trinta segundos. Joe se afastou do campo visual de Kurt e dirigiu-se ao controle de lançamento. Segundos depois, Kurt ouviu-o fazer a contagem decrescente. — Tres... dos... uno... — E depois, com grande entusiasmo: — Vámonos, mi amigo! Kurt sentiu-se empurrado para trás enquanto uma passadeira rolante poderosa o empurrava a grande velocidade para as traseiras do avião. A seguir, caiu e sentiu-se espalmado enquanto o planador com forma de torpedo descia a quinhentos nós numa coluna de ar. Segundos depois, um minúsculo paraquedas abriu na traseira do planador e


a força gravitacional da desaceleração atingiu Kurt com tanta intensidade quanto a do lançamento, mas no sentido oposto. As correias se cravaram em seus ombros quando foi lançado para diante. Os braços dobraram e as mãos suportaram o peso restante. Sentia os olhos prestes a saltarem das órbitas. Durou uns bons dez segundos até que a desaceleração diminuísse. Quando conseguiu estabilizar o corpo, Kurt olhou para os mostradores de vídeo. — Quatrocentos — disse, falando para si próprio. Segundos depois: — Trezentos e cinquenta... O planador caía e reduzia, descendo sobre as águas do Atlântico central como um gigantesco projétil de artilharia ou uma bomba tripulada. Por fim, quando a velocidade baixou dos duzentos e dez nós, soltou o paraquedas de freio. Libertou-se com um ruído metálico e a descida passou de trêmula e violenta a enervantemente suave. O vento assobiador foi bloqueado quase completamente pelo seu capacete e os solavancos quase desapareceram. No instante seguinte, a velocidade do ar atingiu os 190 e um par de asas alongou-se, forçado por um mecanismo hidráulico. Era o momento mais perigoso do voo para Kurt. Protótipos tinham sido perdidos quando as asas não se alongavam de forma regular, fazendo o planador girar descontrolado e desfazer-se. Era verdade que, nessa possibilidade, lhe restava ainda o paraquedas, mas seria impossível perceber o que aconteceria ao seu corpo se o veículo começasse a girar sem controle ou a desfazer-se em pleno ar a uma velocidade de quase duzentos nós. As asas fixaram-se na sua posição, em simultâneo com uma pressão tremenda no peito e estômago de Kurt, enquanto o planador ganhava ascensão e se transformava de míssil tripulado numa trajetória descendente em aeronave erguendo-se até voar quase a direito. Quando Kurt conseguiu controlá-lo, decidiu testar as asas para assegurar que tudo funcionava. Girou para a direita e para a esquerda. Fez o planador mergulhar e nivelar, usando esse impulso para iniciar uma subida. Todos os sistemas estavam funcionais e, apesar do perigo que o esperava e de todo o pessimismo de Joe, não se lembrava de sentir idêntico entusiasmo. Era o mais próximo que se poderia imaginar de conseguir voar como um grande pássaro. O pequeno planador reagia de forma instantânea ao seu toque e descobriu que conseguia virá-lo usando o seu peso e inclinando-se para um lado e para o outro como um motociclista acelerando por uma estrada desimpedida. À sua volta, a escuridão era quebrada apenas pela luz difusa dos


mostradores projetados no acrílico e pela luminosidade distante das estrelas. Enquanto manobrava, quase desejou que fosse dia para maximizar a sensação, mas chegar ao Onyx sem ser visto exigia uma abordagem noturna. A diversão teria de ficar para outro dia. Satisfeito com os testes, Kurt concentrou-se no rumo do planador, ajustou a inclinação e acomodou-se no habitáculo. A sua altitude era de oito mil metros, perdendo cento e cinquenta por minuto e voando a uma velocidade de cento e vinte nós. De acordo com o indicador de alvo, o Onyx esperava-o a setenta milhas de distância.

________________ 1 High Altitude-Low Opening, no original. (N. do T.)


51. Katarina Luskaya sentava-se numa pequena cadeira numa pequena cabine no nível inferior do bloco de aposentos do Onyx. Podia apenas tentar adivinhar, mas parecia-lhe que seria noite. Não importava. A luz nunca mudava na sua cabine sem janelas. Tentou esticar-se, mas não conseguiu. Tinha as mãos atadas e os pés acorrentados. Durante os cinco dias anteriores, tinham-lhe trazido quantidades mínimas de comida e bebida. Enquanto tentava descansar sem sucesso, a porta da cabine abriu e Andras entrou. Vinha sozinho. Visitava-a todos os dias. Era a sua única visita e trazia-lhe sempre más notícias. Os demais cientistas tinham partido, largados em algum lugar no mundo e transformados em escravos. Ela permanecia ali apenas por sua vontade, mas podia mudar de ideias. Ninguém a procurava, insistiu. Dissera a todos que estava morta. E assim acontecia, todos os dias. Nunca referia que planos teria para ela, mas, pela forma como a olhava e quase se babava, suspeitava que fossem terríveis. Normalmente, recebia-o com silêncio total, recusando falar ou responder a perguntas. No dia anterior, esse comportamento provocara um tabefe e a perda da garrafa de água que lhe tinha sido entregue. Sentia a garganta tão seca que nem sequer sabia se conseguiria falar. Andras erguia-se à sua frente, segurando uma nova garrafa. Fitou-a e a colocou fora do seu alcance, como fizera com a faca com a chave presa que oferecera a Kurt. — Já é hora das visitas? — perguntou, com voz rouca. — Ah — disse ele. — Finalmente, a ave engaiolada fala. A postura silenciosa e desafiadora não tinha feito nada por ela. Decidiu ser mais agressiva. — Em breve, será você a estar engaiolado. Se não o matarem antes. Os americanos talvez queiram prendê-lo, mas o meu país tem uma forma diferente de lidar com a agressão. Gostamos de dar o exemplo. — Sim — disse ele. — Sei-o bem. Continuam presos à noção de que são uma grande potência. Como uma criança com má autoestima, recorrem à intimidação como forma de provar a sua força. Parte do que dizia era verdade.


— Não o deixa mais seguro — disse. — A sua gente matou o major Komarov. Foi a primeira falha. sequestrar-me foi a segunda. Não terão escolha que não seja cortá-lo em postas para evitarem parecer fracos. Faça comigo o que fizer. Quase pareceu comovido. — É interessante que use a palavra “escolha” — disse, puxando uma cadeira, girando-a e sentando-se. — Porque todos temos escolhas a fazer. Ergueu a garrafa de água, desenroscou a tampa e bebeu um gole. A seguir, voltou a pousá-la, mais uma vez longe do seu alcance. Debruçou-se para ela, apoiando os dois braços sobre as costas da cadeira, com a face desconfortavelmente próxima. — O seu amigo Austin, por exemplo — disse. — Permiti-lhe que escolhesse. Poderia salvar-se ou optar por morrer com o seu amigo. Permito-lhe a mesma escolha. Viva e prospere ou morra com os que estão prestes a sofrer. Ela manteve o silêncio, não percebendo onde ele queria chegar e não conseguindo pensar noutra coisa além da água. — E — acrescentou Andras com um floreado — oferecerei também uma escolha ao seu país com autoestima ferida. Uma possibilidade de vingança contra mim ou... uma forma de restaurar o seu poder e prestígio perdidos. Extraiu uma navalha estreita de algum bolso escondido e pressionou o botão lateral. A lâmina saltou e fixou-se instantaneamente. Aproximou-a do rosto. — Perguntaria que destino escolhe, mas as palavras podem ser enganadoras. Vejamos o que dizem suas ações. Segurou-lhe as mãos, cortou a corda com a navalha e deu um passo atrás. Katarina esperou um segundo ou dois, mas a sua sede era avassaladora. Levou a mão à água, consciente de que ele já a provara. Bebeu um gole pequeno primeiro, seguindo-se um maior, mesmo receando que lhe fizesse mal. Precisou de um enorme esforço para não esvaziar tudo de uma vez. Ergueu o olhar para Andras, que não movera um músculo. Ela estendeu a mão para a chave. Introduziu-a nas grilhetas que lhe prendiam os pés. Girou-a e estava livre. deixa-me ir? — perguntou. — Para onde irá? — perguntou ele. — Estamos a mil milhas do pedaço de terra mais próximo. Que fará? Pretende nadar até lá? Roubar um barco e remar até Gibraltar? Riu. E estava certo, claro. Não havia fuga possível. — Pode escolher entre ser prisioneira ou convidada — acrescentou. — O que preciso fazer para ser convidada? — perguntou, receosa.


Os olhos dele percorreram o corpo dela, apreciando o que via. — Tem-se em muito elevada conta. É... vagamente desejável, admito, mas me nego o prazer porque pode oferecer coisas mais importantes. Tranquilizou-a ouvir aquilo. — O que, por exemplo? — Este navio não é um petroleiro, como aparenta — explicou. — É uma arma flutuante de incrível poder. Consegue destruir mísseis balísticos em voo. Consegue erradicar uma frota militar inteira num piscar de olhos. Pode ser usado para eliminar toda a vida de uma cidade sem destruir um único edifício. Passou para um sofá, ergueu os pés e continuou. — O mundo ainda não sabe tudo isto — acrescentou. — Mas saberá em breve. E, quando souber, quero que contacte os seus superiores na Rússia e lhes conte quem sou, iniciando uma negociação pela venda da arma. Por quinhentos mil milhões de dólares em diamantes, ofereço a arma do futuro. Katarina estreitou os olhos. Não sabia ao certo do que falaria, mas tinha uma ideia vaga. — Por que não os procura pessoalmente? Certamente terá contatos. — Sim, claro — disse. — Conhecem-me. Mas, da última vez que lhes vendi alguma coisa, o seu amigo Austin roubou a mercadoria das suas mãos antes que pudessem desfrutar dela. Receio que isso lhes tenha provocado um amargo de boca. A culpa foi da sua incompetência, na verdade, e não me senti obrigado a oferecer uma devolução do montante pago ou um pedido de desculpas. Desde então, não confiam em mim como deveriam. Pareceu-lhe que precisava de sua ajuda. Talvez “precisar” não fosse o verbo mais adequado. “Querer” se adequaria mais. Se pretendia verdadeiramente fazer o que dizia, a sua presença conseguiria realmente facilitar a venda. Mas e depois? Não tinha qualquer desejo de fazer parte de um acordo de venda de armas e não podia ter certezas de que sobreviveria depois de desempenhado o seu papel. Mesmo assim, teria de haver uma forma de usar aquilo em seu proveito. Talvez conseguisse aumentar as suas opções se pudesse mover-se pelo navio. — Então espera que os procure, que conte a história que partilhou comigo e peça um carregamento de diamantes em troca de um velho petroleiro? Também não confiam em mim a esse ponto — disse. — É especialista em formas avançadas de produção e transferência de energia — contrapôs. — Compreende os fundamentos da física de partículas. Estou certo que, depois de ver o que se esconde debaixo do capo, conseguirá convencê-los de que o que tenho é genuíno. Levantou-se. Katarina não esperara aquilo. Não fazia ideia do que fazer a


seguir, mas sair da cabine era a primeira prioridade. — Uma visita guiada ao navio? — perguntou ela. — Mostrar-lhe-ei o que vendo — disse, sorrindo. — Ficarão muito impressionados com a descoberta da sua nova agente. — E quando tudo terminar? — Acompanhará o navio — disse. — Levando o seu prêmio para Murmansk como uma heroína conquistadora regressando a casa. Não acreditou que tivesse um fim tão feliz, mas seria inútil demonstrá-lo naquele momento. — E os seus amigos africanos? — perguntou. Ouvira a discussão a bordo do iate. Conhecia o nome Djemma. — Não ficarão incomodados? Sorriu-lhe. — É mais inteligente do que pensei — considerou. — Diga-me, por que acha que matei aquele homem no barco e o deixei na água? Por me irritar? Não. Porque levaria os americanos até Djemma. Já aconteceu. Um porta-aviões americano e a respectiva escolta dirigem-se para o alvo neste preciso momento. Vão forçá-lo a agir. Terei a minha demonstração. E, depois disso, ficará demasiado ocupado com os bárbaros nos portões para fazer alguma coisa além de me acenar de longe. Katarina ergueu a garrafa de água, bebeu outro gole e falou. — Verei o que tem para me mostrar — disse. — Se o que diz é verdade, transmitirei essa informação. E talvez possamos trocar esta água por algo mais agradável. Vinho, por exemplo. Duvidou que acreditasse que a sua mudança de atitude fosse algo mais do que um estratagema, mas vira a forma como a olhara. Faria o que pudesse para o levar a baixar as defesas.


52. Após trinta minutos no planador, Kurt aproximava-se do petroleiro. O pequeno mostrador verde na projeção de vídeo indicava que a velocidade se mantinha estável a cento e vinte nós e a situação parecia favorável. Conseguia ver o petroleiro à distância, iluminado como um monumento em mármore num mar negro. A duas milhas de distância, Kurt libertou a cobertura que Joe fixara. Foi levada pelo vento e, subitamente, a viagem suave voltou a ser acidentada. Era como percorrer uma autoestrada à velocidade máxima num Porsche conversível. Abrandou para noventa nós e sobrevoou o navio a mil metros de altitude. Um pássaro negro silencioso na noite. Continuou em diante durante meia milha e ativou um piloto automático rudimentar que manteria o nariz e as asas niveladas. Satisfeito com a distância, libertou as botas e abriu as mãos em simultâneo, sendo literalmente sugado para fora do planador. No instante seguinte, mergulhava em queda livre e ativou o paraquedas. O planador voaria em frente durante mais quatro ou cinco milhas antes de se despenhar no mar, desaparecendo de vista. Um vigia com binóculos de visão noturna não conseguiria ver o embate, mas, se olhasse para o céu, talvez avistasse Kurt Austin caindo do alto. Para reduzir essa possibilidade, vestira-se de preto e o seu paraquedas manobrável tinha a mesma cor. A seiscentos metros de altitude, pendurado sob ele, descreveu um arco amplo e dirigiu-se diretamente para o navio. Restava-lhe um minuto. Trinta segundos depois, estava a um quarto de milha da proa, pairando duzentos metros sobre ela e percebendo nesse instante uma falha gigantesca em seu plano. As luzes intensas do navio tinham parecido uma benesse à distância, tornando fácil avistá-lo e fixar o rumo, mas percebeu de repente que poderiam ter um resultado desastroso. As luzes fortes de quartzo refletidas pelo convés pintado de branco quase conseguiam cegá-lo. Pior ainda, seria visto assim que aterrissasse como um morcego gigante pousando num pátio iluminado durante uma festa. Percebendo o erro, puxou com força os controles do paraquedas, reduzindo a descida. Deslizou para a direita, para bombordo, e continuou a cair. Percebia apenas uma forma de aterrissar no navio sem ser visto. A seção


mais distante do convés principal, atrás da torre, não estava iluminada. Teria de sobrevoar trezentos metros de área plana, descrever um círculo depois de passar o navio e esperar que mantivesse velocidade suficiente para alcançar aqueles últimos metros de convés. Parecia quase impossível. Mas a alternativa seria cair no oceano, chamar quem o resgatasse e flutuar durante várias horas, esperando não atrair tubarões famintos. Passou o navio, cento e vinte metros acima e a bombordo. Tinha vinte segundos. Quando passou a torre, viu uma figura na ponte, mas não parecia haver sentinelas. Duvidou que alguém no navio profusamente iluminado conseguisse vê-lo. A sua visão noturna seria inexistente com tanta luz. Começou a virar. Turbulência erguendo-se da torre atingiu-o e ameaçou soprar o ar que sustentava o paraquedas. Recuperou e continuou a curva atrás do navio. Em baixo, viu o convés da popa e a espuma branca do rastro do petroleiro. Num extremo desse rastro, um par de hélices de seis metros giraria a duzentas rotações por minuto, como uma picadora monstruosa esperando triturá-lo. Inclinou-se para diante, aumentou a velocidade e começou a cair mais depressa. Puxou os controles com força, mas era tarde demais. O vento que soprava à volta do navio soprou-o para trás. Falhou o convés e continuou a cair, dirigindo-se para a espuma branca e para uma morte horrenda. Tentou afastar-se, mas o vento inverteu a direção, sugando-o para a frente como um pedaço de papel levado pela passagem de um carro. O vento empurrava-o para a popa do navio. Viu letras brancas enormes com a palavra NYX e, no momento seguinte, tombava para um espaço aberto entre o convés principal e um convés inferior. O impacto abalou-o e lançou-o para diante enquanto os cabos do paraquedas se prendiam em algum lugar na abertura. Aterrou de costas e foi empurrado quase imediatamente contra a amurada. O ar turbulento atrás do navio voltara a encher o paraquedas, que agora ameaçava arrastá-lo para fora do convés, levando-o novamente pelos ares. Para trás e para a frente e novamente para trás. Kurt estava farto. Pressionou o dispositivo que libertava o paraquedas e viu-o ser levado para a água. Esvoaçou e perdeu-se de vista, engolido pelo negrume que envolvia o grande navio. Estava a bordo. Apesar de todos os riscos e de a lógica sugerir o contrário, aterrissara em segurança no Onyx. Pensou na longa lista de advertências de Joe acerca de tudo o que poderia correr mal e quase se riu. Nada do que dissera acontecera. Mas nunca falara em luzes de convés, ventos laterais e em ser


dilacerado pelas hélices. Olhando em redor, tentou perceber onde tinha aterrissado. O espaço amplo e escuro recordava-lhe a área traseira de um porta-aviões, o grande vão entre o convés principal e o hangar. Algumas escadas desciam para a água. Um par de portas estanques pareciam trancadas e, à esquerda, viu algumas cadeiras de convés envelhecidas e um balde cheio de beatas. Felizmente para ele, ninguém se sentara ali, fumando, quando ocorreu sua aterrissagem inequivocamente feia. Bem seguro de que ninguém vira sua chegada, retirou o capacete e libertou o tanque de oxigênio. Com um movimento rápido, lançou ambos pela borda. Não ouviu qualquer ruído. O vento e o rastro do navio eram demasiado sonoros para o permitirem. Liberto dos dois itens, moveu-se para o canto mais escuro da área pouco iluminada e pousou um joelho no chão. Mantendo-se ajoelhado nas sombras, retirou uma Beretta de 9mm de um bolso lateral e começou a atarraxar o silenciador. Mantinha os sentidos alerta. Tentou ouvir movimento. Ouvia pouca coisa além do rugido dos motores e de toda a maquinaria. Mas, antes que conseguisse mover-se, o puxador de uma das portas girou. A porta de estibordo abriu e Kurt pressionou-se ainda mais contra a parede como uma aranha tentando esconder-se numa fratura no cimento. Duas figuras saíram, iluminadas pela luz interior até a porta voltar a fecharse. Caminharam até a amurada. — Percebo que ficou impressionada — ouviu dizer uma voz masculina, uma voz que reconheceu imediatamente como pertencente a Andras. Não querendo acreditar na sorte, apertou mais a Beretta. Mas, a seguir, a outra voz falou e Kurt também a reconheceu. Uma voz feminina. Uma voz russa. A voz de Katarina. — Não sei como conseguiram construir tal coisa sem que o mundo descobrisse — disse. — Mas, por mais que me custe admitir, é um projeto incrível. Suponho que deveria agradecer-lhe a visita guiada, a comida e o vinho. — Compreende agora que os seus superiores ficarão interessados — disse Andras. — Sim — disse ela. — Parece-me que ficarão fascinados pelo que lhes direi. A mente de Kurt acelerou enquanto a ouvia falar. Não a culpava por usar qualquer método para conquistar a confiança do seu carcereiro e ter uma hipótese de liberdade, mas as palavras que usava faziam pensar que havia algo


maior em jogo. Antes que mais alguém dissesse alguma coisa, um tripulante abriu a porta. — Chamada para ti no rádio, Andras — disse o homem. — Vem de Freetown. É urgente. — Temos de ir — disse Andras. Levou Katarina até a porta, fê-la passar primeiro e seguiu-a. A luz ampliouse e voltou a estreitar-se, acabando por desaparecer quando a porta pesada de aço se fechou com um estrondo. Se restassem dúvidas na cabeça de Kurt, tinham desaparecido. Os russos não ficariam interessados num superpetroleiro comum. O navio teria de ser algo mais, o que significava que todas as anomalias estruturais serviriam algum propósito. Sentiu-se bastante seguro de que esse propósito não seria benéfico. Erguendo-se, avançou para a porta por onde Andras e Katarina tinham passado momentos antes. Em silêncio, torceu o puxador. Girou lentamente até ouvir um clique. Abriu uma nesga e espreitou o corredor. Não vendo ninguém, abriu a porta e entrou.


53. Gamay Trout estava ao lado do marido Paul no centro operacional do USS Truxton. A atividade a bordo daquele e dos outros navios da flotilha aumentara em ritmo frenético durante as horas anteriores. Os preparativos para o combate não se limitavam ao navio em que viajavam. Helicópteros tinham levantado voo não apenas do Truxton, mas também do navio principal da flotilha, o porta-aviões USS Abraham Lincoln. Pouco depois, ouviu o ruído de jatos descolando e voando na máxima potência. O som era inconfundível, mesmo que o Lincoln se posicionasse a cinco milhas de distância. Até ali, nem ela nem Paul tinham sido oficialmente informados, mas calculou que estivessem prestes a descobrir o que se passava. O comandante do navio, Keith Louden, aproximou-se. Era um homem de porte médio com cabelo grisalho curto e olhar vivo de falcão. Teria cinquenta e poucos anos e era magro. — Como estou certo de que saberão — começou —, estamos prestes a iniciar a movimentação contra um alvo hostil. Um alvo que já destruiu dois dos nossos satélites com uma arma concebida a partir de um acelerador de partículas. Gamay inspirou fundo. — Estamos seguros aqui? — perguntou, recordando os cadáveres queimados que tinham visto no Kinjara Maru. O comandante acenou afirmativamente. — De acordo com os peritos do Pentágono, esta arma é eficaz apenas em alcance rígido. Ou seja, dispara em linha reta, como um laser. Ao contrário de uma bala ou de um projétil de artilharia, ou mesmo de um míssil balístico, não consegue acompanhar a curvatura da Terra. Deveremos estar fora de perigo na nossa posição atual. Mas, assim que um navio ou avião passar o horizonte, a história altera-se. O comandante continuou a explicar a situação, transmitindo o que se conhecia sobre a Serra Leoa, as ameaças de Djemma Garand e a resposta militar planejada. Enquanto falava, aproximou-se de uma tela de toque. Viram nele uma seção da costa de Serra Leoa onde estavam a arma e as plataformas petrolíferas. Uma linha curva vermelha surgiu na tela. — É o horizonte — explicou-lhes o comandante. — Tudo o que passar além desta linha, seja um navio, um avião ou um míssil, poderá ser incinerado


em segundos. Gamay estudou a linha, um arco delimitando um alcance aproximado de quarenta milhas. — Pensei que o horizonte se situasse a dezesseis milhas — disse. O comandante voltou-se para ela. — Dependerá do posicionamento. É esse um dos motivos que levam qualquer soldado a procurar terreno elevado. Permite-lhe ver mais longe. Neste caso, Sra. Trout, dependerá do posicionamento e altitude do local do disparo. Tocou a tela e maximizou uma fotografia das plataformas petrolíferas. — A estrutura principal das plataformas ergue-se cerca de cem metros acima da superfície. O anel do acelerador de partículas tem um diâmetro de vinte e cinco quilômetros. Um disparo da plataforma mais adiantada, ou da parte dianteira do anel acelerador, conseguiria penetrar mais no Atlântico do que um disparo da plataforma mais próxima da costa. Além disso, a altitude permite-lhes disparar contra nós de cima para baixo. — Como arqueiros na torre de um castelo — disse Paul. — Exatamente — concordou o comandante. — Quanto mais altos formos, maior será a distância a que conseguirão atingir-nos. — Por exemplo? — perguntou Paul. — Temos uma configuração bastante baixa para um contratorpedeiro — explicou Louden. — Mas, mesmo assim, erguemo-nos um pouco mais de dezoito metros acima da superfície. Conseguiriam atingir a nossa superstrutura a partir de uma distância de quase cinquenta quilômetros. Os nossos mastros de radar a partir de cinquenta e cinco. — E quanto a aviões? — perguntou Gamay. — Enfrentam o mesmo tipo de perigo — disse o comandante. — O voo terá sempre uma componente vertical de algum tipo. E os pilotos que enfrentam problemas aprendem a subir imediatamente porque isso é preferível a voar para o oceano. Mas aqui isso acabaria por expô-los a fogo direto. Para aeronaves voando a grande altitude, como aviões comerciais, a zona de perigo poderá estender-se aos quinhentos quilômetros ou mais. Gamay inspirou fundo e olhou para Paul. — A verdade é que — continuou o comandante — estamos perante algo que nunca enfrentamos. — Quais são as nossas opções? — perguntou Paul. — O procedimento regular pediria ataques aéreos — disse o comandante. — Começando com mísseis de cruzeiro. Mas Tomahawks e Harpoons voam a velocidades subsônicas. Os F-18 têm uma velocidade máxima que rondará o Mach 2 e não conseguirão ser tão rápidos a baixa altitude.


Virou-se novamente para a tela e para a sua linha de horizonte vermelha. — Um acelerador como este dispara um feixe de partículas que se move quase à velocidade da luz. Isso significa que o nosso míssil mais rápido não cobrirá mais do que trinta ou sessenta centímetros no mesmo período de tempo em que o feixe cobrirá oitenta quilômetros. Uma imagem surgiu na mente de Gamay. Imaginou soldados saindo de trincheiras na Primeira Guerra Mundial, fazendo cargas inúteis contra inimigos armados com metralhadoras. Não era historiadora especializada em guerras, mas compreendia por que a carnificina tinha sido tão alta e por que as linhas de batalha nunca se moviam. A maior parte dos homens que participavam nessas cargas era abatida antes de avançar dez metros. A situação agora parecia semelhante. — Se aviões e mísseis supersônicos são lentos demais para atacar essa coisa, como propõe fazê-lo? — perguntou. O comandante apontou o anel. — Obviamente, terão optado por construir este sistema abaixo da superfície para impedir que fosse avistado. Isso deixou-os com uma vulnerabilidade. Podem ser atacados abaixo da superfície, onde a densidade da água impedirá que um feixe de partículas seja uma arma eficaz. — Tem submarinos por perto à espera de ordens? — perguntou Paul. O comandante acenou afirmativamente. — Cada flotilha de ataque traz alguns amigos invisíveis. Temos dois submarinos de classe Los Angeles. O Memphis e o Providence. A nossa intenção é enviá-los como primeira ofensiva. Pedimos à tripulação do Memphis que avançasse até uma posição a quinze milhas da zona alvo. O seu sonar capta vários sinais que se enquadram no padrão registrado pela sua equipe. — Vários? — repetiu Gamay. O comandante acenou afirmativamente. — Terão pelo menos uma dúzia de pequenos submarinos patrulhando os limites desta zona. Se estiverem todos armados, mesmo que apenas com um par de torpedos cada um, será um problema sério. — Certamente dois submarinos de classe Los Angeles conseguirão lidar com eles — disse Paul. — Podemos avançar e tentar complicar a situação — disse o comandante —, mas os nossos submarinos foram concebidos para caçar grandes submarinos russos e chineses nas profundezas escuras dos oceanos. Esta arma situa-se numa zona pouco profunda da plataforma continental. A profundidade na área do Quadrângulo nunca excede em média os dezoito metros. A duas milhas de distância, aumenta um pouco e existe mesmo um pequeno desfiladeiro aqui...


Apontou uma linha fina que aumentava de largura, formando um rasgão no fundo oceânico enquanto se afastava da zona alvo. — ... mas, além desta ravina, a profundidade nunca excede os sessenta metros até se ultrapassarem as dez milhas. Isso limitará a capacidade de manobra dos navios e colocará a vantagem do lado do inimigo. O comandante endireitou-se e inspirou fundo, tirando o chapéu e alisando o cabelo curto antes de voltar a cobrir a cabeça. — Parte do trabalho de um comandante será não desperdiçar as suas forças em terreno de defesa impossível e não as enviar em missões de combate a que não se adequem. Outra parte será compreender quando é necessário violar este princípio. Se estes tipos têm alguma forma de ameaçar o território continental dos Estados Unidos, não teremos escolha que não seja correr riscos. — Sinto que nos diz isto por um motivo — disse Gamay. O comandante acenou afirmativamente. — Talvez precisemos da sua ajuda. Gamay arregalou os olhos. — Da nossa ajuda? Paul parecia igualmente surpreso. — Que poderemos fazer que a Marinha dos Estados Unidos não consiga? — perguntou. — Conseguirão entrar no desfiladeiro com o seu pequeno submersível. Pode descer até os mil e duzentos metros. E poderão aproximar-se do alvo por um rumo inesperado. Gamay teve de se esforçar para manter o controle. Sentia-se zonza e agoniada. Paul falou por ela. — Por que não pode ordenar a um dos submarinos que siga pelo desfiladeiro? — É estreito demais — respondeu o comandante. — Perto do topo, existe uma fissura que não ultrapassará os seis metros de largura. E, mais adiante, há seções por onde nenhum submarino de grandes dimensões conseguirá manobrar. Paul olhou para Gamay. Tremia e sacudia a cabeça. Tinham vindo apenas para ouvir gravações. Eram civis. — Não posso ordenar que o façam — disse Louden. — Mas peço. Nenhum dos meus homens tem qualificações para pilotar o submersível. E, mesmo que conseguíssemos treiná-los rapidamente, a verdadeira chave será sua Rapunzel. Paul sacudiu a cabeça. Era o homem que Gamay amava. Seu protetor. — Lamento, comandante — disse. — Estou certo de que saberá o que acabamos de passar. Prometi à minha mulher quando aceitamos vir a bordo que não correríamos qualquer risco. Na verdade, não poderia ter imaginado estas


circunstâncias, mas, como costumava dizer o meu velho: “Não damos a nossa palavra se não pretendermos cumpri-la.” O comandante pareceu desiludido. — Compreendo por que pede — continuou Paul. — Mas sinto muito. Não vou quebrar promessa que lhe fiz. O comandante inspirou fundo. Parecia magoado, mas compreensivo. — Nesse caso, informarei os... — Espere — disse Gamay. O comandante a olhou. — Quantos tripulantes têm os submarinos? — perguntou. — Duzentos e sessenta e um. Duzentos e sessenta e um tripulantes, pensou. Pensou nos que teriam família. Mulheres, maridos ou filhos. Se estavam dispostos a arriscar tudo, como poderia recusar-se a fazer o mesmo? O país também era seu. Olhou para Paul. Viu que sabia o que pensava. Viu-o acenar afirmativamente. — Que teríamos de fazer? — perguntou. — Enquanto os distraíssemos — começou o comandante —, manobrariam pela fissura e libertariam o robô. Com cem quilos de explosivos potentes presos à estrutura. Teriam de a guiar pelo anel à procura de um ponto fraco. Qualquer ponto de abastecimento energético ou uma ascensão do túnel em direção à superfície, como terá obrigatoriamente de existir para disparar, colocá-la-iam em posição e, depois, bastaria apenas pressionar o detonador. — E a seguir? — perguntou Gamay. — A seguir, seria conosco — disse o comandante. Gamay inspirou fundo. Não conseguia se imaginar entrando de novo no submersível. Deixava-a literalmente de joelhos bambos. Mas faria porque tinha que ser feito.


54. Erguendo a Beretta, Kurt Austin avançou pelo corredor estreito que percorria dez metros antes de alcançar uma escadaria. Um lance subia, o outro descia. Olhando sobre o corrimão, não conseguia perceber até onde as escadas subiam ou desciam, mas soube que a distância seria grande. Provavelmente até o topo da torre do navio, talvez mesmo até o telhado, onde se situavam várias antenas e emissores de radar. Dez andares acima. E abaixo... Talvez até o fundo do casco. até a sentina. Supôs que Katarina e Andras teriam subido. Apesar de um desejo persistente de encontrar e confrontar Andras, Kurt olhou para baixo. Qualquer que fosse a verdadeira natureza do Onyx, não descobriria a verdade nos gabinetes e aposentos do navio ou até mesmo na ponte de comando. A verdade se esconderia nas profundezas, onde os tanques de petróleo, as bombas e as entranhas do navio se situariam. Dois pisos abaixo, encontrou um compartimento ocupado por bombas silenciosas. Entrou. Petroleiros do tamanho do Onyx tinham bombas colossais. Um navio capaz de transportar milhões de barris de petróleo precisava de conseguir carregar, descarregar e transferir a carga rapidamente. Kurt estivera em alguns petroleiros cujas bombas eram tão grandes como os motores. Aquele não era diferente, exceto... Aproximou-se mais dos dutos principais. Uma camada de gelo os cobria e alastrava à parede. Tocou o duto com os dedos. Estava incrivelmente frio. Era óbvio que não bombeavam petróleo. Encontrou um painel de controle e uma tela de computador. Dizia: Sistema controlado por ponte Interromper s/n? Senha:

O que se passava ali embaixo era controlado de cima. Não se atreveu a mexer nos controles. Era provável que nem conseguisse acessar e acabaria alertando os ocupantes da ponte de comando para sua presença. Regressou à porta e encostou a orelha. Não ouvindo nada além do zumbido


do motor e dos vários geradores, abriu-a. Regressou à escada e desceu. Decidiu ignorar alguns níveis e ir literalmente ao fundo da questão. Descera dois lances de escada quando um ruído metálico o fez parar. Um olhar rápido sobre o corrimão permitiu-lhe ver uma mão dois pisos mais abaixo, deslizando sobre o corrimão e subindo. Ouviu vozes e pés pisando preguiçosamente as escadas. -... tudo o que sei é que quer potência máxima constante — dizia um homem. — Mas nem sequer há outro navio por perto — disse uma segunda voz. — Não me peças para explicar — disse o primeiro homem. — Mas passase alguma coisa. Nunca estivemos a cem por cento antes. Kurt quis ouvir mais, mas não podia esperar. Alcançou o patamar mais próximo e saiu pela porta, fechando-a atrás de si tão rápida e silenciosamente como podia. O ruído da maquinaria era mais elevado naquele nível e calculou que estivesse imediatamente acima da casa das máquinas. Pressionou-se contra a parede, mantendo-se atento à porta à sua direita e ao corredor à esquerda. Os passos passaram aquele nível e continuaram. Continuava a ouvir os homens, mas deixou de conseguir perceber o que diziam. Sentiu-se aliviado quando os passos percorreram o patamar e continuaram a subir. De repente, a porta abriu e assim se manteve. — Não digas nada a ninguém — gritou o homem que segurava a porta ao seu amigo, que continuava a subir as escadas — mas estou pronto para sair desta banheira da próxima vez que atracarmos. O homem que continuava a subida riu. — Pelo menos até estourares o dinheiro, certo? Kurt fitou a porta. O homem atravessava-se na abertura, com a mão sobre a porta aberta e as costas voltadas para ele enquanto continuava a falar com o companheiro nas escadas. Kurt precisava que saísse outra vez ou que entrasse. Ficar onde estava não lhe servia de nada. Rindo-se da piada do amigo, o homem virou-se, entrou no corredor e ficou cara a cara com a extremidade do silenciador da Beretta de Kurt. — Nem pestanejes — sussurrou Kurt. Gesticulou ao homem que entrasse. O tripulante era branco, magro e com aparência mediterrânica. Tinha cabelo curto encaracolado e uma cara bronzeada e enrugada como efeito de muitos anos a apanhar demasiado sol, apesar de não poder ter mais de trinta e cinco anos. O homem obedeceu e fechou a porta atrás de si. — Quem és? — perguntou.


— Sou um duende — disse Kurt. — Nunca viste nenhum? — Um duende? — Sim. Movemo-nos em segredo e estragamos coisas. Costumamos ser muito incômodos. O homem engoliu em seco, nervoso. — Vais matar-me? — Só se me obrigares — disse Kurt. — Vamos. — Indicou o corredor com a cabeça. — Vamos procurar-te um lugar bom para descansares. O homem colocou-se à frente de Kurt e caminhou devagar. Não fez movimentos em falso, mas Kurt sabia que isso poderia mudar a qualquer instante. Ao fundo do corredor, esperava-os outra porta. — Abre — disse Kurt. O homem obedeceu e foi-lhe dito que entrasse primeiro. Kurt seguiu-o e parou. Estava num espaço enorme com teto pelo menos a dez metros de altura. O calor dos dutos de vapor alastrava e sentiu a umidade cobrir seu corpo de forma quase imediata. Um zumbido estranhamente harmônico erguia-se de um conjunto de geradores vibrando baixo. Grandes tubos brancos alongavam-se numa direção, cruzando-se com outros tubos pintados de azul, contendo cabos elétricos. Os tubos azuis seguiam junto a uma passagem suspensa, erguendo-se à volta de uma estrutura cilíndrica, verde-clara, alta como um prédio de três andares e dominando o centro do espaço. Kurt caminhou em frente, empurrando o homem mediterrânico à sua frente. Sobre o enorme cilindro verde, viu letras pintadas. Um número e a palavra russa Akula confirmaram os seus receios. — Isso é um reator? — perguntou. O tripulante acenou afirmativamente. Como se fosse uma confirmação, uma placa escrita em inglês, francês e espanhol continha ainda os três triângulos que formavam o símbolo internacional da radioatividade. Kurt olhou para lá da enorme estrutura e viu outra idêntica, talvez a sessenta metros de distância. — O Typhoon desaparecido — disse para si próprio. Todas as provas tinham sugerido que alguém o comprara e o fizera desaparecer. Percebeu que estava certo quanto ao seu destino, mesmo que tivesse errado no propósito. O submarino desaparecera realmente e Andras e os seus aliados eram os novos proprietários, mas, aparentemente, tinham estado mais interessados nos reatores do que no casco. Tentou entender por quê. Para que um petroleiro que se movia a sete nós precisaria de dois reatores nucleares? Sentira o cheiro da fumaça de diesel


durante a sua aproximação. Se não usavam os reatores para alimentar os hélices, para que serviam? — Para que é isso? — perguntou. — Não sei — respondeu o tripulante. Kurt golpeou-o na cara com o punho da pistola e apontou-a para o olho. — Não mintas — disse-lhe. — Para o acelerador — disse o homem em voz baixa. — Um acelerador de partículas? A bordo do navio? O homem permaneceu imóvel. — Vamos — exigiu Kurt, armando a Beretta. — Ouvi-te dizer ao teu amigo que alguém queria mais potência. Foi por isso que vieste a este piso. Pela tua roupa, serás um mecânico e não um marinheiro. Sabes o que se passa aqui. Ou me dizes ou levarás os teus segredos para o túmulo. Despacha-te. O homem fitou a pistola na mão de Kurt. Passou a língua pelos lábios e falou. — Usam os reatores para alimentar o acelerador — disse. — A energia é canalizada pela proa. Consegue incapacitar um navio. — Consegue fazer mais do que isso — disse Kurt. — Vi os cadáveres de homens queimados vivos e com os cérebros fritos dentro do crânio. Tudo graças ao seu brinquedo. — Apenas cuido dos reatores — argumentou o homem. — Boa desculpa — disse Kurt. — Para onde ias? — Para a sala de controle — respondeu. — Leva-me lá — ordenou Kurt. O homem olhou novamente para a pistola e acenou afirmativamente. Aproximou-se da passagem suspensa e começou a subir. Kurt seguiu-o pela passagem que acompanhava a parede em volta dos reatores.


55. No alto da subida, a passagem se afastava do reator. Ali, uma pequena área resguardada com paredes de aço e janelas amplas erguia-se sobre a instalação. O tripulante estendeu a mão e abriu a porta. Kurt empurrou-o para dentro e entrou a seguir. Dois homens esperavam no interior, vestidos de branco e estudando uma tela. Um deles vestia macacão e parecia um mecânico. Pela roupa que o outro vestia, calculou que fosse um técnico. Kurt não demorou a colocar os três encostados na parede. A questão seguinte era: o que fazer. Aproximou-se da tela que os homens estudavam. O monitor exibia uma vista lateral do navio. — Diagrama? — perguntou. Um dos homens acenou afirmativamente. — Condutas elétricas — disse. Kurt olhou com maior atenção. ícones coloridos tinham textos diferentes ao lado. Junto a um retângulo amarelo, leu “Eletricidade Principal”. Depreendeu que fosse o sistema elétrico principal do navio. Um ícone azul estava legendado como “Alta Voltagem”. As linhas dessa cor desciam até o fundo do navio e formavam um círculo, erguendo-se junto à proa e recuando até uma seção central. Baseando-se nas fotografias que tinha visto juntamente com Joe, percebeu que as seções destacadas coincidiam com as estranhas saliências que Joe notara perto das âncoras e com o trecho bojudo no centro do navio. — É o percurso do acelerador? — perguntou. Os homens acenaram com a cabeça de forma perfeitamente sincronizada. — Contorna o navio e tem a saída junto à proa — disse um dos mecânicos. — Claro — murmurou Kurt. Custou-lhe acreditar que não tivesse visto a ligação antes. O Onyx estivera em Serra Leoa num período que coincidia com a estadia de Andras e sabia que a carga do YBCO a bordo do Kinjara Maru ocorrera também no mesmo momento, mas nunca levara as coisas mais longe, percebendo que o Onyx sempre transportara a arma que fritara o navio naufragado. Parecia-lhe tão óbvio. Mas algo o intrigava. Onde estava o Onyx na manhã em que o Argo se aproximara do cargueiro atacado? Tinham feito uma busca meticulosa depois da fuga de Andras e de este ter simulado a sua morte ao destruir a lancha. Não tinham encontrado nada. Nem visualmente nem com o


radar. Isso significava que teria de existir um submarino. Supôs que Andras e os seus homens tivessem saltado ao mar imediatamente antes da explosão. Supôs que teriam nadado até um pequeno submarino, talvez cinco ou dez metros abaixo da superfície, entrando por uma comporta estanque de algum tipo. Entretanto, Kurt e o resto da tripulação do Argo tinham-se deixado enganar pela explosão. Mas, se o Typhoon estava numa pilha de sucata em algum lugar, que submarino usariam? — Têm um submarino? — perguntou. O técnico acenou afirmativamente. — Temos três. — Algum deles é suficientemente grande para transportar carga? — O Bus — disse o mecânico. — Tem trinta e três metros de comprimento. Quase exclusivamente espaço vazio. A não ser que esteja carregado com toneladas de YBCO, pensou Kurt. Se estivesse certo, o Onyx fritara o Kinjara Maru e seguira caminho. Andras teria retirado o YBCO do cargueiro durante a noite, carregando-o a bordo do Bus e enviando o submarino para a posição ocupada pelo Onyx, em algum lugar além do horizonte. Mas não conseguiu afundar o navio com rapidez suficiente e isso permitiu que Kurt avistasse a coluna de fumaça de manhã. Não respondia à questão mais premente. Se foi o Onyx atacando o navio, por que Andras não deu potência máxima aos reatores? Se tivesse compreendido bem, não haveria nenhum navio por perto que pudesse ser atacado com o acelerador de partículas. Tocou a tela e reduziu a ampliação. Viu um aglomerado enorme de cabos de alta voltagem no centro do navio, onde os tanques de petróleo estariam se o Onyx fosse usado para a sua função original. — O que é isso? — perguntou, apontando a seção central do navio. — Esta confusão toda. O que é? O homem hesitou. — Vamos — disse Kurt, erguendo a pistola. — Não tenho o dia todo. — É o Fulcro — disse o mecânico, por fim. — Fulcro?- repetiu Kurt. — O que faz? O mecânico aproximou-se e tocou a tela, ampliando o diagrama. Os olhos de Kurt voltaram-se para a tela com demasiada avidez. Tornara-o vulnerável. Algo que percebeu demasiado tarde. O mecânico lançou-se sobre ele, segurando a arma com as duas mãos. Kurt


libertou-a e golpeou o estômago do homem com um cotovelo, empurrando-o para o lado com um antebraço em cheio na cara. Mas outro deles alcançou uma chave de algum tipo caída no chão e moveu-a contra Kurt, falhando-lhe a cara por centímetros enquanto recuava. Disparou a Beretta duas vezes e atingiu-lhe o peito com duas balas com o ruído abafado pelo silenciador. O homem deixou cair ruidosamente a chave no chão e tombou para trás. Kurt moveu a arma para a direita. Mas era demasiado tarde. O terceiro homem premira algum tipo de botão de alarme. Em redor, ouvia sirenes e via luzes piscando. Golpeou-lhe a cara com a pistola, pensou em matá-lo e desistiu. Tanto quanto sabia, aquele tipo poderia ser o único que soubesse desativar o reator. Supondo que teria pouco tempo, aplicou-lhe uma joelhada no estômago e lançou-o ao chão. A seguir, virou-se, saiu pela porta e começou a correr pela passagem suspensa abaixo. Os seus passos sobre o metal eram suficientemente sonoros para serem ouvidos sobre o zumbido dos geradores, mas não tinha tempo para tentar passar despercebido. A meio dos degraus de acesso à passagem suspensa, ouviu tiros. Viu o clarão de um ricochete no metal e, a seguir, avistou um grupo de homens perto da porta por onde tinha entrado. Retribuiu o fogo, forçando-os a abrigarem-se, antes de saltar sobre o corrimão. Aterrou em pé e começou a correr. Passou os reatores e continuou pelo navio dentro. Chegou a uma porta, segurou o puxador e abriu-a. Para sua surpresa, foi recebido por um sopro de ar frio. Correu para dentro e viu-se sob uma enorme teia de grandes braços entrelaçados dobrados de uma forma que lhe fazia lembrar uma pilha de cadeiras ou uma estrutura monstruosa de um parque infantil ainda por montar. Centenas de blocos cinzentos rodeavam cada um dos braços. Condutas de alta voltagem e uma rede de mangueiras e tubos cobertos de gelo passavam entre os blocos. Todo o compartimento era do tamanho de um pequeno estádio, com dez pisos de altura, cento e vinte metros de comprimento e alongando-se da popa à proa do Onyx. Enquanto corria sobre o piso metálico, avistou gigantescos pistões hidráulicos presos à teia de braços articulados. Supôs que fosse o Fulcro. Mas não percebia que significado teria. O traçado deu-lhe a impressão de que poderia abrir como um enorme leque. Um diagrama na parede avisando a tripulação para se afastar das articulações sugeria o mesmo. Presumiu que o acelerador de partículas que contornava o casco e se abria junto à proa seria a arma do navio. Que raio fazia aquela coisa? Fosse o que fosse, parecia mais importante para os técnicos do que o


acelerador de partículas e isso preocupou-o. Antes que pudesse aprender mais, ouviu passos e outra porta abriu no extremo oposto do espaço cavernoso. Percebeu que estava cercado. Olhou para cima. Outra passagem suspensa dez metros acima. Com cautela, subiu pelo ativador hidráulico e içou-se para a estrutura. Era como trepar a maior gaiola de parque infantil do mundo. Estava quase no topo quando tocou acidentalmente um dos tubos de refrigeração. Afastou o braço com velocidade relâmpago e, de alguma forma, conseguiu não perder o equilíbrio ou praguejar de dor. Cerrando os dentes, olhou para a mão. A pele soltava-se como se tivesse sido queimada, mas Kurt sabia que não. Fora instantaneamente gelada. Observou o tubo. Uma inscrição quase invisível sobre o gelo dizia LN2, abreviatura comum para o nitrogênio líquido. De acordo com o que aprendera, os ímãs supercondutores precisavam ser mantidos a temperaturas absurdamente baixas para que as suas propriedades fossem ativadas. Calculou que o exterior isolado do tubo rondasse os cinquenta graus negativos. O líquido pressurizado no interior seria bombeado a uns incríveis cento e noventa graus abaixo de zero. Kurt retomou a escalada. Não toques nos tubos, murmurou para si próprio, como se a pele queimada pelo gelo não fosse suficiente para lho recordar. Quando alcançou a passagem suspensa, conseguiu ver os homens que o perseguiam. Três aproximavam-se por um lado, outros cinco vinham da direção oposta, afastando-se para cobrir mais terreno. Tão silenciosamente quanto podia, Kurt içou-se para a passagem. Depois de permanecer sentado por um segundo, começou a rastejar. Permaneceu em silêncio quase completo, mas a vibração provocada pelo seu movimento fez um pedaço de gelo decolar-se do fundo. Caiu como um pingente soltando-se de um cabo de alta tensão e fez um som de vidro partindose ao atingir o chão. — Ali em cima! — gritou alguém. Kurt começou a correr. Ouviu um tiro. E nada mais. Se tivesse conseguido olhar para trás, teria visto o líder dos perseguidores aproximar-se do atirador, quase estrangulando-o por falhar um tiro ali. Mas Kurt nunca olhou para trás. Conseguiu chegar à porta no extremo oposto do espaço vasto do Fulcro e saiu por ela, fechando-a atrás de si. Correu em diante, procurando desesperadamente um local onde pudesse esconder-se e uma forma de enviar uma mensagem. Algo estava prestes a acontecer. Aquele navio estava prestes a entrar em ação de alguma forma. Estava certo disso. E, fosse o que fosse, estava bastante


seguro de que o resto do mundo nĂŁo apreciaria o que aĂ­ vinha.


56. Moscou, Rússia

O homem calvo a serviço do estado, elemento destacado do FSB, presidia os trabalhos numa sala sem janelas do Lubyanka, o enorme edifício monolítico que servia de sede aos Serviços de Segurança Federais da Rússia. Acompanhavam-no na sala vários membros do Politburo, um representante da Marinha Russa e um general do Exército Vermelho. Acabara de ouvir uma chamada de Katarina Luskaya pelo rádio, afirmando estar a bordo de um navio com um homem chamado Andras que queria venderlhes uma arma superpoderosa capaz de os colocar anos à frente de americanos e chineses. Após ouvir a explicação, um dos políticos não conseguiu conter o seu desdém. — É estranho que não saibamos nada dessa arma — disse. — E agora esperam que acreditemos que sua agente caloura a descobriu. — Foi capturada por este Andras — disse o calvo. — É uma sorte que a tenha mantido. É ele que nos faz a oferta. Temos um passado com ele. — E não é um passado bom — recordou o general. — Não, não é — admitiu o careca. — Exige uma quantia absurda — disse um membro do Politburo. O calvo retirou importância à afirmação com um gesto. — Claro que não pagaríamos o que pede. Apenas uma fração. Talvez dez por cento. E isso apenas se for decidido que deveremos fazê-lo. — A sua agente parecia estar sob pressão — disse o general. — Sim — replicou o calvo. Usara uma palavra em código destinada a alertar para o fato de ser mantida no local contra sua vontade. Mas, para seu crédito, escolhera o menos severo dos dois códigos, o que significava que achava a situação passível de ser gerida. Sentiu-se bastante impressionado com a antiga atleta olímpica. O representante naval presente no grupo falou a seguir. — Seria bom podermos ver o navio — disse. — Se tiver interesse, poderemos iniciar negociações. Se for mentira, bastará riscar a Sra. Luskaya do efetivo. O calvo moveu o olhar para o homem da Marinha. Aquela geração mais


jovem percebia muito pouco. Isso preocupava-o. — Nenhum de vós refere o ponto mais importante. De acordo com Andras, demonstrarão a arma contra o Capitólio americano em menos de trinta minutos. Isso torna a questão do navio irrelevante. O que devemos decidir, agora que fomos informados, é se avisamos ou não os americanos. A sala ficou em silêncio. Ninguém quis falar. — É uma situação muito delicada — disse o calvo. — Se a ameaça revelar ser real e se se souber que a conhecíamos antecipadamente... Não era necessário elaborar. O representante do Politburo voltou a manifestar-se. — O que recomenda? O calvo uniu as mãos. Todos os seus instintos lhe diziam que era um problema dos americanos. Até certo ponto, não lhe teria desagradado ver uma calamidade afetar os seus velhos inimigos. Mas as repercussões poderiam ser imensas. Não podia ignorar a lei das consequências inadvertidas. — Informem-se os americanos da ameaça — disse, por fim. — Não se refira o navio e certifiquem-se de que esquecerão esta conversa. Olhou em redor. Todos os presentes eram homens de poder, mas todos o receavam. E tinham motivo para isso. — O que acontecer a seguir diz-lhes respeito a eles — acrescentou. — E o navio? — Se a oportunidade surgir — replicou o calvo —, aceitá-la-emos no momento certo. Talvez paguemos, talvez negociemos. São pormenores que terão de ser decididos mais tarde.

A oito mil quilômetros de distância, no centro do Atlântico, Andras erguiase sobre Katarina, que permanecia sentada diante do rádio. Por fim, chegou uma chamada. Era o calvo. — Diga a Andras que, desta vez, não estamos interessados em mercadoria danificada — disse. Katarina olhou para cima. Qualquer que fosse o significado da mensagem, Andras compreendia. Acenou afirmativamente. — Mensagem recebida — disse, pressionando o botão que ativava o microfone. — Da — disse o calvo. — Bom trabalho, Sra. Luskaya. Aguardamos o seu regresso. Não sentia que tivesse feito um bom trabalho. Limitara-se a ceder às ameaças do homem que a sequestrara e matara outros, incluindo o major


Komarov e Kurt, que tinha tentado salvá-la daquele destino. E, agora, estava envolvida num incidente que custaria vidas incontáveis no país do americano. Não via qualquer forma de impedir que acontecesse. Subitamente, começaram a soar sirenes. Andras reagiu e a porta abriu segundos depois. — Que raio se passa? — exigiu saber. Um tripulante sem fôlego estava à porta. — Um problema no compartimento dos reatores. — Uma fuga? — perguntou Andras. — Não — respondeu o homem. — Um intruso. Andras riu. -Um intruso? De certeza? Estamos a mil e duzentas milhas da massa de terra mais próxima. — Eu sei — disse o homem. — Não consigo explicar como aconteceu. Nenhuma embarcação se aproximou da nossa posição. O sonar não detetou veículos submarinos. Talvez um passageiro clandestino — supôs, por fim. — Também não será provável — afirmou Andras com confiança suprema. — O mais provável será que alguém esteja bêbado e tenha cometido um grande erro. Katarina conseguia ouvir a raiva na sua voz. Não queria estar na pele do tripulante que pudesse ter cometido o erro. — Todos os tripulantes estão localizados — disse o homem. — Um dos mecânicos está morto, outro foi espancado por um comando americano com cabelo grisalho. A expressão de Katarina se iluminou. — Cabelo grisalho? — repetiu Andras, subitamente tenso. O tripulante acenou afirmativamente. — Austin — murmurou Andras lentamente. Katarina esperou que sim. Não conseguia entender como era possível, mas esperou que fosse verdade. E Andras percebeu. — Olhe para si mesma — disse, sarcástico. — Os olhos cheios de esperança. Nunca será uma grande agente se não conseguir esconder melhor seus sentimentos. — Não sou agente — disse. — Claramente. — Soava desdenhoso. — Estamos procurando — disse o tripulante, interrompendo-os. — Mas atravessou o Fulcro e desapareceu. — Estamos num navio — disse Andras. — O número de lugares onde pode estar é limitado. Continuem a procurar. Estarei na ponte. Coloquem guardas nas entradas do Fulcro e perto dos reatores. Atirem em tudo que se aproximar.


O tripulante acenou afirmativamente e Andras olhou o relógio. — Temos dezenove minutos. Mantenham-no à distância durante esse tempo e tratarei pessoalmente de o encontrar. O tripulante partiu. Andras segurou Katarina pelo pulso e puxou-a para o corredor. Duas portas adiante, abriu a cabine d refém, atirou-a numa cadeira e voltou a amarrá-la. Primeiro as mãos atrás da cadeira. Depois os pés. — Esperei poder me divertir mais com você — disse. — Mas isso tem que esperar. Não se preocupe. Já não precisa fingir interesse. Não me importa. Com aquilo, saiu, bateu com a porta e trancou-a. Se a fuga tivesse sido urgente em algum momento, pensou, seria precisamente naquele momento. Puxou e se torceu, tentando desesperadamente livrar-se das cordas, mas conseguiu apenas apertá-las ainda mais. Olhou em redor. Não viu nada afiado. Nada de facas, abre-cartas ou tesouras. Mas isso não significava que desistiria. Moveu a cadeira para trás e para a frente até cair. No chão, arrastou-se, conseguindo progredir como uma lagarta com uma pedra nas costas. Por fim, conseguiu se aproximar da pequena mesa. Via os dois copos de vinho e a garrafa que tinha partilhado com Andras, cada um esperando conseguir toldar a clareza de espírito do outro. Embaixo da mesa, começou a golpeá-la com o ombro. Balançou lentamente até um copo cair e quebrar. Tentou alcançar um dos estilhaços. Sentiu alguns mais pequenos cravaremse no braço. Não se importou. Tudo o que importava era conseguir alcançar um estilhaço maior e curvo e usá-lo na corda. Por fim, conseguiu tocar um. Segurando-o de forma atabalhoada, sentiu-o a cortar-lhe a palma da mão, mas conseguiu segurá-lo numa posição que lhe permitia usá-lo para cortar a corda. Começou a movê-lo para trás e para diante, pressionando-o contra a corda tanto quanto conseguia. Esperou cortar a corda que lhe prendia as mãos porque, com cada movimento, sentia que cortava também a pele da mão e o sangue tornava seus dedos escorregadios. A dor era grande, mas não desistiria enquanto lhe restassem gotas de sangue nas veias. Continuando a cortar a corda, ouviu uma batida suave na porta. Quase como se alguém se tivesse encostado a ela. A seguir, ouviu a porta abrir. Não conseguia ver. Estava de costas para ela. Receou o que Andras faria se a encontrasse. Talvez a deixasse ficar ali deitada, sangrando até a morte. A porta fechou-se e algo pesado caiu no chão a seu lado. Sentiu mãos no


corpo. Não eram mãos frias e ameaçadoras, mas sim mãos ternas. Virou-se. Em vez da cara de Andras, viu olhos azuis meigos e cabelo grisalho. — Kurt — exclamou. Viu-o erguer um dedo até os lábios. — Não se mexa — disse. — Está perdendo muito sangue. Desamarrou-a, ergueu um pedaço de pano e enrolou-o na mão com firmeza. Atrás de Kurt, um tripulante jazia no chão, com sangue escorrendo de um buraco de bala no peito. Supôs que era o guarda na sua porta. — Pensei que estivesse morto — sussurrou. — Vê-la no chão com os pulsos ensanguentados me fez pensar o mesmo — disse ele. Ajudou-a a sentar. — Vão usar este navio para atacar seu país — disse. — Pretendem atacar Washington, DC, em menos de quinze minutos. — Como? — perguntou. — Construíram um acelerador de partículas colossal na costa de Serra Leoa. Pretendem usá-lo para enviar um grande feixe de partículas contra Washington. Varrerá o território como o feixe numa tela de computador. Destruirá todos os dispositivos eletrônicos na cidade e incendiará tudo o que for inflamável. Os dutos de combustível explodirão. E também carros e aviões. As pessoas entrarão em combustão espontânea enquanto caminharem na rua. Vai matar e ferir milhares. — Já testemunhei os efeitos — disse. — Mas como conseguirão fazê-lo de tão longe? — Este navio está equipado com um sistema eletromagnético poderoso — explicou. — O Fulcro — disse Kurt. — Vi-o. Para que serve? O feixe parte daí? — Não — disse Katarina. — O feixe vem de Serra Leoa. Mas passa sobre nós e, com toda a potência que geram e fazem passar pelo Fulcro, conseguirão alterar seu trajeto. Em vez de continuar até o espaço em linha reta, atingirá um ponto máximo no navio e será encurvado pelas forças magnéticas e direcionado para a sua capital. — Como uma tacada de tabela no bilhar — disse Kurt. — É por isso que o chamam de Fulcro. Katarina acenou com a cabeça em concordância. — Estão loucos — disse Kurt. — Desencadearão uma guerra aberta. Precisavam ser parados. Kurt levantou-se, retirou o carregador da pistola e substituiu-o por um carregador cheio.


— Tenho que chegar ao sistema eletromagnético — disse. Katarina ergueu-se a seu lado. — Estão esperando. Sabem que é seu objetivo. Os reatores também estão protegidos. Pareceu aborrecido. — Tem alguma sugestão? Forçou-se a pensar. A falta de sono e meia garrafa de vinho dificultavam o processo, mas, finalmente, ocorreu-lhe uma coisa. — O refrigerante — disse. — Nitrogênio líquido — disse Kurt. Acenou afirmativamente. — Se desligarmos o nitrogênio, os ímãs ultrapassarão rapidamente a sua temperatura operacional e o sistema perderá potência. Com sorte, será suficiente para impedir que funcione. Katarina viu o rosto de Kurt ficar tenso. Virou ligeiramente ouvindo um ruído, que também ela ouviu. A porta da cabine abriu de rompante. Havia um tripulante do outro lado. — Mandei ficar de sentinela na port... Foram suas últimas palavras, antes que Kurt o atingisse com dois tiros da Beretta. Correu para a porta, mas era tarde. O homem caiu para trás, no corredor. Quando Kurt o alcançou, ouvia gritos se aproximando. Disparou, primeiro numa direção, depois na outra. — Vamos — gritou para Katarina. Ela correu e virou à direita enquanto ele atirava à esquerda do corredor. Kurt correu atrás dela e, no momento seguinte, desciam por uma escada. — Sei aonde ir — disse Kurt, segurando-a pela mão e puxando-a. — Espero que cheguemos a tempo.


57. Paul Trout sentava-se aos comandos do novo submersível, encolhido como um basquetebolista num automóvel compacto. Mesmo que fosse mais pequeno que o Grouper, fora concebido com maior espaço vertical no habitáculo, que lhe permitia, pelo menos, sentar-se. Havia também espaço suficiente para Gamay manobrar o seu aparato de realidade virtual sem estar deitada. Estava também sentada, com o equipamento pronto, imóvel e olhando pelas pequenas vigias à sua frente. A vista era surreal. Avançavam a cento e quarenta nós a três metros acima da superfície, suspensos do Seahawk SH-60 por cabos. Apesar de ser noite, a espuma das ondas era visível enquanto as sobrevoavam. O plano era serem largados a sul, tão perto da linha do horizonte quanto fosse possível. Aí, mergulhariam até o desfiladeiro submarino e avançariam pelo interior, transportando o seu pequeno bombista robótico. A primeira leva de ataques aéreos começaria dali a vinte minutos. Sendo verdade que ninguém esperava que corresse bem, esperavam que os mísseis e as manobras do esquadrão de caças do Lincoln distraíssem as forças de Djemma Garand e permitissem que a inserção de Paul e Gamay passasse despercebida. — Um minuto para o ponto de largada — disse a voz do piloto. — Recebido — respondeu Paul. Não podia fazer nada. O submersível estava preparado. Quando o piloto decidisse largá-los, cairiam. Esperou que não fosse a cem à hora. — Trouxe mantimentos — disse a Gamay. — O que trouxeste? — perguntou ela. — Isto não é um piquenique. Apontou para trás. Equipamento de mergulho preso com cordas elásticas. — Para a eventualidade de termos de repetir a nossa fuga milagrosa. Desta vez, poderemos fazê-lo com mais conforto. Gamay sorriu o suficiente para lhe dar a entender que tinha percebido a intenção. A seguir, a suspeita invadiu-lhe o olhar. — Lembras-te? — Enfiar-me nisto trouxe tudo de volta — respondeu. Gamay pareceu triste. — É pena. — Por quê? — replicou. — Foi horrível — disse. — Foi assustador, mas sobrevivemos. Gosto de pensar que foi um dos


nossos melhores momentos. Esperou que não voltassem a fazer algo semelhante, mas os tanques de oxigênio, as máscaras e as barbatanas ajudariam se acontecesse. — Trinta segundos para a largada — anunciou a voz do piloto. — Vamos a isto — disse Gamay, com coragem. — Muitos morrerão se falharmos. — Dez segundos — disse o piloto. Viu Gamay inspirar fundo. O submersível oscilou quando reduziram quase até parar. Seguiu-se uma sensação súbita de perda de peso, um embate brusco e o ondular do submersível na água. Estavam já prontos para a submersão e, em segundos, as ondas engoliram-nos por completo. Paul empurrou a alavanca de aceleração e ativou o leme direito, colocando o submersível no rumo certo. — Estaremos no desfiladeiro dentro de cinco minutos — disse. — A partir daí, será fácil como um passeio domingueiro. Quinze minutos até o fim e, depois, será com a Rapunzel. Vinte minutos no total. Não parecia assim tão mau, mas, de alguma forma, Paul sabia que seriam os vinte minutos mais longos da sua vida.


58. Djemma Garand estava na sala de comando do seu projeto grandioso, quinze andares acima da superfície do mar. Estava bem consciente de que aquele jogo de exigências inaceitáveis com os americanos tinha atingido o ponto crítico. Destruíra já dois dos seus satélites e declarara o espaço aéreo africano interdito a aviões espiões de qualquer país, mas as últimas notícias dos seus comandantes militares sugeriam que o jogo seria jogado sem limites. — Há um porta-aviões americano posicionado a duzentas milhas da nossa costa — disse-lhe um deles. — O nosso radar principal detetou pelo menos vinte e quatro aviões a caminho. — E quanto a submarinos? — perguntou. — Ainda nada — replicou o comandante das suas forças navais. — Os americanos têm reputação de possuírem equipamento muito silencioso, mas, assim que alcançarem águas pouco profundas, serão detetados e atuaremos. Era o que esperava. — Ergam as redes de torpedo — disse. — E façam emergir o emissor. Por baixo da plataforma, os seus barcos de patrulha ativaram os motores ruidosos e dirigiram-se a grande velocidade para a entrada da baía. Entretanto, os seus helicópteros, equipados com mísseis antissubmarino, descolavam das plataformas do Quadrângulo. Era bom de ver, mas serviriam apenas para tiro ao alvo dos americanos se a arma energética não funcionasse. Uma milha além da plataforma número quatro, uma rampa longa começou a erguer-se do mar como uma serpente colossal despertando. Subiu até se erguer cem metros acima das ondas, com torres telescópicas fixando a sua posição como pilares de uma ponte. Um tubo longo aninhava-se no centro da rampa e, na extremidade, havia um semicírculo preenchido com os supercondutores capazes de direcionar o feixe de partículas em qualquer direção. — Emissor pronto. Níveis energéticos a noventa e quatro por cento — anunciou um dos seus técnicos. Por perto, Cochrane estudava a leitura dos instrumentos. Acenou em concordância. — Todos os indicadores estão preparados. — Mísseis em aproximação — disse o operador de radar. — Seis a sul, dez a oeste. Oito a noroeste.


— Ativar o feixe de partículas — ordenou. — Destruam-nos. Interruptores foram pressionados e uma sequência de código informático foi iniciada. Os sistemas de radar poderosos que comprara estavam operacionais, captando os mísseis americanos e acompanhando o seu percurso. O sistema de controle de disparo agiu automaticamente. A batalha iniciava-se finalmente. Djemma sabia que o seu sucesso dependia de muitas variáveis. Para vencer, precisava de repelir o ataque americano e, em seguida, de os atingir com força no seu próprio território. Para triunfar, teria de conseguir o que nenhum país conseguira fazer em quase duzentos e cinquenta anos: teria de forçar os americanos a recuar. Enquanto ponderava aquilo, explosões múltiplas iluminaram o horizonte e Djemma Garand percebeu que o primeiro golpe fora seu. A milhares de quilômetros de distância na Sala de Reuniões de Emergência do Pentágono, o mesmo grupo que se reunira doze horas antes acompanhava a transmissão em direto e aguardava o desenrolar do ataque à Serra Leoa. Dirk Pitt não se lembrava de se sentir tão tenso, talvez porque os eventos tinham ultrapassado seu controle, talvez porque dois elementos das suas forças, Paul e Gamay, estavam envolvidos. Depois de duas levas de Tomahawks terem sido destruídas e de um avião bloqueador de radares ter sido aniquilado assim que atingiu a posição, iniciou-se a segunda fase dos ataques. Na tela, Pitt viu ícones representando um esquadrão de F-18 Hornets a aproximar-se da costa de Serra Leoa vindos de direções diferentes. Os aviões convergiam sobre uma linha imaginária, a linha do horizonte. Acreditava-se que a arma de feixe de partículas conseguiria incinerar qualquer coisa que passasse essa linha, mas não podiam permitir que Djemma agisse livremente sem a testarem primeiro. A poucos quilômetros da linha, os Hornets dispararam mísseis Harpoon, a mais veloz arma não balística no arsenal da Marinha. Atacando de ângulos diferentes em simultâneo, esperavam sobrecarregar a capacidade de resposta do sistema, mas, enquanto míssil após míssil deixava de transmitir dados de telemetria, Pitt começou a pressentir o falhanço do segundo passo. No fundo da grande tela, um vídeo de uma câmera transportada por um míssil que se aproximava vindo do sul. Três outros mísseis estavam já à sua frente a distâncias diferentes, todos movendo-se deliberadamente por rumos diferentes. À distância, uma explosão surgiu à esquerda. Começou como um clarão, depois formou-se uma nuvem e, por fim, um arco flamejante de combustível


alastrando pela imagem. Segundos depois, duas explosões semelhantes, à frente e à direita daquela vez. Depois, um clarão na lente e nada além de estática e uma tela negra. — O que aconteceu? — perguntou Brinks, apesar de todos terem percebido. — Os mísseis foram-se — respondeu um dos operadores de telemetria. Contatos rádio confirmaram que os pilotos viam a mesma coisa. E depois, subitamente, um piloto entrou em contato com uma mensagem de apuros. — Falha nos sistemas de controle... O sinal foi interrompido. Um segundo piloto fez uma transmissão semelhante e o seu sinal também caiu. — Grandes explosões, localização um cinco cinco — disse um terceiro piloto. — Temos dois, talvez três aviões abatidos... O comandante do esquadrão interrompeu. — Reduzam a altitude. Regressem. Antes que as suas ordens pudessem ser obedecidas, mais dois sinais foram cortados. Momentos mais tarde, confirmou a perda de cinco aviões. — Aparentemente, traçamos a maldita linha no lugar errado — disse. Com cara vermelha e veias salientes no pescoço, Brinks parecia ter a cabeça prestes a explodir. Uma sensação de desconforto alastrou a todos os presentes. Os submarinos avançariam a seguir, juntamente com uma missão desesperada levada a cabo pelos dois civis de Dirk. Mas esse ataque decorreria em câmera lenta. Enquanto esperavam, um adido entrou na sala e falou com o vice-presidente Sandecker. Passou-lhe uma nota escrita. Sandecker ergueu o olhar com preocupação renovada. — O que aconteceu? — perguntou Brinks. — Uma mensagem de Moscou — disse Sandecker. — Moscou? — repetiu Pitt. Sandecker acenou com a cabeça. — Afirmam ter obtido informação de que Washington, DC, está prestes a ser atacada. A ameaça estará relacionada com uma arma de feixe de partículas. Aparentemente, a mesma cuja destruição acabamos de falhar. Insistem que a informação é altamente credível e que a ameaça é válida. Insistem que iniciemos os esforços de defesa possíveis ou que procedamos a uma evacuação. — Mas que raio de... — começou Brinks. Sandecker olhou-o. — Se a informação estiver correta, o ataque ocorrerá durante os próximos dez minutos. — Dez minutos? — Foi bom terem-nos avisado de forma tão antecipada — resmungou


alguém. — Não conseguiremos evacuar a cidade em dez minutos — disse outro dos presentes. — Não conseguiríamos fazê-lo em dez horas. — Sistema de Transmissões de Emergência — afirmou uma voz. — Pedir que todos procurem abrigo. Caves, garagens subterrâneas, o metro. Se for verdade, as pessoas estarão mais seguras nesses lugares. Brinks sacudiu a cabeça. — Se for verdade — repetiu, sarcástico. — É uma piada. Se começarmos a gritar que o céu cai, milhares de pessoas serão vitimadas pelo pânico sem qualquer motivo. E talvez seja precisamente o que desejam, além de pretenderem que os nossos cidadãos receiem que não consigamos protegê-los. — E se não conseguirmos protegê-los? — perguntou Pitt. — Vamos deixálos morrer numa ignorância feliz? Brinks não gostou de ouvir. — Ouçam — disse. — Garand pode ter vencido o primeiro embate, mas não tem forma de nos atingir aqui. Todos os nossos peritos concordam. A arma que possui atinge alvos dentro do seu alcance visual. Não consegue atingir nada além do horizonte. Até os F-18 ficaram seguros depois de recuarem alguns quilômetros. O vice-presidente olhou em redor. — Alguém tem alguma coisa a acrescentar? Se tiverem, será o momento certo. Houve silêncio por um momento, até outro homem da NSA falar. Era um sujeito magro com óculos sem aros. — Há uma possibilidade — disse. — Desembuche — ordenou Sandecker. — Os feixes de partículas são mirados e direcionados através do recurso a ímãs — explicou o homem. — Um estudo concluiu que um campo magnético extremamente poderoso colocado ao longo da linha de percurso conseguiria curvar um feixe, redirecionando-o para um novo alvo. Essencialmente, permitindo-lhe disparar em trajetórias alteráveis. Aquilo não agradou a Pitt. Avançou, ultrapassando as suas competências. — De que precisariam para conseguirem atingir-nos aqui? O homem endireitou os óculos e pigarreou. — Da potência necessária para alimentar uma pequena cidade canalizada para uma estrutura magnética poderosa de algum tipo. — E onde precisaria de estar essa estrutura? — perguntou Pitt. O homem não hesitou. — Teria de estar situada aproximadamente a meio caminho entre o emissor


e o alvo. Fazia a ameaça parecer menos provável. Não havia ilhas nessa localização. Pelo menos, nada suficientemente grande para gerar o tipo de potência de que o homem falava. Mas, por outro lado... Pitt voltou-se para o técnico do Pentágono que controlava os sistemas táticos de visualização. — Amplie e mostre-nos o Atlântico inteiro — pediu. Ninguém se opôs e o pedido foi satisfeito após dois movimentos rápidos sobre o teclado. Na grande tela, o perfil familiar da costa leste americana surgiu do lado esquerdo. África e a Europa Ocidental ocuparam as suas posições à direita. A flotilha de ataque ao Quadrângulo continuava assinalada por um conjunto de ícones minúsculos no canto inferior direito, imediatamente abaixo da grande curva da África Ocidental. — Mostre-me a localização do petroleiro liberiano Onyx — pediu Pitt. — De acordo com o último relatório do Kurt Austin. Demorou alguns segundos e um novo ícone surgiu, colorido de azul tão pálido que quase parecia branco. Uma pequena etiqueta ao lado dizia: Onyx, Libéria. Dirk Pitt fitou-o juntamente com todos os ocupantes da Sala de Reuniões de Emergência. Estava praticamente no centro da tela, exatamente a meio caminho entre o Quadrângulo, junto à costa de Serra Leoa, e a cidade de Washington. — Meu Deus — exclamou Sandecker. — Quando atacam os nossos submarinos? Um representante da Marinha respondeu: — Precisarão de trinta minutos para alcançarem a distância mínima. Não conseguirão impedir o ataque. Ouvindo aquilo, Sandecker entrou em ação, segurando o adido. — Levem o presidente para o bunker — disse. — Ordenem um alerta imediato no Sistema de Transmissões de Emergência. Contactem todas as forças da ordem, serviços de emergência e as companhias elétricas. Digam-lhes que protejam os seus elementos e se preparem para um colapso repentino. Vamos precisar deles para porem tudo a funcionar se isto acontecer. Enquanto Sandecker falava com o adido, um brigadeiro da Força Aérea falava ao telefone com Andrews, transmitindo o que ali fora dito e ordenando procedimentos de emergência. Outras pessoas espalhadas pela sala transmitiam ordens semelhantes, pessoalmente ou pelo telefone. Habitualmente calma, a Sala de Reuniões de Emergência parecia-se com um centro de comunicações durante um dia de movimentações financeiras frenéticas em Wall Street.


Pitt ergueu o celular e enviou uma mensagem escrita de emergência para todos os funcionários da NUMA nas imediações. A seguir, ligou para a sede. Brinks estava lívido, esforçando-se por manter os dedos firmes sobre um celular para ligar à mulher. Dirk compreendia-o. Estava grato por saber que sua mulher, Loren, e seus filhos, Summer e Dirk Jr., estavam na Costa Oeste naquela semana. Ou faria exatamente a mesma dança frenética. Brinks desligou e deambulou com passos inseguros até Pitt. — Atendedor automático — disse, como se estivesse em transe. — Que bela altura para apanhar o atendedor automático. — Continue a tentar — disse-lhe Pitt. — Faça o telefone tocar sem parar. Brinks acenou com a cabeça, mas continuou a agir como se tivesse sido drogado. O choque deixara-o atordoado e incapaz de agir. Fixou em Pitt olhos esgazeados. — O seu homem conseguiu chegar ao navio? — perguntou, baixando a voz. Pitt acenou afirmativamente. — Tanto quanto sei. Brinks engoliu em seco, talvez engolindo o seu orgulho. — Suponho que será a nossa última esperança. Dirk concordou com um aceno. Um homem num petroleiro no meio do Atlântico tinha nas mãos o destino de milhares ou até de centenas de milhares de pessoas.


59. A bordo do Onyx, Kurt correu, disparou e voltou a correr. Esvaziou o segundo carregador, trocou-o por um novo e seguiu em frente, empurrando Katarina. Livres de perseguidores por um instante, entraram num compartimento entre duas das despensas do navio e ouviram. Começara a soar um alarme estranho de algum tipo. Quase se assemelhava à sirene caraterística ouvida a bordo de um submarino quando estava prestes a submergir. — O que é isso? — perguntou Katarina. — Não sei — respondeu Kurt. Segundos mais tarde, uma voz gravada ouviu-se pelos alto-falantes do navio. — Fulcro ativado. Desimpedir a seção intermédia do navio. Repito. Desimpedir a seção intermédia do navio. — Estamos a ficar sem tempo — disse Katarina. — Não restarão mais do que alguns minutos. — E vamos na direção errada. Não tiveram escolha. Cada grupo de tripulantes que tinham encontrado forçara um desvio. Desde que haviam saído da cabine, tinham avançado para a proa e não para a popa. Beneficiava-os o fato de o navio ser gigantesco e ter uma tripulação que não excederia a centena. Alguns dos homens precisavam desempenhar as suas funções técnicas independentemente do que Andras fizesse com o Fulcro. E pelo menos seis estavam mortos. A arquitetura do navio não os favorecia. O compartimento do Fulcro situava-se entre eles e a sala de resfriamento na extremidade posterior. Porque o Fulcro ocupava a metade superior e se alongava de bombordo a estibordo, a única forma de o ultrapassar seria descer até as profundezas e usar um dos níveis inferiores para passar por baixo dele. O alarme e a voz gravada continuaram a ouvir-se e Kurt imaginou a gigantesca estrutura em forma de leque, maior do que um campo de futebol americano, emergindo por portas enormes no convés do Onyx. — Vamos — disse, puxando Katarina para que retomassem a marcha. Percebia que ela se esforçava para o acompanhar, mas não se queixara. Kurt encontrou uma escada que descia por uma abertura no piso.


Deslizou por ela abaixo com os pés nos varões laterais. — Venha — disse. Enquanto Katarina descia, viu que o trapo enrolado à mão estava ensopado de sangue. Aproximou-se para observar o corte. — Estou bem — disse-lhe ela. — Continuemos. Outra escada fê-los passar ao piso inferior. Daquela vez, Kurt parou. Ouvia maquinaria a funcionar num padrão irregular, ligando, desligando e voltando a ligar. Deu-lhe uma ideia. — Espere aqui — disse. Avançou. Uma indicação num par de portas estanques fechadas dizia: “Unidade de Propulsão.” Atrás dele, Katarina encostou na parede e se deixou escorregar em câmera lenta. — Estou bem — repetiu, quando voltou para junto dela. — Estou apenas... a descansar... um pouco. Não conseguiria ir muito mais longe. Pelo menos, não conseguiria correr pelo navio a uma velocidade vertiginosa. E o tempo esgotava-se. A sirene parara e, até mesmo nas entranhas do navio, o casco estremeceu ligeiramente quando algo grande mudou de posição. — Quanto tempo resta? — perguntou. — Um minuto — respondeu Katarina, exausta. — Talvez menos. Deixou-se cair de lado, com o trapo ensopado manchando de sangue o piso de metal. Não podia ajudá-la. Tinha de fazer alguma coisa ao Fulcro antes que fosse demasiado tarde. Com um machado de incêndio que arrancara a um suporte na parede, destruiu a fechadura nas portas à sua frente. O som de maquinaria trovejante ecoava no interior. Entrou. Em baixo, situavam-se os motores elétricos poderosos dos propulsores de proa. Pela forma como o sistema se comportava, esforçava-se para manter o navio nalgum tipo de alinhamento preciso. Kurt supôs que redirecionar um feixe de partículas exigisse precisão. Se conseguisse travar os propulsores ou desregulá-los, isso poderia arruinar a coesão do feixe ou a sua capacidade de se fixar no alvo.

Ao largo da costa de Serra Leoa, Djemma Garand estudou o campo de batalha do seu ponto de vista privilegiado na sala de controle da plataforma número quatro. Forçara os americanos a recuar. Repelira os seus ataques duas vezes. Chegara o momento de retaliar com ferocidade.


— Todas as unidades na potência máxima! Cochrane estava a seu lado, não se parecendo nada com um homem prestes a tornar-se infame para toda a eternidade. Parecia-se mais com um roedor que preferisse procurar refúgio por baixo de um arbusto do que com alguém pronto para reclamar o seu lugar na História. Mas fez o que lhe foi ordenado e treinara os restantes técnicos de Djemma suficientemente bem para conseguirem operar a maquinaria se vacilasse. — Todas as unidades com capacidade de carga a cem por cento — disse. — Túneis magnéticos energizados e prontos. Mistura de partículas pesadas estável. Olhou para mais uma tela com a indicação telemétrica do Onyx. — A estrutura do Fulcro está posicionada — disse. — Prontos para disparar à sua ordem. Djemma saboreou o momento. Os americanos tinham-no atacado com mísseis e aviões e os seus sonares detetavam dois submarinos a aproximar-se de águas pouco profundas. Cediam ao seu poderio e, como prometera, sentiriam as suas garras. Depois de dar a ordem, o sistema energizaria. A carga precisaria de quinze segundos para se acumular nos túneis do seu enorme acelerador e, um quarto de segundo mais tarde, a energia seria projetada em direção ao Onyx e redirecionada para Washington, DC. Durante um minuto completo, varreria a capital americana, movendo-se para trás e para diante e semeando caos e destruição. Olhou para Cochrane. — Ativar e disparar — disse, calmamente.

Na sala de propulsores do Onyx, Kurt encontrou aquilo de que precisava: os cabos grossos de alta voltagem que vira na sala de reatores. Os cabos azuis, pensou, recordando o diagrama. Passavam pelo acelerador e regressavam ao Fulcro. Seria a sua única hipótese. Avançou para eles, movendo o machado e largando-o no último instante possível para evitar ser eletrocutado quando cortasse os cabos. O gume atingiu o alvo, libertando uma enorme chuva de faíscas. Um clarão elétrico cegante preencheu o espaço como um relâmpago de fabricação humana e todo o navio foi engolido pelas trevas. A explosão atirou Kurt ao chão. Sentia a cara queimada. Durante vários segundos, o compartimento permaneceu numa escuridão completa. Os motores dos propulsores de proa vacilaram ruidosamente e começaram a reduzir. Por fim,


as luzes de emergência acenderam, mas, para grande alegria de Kurt, mais nada parecia ter potência. Esperou que fosse suficiente. Esperou que tivesse sido a tempo.

Na ponte de comando do navio, Andras arregalou os olhos. O navio ficara às escuras e, com a escuridão da noite no exterior, era como se o mundo tivesse desaparecido. Segundos depois, as luzes de emergência acenderam-se. A princípio, receou que a estrutura tivesse sobrecarregado o sistema elétrico. Inclinou-se para a frente, pressionando os controles do Fulcro e o interruptor no painel lateral da unidade. Não obteve qualquer resposta. Nem mesmo uma luz de operacionalidade. No instante seguinte, alguns dos sistemas fundamentais voltaram à vida e Andras olhou em redor, esperançoso. — É só a linha cento e vinte e um — disse um dos técnicos. — A alta voltagem continua embaixo. — O homem pressionava interruptores sem efeito. — Não há propulsores nem potência na estrutura central. O acelerador está morto. Andras esticou-se para a frente para fazer uma verificação visual do Fulcro. Erguia-se, aberto como a copa de uma árvore gigante que, de alguma forma, tivesse brotado do centro do navio, mas estava morto. Nem sequer as luzes vermelhas de aviso funcionavam. Levou a mão à alavanca que o fizera se erguer e moveu-o durante um segundo. A seguir, largou-o com grande desgosto. — Maldito seja, Austin! — gritou. Após um momento de reflexão, percebeu que a potência podia ser restaurada. Precisava apenas de se assegurar de que Austin não estaria presente para a interromper uma segunda vez. Ergueu a sua arma e verificou a patilha de segurança. — Enviem alguém para reativar os cabos de alta tensão — ordenou. — Tentaremos outra vez quando a situação estiver normalizada. O técnico acenou afirmativamente. Outro homem olhou para Andras de um canto distante da ponte. — O que dizemos a Garand se nos procurar? — Digam... que falhou. Com aquilo, Andras saiu da ponte em passo acelerado, movido por um único pensamento: Austin teria que ser destruído.


60. A tensão na sala de crise do Pentágono atingira o extremo. Um alfinete caindo soaria como um tiro de canhão. Um dos técnicos, com a mão sobre os fones, transmitiu uma mensagem. — Confirmamos uma descarga no Quadrângulo — disse. — Uma descarga contínua... Com pelo menos sessenta segundos de duração. Ninguém se moveu. Todos fitaram a tela e esperaram o inevitável. Ao contrário dos mísseis balísticos com o seu tempo de aproximação de dezessete minutos, o impacto seria instantâneo. Dez segundos depois, as luzes continuavam acesas e os computadores continuavam a funcionar. Os presentes olharam em volta. — Então? — perguntou o vice-presidente Sandecker. Uma técnica tomou a iniciativa. — As redes mantêm a transmissão de dados — disse. — Não há sinais de impacto ou dano. A face de Brinks começou a recuperar a cor. Virou-se para Dirk Pitt. — O seu homem conseguiu — disse, esperançoso. — Chama-se Austin — explicou Pitt. — Transmita-lhe a minha gratidão juntamente com a gratidão do país — disse Brinks. — E também o meu pedido de desculpas por ter sido um idiota com uma boca demasiado grande. Pitt acenou afirmativamente, supondo que Kurt Austin apreciaria as três razões. Virou-se para os representantes da Marinha presentes na sala. — Vai precisar de uma forma de sair do navio. — Já estou a tratar disso — respondeu um deles, sorrindo. Ouvir aquilo agradou a Pitt. Mas ainda não estavam livres de perigo. No monitor, os ícones que representavam o USS Memphis e o USS Providence piscavam. Transmitiam atualizações de estado. Avançavam para a batalha.

O USS Memphis emergira das profundezas no limite da plataforma continental. Mantendo a posição, o sonar poderoso na proa começou a dar sinal como louco. Não era um procedimento operacional comum, pois denunciava a posição


do navio, mas o plano era atrair a frota de pequenos submersíveis de Garand e permitir aos Trout e a Rapunzel que se infiltrassem pela retaguarda. Outro efeito das emissões violentas de sonar seria confundir e até assustar o inimigo. No interior da ponte de comando do submarino, o operador de sonar via o estratagema a funcionar quase demasiado bem. — Cinco alvos aproximam-se — disse. — Bravo um a bravo cinco. — Temos plano de disparo? — perguntou o comandante. O oficial artilheiro hesitou. O seu computador iluminava-se com luzes verdes positivas e, logo a seguir, com luzes vermelhas negativas. — Os submersíveis são demasiado pequenos e mudam continuamente de direção. O computador não consegue encontrar uma solução. — Então disparem em modo acústico — ordenou o comandante. — Ao meu sinal. — Pronto, senhor. — Fogo em todos os torpedos. Ao longo de um período de cinco segundos, ar comprimido lançou seis torpedos Mark 48 de tubos situados a meio do Memphis. Segundos depois, o operador do sonar ouviu um som diferente. — Torpedos a caminho — anunciou. — Rumo zero-quatro-três e três – cinco — cinco. Pelo menos quatro peixes. Havia torpedos a aproximar-se do quadrante frontal direito e da esquerda. Retiravam-lhes capacidade de manobra. — Virar para estibordo — bradou o comandante. — Rotação plena, tanques de proa abertos. Ativar contramedidas. O submarino virou, acelerou e subiu para a superfície. As contramedidas concebidas para evitar torpedos em aproximação foram lançadas à água atrás deles. As batalhas submarinas eram versões em câmera lenta das batalhas aéreas. E a espera pela aproximação de um torpedo podia ser interminável. Passaram dez segundos, depois vinte. — Vamos — gemeu o comandante. O nariz do submarino ascendia com rapidez. — Um torpedo falhou o alvo — informou o homem do sonar. Dez segundos depois: — Passou o perigo. Tinham conseguido evitar o impacto. Mas o Memphis não era tão ágil como as embarcações diminutas que enfrentava. Tal como um urso lutando contra uma alcateia, não duraria muito. Como se quisesse prová-lo, o homem do sonar voltou a anunciar: — Novos torpedos em aproximação. Rumo zero-nove-zero.


— Ângulo descendente imediato — ordenou o comandante. À distância, várias explosões abalaram as profundezas quando dois dos torpedos do Memphis atingiram os alvos em rápida sucessão. Mas não houve celebração. O perigo estava cada vez mais próximo. — Aproximamo-nos do fundo a grande velocidade, comandante — informou o timoneiro. — Nivelar — disse o comandante. — Mais contramedidas. A inclinação reduziu-se. Outra explosão chegou até eles vinda de longe, mas o operador do sonar pareceu aterrorizado. Virou-se para o comandante, sacudindo a cabeça. — Não funcionou — disse. No instante seguinte, o Memphis foi atingido. Quem não estava sentado e com o cinto posto foi atirado ao chão. As luzes falharam. O som de alarmes ecoou pelo navio. O comandante levantou-se e conseguiu verificar rapidamente a listagem dos danos. — Emersão de emergência — ordenou. O Memphis esvaziou todos os tanques e começou a subir.

A milhas de distância, Paul e Gamay Trout não tinham nenhuma tela onde pudessem acompanhar os acontecimentos nem contato por rádio descrevendo o que se passava. Mas o oceano propagava o som com muito maior eficiência do que o ar e o eco das explosões os alcançou um após outro como o som de trovões distantes. Nenhum dos dois falou mais do que o necessário para a navegação. Por fim, Paul reduziu a velocidade do submersível. Tinham sido largados pelo helicóptero da Marinha, desceram até a entrada do desfiladeiro e avançaram para as plataformas. — Mantemos sessenta metros — disse Paul. — Se o sistema de inércia estiver certo, as plataformas estão a menos de uma milha. Gamay iniciava já o programa de ativação de Rapunzel. Queria terminar aquilo tão depressa quanto possível. — Soltando o cabo de ligação — disse. Sentiu-se transpirar apesar do frio. A seguir, sentiu a mão de Paul em seu ombro, massageando-o suavemente. Outra série de explosões ecoou pelas profundezas. Daquela vez com maior intensidade e proximidade, sendo mais ameaçadoras que as anteriores. — Achas que foi um dos nossos? — perguntou.


— Não sei — respondeu Paul. — Não penses nisso. Faz o que tens de fazer. Tentou bloquear tudo enquanto outra explosão mais pequena chegava até eles, mas a escuridão não permitia que visse nada pelo visor. Os segundos passaram-se. — Qual é a distância? — perguntou. — Deves estar quase lá — disse Paul. Algo estava mal. — Não se mexe — disse Gamay. — O quê? Gamay estudou os dados que recebia do seu pequeno robô. — O motor está operacional, mas não se mexe. Está presa. — Como é possível? — perguntou Paul. Com um movimento da mão direita, Gamay ligou a luz exterior de Rapunzel. A resposta à pergunta de Paul tornou-se imediatamente óbvia. — Está presa numa rede. Gamay fez Rapunzel recuar alguns metros. A presença da rede não era acidental. Pendia do alto. — Redes de torpedo — disse Paul. — Estaremos junto à plataforma. Gamay ativou a ferramenta de corte de Rapunzel. — Vou cortá-la.

O Memphis rompera a superfície, mas a água infiltrava-se a grande velocidade. Foi dada a ordem para abandonar o navio e os tripulantes saíam pelas escotilhas, ocupando barcos ou lançando-se ao mar. Mas os sobreviventes estavam muito aquém da linha de horizonte. Se o inimigo o desejasse, poderia fritá-los a todos com um único disparo da sua arma.

No Onyx, Kurt percebeu que as luzes voltavam ao normal. Sentia-se grato por ver que o mesmo não acontecia aos propulsores. Esperou que isso significasse que a alta voltagem continuava embaixo e que a estrutura do Fulcro continuava inoperacional. Voltou para junto de Katarina, sentada no corredor. — Preparada para mais uma corrida? — perguntou. — Acho que não consigo — respondeu. Observou-lhe a mão. O fluxo de sangue diminuía e começava finalmente a coagular. — Vamos — disse-lhe. — É uma campeã. Prove-o. Ela o olhou nos olhos e o seu maxilar ficou tenso. Ele ajudou-a a levantar e


começaram a andar. — Ainda quer chegar ao compartimento de refrigeração? — perguntou. Ele acenou afirmativamente. — Vão restabelecer a energia aqui em pouco tempo. Teremos de anular esta coisa de forma permanente. — Conheço outro caminho — disse. — Não esperarão que o usemos. Conduziu-o até outra escotilha. Estava selada. Kurt ajoelhou-se e segurou a roda que a trancava. Após duas rotações completas, girou sem restrição. Abriu e viu uma escada que descia por uma abertura no chão. Luzes vermelhas ténues iluminavam a escada e erguia-se ar glacial das profundezas. Subitamente, Kurt pensou no Inferno de Dante, que descrevia algumas das áreas periféricas infernais como frígidas e fazendo lembrar o Ártico. — O que há lá embaixo? — perguntou. — Os túneis do acelerador — respondeu Katarina. Não lhe pareceu um lugar seguro, mas ouvir passos no piso superior fê-lo mudar rapidamente de ideias. Ajudou-a a descer e desceu atrás dela depois de fechar a escotilha. No fundo, chegaram a um túnel. Recordou a Kurt uma plataforma de metropolitano. Era semelhante às plataformas do metro de Washington, mas mais estreita. Os cabos de alta voltagem familiares e os dutos de nitrogênio líquido cobriam cada parede e também o teto e o chão. Filas de retângulos cinzentos brilhantes que Kurt sabia serem ímãs supercondutores alongavam-se até a distância, curvando-se ligeiramente no limite do seu alcance visual. Expirou uma nuvem de cristais de gelo. Estava enregelado. Era como o compartimento do Fulcro, mas mais frio ainda. — Se formos por aqui — disse Katarina —, conseguiremos entrar pela escotilha de acesso traseiro. Um nível abaixo da sala de refrigeração. Kurt começou a andar, com Katarina apoiando-se pesadamente no seu ombro. Era um plano excelente. A tripulação nunca os procuraria ali embaixo. Estava certo disso. — E se ligarem esta coisa? — perguntou. — Se o fizerem, morreremos antes de conseguirmos perceber o que nos aconteceu. — Mais um motivo para nos apressarmos — disse Kurt.


61. Djemma Garand conseguia sentir um aperto na garganta provocado pelo perigo. Washington, DC, permanecia intocada pela sua arma. Andras não respondia e a tripulação do Onyx informava que havia comandos a bordo. Gravitando à sua volta, os militares americanos não davam sinais de recuar, por maior que fosse a intensidade com que os atacava. — Onde está Andras? — perguntou para o rádio. — Procurando o americano — respondeu alguém. — E a estrutura? — Continua embaixo. Não temos potência. O tripulante do Onyx parecia em pânico, mesmo que não enfrentasse uma ameaça tão grande como Djemma. Pousou os fones. Fracassaria. Percebia-o Olhou para o mar. Um dos submarinos tinha sido destruído e flutuava à superfície. O outro continuava a lutar, disparando de águas profundas. Por um par de grandes binóculos, via a tripulação do submarino americano a flutuar nos seus botes salva-vidas laranja. — Apontem à sua posição — disse, calmamente. Cochrane hesitou. — Estamos mortos, Sr. Cochrane — disse. — Tudo o que podemos fazer agora é levar conosco tantos quantos conseguirmos. Cochrane afastou-se dos comandos. — Esqueça — disse. — Se quer morrer numa bola de chamas, é livre de o fazer. Mas eu não pretendo morrer aqui. Djemma esperara aquele momento. Puxou pela sua velha pistola e disparou três balas contra o corpo de Cochrane. Cochrane caiu para trás, imóvel. Djemma disparou mais alguns tiros contra o seu couro imprestável apenas por gosto. — E mais uma vez se prova que estava enganado, Sr. Cochrane — disse. Aproximou-se dos comandos, fitando os técnicos com um olhar cruel. — Mirem os botes e disparem! Gamay Trout terminara de cortar a rede e conseguira fazer passar Rapunzel e a sua carga de explosivos. Depois disso, procurara o que o comandante do Truxton tinha descrito. — Rumo dois-nove-zero — disse Paul. Voltou Rapunzel para o rumo indicado e fê-la avançar novamente. Ponderou apagar a luz, mas não queria bater em novos obstáculos. Além disso,


estavam quase lá. Mais à frente, via a base de alguma estrutura de grandes dimensões. — É aquilo — disse. — Tem de ser. — Acho que tens razão — disse Paul, entusiasmado. — Encontra o ponto onde se une ao fundo. Gamay olhou em redor, usando a luz de Rapunzel para iluminar a escuridão. A seguir, direcionou-a para a base de um grande tubo. — Que te parece? — perguntou. — Coloca-a entre o fundo e o ponto onde o tubo começa a curvar para a superfície — disse Paul. — Dará mais força à explosão. Gamay fez como sugeriu. — Não vai mais longe. Paul segurou o detonador e retirou a cobertura de segurança. — Agora — disse Gamay. Pressionou o botão. — Adeus, Rapunzel — disse Gamay, grata ao pequeno robô e lamentando perdê-lo. A transmissão para o seu visor foi interrompida e ela ergueu-o. Dois segundos depois, a onda de choque atingiu-os. Trouxe uma torrente de entulho, sacudindo o submersível por um momento antes de acalmar.

No alto da plataforma, Djemma viu todos os mostradores da arma a tornarem-se vermelhos. Viu uma grande erupção de água e areia imediatamente atrás do emissor. No momento seguinte, a porção elevada do túnel de aceleração desabou sobre o mar. Tentou perceber como o tinham feito. Quase em simultâneo, um dos seus técnicos de radar anunciou: — Mais mísseis a caminho. Um minuto para o impacto. Djemma ignorou-o. Saiu da sala de controle e caminhou pela plataforma. O vento soprava, a escuridão da noite envolvia-o e a água continuava revolta no local onde a sua arma fora danificada. Olhou para o horizonte. Via os minúsculos pontos flamejantes a aproximarem-se. A cauda dos mísseis Harpoon que o tinham como alvo. Não havia fuga possível. — E assim eu caio — sussurrou para si mesmo. — Como Aníbal caiu antes de mim. Os mísseis bateram à esquerda e à direita quase juntos. As explosões se fundiram, vaporizando-o numa bola de fogo vista a quilômetros.


62. Kurt e Katarina continuaram para a popa do Onyx. Kurt manteve um braço à volta da cintura de Katarina e amparou-a porque fraquejava e quase não conseguia acompanhar seu passo. O túnel enchia-se com um nevoeiro branco denso e o frio enregelava-os. Com a alta voltagem desativada, o nitrogênio líquido começaria a aquecer e a expandir. Ferveria assim que ultrapassasse os cento e noventa graus negativos. Kurt supôs que um sistema como aquele teria válvulas de segurança que pudessem transferir o gás para o túnel. Continuaram em frente, tentando perceber o que tinham adiante no interior da nuvem gélida. Em alguns momentos, a visibilidade no túnel não excederia um metro. Moviam-se lentamente, procurando a escotilha mais próxima da popa. Por fim, a mão de Kurt pousou-se sobre uma superfície curva. Reconheceu a tranca e a forma de uma escotilha de acesso. — A nossa saída — disse, erguendo a mão e girando a roda que selava a escotilha. Depois de a abrir, ajudou Katarina a subir para a escada. Começou a trepar com esforço. Kurt estava pronto para a seguir quando uma voz familiar cortou como uma faca a neblina densa. — Kurt Austin. Katarina parou na escada. — Vá — sussurrou Kurt. — E não espere por mim. Ela continuou a subir e Kurt manteve-se imóvel. — Percebes que serás provavelmente o homem mais irritante do planeta? — perguntou Andras, continuando escondido pelos vapores. Certo de que o assassino se preparava para varrer o túnel com disparos de arma automática, Kurt deixou-se cair sobre o chão e apontou o cano da sua pistola de nove milímetros ao manto branco. Andras não perdeu tempo, disparando uma rajada para o túnel. Os tiros ecoaram como trovões numa noite de verão. Os projéteis tilintaram contra as paredes metálicas e ricochetearam em redor como vespas letais. Como Kurt esperara, todas as balas o falharam, mas gemeu e falou como se estivesse em agonia. — Não importa o que me faças — gemeu. — Perdeste. Esperou uma resposta, mas não chegou. Ouvia o piso estalando por baixo. Calculou que Andras mudasse de posição


e tentasse mirar a origem da sua voz. — No teu lugar... tentava... sair daqui. Contava que o ego de Andras fosse suficiente para acreditar que tinha ferido mortalmente a sua presa. Mas, até ali, o homem não cometera erros. — Atira-me a tua arma — disse Andras, com a sua voz ouvindo-se entre a nuvem de gás como se fosse um espírito malévolo invisível. Austin permaneceu deitado onde estava com o frio infiltrando-se na pele. Sentia a cara tão dormente que mal conseguia pensar. Segurava a Beretta nas mãos quase geladas, com os cotovelos pousados no chão. — Deixa ir a rapariga — disse, colocando uma mão junto ao ouvido como se fosse um radar direcional e esperando uma resposta. — Claro — disse Andras. A palavra ecoou no túnel. — Todos podem ir à sua vida. Despeço-me de todos com rosas e com pastilhas de menta nas almofadas. Agora, faz deslizar a arma na minha direção! — Vou... tentar... — murmurou Kurt, debilmente. Moveu-se para a esquerda, bateu com a arma no chão como se a tivesse deixado cair e fê-la raspar para parecer que deslizava sobre o metal até parar novamente. Com aquilo, girou rapidamente para o outro lado do túnel. Ouviu três tiros atingindo o local onde antes estivera. — Desculpa, Austin — disse Andras, como se estivesse entediado. — A minha confiança em ti é tão extensa como a altura a que conseguiria levantar este navio. A seguir, outros tiros ecoaram pelo túnel. Os clarões dos disparos iluminaram a névoa como relâmpagos iluminando nuvens. O brilho era demasiado difuso para denunciar a posição de Andras, mas Kurt avistou outra coisa. Não conseguia ver o trajeto das balas, mas notou que criavam minúsculas ondas de choque no vapor denso e frio. Disparou também, descarregando oito balas contra a névoa. Quando terminou, a pistola ficou bloqueada. O carregador estava vazio. O silêncio que se seguiu foi aterrador. Kurt fitou a neblina, pensando e esperando ter conseguido atingir mortalmente o seu alvo. Andras não caiu ou Kurt tê-lo-ia ouvido. Nem tinha retribuído os seus disparos. Começando a preocupar-se, Kurt verificou as balas que lhe restavam. Havia uma única bala noutro carregador que não tinha esvaziado por completo. Puxou a culatra, introduziu a bala e colocou a pistola em posição de disparo. O seu último tiro ficou pronto a disparar. Finalmente, ouviu movimento na névoa gelada. Soava-lhe como um bêbado


arrastando os pés sobre o passeio. Uma forma indefinida e fantasmagórica apareceu lentamente. Era Andras, coxeando, arrastando a perna. Erguia uma espingarda de assalto, com a coronha presa numa axila e o cano apontado num ângulo bizarro ao piso e a Kurt Austin. Saía-lhe sangue da boca, indicando um tiro nos pulmões. A face estava tingida de vermelho com sangue que fluía de um rasgão profundo no alto da testa. Por um segundo, Kurt achou que cairia, mas não caiu. Notou que os olhos ardiam com uma intensidade que transcendia a simples loucura. Era a imagem de um homem chocado por descobrir que era tão vulnerável como qualquer outro. Parou a uns dois metros do local onde Kurt estava. Fitou-o pela sua máscara sangrenta, parecendo espantado por, depois de tantos tiros, Kurt ter sobrevivido sem um arranhão. Kurt debateu-se com um dilema próprio. Restando-lhe apenas uma bala de 9mm, não conseguia ter a certeza de conseguir acabar com Andras sem um tiro em cheio na cabeça. E, assim que tentasse disparar, Andras abriria fogo com a espingarda de assalto, dilacerando-o à queima-roupa. Instalara-se um impasse. Kurt ergueu-se. Estavam separados por uma curta distância, apontando as armas um ao outro. A mão direita de Kurt empunhava a Beretta e a esquerda encontrou uma navalha no bolso. A mesma navalha que já tinha trocado com Andras três vezes. Não conseguia abrir a lâmina, mas, mesmo assim, podia usála. Lançou-lhe a navalha e Andras apanhou-a com habilidade e sorriu enquanto a olhava. — Sem munições, Austin? É uma pena não teres aberto a navalha antes de a atirares. — Mais confiante, movia-se com maior calma. Ergueu a espingarda, preparando-se para disparar. Kurt antecipou-se, apontou e disparou contra o tubo de nitrogênio líquido imediatamente acima de Andras. O jato de líquido pressurizado atingiu com violência o lado direito do corpo do seu adversário, ensopando-lhe o braço e a espingarda de assalto. Esta caiu e estilhaçou-se quando embateu no piso. Andras cambaleou e chocou contra a parede do túnel. Olhava sem compreender para o braço, a mão e os dedos, vendo-os estilhaçarem-se em mil fragmentos como uma jarra de cristal caindo ao chão de uma prateleira alta. Um grito de agonia ficou-lhe preso na garganta. Em segundos, o nitrogênio começou a encher o túnel. Cobriu Andras e o seu corpo já completamente gelado. Avançou pelo túnel em direção a Kurt enquanto este corria para a escotilha e subia pela escada acima.


A neblina gélida seguiu-o como uma onda, mas Kurt subiu tão rapidamente quanto conseguia mover as mãos e os pés e conseguiu chegar ao topo da passagem. Fechou a escotilha superior com força. Sentindo-a trancar, deitou-se de costas e descontraiu pela primeira vez em mais horas do que as que conseguia contabilizar. Após um minuto, e apenas um minuto, ergueu-se e procurou Katarina. Encontrou-a sentada junto a uma escadaria como se esperasse um milagre. — Como está? — perguntou-lhe Kurt. Ela voltou-se e olhou-o. A sua face iluminou-se como uma nuvem iluminada pelo sol. — Kurt — disse. — Quantas vezes pensei já que estava morto? — Felizmente, é o Andras que está morto. O sorriso dela ampliou-se num misto de dúvida e alegria. — Tem a certeza? Kurt acenou afirmativamente. — Vi-o desfazer-se em pedaços à minha frente.


63. Kurt e Katarina chegaram à mesma escada por onde ele descera horas antes. Kurt olhou para cima. Katarina não conseguiria subir oito lances de escadas. — Há outra saída? — perguntou-lhe. Viu-a acenar afirmativamente. — Por aqui — disse, avançando além da escadaria. Vinte metros à frente, havia outra porta. Kurt abriu-a. Viu três submersíveis num tanque central, presos a uma estrutura de metal. Dois deles assemelhavamse de forma suspeita ao XP-4 que salvara uma semana antes. O terceiro era muito maior e presumiu que fosse o Bus. Notou que os submersíveis semelhantes ao XP-4 tinham torpedos montados de cada lado em estruturas semelhantes a pontões. Ao seu lado, viu o iate motorizado de dezoito metros em que Katarina estivera presa. — Foi por aqui que cheguei — disse. Kurt procurou os controles da comporta. — Estamos acima da linha de água? — perguntou. Katarina acenou afirmativamente. Pressionou um interruptor, mas não aconteceu nada. A alta voltagem continuava embaixo. Encontrou um controle manual e moveu a alavanca. Uma roda semelhante a um cabrestante começou a girar e a comporta caiu com a força da gravidade. Segundos depois, Kurt e Katarina estavam a bordo de um dos XP-4, saindo para a escuridão da noite. Com a morte de Andras, a alta voltagem desativada e com o nitrogênio líquido preenchendo o túnel do acelerador de partículas, Kurt calculou que fizera justiça à sua afirmação de que era um duende sabotador, mas restava-lhe uma última tarefa. Virou o pequeno submersível e dirigiu-se para a popa do navio. Disparou os dois torpedos contra as hélices e contra o leme. A explosão foi cegante. Quase de imediato, Kurt conseguiu ver a distorção no rastro do navio. As hélices estavam inutilizadas ou destruídas e era provável que o fundo do navio começasse a encher-se de água. Não afundaria. Os torpedos eram relativamente pequenos e um navio com as dimensões do Onyx poderia suportar infiltrações enormes sem perder flutuação. Com todos os estragos concentrados na popa, o afundamento não aconteceria, mas ficava impedido de sair da sua posição. Não poderia dirigir-se


para a Rússia, para a China ou para outras nações de intenções duvidosas. Depois daquilo, Kurt virou o submersível na direção oposta e começou a distanciar-se do Onyx. Juntamente com Katarina, esforçou-se para se manter acordado durante as três horas seguintes, mas, pouco depois do amanhecer, um navio da Marinha Americana avistou-os e veio recolhê-los. Kurt pediu notícias. O enfermeiro contou-lhe o pânico em Washington, mas disse que não acontecera nada. Perguntou-lhe pela Serra Leoa e foi-lhe dito que o ataque à costa do país tinha sido concluído. Houvera perda de vidas, mas a ameaça fora eliminada. Kurt perguntou se houvera alguma queda misteriosa de velhos aviões de carga russos e congratulou-se por obter uma resposta negativa firme. Preparava-se para perguntar pelos cientistas desaparecidos, mas o enfermeiro ergueu a mão. — Vai ficar bem — disse. — Mas precisa de parar de falar. Kurt compreendeu. Olhou para Katarina enquanto sobrevoavam o casco fumegante do Onyx, que se enchia de fuzileiros americanos. Seguiram para oeste e iniciaram uma viagem de noventa minutos que os levaria à fragata de onde o helicóptero partira. Com as notícias que lhe foram dadas, Kurt sentiu uma paz que não conhecia há semanas. Essa sensação, a sua exaustão e o ruído ritmado das pás do helicóptero, tudo à sua volta parecia conspirar para o acalmar e para o adormecer. Fechou os olhos e deixou de resistir.


Epílogo Nos dias que se seguiram ao incidente, o mundo pareceu girar um pouco mais devagar. A situação em Serra Leoa estabilizou com o auxílio de uma força de manutenção de paz da ONU e de tropas da União Africana. Muitos presos políticos foram libertados, incluindo o irmão de Djemma Garand, a quem agora era pedido que ajudasse a formar um governo de coligação. Os cientistas sequestrados foram encontrados e devolvidos aos países respectivos. Vários tinham sido feridos, mas apenas um morrera. As forças americanas tinham sofrido a maior parte das perdas. Trinta e um homens e mulheres do Memphis tinham morrido ou estavam desaparecidos. Onze aviadores navais, pilotos e operadores de radar, tinham morrido. Mas seus sacrifícios e os esforços dos civis da NUMA tinham impedido a ocorrência de um incidente catastrófico. Não se registrou uma única morte na emergência declarada apressadamente em Washington. Houve dúzias de acidentes de viação e centenas de feridos, mas as pessoas conseguiram manter uma calma notável nos seus esforços para alcançar a segurança. De volta aos Estados Unidos, Kurt se recuperava. Via muito telejornal e se alegrou com as visitas de Joe Zavala, dos Trout e de Dirk Pitt. Joe passou horas contando suas aventuras com a tripulação do IL-76 depois de voltarem a Tânger. Paul e Gamay tinham histórias menos animadas, mas capazes de enchê-los de orgulho. Notou que passaram o tempo todo de mãos dadas. Dirk Pitt parabenizou a todos por um trabalho bem feito e começou a somar as despesas. O Barracuda, os ultraleves, os estragos no campo de futebol, problemas jurídicos com o clube White Rajah em Singapura e algo sobre um leopardo desaparecido. — Nem quero saber por que pagamos a captura de um leopardo jovem — disse. Kurt abriu a boca para tentar explicar, mas voltou a fechá-la. Não serviria de nada. O aluguel do IL-76 seguia-se na lista, juntamente com o Expresso Lunático destruído e questões de limpeza envolvendo vários países como consequência do petróleo libertado pelo Onyx após o choque dos torpedos. Quando Dirk terminou a lista, sorriu. — Com os anos, aprendi algumas coisas — disse. — Aprendi, por exemplo,


que a mercadoria de qualidade é cara. Você e Joe são como um dos meus carros. Caros, péssimos para o meio ambiente e frequentemente incômodos. Mas valem cada centavo. Logo que pôde, Kurt entrou em contato com Katarina, combinando encontrar-se com ela em Santa Maria. Depois de tudo o que acontecera, os governos americano e russo concordaram que os objetos a bordo do Constellation pertenciam por direito ao povo russo. Os dois lados concordaram que seria adequado que Kurt e Katarina supervisionassem os mergulhos de resgate. Katarina sorriu ao vê-lo e beijou-o longamente e com avidez quando se aproximaram, apesar da presença de público. Alguns dias depois, estavam num barco alugado com representantes dos governos de Washington e Moscou a bordo, observando as operações. Após um mergulho de preparação, mergulharam para trazer à superfície os baús de aço inoxidável. Usar maçaricos para os libertar do piso do Constellation recordou a Kurt a fuga à justa de Joe. Percebeu que não teriam sobrevivido se aquele velho destroço e o seu tanque de oxigênio não estivessem ali. Depois de levarem os baús para fora do avião e de os prenderem aos flutuadores, inflados com ar dos seus tanques, Kurt voltou ao interior e nadou até o cockpit. Levou a mão às placas identificativas do copiloto, que continuavam penduradas à volta do pescoço do esqueleto. Libertou-as com cuidado e nadou para fora. Na superfície, trepou para o barco. Katarina já se ocupava a cortar o cadeado de um dos baús. Apesar de estar selado com esmero, todos os anos passados no fundo permitiram que os sedimentos e a água se infiltrassem. A princípio, viram apenas água barrenta, mas Katarina mergulhou a mão e retirou um colar de grandes pérolas brancas. Colocou o colar sobre o convés e voltou a mergulhar a mão com cautela. Daquela vez, ergueu uma tiara que parecia incrustada com diamantes. Um representante da sociedade russa de historiadores mantinha-se por perto. Ao ver aquilo, deu um passo em frente. Com cuidado, pegou na tiara e começou a sorrir. — Notável — disse o homem de óculos. — É quase inacreditável. Mas temos a certeza. — Ergueu a tiara. — Isto foi usado por Anastásia, filha do tsar Nicolau II — explicou. — Foi fotografada com esta peça em 1915. Desapareceu juntamente com as outras joias quando o tsar foi vitimado pela revolução. Kurt olhou-o.


— Pensei que todos os tesouros do tsar tivessem sido recuperados. — Sim e não — disse o homem. — Os tesouros que se sabia que possuíam com eles foram descobertos há muito. No entanto, muitas joias foram escondidas nas suas roupas para que os guardas não soubessem da sua existência. Tanto Anastásia como as suas irmãs foram alvejadas e golpeadas com baionetas sem efeito porque as roupas estavam revestidas com tamanha quantidade de pedras preciosas que bloquearam as balas. — Calculo que terão essas na posse — disse Kurt. — De onde vieram? — A fortuna do tsar era tão vasta que nunca foi catalogada na totalidade — disse o homem. — Por motivos políticos, os soviéticos insistiram que toda a riqueza tinha sido recuperada e guardada em nome do povo. O governo russo que sucedeu à União Soviética manteve esta farsa, mas muitas fotografias da época mostram tesouros que nunca foram descobertos. Há muito se presumia que estavam perdidos. Quem teria pensado que tanto o seu governo como o meu conheciam o paradeiro de alguns? Kurt pensou no que o homem lhe dizia. Não o incomodou que as joias voltassem para a Rússia. Imaginava apenas por que teriam saído de Moscou. — Como vieram parar aqui? — perguntou. — Posso responder a isso — disse uma voz trêmula. Kurt se virou. Enquanto estivera no fundo com Katarina, chegara mais alguém a bordo. Sabia quem era. Pediu que o localizassem e o convidassem a estar presente. Kurt avançou e apertou a mão do homem. — Katarina — disse Kurt —, representantes do governo russo, apresento Hudson Wallace. Wallace avançou, movendo-se lentamente. Teria certamente quase noventa anos, apesar de continuar a parecer alguém capaz de aplicar murros merecidos a quem ultrapassasse os limites. Vestia uma camisa havaiana vermelha, bermudas de cor creme e mocassins com meias pelo tornozelo. Fixou os olhos em Katarina e esboçou um sorriso de orelha a orelha. — Meu copiloto e eu recolhemos um passageiro em Sarajevo — disse. — Um refugiado político chamado Tarasov. — Era um criminoso — disse um dos russos. — Roubou joias depois de escondê-las com três outros soldados anos antes. — Claro, claro — disse Wallace. — O criminoso para um homem é o combatente pela liberdade para outro. Seja como for, nós o trouxemos para Santa Maria, onde devíamos abastecer antes de sobrevoar o oceano. Mas fomos surpreendidos por uma tempestade e os agentes deles nos encontraram. Balançou a cabeça tristemente.


— Tarasov foi atingido nas costas. Meu copiloto, Charlie Simpkins, também foi morto. Fiquei ferido. Consegui levantar voo, mas os relâmpagos, falhas nos motores e a perda de sangue me fizeram cair. Perdi o controle do avião e acabei no mar. Até hoje, não recordo como escapei. — Essa história — começou Kurt — foi um dos motivos para termos acreditado neste embuste. Wallace riu, tornando visíveis ainda mais rugas na cara. — Nesse tempo, aconteciam coisas semelhantes com frequência. Os instrumentos congelavam, os mostradores ficavam bloqueados. Deixava de ser possível perceber o que ficava para cima e o que ficava para baixo. — Mas e a falha nos motores? — perguntou Katarina. — Também me custou perceber — respondeu Wallace. — Mantínhamos aquelas belezas em excelente condição. Até que me apercebi. Choveu durante três dias consecutivos. Abastecemos o Connie com os tanques da ilha. Acho que sugamos muita água juntamente com os dois mil litros de combustível no dia anterior à partida. Maldito azar. Kurt acenou com a cabeça enquanto Hudson olhava para a tiara e o colar. — Passei sessenta anos a pensar no que estaria nestes baús — disse. — Suponho que estejam cheios até o topo. Katarina esboçou-lhe um sorriso bondoso. — Estou certa de que poderá ver tudo isto num museu — disse. — Não, obrigado — replicou. — Vim por uma coisa muito mais valiosa. — Virou-se para Kurt. — Conseguiu trazê-las? Kurt levou a mão ao bolso e retirou as placas do copiloto. Wallace fitou-as com reverência como se fossem de ouro puro. — Uma equipe da Marinha chegará amanhã — disse Kurt. — Charlie será sepultado em Arlington na próxima semana. Estarei presente. — Você? — Perdeu um amigo aqui — disse Kurt. — Mas, de certa forma, o piloto e o copiloto do Constellation salvaram um amigo meu. Estaremos os dois presentes. Devemos-lhe isto e muito mais. — É muito tempo para esperar voltar para casa — considerou Wallace. Kurt acenou com a cabeça. Sim, era. — Vemo-nos lá — disse-lhe Wallace. Sorriu a Katarina, despediu-se com um aceno de cabeça do perito russo e voltou ao barco que o trouxera. Precisou de um momento para entrar. Quando conseguiu, segurou uma coroa de flores e estendeu-a nos braços. A seguir, com um movimento delicado, colocou-a na água.


Três dias depois, terminado o resgate e depois de passar quarenta horas com Katarina que poderiam ser classificadas sem reservas como lazer, Kurt voltou aos Estados Unidos. Katarina negara, mas Kurt suspeitava que tinha gostado do seu tempo como espia. Prometeram encontrar-se no futuro e Kurt pensou se aconteceria após planejamento cuidadoso ou de forma aleatória nalgum lugar longínquo durante o desenrolar de uma intriga internacional. De qualquer forma, ansiava pelo momento. Passou pela sede da NUMA e verificou que o local estava vazio durante o fim de semana. Uma mensagem de Joe dizia-lhe que fosse para casa. Seguindo o conselho, voltou a casa, um abrigo de barcos convertido sobre o Potomac. Desconfiado, captou o cheiro de carne marinada grelhando no seu alpendre. Contornou a casa. Joe e Paul encontravam-se sobre o rio. Gamay sentava-se por perto numa chaise longue. Paul parecia ter-se apoderado do grelhador a gás de Kurt e viu-o coberto com costeletas fumegantes para os quatro. Joe escrevia qualquer coisa num quadro e havia uma garrafa de Merlot sobre a sua mesa, juntamente com uma geleira contendo cerveja e algumas brochuras de viagens. Gamay abraçou-o. — Bem-vindo a casa. — Sabem que é a minha casa, não sabem? — perguntou. — E não um dormitório? Riram e Kurt olhou para as brochuras, notando um tema recorrente. Joe lhe passou uma Bohemia gelada, que tirara do abastecimento do capitão do Argo. Os Trout provaram o vinho. — O que há? — perguntou Kurt, sentindo que surpreendia uma reunião secreta. — Planejamos uma viagem — anunciou Joe. — Já não passamos tempo suficiente juntos? — perguntou Kurt, gracejando e sabendo muito bem que estava em família. — Será uma viagem de férias — disse Gamay. — Sem fugas, tiros ou explosões. — Sério? — perguntou Kurt, bebendo um gole de cerveja. — Aonde vamos? — Ainda bem que pergunta — disse Joe. Aproximou-se do quadro em que tinha escrito três nomes. Cada um tinha um visto na frente.


— Todos votamos — explicou Paul. — Mas da chaminé não sai fumaça branco. — Então o desempate cabe a mim — supôs Kurt. — Correto — disse Joe. — E não se deixe influenciar por todas as ocasiões em que salvei sua vida. Kurt se aproximou também do quadro, olhando para Joe de soslaio. — Ou por todas as ocasiões em que quase causou minha morte. Estudou as opções. — Oito dias num safári de dromedário no Marrocos — disse, lendo a primeira opção. Tinha o nome de Paul na frente. — Já andou de dromedário, Paul? — Não, mas... — Oito minutos talvez seja divertido, mas oito dias... — Kurt sacudiu a cabeça. Paul pareceu magoado. Gamay e Joe sorriram. — Caminhada pelo Vale da Morte — disse, lendo a linha seguinte, a escolha de Gamay. Olhou-a. — O Vale da Morte? — disse. — Não. Não parece um pouco sinistro? — Ora — protestou Gamay —, é um lugar lindo. — Sim — exclamou Joe. Ergueu os braços como se tivesse vencido. — Alto lá, parceiro — disse Kurt. — Não sei se o Deserto de Gobi conta como destino de férias. — Claro que conta — assegurou Joe. — Vi um anúncio. Até têm slogan. “Divirta-se no Gobi1.” Kurt riu. — Talvez seja melhor trabalharem nisso um pouco mais. — É seco — disse Joe. — Não vamos nos afogar, congelar ou estragar nossas melhores camisas Armani. Kurt tornou a rir. Quase conseguia imaginar Joe vestindo Armani no meio do deserto. Suspirou, questionando a seriedade dos três. Mas havia um lugar seco e ensolarado que sempre quis visitar. — Voto no interior da Austrália — disse. — Ayers Rock, cangurus pastando e cerveja Foster's. Olharam-no por um segundo, atordoados. — Cangurus pastando? — repetiu Gamay. E começou uma cacofonia de nãos e longos motivos pelos quais a Austrália não serviria. Quando terminaram, Paul virava as costeletas e Kurt terminara a cerveja. — Está bem — disse Paul. — Tentemos outra vez.


Joe apagou o quadro e escreveu “Segunda Ronda” no topo. Entretanto, Kurt sentara-se na outra chaise longue, abriu outra cerveja e fitou o rio pacífico enquanto ouvia as nomeações. Enquanto os nomes de vários lugares quentes e secos eram referidos, não conseguiu evitar um sorriso. Sentia que aquilo poderia prolongar-se durante algum tempo. E, ali sentado, rodeado pelos seus amigos e saboreando o sol, esperou que assim fosse. Aliás, naquele momento, não conseguia pensar noutro lugar onde preferisse estar.

________________ 1 Go be in the Gobi, no original. (N. do T.)


Digitalização: Gaia Inclusiva Serviço de Leitura e Promoção Cultural para Portadores de Necessidades Especiais. Correção: Maria Clara Estrela.


Table of Contents Contracapa O Autor Prรณlogo 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32.


33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60. 61. 62. 63. Epílogo


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