Bernhard schlink e walter popp neblina sobre mannheim pt

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NEBLINA SOBRE MANNHEIM Bernhard Schlink e Walter Popp Traduzido do alemão por Fátima Freire de Andrade Titulo Original: Selbsjustiz 1987, Diogenes Verlag AG Zurich 1ª edição Depósito legal nº 171718/01 ISBN 972-41-2737-0 ASA Editores


Gerhard Selb é um detective privado, quase septuagenário que no decurso de uma investigação elementar sobre pirataria informática, vai ser confrontado com o seu passado sombrio numa Alemanha marcada pelo nazismo. Um policial denso e apaixonado, por um dos grandes nomes da moderna literatura alemã.


PRIMEIRA PARTE


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O Korten manda entrar

Primeiro, invejei-o. Isso era na escola, na Escola Secundária Friedrich-Wilhelm, em Berlim. Eu vestia a roupa do meu pai, não tinha amigos e não conseguia içar-me na barra fixa. Ele era o melhor da turma, também em Educação Física. Era convidado para todas as festas de anos, e, quando os professores o tratavam por senhor, faziam-no cheios de deferência. Por vezes, o motorista do pai vinha buscá-lo de Mercedes. O meu pai trabalhava para os caminhos-de-ferro e, em 1934, acabara de ser transferido de Karlsmhe para Berlim. O Korten não admite faltas de eficiência. Ensinou-me a elevar-me e a fazer rotações na barra. Eu admirava-o. Também me ensinou a lidar com as raparigas. Eu corria como um parvo ao lado da miúda que morava no andar de baixo e que andava na Escola Secundária Luisen, em frente à Friedrich-Wilhelm, e idolatrava-a. O Korten beijou-a no cinema. Tornámo-nos amigos, estudámos juntos, ele Economia e eu Direito, e eu tinha a porta aberta na moradia do Wannsee. Quando a sua irmã Klara e eu nos casámos, ele foi o padrinho e ofereceu-me a pesada secretária que ainda hoje tenho no escritório, feita de carvalho com entalhes e com ferragens de cobre. Agora, raramente trabalho nela. O meu trabalho faz-me correr de um lado para o outro e, ao fim da tarde, quando ainda passo pelo escritório, não há pastas empilhadas sobre a secretária. Só o atendedor de chamadas me espera e a pequena janela informa-me do número de mensagens gravadas. Sento-me então diante do tampo vazio e brinco com o lápis, escutando o que devo fazer e o que devo deixar de fazer, aquilo a que devo lançar mãos e aquilo em que não devo tocar nem com as pontas dos dedos. Não gosto de queimar os dedos. Mas também podemos entalá-los na gaveta de uma secretária para dentro da qual não olhamos há demasiado tempo. Para mim, a guerra acabou ao fim de cinco semanas. Fui atingido pela Pátria. Três meses depois, tinham-me posto como novo e candidatei-me à Função Pública. Quando, em 1942, começámos a trabalhar — o Korten para as Indústrias Químicas do Reno, em Ludwigshafen, e eu para o Ministério Público, em Heidelberg — ainda não tínhamos casa, e partilhámos durante umas semanas o mesmo quarto de hotel. Em 1945, a minha carreira no Ministério Público terminou e ele arranjou-me os primeiros trabalhos no meio industrial. Depois começou a sua ascensão, passou a ter pouco tempo e, com a morte da Klara, as visitas pelo Natal e pelos aniversários também acabaram. Movíamo-nos em círculos distintos, e eu leio mais sobre ele do que aquilo que ouço. Por vezes encontramonos num concerto, ou no teatro, e entendemo-nos. Porque somos velhos amigos. Então… Lembro-me bem daquela manhã. Sentia o mundo a meus pés. O reumatismo dava-me uma folga, sentia a cabeça lúcida e parecia um jovem no meu fato azul — pelo menos, era o que eu achava. O vento não trazia o habitual fedor da indústria química para aqui, para Mannheim, mas levava-o para o lado do Palatínado. Na padaria da esquina havia croissants de chocolate, e eu comi o pequeno-almoço ao ar livre, no passeio, ao sol.


Uma mulher jovem passava na Rua Moll, aproximou-se e tornou-se mais bonita, e eu pousei a minha chávena de plástico no friso da montra e fui atrás dela. Poucos passos depois chegava ao meu escritório, no Centro Augusta. Tenho um grande orgulho no meu escritório. Mandei pôr um vidro fumado na porta e na montra da antiga tabacaria, e inscrevi em sóbrias letras douradas: Gerhard Selb Investigações Privadas Havia duas mensagens no gravador de chamadas. O director de negócios da Goedecke precisava de um relatório. Eu conseguira arranjar provas da fraude cometida pelo seu chefe de filial, e este queria saber mais pormenores, pois tinha recorrido do seu despedimento no Tribunal de Trabalho. Na outra mensagem, a senhora Schlemihl, das Indústrias Químicas do Reno, pedia que lhe ligasse. — Bom dia, senhora Schlemihl. Aqui fala Selb. Queria falar comigo? — Bom dia, senhor doutor. O senhor director-geral Korten quer encontrar-se consigo. Além da senhora Schlemihl, ninguém se dirige a mim tratando-me por “senhor doutor”. Desde que deixei a advocacia, não dou uso ao meu título; um detective privado promovido a doutor é ridículo. Mas, como boa secretária-chefe, a senhora Schlemihl nunca se esqueceu do modo como no nosso primeiro encontro, no início dos anos cinquenta, o Korten nos apresentou — De que se trata? — Ele gostaria de lho dizer pessoalmente ao almoço, no casino dá-lhe jeito às 12h30m?


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No Salão Azul

Em Mannheim e em Ludwigshafen, vivemos sob o olhar das Indústrias Químicas do Reno. Foram fundadas no ano de 1872, sete anos depois da Fábrica de Soda 8c de Anilina de Baden, pelo químico Prof. Demel e pelo comendador, o industrial Entzen. Desde então, a fábrica não pára de crescer. Hoje em dia ocupa um terço da área construída de Ludwigshafen e dá trabalho a quase cem mil trabalhadores. Juntamente com o vento, os ritmos de produção das IQR determinam se, e onde, na região, se sente o cheiro a cloro, a enxofre ou a amoníaco. O Casino situa-se fora do complexo da fábrica e tem a fama que lhe é própria. Ao lado do grande restaurante para os quadros médios, há uma parte reservada aos directores, com vários salões mantidos nas cores da tinta com cuja síntese Demel e Entzen atingiram os seus primeiros sucessos. E há também um bar. Era onde eu ainda estava às treze horas. Já me haviam comunicado logo à entrada que, infelizmente, o senhor director-geral se atrasara um pouco. Pedi um segundo Aviateur. — Campari, sumo de toranja, champanhe, um terço de cada. A rapariga ruiva e sardenta que nesse dia servia atrás do balcão, alegrava-se por ter aprendido uma coisa nova. — Faz isso muito bem — disse-lhe eu. Ela olhou-me com simpatia. — Tem de esperar pelo senhor director-geral? Eu já tinha tido esperas muito piores, dentro de automóveis, de entradas de prédios, de corredores, de átrios de hotéis e de estações de caminhos-de-ferro. Aqui, encontrava-me debaixo de estuque dourado, numa galeria com retratos a óleo, entre os quais, um dia, também se encontraria o do Korten. — Meu querido Selb! — dirigiu-se ele a mim. Pequeno e seco, com olhos azuis muito vivos, cabelo grisalho cortado à escovinha e uma pele morena curtida por demasiado desporto ao sol. Se formasse um conjunto com Richard von Wei-zsácker, Yul Brynner e Herbert von Karajan, conseguiria tornar a marcha de Baden, em ritmo de swing, num sucesso mundial. — Lamento ter chegado atrasado. Ainda gostas de fumar e de beber? — Lançou um olhar duvidoso ao meu maço de Sweet Âflon. — Traga-me uma água Apollinaris! Como estás? — Bem. Reduzi um pouco o meu ritmo, os meus sessenta e oito anos permitem-mo, já não aceito todos os trabalhos, e daqui a algumas semanas viajo até ao Egeu, para velejar. E tu, ainda não abandonaste o leme? — Gostaria muito. Mas levará ainda um ano ou dois, até que outro possa substituir-me. Atravessamos uma fase difícil.


— Devo vender? Pensei nas minhas dez acções das IQR depositadas no cofre do Banco dos Funcionários de Baden. — Não, meu querido Selb — riu-se ele. — No fundo, as Fases difíceis são sempre uma bênção para nós. Contudo, há coisas que nos preocupam, a longo e a curto prazo. Por causa de um desses problemas a curto prazo é que quis falar-te hoje, e a seguir vamos reunir-nos com o Firner. Lembras-te dele? Lembrava-me bem dele. Há poucos anos atrás, o Firner tornara-se director, mas para mim continuava a ser o lesto assistente do Korten. — Ainda anda com a gravata da /larvard Business School? O Korten não respondeu. Olhou-me pensativamente, como se meditasse na introdução de uma gravata própria na empresa. Agarrou-me o braço. — Vamos para o Salão Azul, a mesa já está posta. O Salão Azul era o melhor que as IQR podiam oferecer aos seus clientes. Uma sala decorada em estilo Arte Nova, com mesas e cadeiras de Van de Velde, um candeeiro de Mackintosh e, na parede, uma paisagem industrial de Kokoschka. Tinham posto dois talheres, e quando nos sentámos o criado de mesa serviu-nos uma salada. — Eu fico-me com a Apollinaris. Para ti, pedi um Château de Sannes, de que gostas. E para depois da salada, um tafelspitz? O meu prato favorito. Que simpático da parte do Korten, ter pensado naquilo. A carne era tenra, o molho de rábano não tinha a inoportuna farinha, mas natas com fartura. Para o Korten, o almoço terminara com a salada. Enquanto eu comia, ele foi direito ao assunto. — Nunca mais confio em computadores. Quando vejo os jovens que, hoje em dia, nos chegam das universidades, que não são responsáveis e que não conseguem tomar nenhuma decisão sem terem de perguntar primeiro ao Oráculo, recordo-me sempre do poema do Aprendiz de Feiticeiro. Quase me alegrei quando me contaram o problema no sistema. Temos um dos melhores sistemas informáticos de gestão e informação empresarial do mundo. Não faço ideia de quem possa ter interesse nisso, mas, indo ao terminal do computador, consegue saber-se que estamos hoje a almoçar tafelspitz e salada no Salão Azul, qual o trabalhador que se encontra neste momento a jogar no nosso court de ténis, os casamentos intactos e desfeitos dos membros da nossa empresa, e que flores e a que ritmo estão a ser plantadas nos canteiros diante do Casino. E claro que o computador regista tudo o que diz respeito à Contabilidade, à Secção de Pessoal, etc, que anteriormente arquivávamos em dossiers. — E como poderei ajudar-vos? — Tem paciência, meu querido Selb. Prometeram-nos um dos sistemas mais seguros. Isto quer dizer palavras-passe, códigos de acesso, restrições ao acesso de dados, efeitos do Doomsday, e sei lá mais o quê. O objectivo de tudo isso era que ninguém pudesse penetrar e baralhar o nosso sistema. Mas foi isso mesmo o que aconteceu. — Meu querido Korten… — Habituámo-nos a tratar-nos pelos nossos apelidos durante


o tempo de escola secundária, e continuámos a fazê-lo também depois, como grandes amigos. Mas o “meu querido Selb” enerva-me, e ele sabia disso. — Meu querido Korten, o ábaco já exigia de mais de mim, em criança. E agora tenho que me bater com palavraspasse, códigos de acesso e salgalhadas de dados? — Não, o que havia a esclarecer informaticamente já foi esclarecido. Se bem compreendi o Firner, há uma lista com as pessoas que poderão ter feito a baralhada no nosso sistema, e trata-se apenas de descobrir quem é, de entre elas, o culpado. É exactamente o que tens de fazer. Averiguar, observar, seguir, fazer as perguntas certas: o costume. Eu queria saber mais e continuar a perguntar, mas ele esquivou-se. — Eu próprio não sei mais nada, o Firner vai pôr-te a par de todos os pormenores. Não continuemos a falar durante o almoço sobre este caso triste; nestes anos, desde a morte da Klara, tivemos tão poucas oportunidades para conversar um com o outro. — Por isso conversámos acerca dos velhos tempos. — Lembras-te? Eu não gosto dos velhos tempos, arrumei-os e pus-lhes uma pedra em cima. Deveria ter estado com mais atenção quando o Korten falou dos sacrifícios que temos de fazer e exigir. Mas SÓ me lembrei disso muito mais tarde. Do tempo presente tínhamos pouco para conversar. Não me admirava que o seu filho se tivesse tornado deputado no Parlamento — logo desde cedo distinguira-se por ser muito precoce. O Korten parecia desprezá-lo, sendo muito mais Orgulhoso dos seus netos. A Marion entrara para a Fundação dos Estudos do Povo Alemão, o Ulrich ganhara o “Prémio Jovem Investigador” com um trabalho sobre os números primos. Eu poderia ter-lhe falado do Turbo, o meu gato, mas preferi não o fazer. Bebi o meu café, e o Korten levantou-se da mesa. O chefe do Casino despediu se de nós. E dirigimo-nos para a fábrica.


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Como se estivesse a ser condecorado

Foram apenas alguns passos. O Casino encontra-se em frente do portão número 1, à sombra do edifício da administração central que, com os seus vinte andares desprovidos de imaginação, nem sequer consegue dominar a linha do horizonte da cidade. O elevador dos directores só tem botões para os andares de 15 a 20. O escritório do director-geral é no vigésimo andar, e ao chegar eu estava com os ouvidos tapados. No vestíbulo, o Korten deixou-me com a senhora Schlemihl, que me anunciou ao Firner. Um aperto de mãos, a minha nas suas duas, em vez de “meu querido Selb” disse “velho amigo”, e depois desapareceu. A senhora Schlemihl, secretária do Korten desde os anos cinquenta, que pagou pelo sucesso dele com uma vida não vivida, é de um desgaste cuidado, come bolos, tem uns óculos que nunca usa, pendurados numa pequena corrente dourada à volta do pescoço, e estava ocupada. Eu fiquei de pé, perto da janela, e olhei para o cais comercial e para a Mannheim empalidecida de fumo, por sobre uma confusão de torres, hangares e canos. Gosto de paisagens industriais, e não quereria ter de escolher entre o romantismo industrial e o idílio da floresta. A senhora Schlemihl arrancou-me às minhas ociosas reflexões. — Senhor doutor, posso apresentar-lhe a senhora Buchendorff? É ela quem dirige o secretariado do senhor director Firner. Voltei-me e fiquei em frente de uma mulher alta e elegante, com cerca de trinta anos. Tinha o cabelo louro-escuro apanhado no alto da cabeça, e com isso dera ao seu jovem rosto de bochechas redondas e lábios cheios uma expressão de competência experiente. Faltava o botão de cima à sua blusa de seda, e o seguinte estava aberto. A senhora Schlemihl olhava-a com ar desaprovador. — Bom dia, senhor doutor. A senhora Buchendorff estendeu-me a mão e olhou-me de maneira directa com os seus olhos verdes. Agradou-me o seu olhar. Para mim, as mulheres só são bonitas quando me olham nos olhos. Isso implica uma promessa, mesmo que nunca seja cumprida e nem sequer dita. — Posso acompanhá-lo até ao senhor director Firner? Ela saiu à minha frente, com um lindo meneio das ancas e do rabo. Ainda bem que as saias justas estão outra vez na moda. O escritório do Firner ficava no 19º andar. Diante da porta do elevador, disse-lhe: — Vamos antes pelas escadas. — O senhor não tem o aspecto que eu esperava de um detective privado. Já ouvira muitas vezes esta observação. Entretanto, já sei como é que as pessoas imaginam um detective privado. Não a penas mais novo.


— Espere até me ver de gabardina! — Eu disse isto como um elogio. O da gabardina ficaria em apuros com o dossier que o Firner vai dar-lhe. Ela dissera “o Firner”. Estaria envolvida com ele? — Então, sabe do que se trata. — Até pertenço ao grupo dos suspeitos. Nos últimos três meses, o computador transferiu-me mensalmente um excesso de quinhentos marcos. E tenho acesso ao sistema através do meu terminal. — Teve de devolver o dinheiro? — Não sou um caso único. Estão envolvidos cinquenta e sete colegas, e ainda não decidiram se vão exigir a devolução. No seu gabinete, carregou no botão do intercomunicador. — Senhor director, o senhor Selb está aqui. O Firner engordara. A gravata era agora Yves Saint-Laurent. O seu andar e movimentos continuavam lestos, e o aperto de mão não se tornara mais firme. Sobre a sua secretária havia um grande dossier. — Saúdo-o, senhor Selb! Ainda bem que aceitou o caso. Pensámos que era melhor preparar um dossier com todos os pormenores. Entretanto, já temos a certeza de que se trata de actos de sabotagem intencional. É verdade que, até agora, conseguimos restringir os prejuízos materiais. Mas temos de estar sempre prontos para novas surpresas e não podemos fiar-nos em informação alguma. Olhei-o interrogativamente. — Comecemos pelos macaquinhos Rhesus. Os nossos telexes são feitos por processamento de texto e, se não forem urgentes, ficam gravados no sistema; são enviados durante a noite, quando entra em vigor a tarifa mais baixa. Também procedemos dessa maneira com as nossas encomendas para a índia: em cada meio ano, o nosso Departamento de Investigação precisa de cerca de cem macacos Rhesus com licença de exportação passada pelo Ministério do Comércio indiano. Há duas semanas, em vez de cem, saiu uma nota de encomenda para cem mil macacos. Por sorte, os indianos acharam estranho e telefonaram-nos a confirmar. Pensei em cem mil macaquinhos Rhesus na fábrica e sorri. O Firner fez um sorriso constrito. — Pois, pois, este caso tem o seu lado cómico. A confusão com a distribuição dos courts de ténis também deu azo a muitas gargalhadas. Agora temos de olhar para cada telex duas vezes, antes de os enviarmos. — Como é que sabe que não se tratou de um erro de dactilografia? — A secretária que dactilografou o teletexto imprimiu-o para ser verificado e rubricado pelo responsável, como de costume. Nessa impressão está o número correcto. Por isso, foi o telex que foi mexido quando estava em fila de espera na memória. Também


investigámos os outros incidentes que estão no dossier, e podemos excluir os erros de programação ou de registo de dados. — Bom, isso posso eu ler no dossier. Diga-me qualquer coisa em relação ao grupo dos suspeitos. — Quanto a eles, procedemos de uma maneira convencional. De todos os trabalhadores com autorização, ou com possibilidade de acesso, excluímos os que já deram provas de serem de confiança há mais de cinco anos. Como o primeiro incidente aconteceu há sete meses, também se excluíram os que só foram contratados desde então. Em alguns dos casos foi possível determinar o dia em que houve o ataque ao sistema, Como, por exemplo, o do telex. Assim, excluímos os que se encontravam ausentes nesses dias. Depois fomos a alguns dos nossos terminais e fizemos sair relatórios de todos os dados inseridos num determinado espaço de tempo, e não encontrámos nada. E, por fim — sorriu com presunção —, podemos, evidentemente, excluir os directores. — Quantos sobraram? — Perguntei. — Cerca de cem. — Isso vai dar-me que fazer durante anos. E quanto a um pirata vindo do exterior? Ouve-se falar muito neles. — Conseguimos excluí-los num trabalho conjunto com os correios. O senhor fala de anos… Nós também sabemos que o caso não é simples. Contudo, o tempo urge. Tudo isto não é apenas embaraçoso; com todos os segredos sobre a empresa e a produção que temos no computador, é perigoso. É como se, no meio de uma batalha… O Firner é oficial na reserva. — Deixemos as batalhas — interrompi eu. — Para quando quer o primeiro relatório? — Quero pedir-lhe para me ir mantendo informado. Pode dispor, à sua vontade, do tempo dos homens do Serviço de Segurança da fábrica, da Protecção de Dados, do Centro de Informática e da Secção de Pessoal, cujos relatórios se encontram no dossier. Não preciso de lhe dizer que lhe pedimos o máximo de discrição. Senhora Buchendorif, a identificação do senhor Selb já está pronta? — perguntou pelo intercomunicador. Ela entrou na sala e deu ao Firner um rectângulo de plástico do tamanho de um cartão de crédito. O Firner deu a volta à mesa. — Tirámos-lhe uma fotografia a cores quando entrou no edifício da administração e plastificámo-la logo — disse ele com orgulho. — Com esta identificação pode movimentar-se livremente, em qualquer altura, dentro do recinto da fábrica. Com uma espécie de mola de roupa, prendeu-me o cartão na banda do casaco. Foi como se estivesse a ser condecorado. Quase bati os calcanhares.


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O Turbo apanha um rato

Passei a noite a estudar o dossier. Um osso duro de roer. Tentei encontrar uma estrutura nos incidentes, um fio condutor para os ataques ao sistema. Os criminosos tinham dado que fazer à Secção de Contabilidade. Durante meses, haviam dado ordem de transferência de quinhentos marcos a mais nos ordenados das secretárias-chefe, entre as quais a senhora Buchendorff; duplicaram o montante do subsídio de férias dos escalões de menor salário, e apagaram todos os números de conta começados por 13 dos assalariados e empregados. Tinham-se introduzido na transmissão interna de mensagens da fábrica, fizeram sair para a imprensa documentos confidenciais da direcção e suprimiram a lista que o chefe de secção recebe no início de cada mês com os prémios dos trabalhadores. O programa que gere a distribuição e reserva dos courts de ténis tinha confirmado todos os pedidos para a muito> desejada sexta-feira, de tal maneira que, numa sexta-feira de Maio, 108 jogadores encontraram-se nos 16 courts. A acrescentar, havia ainda a história com os macaquinhos Rhesus. Compreendi o sorriso constrito do Firner. Para uma empresa com a dimensão das [QjR, OS prejuízos — cerca de cinco milhões de marcos — eram suportáveis. Mas quem causara esses prejuízos conseguia mexer-se à vontade nos sistemas de gestão e informação da fábrica. Escurecera, lá fora. Acendi a luz, liguei e desliguei umas quantas vezes o interruptor, mas, apesar de este também ser binário, não fiquei a saber mais sobre a natureza do processamento electrónico de dados. Pensei se entre os meus amigos e conhecidos haveria algum que soubesse algo de computadores, e apercebi-me de quão velho eu era. Havia um ornitólogo, um cirurgião, um mestre de xadrez, alguns juristas, todos eles senhores idosos para quem o computador era, tal como para mim, um mistério guardado a sete chaves. Imaginei que tipo de pessoa seria aquela, que conseguia e gostava de lidar com computadores, o criminoso deste meu caso; a suposição de que se tratava de uma só pessoa tornara-se evidente para mim. Brincadeiras tardias de garoto? Um jogador, um excêntrico, um engraçado que troça de maneira grandiosa das IQR? Ou um chantagista, uma cabeça fria, que dá um leve sinal de que tem poder para dar o Grande Golpe? Ou uma acção de agitação política? A opinião pública teria uma reacção muito sensível, se tivesse conhecimento da dimensão do caos que reinava numa fábrica que lida com materiais altamente tóxicos. Mas não, um agitador político teria imaginado incidentes completamente diferentes, e um chantagista já há muito tempo que teria podido avançar. Fechei a janela. O vento mudara de direcção. No dia seguinte, pretendia falar primeiro com o Danckelmann, que era o chefe do Serviço de Segurança da fábrica. Depois iria à Secção de Pessoal passar os olhos nos dossiers dos cem suspeitos. Contudo, tinha pouca esperança de descobrir num processo individual o jogador que eu imaginava. O pensamento de ter de verificar cem suspeitos com as regras da arte encheu-me do mais puro horror. Tive esperança de que passassem palavra sobre a minha incumbência, que isso provocasse incidentes e que, dessa maneira,


diminuísse o número de suspeitos. Não era um caso agradável. Só agora me apercebia de que O Korten nem sequer me perguntara se eu queria aceitá-lo. E que eu não lhe dissera que iria pensar primeiro. O gato arranhou a porta da varanda. Abri, e o Turbo deixou um rato morto diante dos meus pés. Agradeci-lhe, e fui-me deitar.


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Em casa de Aristóteles, de Schwarz, de Mendeleiev e de Kekulé

Com a minha identificação especial, foi-me fácil encontrar dentro do recinto da fábrica um lugar para estacionar o meu Kadett. Um jovem segurança conduziu-me ao seu chefe. O Danckelmann tinha escrito na testa que, se já sofria por não ser um polícia a sério, sofria muito mais por não ser um verdadeiro funcionário da polícia secreta. Passa-se o mesmo com todos os seguranças das empresas. Antes de eu ter podido fazer-lhe as minhas perguntas, já ele me tinha contado que só saíra da tropa porque esta era demasiado tíbia. — O seu relatório impressionou-me muito — disse eu. — Sugere problemas com comunistas e com ecologistas? — Só com dificuldade se consegue compreender essas pessoas. Mas quem sabe somar um mais um, sabe de que lado é que o vento sopra. Tenho de lhe confessar que não consigo perceber bem por que razão recorreram a uma pessoa de fora. Poderíamos ter resolvido tudo isto internamente. O seu assistente entrou na sala. O Thomas, foi assim que mo apresentaram, tinha um ar competente, inteligente e eficiente. Compreendi a razão pela qual o Danckelmann conseguia afirmar-se como chefe do Serviço de Segurança da fábrica. — Tem mais alguma coisa a acrescentar ao relatório, Thomas? — O senhor deve saber que não iremos simplesmente passar-lhe o testemunho. Ninguém está mais habilitado do que nós para encontrar o autor do crime. — E como pensam fazê-lo? — Senhor Selb, não penso dizer-lho. — Mas deve e tem de o fazer. Não me obrigue a invocar os pormenores da minha tarefa e dos meus plenos poderes. Temos de ser muito formais com este tipo de pessoas. O Thomas teria mantido a sua obstinação. Mas o Danckelmann interrompeu: — Tem a sua razão, Heinz. O Firner telefonou-me hoje de manhã cedo e obrigou-nos a um trabalho de colaboração sem reservas. O Thomas controlou-se. — Pensámos em colocar um engodo e em construir uma armadilha com a ajuda do Centro de Informática. Comunicaremos então a todos os utilizadores do sistema a criação de uma nova base de dados, altamente confidencial e, este é que é O ponto crucial, absolutamente segura. Esta base de dados, para registo de informações especialmente secretas, corre vazia, na verdade não existe, porque as informações correspondentes não aparecerão. Ficaria muito surpreendido se o anúncio da segurança absoluta não levasse o


criminoso a comprovar a sua capacidade e a arranjar maneira de aceder à base de dados. Logo que isto seja tentado, o computador central registará as características do utilizador, e, com isto, o caso deverá ficar resolvido. Parecia simples. — Por que razão é que só agora vão fazer isso? — Há uma ou duas semanas atrás, toda esta coisa ainda não Interessava a ninguém. E além disso — enrugou a testa —, nós, os da Segurança da fábrica, nunca somos os primeiros a ser informados. Sabe, ainda pensam que os seguranças são uma cambada de polícias reformados ou, pior ainda, despedidos, que estão aptos a açular o pastor alemão contra quem tente pular a cerca da fábrica, mas que não têm mais nada na cabeça. E, no entanto, hoje em dia somos especialistas em todos os aspectos da segurança empresarial, desde a protecção de bens à protecção de pessoas e mesmo à protecção de dados. Agora, na Escola Superior de Mannheim, vai ser criado um curso para formar agentes de segurança licenciados. Os americanos estão, como sempre… — A nossa frente — acrescentei eu. — Quando é que a armadilha fica pronta? — Hoje é quinta-feira. O chefe do Centro de Informática quer preparar a coisa pessoalmente durante o fim-de-semana e, na manhã de segunda-feira, os utilizadores deverão ser informados. A perspectiva de poder fechar o caso já na segunda-feira era muito tentadora, mesmo não tendo sido eu a solucioná-lo. Mas, de qualquer maneira, não queria meter-me no mundo dos agentes de segurança licenciados. Não queria desistir de imediato, e perguntei: — No meu dossier encontrei uma lista com cerca de cem suspeitos. O Serviço de Segurança da fábrica tem mais algumas informações, em relação a algum deles, que não apareçam nos relatórios? — Ainda bem que fala nisso, senhor Selb — disse o Danckelmann. Levantou-se, apoiando-se pesadamente na cadeira da sua secretária e, quando se dirigiu a mim, vi que coxeava. Ele reparou no meu olhar. — Workuta. Em 1945, com dezoito anos, fui feito prisioneiro pelos russos, e em 1953 voltei. Se não fosse O Velho de Rhóndorf, ainda hoje lá estaria. Mas voltando à sua pergunta. Na verdade, temos algumas informações sobre alguns suspeitos que não quisemos que constassem do relatório. Há uns poucos de activistas, sobre os quais somos mantidos informados pela polícia. E uns tantos têm problemas na sua vida privada: mulheres, dívidas, etc. Nomeou-me onze. Quando falámos sobre cada um deles, depressa me apercebi de que aos chamados activistas só se aplicavam as habituais insignificâncias: os que na universidade haviam assinado o panfleto errado, que se haviam candidatado pela lista errada, que haviam marchado na manifestação errada.. O que me interessou foi que a senhora Buchendorff também fazia parte desse grupo. Juntamente com outras mulheres, algemara-se ao gradeamento diante da casa do Ministro da Família.


— Do que é que, então, se tratava? — perguntei ao Danckelmann. — Isso não nos foi comunicado pela polícia. Depois de se ter divorciado do marido, que certamente a arrastava para esse tipo de coisas, nunca mais deu nas vistas. Mas eu digo sempre que quem uma vez foi activista, poderá de um momento para o outro voltar a sêlo. O mais interessante encontrei eu na lista dos “falhados da Vida”, como lhes chamava o Danckelmann. Um químico, Franz Schneider, quarentão, várias vezes divorciado e com o vício do jogo, chamara a atenção porque pedira demasiadas vezes adiantamentos de salário. — Como é que ele vos saltou à vista? — Perguntei. — É um procedimento normal. Sempre que alguém pede pela terceira vez um adiantamento de salário, nós investigamo-lo. — E o que quer isso dizer, exactamente? — Isso pode ir até segui-lo, como aconteceu neste caso. Se quiser, pode falar com o Schmalz, que na altura foi encarregado disso. Pedi para comunicarem ao Schmalz que o esperava para o almoço, ao meio-dia, no Casino. Ainda disse que o esperaria à entrada, perto do ácer, mas o Danckelmann, com um gesto, deu a entender que não. — Não se preocupe, o Schmalz é um dos nossos melhores homens. Ele encontra-o facilmente. — A boa colaboração — disse o Thomas. — Não me leva a mal que eu seja um pouco sensível quando nos retiram as competências da segurança, pois não? E o senhor vem de fora. Mas gostei muito de conversar consigo e — fez um sorriso desarmante — as informações que temos de si são excelentes. Quando saí do edifício de tijolo, onde estava sediado o Serviço de Segurança da fábrica, fiquei desorientado. Talvez tivesse saído pelas escadas erradas. Estava num pátio em que ao longo do lado mais comprido estavam estacionados os carros do Serviço de Segurança, pintados de azul, com o logótipo da firma nas portas, o anel prateado de benzol e, no meio, as letras IQR. Na fachada, a entrada fora construída como uma portada, com duas colunas e quatro medalhões de arenito, dos quais me olhavam, enegrecidos e tristes, Aristóteles, Schwarz, Mendeleiev e Kekulé. Aparentemente, estava diante do antigo edifício da Administração. Saí do pátio e entrei noutro, cujas fachadas se encontravam totalmente cobertas de vinha-virgem. Estava tudo estranhamente quieto, os meus passos na calçada ressoavam demasiado alto. As casas pareciam abandonadas. Quando fui atingido nas costas por qualquer coisa, virei-me, assustado. A minha frente, saltitava uma bola de cor berrante, e um miúdo veio a correr para mim. Apanhei a bola e dirigi-me a ele. Agora via no canto do pátio, atrás de uma roseira, a janela com cortinas e a bicicleta ao lado da porta aberta. O rapaz tirou-me a bola da mão, disse “Obrigado” e correu para dentro de casa. Reconheci o nome “Schmalz” num letreiro na porta. Uma velha olhou-me desconfiada e fechou-a. Ficou tudo muito quieto, de novo.


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Ragoút fin guarnecido com salada

Quando entrei no Casino, dirigiu-se a mim um homem pequeno, magro, pálido, de cabelos negros. — Senhor Selb? — Ceceou ele. — Sou o Schmalz. Declinou o meu convite para beber um aperitivo. — Obrigado, não bebo álcool. — E que tal um sumo de frutas? — eu não queria prescindir do meu Aviateur. — Retorno ao trabalho à uma hora… queria pedir-lhe, para já… não tenho muito para lhe contar. A resposta era elíptica, mas sem receios. Teria ele aprendido a evitar as palavras com “s” forte e “c” dental no seu vocabulário falado? A senhora da recepção tocou a campainha para chamar um empregado, e a rapariga que no outro dia estivera a servir no bar dos directores conduziu-nos à grande sala no primeiro andar, até a uma mesa perto da janela. — Já sabe como prefiro começar uma refeição? — VÒU já tratar disso — sorriu ela. O Schmalz pediu ao chefe de mesa um “Ragoút fin guarnecido com salada, por favor”. A mim apetecia-me carne de porco agridoce à maneira de Sichuan. O Schmalz olhou-me com inveja. Ambos prescindimos da sopa por razões diferentes. Ao beber o Aviateur, pedi-lhe que me falasse do resultado das investigações acerca do Schneider. O Schmalz fez-me o relato de uma maneira extremamente precisa e evitando qualquer caceio. Um homem malfadado, aquele Schneider. O Schmalz seguira-o durante uns dias, depois do grande espalhafato por causa de um pedido de adiantamento. O Schneider não jogava apenas em Dúrkheim, mas também em salas clandestinas, e por isso estava enredado naquele ambiente. Quando estavam a dar-lhe uma surra, por iniciativa dos seus fervorosos companheiros de jogo, o Schmalz interpôs-se e levou de volta a casa um Schneider não muito ferido, mas completamente transtornado. Era o momento ideal para uma conversa entre o Schneider e os seus superiores. Chegaram a um acordo: o Schneider, imprescindível para a investigação farmacêutica, seria tirado de circulação durante três meses e enviado para um tratamento, e os círculos respectivos foram obrigados a não lhe proporcionarem mais nenhuma oportunidade de jogo. O Serviço de Segurança das IQR fez valer o braço forte que possui em Mannheim e em Ludwigshafen. — Foi há quatro anos e, até hoje, o homem não tornou a chamar a atenção. Porém, em minha opinião, ainda é uma bomba-relógio a fazer tiquetaque. A refeição estava excelente. O Schmalz comeu muito depressa. Não deixou ficar um único grão de arroz no prato — pedantice de um neurótico do estômago. Perguntei-lhe o


que é que ele achava que iriam fazer ao responsável pela baralhada nos computadores. — Interrogá-lo fortemente. E vergá-lo verdadeiramente. Nunca deve tornar a poder ameaçar a fábrica. Aparentemente, o homem é um talento. Talvez, para a gente, ainda tenha algum… Procurou um sinónimo sem “s” para “préstimo”. Ofereci-lhe um Sweet Afton. — Não, obrigado — disse, e tirou do bolso uma caixa de plástico com cigarros enrolados com filtro, — É a minha mulher que mos enrola. Oito por dia, no máximo. Se há algo que odeio são cigarros de tabaco de enrolar. Estão ao mesmo nível que os armários encastrados, as roulottes e os sacos de croché para o rolo de papel higiénico sobre a lampa do porta-bagagens do carro-que-só-sai-aos-domingos. Ao falar da mulher fez-me vir à memória a casa do porteiro com o letreiro “Schmalz”. — Tem um filho? Ele olhou-me com desconfiança e devolveu-me a pergunta, com “O que quer dizer…?”. Contei-lhe da minha caminhada, perdido entre os edifícios antigos da fábrica, da atmosfera estranha num pátio cercado de vinha-virgem e do encontro com o miúdo da bola colorida. o Schmalz descontraiu-se e confirmou que o pai vivia na casa do porteiro. — Também andou na tropa, tem amizade com o director desde aí. Agora zela para que tudo esteja em ordem na parte Velha da fábrica. De manhã, a gente leva-lhe o miúdo, a minha mulher também trabalha aqui na fábrica. Fiquei a saber que antigamente muitas pessoas da segurança da fábrica tinham vivido ali, no recinto industrial, e que o schmalz praticamente fora ali criado. Assistira à reconstrução da Fábrica e conhecia-lhe todos os recantos. Imaginei como seria opressiva uma vida passada no âmago do romantismo Industrial, no meio de refinarias, reactores, destiladores, turbinas, silos e carruagens-cistema. — Nunca quis procurar um trabalho fora das IQR? — Não podia fazer isso ao meu pai. Ele diz sempre: “Pertencemos aqui; o director também não abandona o barco”. Olhou para o relógio e deu um salto. — Infelizmente, tenho de ir. À uma hora tenho que fazer de guarda-costas — uma palavra que ele pronunciou quase impecavelmente. — Agradeço-lhe o convite. A minha tarde na Secção de Pessoal não foi proveitosa. Às quatro horas confessei a mim mesmo que poderia finalmente deixar o estudo dos processos individuais. Passei pela senhora Buchendorff, de quem entretanto ficara a saber que se chamava Judith, que tinha trinta e três anos, que terminara o curso superior de Germânicas e que não encontrara colocação como professora. Estava há quatro anos nas IQR, primeiro no arquivo, depois na Secção de Relações Públicas, onde chamara a atenção do Firner. Vivia na Rua Rathenau. — Por favor, deixe-se estar — disse-lhe eu.


Ela parou de procurar com os pés os sapatos debaixo da secretária, e perguntou-me se queria café. — Sim, para podermos beber à boa vizinhança. Li o seu processo individual e agora sei tudo sobre si, com excepção de quantas blusas de seda possui. Desta vez tinha outra vestida, agora abotoada até ao pescoço. — Se for no sábado à recepção, verá a terceira. Já tem o seu convite? Empurrou uma chávena na minha direcção e acendeu um cigarro. — Que recepção é essa? — Olhei de soslaio para as suas pernas. — Desde segunda-feira que temos aqui uma delegação da China, e para terminar queremos mostrar-lhe que não apenas as nossas instalações são melhores do que as dos franceses, mas também os nossos buffets. O Firner pensou que, nessa ocasião, o senhor poderia conhecer de um modo natural algumas pessoas que lhe interessassem para a investigação. — Poderei também conhecê-la a si de um modo natural? Ela riu-se. — Eu estarei lá por causa dos chineses. Mas estará lá uma chinesa que eu ainda não percebi do que é responsável. Talvez seja a perita em segurança, uma vez que nunca é apresentada; uma colega sua, portanto. Uma mulher bonita. — A senhora quer livrar-se de mim, senhora Buchendorff! Vou queixar-me ao Firner. Mal me tinham saído as palavras da boca, já me arrependia do que dissera. Charme antiquado, de mau gosto.


7

Uma pequena avaria

No dia seguinte, o ar parara por cima de Mannheim e de Ludwigshafen. Havia tanta humidade que, mesmo sem me mover, as roupas se me colavam ao corpo. O percurso de carro foi feito sempre em pára-arranca, e eu teria gostado de ter três pés para embraiar, travar e acelerar. Na ponte Konrad Adenauer estava tudo parado. Houvera um acidente, uma batida por trás e logo a seguir uma outra. Fiquei vinte minutos parado na fila, olhando o trânsito em sentido contrário e os comboios, e fumando para não sufocar. O encontro com o Schneider era às nove e meia. No portão número 1, o porteiro explicou-me o caminho. — Fica a menos de cinco minutos daqui. Vá sempre em frente, e quando chegar ao Reno vire à esquerda e siga cerca de cem metros. Os laboratórios são no edifício claro com janelas grandes. Pus-me a caminho. Lá em baixo, no Reno, vi o miúdo que encontrara no dia anterior. Tinha preso um cordel a um pequeno balde de praia e tirava água do rio com ele. Despejava a água na sarjeta. — Estou a esvaziar o Reno! — gritou quando me viu e me reconheceu. — Espero que o consigas. — O que é que tu fazes aqui? — Tenho de ir ali adiante, ao laboratório. — Posso ir contigo? Despejou o pequeno balde e veio ter comigo. As crianças simpatizam muitas vezes comigo, não sei porquê. Não tenho filhos, e a maioria das crianças enerva-me. — Vem, então — disse eu, e aproximámo-nos do edifício com janelas grandes. Estávamos a cerca de cinquenta metros quando umas pessoas vestidas de branco saíram apressadamente pela entrada. Desceram a correr para a margem do Reno. Depois apareceram mais, não apenas de bata branca, mas também com fatos de trabalho azuis, e as secretárias com blusa e saia. Era pitoresco de ver, e eu não compreendia como conseguiam correr naquele calor húmido e sufocante. — Olha, aquele ali está a dizer-nos adeus! — disse o garoto, e, na verdade, um dos de bata branca esbracejava e gritou-nos qualquer coisa que eu não entendi. Mas também já não era preciso perceber; pelos vistos, tratava-se de fugir dali tão depressa quanto possível. A primeira explosão despejou na rua uma cascata de cacos de vidro. Agarrei na mão do miúdo, mas este soltou-se com um puxão. Por um instante, fiquei paralisado: não senti nenhum ferimento, ouvi, apesar dos vidros que continuavam a partir-se, um grande silêncio, vi o rapaz correr, escorregar nos cacos de vidro, equilibrar-se de novo, finalmente


cair depois de duas passadas a derrapar e, levado por diante pelo balanço, dar voltas sobre si mesmo. Depois aconteceu a segunda explosão, o grito do garoto, a dor no meu braço direito. A seguir ao estrondo, ouvi um assobio violento, perigoso, diabólico. Um barulho que me fez entrar em pânico. Agradeço às sirenes que começaram a soar ao longe o ter conseguido agir. Elas acordaram-me os reflexos, muito treinados durante a guerra, os reflexos de fuga, de auxílio, de procura e de oferta de protecção. Corri para o rapaz, pu-lo de pé, arrastei-o na direcção da qual tínhamos vindo. Os seus pequenos pés não conseguiam acompanhar os meus passos, mas ele deu seu melhor e não me largou a mão. — Embora, miúdo, corre! Temos de sair daqui, não te vás abaixo das canetas! Logo que dobrámos a esquina, olhei para trás. Uma nuvem verde subia para o céu cinzento-chumbo no lugar onde havíamos estado. Acenei sem sucesso às ambulâncias que passavam por nós a alta velocidade. No portão número 1, o porteiro mostrou interesse por nós. Conhecia o miúdo, que se mantinha aferrado à minha mão, pálido, arranhado e assustado. — Richard, pelo amor de Deus, o que é que te aconteceu? Vou já telefonar ao teu avô — dirigiu-se ao telefone. — E, para si, é melhor chamar os primeiros socorros. Isso não tem lá muito bom aspecto. Um caco de vidro rasgara-me o braço, e o sangue pintava de vermelho a manga clara do casaco. Sentia-me fraco. — Tem aguardente? Recordo-me mal da meia-hora seguinte. Vieram buscar o Richard. O avô, um homem grande, largo, pesado, com um cránio raspado atrás e dos lados e com um farfalhudo bigode branco, pegou sem dificuldade no neto ao colo. A polícia tentou entrar no recinto da fábrica e investigar o acidente, mas foi mandada embora. O porteiro ainda me deu uma segunda e uma terceira aguardentes. Quando os primeiros socorros chegaram, levaram-me ao médico da fábrica, que me coseu o braço e mo pôs ao peito. — É melhor ficar ainda algum tempo deitado no quarto aqui ao lado — disse o médico. — De qualquer maneira, agora não pode sair. — Como assim, não posso sair? Temos alarme de smog, e todo o trânsito está interrompido — Como é que posso entender isso? Há alarme de snog e não me é permitido abandonar o centro do smog? — Não está a compreender. O smog é um fenómeno meteorológico geral e não conhece centro nem periferia. Achei tudo aquilo uma parvoíce pegada. E que tipo de smog é que existiria? Tinha visto uma nuvem verde que crescia, e crescia aqui, dentro do perímetro da fábrica. E eu deveria ficar ali? Queria falar com o Firner.


No escritório dele tinha sido instalado um Gabinete de Crise. Pela porta, vi polícias vestidos de verde, bombeiros de azul, químicos de branco e alguns senhores grisalhos, da gerência. — O que é que aconteceu, realmente? — perguntei à senhora Buchendorff. — Tivemos uma pequena avaria, nada de grave. Só que as autoridades fizeram, infelizmente, soar o alarme de smog, e isso provocou uma grande confusão. Mas o que é que lhe aconteceu? — A sua pequena avaria provocou-me uns pequenos arranhões. — O que é que o senhor foi ali… Ah, pois, ia a caminho para falar com o Schneider. A propósito, ele hoje nem sequer cá está. — Sou o único ferido? Houve mortos? — Mas o que é que está a pensar, senhor Selb? Só uns casos de primeiros socorros, e foi tudo. Podemos fazer mais alguma coisa por si? — Pode fazer-me sair daqui. Não tinha vontade nenhuma de abrir caminho até ao Firner e ouvi-lo cumprimentar-me: “Saúdo-o, senhor Selb!”. Do gabinete saiu um polícia com diversos distintivos. — O senhor vai para Mannheim, não é verdade, senhor Herzog? Talvez pudesse dar boleia ao senhor Selb? Ele tem uns pequenos arranhões e não queremos obrigá-lo a ficar aqui à espera mais tempo. O Herzog, um tipo vigoroso, deu-me boleia. À frente do portão estavam alguns carros militares e repórteres. — Evite, por favor, deixar-se fotografar com a ligadura. Eu não tinha vontade nenhuma de me deixar fotografar, e quando passámos de carro pelos jornalistas, inclinei-me para baixo, para o isqueiro do tablier. — O que é que se passou para que o alarme de smog tivesse sido accionado tão rapidamente? — perguntei eu na viagem por Ludwigshafen, que parecia uma cidadefantasma. O Herzog mostrou-se bem informado. — Depois dos muitos alarmes de smog no Outono de 1984, iniciámos um modelo experimental em Baden-Wúrtenberg e na Renânia-Palatinado, com novas tecnologias e novas bases legais, extensíveis em termos de competências e de estados Federais. A ideia é recolher as emissões directamente, correlacioná-las com o gráfico meteorológico, e não accionar apenas o alarme de smog quando já for demasiado tarde. Hoje foi o baptismo de fogo do nosso modelo, até agora só tínhamos tido insanos. — E que tal funciona o trabalho conjunto com a fábrica? Soube que a Polícia foi impedida de entrar. — Esse é um aspecto delicado. A indústria química luta contra a lei em todos os aspectos. Neste momento está a correr uma queixa legislativa no Tribunal Constitucional. Legalmente, teríamos podido entrar na fábrica, mas nesta fase não queremos abusar.


O fumo do meu cigarro incomodava o Herzog, e ele abriu a janela. — Ora bolas — disse, e tornou imediatamente a subir o vidro —, por favor, apague o cigarro. Um cheiro acre penetrara pela janela aberta, os meus olhos começaram a chorar, fiquei com um sabor cáustico na boca, e tivemos os dois um ataque de tosse. — Ainda bem que lá fora os colegas têm o equipamento protector vestido. Na saída para a subida em direcção à ponte Konrad Adenauer, passámos por uma rua bloqueada, e os dois polícias que mantinham o trânsito parado tinham postas máscaras de gás. Na berma, estavam quinze ou vinte veículos parados. O condutor do primeiro estava nesse momento a falar, gesticulando com os polícias, e, como tinha uma toalha colorida apertada contra o rosto, dava uma imagem pitoresca. — Como é que vai ser hoje, ao fim da tarde, com o trânsito do regresso a casa? O Herzog encolheu os ombros. — Temos de esperar para ver como o gás de cloro se comporta. Esperamos poder evacuar os trabalhadores e empregados das IQR durante a tarde, isso já aliviaria substancialmente o problema do trânsito do regresso a casa. Uma parte dos que trabalham noutros lados talvez tenha de dormir no local de trabalho. Nesse caso, divulgá-lo-emos pela rádio e por carros com altifalantes. Há pouco, fiquei admirado com a rapidez com que conseguimos esvaziar as ruas. — Pensa numa evacuação? — Se a concentração de cloro gasoso não diminuir para metade nas próximas doze horas, teremos de evacuar a leste da Rua Leuschner, e se calhar também a Neckerstadt e o Jungbusch. Mas os meteorologistas deram-nos esperança. Onde quer que o deixe? — Se a concentração de monóxido de carbono no ar o permitir, ficaria muito contente se pudesse levar-me até à porta de minha casa, na Rua Richard Wagner. — Apenas por causa da concentração de monóxido de carbono, nunca teríamos feito soar o alarme de smog. O pior é o cloro, neste caso prefiro saber que as pessoas estão em casa ou no escritório, e de maneira nenhuma na rua. Parou diante da minha casa. — Senhor Selb — disse ele ainda —, o senhor não é detective privado? Penso que o meu antecessor trabalhou consigo. Ainda se lembra do conselheiro Bender e daquela história com os veleiros? — Espero que este não seja um caso para nós dois — disse eu. —Já sabe alguma coisa sobre a causa da explosão? — Tem alguma suspeita, senhor Selb? Não era por acaso que o senhor estava no local do acontecimento. As IQR estavam à espera de algum atentado? — Não sei nada disso. A minha investigação é comparativamente mais inocente e vai numa direcção completamente diferente.


— A ver vamos. Talvez ainda tenha de lhe fazer umas perguntas na esquadra — olhou para cima, para o céu. — E agora, reze por um vento forte, senhor Selb. Subi os quatro degraus da entrada de minha casa. A ferida do braço recomeçara a sangrar. Mas estava preocupado com outra coisa. Iria a minha investigação realmente num sentido Completamente diferente? Teria sido um acaso que o Schneiler não tivesse ido trabalhar naquele dia? Teria eu abandonado depressa de mais a ideia da chantagem? Terme-ia o Firner dito tudo?


8

Pois sim

Tirei o gosto a cloro da boca com um copo de leite, e tentei pôr uma ligadura nova. Fui interrompido pelo telefone. — Senhor Selb, foi o senhor que eu vi há bocado, saindo das IQR com o Herzog? A fábrica pediu-lhe que investigasse? Era o Tietzke, um dos últimos jornalistas honestos. Depois da extinção do jornal Heidelherger Tageblatts, fora a muito custo que conseguira trabalho no Rhein-NeckarZeitung, e estava numa situação difícil. — Que investigações? Não fique com ideias erradas, Tietzke. Eu estava nas IQR por causa de um outro assunto, e ficar-lhe-ia agradecido se esquecesse que me viu. — Se eu não posso descrever o que vi, tem de me dizer um pouquinho mais. — Mesmo com a melhor das boas vontades, não posso falar-lhe do assunto. Mas posso tentar arranjar-lhe uma entrevista exclusiva com o Firner. Tenho de lhe telefonar ainda hoje à tarde. Demorei metade da tarde a conseguir apanhar o Firner entre duas reuniões. Ele não podia confirmar nem refutar que tivesse havido sabotagem. O Schneider, segundo informações da mulher, estava de cama com uma otite. Então, também o firner se interessara em saber a razão pela qual o Schneider não fora trabalhar… Embora contrariado, dispunha-se a receber o Tietzke na manhã seguinte. A senhora Buchendorff entraria em contacto com ele. Depois disso, tentei telefonar ao Schneider. Ninguém atendeu, o que poderia significar tudo ou nada. Deitei-me na Cama, consegui adormecer apesar das dores no braço, e voltei a acordar à hora do telejornal. Nas notícias, comunicava-se que a nuvem de cloro gasoso estava a levantar em direcção a leste e que o perigo, que nunca existira, acabaria no decorrer da noite. A interdição de sair à rua, que também não existira, Iria terminar às 22 horas. Encontrei um bocado de gorgonzola no congelador e fiz um molho com as tagliatelle que trouxera de Roma havia dois anos. Foi divertido. Era necessário haver uma interdição de sair para que eu voltasse a cozinhar. Não precisei do relógio para me aperceber de que eram 22 horas. Nas ruas, o barulho era tanto que parecia que o Waldhof tinha ganho o campeonato alemão. Pus o meu chapéu de palha e fui ao Rosengarten. Um conjunto chamado Just forfun tocava canções dos bons velhos tempos. O tanque escadeado da Fonte não continha água e alguns jovens dançavam lá dentro. Dei uns passos de fox trot — o saibro e as articulações queixaram-se. Na manhã seguinte, havia um folheto com o porte pago na minha caixa do correio, enviado pelas Indústrias Químicas do Reno, em que era assumida uma tomada de posição inamovível sobre o incidente. “As IQR protegem a vida”, fiquei a saber, também que a vertente mais importante da investigação actual era a conservação da vitalidade da floresta


alemã. Pois sim. Juntamente com o folheto havia um pequeno cubo de plástico com uma semente sã de pinheiro alemão. Era patusco de ver. Mostrei o objecto ao meu gato e coloquei-o sobre o lintel da chaminé. Passeando sem pressa pelos Planken, comprei no talho do mercado um pãozinho quente com Leberkãse e mostarda, fiz uma visita ao turco das azeitonas boas, vi os esforços inúteis dos Verdes, que com o seu quiosque informativo na Praça Parade tentavam perturbar a sintonia entre as IQR e a população de Mannheim, e reconheci, entre as pessoas presentes, o Herzog, que ia deixando que o atafulhassem de panfletos. À tarde, fui sentar-me no Parque Luisen. Paga-se para entrar, como nos parques de diversões. Por isso, no início desse ano comprara pela primeira vez uma entrada anual, que tencionava ir amortizando. Quando não estava a observar os reformados quedavam de comer aos patos, lia o romance Grúnen Heimich. O nome próprio da senhora Buchendorff levara-me a isso. Às cinco horas fui para casa. Coser o botão do smoking custou-me uma boa meia hora por causa do meu braço inutilizado. Fui de táxi da torre de água ao Casino das IQR. Havia, sobre a entrada, uma faixa com caracteres chineses. Nos três mastros esvoaçavam ao vento as bandeiras da República Popular da China, da República Federal da Alemanha e das IQR. À direita e à esquerda da entrada estavam duas raparigas do Palatinado trajadas a rigor, parecendo tão autênticas como bonecas Barbie vestidas de “Múnchener Kindl”. A chegada dos carros estava no auge. Tudo parecia muito honrado e digno.


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Meteu a mão no decote da Economia

O Schmalz estava no átrio. — Como está o seu filho? — Bem, obrigado. Depois poderia falar com o senhor? Queria agradecer-lhe. Agora tenho de ficar aqui. Subi as escadas e entrei no salão pelas portadas abertas. As pessoas estavam de pé em pequenos grupos, os empregados e empregadas de mesa serviam champanhe, sumo de laranja, champanhe com sumo de laranja, Campari com sumo de laranja e Campari com água mineral. Vagueei um pouco por ali. Era como em todas as outras recepções, antes de os discursos serem pronunciados e de o buffet ser servido. Procurei rostos conhecidos e encontrei a ruiva das sardas. Trocámos sorrisos. O Firner puxou-me para um grupo e apresentou-me três chineses, cujos nomes eram compostos, em combinações alternadas, por San, Yin e Kim, assim como o senhor Oelmúller, responsável pelo Centro de Informática. O Oelmúller tentava explicar aos chineses o que é a Protecção de Dados na Alemanha. Não sei o que eles achavam de tão engraçado no assunto, de qualquer maneira ria como chineses de Hollywood – um filme baseado num livro da Pearl S. Buck. Depois, vieram os discursos. O do Korten foi brilhante. Dissertou de Confúcio a Goethe, saltou a Revolta dos Boxers e a Revolução Cultural, e apenas se referiu à antiga filial das IQR em Kiautchou para fazer um elogio aos chineses, porque fora lá que o último dirigente dessa filial aprendera com eles um novo processo de fabrico do azulultramarino. O chefe da delegação chinesa respondeu não menos habilmente. Falou sobre os seus anos de estudante em Karlsruhe, fez uma vénia à cultura e à economia alemã de Bòll até Schleyer, utilizou linguagem técnica que eu não compreendi, e terminou com a frase de Goethe “Já não é possível separar o Oriente do Ocidente”. Depois do discurso do Ministro-Presidente da Renânia-Palatinado, até mesmo um buffet menos soberbo teria deixado uma impressão carismática. Para começo, escolhi ostras com açafrão em molho de champanhe. Ainda bem que havia mesas. Odeio recepções de pé, em que fazemos equilibrismo com o cigarro, o copo e o prato, e onde deveria haver alguém que nos levasse a comida à boca. Vislumbrei numa mesa a senhora Buchendorff e uma cadeira vazia. Estava deslumbrante no seu conjunto de seda selvagem cor de anilina. A blusa tinha os botões todos. — Posso sentar-me aqui? — Pode ir buscar uma cadeira, ou quer sentar já ao seu colo a perita em segurança chinesa? — Diga-me, os chineses aperceberam-se da explosão? — Que explosão? Não, falando a sério, eles estiveram primeiro no palácio de Eltz e


depois foram experimentar o novo Mercedes ao Núrburgring. Quando voltaram, já tudo tinha acabado, e a imprensa refere-se hoje ao assunto sobretudo do ponto de vista meteorológico. Como é que está o seu braço? O senhor é uma espécie de herói… infelizmente, isso não pôde aparecer nos jornais, embora tivesse dado uma bela história. A chinesa apareceu. Tinha tudo o que faz os alemães sonharem com as asiáticas. Se era mesmo a perita em segurança, isso eu também não consegui descobrir. Perguntei-lhe se na China existiam detectives privados. — Não há propriedades privadas, não há detectives privado> — respondeu ela, e perguntou se na República Federal da Alemanha também existiam mulheres detectives privados. Isso conduziu a considerações sobre os subjacentes movimentos feministas. — Li quase tudo o que foi publicado na Alemanha de literatura feminina. Como é que é possível que na Alemanha os homens escrevam literatura feminina? O chefe de mesa transmitiu-me o convite para a mesa do Oelmúller. De caminho servime, como segundo prato, de rolinhos de linguado à Vereador de Bremen. O Oelmúller apresentou-me os outros comensais da mesa entre os quais um que me impressionou pela habilidade pedante com que arrumara sobre o crânio os seus escassos cabelos: o Professor Ostenteich, chefe do Departamento de Direito e Professor Honorário da Universidade de Heidelberg. Não era por acaso que aqueles senhores comiam à mesma mesa Agora, tinha de começar a trabalhar. Desde a conversa com o Herzog que uma questão me preocupava. — Os senhores poder-me-iam explicar o novo plano anti-smog? O senhor Herzog, da Polícia, falou-me dele e também mencionou que não era absolutamente incontroverso. Por exemplo, o que devo compreender por registo directo de emissões de poluentes? O Ostenteich sentiu-se obrigado a liderar a conversa. — Isso é un peu délicat, como diriam os franceses. O senhor deveria ler o parecer do Professor Wenzel, que compila a problemática competente de uma maneira minuciosa e que décou fiert a injusta pretensão legislativa de Baden-Wúrtenberg e da KenàniaPalatinado. Lepouvoir arrete lepouvoir… a regnlamentação federal da Lei do Controlo de Emissões bloqueia esses caminhos alternativos legais das regiões. Junte-se a isso o direito à propriedade privada, a protecção da actividade empresarial e da confidencialidade das sociedades. O legislador pensa poder arrumar isso tudo com uma só penada. Mais la vérité est en marche, ainda existe, heureusement, o Tribunal Constitucional em Karlsruhe. — E então como é que funciona o novo modelo de alarme de smog? — lancei um olhar de desafio ao Oelmúller. O Ostenteich não deixou que lhe retirassem a liderança da conversa assim tão facilmente. — Ainda bem que também pergunta acerca do lado técnico, senhor Selb. Isso poderá o nosso senhor Oelmúller explicitar já. O nosso problema é que o Estado e a Economia só suportam andar lado a lado e um com a outra quando entre ambos subsiste uma certa distance. E, permita-me por favor esta imagem ousada, neste caso o Estado mediu mal as distâncias e meteu a mão no decote da Economia.


Riu-se vigorosamente, e o Oelmúller sentiu-se obrigado a imitá-lo. Quando voltou a paz, ou, como um francês diria, o silence, o Oelmúller disse: — Tecnicamente, tudo isto é muito simples. A protecção do meio ambiente baseia-se, de um modo geral, na medição da concentração de produtos poluentes no agente de transporte das emissões, seja ele a água ou o ar. Quando os valores máximos permitidos são ultrapassados, tenta-se identificar a fonte de emissão e desligá-la. O smog só pode formar-se quando uma ou outra fábrica emite maior quantidade de poluentes do que o permitido. Por outro lado, o smog também se forma quando as emissões das várias fábricas se mantêm dentro dos valores permitidos, mas as condições meteorológicas não as eliminam. — E o responsável pelo alarme do smog, como é que ele sabe de que espécie de smog se trata? É óbvio que tem que reagir de maneira muito diferente nos dois casos. Aquilo começava a interessar-me; adiei a minha ida seguinte ao buffet e rebusquei um cigarro no pequeno maço amarelo. — Correcto, senhor Selb, na verdade dever-se-ia reagir de maneira diferente nos dois casos, mas com os métodos actuais as duas situações são muito difíceis de distinguir. Pode acontecer, por exemplo, que se pare todo o trânsito e que as fábricas tenham de estrangular as suas produções, embora tenha sido apenas uma fábrica de carvão a ultrapassar os valores máximos permitidos para a emissão de poluentes, mas que não pôde ser atempadamente identificada e impedida de laborar. O que é sedutor no novo modelo de registo directo da emissão de poluentes é que, pelo menos teoricamente, vão evitar-se os problemas que o senhor acabou justamente de mencionar. A emissão de poluentes é medida por sensores nos lugares onde se origina, e os valores são transmitidos a uma central que, dessa maneira, a qualquer momento sabe onde e que tipo de emissões estão a ser libertadas. E não apenas isto; a central transfere os valores das emissões para uma simulação do estado do tempo local previsto para as vinte e quatro horas seguintes (aquilo a que chamamos gráfico meteorológico) e podemos assim prever, de certa maneira, a ocorrência de smog. Um sistema de aviso antecipado que não funciona lá muito bem na prática, como teoricamente parecia possível, porque a meteorologia ainda está a dar os primeiros passos. — Qual é a sua opinião sobre o incidente de ontem, nesse contexto? O novo modelo satisfez ou falhou? — Apesar de tudo, pode dizer-se que funcionou bem. O Oelmúller retorcia, pensativamente, a ponta da barba. — Não, não, senhor Selb, neste momento, tenho que alargar a perspectiva do técnico para um tour d’horizon global económico. Antigamente, o dia de ontem simplesmente nunca teria acontecido. Mas ontem tivemos o caos com todos aqueles anúncios por altifalantes, os controlos da polícia, a interdição de sair à rua. E para quê? A nuvem dissipou-se sem qualquer Intervenção dos defensores do meio ambiente. Atiçou-se o medo, destruiu-se a confiança e prejudicou-se a imagem das IQR… tant de bruitpour une omelette. Eu acho que é exactamente um caso como este que podemos utilizar no Tribunal Constitucional, para exemplificar os excessos do novo regulamento.


— Os nossos químicos estão a investigar se os valores de Ontem conseguem sequer justificar o accionamento do alarme do smog — O Oelmúller voltava a usar da palavra. — Começaram logo a analisar os dados das emissões de poluentes que nós também recolhemos no nosso sistema IGF, o sistema de informação de gestão e da fábrica. — A indústria sempre teve o direito de receber on-line os resultados das análises feitas pelo Estado — disse o Ostenteich. — Acha possível, senhor Oelmúller, que exista uma relação entre o acidente e os incidentes no sistema informático? — Já pensei nisso. Nós controlamos electronicamente quase todos os processos de produção, e há muitas ligações directas entre os computadores que controlam os processos e o sistema IGF. Manipulações a partir do sistema IGF? Não posso excluir essa hipótese, apesar da existência de inúmeras seguranças internas. Na verdade, ainda não sei o suficiente sobre o acidente de ontem para poder dizer se uma suspeita dessas tem pés para andar. E, se reverificar, é terrível o que pode vir a acontecer-nos. Com a interpretação que o Ostenteich fez do acidente da véspera, quase me esqueci de que ainda andava de braço ao peito. Bebi à saúde dos senhores e pus-me a caminho do buffet. Com os lombinhos de cabrito em molho de ervas no prato aquecido, tomara o rumo da mesa do Firner quando o Schmalz se dirigiu a mim. — Poderemos, a minha mulher e eu, convidar o doutor para tomar um café? Pelos vistos, o Schmalz descobrira o meu título de doutor e preferira aderir a ele, para neutralizar mais um ceceio. — É muito amável, senhor Schmalz. — agradeci. — Mas, por favor, compreenda que, até à conclusão deste caso, não poderei dispor livremente do meu tempo. — Bem, então fica para outra altura. O Schmalz ficou com um ar infeliz, mas que a fábrica tivesse prioridade, isso ele compreendia. Olhei em volta à procura do Firner e encontrei-o no momento em que se dirigia do buffet, com um prato, para a sua mesa. Ficou parado por um breve instante. — Saúdo-o! Descobriu alguma coisa? Segurava o prato desajeitadamente à altura do peito, para esconder uma nódoa de vinho tinto na camisa. — Sim — respondi eu simplesmente. — E o senhor? — O que quer dizer com essa pergunta, senhor Selb? — Imagine que temos um chantagista que quer demonstrar a sua superioridade, primeiro através da manipulação do sistema IGF, e depois provocando uma explosão de gás. Seguidamente, exige dez milhões às IQR. Na fábrica, quem é seria o primeiro a ter as exigências sobre a mesa? — O Korten. Porque só ele é que pode decidir sobre um montante dessa ordem de


grandeza. Franziu a testa e, sem querer, olhou para a mesa ligeiramente sobrelevada onde o Korten se sentava com o chefe da delegação chinesa, o Ministro-Presidente e outras personalidades importantes. Esperei em vão por um apaziguador: “Mas, senhor Selb, o que está a pensar!”. Baixou o prato. A mancha de vinho tinto tornou desnecessariamente ainda mais visível, por detrás da fachada de superioridade serena, um Firner tenso e inseguro. Como se eu já lá estivesse, deu uns passos, imerso em pensamentos, em direcção à janela aberta. Depois controlou-se, voltou a pôr o prato diante do peito, fez um breve aceno de cabeça na minha direcção e dirigiu-se com passos decididos para a sua mesa. Eu fui à casa de banho. — Então, meu querido Selb, isso vai andando? O Korten colocou-se no outro urinol e dedilhou a braguilha. — Referes-te ao caso ou à próstata? Ele urinava e ria-se. Começou a rir-se cada vez mais alto, leve de se apoiar aos azulejos com a mão, e então também eu me lembrei. Já havíamos estado uma vez assim, ao lado um do Outro, na casa de banho do Friedrich-Wilhelm. Tinha-no-lo planeado como medida preparatória para uma balda às aulas; quando o professor desse pela nossa falta, o Bechtel deveria levantar-se e dizer: “O Korten e o Selb sentiram-se mal há bocadinho e estão na casa de banho… eu vou num instantinho ver como estão”. Mas o professor foi averiguar pessoalmente; encontrou-nos de pé, muito alegres, e obrigou-nos a continuar ali de pé durante toda a aula, controlados de vez em quando pelo contínuo. — Vem aí o professor Brecher com o monóculo — ofegou o Korten. — O Mete-nojo, vem aí o Mete-nojo — lembrei-me da alcunha, e ali estávamos nós de braguilhas abertas, a darmos palmadas nos ombros um do outro, e vieram-me as lágrimas aos olhos e a barriga doía-me de tanto rir. Nessa altura, a coisa quase acabou mal. O Brecher fizera queixa de nós ao reitor, e eu já imaginava o meu pai furibundo e a minha mãe chorosa e a bolsa de estudos a voar. Mas o Korten assumira toda a responsabilidade: ele fora o instigador, eu apenas o seguira. Por isso teve uma carta enviada para casa, e o seu pai apenas se rira. — Tenho de ir. O Korten abotoou a braguilha. — Já? Ainda continuava a rir-me. Mas acabara-se a brincadeira, e os chineses esperavam.


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Recordações do Adria azul

Quando voltei para a sala, estavam todos de partida. Ao passar por mim, a senhora Buchendorff perguntou-me como é que iria para casa; era óbvio que eu ainda não conseguia guiar com o braço naquele estado. — Vim cá ter de táxi. — Terei muito gosto em dar-lhe boleia, afinal somos vizinhos. Daqui a um quarto de hora, na saída? As mesas jaziam abandonadas, formavam-se grupinhos de pessoas em pé e voltavam a afastar-se. A ruiva tinha ainda uma garrafa a postos, mas já todos haviam bebido o suficiente. — Olá — disse-lhe eu. — Gostou da recepção? — O buffet era bom. Estou admirado por ainda restar alguma coisa. Mas uma vez que é o caso… poderia mandar preparar um pequeno farnel para o meu piquenique de amanhã? — Para quantas pessoas? — Esboçou uma vénia irónica. — Se tiver tempo, para duas. — Oh, eu não posso. Mas vou pedir para embrulharem alguma coisa para dois. Um momento. Desapareceu pelas portas de batente. Quando reapareceu, trazia uma grande caixa de cartão. — Devia ter visto a cara do nosso cozinheiro-chefe. Tive de lhe dizer que o senhor é esquisito, mas importante. — Riu-se. — Como o senhor almoçou com o nosso directorgeral, ele tomou a iniciativa de juntar ainda uma Foster Bischofsgarten Spãtlese. Quando a senhora Buchendorff me viu com a caixa de cartão, ergueu as sobrancelhas. — Empacotei a perita em segurança chinesa. Não reparou como ela é pequenina e graciosa? O chefe da delegação não deveria tê-la deixado ir comigo. Só me vinham à cabeça gracinhas tolas. Se isto se passasse há trinta anos, teria de confessar a mim mesmo que estava apaixonado. Mas o que devo achar disto, numa idade em que já não me apaixono? A senhora Buchendorff guiava um Alfa Romeo Spider, um modelo antigo sem o feio aileron traseiro. — Quer que baixe a capota? — Normalmente ando de mota em calções de banho, até de Inverno. Estava a ficar cada vez pior. Ainda por cima, agora também havia um mal-entendido,


porque ela se dispunha a fechar a capota. E só porque eu não me atrevera a dizer que não havia nada melhor para mim do que dar um passeio, numa cálida noite de Verão, com uma mulher bela ao volante de um cabriolei. — Não, deixe estar, senhora Buchendorff, eu gosto muito de andar de descapotável aberto numa noite cálida de Verão. Passámos pela nova ponte suspensa; debaixo de nós, o Reno e o cais. Olhei para cima, para o céu por entre os cabos de suspensão. Estava claro e estrelado. Ao mudarmos de direcção, à saída da ponte, e antes de mergulharmos nas ruas, por um instante Mannheim apareceu diante de nós, com as suas torres, igrejas e arranha-céus. Tivemos de parar num sinal e uma mota potente parou ao nosso lado. — Anda, vamos ainda até ao Adria — gritou a rapariga sentada no lugar de trás, mais alto do que o barulho do motor, para dentro do capacete do rapaz. No quente Verão de 1946, estive muitas vezes no Lago Bagagem, em cujo nome as pessoas de Manheim e de Ludwigshafen haviam posto a sua saudade do Sul. Nesse tempo, eu e a minha mulher ainda éramos felizes, e eu saboreava a vida em comum, a paz e os primeiros cigarros. Então hoje em dia ainda se ia até lá, agora mais depressa e mais facilmente, depois do cinema, um curto mergulho para dentro de água. Não tínhamos falado durante toda a viagem. A senhora Buchendorff conduzira depressa e concentrada. Agora, acendia um cigarro. — O Adria azul… Quando eu era pequena, dávamos às Vezes um passeio até lá com o Opel Olympia. Havia café de malte na garrafa térmica, costeletas frias, e levávamos pudim de baunilha num recipiente de vidro. O meu irmão mais velho era aquilo que se chamava um adolescente indisciplinado; Com a sua Zúndapp Avanti já trilhava os seus próprios caminhos. Nesse tempo começou a moda de ir lá de noite dar um mergulho rápido. Hoje em dia, quando penso nisso, parece-me tudo tão idílico… Mas em criança sofria sempre com aquelas excursões. Havíamos chegado diante da minha casa, mas eu ainda Queria saborear um pouco mais a nostalgia que nos invadira. — Sofria porquê? — O meu pai queria ensinar-me a nadar, mas não tinha paciência nenhuma. Meu Deus, quanta água não bebi eu, então. Agradeci-lhe ter-me levado a casa. — Foi uma bonita viagem através da noite. — Boa noite, senhor Selb.


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Que coisa terrível, esta!

O bom tempo despediu-se com um domingo radiante. No piquenique, na barragem de Feudenheim, eu e o meu amigo Eberhard comemos e bebemos de mais. Ele trouxera uma caixa de madeira com três garrafas de um Bordéus bastante razoável, e cometemos o erro de, depois disso, ainda esvaziar a Spãtlese das IQR. Na segunda-feira acordei com uma violenta dor de cabeça. Para além disso, a chuva fizera-me renascer o reumatismo nas costas e nas ancas. Talvez por essa razão eu tenha abordado o Schneider da maneira errada. Este reaparecera por si, e não por ter sido encontrado pelos serviços de segurança da fábrica. Encontrei-o no laboratório de um colega; o dele ardera no acidente. Quando entrei na sala, ele ergueu-se diante do frigorífico. Era muito alto e seco. Com um vago gesto de mão, convidou-me a sentar num dos bancos de laboratório e continuou de pé diante do frigorífico, com as costas curvadas. Tinha a face cinzenta, os dedos da mão esquerda amarelos da nicotina. A bata impecavelmente branca pretendia esconder a decadência da pessoa. Mas o homem estava acabado. Se era um jogador, então era um daqueles que perdera e deixara de ter esperança. Um jogador que preenche o totoloto à sexta-feira, mas que ao sábado já nem sequer se dá ao incómodo de saber se ganhou. — Embora saiba a razão pela qual quer falar-me, senhor Belb, infelizmente não posso ajudá-lo. — Onde estava no dia do acidente? Deve saber isso, com Certeza. E para onde foi depois? — Infelizmente não tenho estado bem de saúde, e nos últimos dias estive indisposto. O acidente no meu laboratório alegou-me muito, foram destruídos documentos importantes da minha investigação científica. — Isso não responde à minha pergunta. — O que é que pretende realmente de mim? Deixe-me em paz! Na verdade, o que é que eu pretendia dele? Imaginá-lo Como o chantagista genial era cada vez mais difícil. Acabado como estava, nem sequer conseguia imaginá-lo como instrumento de alguém do exterior. Mas já não era a primeira vez que a minha imaginação me enganava, e havia alguma Coisa que não batia certo com o Schneider, e eu não tinha assim tantas pistas. Foi azar dele e meu que ele tivesse ido parar às actas tos serviços de segurança da fábrica. E ali estavam a minha ressaca e o meu reumático e os modos amuados e lamurientos de sehneider que me enervavam. Se eu não conseguisse extorquirlhe o que queria saber, podia desistir já da minha profissão. Cobrei ânimo para um novo ataque. — Senhor Schneider, trata-se da investigação de actos de sabotagem que provocaram prejuízos na ordem dos milhões, e trata-se da prevenção de novos ataques. Na minha


investigação, tenho sempre encontrado cooperação. A sua falta de vontade de me apoiar torna-o, e estou a ser muito sincero, suspeito e alinda mais porque na sua biografia há fases de envolvimento Criminoso. — Há anos que deixei de jogar. Acendeu um cigarro. A sua mão tremia. Aspirou o fumo repetida e precipitadamente. — Mas seja: estive de cama em casa, e durante o fim-de-semana costumamos desligar o telefone. — Mas, senhor Schneider, os seguranças da fábrica foram a sua casa. Não estava ninguém. — O senhor não acredita em mim. Então não vou dizer mais nada. Já ouvira aquilo muitas vezes. Por vezes, ajudava convencer o outro de que acreditava nele, no que fosse que ele dissesse. Por vezes, conseguia tocar de uma tal maneira na profunda aflição que reside nas reacções infantis, que o outro se abria e me contava tudo. Naquele dia não estava capaz nem de uma nem de outra coisa. Não me apetecia. — Muito bem, então temos de continuar esta conversa na presença dos agentes de segurança da fábrica e dos seus superiores. Gostaria muito de o poupar a isso. Mas se não ouvir nada de si até ao fim da tarde de hoje… Aqui tem o meu cartão. Não esperei pela reacção dele e saí. Fiquei parado debaixo do alpendre, olhei a chuva e acendi um cigarro. Também choveria naquele momento nas margens do Sweet Afton? Não sabia como continuar. Depois lembrei-me de que os rapazes da segurança e da informática tinham montado a tal armadilha, e dirigi-me ao Centro de Informática para a ver. O Oelmúller não estava lá. Um dos seus colegas, que a placa com o nome identificava como sendo o senhor Tausendmilch, mostrou-me no monitor a informação disponibilizada aos utilizadores sobre a falsa base de dados. — Quer que a imprima? Não me custa nada. Peguei na folha impressa e dirigi-me ao escritório do Firner. Nem ele nem a senhora Buchendorff lá estavam. Uma secretária contou-me algo sobre cactos. Eu já tinha o suficiente por aquele dia e abandonei a fábrica. Se fosse mais novo teria ido de carro até ao Adria e afogado a minha ressaca nadando, apesar da chuva. Se tivesse simplesmente conseguido entrar no meu carro, talvez o tivesse feito apesar da minha idade. Mas ainda não conseguia guiar com o braço escavacado. O porteiro, o mesmo do dia do acidente, chamou um táxi para mim. — O senhor foi quem, sexta-feira, trouxe o filho ao Schmalz. O senhor é que é o senhor Selb? Então, tenho aqui uma coisa para si. Desapareceu, procurando alguma coisa debaixo do painel de controlo, e voltou a aparecer com um pacotinho que me deu com ar solene. — Tem um bolo aí dentro, uma surpresa para si. Foi feito pela senhora Schmalz. Mandei o táxi levar-me à piscina Herschel. Na sauna, era o dia das mulheres. Mandei-o então levar-me ao Kleinen Rosen-warten, o meu restaurante habitual, e comi saltimbocca romana. Depois fui ao cinema.


A primeira sessão de cinema da tarde tem o seu encanto, independentemente do filme que é mostrado. O público é composto por vagabundos, miúdos de treze anos e intelectuais Ilustrados. Antigamente, quando ainda os havia, eram os alunos que se deslocavam para a escola de comboio ou de auto-carro, os que iam às primeiras matinés. Os alunos precoces também iam antigamente às primeiras matinés para namoriscar. Mas a Babs, uma amiga minha que é directora de uma Escola Secundária, assegurou-me que os alunos agora namoriscam na escola e que à uma da tarde já acabaram de namoriscar. Fui parar à sala errada, das sete que havia naquele cinema, e tive de ver On Golden Pond. Gostava muito de todos os actores, mas no fim fiquei contente por já não ter mulher, nem filha, e também nenhum pequeno neto bastardo. De regresso a casa passei pelo escritório e fiquei a saber que o Schneider se enforcara. A voz da senhora Buchendorff dizia-o com a maior objectividade no gravador de chamadas e pedia que lhe telefonasse de imediato. Servi-me de uma Sambuca. — O Schneider deixou algo escrito? Sim. lemos aqui uma carta. Pensamos que o caso está encerrado. () Firncr gostaria de o ver para lhe falar sobre isso. Disse à senhora Buchendorff que iria imediatamente, e chamei um táxi. O Firner estava muito bem-disposto. — Saúdo-o, senhor Selb! Que coisa terrível, esta! Enforcou-se no laboratório, com um fio eléctrico. Foi encontrado por uma estagiária. Claro que fizemos tudo o que era possível para o reanimar. Em vão. Leia a carta de despedida, temos o nosso homem. Passou-me a fotocópia de uma folha escrita à pressa, aparentemente destinada à mulher. Minha Dorle, perdoa-me. Não penses que não me amaste o suficiente. .. sem o teu amor, tê-lo-ia feito mais cedo. Agora, já não aguento mais. Eles sabem tudo e não me deixam outro caminho. Queria fazer-te feliz e dar-te tudo… que Deus te dê uma vida mais fácil do que a destes terríveis últimos anos. Merece-lo muito. Beijo-te… até à morte, o teu Franz. — O senhor tem o seu homem? Mas isto deixa tudo em aberto. Falei hoje de manhã cedo com o Schneider. Era o jogo que o tinha preso nas suas garras e o precipitou para a morte. — O senhor é um pessimista. O Firner ria-se na minha cara às gargalhadas, com a boca escancarada. — Se o Korten achar que o caso está resolvido, claro que pode retirá-lo das minhas mãos quando quiser. Penso, porém, que estas suas conclusões são precipitadas. E também não muito seriamente pensadas. Ou já mandou cancelar a sua armadilha para localização de chamadas? O Firner não se deixou impressionar. — Pura rotina, senhor Selb, pura rotina. Claro que vamos continuar com a tentativa de localização. Mas para já, a coisa está encerrada. Temos apenas que esclarecer alguns


pormenores, sobretudo os que dizem respeito ao modo como o Schneider conseguia manipular o sistema. — Estou certo de que em breve voltará a telefonar-me. — A ver vamos, senhor Selb. — E o Firner entalou os polegares no colete do seu fato de três peças e movimentou os restantes dedos ao ritmo do Yankee Doodle. Dentro de um táxi, de regresso a casa, pensei no Schneider. Seria eu o culpado da sua morte? Ou a culpa era do Eberhard, que trouxera demasiado Bordéus, de tal maneira que hoje eu tratara o Schneider toldado pela ressaca e de um modo rude? Ou era do cozinheiro-chefe que, com a sua ForsterBischofsgarten Spãtlese, nos dera a machadada final? Ou da chuva e do reumático? Podiam percorrer-se as cadeias da culpa e da causa até ao infinito. Nos dias seguintes, o Schneider veio-me muitas vezes à memória, vestido com a sua bata branca de laboratório. Eu não tinha muito que fazer. A Goedeke queria um novo relatório mais pormenorizado sobre o seu infiel chefe de filial, e um outro cliente dirigiuse a mim por causa de uma informação que os serviços públicos lhe teriam fornecido. Na quarta-feira, o meu braço estava quase bom e pude finalmente ir buscar o meu carro ao parque de estacionamento das IQR. O cloro atacara a pintura, teria de meter aquilo na conta. O porteiro cumprimentou-me e perguntou-me se eu tinha gostado do bolo. Eu tinhao esquecido na segunda-feira dentro do táxi.


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Pensando nas corujinhas

Expus o problema das cadeias da culpa e da causa aos meus amigos durante o jogo de Doppelkopf. Umas poucas de vezes por ano, encontrávamo-nos às quartas-feiras nos Badischen Weinstuben para jogar. Eberhard, o campeão de xadrez, Willy, o ornitólogo e emérito da Universidade de Heidelberg, Philipp, o cirurgião dos Hospitais Civis, e eu. O Philipp é, com cinquenta e sete anos, o nosso benjamim, o Eberhard, com setenta e dois, o nosso Nestor. O Willy é seis meses mais novo do que eu. Nunca avançamos muito nos jogos de Doppelkopf, gostamos demasiado de falar. Eu contei-lhes os antecedentes do Schneider, falei-lhes do seu vício do jogo e do facto de eu ter suspeitado dele, embora sem muita convicção, mas o suficiente para o ter tratado com dureza. — Duas horas mais tarde, o homem enforca-se, penso que não por causa da minha suspeita, mas porque previu a revelação do seu intacto vício do jogo. Serei eu o culpado da sua morte? — Tu é que és o jurista — disse o Philipp. — Vocês não têm nenhum critério para coisas assim? — Juridicamente, não sou culpado. Mas a mim interessa-me o problema humano. Os três olhavam uns para os outros sem saberem o que Dizer. O Eberhard reflectia. — Nesse caso, eu deixo de poder ganhar ao xadrez, porque o meu adversário poderia ser tão sensível e dar uma tal importância à derrota, que se suicidasse, se perdesse. — Bem, se souberes que a derrota é a gota que irá fazer transbordar o seu copo de depressão, nesse caso, evita-o e procura um outro adversário. O Eberhard não ficou satisfeito com esta resposta do Philipp. — O que devo então fazer num torneio, onde não posso escolher os meus adversários? — Bem, pensando nas corujinhas… — continuou o Willy — Cada vez percebo melhor por que gosto tanto das corujas. Apanham os seus ratos e pardais, dão de comer aos filhos, vivem nos seus buracos em árvores e na terra, não precisam de nenhuma sociedade nem de nenhum Estado, são corajosas e elegantes, fiéis às suas famílias, têm uma profunda sabedoría no olhar, e ainda nunca lhes ouvi nenhuma conversa chorosa sobre culpa e penitência. E, a propósito, se o que lhes interessa não é o ponto de vista jurídico, mas sim o humano todas as pessoas são culpadas de tudo. — Espera até vires parar à mercê do meu bisturi. Sem escapar a mão porque a enfermeira está a fazer-me olhinhos, todos os que aqui estão devem ser culpados disso? O Philipp fez um gesto muito largo com a mão. O empregado interpretou-o como sendo o pedido de uma nova rodada. Trouxe uma Pils, um laufener gutedel, um vulkanfelsel


irlandês, um grogue de rum para o constipado Willy. — Bem, de qualquer maneira terás de te haver com todos se esquartejares o Willy. Brindei ao Willy. Ele não pôde retribuir a saúde, o seu grogue ainda estava demasiado quente. — Não tenham medo que eu não sou parvo. Se fizesse alguma coisa ao Willy, nunca mais poderíamos jogar Doppelkopf. — Exactamente, vamos então jogar uma nova mão — disse o Eberhard. Mas ainda antes que se anunciassem os casamentos e os porquinhos, ele dobrou pensativamente a sua folha e pousou as cartas na mesa. — Agora a sério, eu, como sou o mais velho, posso falar disso primeiro. O que vai ser de nós, quando um de nós… bem quando…. vocês sabem. — Quando já só restarmos três? — O Philipp sorriu. — Então jogaremos Seat. — Não conhecem nenhum quarto homem, alguém novo, que pudesse já ser o quinto? — Era bom que fosse um padre, na nossa idade… — Não temos sempre de jogar, de qualquer modo nós acabamos por não o fazer. Poderíamos simplesmente ir comer alguma coisa ou fazer algo com mulheres. Eu tragovos uma enfermeira para cada um, se quiserem. — Mulheres — disse o Eberhard com desprezo, e tornou a desdobrar a sua folha. — Mas essa de comermos é uma ideia. O Willy pediu a ementa. Todos encomendámos. A comida estava boa, e esquecemo-nos da culpa e da morte. No caminho de regresso a casa, notei que ganhara um maior distanciamento em relação ao suicídio do Schneider. Apenas estava curioso por saber quando é que o Firner tornaria a dar notícias.


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O senhor está interessado nos pormenores ?

Não é muito frequente ficar em casa durante a manhã. Não apenas porque viajo muito, mas porque não consigo evitar ir até ao escritório, mesmo quando não tenho lá nada que fazer. Isso é uma relíquia que ficou do meu tempo como procurador do Ministério Público. Talvez também venha do facto de, em criança, nunca ter visto o meu pai ficar uma única vez em casa num dia útil, e nesse tempo a semana de trabalho ainda era de seis dias. Na quinta-feira não me mantive fiel aos meus princípios. No dia anterior, o meu vídeo voltara da reparação. Tinha umas cassetes emprestadas. Embora já há muito tempo não façam, nem passem, filmes de cowboys, mantive-me fiel a eles. Eram dez horas. Eu metera a cassete do Heaven’s Gate, um filme que eu falhara no cinema e que nunca mais iria voltar a passar e vi os finalistas de Harvard, de fraque, a disputarem a corrida da festa de finalistas. Kris Kristofferson estava bem colocado na corrida. Nesse momento tocou o telefone. Ainda bem que o apanho, senhor Selb. Pensava que, com este tempo, eu estaria no Adria azul, senhora Buchendorff? Lá fora chovia a cântaros. — Sempre o velho charmeur. Vou passá-lo ao senhor Firner. — Saúdo-o, senhor Selb. Já pensávamos que o caso estaria resolvido, mas agora o senhor Oelmúller disse-me que voltaram a entrar no sistema. Agradecer-lhe-ia se pudesse vir cá, de preferência ainda hoje. Tem muito que fazer? Combinámos encontrar-nos às dezasseis horas. O Heaven’s Gale demorava quase quatro horas, e não devemos vender a pele barata de mais. No caminho para a fábrica, interroguei-me por que razão o Rris Kristofferson chorara no fim. Porque as primeiras feridas nunca cicatrizam? Ou porque cicatrizam e um dia se transformam apenas em pálidas recordações? O porteiro da entrada principal cumprimentou-me de mão na pala, como se eu fosse um velho conhecido. O Oelmúller manteve-se distante. O Thomas, participativo. — Falei-lhe da armadilha que planeámos e preparámos — disse o Thomas. — E hoje morderam o isco… — Mas o rato agarrou no engodo e fugiu com ele? — Bem pode dizê-lo — disse o Oelmúller amargamente. — O que aconteceu foi exactamente o seguinte: ontem de manhã cedo, o nosso computador central informou-nos de que o utilizador número 23045 ZBH entrara na base de dados-isco através do terminal PKR 137. O utilizador, o senhor Knobloch, trabalha na Contabilidade Central. Porém, no momento da entrada na base de dados, estava numa reunião com três senhores das Finanças. E o referido terminal situa-se do outro lado da fábrica, na estação de tratamento


de águas, e ontem de manhã esteve off-line para um dos nossos técnicos lhe fazer a manutenção. — O que o senhor Oelmúller quer dizer é que o aparelho não esteve ligado durante a manutenção — esclareceu logo o Thomas. — Isso quer então dizer que, atrás do Knobloch e do seu número, se esconde um outro utilizador, e atrás do falso número do terminal, um outro terminal. Não contaram com a possibilidade de o criminoso se disfarçar? O Oelmúller respondeu prontamente à minha pergunta. — Claro, senhor Selb. Eu pensei em tudo no fim-de-semana passado, em como, apesar disso, poderíamos apanhar o criminoso. O senhor está interessado nos pormenores? — Tente. Se for demasiado complicado, eu digo. — Muito bem, vou esforçar-me por ser compreensível. Nós providenciámos para que o sistema transmitisse uma determinada indicação de controlo aos terminais que estivessem a funcionar, para meterem um pequeno interruptor na sua memória de trabalho. O utilizador não consegue detectar isso. Essa indicação de controlo seria enviada para aqueles terminais no momento em que houvesse uma solicitação de entrada na base de dados-isco. Com isso, a nossa intenção era a de que todos os terminais que comunicassem nesse momento com o sistema fossem mais tarde identificáveis pela posição do interruptor, e isso independentemente do número do terminal atrás do qual o criminoso se disfarçasse. — Posso imaginar isso como a possibilidade de identificar um carro roubado, não pela placa de matrícula falsa, mas pelo número do motor? — Sim, mais ou menos. O Oelmúller assentiu animadamente com a cabeça. — E então como é que explica que, apesar de tudo isso, o outro não tenha ficado preso na armadilha? O Thomas respondeu. — Neste momento, não temos qualquer explicação. Se está agora a pensar num ataque vindo do exterior, este continua a ser de excluir. Ainda temos o sistema de detecção a partir dos correios, e este não deu qualquer sinal. Não havia explicação. E isto da parte dos especialistas. Incomodava-me a minha dependência dos seus conhecimentos na matéria. É verdade que eu conseguia perceber aquilo que o Olmúller me explicara. Mas não podia verificar as suas Premissas. Talvez os dois não fossem especialmente inteligentes, talvez não fosse assim um problema tão grande iludir a Armadilha. Mas o que devia eu fazer? Iniciar-me nos computadores? Seguir as outras pistas? Que outras pistas é que havia? estava perplexo. — Isto tudo é muito desagradável para o senhor Oelmúller e para mim — disse o Thomas. — Tínhamos a certeza de apanhar o criminoso na armadilha e, estupidamente, também o dissemos. O tempo urge, e, contudo, a única possibilidade que vejo é, através de


um trabalho minucioso, voltar a verificar todas as nossas premissas e conclusões. Talvez também devêssemos falar com o criador do sistema, não é verdade, senhor Oelmúller? Pode dizer-nos, senhor Selb, como tenciona proceder? — Tenho de voltar a passar tudo em revista. — Ficar-lhe-ia agradecido se nos mantivéssemos em contacto. Voltamos a reunir-nos na segunda-feira de manhã? Quando já estávamos de pé e nos despedíamos, recordei-me novamente do acidente. — Qual foi o resultado da sua investigação acerca da origem da explosão? E o alarme do smog, teve razão de ser? — O Centro Regional de Informática teve razão em accionar o alarme do smog. Quanto à origem da explosão, já estamos adiantados a ponto de lhe poder dizer que não tem nada a ver com o nosso sistema informático. Escusado será dizer-lhe como fiquei aliviado. Um ventilador partido… e isso é da responsabilidade do pessoal da manutenção.


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Tão longe daqui

Consigo reflectir muito bem ouvindo boa música. Eu tinha acabado de ligar a aparelhagem, mas ainda não pusera a tocar o Cravo bem Temperado porque primeiro fora buscar uma cerveja à cozinha. Quando voltei, a minha vizinha do andar de baixo aumentara o volume de som do rádio e fazia-me ouvir a sua mais recente cantora preferida. We’re living in a material wvorld and I ma material girl… Bati em vão com os pés no chão. Então, despi o roupão e enfiei o casaco e os sapatos, desci um lanço de escadas e toquei à campainha. Queria perguntar à material girl se no seu materiall world não havia lugar para o respeito. Ninguém abriu a porta às minhas campainhadas, e do apartamento não ressoava nenhuma música. Pelos vistos não estava ninguém em casa. Os outros vizinhos estavam de férias, e por cima da minha casa fica apenas a arrecadação. Então apercebi-me de que a música vinha das minhas próprias colunas. A minha aparelhagem não tem rádio. Mexi no amplificador mas não consegui parar a música. Pus o disco. Bach conseguia, nos forti, sobrepor-se sem esforço ao outro CRIMINOSO canal, mas nos piani tinha de ser partilhado com o locutor da Rádio do Sudoeste. Algo parecia estar estragado na minha aparelhagem. Talvez tivesse sido por falta de boa música que não me vieram nenhumas ideias à cabeça durante aquela noite. Imaginei um cenário em que o Oelmúller era o criminoso. Batia tudo certo, com excepção da psicologia. Ele não era de certeza um brincalhão, nem um jogador — poderia ser ele o chantagista? Depois de tudo o que eu havia ocasionalmente aprendido sobre criminalidade informática, aquela pessoa teria usado o computador de maneira diferente para atingir os seus fins criminosos. Utilizaria o sistema, mas não o ridicularizaria. Na manhã seguinte, antes do pequeno-almoço, procurei uma loja de electrodomésticos. Experimentara novamente a minha aparelhagem e a interferência havia cessado. Isso ainda me irritou mais. É-me muito difícil suportar que as infra-estruturas se revelem imprevisíveis. O carro pode ainda andar e a máquina de lavar roupa lavar, mas se a mais insignificante das luzinhas não funcionar com rigor prussiano, não fico sossegado. Fui parar às mãos de um jovem competente. Este teve compaixão da minha ignorância técnica — na sua condescendência amável, quase me chamara “avô”. Claro que eu sei, naturalmente, que as ondas de rádio não são apenas atraídas pelo rádio, mas que estão sempre presentes. O rádio meramente as torna audíveis, e o jovem explicou-me que, tanto no receptor como no amplificador, estão presentes quase os mesmos circuitos responsáveis por isso e que, em determinadas condições atmosféricas, o amplificador funciona como receptor. Não havia nada a fazer, apenas conformarmo-nos com isso. Comprei o jornal no caminho da Rua Seckenheim para o meu café, nas arcadas da torre do reservatório de água. Na banca de jornais onde costumo ir, o Rhein-Neckar-Zeitung está sempre ao lado do meu Súddeutsche Zeitung, e por alguma razão isso fez com que a


abreviatura RNZ se fixasse na minha cabeça. Sentado no Café Gmeiner, diante do meu café e enquanto esperava pelos ovos estrelados com toucinho, tive a sensação que costumo ter quando quero dizer uma coisa a alguém mas não me lembro o quê. Teria alguma coisa a ver com o CRI? Lembrei-me de que não havia lido a entrevista do Tietzke ao Firner. Mas não era disso que eu estava à procura. Ontem não tinha havido alguém que me falara do CRI? Não, o Oelmúller havia dito que o CRI não se tinha enganado no alarme do smog. Aparentemente, esse era o organismo responsável pelo alarme do smog e pelo registo dos dados das emissões de poluentes. Mas ainda havia ali qualquer coisa que estava a escapar-me. Tinha a ver com o amplificador que funcionava como receptor. Quando os ovos com toucinho chegaram, pedi mais um café. A empregada só o trouxe quando o pedi pela terceira vez. — Lamento muito, senhor Selb, hoje estou tão longe daqui… Ontem fiquei a tomar conta do menino da minha filha, porque os dois tinham bilhetes para um concerto e chegaram tarde a casa. O Crepúsculo dos Deuses, de Wagner, demora tanto tempo… Tão longe daqui… Claro, era isso, a longa ligação até ao CRI. O Herzog falara-me do modelo de registo directo dos dados das emissões de poluentes. Os mesmo dados das emissões são também recolhidos no sistema IQR, havia dito o Oel-mulher. E o Ostenteich falara da ligação on-line das IQR ao sistema de controlo estatal. Por isso, de alguma maneira, o centro de informática das IQR tinha de estar ligado ao CRI. Seria possível, através dessa ligação, entrar no sistema IGE a partir do CRI? E seria de acreditar que as pessoas das IQR se tivessem simplesmente esquecido disso? Recuei no tempo e lembreime perfeitamente de que se havia falado dos terminais em funcionamento e das ligações telefónicas para estes quando considerámos as possíveis portas de entrada no Sistema. Nunca se mencionara uma ligação, da maneira como eu a estava a imaginar neste momento, entre o CRI e as IQR. Não era nem uma ligação telefónica, nem uma ligação a um Terminal. Era diferente desta última porque através dela não se comunicava activamente. Antes pelo contrário: havia um fluxo de dados silencioso que fluía dos odiados sensores para umas quaisquer folhas contínuas de registo. Dados que não interessavam a ninguém da fábrica e que podiam ficar esquecidos, excepto nos casos em que havia um alarme ou um acidente. Compreendi por que razão a confusão musical na minha aparelhagem me preocupara durante tanto tempo: a perturbação vinha do interior. Remexi os ovos com toucinho e as muitas perguntas que me passavam pela cabeça. Precisava, sobretudo, de informações adicionais. Agora não me apetecia falar nem com o Thomas, nem com o Ostenteich, nem com o Oelmúller. Se eles se haviam esquecido da ligação entre as IQR e o CRI, esse facto iria preocupá-los mais do que a ligação em si. Tinha de ir até ao CRI e encontrar lá alguém que soubesse explicar-me as ligações do sistema. Da cabina de telefone ao lado da casa de banho, telefonei ao Tietzke. O CRI é o Centro Regional de Informática, em Heidelberg. — De certa maneira, é até supra-regional — disse o Tietzke —, porque BadenWúrtenberg e Renânia-Palatinado também dependem dele. O que tenciona fazer lá, senhor


Selb? — Não consegue deixar-se disso, senhor Tietzke? — repliquei, e prometi que lhe dava os direitos das minhas memórias.


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Bam bam, ba bam bam

Fui de carro até Heidelberg, Consegui encontrar um lugar para estacionar diante da Faculdade de Direito. Fui a pé o curto bocado até à Praça Ebert, antigamente chamada Praça Wrede, e deparei com o Centro Regional de Informática no velho edifício com as duas colunas na entrada, onde outrora funcionara a sede do Deutsche Bank. No antigo átrio dos guichés sentava-se agora o porteiro. — Sou Selk, da editora Springer— apresentei-me. — Gostaria de falar com um dos senhores do Controlo das Emissões de Poluentes, a editora já telefonou a avisar. Ele agarrou no telefone. — Senhor Mischkey, está aqui um senhor da editora Springer que quer falar consigo e diz que tem uma entrevista marcada. Devo mandá-lo subir? Eu meti-me. — Posso falar pessoalmente com o senhor Mischkey? E como o porteiro estava sentado a uma mesa que não tinha nenhuma protecção de vidro, e porque eu já agarrara o auscultador, o porteiro passou-mo, perplexo. — Bom dia, senhor Mischkey, fala o Selk, da editora Springer, a do cavalinho, a técnica, o senhor conhece. Queremos incluir no nosso Informatik-spektrum uma notícia sobre o actual modelo de registo directo de dados de emissões poluentes e, depois de ter falado com a gente da indústria, gostaria agora de saber mais sobre o outro lado. Pode receber-me? Ele não dispunha de muito tempo, mas mandou-me subir. A sua sala era no segundo andar, a porta estava aberta e dava-se logo com o sítio. O Mischkey estava sentado diante do terminal, de costas para a porta, e digitava com dois dedos, concentrado e a grande velocidade. Gritou por cima do ombro: — Entre, entre, estou quase a acabar. Olhei em redor. A mesa e as cadeiras estavam cobertas de folhas de computador acabadas de imprimir e de revistas, desde a Computer Magazin até à edição americana da Penthouse. Na parede estava um quadro, onde se via um “Happy Birthday, Peter” mal apagado, escrito a giz. Ao lado, um Einstein deitava-me a língua de fora; na outra parede estavam pendurados cartazes de filmes e uma fotografia de uma cena que não consegui situar em nenhum. Aproximei-me para poder ver melhor. — A Madonna — disse ele, sem levantar os olhos. — A Madonna? Nesse momento olhou para cima. Um rosto característico, ossudo, com profundas rugas na testa, um bigode fino, um queixo voluntarioso e, por sobre tudo isto, uma trunfa revolta, basta e já grisalha. Os seus olhos brilharam de satisfação através de uns óculos de


uma fealdade estudada. Estariam aqueles óculos, do tipo que os médicos da Segurança Social usavam no início dos anos cinquenta, outra vez na moda? Vestia jeans e um pulôver azul-escuro, sem camisa. — Quer ver a base de dados de filmes que eu fiz? — Chamou-me com um gesto de mão, digitou uns comandos e o monitor do computador encheu-se num ápice. — Sabe como é, quando tentamos lembrar-nos de uma melodia mas não conseguimos? Um problema de todo o fã de rock e maluco por filmes? Resolvi isso com a minha base de dados. Gostaria de ouvir a melodia do seu filme preferido? — Barry Lyndon — disse eu, e, num abrir e fechar de olhos soou pipilante, mas reconhecível, o começo da Sarabanda de Hãndel, bam bam, ba bam bam. — Issoé fantástico — disse eu. — O que o traz até nós, senhor Selk? Como vê, de momento estou muito ocupado e não tenho muito tempo. Trata-se dos dados de emissão de poluentes? — Exactamente, trata-se disso, mais precisamente de uma notícia acerca de si no nosso Informatikspektrum. Um colega entrou na sala. — Estás novamente a brincar com as tuas bases de dados? Se o tratamento de dados para as igrejas ficar pendurado em mim… Tenho de te dizer que acho isto completamente indecente! — Permite que lhe apresente o meu colega Gremlich? Ele chama-se mesmo assim, mas com “e”s. Jõrg, este é o senhor Selk, do Informatikspektrum. Quer escrever um artigo sobre o clima empresarial no CRI. Continua, estás a ser mesmo tu. — Ora, Peter, realmente… Gremlich encheu as bochechas de ar. Os dois aparentavam trinta e poucos anos, mas um parecia um rapaz de vinte e cinco bem amadurecido e o outro um cinquentão mal envelhecido. A choraminguice de Gremlich ainda era mais reforçada pelo fato tipo safari e pelo cabelo comprido e ralo. Senti-me feliz por ter o hábito de manter o meu cabelo, que já perdeu volume, sempre curto. Uma vez mais, voltei a perguntar-me se, na minha idade, o estado do meu cabelo ainda iria modificar-se ou se a sua queda já terminara, tal como, no caso da mulher, a possibilidade de ter filhos depois da menopausa. — A propósito, já poderias ter acedido ao relatório a partir do teu terminal há muito tempo. Estou neste momento a fazer o tratamento da estatística do trânsito. Tem de ficar pronta ainda hoje. Pois é, senhor Selk, e por essa razão nós os dois estamos mal. Ou convida-me para almoçar? No McDonald? Combinámos ao meio-dia e meia. Andei a passear pela rua principal, um testemunho impressionante da ânsia de destruição da política municipal dos anos setenta. Não chovia naquele momento. Mas o tempo ainda não conseguira decidir o que iria oferecer-nos no fim-de-semana. Decidi que perguntaria ao Mischkey pelo gráfico meteorológico. No Centro Comercial Darmstàdter Hof encontrei uma loja de discos. Por vezes faço uma amostragem do espírito da época e compro o disco mais representativo ou o livro mais representativo, vou ver Rambo II ou


assisto a um debate eleitoral entre o Kohl, o Rau, o Strauss e a Bangemann. Naquele momento, a Madonna estava em promoção. A rapariga da caixa olhou-me e perguntou se queria que embrulhasse o disco para oferta. — Não. Pareço-lhe assim tão velho? Saí do Darmstàdter Hof, vi diante de mim a Praça Bismarck. Teria gostado de visitar o velho senhor no seu pedestal. Mas o trânsito não me deixou. Na tabacaria da esquina comprei um maço de Sweet Aflon, e então, já eram horas.


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Como uma corrida ao armamento

Era hora de ponta no McDonald’s. O Mischkey avançava com perícia e abria-me caminho. A conselho dele, pedi, para a pouca fome, um Físhmac com maionese, um pacote pequeno de batatas fritas com ketchup e um café. O Mischkey, alto e magro, pediu um quarterpoiínd com queijo, um pacote grande de batatas fritas, três embalagens de ketchup, e ainda um hambúrguer pequeno “para a pouca fome, depois” e uma apple pie, acompanhados por dois batidos e um café Paguei cerca de 25 marcos pelo tabuleiro cheio. — Não é caro, pois não? Por um almoço para dois. Obrigado pelo convite. A princípio, não encontrámos dois lugares livres numa mesa. Quis puxar uma cadeira para junto de um espaço livre, mas estava aparafusada ao chão. Fiquei perplexo; nunca fora confrontado com o crime de roubo de cadeiras de restauramte, nem como procurador do Ministério Público, nem como detective privado. Finalmente instalámo-nos numa mesa com dois estudantes de liceu que olhavam de soslaio, com inveja, a refeição do Mischkey. — Senhor Mischkey, depois do recenseamento populacional, a recolha directa de dados levou-nos à primeira grande controvérsia jurídica em relação à informática, que também se tornou no primeiro caso que foi levado ao Tribunal Constitucional. O Informatikspektrum quer que eu faça um artigo jurídico, e o jornalismo jurídico é a minha especialidade. Mas sinto que preciso de perceber mais da parte técnica, e por isso agradecer-lhe-ia muito se pudesse prestar-me alguns esclarecimentos. — Mm… Ele mastigava, satisfeito, o seu quarterpound. — Pode falar-me dos dados que recolhe e da sua relação com as firmas industriais em relação às quais fiscaliza as emissões de poluentes? O Mischkey engoliu o que tinha na boca. — Em relação a isso, posso dizer-lhe muita coisa, desde falar sobre a tecnologia da transmissão de bits, bytes e bauds, do hardware, do software, etc, etc, etc. Concretamente, o que quer saber? — Talvez eu, como jurista, não consiga colocar as perguntas com a necessária precisão. Gostaria de saber, por exemplo, como é que se acciona um alarme de smog. O Mischkey desembrulhava nesse momento o hambúrguer “para a pouca fome”, que besuntou generosamente com ketchup. — No fundo, isso é muito simples. Há sensores nos locais por onde saem os elementos poluentes relevantes, e esses sensores informam-nos por intermédio de ligações fixas, vinte e quatro horas por dia, da produção desses elementos. Nós registamos os valores e, ao mesmo tempo, eles são introduzidos no nosso gráfico meteorológico. O gráfico é o


resultado dos dados que recebemos dos Serviços de Meteorologia de todo o país. Quando os valores são demasiado elevados, ou quando o estado do tempo não permite que os produtos se dissipem, há aqui, no CRI, um toque de alarme, e a engrenagem do alarme de smog é accionada; na semana passada funcionou extraordinariamente bem. — Disseram-me que as fábricas recebem os mesmos valores da emissão de poluentes que os senhores. Como é que isso funciona tecnicamente? Eles também estão ligados aos sensores, como duas lâmpadas ligadas a uma ficha dupla? O Mischkey riu-se. — Poder-se-ia dizer isso. Tecnicamente, é um pouco diferente. Como nas fábricas não existe apenas um, mas muitos sensores, é na própria fábrica que se concentram as ligações. Desse local de concentração, pode chamar-lhe depósito central, os valores sãonos enviados através de uma ligação fixa e permanente. E cada fábrica vai buscar os valores a esse depósito central, da mesma maneira que nós. — E esse lugar é seguro? Pensando que a indústria talvez tenha interesse em falsificar os valores. Isto despertou a atenção do Mischkey, que pousou a apple pie sem lhe dar nenhuma dentada. — Para quem não é técnico, o senhor coloca umas perguntas muito pertinentes. Também gostaria de dizer algo a esse respeito. Mas penso que, depois desta apple pie — olhou com ternura para o doentio pastel que espalhava um sintético odor a canela —, não devemos continuar aqui, vamos antes acabar o almoço no café da Rua Akademie. Agarrei num cigarro e não consegui encontrar o meu isqueiro. O Mischkey, que não era fumador, também não podia ajudar-me. Fomos para o café por dentro do Centro Comercial Horten. O Mischkey comprou a última Penthouse. Por momentos perdemo-nos de vista na confusão, mas tornámos a encontrar-nos à saída. No café, o Mischkey pediu uma torta de cerejas à moda da Floresta Negra, um bolo de frutas e um palmier para. acompanharem a caneca de café. Com natas. Pelos vistos, não absorvia tudo o que comia. Os magros que conseguem atafulhar-se com tantas camadas de comida fazem-me inveja. — Então, e que tal, agora, uma resposta pertinente à minha pertinente pergunta? — retomei o fio da conversa. — Teoricamente, existem dois flancos a descoberto. Por um lado, pode mexer-se nos sensores, mas eles estão tão bem selados por isso não passaria despercebido. O outro ponto fraco é o depósito central e a ligação à fábrica. Os políticos deixaram-se convencer e assumiram um compromisso que eu acho que é de muito pouca confiança. Porque, na realidade, nunca se pode excluir que a partir dessa ligação não haja falsificação dos valores ou, pior ainda, que se manipule a própria estrutura do programa do sistema de alarme do smog. Claro que nós implementámos várias medidas de segurança que estamos sempre a aperfeiçoar, mas o senhor pode comparar isto com uma corrida ao armamento. Cada sistema defensivo pode ser ultrapassado por um novo sistema ofensivo e vice-versa. Uma espiral infinita, e infinitamente cara.


Eu tinha o cigarro na boca e procurava o meu isqueiro em todos os bolsos. Claro que novamente sem sucesso. Então o Mischkey tirou do bolso direito do seu fino casaco de napa dois isqueiros não-recarregáveis, fechados num invólucro de cartão e plástico, um cor-de-rosa e outro preto. O Mischkey rasgou a embalagem. — Pode ser o cor-de-rosa, senhor Selk? Uma atenção da casa Horten. Piscou-me o olho, empurrou o cor-de-rosa pela mesa fora e deu-me lume com o preto. “Antigo procurador do Ministério Público recepta isqueiros.” Vi esta parangona diante dos meus olhos e brinquei um pouco com o isqueiro antes de o guardar e de lhe agradecer. — E em sentido inverso, como é que é? Pode entrar-se nos computadores da fábrica a partir do CRI? — Se a ligação à fábrica conduzir ao computador e o depósito de concentração de dados não estiver isolado dele, então.. . Mas agora o senhor já consegue responder a isso, depois de tudo o que eu lhe disse. — Nesse caso, as duas entidades estão face a face como as duas superpotências, com armas ofensivas e defensivas. O Mischkey deu uns pequenos puxões ao lóbulo da orelha. — Tenha cuidado com as suas comparações, senhor Selk. Os americanos, nessa sua imagem, só poderão ser a indústria capitalista. Restar-nos-á, aos do Estado, o papel dos russos. Como funcionário público — ergueu-se, pôs os ombros para trás e fez uma cara de quem é um digno representante do Estado —, tenho de rejeitar com toda a acrimónia essa suposição impertinente. Riu-se, deixou-se cair na cadeira e comeu o palmier. — Mais uma coisa — disse ele. — Por vezes divirto-me com o pensamento de que a indústria, que conquistou esse compromisso tão pernicioso para nós, se autopuniu por isso, de uma certa maneira, quando agora, naturalmente, um outro concorrente qualquer tem a possibilidade de manipular o sistema através da nossa rede. Não é engraçado pensar no CRI como uma placa giratória da espionagem industrial? Fez a garfada de bolo girar no prato. Quando parou, os dentes apontavam para mim. Reprimi um suspiro. O divertido “jogo de faz-de-conta” do Mischkey fizera aumentar de forma explosiva o círculo dos suspeitos. — Uma variante interessante. Senhor Mischkey, ajudou-me muito. Se me lembrar de mais alguma coisa, posso telefonar-lhe? Aqui tem o meu cartão. Pesquei da minha carteira o cartão de visita com a minha morada e o número de telefone de casa, onde estou identificado como jornalista jree lancer, Gerhard Selk. Fizemos juntos o caminho até à Praça Ebert. — O que é que diz o seu gráfico meteorológico sobre o próximo fim-de-semana? — Vai estar bom tempo, não haverá smognem sequer chuva. Parece um fim-de-semana digno de ser passado numa piscina.


Despedimo-nos. Fui de carro pelo Rõmerkreisel até à Rua Bergheimer, para meter gasolina. Não consegui ouvir a gasolina a correr pela mangueira sem pensar nas ligações entre as IQR e o CRI e ainda sabe-se lá quantas mais empresas. Se o meu caso fosse de espionagem industrial, pensei eu na auto-estrada, ainda faltava mais alguma coisa. Os acontecimentos no sistema IQR de que me lembrava não se ajustavam a um caso de espionagem industrial. A não ser que… E se o espião quisesse baralhar as pistas? Mas não teria apenas razão para isso quando temesse terem-lhe encontrado o rasto? E por que teria ele de temer isso? Talvez um dos primeiros acidentes o tivesse exposto? Tinha de voltar a passar os olhos pelos relatórios. E tinha de telefonar ao Firner e pedir-lhe uma lista das fábricas ligadas ao sistema de alarme de smog. Cheguei a Mannheim. Eram três horas da tarde, as persianas da Seguradora de Mannheim já estavam na posição de “fim do dia de trabalho”. Apenas as janelas que tinham durante a noite o M iluminado ainda estavam a trabalhar. M de Mischkey, pensei. O homem agradava-me. Também me agradava como suspeito. Ali estava o jogador, o excêntrico e o brincalhão que eu procurava desde o começo. Possuía a imaginação necessária, a competência necessária e estava no lugar certo. Mas isto não era mais do que um palpite. E se fosse pedir-lhe contas baseado apenas nisto, ele mandar-me-ia passear com toda a razão. Segui-lo-ia durante o fim-de-semana. Ainda não tinha mais do que um pressentimento de que ele era a pessoa, e não via saída senão seguir-lhe o rastro. Talvez fizesse qualquer coisa que me desse uma ideia nova. Se fosse Inverno, ter-me-ia abastecido de livros sobre criminalidade informática, na livraria, para ler durante o fim-desemana. Seguir alguém durante o Inverno é um trabalho frio e duro. Mas durante o Verão faz-se, e o Mischkey queria ir à piscina.


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Tenha vergonha!

Que o Mischkey vivia actualmente em Heidelberg, no nº 9 do Burgweg, que guiava um Citroen DS cabriolei com a matrícula HD-CZ 985, que era solteiro e que não tinha filhos, que ganhava como técnico superior de segunda classe cerca de 55 000 marcos e que contraíra no Bank fúr Gemeinwirtschaft um empréstimo pessoal no valor de 30 000 marcos que pagava regularmente, disse-mo ainda na sexta-feira o meu colega Hemmelskopf do Serviço de Informação do Crédito. No sábado, eu estava no Burgweg às sete da manhã. O Burgweg é um pequeno troço de estrada fechado ao trânsito e, na sua parte superior, torna-se num caminho pedonal que conduz ao castelo. Os habitantes das cerca de cinco casas da parte inferior podem estacionar ali os seus carros e têm a chave da barreira que separa o Burgweg do Unteren Faulen Pelz. Fiquei contente por ver o carro do Mischkey ali estacionado. Era uma beleza, verde-garrafa com cromados fascinantes e capota de cor creme. Tinha sido, então, para ali que fluíra o empréstimo pessoal. Estacionei o meu carro na curva fechada da Rua Neue SchloB, de onde parte, para baixo para o Burgweg, uma escadaria íngreme e direita. O carro do Mischkey tinha o focinho voltado para a subida; quando partisse, eu teria tempo suficiente para chegar ao mesmo tempo que ele ao Unteren Faulen Pelz. Pus-me de tal maneira que conseguia ver a entrada sem ser visto da casa. Às oito e meia abriu-se, à altura dos meus olhos, uma janela na casa que eu pensara ser a do vizinho do lado, e o Mischkey espreguiçou-se, nu, no ar já morno da manhã. Consegui esconder-me no último momento atrás de um cilindro publicitário. Espreitei cautelosamente, ele bocejou, fez umas flexões, e não me viu. Saiu de casa às nove horas, foi ao mercado diante da Igreja do Espírito Santo, comeu lá dois pãezinhos com salmão, bebeu um café na drogaria da Travessa Ketten, fez olhinhos à beldade exótica atrás do balcão, telefonou, leu o Frankfurter Rundschau, jogou xadrez contra-relógio, fez mais algumas compras, foi a casa para as deixar e voltou a sair com um grande saco, e entrou no carro. Agora, ia para a piscina. Vestia um colete com a inscrição Greatful Dead, calças de ganga com rasgões, sandálias à Jesus Cristo, e tinha umas pernas fininhas e pálidas. O Mischkey teve de dar a volta ao carro, mas a barreira de baixo estava aberta, e por isso tive de me esforçar para conseguir colocar a tempo o Kadett atrás dele, com um carro de permeio. Conseguia ouvir a música do seu rádio com o volume no máximo. He’s a pretender, cantava a Madonna. Ele entrou na auto-estrada para Mannheim. Passou a oitenta pelo pavilhão ADAC e pelo Tribunal Administrativo, e ao longo da parte de cima do Parque Luisen. Subitamente, travou a fundo e virou para a esquerda. Quando o trânsito em sentido contrário também me permitiu virar, já não via o seu carro. Continuei a andar lentamente e procurei o cabriolei verde. Na esquina da Rua Rathenau ouvi música alta, que cessou repentinamente. Continuei devagar. O Mischkey saiu do carro e entrou na casa da esquina.


Não sei o que me veio primeiro à cabeça ou o que me chamou primeiro a atenção, se o endereço ou se o carro da senhora Buchendorff que brilhava, prateado, diante da Igreja de Cristo. Baixei o vidro direito e inclinei-me para fora, para lançar um olhar à casa. Olhei através de um gradeamento de ferro forjado e de um jardim inglês para a varanda no primeiro andar. A senhora Buchendorff e o Mischkey beijavam-se. Que logo estes dois tivessem um romance! Convinha-me, e não me convinha de todo. Seguir alguém que nos conhece já é suficientemente maçador, mas se formos descobertos podemos inventar um encontro casual e desse modo safar-nos sofrivelmente. Isso, claro, também funciona com duas pessoas, mas não neste caso. A senhora Buchendorff apresentar-me-ia como O detective privado Selb, ou o Mischkey como o jornalista free lancer Selk? Se fossem para a piscina, eu teria de ficar lá fora. Que pena, eu alegrara-me com isso e trouxera de propósito as minhas bermudas. Eles beijavam-se efusivamente. Haveria mais alguma coisa que não me conviesse? Apostei que iriam os dois no carro do Mischkey. Este ja ali estava com a capota aberta. Avancei um pouco mais na Rua Rathenau e estacionei de modo a ver o portão do jardim e o Citroen pelo meu espelho retrovisor. Meia hora depois passaram por mim de carro, e eu escondi-me atrás do Súddeutschen Zeitung. Depois segui-os pela Rua Suezkanal, até às piscinas Stollenwõrth. Estas situam-se na parte sul da cidade e têm duas piscinas associativas. A senhora Buchendorff e o Mischkey foram para a piscina dos Correios. Fiquei parado à entrada, dentro do carro. Durante quanto tempo é que os apaixonados de agora ficam na piscina? No meu tempo, no Lago Múggel, podia demorar— horas — provavelmente isto não se havia modificado de um modo drástico. Embora na Rua Rathenau já tivesse desistido da ida ao banho, a perspectiva de ficar sentado ou debru-çado três horas dentro do carro obrigou-me a pensar numa outra solução. Será que de uma piscina podia ver-se a outra? De qualquer maneira, valia a pena tentar. Fui de carro até à outra piscina e meti no bolso dos calções os meus binóculos Zeiss. Herdara-os do meu pai, que era oficial de carreira, e que com eles perdera a Primera Guerra Mundial. Comprei um bilhete de entrada, vesti as bermudas, encolhi a barriga e saí para o sol. Encontrei um lugar de onde podia ver a outra piscina. A relva estava pejada de famílias, grupos, pares e singles, e algumas das mamãs haviam ousado descobrir o peito. Quando tirei os meus binóculos do bolso, fui trespassado pelos primeiros olhares repreensivos. Dirigi-os para as árvores, para umas gaivotas que pairavam, e para um pato de plástico na água. Se me tivesse lembrado de trazer o Atlas Ornitológico, pensei, poderia tentar umas manobras para criar confiança. Pouco depois tinha a outra piscina na mira; quanto à distância, teria podido seguir os dois muito bem com os meus binóculos. Mas não me deixaram. — Tenha vergonha! — disse um pai de família, cuja barriga se derramava sobre os calções de banho e o peito sobre a barriga. Ele e a mulher eram a última coisa que eu


quereria espreitar, com ou sem binóculos. — Se não parar com isso agora mesmo, seu voyeur, seu… esmigalho-lhe essa coisa. A situação era absurda. Os homens em meu redor não sabiam para onde deviam olhar, fosse para verem tudo ou para nada verem, e é óbvio que não é demasiado antiquado partir do princípio de que as mulheres sabiam o que eles estavam a fazer. E ali estava eu, a quem nada daquilo interessava — não que não pudesse vir a interessar-me, mas agora não me interessava realmente nada, agora só tinha a minha missão na cabeça. E era logo de mim que suspeitavam de luxúria, que acusavam, que consideravam culpado e que condenavam. Só se consegue combater este tipo de pessoas com as mesmas armas. — Tenha vergonha! — disse eu — Com essa triste figura devia vestir a parte de cima de um biquini. E meti os binóculos no bolso. Além disso, levantei-me e era mais alto do que ele uma cabeça. Ele deu-se por satisfeito, limitando-se a uns trejeitos de desprezo. Saltei para dentro da água e nadei até ao outro lado. Ali, não cheguei a sair para terra; a senhora Buchendorff e o Mischkey haviam-se deitado perto da água, em pleno sol. o Mischkey estava nesse momento a abrir uma garrafa de vinho tinto. Isso dá-me pelo menos, pensei, uma hora. Nadei de volta. O meu antagonista vestira uma camisa havaiana, resolvia palavras cruzadas com a mulher e deixou-me em paz. Fui buscar uma Bockwurst com muita mostarda e batatas fritas e li o meu Súddeutschen Zeitung. Uma hora mais tarde, estava novamente à espera dentro do meu carro diante da outra piscina. Mas só às seis horas da tarde é que os dois passaram pelo torniquete. As perninhas finas de Mischkey estavam vermelhas, a senhora Buchendorff trazia o cabelo solto pelos ombros e sublinhava o bronzeado com um vestido de seda azul. Depois foram para casa dela na Rua Rathenau. Quando voltaram a sair, ela vestia umas ousadas calças à pirata, aos quadrados, e sobre elas uma camisola de tricô e couro preta; ele vestia um fato de linho claro. Fizeram a pé a curta distância até ao hotel Steigenberg, no Centro Augusta e, lá dentro, até ao bar. Eu vagueei pelo átrio do hotel até os ver sair do bar para o restaurante, com os copos na mão. Então cingi-me ao bar e pedi um Aviateur. O barman fez um ar muito admirado, eu expliquei-lhe a mistura, e ele assentiu com ar aprovador. Começámos a conversar. — Tivemos uma sorte doida — disse ele. — Agora mesmo entrou um casal no bar e queria ir jantar ao restaurante. Nesse momento, escorregou um cartão de visita da carteira do homem e caiu sobre o balcão, ao pé de mim. Ele escondeu-o logo, mas eu vi bem o que lá estava: Inspecteur de bonne table, e o símbolo do homem da Michelin. Era um deles, sabe, dos que fazem o guia. Somos um bom restaurante, mas apesar disso fui logo dizer o que se passava ao maitre de service, e agora os dois vão ter um serviço e uma refeição que nunca mais irão esquecer. — E assim vão receber finalmente a vossa estrela ou, pelo menos, os três garfinhos cruzados e a colherzinha. — Esperemos que sim. Inspector de bonne table… — e diabrete também. Não acredito que existam


identificações desse tipo e fiquei fascinado com a imaginação do Mischkey, mas ao mesmo tempo não me sentia bem perante aquela pequena aldrabice. Também fiquei preocupado com o estado da gastronomia alemã. Ter-se-ia de lançar mão deste tipo de meios para se ser bem servido? Podia terminar o meu trabalho por hoje, consolado. Os dois iriam, depois de um último Calvados, para casa da senhora Buchendorff ou até casa do Mischkey, em Heidelberg. Com um passeio domingueiro de manhã cedo até à Igreja de Cristo, poderia verificar rapidamente se os dois carros, nenhum carro, ou só o da senhora Buchendorff, estavam parados na Rua Rathenau, diante da casa. Fui para casa, alimentei o gato com comida de lata, a mim com ravioli, e fui para a cama. Li ainda um pouco do Grúnen Heinrich e desejei, antes de adormecer, estar no lago de Zurique.


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A insalubridade do mundo

No domingo de manhã, levei chá e biscoitos para a cama e fiquei a pensar. Tinha a certeza: ele era o meu homem. O Mischkey correspondia, em tudo, à ideia que eu fizera do autor dos crimes: era excêntrico, jogador e brincalhão, e a tirada de intrujão arredondara convictamente a imagem do criminoso. Como trabalhador do CRI, tinha a possibilidade de penetrar nos sistemas das empresas ligadas a ele; como namorado da senhora Buchendorff, tinha motivo para o fazer exactamente nas IQR. O aumento de ordenado das secretárias-chefe havia sido uma amabilidade anónima para com a namorada. Em tribunal, apenas estes indícios não bastariam, se quisesse fazer as coisas bem feitas. Não obstante, eram suficientemente convincentes para mim, justificando que deixasse de me preocupar a hipótese de ser ele o culpado, e me ocupasse mais da maneira de provar a sua culpabilidade. Confrontá-lo diante de testemunhas, de modo a que ele cedesse sob o peso da sua culpa — ridículo. Armar-lhe uma cilada, juntamente com o Oelmúller e o Thomas, desta vez mais bem preparada e tendo-o a ele como alvo? Por um lado, não sabia se isso iria ter algum êxito; por outro, queria entrar sozinho no duelo com o Mischkcy, e Com os meus próprios meios. Não havia dúvida, este caso era daqueles que me envolviam Pessoalmente. Talvez o desafio fosse até demasiado pessoal. Sentia uma mistura pouco limpa de ambição profissional, de respeito pelo adversário, de ciúme a germinar, da rivalidade clássica entre o caçador e a presa, de inveja da juventude do Mischkey. Bem sei que isto é a insalubridade do mundo, a que só os santos se escapam e a que os fanáticos pensam poder escapar. Não obstante, por vezes ela incomoda-me. Porque tão poucos a confessam a si mesmos, penso que apenas eu sofro por causa dela. Na Universidade, em Berlim, o meu professor Cari Schmitt defendera perante nós, alunos, uma teoria que diferenciava completamente o inimigo político do inimigo pessoal, e todos ficaram convencidos e sentiram-se justificados no seu anti-semitismo. Já nesse tempo eu me preocupara em saber se os outros não conseguiam aguentar a insalubridade dos seus sentimentos e tinham de os mascarar, ou se a minha capacidade para traçar intuitivamente uma fronteira clara entre o que é pessoal e o que é objectivo seria um sinal de subdesenvolvimento. Fiz mais um chá. Poderia provar a sua culpa utilizando a senhora Buchendorf? Conseguiria, através da senhora Buchendorff, levar o Mischkey a atacar novamente o sistema das IQR, desta vez de uma maneira identificável? Ou poder-me-ia servir de Gremlich e do seu evidente desejo de lhe pregar uma partida? Não me lembrava de nada de convincente. Teria de confiar no meu talento para a improvisação. Podia poupar-me a continuar a segui-lo. Mas quando me dirigi ao Kleinen Rosengarten, onde por vezes vou aos domingos almoçar com amigos, não fui pelo habitual caminho da torre do depósito de água e da Circular, mas passei pela Igreja de Cristo. O Citroen do Mischkey desaparecera e a senhora Buchendorff trabalhava no jardim. Mudei para o passeio oposto, para não ter de a cumprimentar.



19

Deus seja louvado, na Terra como no Céu

Bom dia, senhora Buchendorff. Como é que foi o seu fim-de-semana? Às oito e meia da manhã ainda estava sentada à frente do jornal, tinha aberta a página do desporto e lia as últimas notícias sobre o nosso jovem menino-prodígio do ténis, Leimener. Já tinha pronta para mim, dentro de uma capa verde de plástico, a lista das cerca de sessenta empresas que estavam ligadas ao sistema de alarme de smog. Pedi-lhe para cancelar a minha reunião com o Oelmúller e o Thomas. Só queria voltar a ver aqueles dois depois da resolução do caso ou, de preferência, nunca mais. — Também está entusiasmada com o nosso menino-prodígio do ténis, senhora Buchendorff? — O que quer dizer com “também”? Como o senhor, ou como milhões de outras alemãs? — Eu também o acho fascinante. — O senhor joga ténis? — Vai rir-se, mas tenho dificuldade em encontrar adversários que não varra logo do court. Só os jogadores mais jovens conseguem vencer-me de vez em quando, apenas porque têm uma condição física melhor. Mais nos pares, com um parceiro decente, sou quase imbatível. Também joga? — Para ser tão fanfarra como O senhor, senhor Selb, jogo tão bem que os homens ficam complexados — levantou-se. — permita que me apresente: campeã de juniores do Sudoeste da Alemanha, 1968. — Uma garrafa de champanhe contra os complexos de inferioridade — propus. — O que quer dizer com isso? — Quero dizer que vou derrotá-la como manda a lei, mas que lhe trarei, para consolo, uma garrafa de champanhe. Contudo, como disse, de preferência em pares mistos. Tem algum parceiro? — Sim, tenho alguém — disse ela belicosamente. — Quando? — Gostaria que fosse já hoje à tarde, às cinco, depois do trabalho. Assim isto não fica entre nós durante mais tempo. Mas talvez seja difícil arranjar um lugar?

— O meu amigo consegue isso facilmente. Parece que conhece alguém da reserva de lugares. — Onde vamos jogar? — No court das IQR. E em Oggersheim, posso indicar-lhe no mapa. Fui ao Centro de Informática e pedi ao senhor Tausendinilch, “mas isto tem que ficar entre nós”, a


impressão da situação actual da reserva de lugares nos courts de ténis. — Ainda cá está às cinco horas da tarde? — perguntei-lhe. Ele terminava o trabalho às quatro e meia, mas era jovem e prontificou-se a fazer uma nova impressão às cinco em ponto. — É com prazer que vou chamar a atenção do senhor director Firner para o seu espírito de sacrifício. Ficou radiante. Quando me dirigia ao portão principal, encontrei o Schmalz. — O bolo caiu-lhe bem? — quis ele saber. Oxalá o motorista do táxi o tivesse comido. — Transmita por favor os meus maiores agradecimentos a sua rnulher. Estava muito bom. Como está o seu Richard? — Obrigado. Muito bem. Pobre Richard. Nunca, aos olhos do teu pai, poderias estar muito bem. Dentro do carro, estudei a folha impressa com a reserva dos lugares no court de ténis, embora já tivesse a certeza de não ir encontrar a reserva que procurava: a do Mischkey ou da senhora Buchendorff. Depois fiquei simplesmente algum tempo dentro do carro, a fumar. Na verdade, nem sequer teríamos de jogar ténis, hoje à tarde; se o Mischkey tivesse reservado um lugar para nós, às cinco horas da tarde, tê-lo-ia desmascarado. Apesar disso, fui até à Escola Herzogenried cobrar o favor que a Babs ainda me devia, ou seja, cravá-la para o par misto. Estavam no intervalo maior, e a Babs tinha razão: em todos os cantos se namoriscava. Muitos alunos tinham o walkman posto, estivessem sozinhos ou em grupos, jogassem ou namoriscassem. Não lhes bastava o que captavam do mundo exterior, ou serlhes-ia isso demasiado insuportável? Encontrei a Babs na sala dos professores, onde discutia Bergengruen com dois estagiários. — Sim, devíamos voltar a lê-lo no liceu — dizia um deles. — o Grande Tirano e o Tribunal. A nossa juventude precisa da maneira como aí é desenvolvido o tema da política, para além do nosso quotidiano sufocante. O outro apoiou-o: — Hoje em dia há novamente tanto medo no mundo, e a mensagem de Bergengruen é: Não tenham medo! A Babs estava um pouco perplexa. — O Bergengruen não está já totalmente ultrapassado, para além de qualquer esperança? — Mas, senhora directora — disseram em uníssono —, já ninguém quer saber nada sobre o Bôll e o Frisch e o Handke! De que outra maneira será possível fazer a aproximação da juventude ao Modernismo?


— Deus seja louvado, na Terra como no Céu — interrompi eu, e puxei a Babs de lado. — Desculpa-me, por favor, mas hoje à tarde tens de jogar ténis comigo. Preciso de ti, urgentemente. Ela abraçou-me, controladamente, como convém numa sala de professores. — Sim, que óptima oportunidade! Não me tinhas prometido um passeio até Dilsberg nesta Primavera? E só voltas a aparecer quando queres alguma coisa. Ainda bem que vieste, mas estou muito zangada contigo. Era realmente assim que parecia, ao mesmo tempo contente e amuada. A Babs era uma mulher muito viva e generosa, pequena e robusta, com movimentos desembaraçados. Não conheço muitas mulheres de cinquenta anos que se vistam e que se comportem tão ligeiramente, sem sacrificar o charme da sua idade a uma juventude artificial. Tinha um rosto largo, uma ruga funda na base do nariz, uma boca cheia, decidida e por vezes severa, olhos castanhos sob pálpebras carnudas, e cabelos grisalhos cortados curtos. Vive com os seus dois filhos crescidos, a Rõschen e o Georg, que se sentem demasiado bem em casa dela para conseguirem dar o salto para a independência. — Não me digas que te esqueceste mesmo do nosso passeio do Dia do Pai, a Edenkoben? Se é assim, então eu é que devo estar zangado contigo. — Ui! Ui! Quando e onde tenho de jogar ténis? E posso saber porquê? — Vou buscar-te a casa às quatro e um quarto, está bem? — E levas-me às sete até Liedertafel: temos ensaio hoje à noite. — Com prazer. Jogamos das cinco às seis no court de ténis das IQR, em Oggersheim, pares mistos, contra uma secretária-chefe e o namorado, que é o suspeito principal do meu caso. — Que excitante — disse a Babs. Por vezes, tenho a sensação de que ela não leva a sério a minha profissão. — Se quiseres saber mais, posso contar-te durante o caminho. E, se não, também não importa, de qualquer modo tens de parecer natural e despreocupada. A campainha soou. Era exactamente o mesmo som que nos meus tempos de aluno. A Babs e eu saímos para o corredor, e vi os alunos fluírem em torrente para as salas de aula. Não eram apenas outras roupas e outros cabelos, mas sobretudo outros rostos, diferentes dos de então. Pareciam-me mais atormentados, mais sabedores e descontentes com esse saber. Os jovens tinham uma maneira provocadora, violenta e, ao mesmo tempo, insegura de se moverem. O ar vibrava com os seus gritos e o ruído que faziam. Quase me senti ameaçado, e isso deprimia-me. — Como é que suportas isto, Babs? Ela não me compreendeu. Talvez por causa do barulho. Olhou-me com um ar interrogativo. — Então, até hoje à tarde. Dei-lhe um beijo. Uns alunos assobiaram.


Desfrutei a paz dentro do meu carro, fui até ao parque de estacionamento da Horten, comprei champanhe, meias de ténis e cem folhas de papel de máquina, para o relatório que teria de escrever naquela noite.


20

Um lindo par

A Babs e eu chegámos pouco antes da cinco da tarde. Nenhum dos cabrioleis, nem o verde nem o prateado, lá estavam. Fiquei contente por sermos os primeiros a chegar. Já vestira o equipamento de ténis em casa e mandei pôr o champanhe a refrescar. A Babs e eu sentámo-nos no degrau de cima da escadaria que conduzia do terraço bem cuidado do edifício da Associação aos courts de ténis. Dali, víamos o parque de estacionamento. — Estás nervoso? — perguntou-me ela. Durante o caminho, ela não tinha querido saber mais nada. E agora só perguntava por simpatia. — Sim. Talvez deva parar de trabalhar. Os casos afectam-me mais do que antigamente. Neste caso, o facto de achar simpático o principal suspeito, torna as coisas mais difíceis. Vais já conhecê-lo. Penso que vais gostar do Mischkey. — E da secretária-chefe? Pressentiria ela que a senhora Buchendorff era mais do que uma figurante no caso? — Também a acho simpática. Não estávamos lá muito bem, ali sentados. Quem jogara dirigia-se agora para o terraço, e os jogadores seguintes saíam dos vestiários e desciam as escadas, empurrando-se. — O teu suspeito tem um cabriolei verde? Quando voltei a ter o campo de visão livre, vi que o Mischkey e a senhora Buchendorff tinham acabado de chegar. Ele saltou do carro, contornou-o a correr e abriu a porta do lado dela com uma profunda vénia. Ela saiu do carro a rir e deu-lhe um beijo. Um lindo par, cheio de energia, feliz. A senhora Buchendorff viu-nos quando chegaram ao começo das escadas. Acenou com a mão direita e deu com a esquerda um safanão ao Peter, para lhe chamar a atenção. Este também levantou o braço para nos saudar. Nesse momento reconheceu-me, o seu movimento ficou parado no ar e o seu rosto inteiriçado. Durante um momento, o mundo parou de girar, as bolas de ténis ficaram suspensas no ar, e tudo ficou muito silencioso. Depois, o filme começou de novo a rodar, e os dois chegaram perto de nós; cumprimentámo-nos, e ouvi a senhora Buchendorff dizer: — O meu namorado, o Peter Mischkey, e este é o senhor Selb, de quem já te falei. Pronunciei as necessárias fórmulas de apresentação. O Mischkey cumprimentou-me como se nos víssemos pela primeira vez. Fazia o seu papel serena e talentosamente, com os gestos apropriados e os sorrisos certos. Mas era o papel errado, e eu quase tinha pena que ele jogasse com aquela temeridade. Em vez disso, teria preferido que ele tivesse dito, como teria sido apropriado: “Senhor Selb? Senhor


Selk? Um homem com muitos rostos?”. Dirigimo-nos ao homem que distribuía os lugares. O court número oito estava reservado em nome de Buchendorff; o homem mandou-nos para lá, com poucas palavras e malhumorado, envolvido numa discussão com um casal mais velho que continuava a insistir ter reservado um lugar. — Faça o favor de ver, os courts estão todos ocupados e o seu nome não consta da lista. Ele fez rodar o terminal de maneira a que o casal pudesse ver o que estava no monitor. — Não admito que façam isto comigo — disse o homem. — Eu fiz a reserva de um court há mais de uma semana. A mulher já desistira. — Ora, deixa lá, Kurt. Talvez te tenhas enganado, como é hábito. O Mischkey e eu trocámos um breve olhar. Ele fez uma expressão desinteressada, mas os seus olhos diziam-me que ele sabia que tinha sido desmascarado. A partida a que nos entregámos foi um dos jogos que nunca esquecerei. Foi como se o Mischkey e eu quiséssemos recuperar o que antes faltara em combate franco. Joguei acima das minhas forças, mas a Babs e eu perdemos como manda a lei. A senhora Buchendorff estava feliz. — Tenho um prémio de consolação para si, senhor Selb. Que tal uma garrafa de champanhe no terraço? Ela fora a única que saboreara o jogo despreocupadamente, e não dissimulou a sua admiração pelo parceiro e pelos adversários. — Não te reconheci, Peter. Estás em óptima forma hoje, não é verdade? O Mischkey tentou parecer alegre. Tanto ele como eu não falámos muito enquanto bebíamos o champanhe. As duas mulheres encarregaram-se da conversa. A Babs disse: — Na verdade, isto não era bem um par. Se eu não fosse assim tão velha, teria esperança de que os dois homens tivessem jogado por mim. Mas assim, foi a senhora a cortejada, senhora Buchendorff. E depois as duas mulheres falaram de idades e de juventude, de homens e de amantes, e sempre que a senhora Buchendorff fazia um comentário frívolo, dava logo um beijo ao Mischkey, que continuava calado. No vestiário, fiquei sozinho com o Mischkey. — E agora, o que é que se vai passar? — perguntou ele. — Vou entregar o meu relatório às IQR. O que eles farão, não sei. — Consegue deixar a Judith de fora? — Isso não é assim tão simples. De certa maneira, ela foi o engodo. Como é que poderei explicar o modo como consegui desmascará-lo? — E tem mesmo de descrever o modo como me desmascarou? Não basta que eu


simplesmente confesse ter conseguido entrar no sistema IGE? Pensei nisso. Não acreditei que ele quisesse enganar-me e, sobretudo, não vi como poderia fazê-lo. — Vou tentar. Mas não pense em me enganar. Senão, terei de anexar a outra parte do relatório. Fomos ter com as duas mulheres ao parque de estacionamento. Estaria a ver a senhora Buchendorff pela última vez? Aquele pensamento provocou-me uma pontada. — Até breve? — despediu-se ela. — A propósito, como vai o seu caso?


21

O nosso coraçãozinho de manteiga

O relatório para o Korten ficou pequeno. Apesar disso, precisei de cinco horas e de uma garrafa de Caberriet Sauvignon até terminar de o ditar, por volta da meia-noite. Todo o caso voltou a passar diante de mim, e não era fácil deixar a senhora Buchendorff de fora. Descrevi a ligação IQR-GRI como o flanco vulnerável do sistema IGE, através do qual não apenas as pessoas das IQR, mas também as que trabalhavam em empresas ligadas ao CRI, poderiam penetrar. Usei a caracterização do CRI feita pelo Mischkey, de placa giratória da espionagem industrial. Aconselhei a desacoplagem do registo directo dos valores das emissões do sistema central. Depois descrevi de forma depurada o desenrolar da minha investigação, das minhas conversas e pesquisas na fábrica até a uma confrontação fictícia com o Mischkey, em que ele reconhecia a sua participação nos ataques e se prontificava a repetir tudo numa confissão às IQR, com a explanação de pormenores técnicos. Fui para a cama com a sensação de ter a cabeça vazia e pesada. Sonhei que jogava uma partida de ténis contra uma carruagem de comboio. O maquinista, com máscara de gás e pesados sapatos de borracha, tentava tenazmente tirar-me o tapete, sobre o qual eu jogava, de debaixo dos pés. Quando o conseguiu, continuámos a jogar sobre um chão vidrado, e debaixo de nós passavam velozmente as travessas. A minha parceira era uma mulher sem rosto, com selos pesados e pendentes. Eu tinha sempre medo de que, com os seus movimentos possantes, ela pudesse quebrar o vidro. Quando isso aconteceu, acordei horrorizado e aliviado. De manhã fui ao escritório de dois jovens advogados, na Rua Tattersall, cuja pouco ocupada secretária por vezes redige os meus relatórios. Os advogados jogavam no seu terminal de computador. A secretária assegurou-me que teria o trabalho pronto às onze da manhã. Depois, no escritório, li o meu correio, constituído maioritariamente por prospectos de sistemas de alarme e vigilância, e telefonei à senhora Schlemihl. Esta fez-se muito rogada, mas por fim consegui marcar o meu encontro com o Korten para o almoço, no Casino. Quando passei para ir buscar o relatório, marquei logo na agência de viagens um voo para Atenas, para essa noite. Anna Bredakis, uma amiga dos meus tempos de estudante universitário, pedira-me para a avisar com bastante antecedência da minha chegada. Tinha de preparar o iate, herdado dos pais, para o nosso cruzeiro, e constituir uma tripulação a partir dos seus sobrinhos e sobrinhas. Eu preferia andar a vaguear pelas tabernas do porto de Pireu, a ler no Mannheimer Morgen acerca da prisão do Mischkey e deixar que a senhora Buchendorff me completasse a ligação telefónica com o Firner para que este me desse os parabéns pelo meu sucesso. Cheguei meia hora atrasado ao almoço com o Korten, mas não consegui provar nada a ninguém com isso. — É o senhor Selb? — perguntou-me um ser cinzento à entrada, que tinha posto


demasiado rouge. — Então vou já avisar o senhor director-geral. Se quiser fazer o favor de ter paciência. Esperei no átrio. O Korten veio ter comigo e cumprimentou-me bruscamente. — Não consegues avançar no caso, meu querido Selb? Terei de te ajudar? Era o tom de voz com que o tio rico cumprimenta o sobrinho maçador que contrai dívidas e que vem mendigar dinheiro. Olhei-o, surpreendido. Ele podia ter muito que fazer e estar tenso e enervado, mas enervado também eu estava. — Tens de pagar a conta que também está dentro deste envelope. De resto, podes ouvir como resolvi o teu caso, mas se não quiseres, está bem. — Não sejas tão sensível, meu querido, não tão sensível. Por que é que não disseste logo à senhora Schlemihl do que se tratava? Agarrou-me no braço e tornou a levar-me para o Salão Azul. Os meus olhos procuraram em vão a ruiva das sardas. — Então, resolveste o caso? Fiz-lhe um resumo do conteúdo do meu relatório. Quando, ao comer a sopa, lhe falei nas falhas dos seus homens, ele assentiu com a cabeça, com um ar sério. — Compreendes agora por que é que eu ainda não posso largar mão disto? São todos muito medíocres. Não podia dizer nada contra isso. — E como é que é esse tal, esse Mischkey? — perguntou ele. — Como é que imaginas alguém que encomenda para a vossa fábrica cem mil macaquinhos Rhesus e apaga os números de conta começados por 13? O Korten sorriu satisfeito. — Exactamente — disse eu —, um pássaro engraçado e, além disso, um informático brilhante. Se ele fizesse parte do vosso Centro Informático, nunca teriam tido estas avarias. — E como é que apanhaste esse pássaro brilhante? — O que tenho a dizer sobre isso, está no meu relatório. Não tenho vontade nenhuma de me alongar sobre o assunto. De resto, achei o Mischkey simpático, e não me foi fácil ter de provar a sua culpa. Acharia bonito se não fossem muito severos, muito duros com ele. Compreendes o que eu quero dizer, não é verdade? — Selb, o nosso coraçãozinho de manteiga — riu-se o Korten. — Nunca aprendeste a escolher entre fazer ou deixar totalmente de fazer algo. Mais ponderado, acrescentou: — Mas talvez isso seja exactamente o teu ponto forte. Sendo sensível, persegues coisas e pessoas, cuidas sensivelmente dos teus escrúpulos, e ao fim e ao cabo, funcionas. Fiquei sem fala. Por que razão tanta agressividade e cinismo? A observação do Korten


pusera o dedo onde me doía, e ele sabia disso e pestanejou, satisfeito. — Não tenhas medo, meu querido Selb, não vamos partir nenhuma louça desnecessariamente. E aquilo que disse sobre ti… Eu admiro isso em ti, não me compreendas mal. Ainda estava a fazer pior e olhou-me com indulgência. Mesmo que as suas palavras tivessem alguma coisa de verdade… A amizade não significa tratar com cuidado as mentiras que o outro diz a si mesmo? Mas o que ele afirmava não era verdade. A ira subiu dentro de mim. Já não quis nenhuma sobremesa. E também preferi beber o café no Café Gmeiner. E o Korten tinha de estar às duas numa reunião. Fui de carro para Frankfurt, às oito da noite, e voei para Atenas.


SEGUNDA PARTE


1

Ainda bem que o Turbo gosta de caviar

Em Agosto, estava de novo em Mannheim. Sempre gostei de viajar nas férias, e as semanas no Egeu passaram-se sob um brilho azul especialmente intenso. Mas, desde que envelheci, regresso a casa com mais prazer do que antes. Depois da morte da Klara renovei a decoração do meu apartamento. Durante o casamento não havia conseguido fazer prevalecer o meu gosto, e por isso foi com cinquenta e seis anos que recuperei as alegrias da decoração que os outros gozam quando jovens. Gosto dos meus dois pesados sofás de couro que custaram uma fortuna e que resistem ao gato, da antiga estante de farmácia onde estão os livros e os discos, e do beliche que mandei encastrar no nicho do escritório. No regresso, também me alegro sempre pelo Turbo, que, embora eu saiba que é bem tratado pela vizinha, sofre a minha ausência do seu modo silencioso. Acabara de pousar as minhas malas e de abrir a porta, quando vi diante de mim, enquanto o Turbo se pendurava na perna das calças, uma gigantesca cesta que havia sido deixada no chão da entrada. A porta da casa do lado abriu-se e a senhora Weiland cumprimentou-me. — Ainda bem que voltou, senhor Selb. Meu Deus, está muito bronzeado. O seu gato sentiu muito a sua falta, não é verdade, pequenino, pequenino, pequenino? Já viu a cesta? Veio cá trazê-la há três semanas um motorista das IQR. É pena por causa das lindas flores. Ainda pensei se deveria pô-las numa jarra, mas agora também já estariam murchas. O correio está, como de costume, em cima da sua secretária. Agradeci e procurei refúgio da sua torrente de palavras atrás da porta da entrada. A cesta tinha todas as mercearias finas de que eu gostava e de que eu não gostava, desde empada de fine gras até caviar Malossol. Ainda bem que o Turbo gosta de caviar. O cartão que vinha junto, com o logotipo da fábrica artisticamente concebido, estava assinado pelo Firner. As IQR agradeciam os meus preciosos serviços. Também tinham pago. Encontrei na correspondência os meus extractos bancários, postais de férias do Eberhard e do Willy e as inevitáveis contas. Esquecera-me de dizer para não me entregarem o Mannheimer Morgen; a senhora Wieland pusera os jornais numa pilha muito direita em cima da mesa da cozinha. Folheei-os antes de os meter dentro do caixote do lixo, e saboreei o gosto insípido do tumulto político distante. Desfiz as malas e pus uma máquina de roupa a lavar. Depois fiz as minhas compras, deixei que a mulher do padeiro, o açougueiro e o comerciante de mercadorias coloniais admirassem o meu ar repousado, e perguntei por novidades, como se na minha ausência se tivessem passado coisas maravilhosas. Era o tempo das férias escolares. As lojas e as estradas estavam mais vazias, o meu olhar de condutor de automóvel encontrava lugares para estacionar nos sítios menos prováveis e sobre a cidade pairava um silêncio estival. Trouxera das férias aquela leveza que possibilita que se experimente a conhecida vizinhança de uma maneira nova e


diferente. Tudo isso me dava uma sensação de pairar que eu queria saborear. Adiei a ida ao escritório para a tarde. Inquieto, dirigi-me ao Kleinen Rosengarten: estaria fechado para férias? Mas, ainda longe, vi o Giovanni com o guardanapo por cima do braço, de pé, à porta do jardim. — Tu já retornar dos grega? Grega não bom. Anda, eu fazer-te spaguetti Gorgonzola. — Si, Ittaker óptimo. Estávamos a jogar o nosso jogo de “alemão-conversa-com-emigrante”. O Giovanni trouxe-me o frascatie falou-me de um novo filme. — Era um papel mesmo para si, um assassino que também poderia ser detective privado. Depois do spaguetti Gorgonzola, do café e da Sambuca, depois de uma horinha com o Súddeutschen nas instalações da torre do depósito de água, depois de um gelado e de um outro café no Gmeiner, compareci no meu escritório. Não foi assim tão mau. O meu gravador de chamadas anunciara a minha ausência até àquele dia e não gravara nenhuma mensagem. Na correspondência encontrei duas cartas, para além das comunicações da Associação Alemã dos Detectives, da notificação dos impostos, de folhetos publicitários e de uma proposta para a assinatura do dicionário estatal evangélico. O Thomas propunhame dar aulas numa cadeira do curso de Agente de Segurança Licenciado na Universidade Técnica de Mannheim. As Seguradoras Unidas de Heidelberg pediam-me para as contactar logo que regressasse de férias. Limpei um pouco do pó, folheei o correio, fui buscar a garrafa de Sambuca, a lata com os grãos de café e o copo à gaveta da secretária e servi-me. Embora me recuse ao cliché do -whisky dentro da secretária do detective privado, tem de haver uma garrafa. Depois, registei um novo texto no meu gravador de chamadas, marquei uma data com as Seguradoras de Heidelberg, adiei a resposta à proposta do Thomas para um outro dia e fui para casa. Passei a tarde e a noite na varanda e despachei insignificâncias. Fiz contas com os extractos bancários e verifiquei que, com os trabalhos que fizera até agora, quase tinha atingido o que costumo ganhar num ano. E isto depois das férias. Muito tranquilizante. Consegui manter o meu estado de leveza ainda nas semanas seguintes. Trabalhei sem grande entusiasmo no caso de burla das Seguradoras que aceitara. O Sergej Mencke, dançarino sofrível de ballet no Teatro Nacional de Mannheim, havia segurado as suas pernas por uma quantia elevada e pouco tempo depois partira uma delas, fazendo uma fractura complicada. Nunca mais iria poder dançar. Estava em jogo um milhão, e a seguradora queria ter a certeza de que tudo se havia passado da maneira correcta. Imaginar que alguém partisse intencionalmente a própria perna horrorizava-me. Quando eu era pequeno, a minha mãe contou-me, para ilustrar a força de vontade masculina, que Inácio de Loiola, ao verificar que a perna soldara mal depois de partida, havia voltado a parti-la com um martelo. Sempre detestei automutiladores, o pequeno espartano que deixou que a raposa lhe esventrasse a barriga, Mucius Scaevola, e Inácio de Loiola. Mas, por mim, poderiam receber todos um milhão, se com isso desaparecessem dos livros escolares. O meu dançarino de ballet disse que partira a perna ao fechar a pesada porta do seu Volvo. Na noite em questão, tivera febre alta, mas apesar disso aguentara dançar a sua cena e depois nunca mais voltara a estar bem em si. Por essa razão fechara a porta, embora a


perna ainda estivesse do lado de fora. Fiquei bastante tempo sentado no carro e tentei imaginar se uma coisa assim seria possível. Não poderia fazer muito mais porque o Teatro fechara para férias, o que espalhara os seus colegas pelos quatro ventos. Por vezes, pensava na senhora Buchendorff e no Mischkey. Não encontrara nada sobre aquele caso nos jornais. Quando uma vez passei casualmente pela Rua Rathenau, as portadas do primeiro andar estavam fechadas.


2

Estava tudo bem com o carro

Foi por puro acaso que ouvi atempadamente a mensagem que ela deixou gravada numa tarde de meados de Setembro. Normalmente, ouço apenas à noite ou na manhã seguinte as mensagens deixadas à tarde. A senhora Buchendorff telefonara à tarde e perguntara se ainda poderia falar comigo depois de sair do trabalho. Eu esquecera-me do meu guardachuva, por isso tivera de voltar ao escritório, vi o sinal do atendedor de chamadas e telefonei-lhe. Combinámos um encontro às cinco horas. Ela tinha uma voz sumida. Pouco antes das cinco estava no meu escritório. Fiz café, lavei as chávenas, arrumei as pilhas de papéis sobre a minha secretária, desapertei um pouco o nó da gravata, abri o primeiro botão da camisa, tornei a ajustar a gravata e empurrei as cadeiras à frente da minha secretária de um lado para o outro. Por fim, ficaram no sítio onde estão sempre. A senhora Buchendorff foi pontual. — Não sei se fiz bem em vir. Talvez esteja apenas a imaginar coisas. Estava de pé, sem fôlego, ao lado da palmeira envasada. Sorriu, insegura. Estava pálida e tinha olheiras fundas debaixo dos Olhos. Quando a ajudei a tirar o casaco, reparei na falta de naturalidade dos seus movimentos — estava uma pilha de nervos. — Sente-se. Quer café? — Há dias que só bebo café. Mas sim, por favor, dê-me uma chávena. — Com leite e açúcar? Ela estava ausente com os seus pensamentos e não respondeu. De súbito, olhou para mim com uma firmeza que reprimia violentamente as suas dúvidas e incertezas. — Percebe alguma coisa de assassinatos? Pousei as chávenas cuidadosamente e sentei-me atrás da minha secretária. — Trabalhei em casos de assassinatos. Por que pergunta? — O Peter morreu, o Peter Mischkey. Foi um acidente, dizem eles, mas eu não consigo acreditar nisso. — Meu Deus! Levantei-me e andei de um lado para o outro atrás da secretária. Sentia-me mal. No Verão, no court de ténis, destruíra um pedaço da vivacidade do Mischkey, e agora ele estava morto. Nessa altura, não destruíra eu também alguma coisa dela? Por que razão se dirigia agora a mim? — O senhor só o viu uma vez, no jogo de ténis, e então ele jogou com tanto entusiasmo; também é verdade que conduzia como um louco, mas nunca tinha tido um acidente e guiava sempre tão seguro e concentrado… Não bate certo com o que se diz que se passou.


Então ela não sabia nada do meu encontro com o Mischkey em Heidelberg. E não falaria daquela maneira do jogo de ténis se soubesse que tinha sido eu quem provara a culpabilidade do Mischkey. Pelos vistos, ele não lhe tinha contado e ela não se apercebera de nada, nem mesmo como secretária do Firner. Eu não sabia o que pensar. — Simpatizei muito com o Mischkey, e lamento muito a sua morte, senhora Buchendorff. Mas ambos sabemos que mesmo o melhor condutor não é imune a um acidente. Por que razão acha que não foi um acidente? — Conhece a ponte sobre a linha de caminho-de-ferro entre Eppelheim e Wieblingen? Foi onde tudo aconteceu, há duas semanas. Segundo o relatório da Polícia, o Peter derrapou na ponte, partiu a vedação e caiu sobre a linha, não sobre a de passagem, mas sobre a do meio. Tinha o cinto de segurança posto, mas o carro esmagou-o debaixo dele. Partiu o pescoço e morreu no local. — Soltou um soluço, tirou um lenço e assoou-se. — Peço desculpa. Ele fazia aquele caminho todas as quinta-feiras; depois de fazer sauna na piscina de Eppelheim, ensaiava com o seu grupo em Wieblingen. Tinha jeito para a música, sabe, e era realmente bom ao piano. O troço da ponte é quase uma linha recta, a estrada estava seca e a visibilidade era boa. Por vezes há nevoeiro, mas naquela noite não havia. — Há testemunhas? — A Polícia não encontrou nenhuma. E também já era tarde, por volta das 23 horas. — O carro foi verificado por um perito? — A Polícia diz que estava tudo bem com o carro. Não era preciso fazer perguntas sobre o que sucedera ao Mischkey. Tinham-no levado para a morgue, e se ali tivessem verificado a presença de álcool no sangue ou de um ataque de coração ou de algo do género, a Polícia tê-lo-ia dito à senhora Buchendorff. Por um instante, vi o Mischkey deitado sobre a mesa de pedra das autópsias. Enquanto jovem assistente do Promotor, eu tivera de estar muitas vezes presente durante as autópsias. Veiome à cabeça a imagem de como por fim enchiam a cavidade abdominal dos cadáveres com algodão e os cosiam com grandes pontos. — O enterro foi anteontem. Reflecti durante alguns momentos. — Diga-me, senhora Buchendorff, há mais algum motivo que a leve a desconfiar da versão do acidente? — Nas últimas semanas, por vezes já não o reconhecia. Estava mal-humorado, reservado, ensimesmado, ficava muitas vezes em casa, quase não queria sair comigo. Uma vez chegou mesmo a pôr-me fora da casa dele. E evitava responder às perguntas que lhe fazia. As vezes pensava que ele tinha outra, mas ao mesmo tempo estava mais ligado a mim do que nunca. Tudo isto me confundiu completamente. Quando, uma vez, fiquei especialmente ciumenta… Talvez pense que não consigo lidar com as minhas mágoas e que estou histérica. Mas o que se passou naquela tarde… Servi-lhe café e lancei-lhe um olhar de incitamento.


— Foi numa quarta-feira em que nós os dois tínhamos resolvido tirar uma folga para voltarmos a ter mais tempo um para o outro. O dia começou logo mal; é verdade que o que eu queria não era tanto que tivéssemos mais tempo um para o outro, mas que ele tivesse mais tempo para mim. Depois do almoço ele disse subitamente que tinha de sair durante duas horas para ir ao Centro de Informática. Eu vi muito bem que aquilo não era verdade, fiquei desiludida, e irada, e senti a sua frieza, e vi-o com a outra, e fiz uma coisa que acho verdadeiramente má — mordeu o lábio. — Segui-o de carro. Ele não se dirigiu para o Centro de Informática, mas para a Rua Rohr-bach e subiu o monte pelo Steigenveg. Foi fácil segui-lo. Ia na direcção do cemitério Ehren. Tive sempre o cuidado de manter uma certa distância entre nós. Quando cheguei ao cemitério, ele ja havia estacionado o carro e avançava pelo largo caminho central. O senhor conhece o cemitério Ehren, com aquele caminho que parece conduzir ao céu, não conhece? No fim, há um bloco de arenito com a forma de um sarcófago rudemente talhado, quase do tamanho de um homem. Dirigia-se para lá. Eu não percebia nada e mantive-me escondida atrás de árvores. Quando chegou quase ao pé do bloco de arenito, saíram de trás dele dois homens, rápida e silenciosamente, como que do nada. O Peter olhou de um para o outro; parecia querer dirigir-se a um deles, mas sem saber a qual. Depois, tudo se passou muito depressa. O Peter virou-se para a direita, o homem à sua esquerda deu dois passos, agarrou-o por trás e segurou-o. O homem da direita deu-lhe socos no estômago, uma e outra vez. Foi totalmente irreal. Os homens não pareciam, de algum modo, muito empenhados, e o Peter não fez nenhuma menção de se defender. Talvez estivesse tão atordoado como eu. E tudo acabou muito depressa. Quando comecei a correr, o homem que lhe batia ainda lhe tirou os óculos do nariz com um movimento quase delicado, deixou-os cair no chão e pisou-os. Da mesma forma silenciosa e súbita como tudo se havia passado, soltaram o Peter e desapareceram novamente atrás do bloco de arenito. Ainda os ouvi correr pela floresta durante algum tempo. Quando cheguei ao pé do Peter, este caíra e estava deitado enroscado de lado. Depois, eu… Mas isso agora não interessa. Ele nunca me contou a razão por que foi ao cemitério Ehren e o espancaram. Também nunca me perguntou por que razão o tinha seguido. Ficámos os dois calados. O que ela contara parecia ser o trabalho de profissionais, e eu compreendi por que razão ela duvidava da morte acidental do Peter. — Não, não acho que esteja histérica. Há ainda mais alguma coisa que lhe tenha parecido estranha? — Coisas sem importância, como, por exemplo, que ele tivesse recomeçado a fumar. E que deixasse murchar as plantas. Também deve ter tido um comportamento esquisito com o seu amigo Pablo. Uma vez encontrei-me com este, no tempo em que já não sabia o que fazer, e ele também estava preocupado com o Peter. Estou contente por acreditar em mim. Quando quis contar à Polícia aquilo que aconteceu no cemitério, ninguém mostrou interesse em ouvir. — E agora quer que eu faça as investigações que a Polícia descurou? — Sim. Penso que o senhor não é barato. Posso dar-lhe dez mil marcos, e a um preço desses gostaria de ter certezas sobre a morte do Peter. Precisa de um adiantamento? — Não, senhora Buchendorff. Não preciso de nenhum adiantamento, e também não vou


dizer-lhe agora se vou aceitar o caso. O que posso fazer é uma pré-investigação: tenho de fazer perguntas, verificar pistas, e só depois poderei decidir se realmente entro a fundo no caso. Isso não será muito caro. Concorda? — Muito bem, vamos fazer assim, senhor Selb. Anotei alguns nomes, moradas e datas e prometi mantê-la ao corrente. Acompanhei-a até à porta. Lá fora continuava ainda a chover.


3

Um São Cristóvão de prata

O meu velho amigo na Polícia de Heidelberg é o comissário-chefe Nágelsbach. Está à espera de passar à reforma: desde que começou a trabalhar, aos quinze anos, como estafeta do Ministério Público em Heidelberg, já construiu com pauzinhos de fósforo a catedral de Colónia, a Torre Eiffel, o Empire State Building, a Universidade de Lomonossow e o castelo de Neuschwanstein, mas adiou para o tempo da reforma a construção da réplica do Vaticano, o seu verdadeiro sonho, mas que é demasiado, em simultâneo com o trabalho na Polícia. Estou curioso. Segui com interesse a evolução artística do meu amigo. Nos seus trabalhos mais antigos, os paus de fósforo são todos um pouco mais curtos. Nesse tempo, ele e a mulher separavam as cabecinhas de enxofre com uma lâmina de barbear; ele ainda não sabia que as fábricas de fósforos também vendem fósforos sem cabeça. Com os fósforos mais longos, as construções mais recentes ficaram com um ar um pouco gótico flamejante. Como a mulher já não tinha de o ajudar com os fósforos, começou a ler-lhe em voz alta durante o trabalho. Começou pelo Primeiro Livro de Moisés e está agora a ler O Archote, de Karl Kraus. O comissário-chefe Nãgelsbach é um homem culto. Telefonara-lhe de manhã e, às dez horas, quando cheguei ao seu gabinete na Polícia, fotocopiou-me o relatório. — Desde que a Protecção de Dados existe, já nenhum de nós sabe o que pode fazer. Por isso decidi deixar de saber o que não posso fazer — disse, e deu-me o relatório. Eram só umas poucas folhas. — Sabe quem é que investigou o acidente? — Foi o Hesseler. Já tinha adivinhado que iria querer falar com ele. Tem sorte, ele está cá hoje de manhã, e eu já o avisei. O Hesseler estava sentado diante da sua máquina de escrever e dactilografava penosamente. Nunca hei-de entender por que razão não ensinam os polícias a dactilografar como deve ser. Ou a intenção será torturar os suspeitos e as testemunhas com a contemplação do polícia dactilógrafo? É uma verdadeira tortura: o polícia trabalha sobre a máquina de escrever desamparada e violentamente, com um ar infeliz e encarniçado, ao mesmo tempo impotente e pronto para tudo — uma mistura altamente explosiva e inquietante. E mesmo quando não se é obrigado a fazer um determinado depoimento, é-se de qualquer maneira impedido de o alterar, uma vez feito, depois de redigido pelo polícia, mesmo que este o tenha deturpado totalmente. — Telefonou-nos alguém que passou pela ponte depois do acidente. O seu nome está no relatório. Quando chegámos, o médico tinha também acabado de chegar e descera até ao automóvel acidentado. Viu logo que não havia muito a fazer. Bloqueámos a estrada e protegemos os rastros. Não havia muito que proteger. Havia um rastro de travagem que mostra que o condutor travou e, ao mesmo tempo, guinou com o volante para a esquerda. Quanto à razão por que o fez, não existiam nenhuns indícios. Nada apontava para o


envolvimento de um outro automóvel: não havia fragmentos de vidro, nem restos de pintura, nem outras marcas de travagem, nada. Realmente, foi um acidente estranho, mas parece que o condutor perdeu o controlo da viatura. — Onde está o automóvel? — Na empresa de rebocadores do Beisel, atrás da Zweifar-benhaus. O perito examinouo, e penso que em breve vai ser transformado em sucata. Os custos de parqueamento já são mais elevados do que aquilo que vale como sucata. Agradeci-lhe. Passei pelo Nâgelsbach para me despedir. — Conhece a Hedda Gabler? — perguntou-me ele. — Como assim? — Ouvi ontem este nome, quando me liam Karl Kraus, e eu não compreendi se ela se suicidou afogando-se, com um tiro, ou de nenhuma das duas maneiras, e se o fez no mar ou debaixo de uma latada. Por vezes, o Karl Kraus tem uma escrita muito difícil. — Lembro-me apenas de que ela é uma heroína do Ibsen. Peça à sua mulher que lhe leia esse livro a seguir. Não faz mal nenhum interromper o Karl Kraus. — Vou falar com a minha mulher. Seria a primeira vez que interrompemos uma leitura. Depois fui de carro até ao Beisel. Ele não estava, um empregado seu mostrou-me a carcaça. — Sabe o que vai acontecer ao carro? É família? — Penso que vai ser transformado em sucata. O lado direito, visto por trás, parecia quase incólume. A capota tinha-se aberto e recolhido no acidente e voltara a ser armada, por causa da chuva, pela empresa de reboques ou pelo perito; estava intacta. A parte esquerda dianteira do carro estava totalmente metida dentro e lateralmente escancarada. O eixo e o bloco do motor haviam-se deslocado para a direita, o radiador ficara dobrado em V, o pára-brisas e os apoios da cabeça jaziam no banco de trás. — Ah, feito em sucata. O senhor bem vê que não se salva nada do carro. Ao dizer isto, olhou de uma maneira tão ostensiva para a aparelhagem que eu não pude deixar de reparar. Estava intacta. — Não vou tirar-lhe a aparelhagem. Mas poderia agora examinar o carro sozinho? Meti-lhe uma nota de dez marcos na mão e ele deixou-me. Dei mais uma volta ao carro. Estranho, o Mischkey colara no farol direito uma cruz negra de fita adesiva. Fiquei de novo fascinado com o lado direito, que parecia quase incólume. Foi quando olhei com mais atenção que encontrei as manchas. Não eram fáceis de ver sobre a pintura verde-garrafa, e também não eram muitas. Mas pareciam ser de sangue, e perguntei-me como teriam ido ali parar. Teriam retirado o Mischkey do carro por aquele lado? Teria o Mischkey chegado a sangrar? Ter-se-ia alguém ferido durante o resgate? Talvez não tivesse nenhuma importância, mas se fosse sangue interessava-me, e por isso peguei no meu canivete suíço e raspei um pouco da pintura, no sítio onde estavam


as manchas, para dentro da embalagem vazia de um rolo fotográfico. O Philipp analisaria a amostra. Abri a capota e observei o interior. Não encontrei nenhum sangue no assento do condutor. As bolsas laterais das portas estavam vazias. No tablier estava colado um São Cristóvão de prata. Arranquei-o — talvez a senhora Buchendorff gostasse de ficar com ele, mesmo que este não tivesse valido ao Mischkey. O auto-rádio recordou-me aquele sábado em que seguira o Mischkey de Heidelberg até Mannheim. Ainda tinha uma cassete dentro, que eu retirei e guardei no bolso. Não percebo muito de mecânica. Por isso prescindi de ficar ingenuamente a olhar para o motor, ou de rastejar para debaixo da carcaça. O que vira bastava-me para imaginar a colisão entre o automóvel e a vedação e a queda na linha de caminho-de-ferro. Tirei a minha pequena Rollei do bolso do casaco e bati algumas fotografias. No relatório que Nágelsbach me dera também as havia, mas distinguiam-se muito mal nas fotocópias.


4

Suei sozinho

De volta a Mannheim, fui primeiro ao hospital. Encontrei o gabinete do Philipp, bati à porta e entrei. Ele tentou esconder o cinzeiro com um cigarro fumegante dentro da gaveta da secretária. — Ah, és tu! — exclamou aliviado. — Prometi à enfermeiro-chefe que deixava de fumar. O que te traz aqui? — Quero pedir-te um favor. — Pede-mo durante o café, vamos à cantina. Ao seguir apressadamente à minha frente, com uma bata branca a adejar, dizendo qualquer coisa a todas as enfermeiras bonitas, parecia o Peter Alexander no papel de Conde Danilo. Na cantina continuou, dizendo-me algo ao ouvido sobre a enfermeira loira a três mesas de distância. Ela lançou-nos um olhar, um olhar azul de tubarão. Gosto do Philipp, mas quando, um dia destes, um tubarão parecido fizer dele refeição, será bem merecido. Tirei a embalagem de rolo fotográfico do bolso e coloquei-a à sua frente. — Claro que posso mandar revelar um filme no laboratório de radiologia. Mas que andes por aí a tirar fotos que não te atreves a mandar revelar numa loja de fotografias… Bem, Gerd, isso deixa-me siderado! Realmente, o Philipp só tinha uma coisa na cabeça. Também se tinha passado o mesmo comigo perto dos sessenta? Tentei recordar-me. Depois dos insípidos anos de casamento com a Klara, havia experimentado os primeiros anos de viuvez como uma segunda Primavera. Mas uma segunda Primavera cheia de romantismo — a bonvivanteriedo Philipp era-me estranha. — Errado, Philipp. Na embalagem está uma pequena quantidade de pó de pintura de um automóvel e mais alguma coisa, e preciso de saber se essa coisa é sangue, e, se possível, de que grupo sanguíneo. E isto não provém de uma qualquer desfloração que mantive guardada no meu frigorífico, como já estás a pensar, mas de um caso em que estou a trabalhar. — Uma coisa não exclui a outra. Mas não importa, eu farei o que for necessário. É muito urgente? Queres ficar à espera? — Não, telefono-te amanhã. A propósito, como é?, vamos outra vez beber um copo de vinho, um dia destes? Combinámos encontrar-nos no domingo à noite no Badischen Weinstuben. Quando saíamos juntos da cantina, ele começou de repente a correr. Uma ajudante de enfermeira, asiática, acabara de entrar no elevador. Ainda conseguiu lá chegar antes de as portas se fecharem.


No escritório fiz aquilo que já devia ter feito há muito tempo. Telefonei para o gabinete do Firner, troquei umas poucas palavras com a senhora Buchendorff e deixei que me passasse ao Firner. — Saúdo-o, senhor Selb! O que é que se passa? — Quero agradecer-lhe a cesta que me esperava no regresso das férias. — Ah, o senhor esteve de férias. Para onde foi? Contei-lhe do Egeu, do iate, e que vira um barco cheio de contentores das IQR no Pireu. Quando era estudante, ele havia percorrido o Peleponeso a pé com a mochila às costas, e agora, de vez em quando, tinha de ir à Grécia profissionalmente — Estamos a proteger a Acrópole da erosão, um projecto da UNESCO. — Diga-me, senhor Firner, como é que se desenvolveu o meu caso? — Seguimos o seu conselho e desacoplámos o registo de dados de emissão do nosso sistema. Fizemos isso logo a seguir a recebermos o seu relatório, e desde então não voltámos a ter nenhuma arrelia. — E o que fizeram ao Mischkey? — Há umas semanas ele esteve aqui durante um dia inteiro, e disse-nos muito sobre as ligações do sistema, os flancos a descoberto e as possibilidades de os tornarmos seguros. Um homem muito competente, esse. — Não comunicaram nada à Polícia? — Não nos pareceu oportuno. Da Polícia passa para a imprensa… e não nos interessa esse tipo de publicidade. — E os prejuízos? — Também pensámos nisso. Se está interessado em saber, alguns dos nossos senhores começaram por achar insuportável que simplesmente deixássemos o Mischkey em liberdade depois dos prejuízos que ele causou, da ordem dos cinco milhões de marcos. Mas, por fim, a razão económica prevaleceu sobre o ponto de vista jurídico. E também sobre a superioridade jurídica do Oelmúller e do Ostenteich, que queriam fazer um exemplo do processo do Mischkey e levá-lo ao Tribunal Constitucional. O que não era mal pensado: no Tribunal Constitucional deveria ser provado, com base no caso Mischkey, a que perigos as empresas estão sujeitas por causa do novo regulamento das emissões de poluentes. Mas também isso teria trazido publicidade indesejável. Além disso, chegam rumores do Ministério da Economia, em Karlsruhe, de que não será necessária outra diligência da nossa parte. — Então, tudo está bem quando acaba bem. — Isso parece cínico depois de se ter sabido que o Mischkey foi vítima de um acidente de viação. Mas o senhor tem razão, fazendo o balanço da situação, o assunto teve um final feliz para a fábrica. Voltaremos a vê-lo aqui? Eu não fazia ideia de que o general e o senhor eram velhos amigos. Foi ele que nos disse quando, há pouco tempo, eu e a minha mulher fomos jantar a sua casa. Conhece a casa da Rua Ludolf-Krehl?


Eu conhecia a casa do Korten em Heidelberg, uma das primeiras que havia sido construída tendo também em atenção a segurança pessoal e de bens, no final dos anos cinquenta. Ainda me recordava de como, uma noite, o Korten me mostrara, cheio de orgulho, o pequeno teleférico que ligava a casa, no cimo de uma encosta abrupta muito alta, sobre a estrada, ao portão da entrada. “Se a electricidade falhar, funciona com Um gerador de emergência”, dissera ele então. O Firner e eu despedimo-nos com umas quantas amabilidades. Já eram quatro horas, demasiado tarde para recuperar o almoço falhado e demasiado cedo para se jantar. Fui até à piscina de Herschel. A sauna estava vazia. Suei sozinho, nadei sozinho debaixo da cúpula alta com os mosaicos bizantinos, estive sozinho no banho romano-irlandês e no terraço. Enrolado no toalhão branco, adormeci na sala de repouso sobre a minha cadeira de descanso. O Philipp andava de patins pelos compridos corredores do hospital. As colunas por que passava eram pernas femininas bem torneadas. Por vezes, moviam-se. O Philipp afastava-se delas com um rosto risonho. Eu sorri para ele. Então, subitamente, vi a sua cara rasgada num grito. Acordei e pensei no Mischkey.


5 Hmm, bem, o que você quer dizer com bom? O proprietário do Café O expressou sua personalidade em um design de interiores que resumia tudo o que estava na moda no final dos anos setenta, das imitativas lâmpadas finde-siècle e do espremedor de suco de laranja manual para as pequenas mesas de bistrô com tampos de mármore. Eu não gostaria de conhecê-lo. Frau Mügler, a dançarina, reconheci-a pelo severo cabelo preto puxado para trás em um pequeno rabo de cavalo, sua feminilidade angular e seu olhar de sincero compromisso. Ela tinha ido tão longe quanto podia para se parecer com Pina Bausch. Estava sentada na janela, bebendo um copo de suco de laranja recém-espremido. — Selb. Nós conversamos ontem no telefone. — Ela olhou para mim com as sobrancelhas levantadas e assentiu quase imperceptivelmente. Eu me juntei a ela. — É bom para você aproveitar o tempo. Minha empresa de seguros ainda tem algumas dúvidas sobre o acidente de seu colega Herr Mencke, talvez você possa ajudar. — Por que escolheu a mim em particular? Eu não conhecia muito bem Sergej, não estou aqui em Mannheim a muito tempo. — Você é simplesmente a primeira a voltar de férias. Diga-me, o Sr. Mencke estava particularmente exausto ou nervoso nas últimas semanas antes do acidente? Estamos à procura de uma explicação para a sua natureza estranha. — Pedi um café; ela tomou outro suco de laranja. — Como eu disse, não o conhecia bem. — Alguma coisa atraiu sua atenção? — Ele parecia muito quieto, deprimido às vezes, mas o que você quer dizer com atrair atenção? Talvez ele fosse sempre assim, só estou aqui a seis meses. — Quem do Teatro Nacional de Mannheim o conhecia particularmente bem? — Hanne estava mais perto dele em algum ponto, até onde eu sei. E ele saia muito com Joschka, eu acho. Talvez eles possam ajudá-lo. — Herr Mencke era um bom dançarino? — Hmm, bem, o que você quer dizer com bom? Não era exatamente Nureyev, mas então não sou Bausch. Você é bom? Eu não sou Pinkerton, eu poderia ter respondido, mas isso não teria sido apropriado para o meu papel. — Você não encontrará outro investigador de seguros como eu. Você poderia me dar os sobrenomes de Hanne e Joschka? Eu poderia ter me salvado a respiração. Ela não estava lá há muito tempo; não esqueça. — No teatro estamos todos em termos do primeiro nome. Qual é o seu primeiro nome? — Hieronymus. Meus amigos me chamam de Ronnie.


— Eu não queria saber o que seus amigos te chamam. Acredito que os primeiros nomes têm algo a ver com a personalidade de alguém. Eu adoraria ter saído gritando. Em vez disso, agradeci, paguei a conta no balcão e deixei-me ir em silêncio.


6

Estética e Moral

Na manhã seguinte, telefonei à senhora Buchendorff. — Gostaria de ir a casa do Mischkey e ver as coisas dele. Consegue-me isso? — Vamos até lá os dois depois de eu sair do escritório. Quer que vá buscá-lo às quinze e trinta? A senhora Buchendorff e eu seguimos de carro pelas aldeias até Heidelberg. Era sextafeira, as pessoas saíam mais cedo do trabalho e arranjavam as casas, os pátios e os jardins, o carro, e algumas até preparavam os passeios do fim-de-semana. O Outono aproximavase. Senti o meu reumático chegar e preferiria andar de capota fechada, mas não queria parecer velho e não disse nada. Em Wieblingen, lembrei-me da ponte de caminho-de-ferro na estrada para Eppelheim. Iria lá num dos dias seguintes. Agora, com a senhora Buchendorff, o desvio parecia-me pouco próprio. — Por ali vai-se para Eppelheim — ela apontou para a direita, para trás da pequena igreja. — Sinto que um dia tenho de ir ver o local, mas ainda não consigo. Deixou o carro no sítio de estacionamento do mercado de cereais. — Avisei que viríamos. O Peter dividia a casa com um conhecido que trabalha na Universidade Técnica de Darmstadt. Embora tenha uma chave, não queria simplesmente irromper pela casa adentro. Ela não se apercebeu de que eu já conhecia o caminho para casa do Mischkey. Não tentei fazer o papel de ignorante. Ninguém respondeu à nossa campainhada, e a senhora Buchendorff abriu a porta da entrada. O vestíbulo estava impregnado do ar húmido e frio da cave. — A cave deste prédio entra dois andares dentro do monte. O chão era de pesadas lajes de arenito. Na parede de mosaicos coloridos de Delft, encostavam-se bicicletas. As caixas do correio já tinham sido todas arrombadas pelo menos uma vez. Janelas de vidros coloridos deixavam cair pouca luz sobre os degraus muito usados da escada. — Que idade tem o prédio? — perguntei enquanto subíamos ao segundo andar. — Umas centenas de anos. O Peter gostava muito dele. Já tinha vivido aqui quando era estudante. A parte da casa que o Mischkey ocupava era constituída por duas grandes divisões contíguas. — Não tem de ficar aqui enquanto eu dou uma vista de olhos, senhora Buchendorff. Podemos encontrar-nos no café daqui a bocado.


— Obrigada, mas eu consigo aguentar. O senhor sabe o que procura? — Hum… — Estava a tentar orientar-me. A primeira divisão era o escritório, com uma grande mesa à janela, piano e estantes em todas as paredes. Nas prateleiras, dossiers e pilhas de folhas impressas de computador. Pela janela, olhei para os telhados da cidade velha e para o Monte Santo. Na segunda assoalhada estava a cama coberta por uma colcha de remendos, três poltronas e uma mesa em forma de rim, um armário, uma televisão e uma aparelhagem, Da janela, vi à esquerda o caminho que subia para castelo, e à direita o cilindro publicitário atrás do qual eu estivera escondido, semanas antes. — Ele não tinha nenhum computador? — perguntei, admirado. — Não. Tinha todos os ficheiros pessoais no computador do CRI. Voltei-me para as prateleiras. Os livros versavam matemática, informática, electrónica e inteligência artificial, filmes e música. Ao lado, uma lindíssima edição de Gottfried Keller e pilhas de livros de ficção científica. As lombadas dos dossiers revelavam que se tratava de contas e de impostos, certificados de garantia e de instruções de utilização, de certificados e documentos, de viagens, do recenseamento da população e de coisas de informática difíceis de entender. Peguei no dossier com as contas e folheei-o. No dossier das cadernetas e certificados fiquei a saber que o Mischkey tinha ganho um prémio na quarta classe. Sobre a secretária havia uma pilha de papéis, pelos quais passei os olhos. Além da correspondência privada, de contas não pagas, de esboços de programações e de notas, encontrei um recorte de jornal. As IQR homenageiam o pescador mais idoso do Reno. Quando ontem saía para o trabalho, Rudi Balser, pescador do Reno que acabara de fazer 95 anos, foi surpreendido com uma condecoração das IQR aposta pelo senhor director-geral, o Dr. Dr. h. c. Korten. “Não quis deixar de felicitar pessoalmente este grande e velho senhor da pesca no Reno. Noventa e cinco anos e ainda fresco como um peixe no Reno.” A fotografia fixa o momento em que o senhor director-geral, o Dr. Dr. h. c. Korten, cumprimenta o agraciado e lhe oferece uma cesta… A fotografia mostrava nitidamente a cesta em primeiro plano; era exactamente igual à que eu havia recebido. Depois encontrei a cópia de um curto artigo de jornal de Maio de 1970. Cientistas — trabalhadores forçados nas IQR? O Instituto para a História Contemporânea aborda um assunto controverso. O último volume da série documental dos “Cadernos de um Quatro de Século de História Contemporânea” versa o trabalho forçado de cientistas judeus na indústria alemã, de 1940 a 1945. Segundo eles, e entre outros, ilustres químicos judeus tinham trabalhado em condições degradantes no desenvolvimento de substâncias químicas a utilizar na guerra. O assessor de imprensa das IQR remeteu nas fiara a planeada publicação comemorativa dos cem anos das IQR do ano de 1972, que conterá um artigo com a história da fábrica durante o Nacional-Socialismo e, por isso, referirá também esses “procedimentos trágicos”. Por que é que este assunto teria interessado ao Mischkey? — Pode vir aqui por um momento? — pedi à senhora Buchendorff, que estava sentada


numa poltrona da outra sala, olhando pela janela. Mostrei-lhe os artigos de jornal e perguntei-lhe se lhe faziam lembrar alguma coisa. — Sim, nos últimos tempos o Peter estava sempre a pedir-me informações sobre as mais variadas coisas que tinham a ver com as IQR. Nunca o tinha feito antes. Em relação ao assunto dos cientistas judeus, também tive de lhe arranjar uma fotocópia do artigo da nossa publicação comemorativa. — Ele nunca lhe explicou a razão do seu interesse? — Não, e eu também não o forcei a dizer coisa alguma sobre o assunto, porque nos últimos tempos era demasiado difícil conversarmos. Encontrei a fotocópia do artigo da publicação comemorativa no dossier “Reference Chart Webs”. Estava junto de impressões de computador. O /, o Qe o R tinham-me chamado a atenção quando lançara um resignado olhar de despedida às prateleiras. O dossier estava cheio de artigos de jornais e outros, alguma correspondência, algumas brochuras e impressões de computador. Tanto quanto conseguia perceber, todo aquele material tinha a ver com as IQR. — Posso levar este dossier, não posso? A senhora Buchendorff assentiu. Saímos da casa. No caminho de regresso, pela auto-estrada, a capota estava fechada. Eu tinha o dossier sobre os joelhos e sentia-me como um estudante de liceu. A senhora Buchendorff perguntou-me subitamente: — O senhor foi procurador do Ministério Público, senhor Selb. Por que deixou de o ser? Tirei um cigarro do maço e acendi-o. Quando o silêncio se havia tornado demasiado longo, disse: — Já lhe respondo, só preciso de um momento mais. Ultrapassámos um camião com lonas amarelas e a inscrição encarnada “Bem-estar”. Um grande nome para uma empresa de transportes. Passou por nós uma motorizada barulhenta. — Depois do fim da guerra já não me queriam lá. Eu tinha sido um nacional-socialista convicto, um membro activo do partido e um procurador do Ministério Público implacável que também tinha exigido e conseguido obter penas de morte. Houve alguns processos espectaculares. Eu acreditava na coisa e via-me como um soldado na frente de batalha: não podia ser mandado para a outra frente, depois do meu ferimento logo no início da guerra. O pior tinha passado. Por que não tinha, simplesmente, contado à senhora Buchendorff a versão ligeira? — Depois de 1945, fiquei primeiro na quinta dos meus sogros, depois no comércio de carvão, e depois comecei lentamente a trabalhar como detective privado. Para mim, o trabalho como procurador do Ministério Público já não tinha nenhuma perspectiva. Só me conseguia ver como advogado nacional-socialista, que eu havia sido e que não poderia continuar a ser de forma alguma. Tinha perdido a minha crença. Talvez não seja capaz de


imaginar como se pode acreditar no nacional-socialismo. Mas a senhora cresceu com um conhecimento que nós fomos adquirindo aos poucos, só depois de 1945. Pior foi para a minha mulher, que era uma bonita e loira nazi e que continuou a sê-lo, até se tornar numa anafada alemã-do-milagre-económico. Não queria contar mais sobre o meu casamento. — Mais ou menos no tempo da Wãhrungsreform,, começou-se a reintegrar os meus colegas incriminados. Nessa altura, eu Também podia ter retomado à justiça Mas apercebime do que os esforços de reintegração, e a reintegração em si mesma, estavam a fazer ao meus colegas. Em vez de culpa, tinham apenas a sensação de que o seu despedimento havia sido injusto e de que a reintegração era uma espécie de compensação. Isso repugnou-me. — Isso soa-me mais a Estética do que a Moral. — Vejo cada vez menos diferença entre elas. — Não consegue imaginar nada de bonito que seja imoral? — Compreendo do que está a falar, da Riefenstahl, “O Triunfo da Vontade”, etc. Mas, desde que me tornei mais velho, simplesmente já não encontro beleza nas coreografias de massas, na arquitectura imponente do Speer e dos seus epígonos, e no relâmpago atómico dos mil sóis. Estávamos diante da porta de casa, e eram quase sete horas da tarde. Gostaria de convidar a senhora Buchendorff para ir ao Kleinen Rosengarten. Mas não me atrevia. — Senhora Buchendorff, quer jantar comigo no Kleinen Rosengarten} — É muito amável, obrigada, mas não.


7

Uma mãe-cuco

Absolutamente contra o que é meu hábito, levara comigo, para o jantar, o dossier. — Trabalhar e comer não bom. Fazer estômago mal. O Giovanni fez um gesto, como se quisesse tirar-me o dossier. Eu agarrei-o com força. — Nós sempre a trabalhar, nós, alemães. Nada dolce vita. Pedi calamari com arroz. Prescindi do esparguete porque não queria sujar o dossier do Mischkey com nódoas de molho. Em compensação, salpiquei com Barbera a carta que o Mischkey enviara com um anúncio ao Mannheimer Morgen. Historiador da Universidade de Hamburgo procura testemunhos de trabalhadores e empregados nas IQR antes de 1948, para estudo histórico social e económico. Discrição e reembolso de despesas. Respostas para a caixa postal nº 379628. Encontrei onze respostas, algumas escritas à mão com uma letra tremida, outras cuidadosamente dactilografadas, que haviam reagido ao anúncio com pouco mais do que o nome, a morada e o número de telefone. Uma delas vinha de São Francisco. Não constava do dossier a informação de que ele tivesse feito alguma coisa com os contactos. O dossier não continha nenhuma observação do Mischkey, nenhuma pista explicando por que tinha ele reunido aqueles documentos e o que tencionava fazer com eles. Encontrei o artigo do número comemorativo fotocopiado pela senhora Buchendorff, e ainda um pequeno folheto de um grupo de base químico, “100 anos de IQR— 100 anos bastam”, com artigos sobre acidentes de trabalho, repressões de greves, lucros de guerra, interdependências do Capital e da Política, trabalhos forçados, perseguição dos sindicatos e financiamentos de partidos políticos. Até havia um artigo sobre as IQR e as Igrejas com a fotografia de Múller, o Bispo do Reich, diante de um grande balão de Erlenmeyer. Lembrei-me de que conhecera, durante o meu tempo de estudante em Berlim, uma rapariga de apelido Erlenmeyer. Era muito rica, e o Korten pensava que ela era descendente da família do pai do referido balão. Eu acreditara nele, era impossível não reparar na semelhança. O que seria feito do bispo Múller? Os artigos de jornal do dossier iam até 1947. Eram todos sobre as IQR, de resto pareciam ter sido juntos ao acaso. As fotografias, por vezes mal se vendo nas cópias, mostravam o Korten, primeiro como simples director, depois como director-geral; mostravam os seus antecessores, o director-geral Weismúller, que se reformara pouco tempo depois de 1945, e o director-geral Tyberg, que o Korten substituíra em 1967. Do aniversário dos cem anos, o fotógrafo fixara o momento em que o Korten recebia os parabéns do Kohl, ao lado do qual parecia pequeno, frágil e distinto. Nos artigos, falava-se de balanços, de carreiras e de produtos e novamente de acidentes e avarias. O Giovanni levantou o meu prato e serviu-me uma Sambuca sem dizer palavra. Pedi um café. Na mesa ao lado estava sentada uma mulher com cerca de quarenta anos que lia a


Brigitte. Reparei que o título era “Esterilização — e agora?”. Cobrei ânimo. — Sim, então e agora? — Desculpe? Olhou-me irritada e pediu um Amaretto. Perguntei-lhe se costumava ir ali. — Sim — respondeu —, depois de sair do trabalho costumo vir sempre aqui comer. — Esterilizou-se? — Imagine o senhor que sim, esterilizei-me. E depois disso tive uma criança, um miúdo muito querido. Pousou a Brigitte. — Fantástico — disse eu. — E a Brigitte fala desses casos? — Este caso não aparece lá. Trata muito mais de mulheres e homens infelizes, que descobrem o seu desejo de terem filhos depois de se terem esterilizado. Bebeu um golinho do Amaretto. Eu mastiguei um grão de café. — O seu filho não gosta de comida italiana? O que faz ele à noite? — Importar-se-ia que eu me sentasse à sua mesa, em vez de gritar a resposta ao restaurante todo? Levantei-me, afastei a cadeira convidativamente para ela se sentar e disse que gostaria muito se ela… — ora bem, tudo aquilo que se costuma dizer nestas ocasiões. Ela trouxe o copo e acendeu um cigarro. Observei-a com mais atenção, os olhos um pouco cansados, o traço obstinado em redor da boca, as muitas pequenas rugas, o baço cabelo louro claro, um brinco numa das orelhas, um adesivo na outra. Se não tivesse cuidado, daqui a três horas estaria com a mulher na cama. E eu queria ter cuidado? — Para responder à sua pergunta: o meu filho está no Rio, a viver com o pai. — O que faz ele lá? — O Manuel tem agora oito anos e anda numa escola no Rio. o pai estudou em Mannheim. Quase casei com ele por causa da autorização de residência. Quando a criança apareceu, ele teve de voltar para o Brasil e concordámos em que ele a levaria consigo. Lancei-lhe um olhar desconcertado. — Agora o senhor está a pensar que eu sou uma mãe-cuco. Mas foi por alguma razão que me esterilizei. Ela tinha razão. Eu achava que ela era uma mãe-cuco, de qualquer maneira era uma estranha vontade de continuar o flirt. Quando fiquei calado durante um longo momento, ela perguntou-me — Por que razão ficou Interessado no assunto da esterilização? — Foi uma associação que fiz a partir do título de destaque da Brigitte. Depois interessou-me a maneira racional como a senhora abordou a questão. Agora, é-me demasiado racional o modo como fala do seu filho. Talvez eu seja demasiado antiquado


para esse tipo de racionalidade. — A racionalidade não é partilhável. É pena que os preconceitos se confirmem sempre. Pegou no copo e fez menção de se ir embora. — Diga-me só o que lhe ocorre quando se fala nas IQR. Ela olhou-me friamente. — Compreendo que a pergunta lhe pareça estranha. Mas neste momento as IQR ocupam-me durante o dia inteiro e, por serem tantas as árvores, não consigo ver a floresta. Ela respondeu com sinceridade. — Ocorrem-me muitas coisas. Também lhas vou contar porque algo me agradou em si. Para mim, as IQR significam Indústrias Químicas do Reno, pílulas contraceptivas, ar envenenado e água envenenada, poder, Korten… — Como assim, Korten? — Fiz-lhe massagens. É que eu sou masseurin. — Masseurin? Pensei que se dissesse masseuse. — As masseuses são as nossas pouco castas irmãs. O Korten Bio consultar-me durante seis meses por causa de um problema nas costas, e durante a massagem falava um pouco dele e do seu trabalho. Por vezes tínhamos discussões. Uma vez, ele afirmou: “Não é condenável usarmos as pessoas; é apenas pouco delicado deixar que elas se apercebam disso”. Isso deu-me que pensar durante muito tempo. — O Korten era meu amigo. — Porquê “era”? Ele ainda é vivo. Sim, porquê “era”? Teria eu entretanto enterrado a nossa amizade? “Selb, o nosso coraçãozinho de manteiga” — esta frase voltara-me constantemente à memória no Egeu e escorregara-me pelas costas abaixo num arrepio gelado. Recordações enterradas tinham voltado a surgir e haviam-se misturado com fantasias, penetrado como sonhos no sono. Acordara de um sonho com um grito e banhado em suor: o Korten e eu dávamos um passeio pela Floresta Negra — eu tinha a certeza de que era a Floresta Negra, apesar dos grandes penhascos e dos precipícios fundos. Éramos três: um colega de turma, o Kimski ou o Podei, também estava connosco. O céu era azul profundo, o ar pesado e ao mesmo tempo de uma transparência irreal. De repente, umas pedras soltaram-se e ricochetearam sem ruído encosta abaixo, e nós ficámos pendurados numa corda que estava a romper-se. Acima de nós estava o Korten, e olhava-me, e eu sabia o que ele esperava de mim. Caíram ainda mais rochedos para o vale, silenciosamente; eu tentei agarrar-me com as unhas, firmar a corda e puxar o terceiro para cima. Não o consegui, vieram-me aos olhos lágrimas de impotência e de desespero. Tirei o canivete e comecei a cortar a corda abaixo de mim. “Tenho de o fazer, tenho de o fazer”, pensei, e cortei-a. O Kimski ou o Podei precipitou-se para as profundezas. Eu consegui ver tudo ao mesmo tempo, os braços a esbracejar, cada vez mais pequenos e mais longe, a indulgência e a troça nos olhos do Korten, como se tudo não passasse de uma brincadeira. Agora ele já conseguia içar-me e, quando me tinha puxado quase até si, soluçante e arranhado, voltou a dizer: “Selb, o nosso coraçãozinho de


manteiga”, e a corda partiu-se e… — O que é que se passa consigo? A propósito, como é que se chama? O meu nome é Brigitte Lauterbach. — Gerhard Selb. Se não tem carro… Permite-me que a leve a casa, depois desta noite acidentada, no meu acidentado Opel? — Claro, com prazer. Senão teria de ir de táxi. A Brigitte vivia na Rua Maxjoseph. O beijo de despedida em ambas as bochechas transformou-se num longo abraço. — Não queres mesmo subir, meu tolinho? Com uma mãe-cuco esterilizada?


8

Um sangue comezinho

Enquanto ela ia buscar o vinho ao frigorífico, fiquei de pé na sala, com o acanhamento da primeira vez. Nessas situações somos sensíveis àquilo que não bate certo: os periquitos na gaiola, o poster dos Peanuts na parede, Fromm e Simmel na estante, Roger Whittaker no gira-discos. A Brigitte não tinha culpa nenhuma; contudo, a sensibilidade estava ali — no final de contas, não está ela presente no fundo de cada um de nós, aconteça o que acontecer? — Posso fazer um telefonema? — gritei para dentro da cozinha. — Claro. O telefone está na gaveta de cima da cómoda. Abri a gaveta e marquei o número do Philipp. Tive de esperar que tocasse oito vezes até ele atender. — Estou? — a sua voz soava algo pastosa. — Philipp? E o Gerd. Espero estar a incomodar-te. — Exactamente, meu grande e bizarro bisbilhoteiro. Sim, era sangue, do grupo O, factor Rhesus negativo, um sangue comezinho, por assim dizer, idade da amostra entre duas a três semanas. Queres mais alguma coisa? Desculpa-me, mas estão a exigir o máximo de mim. Tu viste-a, ontem, a pequena indonésia no elevador. Ela trouxe uma amiga. Toda a acção está aqui e agora! A Brigitte entrara na sala com uma garrafa e dois copos, enchera-os e dera-me um. Eu dera-lhe o outro auscultador do telefone, e a Brigitte olhou-me divertida quando o Philipp disse as últimas frases. — Conheces alguém na morgue de Heidelberg, Philipp? — Não, ela não trabalha com o médico-legista. Trabalha no McDonald’s. Porquê? — Eu não quero saber o grupo sanguíneo do BigMac, mas sim o do Peter Mischkey, que foi autopsiado pelo médico-legista de Heidelberg. E queria saber se tu consegues saber qual é. Essa é a razão. — Isso não tem de ser agora, pois não? Vem antes até cá, e amanhã ao pequeno-almoço falamos disso. Mas traz uma contigo. Eu não me ando para aqui a esforçar, para tu depois chegares e colheres os louros. — Tem de ser asiática? A Brigitte riu-se. Pus o braço ao redor dela. Ela encostou-se a mim timidamente. — Não, em minha casa é como no bordel de Mombaça: todas as raças, todas as classes, todas as cores, todos os mesteres. E, se quiseres mesmo vir, traz algo para beber.


Desligou o telefone. Eu pus o outro braço em redor da Brigitte. Ela deitou-se para trás nos meus braços e olhou-me. — E agora? — Agora vamos levar a garrafa e os copos e os cigarros e a música connosco para o quarto e deitamo-nos na cama. Ela deu-me um beijo ao de leve e disse com voz envergonhada: — Vai andando, eu já lá vou ter. Foi para a casa de banho. Encontrei, no meio dos discos, um do George Winston, pu-lo no gira-discos, deixei a porta do quarto aberta, acendi a luzinha do candeeiro da mesa-decabeceira, despi-me e deitei-me na cama dela. Senti-me um pouco embaraçado. A cama era larga e cheirava a lavado. Se não dormíssemos bem naquela noite, seria apenas por nossa culpa. A Brigitte entrou no quarto, nua, só com o brinco na orelha direita e o adesivo no lóbulo da esquerda. Estava a assobiar ao som da música do George Winston. Era um pouco larga de mais nas ancas, tinha seios que, com a melhor boa vontade, não conseguiam deixar de se inclinar suavemente para baixo pelo seu tamanho, ombros largos e clavículas salientes que lhe conferiam algo de vulnerável. Enfiou-se debaixo da coberta e na dobra do meu braço. — O que é que tens na orelha? — perguntei-lhe. — Oh — riu-se ela, nervosamente —, quando estava a pentear-me, penteei o brinco da orelha, por assim dizer. Não me doeu, mas quase me esvaí em sangue. Depois de amanhã tenho uma consulta no cirurgião. Vai cortar a ferida de maneira a pô-la como deve ser. — Importas-te que eu te tire o outro brinco? Senão fico com medo de o arrancar sem querer. — És assim tão impetuoso? — e tirou ela mesma o brinco. — Anda, Gerhard, deixa que te tire a pulseira do relógio. Foi bom sentir como ela se inclinava sobre mim e tocava no meu braço. Puxei-a para mim. A sua pele era lisa e perfumada. — Estou cansada — disse com uma voz ensonada. — Contas-me uma história para adormecer? Sentia-me bem. — Era uma vez um pequeno cuco. Tinha, como todos os Cucos, uma mãe. Ela deu-me um beliscão. — A mãe era castanha e bonita. Era tão castanha que todos os outros cucos eram amarelos ao lado dela, e era tão bonita que todos os outros eram feios ao lado dela. Ela própria não o sabia. O filho dela, o pequeno cuco, via-o e sabia-o bem. Sabia ainda muito mais: que castanho e bonito é melhor do que amarelo e feio, que os pais-cuco são tão bons ou tão maus como as mães-cuco, que se pode estar errado no lugar certo e estar certo no lugar errado. Um dia, depois da escola, o pequeno cuco perdeu-se. Disse para si próprio


que nada poderia acontecer-lhe: voando numa direcção, teria de encontrar o pai e na outra, a mãe. Contudo, tinha medo. Via debaixo de si uma terra muito grande com aldeias pequeninas e enormes lagos a brilhar. Eram engraçados de ver, mas assustadoramente desconhecidos. Ele voou e voou e voou… A respiração da Brigitte tornara-se regular. Aninhou-se melhor no meu braço e começou a ressonar baixinho com a boca ligeiramente aberta. Tirei cuidadosamente o braço de debaixo da sua cabeça e apaguei a luz. Ela deitou-se de lado. Eu também, e ficámos deitados como colherzinhas na gaveta dos talheres. Quando acordei, passava pouco das sete, e ela ainda dormia. Esgueirei-me do quarto, fechei a porta atrás de mim, procurei e encontrei a máquina do café, pu-la a funcionar, vesti a camisa e as calças, tirei de dentro da cómoda o molho de chaves da Brigitte e fui comprar croissants à Rua Ròtter. Cheguei com o tabuleiro e o café e os croissants à cama antes de ela acordar. Foi um bom pequeno-almoço. E também foi bom metermo-nos os dois outra vez debaixo dos lençóis. Depois, ela teve de ir ocupar-se dos seus doentes de sábado de manhã. Eu queria deixá-la no consultório, no Centro Collini, mas ela preferiu ir a pé. Não combinámos nada. Mas, quando nos abraçámos diante da porta de casa, quase não conseguimos largar-nos.


9

Indeciso, sem saber o que fazer

Há muito tempo que eu não passava a noite em casa de uma mulher. A seguir, o regresso a casa é como o regresso à cidade onde vivemos, depois das férias. Um curto lapso em que nos sentimos pairar, antes de voltarmos a ser possuídos pelo quotidiano. Fiz um chá contra o reumatismo, apenas por prevenção, e voltei a imergir no dossier do Mischkey. Comecei pela fotocópia do artigo de jornal que estava em cima da secretária do Mischkey e que eu enfiara no dossier. Li o artigo correspondente à publicação comemorativa com o título “Os doze anos negros”. Tratava muito resumidamente dos trabalhos forçados de químicos judeus. Sim, eles tinham existido, mas as IQR tinham sofrido tanto como os químicos judeus por causa daquela situação imposta. De maneira diferente das outras grandes empresas alemãs, logo que a guerra acabou, os trabalhadores forçados haviam sido generosamente compensados. O autor apresentava como referência a África do Sul, onde qualquer tipo de trabalho forçado é estranho à natureza das empresas industriais modernas. De resto, fora possível diminuir o seu sofrimento nos campos de concentração através do trabalho na fábrica; era possível provar que a taxa de sobrevivência dos trabalhadores forçados nas IQR era mais elevada do que a taxa de sobrevivência média da população dos campos de concentração. O autor tratava longamente a participação das IQR na Resistência, recordava os trabalhadores comunistas condenados e descrevia pormenorizadamente o processo contra o futuro director-geral Tyberg e o seu então colaborador Dohmke. O processo voltou-me à memória. Naquele tempo, eu conduzira a investigação; a acusação fora representada pelo meu chefe, o Promotor da Justiça Sòdelknecht. Os dois químicos das IQR foram condenados à morte por sabotagem e por uma qualquer violação das Leis da Raça de que já não me recordo. O Tyberg conseguiu fugir, o Dohmke foi executado. Tudo isto deve ter-se passado no final de 1943, princípio de 1944. No início dos anos cinquenta, o Tyberg regressou dos Estados Unidos da América, depois de ter tido um rápido êxito com uma empresa química que entretanto criara, e voltou aos quadros das IQR, ascendendo pouco depois a director-geral. Uma grande parte dos artigos de jornal tratava do incêndio de Março de 1978. A imprensa fixara os prejuízos em quarenta milhões de marcos, não referira mortos nem feridos, e repetira as declarações das IQR segundo as quais o veneno libertado pela combustão dos pesticidas era absolutamente inofensivo para o organismo humano. Essas afirmações da Indústria Química fascinam-me: um veneno destrói as baratas que, segundo todas as previsões, sobreviverão ao holocausto atómico, e para nós, homens, esse mesmo veneno não é mais perigoso do que o fumo de um churrasco. Para além disto, apareceu no Stadts-treicher uma notícia do grupo Die Chlorgrúnen segundo a qual durante o incêndio teria havido libertação de gases venenosos como o TCDD, hexaclorofeno e tricloroetileno. Muitos trabalhadores acidentados teriam sido evacuados para a clínica da fábrica, em Luberon, pela calada da noite. Depois havia ainda uma série de fotocópias e de recortes sobre a participação de capitais das IQR e de uma reclamação do Bundeskartellamf, sem


consequências de maior, respeitante ao papel da fábrica no mercado farmacêutico. Fiquei durante muito tempo sentado diante das impressões do computador, sem saber o que fazer. Encontrei dados, nomes, números, gráficos e abreviaturas incompreensíveis para mim, como BAS, BOE e HST. Seriam as impressões das bases de dados que o Mischkey desenvolvera para ele mesmo no CRI? Tinha de falar com o Gremlich. Às onze, comecei a telefonar para os números que se encontravam nas cartas de resposta ao anúncio do Mischkey. Eu era o professor Selk da Universidade de Hamburgo, e pretendia retomar os contactos que o meu colega havia recolhido para o projecto de investigação de História Económica e Social. Os meus interlocutores mostraram-se espantados; o meu colega havia-lhes dito que os seus testemunhos orais não interessavam para o projecto de investigação. Fiquei irritado; telefonema após telefonema, os mesmos resultados que não conduziam a lado nenhum. Ainda assim, consegui saber por alguns que o Mischkey não dera nenhum valor aos seus testemunhos porque apenas haviam começado a trabalhar para as IQR depois de 1945. Estavam indignados porque bastaria o meu colega ter posto no anúncio do jornal o ano do fim da guerra, como limite, para que pudessem ter sido poupados à maçada da resposta. “Falava-se em reembolso das despesas. Vamos receber agora o nosso dinheiro de volta?” Mal acabara de desligar o telefone, este voltou a tocar. — És muito difícil de apanhar. Com que mulher é que estiveste a falar durante tanto tempo? A Babs queria ter a certeza de que eu não esquecera a nossa combinação de irmos ao concerto nessa noite. — Levo a Rõschen e o Georg comigo. Gostaram tanto da Diva que não querem deixar escapar a oportunidade de verem I Wilhelmenia Fernandez. Claro que eu já me tinha esquecido do combinado. E uma parte do meu cérebro perderase em divagações durante o estudo dos documentos do dossier e considerara a questão de incluir, ou não, a Brigitte nessa noite. Ainda haveria bilhetes? — Quando faltar um quarto para as oito, no Rosengarten? Talvez leve alguém comigo. — Então sempre era uma mulher ao telefone. É bonita? — Gosto dela. Foi apenas por uma questão de terminar o que havia começado que escrevi a Vera Múller, para São Francisco. Não havia nada que eu pudesse perguntar-lhe directamente. Talvez o Mischkey lhe tivesse feito perguntas concretas e era exactamente isso que tentava descobrir na minha carta. Peguei nela e fui à Estação Principal dos Correios, na Praça Parade. No caminho de regresso, comprei cinco dúzias de caracóis para depois do concerto. Para o Turbo, arranjei fígado fresco; sentia-me culpado por o ter deixado sozinho na noite anterior. Novamente em casa, tencionava fazer uma sanduíche com sardinhas, cebola e azeitonas. A senhora Buchendorff impediu-me. Ela tivera de ir ao escritório naquela manhã para escrever qualquer coisa para o Firner, passara no caminho de regresso pela cervejaria Traber da Rua Zollhof e tinha a certeza absoluta de ter reconhecido um dos indivíduos que


espancara o Mischkey no cemitério Ehren. — Estou numa cabina telefónica. Acho que ele ainda não saiu dali. Pode vir já? Se ele sair de carro, eu sigo-o. Se eu já cá não estiver, volte para casa novamente, eu telefono-lhe quando puder. — A sua voz esganiçou-se. — Meu Deus, rapariga, não faças nenhum disparate. Basta assentar o número da matrícula do carro. Vou já para aí.


10

O Fred faz anos

Nas escadas, quase atropelei a senhora Weiland, e quando arranquei quase levei o senhor Weiland comigo. Passei pela estação dos caminhos-de-ferro e pela ponte KonradAdenauer, por peões empalidecidos e semáforos avermelhados. Cinco minutos depois, ao parar na Rua Zollhof, diante da cervejaria Traber, o carro da senhora Buchendorff ainda estava estacionado do outro lado da rua, no local onde era proibido parar. Dela, não havia rasto. Saí do carro e entrei na taberna. Um balcão, duas, três mesas, uma jukeboxe flippers, cerca de dez clientes e a patroa. A senhora Buchendorff tinha uma imperial numa mão e uma bulette na outra. Sentei-me ao seu lado, no balcão. — Olá, Judith. Também estás por cá hoje? — Olá, Gerhard. Bebes uma imperial connosco? Pedi duas bulettes para acompanhar a imperial. O tipo ao lado dela disse: — As bolas de carne são feitas pela mãe da patroa. A Judith apresentou-mo. — Este é o Fred. Um vienense de gema. Diz que tem algo para festejar. Fred, este é o Gerhard. Ele já tinha festejado valentemente. Com a ligeireza prejudicada do bêbado, deslocou-se até kjukebox, apoiou-se nela durante a escolha dos discos como se não houvesse nenhum que lhe interessasse e, quando regressou, postou-se entre a Judith e eu. — A patroa, a nossa Silvia, também é austríaca. Por isso é que eu prefiro festejar os meus anos no estaminé dela. E vejam só, aqui está o meu presente de anos. Fez uma festa no rabo da Judith com a mão bem aberta. — O que fazes profissionalmente, Fred? — Mármore e vinho tinto, import-export. E tu? — Trabalho no ramo da segurança, segurança de pessoas e bens, guardas, guardacostas, cães de guarda, etc. Poderíamos ter precisão de um tipo com o teu cabedal. Só terias de ir mais devagar com o álcool. — Ora, ora, segurança — pousou o copo. — Não há nada mais seguro do que um cu firme. Não é verdade, queridinha? Lançou também a outra mão ao rabo da Judith. Ela voltou-se, bateu com toda a força nos dedos do Fred, olhando-o com um ar traquinas. Aquilo doeu-lhe, ele tirou as mãos, mas não lhe levou a mal. — E o que estás a fazer aqui, para a segurança? — Procuro pessoas para um trabalho. Está uma pipa de massa em jogo: para mim, para


as pessoas que encontrar, e para o empregador para o qual estou a procurar as pessoas. O rosto do Fred deixou transparecer interesse. Talvez porque naquele momento as suas mãos não pudessem ter nada que fazer no rabo da Judith, batia com o grosso dedo indicador no meu peito. — Isso não é demasiado big para ti, avôzinho? Agarrei na mão dele, empurrei-a para baixo, dobrando o indicador todo para trás e olhando-o ingenuamente nos olhos. — Quantos anos fazes, Fred? Afinal não és o homem certo para mim? Não faz mal, eu pago-te uma. O rosto do Fred estava desfigurado num esgar de dor. Quando o larguei, hesitou durante um breve momento. Deveria atirar-se a mim ou beber uma cerveja comigo? Então o seu olhar caiu na Judith, e eu soube o que iria acontecer. O seu “Bem, então embora, mais uma cerveja” foi a abertura para o murro que me apanhou à esquerda, no tórax. Mas eu já tinha o meu joelho cravado entre as suas pernas. Ele dobrou-se, as mãos nos testículos. Quando voltou a endireitar-se, o meu punho direito apanhou-o com toda a força, em cheio no nariz. Levantou rapidamente as mãos para proteger a cara, voltou a baixá-las e olhou incrédulo para o sangue nas suas mãos. Agarrei no seu copo e despejei-o em cima da sua cabeça. — Saúde, Fred. Ajudith tinha-se posto de lado, os outros clientes mantinham-se desinteressados. Só a patroa se batia na linha da frente. — Para fora! Se querem confusão, vão lá para fora! — disse ela, e começou logo a empurrar-me em direcção à saída. — Mas, minha querida, não reparou que estamos apenas a brincar? Já fizemos as pazes, não é verdade, Fred? O Fred limpou o sangue dos lábios. Assentiu com a cabeça e olhou em volta, procurando ajudith. A patroa convencera-se, com um olhar rápido pela sua taberna, de que a calma e a ordem voltara outra vez. — Bem, então vou servir-vos uns bagacinhos — disse ela, apaziguadoramente. Já tinha novamente a taberna sob controlo. Enquanto ela se atarefava atrás do balcão e o Fred se sumia na casa de banho, ajudith veio ter comigo. Olhou-me com ar apreensivo. — Ele era um dos dois no cemitério Ehren. Está tudo em ordem? Falava em voz baixa. — Embora ele me tenha partido as costelas, se daqui em diante me chamares Gerd, consigo sobreviver — respondi. — Nesse caso poderia chamar-te simplesmente Judith.


Ela sorriu. — Acho que estás a aproveitar-te da situação, mas não quero ser má. Imaginei-te neste preciso momento de gabardina. — E? — Não precisas de nenhuma — disse. O Fred voltou da casa de banho. Vinha com um ar pesaroso treinado diante do espelho e até pediu desculpa. — Para a tua idade, nem estás muito mal. Lamento ter passado das marcas. Sabem, na verdade não é nada simples envelhecer sem família, e sempre que faço anos isso bate-me fundo. Sob a capa de simpatia do Fred, ardiam a maldade e o charme manhoso cheio de segundas intenções de chulo vienense. — As vezes perco a cabeça, Fred. Aquilo com a cerveja foi perfeitamente desnecessário. Já não posso voltar atrás — ele ainda tinha os cabelos encharcados e colados —, mas não fiques zangado comigo. Só quando há mulheres em jogo é que me torno sacana. — O que vamos fazer agora? — perguntou a Judith, abrindo muito os olhos com um ar inocente. — Primeiro levamos o Fred, depois levo-te a casa — decidi. A patroa veio em meu socorro. — Então, Fred, que sorte, hein? Vão levar-te a casa. Podes vir buscar o teu carro amanhã cedo. Vens de táxi. Enfiámos o Fred no meu carro. A Judith seguiu-nos. O Fred disse que vivia em Jungbusch, “na Rua Werft, mesmo ao pé da antiga esquadra da Polícia, sabes”, e queria que o deixasse logo ali na esquina. Não me interessava o sítio onde ele não vivia. Passámos a ponte para o outro lado. — Na tua grande história, há alguma coisinha para mim? Também já trabalhei em coisas de segurança, até para uma grande fábrica daqui — disse ele. — Podemos falar sobre isso uma outra vez. Se quiseres, posso arranjar-te trabalho. Telefona-me. Pesquei um cartão de visita do bolso do casaco, um dos verdadeiros, e dei-lho. Deixei-o na esquina, e ele dirigiu-se com passos oscilantes para a taberna mais próxima. Ainda tinha o carro da Judith no espelho retrovisor. Passei pela circular e virei na torre do depósito de água para o Centro Augusta. Esperava que ela me lançasse um sinal de despedida atrás do Teatro Nacional, com as luzes dos faróis, e que depois desaparecesse. Seguiu-me até à porta de casa, na Rua Richard Wagner, e esperou-me com o motor a trabalhar enquanto eu estacionava. Saí do carro, fechei-o e dirigi-me a ela. Foram apenas sete passos, e neles pus tudo o que havia cultivado em superioridade masculina na minha segunda Primavera. Inclinei-me


para a sua janela, não me poupando ao reumatismo, e indiquei com a esquerda o lugar de estacionamento livre mais próximo. — Vens lá a casa beber um chá, não é verdade?


11

Obrigada pelo chá

Enquanto eu fazia o chá, a Judith andava de um lado para o outro na cozinha e fumava. Ainda estava muito exaltada. — Um badameco daqueles — dizia —, um badameco daqueles. E pensar que tive tanto medo dele, daquela vez no cemitério Ehren. — Daquela vez, ele não estava sozinho. E, sabes, se eu o tivesse deixado tomar balanço, também teria tido mais medo. É um menino que já deu cabo de alguns à pancada. Levámos o chá connosco para a sala. Recordei-me do pequeno-almoço com a Brigitte e fiquei contente por não ter essa loiça suja na minha cozinha. — Ainda não sei se vou aceitar este teu caso. Pensa lá bem se devo assumi-lo. Já investiguei uma vez as coisas do Peter Mischkey, contra ele. Fui eu que provei a sua culpabilidade quando ele entrou no sistema informático das IQR. Contei-lhe tudo. Ela não me interrompeu. O seu olhar estava cheio de sofrimento e de censura. — Não aguento a censura no teu olhar. Fiz o meu trabalho. e dele também faz parte utilizar os outros, desmascará-los, provar a sua culpabilidade, mesmo quando simpatizamos com eles. — Sim, e então? Porquê a grande confissão? Tenho a impressão de que pretendes a minha absolvição. Respondi à sua expressão magoada e desaprovadora. — Tu és minha cliente, e gosto que a relação entre mim e os meus clientes seja transparente. Podes perguntar-me por que razão não te contei esta história logo. Eu… — Isso gostaria eu realmente de saber. Mas, na verdade, não me apetece ouvir as coisas polidas, cobardes e desleais que agora irias dizer-me. Obrigada pelo chá. Agarrou na mala e levantou-se. — Quanto lhe devo pelo seu trabalho? Mande-me a conta. Também eu me levantei. No corredor, quando ela quis abrir a porta, tirei-lhe a mão da maçaneta. — Sabes que me preocupo contigo. E o teu interesse em esclarecer o assunto do Mischkey ainda não terminou. Não te vás embora assim. Ela havia deixado a sua mão na minha enquanto eu falava. Depois tirou-a e saiu sem dizer nada. Fechei a porta da rua. Tirei de dentro do frigorífico o frasco das azeitonas e sentei-me na varanda. O sol brilhava, e o Turbo, que andara a vagabundear pelos telhados, enrolou-


se no meu colo a ronronar. Era apenas por causa das azeitonas; dei-lhe umas quantas. Da rua, ouvi a Judith a ligar o motor do Alfa. O motor acelerou, depois morreu. Voltaria aqui? Uns segundos depois voltou a ligá-lo e foi-se embora. Consegui não pensar em se me teria comportado como devia ser, e saboreei cada uma das azeitonas. Eram das pretas, gregas, que sabem a almíscar, a fumo e a terra pesada. Depois de uma hora sentado na varanda, fui para a cozinha e preparei a manteiga com ervas aromáticas para comer com os caracóis depois do concerto. Eram cinco horas da tarde, telefonei à Brigitte e deixei o telefone tocar dez vezes. Enquanto passava a ferro a camisa, ouvi a Wally e antecipei com prazer a Wilhelmenia Fernandez. Fui à cave buscar umas garrafas de mesling da Alsácia e pu-las no frigorífico.


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A lebre e ao ouriço

O concerto foi na sala Mozart. Os nossos lugares eram na fila seis, um pouco para a esquerda, de maneira que a nossa vista da cantora não era obstruída pelo maestro. Quando me sentei, olhei em volta. Um público agradavelmente variado: desde senhoras e senhores mais idosos, a jovens que mais depressa esperaríamos ver em concertos rock. A Babs, a Ròschen e o Georg chegaram num estado de espírito completamente parvo; mãe e filha estavam sempre a aproximar as cabeças e riam-se à socapa, o Georg enchia o peito e enfunava as penas. Sentei-me entre a Babs e a Ròschen, fiz festas no joelho esquerdo de uma e no direito da outra. — Pensei que ias trazer contigo uma mulher para lhe fazeres festinhas, tio Gerd. A Roschen pegou na minha mão com a ponta dos dedos e deixou-a cair ao lado do seu joelho. Trazia calçadas mitencs pretas, de renda. O gesto era aniquilador. — Ai, Ròschen, Ròschen, quando eras criança e eu te salvei dos índios, contigo ao colo no meu braço esquerdo, o Coli na minha mão direita, não falavas assim comigo. — Já não há índios, tio Gerd. O que tinha acontecido com aquela querida menina? Olhei-a de soslaio, o penteado pósmoderno, o punho de prata com o polegar eloquente entre dedos indicador e médio pendurado da orelha, o rosto largo que herdara da mãe, a boca um pouco pequena de mais, ainda de criança. O maestro era um mafioso seboso de pequena estatura e grande obesidade. Inclinava diante de nós a sua cabeça ondulada e arrastava a orquestra para um potpourri orquestral de Gianni Schicchi. Era bom, o homem. Com escassos movimentos da sua graciosa batuta, retirava como por encanto a harmonia mais suave da potente orquestra. Também não lhe levava a mal ter colocado no timbale uma pequena e amorosíssima mulher de fraque e calças. Será que poderia esperar por ela depois do concerto, na saída da orquestra, e propor-me ajudá-la a transportar as baquetas do timbale para casa? Então apareceu a Wilhelmenia. Depois de Diva tornara-se um pouco mais encorpada, mas encantadora no seu vestido de noite faiscante coberto de strass. A ária mais bela foi a Wally. O concerto terminou com ela, com ela, a Diva conquistou o público. Foi bonito ver os mais jovens e os mais velhos unidos no aplauso. Depois de dois números extraprograma, duramente conquistados, nos quais a pequena tocadora de timbale tornou virtuosamente a fazer o meu coração bater mais forte, saímos embalados para a noite. — Vamos ainda a algum lado? — perguntou o Georg. — Se quiserem, vamos para minha casa. Preparei uns caracóis e pus Riesling a Refrescar. A Babs ficou radiante, a Ròschen amuou: — Temos de ir a pé?


E o Georg disse: — Eu vou a pé com o tio Gerd, vocês podem ir de carro. O Georg é um jovem sério. Durante o caminho falou-me dos seus estudos em Direito, que iam no quinto semestre, de grandes e pequenos assuntos, e do caso de direito penal em que estava a trabalhar. Direito Penal da Protecção do Ambiente. Parecia interessante; mas resumia-se apenas a uma camuflagem para problemas de autoria de crimes, de suborno e cumplicidade, que poderiam ter-me dado para resolver há quarenta anos atrás. Serão os juristas assim tão desprovidos de imaginação, ou sê-lo-á apenas a realidade? A Babs e a Rõschen esperavam diante da porta de casa. Quando a abri, verificámos que a luz das escadas estava fundida. Subimo-las tacteando, com muitos tropeções e muito riso, e a Rõschen teve um pouco de medo do escuro e ficou agradavelmente calada. Foi uma noite muito simpática. Os caracóis estavam bons, assim como o vinho. A minha entrada em cena foi um estrondoso sucesso. Quando tirei o leitor de cassetes do bolso de dentro, com o qual consigo fazer gravações bastante boas por meio de um microfone minúsculo escondido no reverso da lapela, o abri e meti a cassete no leitor da minha aparelhagem, a Rõschen reconheceu imediatamente a referência e bateu palmas. O Georg compreendeu quando a Wally ressoou. A Babs ficou a olhar para nós, interrogativamente. — Mamã, tens de ir ver a Diva, quando voltarem a passar o filme. Jogámos à lebre e ao ouriço, e à meia-noite e meia o jogo estava na sua fase decisiva e já não havia RiesUng. Agarrei na minha lanterna de bolso e fui à cave. Não me lembro de alguma vez ter descido sem luz as compridas escadas. Mas as minhas pernas haviam memorizado o caminho ao longo dos muitos anos, de maneira que me sentia muito seguro. Até que cheguei ao penúltimo lanço de escadas. Aqui, o arquitecto, talvez para tornar a belle étage mais representativa e mais alta, inserira, em vez dos usuais doze, catorze degraus. Eu nunca o notara, e as minhas pernas também não haviam memorizado aquele pormenor, e depois do décimo segundo degrau dei uma grande passada para diante em vez de uma pequena para baixo. Dobrei-me, ainda consegui agarrar-me ao corrimão, mas a dor trespassou-me as costas. Endireitei-me, dei o passo seguinte a tactear e acendi a lanterna de bolso. Tinha apanhado um enorme susto. No penúltimo degrau, a parede diante é coberta por um espelho com moldura de estuque, e nele, diante de mim, estava um homem que dirigia um foco de luz encandeado na minha direcção. Demorou apenas uma fracção de segundo até me reconhecer. Mas a dor e o susto bastaram para me deixar com o coração a bater com força e o passo incerto, e entrei na cave. Jogámos até às duas e meia da madrugada. Depois de o táxi ter vindo buscá-los, de eu ter vencido novamente a escadaria escura e de ter arrumado a loiça da cozinha, fiquei ainda diante do telefone durante o tempo de fumar um cigarro. Apetecia-me telefonar à Brieitte. Mas a velha escola venceu.


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Está bom?

Passei a manhã toda sem fazer nada. Deitado na cama, folheei o dossier do Mischkey e pensei novamente no motivo que o teria levado a organizá-lo, beberriquei o meu café e ratei os pastelinhos que havia comprado no dia anterior aquando dos preparativos para domingo. Depois li no jornal Die Zeit o artigo de reflexão do Leo Sommer, a peça comovente de Marion Gráfin Dònhoff, algo de política do nosso ex-chanceler com fama mundial, e o inevitável Gerd Bucerius. Já sabia novamente o que estava a passar-se, e por isso já não tive de me regalar com a crítica de Reich-Ranicki sobre o livro de Wolfgang Siebeck sobre a cozinha leve dos viajantes de balão. Depois, fui mimar o Turbo. A Brigitte ainda não atendia. A Ròschen tocou à campainha às dez e meia para vir buscar o carro. Vesti o roupão por cima do pijama e ofereci-lhe um xerez. Hoje, o seu penteado pósmoderno estava feito em pó e cinzas. Por fim, fartei-me do meu não fazer nada e fui de carro até à ponte entre Eppelheim e Wieblingen, onde o Mischkey encontrara a morte. Estava um solarengo dia de começo de Outono; passei pelas aldeias, havia nevoeiro sobre o rio Neckar, nos campos apanhava-se batatas, apesar de ser domingo, as primeiras folhas pintavam-se de várias cores, e subia fumo das chaminés das hospedarias. A ponte em si não me disse nada mais do que eu já sabia do relatório da Polícia. Espreitei os carris a cerca de cinco metros abaixo de mim, e pensei no Citroen virado. Uma automotora passou em direcção a Edingen. Atravessei para o lado oposto da estrada, olhei para baixo e reparei na antiga estação dos caminhos-de-ferro. Uma linda construção de arenito do princípio do século, com três andares, janelas em arco redondo no primeiro andar e uma pequena torre. O restaurante da estação parecia estar ainda a funcionar. Entrei. A sala era sombria, das dez mesas, três estavam ocupadas, do lado direito havia uma jukebox, flippers e dois jogos de vídeo, sobre o balcão de madeira alemã antiga, restaurado, afligia-se uma palmeira de interior e, à sua sombra, a patroa. Sentei-me na mesa livre perto da janela, com vista para a plataforma da gare e os carris, deram-me a ementa com Wienerschnitzel, Jãgerschnitzel e Zigeunerschnitzel, sempre acompanhadas com batatas, e perguntei à patroa pelo prato do dia, plat dujour, falando como o Ostenteich. Disse que havia Sauerbraten, Klos.se e Rotkraut, Brilhe com Mark. — Óptimo — disse eu, e pedi um Wieslocher para acompanhar. Uma jovem trouxe-me o vinho. Aparentava ter dezasseis anos e era de uma voluptuosidade lasciva que não se ficava pela combinação de uns jeans demasiado apertados, uma blusa demasiado justa e uns lábios demasiado vermelhos. Qualquer homem com menos de cinquenta anos se teria metido com ela. Eu, não. — Bom proveito — disse ela, entediada. Quando a mãe me trouxe a sopa, perguntei-lhe pelo acidente do começo de Setembro. — Apercebeu-se de alguma coisa?


— Tem de perguntar isso ao meu marido. — E o que diria ele? — Bem, quando o acidente ocorreu já estávamos na cama, de repente ouviu-se aquele estoiro. E pouco depois um outro. Eu disse ao meu marido: “Aconteceu alguma coisa”. Ele levantou-se logo e foi buscar a pistola de alarme, porque estão sempre a arrombar-nos as máquinas. Mas não tinha acontecido nada com as máquinas, mas sim lá em cima, na ponte. O senhor é dos jornais? — Sou dos seguros. E depois, o seu marido chamou a Polícia? — O meu marido ainda não sabia nada. Quando viu que não havia nada na sala de jantar, subiu e vestiu qualquer coisa. Saiu depois para os carris, mas então ouviu a sirene da ambulância. Para quem é que valia a pena ainda telefonar? A filha robusta e loura trouxe o Sauerbraten e ficou a ouvir atentamente. A mãe mandou-a outra vez para a cozinha. — A sua filha não se apercebeu de nada? Era óbvio que a mãe tinha um problema com aquela filha. — Ela nunca se apercebe de nada. Só olha para calças, se é que percebe o que eu quero dizer. Eu não era assim, quando tinha a idade dela. E agora era demasiado tarde. No seu olhar brilhava uma frustração esfomeada. — Está bom? — Como em casa da minha mãe — disse eu. Tocaram uma campainha na cozinha e ela descolou o seu corpo da minha mesa. Apressei-me com o meu Sauerbraten e o Wieslocher. No caminho de volta ao carro, ouvi passos apressados atrás de mim. — Olá! Você aí! A pequena do restaurante da estação estava sem fôlego por vir a correr. — O senhor quer saber alguma coisa do acidente. Vale uma nota de cem? — Depende do que tiveres para me dizer. Ela era uma gaja dura. — Cinquenta já, não começo a falar antes de os ter na mão. Eu queria saber o que ela tinha para me dizer e tirei duas notas de cinquenta da carteira. Dei-lhe uma e fiz uma bolinha da outra. — Então foi assim: na quinta-feira, o Struppi levou-me a casa no seu Manta. Quando passámos por cima da ponte, estava uma furgoneta lá parada. Fiquei admirada, o que faria ela em cima da ponte? Depois, o Struppi e eu, bem, depois ainda fomos… E quando houve o estoiro, mandei o Struppi embora porque pensei que o meu pai apareceria. Os meus pais têm alguma coisa contra o Struppi, porque, a bem dizer, ele está quase casado. Mas eu amo-o. Não interessa, de qualquer maneira, foi então que eu vi a furgoneta ir-se embora.


Dei-lhe a bolinha. — Como é que era a furgoneta? — Tinha qualquer coisa de estranho. Nunca costumam passar por aqui. Mas não sei dizer-lhe mais nada. E tinha os faróis apagados. A mãe espreitou pela porta do restaurante da estação. — Queres vir agora para aqui, Dina? Deixa o homem em paz! — Vou já. A Dina voltou com uma lentidão provocadora. Fui levado pela compaixão e pela curiosidade a ir ver o homem a quem havia saído aquela mulher e aquela filha. Na cozinha, dei com um homenzinho franzino e suado, manejando tachos, caçarolas e frigideiras. Provavelmente, já tinha tentado várias vezes suicidar-se com a sua pistola de alarme. — Não faça isso. As duas não valem isso. Durante o caminho de regresso, procurei furgonetas que não costumavam passar por ali. Mas não vi nenhuma; também, era domingo. Se fosse verdade o que a Dina me contara, havia sabe Deus quantas coisas mais a saber do que as que constavam do relatório da Polícia. Quando ao fim da tarde nos encontrámos nos Badischen Weinstuben, o Philipp sabia que o grupo sanguíneo do Mischkey era AB. Por isso, o sangue que eu raspara do carro não era seu. O que implicaria isto? O Philipp comeu a morcela com apetite. Falou-me de Lebmichen com forma de coração, de transplantes de corações e da nova namorada, que tinha os pêlos púbicos cortados em forma de coração.


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Vamos dar um passeio

Tinha ocupado metade do domingo com um caso que já não era meu. O que, em princípio, como detective privado, não se deve fazer. Olhei através da vidraça matizada para o Centro Augusta. Propus-me decidir o que iria fazer quando passasse o décimo carro. Era um Carocha. Arrastei-me para trás da minha secretária para escrever o relatório final para ajudith Buchendorff. Um final tem de ter forma. Peguei em papel e lápis e assentei os pontos principais. O que havia contra a hipótese de ter sido um acidente? Havia aquilo que ajudith me contara, havia os dois estrondos que a mãe da Dina ouvira, e sobretudo havia o que a Dina vira. Tudo isto era suficientemente explosivo para, se continuasse a trabalhar no caso, me pôr intensivamente à procura da furgoneta e do respectivo condutor. Teriam as IQR alguma coisa a ver com o caso? O Mischkey havia-as investigado persistentemente, qualquer que fosse a sua intenção, e elas eram a grande fábrica para a qual o Fred trabalhara uma vez. Teria o Fred sido contratado pelas IQR para o espancamento no cemitério? Depois havia ainda os vestígios de sangue no lado direito do cabriolé do Mischkey. Finalmente, havia alguma coisa que não batia certo, e os muitos fragmentos de pensamentos dos últimos dias. A Judith, o Mischkey e um rival ciumento desprezado? Um outro ataque informático do Mischkey com uma resposta mortal? Um acidente com a participação da furgoneta, com a fuga do condutor? Pensei nos dois estrondos — um acidente em que estivesse envolvido um terceiro veículo? O suicídio do Mischkey, para quem tudo se tornara demasiado? Demorei muito tempo até ter dado forma a tudo isto no relatório final. Quase o mesmo tempo que demorei a pensar se devia mandar a conta à Judith e o que deveria escrever nela. Arredondei para mil marcos e apliquei-lhe o Imposto sobre o Valor Acrescentado. Quando já tinha escrito, franqueado e fechado o envelope com a carta e a conta dentro, enfiado o meu casaco e decidido ir até ao marco do correio, sentei-me novamente e servime ainda de uma Sambuca com três grãos de café. Tudo correra o pior possível. Iria ter saudades do caso que me envolvera mais do que habitualmente. Iria sentir a falta da Judith. Por que não reconhecê-lo? Quando o envelope já estava dentro do marco, voltei ao caso Sergej Mencke. Telefonei para o Teatro Nacional e marquei um encontro com o mestre do ballet. Escrevi uma carta dirigida às Seguradoras Unidas de Heidelberg a perguntar se se responsabilizariam pelos custos de uma viagem aos EUA. Os dois melhores amigos e colegas do meu automutilado bailarino, o Joschka e a Hanne, haviam aceite contratos para Pittsburgh, Pennsylvania, e já tinham partido, e eu nunca fora aos EUA. Descobri que os pais do Sergej Mencke viviam no Lar Tauberbischof. O pai era lá guarda. A mãe disse-me ao telefone que eu podia passar lá por volta da hora do almoço. O guarda Mencke gostava de comida caseira. Telefonei ao Philipp e perguntei-lhe se nos anais das pernas fracturadas havia algum registo de fracturas auto-infligidas e fracturas causadas pelo fechamento de uma porta de automóvel.


Ele propôs-se colocar o problema à sua aluna preferida, como tema da dissertação dela. — Chega dar-te uma resposta daqui a três semanas? Chegava. Depois, pus-me a caminho do Lar Tauberbischof. Ainda tinha tempo suficiente para ir calmamente de carro pelo vale do Necker e beber um café em Amorbach. Diante do castelo, uma turma de alunos fazia barulho, esperando pelo guia. Poder-se-á realmente ensinar o sentido do belo às crianças? O senhor Mencke era um homem temerário. Tinha construído um lar para si próprio, embora houvesse a hipótese de poder ser transferido. Abriu a porta vestido de uniforme. — Entre, entre, senhor Selb. Mas olhe que não disponho de muito tempo. Tenho que voltar ao trabalho daqui a bocadinho. Sentámo-nos na sala. Ofereceram jàgermeisler, mas ninguém bebeu. O Sergej chamava-se na realidade Siegfried e deixara a casa dos pais apenas com dezasseis anos, para grande preocupação da mãe. Pai e filho haviam cortado relações. Não tinham perdoado ao desportivo filho que tivesse evitado ir à tropa por causa de uma lesão fingida na coluna. O seu percurso no bailado também tinha chocado com o desprezo da família. — Talvez também tenha o seu lado positivo, o facto de ele já não poder dançar mais — comentou a mãe. — Quando fui visitá-lo ao hospital, era outra vez o meu Sigui. Perguntei como é que o Siegfried se safara financeiramente desde então. Aparentemente, tinham aparecido sempre alguns amigos, ou amigas, que o haviam sustentado. Por fim, o senhor Mencke serviu-se de um Jãgermeister. — Eu gostaria de lhe ter dado algum dinheiro, da herança da vovó. Mas tu não me deixaste. — Falava para o marido com um ar repreensivo. — Só o empurraste ainda mais fundo, para dentro de tudo. — Cala-te, Ella. Isso não interessa ao senhor dos seguros. Tenho de voltar agora ao serviço. Venha comigo, senhor Selb, eu acompanho-o até lá fora. Ficou à porta a ver-me ir embora de carro. No caminho de regresso, voltei a Adelsheim. A estalagem estava cheia; alguns homens de negócios, professores do internato, e, numa mesa, três homens que davam a impressão de serem um juiz, um advogado de acusação e um advogado de defesa do Tribunal de Adelsheim, que continuavam o julgamento num ambiente descontraído, sem a presença importuna dos acusados. Lembrava-me de coisas assim, do tempo em que trabalhava para a Justiça. Em Mannheim, fui apanhado no trânsito do regresso a casa e levei vinte minutos a percorrer os quinhentos metros até ao Centro Augusta. Abri a porta do meu escritório. — Gerd! — gritou alguém e, quando me voltei, vi a Judith vir do outro lado da rua por entre os carros parados. — Podemos falar um minuto? Voltei a fechar a porta.


— Vamos dar um passeio. Subimos a Rua Moll e andámos pela Rua Richard Wagner. Demorou algum tempo até que ela dissesse alguma coisa. — Exagerei, no sábado. Ainda não acho bem que não me tenhas dito, logo na quartafeira, o que se passou entre ti e o Peter. Mas compreendo como te sentias, e lamento ter-te acusado de não seres de confiança. Consigo ficar totalmente histérica desde que o Peter morreu. Eu também precisei de algum tempo. — Esta manhã, escrevi-te um relatório final. Vais encontrá-lo hoje ou amanhã de manhã, no correio, juntamente com a conta. Foi triste. Tive a sensação de estar a arrancarme coisas do coração: a ti, ao Peter Mischkey e à certeza de ter começado a destrinçar a meada que é este caso. — Então estás de acordo em continuar? Diz-me o que escreveste no teu relatório. Tínhamos ido parar diante da Galeria de Arte; começaram a cair umas gotas de chuva. Entrámos e, enquanto vagueávamos pelas salas com as pinturas do século XIX, fui-lhe contando o que havia descoberto, o que supunha que podia ter acontecido e aquilo com que eu me interrogava. Ela parou diante do quadro “Efigénia de Aulis”, de Feuerbach. — É um belo quadro. Conheces a história aqui retratada? — Acho que é o momento em que Agamémnon, seu pai, acaba de a oferecer à deusa Artemísia, para que o Vento se levante de novo e a frota grega possa partir para Tróia. Gosto do quadro. — Gostaria de saber quem era a mulher. — Queres dizer, a modelo? Feuerbach amou-a muito: Nanna, a romana, mulher de um sapateiro. Deixou de fumar por causa dela. Depois ela deixou-o, e ao marido, por um inglês. Dirigimo-nos para a saída e vimos que ainda chovia. — O que vais fazer a seguir? — perguntou a Judith. — Amanhã quero ir falar com o Gremlich, o colega do Peter Mischkey no Centro Regional de Informática, e também novamente com algumas pessoas das IQR. — Há alguma coisa que eu possa fazer? — Se me lembrar de algo, digo-te. O Firner já sabe sobre ti e o Peter Mischkey, e sobre o que me encarregaste de fazer? — Eu não lhe disse nada. Mas por que é que ele não me falou do envolvimento do Peter no assunto dos computadores? Antes, ele mantinha-me sempre a par de tudo. — Então, nem sequer deste conta de eu ter solucionado o caso? — Sim, passou um relatório teu pela minha secretária. Era tudo muito técnico. — Só recebeste a primeira parte. Porquê, isso gostaria eu muito de saber. Pensas que consegues descobrir?


Ela ia tentar. Parara de chover, tornara-se escuro, e as primeiras luzes acendiam-se. A chuva trouxera o fedor das IQR. No caminho até ao automóvel, não falámos. AJudith tinha um andar cansado. Ao despedirmo-nos, também vi o cansaço profundo nos seus olhos. Ela reparou no meu olhar. — Não estou lá com muito bom aspecto, não é verdade? — Não. Devias sair daqui durante um tempo. — Nos últimos anos, fiz sempre férias com o Peter. Conhecemo-nos no Club Méditerranée, sabes? Agora, devíamos estar na Sicília. No final do Outono viajávamos sempre para o Sul. Começou a chorar. Pus-lhe o braço em redor dos ombros. Não sabia o que dizer. Ela desfez-se em lágrimas.


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O porteiro ainda se lembrava de mim

O Gremlich estava quase irreconhecível. Trocara o fato tipo safari por umas calças de flanela de lã e uma jaqueta de pele, os cabelos estavam cortados curtos, sobre o lábio destacava-se um bigodinho muito fino, cuidadosamente aparado e, com o seu novo visual, emergia à superfície uma nova autoconfiança. — Bom dia, senhor Selb. Ou deveria dizer Selk? O que o traz até nós? O que deveria eu pensar disto? O Mischkey nunca lhe teria contado nada sobre mim. Quem mais? Alguém das IQR. Um acaso? — Ainda bem que já sabe. Isso facilita o meu trabalho, venho de consultar os dados que o Mischkey tinha aqui. Poderia mostrar-mos? — Como? Não estou a entender. Aqui já não existem nenhuns dados do Peter. — Olhou-me com um ar irritado e desconfiado. — Está aqui por incumbência de quem? — Dou-lhe duas hipóteses de adivinhar. Então apagou as bases de dados? Talvez seja melhor assim. Mas diga-me, por favor, o que pensa disto. Tirei de dentro da pasta as impressões de computador que encontrara no dossier do Mischkey. Ele colocou-as diante de si, em cima da secretária, e ficou durante muito tempo a folheá-las. — Onde é que as encontrou? Já têm cinco semanas. Foram impressas aqui, mas não têm nada a ver com os nossos dados. — Abanou a cabeça com um ar pensativo. — Gostaria de ficar com elas. — Olhou para o relógio. — Agora, tenho de ir para uma reunião. — Não me importo de voltar a trazer-lhe as impressões. Hoje tenho de as levar comigo. Ele devolveu-mas, mas foi como se lhas estivesse a arrancar. Enfiei na minha pasta o contrabando, aparentemente explosivo. — Quem é que assumiu o trabalho do Mischkey? O Gremlich olhou-me com um ar demasiado alarmado. Levantou-se. — Não compreendo, senhor Selb… Continuemos esta conversa numa outra oportunidade. Tenho mesmo de ir para a reunião. Levou-me até à porta. Saí do prédio, vi a cabine telefónica na Praça Ebert e telefonei imediatamente ao Hemmelskopf. — Nos Serviços de Informação do Crédito têm alguma coisa sobre um tal de Jôrg Gremlich? — Gremlich… Gremlich… Se tivermos algo sobre ele, vai aparecer já no monitor. Só


mais um momento… Aqui está ele, Jórg Gremlich, 19.11.1948, casado, dois filhos, residente em Heidelberg, na Rua Furtwángler, tem um FordEscort vermelho, matrícula HD-S 735. Tinha dívidas, mas parece que enriqueceu de repente. Há apenas duas semanas, resgatou o seu crédito no Bank fúr Gemeinwirtschaft. Cerca de 40 000 marcos. Agradeci-lhe. Mas o Hemmelskopf não estava satisfeito. — A minha mulher ainda está à espera do dragoeiro qui lhe prometeu na Primavera. Quando é que passas lá por casa? Inscrevi o Gremlich na lista dos suspeitos. Duas pessoas trabalham no mesmo sítio; quando uma delas recebe a morte e a outra dinheiro, e ainda por cima tanto… Não tinha nenhuma teoria, mas aquilo tinha um cheiro bastante suspeito. As IQR nunca haviam pedido a devolução da minha identificação. Com ela, encontrei sem esforço um lugar para estacionar. O porteiro ainda se lembrava de mim e levou a mão ao chapéu. Fui ao Centro de Informática e encontrei o Tausend-milch, sem dar de caras com o Oelmúller. Para mim, teria sido desagradável explicar-lhe o que andava ali a fazer. O Tausend-milch estava desperto, solícito e lesto, como sempre. Assobiava entredentes. — São dados nossos. Estranhamente misturados. E não foi impresso cá. Pensei que agora tínhamos paz outra vez. Quer que tente saber onde foi feita a impressão? — Deixe estar. Mas consegue dizer-me de que dados se trata? O Tausendmilch sentou-se diante de um monitor e disse: — Tenho de procurar um bocadinho. Esperei pacientemente. — Por um lado, temos aqui o número de trabalhadores de baixa na Primavera e no Verão de 1978, depois temos as nossas listas de invenções e de participações nos lucros até muito atrás, até antes de 1945, e aqui está…. não consigo perceber o que isto é, mas as abreviaturas podem ser as de outras indústrias químicas. — Desligou o computador. — Aproveito para lhe agradecer. O Firner mandou chamar por mim e disse-me que o senhor me tinha mencionado muito elogiosamente no seu relatório e que ele ainda tem planos para mim. Deixei atrás de mim um homem feliz. Por um breve momento imaginei uma cena: o Tausendmilch, em cuja mão direita notara uma aliança de casamento, voltando para casa nessa tarde e contando à sua elegante mulher, que o espera com um Martini e que trabalha na ascensão profissional dele à sua maneira, o sucesso do dia de hoje. Nos Serviços de Segurança da fábrica, fui à procura do thomas. Numa das paredes do seu gabinete estava pendurada a estrutura curricular, meio acabada, do curso de Agente de Segurança Licenciado. — Tive de vir à fábrica e aproveito para lhe falar sobre a sua amável proposta para leccionar. A que devo a honra? — Fiquei impressionado pela forma como o senhor solucionou o nosso problema de segurança de dados. Nós, os da fábrica, só temos a aprender consigo, sobretudo o Oelmúller. Independentemente disso, é indispensável o curso ter um independente do


ramo da segurança. — Do que tratará? — Da prática à ética da profissão de detective. Com exercícios e exame final, se não estiver a pedir-lhe de mais. Tudo isto deverá ter início no semestre de Inverno. — Aí vejo um problema, senhor Thomas. Creio que imagina, e estou inteiramente de acordo consigo, que, para formar os jovens estudantes, terei de falar de casos concretos. Mas pense, por exemplo, no caso aqui da fábrica, do qual acabamos de falar. Mesmo que eu não diga nenhuns nomes, todos irão logo ver o gato escondido com o rabo de fora. O Thomas não compreendeu. — De que gato está a falar? Não havia nenhum gato no caso. E, de qualquer maneira… — O Firner contou-me que o senhor ainda teve algumas maçadas com o meu caso. — Sim, foi um pouco chato, aquilo com o Mischkey. — Talvez eu devesse tê-lo apertado um pouco mais. — Ele estava extremamente renitente quando o senhor no-lo passou. — Segundo o que o Firner me disse, ele foi tratado com todo o cuidado na fábrica, como se fosse de porcelana. Não se falou de Polícia, nem de Tribunal, nem de prisão; isso e um convite para se ser renitente. — Mas, senhor Selb, evitámos sempre fazer-lhe sentir isso. O problema foi outro, totalmente diferente. Ele tentou chantagear-nos com toda a sem-vergonha. Nunca chegámos a saber se ele tinha realmente qualquer coisa nas mãos, mas conseguiu provocar uma grande confusão. — Com histórias antigas? — Sim, com histórias antigas. Com a ameaça de ir para os jornais, para a concorrência, para os sindicatos, para a inspecção do trabalho, para o Bundeskartellamt. Sabe, é duro dizer uma coisa destas, e a morte desse Mischkey também me faz pena, mas, ao mesmo tempo, fico contente por nos termos livrado desse problema. O Danckelmann entrou sem bater. — Ah, senhor Selb. Já falei hoje em si. O que está ainda a fazer, às voltas com esse Mischkey? O seu caso já está mais que terminado. Veja lá se não me espanta os cavalos. Tal como na conversa com o Thomas, também com o Danckelmann me movia em terrenos pantanosos. Perguntas demasiado directas poderiam fazer-me afundar. Mas quem não arrisca, não petisca. — O Gremlich telefonou-lhe? O Danckelmann não me respondeu. — Estou a falar a sério, senhor Selb, não mexa nessa história. Não nos agradaria. — Os casos apenas estão encerrados para mim quando sei tudo. Sabia, por exemplo, que o Mischkey voltou a andar a passear no vosso sistema?


O Thomas ouvia atentamente e olhou-me, espantado. Já lamentava certamente o convite. O Danckelmann controlou-se e ficou com a voz embargada. — Tem uma maneira rara de tratar os casos. Um caso está terminado quando o cliente não quer mais investigações. E o senhor Mischkey já não anda a passear por nenhum lado. Por isso, faça-me o favor… Eu ouvira mais do que alguma vez sonhara, e não me interessava uma escalada da situação. Mais uma palavra errada e o Danckelmann ir-se-ia lembrar da minha identificação especial. — Tem toda a razão, senhor Danckelmann. Por outro lado, também sente, com certeza, da mesma maneira que eu, que o empenho em coisas de segurança nem sempre pode parar nas estritas fronteiras de um trabalho. E não se preocupe: como independente não posso dar-me ao luxo de me empenhar muito sem nenhum cliente. O Danckelmann saiu, apenas meio conciliado. O Thomas esperava impacientemente que eu me fosse embora. Mas eu ainda tinha um docinho para ele. — Para voltar ao assunto, senhor Thomas, é com prazer que aceito o seu convite para ser professor. Vou delinear um currículo. — Agradeço-lhe o seu interesse, senhor Selb. Temos a mesma maneira de pensar. Saí dos Serviços de Segurança da fábrica e encontrei-me de novo, no pátio, com Aristóteles, Schwarz, Mendeleiev e Kekulé. No lado norte brilhava um sol cansado de Outono. Sentei-me no degrau de cima de uma pequena escada que conduzia a uma porta emparedada. Tinha mais do que o suficiente em que pensar.


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A sua favorita

Cada vez se encaixavam mais peças do quebra-cabeças. Mas ainda não formavam nenhuma imagem plausível. Percebia agora o que era o dossier ào Mischkey: o arquivo de tudo o que ele tinha reunido contra as IQR. E não era grande coisa. Devia ter feito um grande bluff para. ter conseguido impressionar o Danckelmann e o Thomas da maneira como parecia ter impressionado. Mas o que pretendia ele conseguir ou evitar com isso? As IQR não o tinham ameaçado com um processo, com a Polícia, o Tribunal ou a prisão. Mas por que razão teriam querido pressioná-lo? O que pretenderiam fazer com o Mischkey, e contra quem se teria ele defendido com as suas insinuações e ameaças pouco fundamentadas? Pensei no Gremlich. Tinha recebido dinheiro, naquele dia de manhã tivera reacções estranhas, e eu tinha a certeza absoluta de que ele havia contado tudo ao Danckelmann. Seria o Gremlich o homem das IQR no CRI? Teriam as IQR pensado primeiro no Mischkey para esse papel? Nós não nos queixamos à Polícia, e o senhor acha que os valores das nossas emissões de poluentes são sempre legais? Valia muito dinheiro, ter uma pessoa assim. O sistema de controlo de emissões perderia o seu significado e a produção não voltaria a ser prejudicada. Mas tudo aquilo não tornava mais plausível o assassinato do Mischkey. O Gremlich no papel do assassino, querendo fechar o negócio com as IQR e constituindo o Mischkey um entrave? Ou teria o material do Mischkey um poder explosivo que me escapara até agora, e que provocara uma reacção mortal das IQR? Mas, nesse caso, o Danckelmann e o Thomas, que dificilmente não se aperceberiam de uma acção desse tipo, não teriam falado tão abertamente sobre o conflito com o Mischkey. E, embora o Gremlich desse uma melhor impressão com o casaco de couro do que com o fato tipo safari, não conseguia imaginá-lo como assassino, nem sequer com um borsalino. Estaria eu a investigar numa direcção completamente errada? O Fred poderia ter espancado o Mischkey para as IQR, mas também o poderia ter feito para um outro cliente qualquer, para quem o teria depois matado. Eu não fazia a mínima ideia daquilo em que o Mischkey se teria envolvido com as suas aldrabices. Tinha de voltar a falar com o Fred. Despedi-me de Aristóteles. Novamente, os pátios da parte antiga da fábrica voltavam a exercer o seu feitiço. Passei pelos arcos e entrei no pátio seguinte, cujas paredes resplandeciam no vermelho outonal das videiras russas. Não se via nenhum Richard brincando com a bola. Toquei à campainha da residência oficial da família Schmalz. A mulher idosa, que eu já conhecia de vista, abriu a porta. Estava vestida de negro. — Senhora Schmalz? Bom dia, o meu nome é Selb. — Bem-vindo, senhor Selb. Vem connosco de carro para o enterro? Os meus filhos vêm já buscar-me. Meia hora mais tarde, encontrava-me no crematório do cemitério principal de Ludwigshafen. A família Schmalz incluiu-me de uma maneira natural no luto pelo


Schmalz sénior, e eu não queria dizer que só tinha aparecido por acaso nos preparativos do funeral. Tinha ido no carro com a senhora Schmalz, o jovem casal Schmalz e o filho Richard, satisfeito por ter vestido naquele dia uma gabardina azul-escura e um fato apropriado. Durante o caminho, fiquei a saber que o Schmalz sénior morrera de enfarte. — Parecia tão forte quando o vi, há umas semanas. A viúva soluçou. O meu ceceador amigo contou as circunstâncias que tinham conduzido à sua morte. — O papá, embora já reformado, ainda trabalhava muito. Tinha uma oficina num velho hangar perto do Reno. Há pouco tempo deixou de ter cuidado. A ferida na mão não era muito funda, mas o médico acha que também houve uma hemorragia cerebral. Depois disso, o papá sentia sempre um formigueiro na metade esquerda do corpo, sentia-se muito mal e ficava na cama. Há quatro dias, então, teve um enfarte. No cemitério, as IQR estavam altamente representadas. O Danckelmann proferiu um discurso. — A sua vida era a segurança da fábrica e a segurança da fábrica era a sua vida. Durante o discurso, leu uma despedida pessoal do Korten. O presidente do clube de xadrez das IQR, em cuja equipa secundária o Schmalz sénior jogara no terceiro tabuleiro, rogou a bênção de Caissás para o morto. A orquestra das IQR tocou a música “Eu tinha um camarada”. O Schmalz distraiu-se e cerceou-me, comovido: — A sua favorita. Depois, o caixão coberto de flores deslizou para dentro do forno crematório. Não consegui subtrair-me ao café e bolos depois da cerimónia. Mas consegui evitar ficar sentado ao lado do Danckelmann ou do Thomas, embora o Schmalz júnior me tivesse destinado aqueles lugares de honra. Sentei-me ao lado do presidente do clube de xadrez das IQR, e conversámos sobre o campeonato mundial entre o Karpov e o Kasparov. Ao cogriac, começámos a jogar xadrez sem tabuleiro. Perdi-me à trigésima terceira jogada. Começámos a falar do falecido. — Era um bom jogador, o Schmalz. Embora tivesse começado a jogar já tarde. E podíamos confiar nele, na associação. Nunca faltou a nenhum treino, nem a nenhum torneio. — Com que frequência treinam? — Todas as quintas-feiras. Faz agora três semanas, foi a primeira vez que o Schmalz não apareceu. A família diz que ele se excedeu na oficina. Mas, sabe, eu acho que ele teve o acidente vascular muito antes disso. Senão, não teria estado na oficina, mas sim no treino. Já devia estar baralhado nessa altura. Foi como em qualquer repasto fúnebre. No começo, as vozes baixas, o luto esforçado no rosto e a dignidade inteiriçada no corpo, muito embaraço, algum tormento, e em cada um o desejo de que tudo aquilo passe rapidamente. E, apenas uma hora depois, são apenas as roupas que distinguem este grupo de luto de um outro grupo qualquer: nem o apetite, nem o barulho, nem ainda, com poucas excepções, a mímica e os gestos o fazem. Fiquei,


contudo, um pouco pensativo. Como seria o meu enterro? Na primeira fila da capela do cemitério, cinco ou seis vultos, entre eles o Eberhard, o Philipp e o Willy, a Babs, e talvez ainda a Rõschen e o Georg. Mas porventura ninguém mais iria saber da minha morte e, com excepção do padre e dos quatro carregadores do caixão, nenhuma alminha me acompanharia à cova. Vi o Turbo seguir o caixão felinamente, com um rato na boca. Tinha uma fita atada: “Para o meu querido Gerd, do Turbo”.


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Na contraluz

As cinco da tarde eu estava de novo no meu escritório, levemente tocado e mal disposto. O Fred telefonou. — Olá, Gerhard, ainda te lembras de mim? Queria falar contigo sobre o tal trabalho. Já tens alguém? — Já tenho alguns candidatos. Mas ainda não está nada decidido. Ainda podemos conversar. Mas tem de ser agora. — Tudo bem. Marquei encontro com ele no escritório. Começava a anoitecer; acendi a luz e corri as persianas. O Fred chegou alegre e confiante. Foi desleal, mas bati-lhe logo que o vi. Na minha idade e nestas situações não posso dar-me ao luxo de agir de um modo leal. Atingi-o no estômago e não me detive a tirar-lhe os óculos de sol antes de lhe bater na cara. As suas mãos levantaram-se e eu dei-lhe outro murro em cheio no abdómen. Quando ele tentou responder timidamente com a direita, torci-lhe o braço atrás das costas, dei-lhe um pontapé atrás do joelho, e ele caiu no chão. Mantive-o agarrado. — A mando de quem é que espancaste um tipo no cemitério Ehren, em Agosto passado? — Pára, pára, estás a magoar-me, o que vem a ser isto? Não sei bem, o chefe nunca me diz nada. Eu… ai, deixa-me… Pouco a pouco, ele disse tudo. O Fred trabalhava para o Hans, este recebia os trabalhos e ajustava as condições, não dizia nenhuns nomes ao Fred, limitava-se a descrever a pessoa, o local e a hora. As vezes, o Fred ouvia mais alguma coisa. — Para o rei do vinho foi uma vez, e uma vez para o sindicato e para a química… Pára com isso, sim, talvez aquele do cemitério… Pára com isso! — E para a química mataste o tipo umas semanas mais tarde. — És maluco ou quê? Nunca matei ninguém. Demos uns abanões ao gajo, mais nada. Pára com isso, estás a deslocar-me o braço. Juro-o. Não consegui magoá-lo tanto que ele pensasse que era melhor confessar um assassinato do que suportar durante mais tempo a dor. Além disso, acreditei nele. Larguei-o. — Lamento, Fred, se tive de ser tão duro contigo. Não posso sujeitar-me a que alguém que trabalhe para mim tenha um assassinato na consciência. O tipo que vocês trabalharam daquela vez, morreu. O Fred levantou-se, gemendo. Indiquei-lhe a casa de banho e servi-lhe uma Sambuca. Ele engoliu-a de um só trago e pôs-se a andar.


— Já estou bem — murmurou. — Mas por hoje já chega. Vou andando. Talvez ele achasse que o meu comportamento era normal do ponto de vista da profissão dele. Mas eu tinha perdido a sua simpatia para sempre. Mais outra peça do quebra-cabeças e, contudo, a imagem não fazia sentido. Portanto, a confrontação entre as IQR e o Mischkey ia até ao contrato de espancadores profissionais. Mas da lição que o Mischkey recebera no cemitério Ehren ao assassinato ia um passo gigantesco. Fiquei sentado atrás da minha secretária. O Sweet Afton tinha-se fumado a si próprio e restava apenas o seu corpo feito de cinzas. O trânsito rumorejava pelo Centro Augusta. Do pátio de trás, ouviam-se os gritos de crianças a brincar. Há certos dias, no Outono, que fazem vir o Natal à memória. Pensei com o que é que deveria enfeitar este ano a árvore de Natal. A Klarinha gostava muito do que era clássico e pendurava na árvore bolas brilhantes de vidro prateado e lametta, ano sim, ano sim. Desde então, experimentei desde carros viquingues a pacotes de cigarros. Consegui com isso ganhar uma certa fama entre os meus amigos, mas ao mesmo tempo estabeleci critérios aos quais agora estou sujeito. O universo dos pequenos objectos que têm potencial para serem enfeites de árvores de Natal não é ilimitado. Latas de sardinhas em óleo vegetal, por exemplo, seriam decorativas, mas são demasiado pesadas. O Philípp ligou e exigiu que eu fosse ver o seu novo cruzador. A Brigitte perguntou o que é que eu ia fazer naquela noite. Convidei-a para jantar comigo em casa, desatei a correr e ainda arranjei lombinhos de porco, presunto e chicória. Comemos lombinhos de porco à italiana. Depois, pus O homem que amava as mulheres. Já conhecia o filme e estava curioso por ver como a Brigitte reagiria a ele. Quando o pinga-amor capotou quando perseguia um belo par de pernas, achou que era muito bem feito para ele. Não gostou muito do filme. Mas quando este terminou, não deixou de posar como que por acaso diante do candeeiro de pé, e de fazer valer as suas pernas na contraluz.


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Uma pequena história

Deixei a Brigitte no trabalho, no Centro Collini, e bebi o meu segundo café no Gmeiner. Não tinha nenhuma pista quente no caso Mischkey. Claro que podia continuar à procura das estúpidas pecinhas do meu quebra-cabeças, virá-las de um lado para o outro sem saber o que fazer, e combiná-las, tentando formar esta ou aquela imagem. Estava farto. Sentiame jovem e dinâmico depois da noite passada com a Brigitte. No café, a patroa ralhava com o filho. — Da maneira como te empenhas, pergunto-me se tens qualquer intenção de vires a ser pasteleiro! Estar-me-ia eu a empenhar a fundo na investigação das minhas pistas? Tinha medo dos que dirigiam as IQR. Porquê? Temeria eu descobrir que tinha entregue o Mischkey a carrascos? Estaria eu, subconscientemente, a baralhar as pistas por minha causa e do Korten e da nossa amizade? Fui de carro até Heidelberg, até ao CRI. O Gremlich tinha intenções de me despachar rapidamente, e ficou de pé. Sentei-me e voltei a tirar da pasta as folhas impressas do Mischkey. — O senhor queria ver isto novamente, senhor Gremlich. Posso deixá-las agora aqui. O Mischkey era mesmo um verdadeiro diabo: voltou a penetrar no sistema das IQR, embora a ligação já estivesse interrompida. Penso que foi pelo telefone, o que é que acha? — Não sei do que está a falar — mentiu ele, bastante mal. — O senhor mente bastante mal, senhor Gremlich. Mas não importa. Para aquilo que eu vim dizer-lhe, não interessa se o senhor mente bem ou mal. — Como? Ele ainda estava de pé e olhava-me sem perceber. Fiz um gesto convidativo com a mão. — Não quer sentar-se? Ele abanou a cabeça. — Não tenho de lhe dizer a quem pertence o Ford Escort vermelho com a matrícula HD-S 735 que está lá em baixo, no parque de estacionamento. Faz hoje precisamente três semanas que o Mischkey se precipitou da ponte entre Eppelheim e Wieblingen, com o carro, para cima dos carris, depois de um Ford Escort vermelho o ter apertado. A testemunha que eu consegui descobrir até viu que a matrícula do Ford vermelho começava por HD e terminava em 735. — E por que é que está a contar-me isso? O senhor devia dizer isso à Polícia. — Tem toda a razão, senhor Gremlich. A testemunha já deveria ter ido à Polícia. Primeiro tive de lhe fazer ver que uma mulher ciumenta não é motivo para encobrir um


assassinato. Entretanto, ele ja concordou em ir comigo à Polícia. — Sim, e então? — Cruzou os braços diante do peito, com ar superior. — A probabilidade de existir mais um Ford Escort de Heidelberg, com uma matrícula que se enquadre na descrição é de… Ora, faça o senhor as contas. As amolgadelas do Escort vermelho parecem ter sido pequenas e fáceis de reparar. Diga-me, senhor Gremlich, roubaram-lhe o carro há três semanas, ou emprestou-o? — Não, claro que não, que disparates são esses que está para aí a dizer? — Isso também me teria espantado. O senhor sabe que, no caso de um assassinato, coloca-se sempre a pergunta de a quem ele aproveitará. O que é que acha, senhor Gremlich? A quem aproveita a morte do Mischkey? Ele fungou com desprezo. — Então deixe-me contar-lhe uma pequena história. Não, não, não fique impaciente, é uma pequena história muito interessante. Continua a não querer sentar-se? Muito bem, era uma vez uma grande fábrica química e um Centro Regional de Informática, que devia controlar a fábrica. A fábrica química tinha interesse em não ser demasiado bem controlada. No Centro Regional de Informática havia duas pessoas decisivas para o controlo da fábrica química. Para esta, aquilo significava muito, muito dinheiro. Se houvesse hipótese de comprar um dos controladores… Quanto não daria ela por isso! Mas só compraria um, porque só precisava de um deles. Sonda os dois. Pouco tempo depois, um deles está morto, e o outro paga uma dívida ao banco. Quer saber o montante? Nesse momento, ele sentou-se. Para corrigir esse erro, fingiu que estava indignado. — É monstruoso o que o senhor atribui não apenas a mim, mas a uma das nossas empresas químicas mais famosas e ricas em tradições. O melhor é eu ir contar-lhes isto; eles podem defender-se melhor do que eu, que sou um pequeno e insignificante funcionário. — Acredito nisso plenamente, que preferiria ir a correr para as IQR. Mas, neste momento, a história passa-se entre o senhor, a Polícia e eu, e ainda a minha testemunha. A Polícia vai ficar interessada em saber onde estava naquela altura e, tal como a maioria das pessoas, o senhor também não conseguirá apresentar um álibi sólido, três semanas postfestum. Se tivesse havido uma visita aos sogros, juntamente com a sua pobre mulher e os seus indubitavelmente feiíssimos filhos, sem dúvida que ele agora o teria dito. Em vez disso, respondeu: — Não pode existir nenhuma testemunha que me tenha visto lá, porque eu não estive lá. Tinha-o onde queria. Não me sentia mais leal do que ontem com o Fred, mas igualmente em boa forma. — Correcto, senhor Gremlich, nenhuma testemunha o viu lá. Mas eu tenho alguém que irá afirmar tê-lo visto lá. E o que pensa que irá então acontecer? A Polícia tem um morto, um crime, um criminoso, uma testemunha e um motivo. Mesmo que a testemunha se venha abaixo no tribunal, durante o julgamento, até lá o senhor fica completamente


destruído. Já não sei quanto dá hoje em dia o crime de corrupção mas, para além disso, temos de somar o tempo de prisão preventiva por assassinato, a suspensão do serviço, a vergonha para a mulher e os filhos, o desprezo social. O Gremlich empalidecera. — O que significa isto? Por que está a fazer-me isto? Que mal lhe fiz eu? — Não me agrada o modo como se vendeu. Não o suporto. Além disso, quero saber uma coisa. E se não quer que o arruine, é melhor que entre no meu jogo. — O que quer de mim? — Quando é que as IQR o contactaram pela primeira vez? Quem é que o recrutou e quem é, por assim dizer, o oficial de quem recebe ordens? Quanto recebeu das IQR? Ele contou-me tudo: o primeiro contacto que o Thomas estabelecera com ele depois da morte do Mischkey, as negociações relativas ao trabalho e ao pagamento, os programas que ele tinha em parte pensado, e em parte também já realizado. E falou da mala com as notas novas. — Cretino foi só o facto de, em vez de ir pagando as minhas prestações aos poucos, sem levantar suspeitas, ter ido logo ao banco. Queria poupar os juros. Ele tirou um lenço do bolso para limpar o suor e eu perguntei-lhe o que sabia da morte do Mischkey. — Tanto quanto eu percebi, eles quiseram pressioná-lo, depois de o senhor ter provado a sua culpabilidade. Queriam a cooperação dele, pela qual me pagam agora, gratuitamente, em troca de deixarem cair aquilo dos assaltos do Mischkey ao sistema informático. Quando ele morreu, ficaram bastante descontentes porque agora iriam ter de pagar. A mim, evidentemente. Ele teria podido continuar a falar sem parar, provavelmente ainda teria gostado de se justificar. Eu já tinha ouvido o suficiente. — Obrigado, basta por hoje, senhor Gremlich. Se eu fosse o senhor, não falaria desta conversa a ninguém. Se as IQR souberem que eu sei, o senhor perde o valor para a fábrica. Se lembrar ainda de mais alguma coisa em relação ao caso Mischkey, telefone-me. Dei-lhe o meu cartão. — Sim, mas… O senhor não se importa com o que está a acontecer com o controlo das emissões de poluentes? Ou está a pensar em ir, apesar de tudo, à Polícia? Lembrei-me do fedor que tantas vezes me fazia fechar as janelas. E daquilo que não cheiramos. Contudo, naquele preciso momento, isso era-me indiferente. Voltei a guardar as folhas impressas do Mischkey que estavam em cima da secretária do Gremlich. Quando me preparava para sair, o Gremlich estendeu-me a mão. Ignorei-a.


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Energia e Resistência

À tarde tinha um encontro marcado com o mestre do ballet. Mas estava sem vontade de lá ir e desmarquei-o. Fui para casa, deitei-me na cama e acordei outra vez apenas às cinco da tarde. Era muito raro dormir a sesta. Por causa da minha tensão baixa, custa-me muito voltar a levantar-me depois. Tomei um duche quente e fiz café forte. Quando telefonei ao Philipp, a enfermeira disse: — O senhor doutor já saiu, para experimentar o barco novo. Atravessei Neckarstadt, fui até Luzenberg e estacionei na Rua Gewirg. No cais, passei por muitos barcos até encontrar o do Philipp. Reconheci-o pelo nome. Chamava-se Fauno 69. Não percebo nada de navegação. O Philipp explicou-me que com aquele barco poderia navegar até Londres ou contornar a França até Roma, desde que não se afastasse muito da costa. A água chegava para dez duches, o frigorífico para quarenta garrafas e a cama para um Philipp e duas mulheres. Depois de mo ter mostrado, ligou a aparelhagem, meteu um disco de Hans Albers e abriu uma garrafa de Bordéus. — Tenho direito a uma viagem inaugural? — Vamos com calma, Gerd. Primeiro vamos esvaziar a garrafinha, depois levantamos âncora. Tenho radar e posso partir a qualquer hora do dia ou da noite. A garrafinha passou a duas. Primeiro, o Philipp falou-me das suas mulheres. — E contigo, Gerd, como vai isso de amores? — Ora, o que posso eu dizer? — Nada de mulheres-polícia desembaraçadas ou de secretárias boazonas, ou com quem quer que tu tenhas a ver? — Num dos casos recentes, conheci uma mulher que me agradaria muito. Mas é uma situação difícil, já que o namorado morreu. — Ora, por favor, o que é que há de difícil nisso? — Bem, eu não posso atirar-me a uma viúva de luto, ainda por cima se tenho de descobrir se o namorado foi assassinado. — Por que não? Isso é o teu código de honra de procurador do Ministério Público, ou tens apenas medo que ela te dê uma tampa? — troçou ele. — Não, não, isso não é bem assim. E depois há ainda a outra, a Brigitte. Também me agrada muito. Não sei o que devo fazer, assim, com duas mulheres. O Philipp deu uma gargalhada estridente. — És mesmo um cavalheiro. E o que é que te impede de conheceres melhor a Brigitte?


— Isso já aconteceu… Já… — E ela agora espera uma criança tua? O Philipp já quase não se conseguia aguentar de tanto rir. Depois reparou que eu estava tudo menos divertido, e perguntou seriamente como eu estava a sentir-me. Contei-lhe. — Isso não é motivo para estares tão triste. Apenas tens de saber o que queres. Se estás à procura de uma para casar, então fica com a Brigitte. Não são nada más, as mulheres de quarenta, já viram tudo, já viveram tudo, e são sensuais como um súcubo, se souberes despertá-las. E ainda por cima uma masseurin, tu, com o teu reumatismo! A outra soa mais a stress. Apetece-te isso? O amourfou, o júbilo incrível, a aflição mortal? — Ainda não sei o que quero. Provavelmente, quero as duas coisas, a segurança e a excitação. De qualquer maneira, umas vezes quero uma, e outras a outra. Isso compreendia ele. Nisso, éramos iguais. Entretanto, eu já sabia onde estava o Bordéus, e fui buscar a terceira garrafa. O camarote estava cheio de fumo. — Ei, cozinheiro, vai à cozinha tirar o peixe de dentro do congelador e põe-no a grelhar! No congelador havia salada de batata e salsicha comprada no supermercado e filete de peixe ultracongelado. Tinha apenas de ser metido no microondas. Dois minutos depois, levei comigo o jantar para o camarote. O Philipp pusera a mesa e a Zarah Leander a tocar. Depois de comermos, subimos à ponte, como o Philipp lhe chamava. — Onde é que aqui se iça a vela? O Philipp conhecia as minhas piadas sem graça e não se irritou. Também a minha pergunta, se ele ainda estava em condições de navegar, foi considerada uma graçola. Estávamos muito bêbados. Passámos por baixo da ponte Altrhein e, quando chegámos ao Reno, subimo-lo. A corrente fluía, negra e silenciosa. No recinto das IQR havia muito edifícios bem iluminados, ardiam fogos coloridos em tubos altos, lâmpadas faziam chicotear luzes cruas. O motor rumorejava, a água estalava batendo contra o costado, e da fábrica vinha um tremendo bramido de vapor. Deslizámos ao longo do cais de descarga das IQR, passando por gruas, cais de embarque e guindastes de contentores, por linhas ferroviárias e armazéns. Levantou-se neblina. Começou a ficar fresco. Diante de nós, já conseguia distinguir a ponte Kurt Schumacher. Os prédios das IQR tornaram-se mais sombrios, atrás da via férrea erguiam-se velhos edifícios mal iluminados contra o céu nocturno. Tive uma ideia. — Encosta à direita — disse ao Philipp. — Estás a dizer para eu acostar? Agora, ali, nas IQR? Porquê? — Quero ir ali espreitar uma coisa. Podes ficar estacionado durante meia hora e esperar por mim? — Não se diz estacionar, mas sim fundear, estamos num barco. Estás consciente de que são dez e meia da noite? Pensei que daríamos a volta diante do palácio, voltávamos para


trás e depois bebíamos a quarta garrafa no ancoradouro de Waldhof. — Explico-te tudo depois, quando estivermos a beber a quarta garrafa. Mas agora tenho de entrar ali. É por causa do caso de que te falei há bocado. Já não estou bêbado. O Philipp perscrutou-me com o olhar. — Bem, tu sabes o que fazes. Virou o barco para a direita e navegou com uma concentração calma, que eu já não esperaria no estado em que ele estava, lentamente, ao longo do muro do cais, até encontrar uma escada encostada à parede. — Lança as defensas. Apontava para dois objectos de plástico brancos, com forma de salsicha. Atirei-os borda fora; por sorte estavam presos ao barco, que ele amarrou à escada. — Gostaria que fosses comigo. Mas prefiro saber-te aqui, pronto para partir. Tens uma lanterna de bolso? — Aye, Aye, sir. Subi a escada. Estava com frio. O pólo que me haviam vendido sob um qualquer nome americano, e que eu vestia debaixo do meu casaco de pele, com as minhas calças de ganga novas, não me aquecia. Espreitei por sobre o muro do cais. Diante de mim estendia-se uma estrada estreita, paralela ao rio, atrás dela uns carris com vagões de comboio. Os edifícios eram construções de arenito do estilo que eu já conhecia do da Segurança da fábrica e da casa dos Schmalz. Tinha diante de mim a parte velha da fábrica. Aqui, algures, teria de ser o hangar do velho Schmalz. Caminhei para a direita, onde os antigos edifícios de arenito se tornavam mais baixos. Tentei, ao mesmo tempo, andar com cuidado e manter a naturalidade de alguém que tem todo o direito de andar ali. Parei na sombra dos vagões de comboio. Eles chegaram sem que o cão-pastor que traziam com eles emitisse qualquer som. Um iluminou-me o rosto com uma lanterna em forma de bastão, o outro pediu que me identificasse. Tirei a identificação especial do bolso. — Senhor Selb? O que faz aqui com a sua investigação especial? — Não precisaria de nenhuma identificação especial se tivesse de lhes responder a isso. Mas eles não ficaram satisfeitos com aquilo, e também não conseguira intimidá-los. Eram dois rapazes novos, como agora também se vê frequentemente na Bereitschaftspolize. Antigamente, viam-se muito nas Waffen-SS. Claro que esta comparação é inadmissível, porque hoje em dia vivemos numa sociedade democrática e livre, mas a mistura de zelo, seriedade, insegurança e servilismo nos rostos é a mesma. Vestiam uma espécie de uniforme paramilitar com o anel de benzeno na lapela. — Mas, colegas — disse eu —, deixem-me fazer o meu trabalho, e façam o vosso. Qual é o vosso nome? Terei muito prazer em dizer amanhã ao Danckelmann que se pode confiar em vocês. Continuem assim! Já não me recordo dos seus nomes; soavam a algo parecido com Energia e Resistência.


Não consegui levá-los a fazer-me a continência. Mas um devolveu-me a identificação, e o outro desligou a lanterna. O cão-pastor havia assistido a tudo sem se manifestar. Quando deixei de os ver, e já não ouvia os seus passos, continuei. Os edifícios mais baixos que eu vira deixavam uma impressão de ruína. Algumas janelas estavam partidas, algumas portas estavam tortas nos gonzos, de quando em quando faltava o telhado. Aparentemente, os prédios daquela zona iriam ser demolidos. Mas a degradação parara diante de um deles. Era também de arenito com um único piso, janelas de volta redonda e telhado semicircular de chapa ondulada. Se havia um hangar do Schmalz, teria de ser este. A minha lanterna encontrou a pequena porta de serviço no grande portão de correr. Estavam ambos fechados, e o grande só se conseguia abrir por dentro. Primeiro nem sequer tencionava tentar o truque do cartão, mas depois lembrei-me de que o Schmalz, naquela noite incerta, fazia hoje três semanas, porventura não teria já tido a força nem a presença de espírito suficientes para pensar em insignificâncias como trancar as portas. E, com efeito, entrei no hangar usando o cartão da minha identificação especial. Tive de fechar a porta imediatamente. Energia e Resistência acabavam de dobrar a esquina. Encostei-me à porta fria e respirei fundo. Agora estava extremamente sóbrio. E ainda continuava a achar boa ideia ter entrado espontaneamente para procurar algo no recinto das IQR. Saber que, no dia em que o Mischkey teve o acidente, o velho Schmalz tinha cortado a mão, que tinha tido um acidente vascular e esquecido os jogos de xadrez, não era muito. E que ele consertasse furgonetas e que a rapariga da estação tivesse visto uma furgoneta estranha perto da ponte, também não era nenhuma pista quente. Mas eu queria saber. Passava pouca luz através das janelas. Vi os contornos de três furgonetas. Acendi a minha lanterna de bolso e reconheci uma velha Hanomag, uma Unimoge uma Citroen. Na verdade, já não se vê a circular esta última. Na parte de trás do hangar havia uma grande bancada. Tacteei o tampo. Entre ferramentas, havia um molho de chaves, um boné e um maço de cigarros. Agarrei no molho de chaves. Só a Citroen é que ainda trabalhava. A Hanomag não tinha vidros, a Unimog estava assente nuns cavaletes. Sentei-me dentro da Citroen e experimentei as chaves. Uma delas servia, e quando a girei acenderam-se as luzinhas do tablier. O volante tinha sangue seco, e também o pano sobre o lugar do morto estava sujo de sangue. Guardei-o. Quando quis tirar a chave da ignição, toquei num interruptor do tablier. Atrás de mim ouvi um motor eléctrico ronronar, pelo espelho lateral vi as portas de trás abrirem. Saí e fui até lá.


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Não seres apenas um estúpido mulherengo

Desta vez não me assustei tanto. Mas o efeito ainda era impressionante. Agora sabia o que se havia passado na ponte. A parte de trás da furgoneta estava coberta com película reflectora, da metade esquerda da porta de trás, aberta, até à metade direita. Um tríptico mortal. A película estava lisa de tão esticada, sem rugas nem falhas, e eu vi-me lá reflectido, como no sábado no espelho das minhas escadas. Quando Mischkey entrou na ponte, a furgoneta estava lá parada com as portas traseiras abertas. O Mischkey guinou com o volante para a esquerda por causa dos faróis que, de súbito, haviam aparentemente surgido na sua direcção e na mesma faixa, e perdeu o controlo do automóvel. Lembrei-me da cruz no farol direito do carro do Mischkey. Não tinha sido colocado por ele mas sim pelo velho Schmalz, que desse modo reconhecera na escuridão o momento de abrir as portas traseiras, porque a sua Vítima vinha aí. Ouvi pancadas no portão do hangar. — Abram a porta! Segurança! Energia e Resistência deviam ter visto a luz da minha lanterna. Ao que parecia, o hangar seria tão exclusivamente usado pelo Schmalz que os seguranças da fábrica não tinham a chave. Fiquei contente por aquelas duas forças da juventude não conhecerem o truque do cartão. Apesar disso, estava encurralado. Memorizei a matrícula da furgoneta e reparei que as placas não tinham selo e estavam mal seguras por arame. Pus o motor a trabalhar, enquanto lá fora batiam no portão com mais energia e com mais resistência, e recuei o automóvel até o deixar a um metro de distância da porta, com a superfície espelhada aberta. Depois fui buscar à bancada uma longa e pesada chave-inglesa. Um dos meus dois perseguidores atirou-se contra a porta. Comprimi-me contra a parede, ao lado da porta. Agora precisava de muita sorte. Quando achei que vinha aí o próximo encontrão, pressionei a lingueta. A porta escancarou-se com violência e o primeiro segurança precipitou-se para dentro do hangar, caindo no chão. O segundo entrou a seguir de rompante, com a pistola em riste, e deteve-se assustado perante a sua própria imagem reflectida. O pastor alemão estava ensinado a atacar qualquer homem que ameaçasse o dono com uma arma e saltou, rasgando a película. Ouvi-o ganir de dor dentro do compartimento de carga. O primeiro segurança jazia tonto no chão, o segundo ainda não tinha compreendido o que se passara; eu aproveitei a confusão e safei-me pela porta, correndo a toda a velocidade na direcção do barco. Tinha avançado talvez uns vinte metros pelos carris e pela estrada, quando percebi que Energia e Resistência tinham retomado a perseguição: — Alto! Pare, senão atiro! As suas pesadas botas batiam em compasso rápido nas pedras da calçada, o ofegar do cão aproximava-se cada vez mais, e eu não tinha vontade nenhuma de conhecer o regulamento sobre o uso de armas de tiro no recinto da fábrica. O Reno parecia frio. Mas


eu não tinha escolha e saltei. Graças à corrida, mergulhei com o balanço suficiente para só me deixar voltar à superfície da água depois de um bom bocado. Voltei a cabeça e vi os seguranças com o pastor alemão parados no muro do cais a iluminarem a água com uma lanterna de bolso. As minhas roupas estavam pesadas e a corrente do Reno é forte, e só conseguia avançar com muito esforço. — Gerd, Gerd! — O Philipp deixava o barco flutuar ao sabor da corrente à sombra do muro do cais e chamava-me em voz baixa. — Aqui — respondi num sussurro. Depois, o barco apareceu ao meu lado, e o Philipp puxou-me para bordo. Nesse momento, Energia e Resistência viram-nos. Não sabia o que eles iriam fazer. Talvez desatar aos tiros? O Philipp ligou o motor e virou para o meio do Reno com uma cintilante onda da proa. Fiquei sentado no convés, esgotado e tremendo de frio. Tirei o trapo sujo de sangue do bolso. — Podes fazer-me só mais um favor e investigar que tipo de sangue é este? Acho que sei qual é, grupo sanguíneo O, factor Rhesus negativo, mas certeza é certeza. O Philipp sorria. — Toda esta excitação por causa desse trapo húmido? Mas uma coisa de cada vez. Agora vais lá para baixo, tomas um duche quente e vestes o meu roupão. Logo que passarmos pela polícia fluvial sem sermos incomodados, preparo-te um grogue. Quando saí do duche, estávamos em segurança. Nem as IQR nem a polícia haviam mandado uma canhoneira à nossa procura, e o Philipp estava naquele momento a manobrar o barco no braço do Reno Antigo, perto de Sandhofen. Embora o banho me tivesse aquecido, ainda estava a tremer. Aquilo tinha sido um pouco de mais para a minha idade. O Philipp atracou no lugar de onde partira e entrou no camarote. — Meu caro cisne! — Disse. — Pregaste-me um grande susto. Quando ouvi os tipos a baterem contra a chapa, pensei que algo tinha corrido mal. Só que não sabia o que devia fazer. Depois, vi-te saltar. Os meus parabéns. — Ora, quando tens um cão treinado e feroz a correr atrás de ti, não paras para pensar se a água estará demasiado fria, sabes? Muito mais importante foi tu teres feito exactamente o que tinhas de fazer, no momento certo. Sem ti, provavelmente teria morrido afogado, a única incerteza era se com, ou sem, uma bala na cabeça. Salvaste-me a vida. Estou muito feliz por não seres apenas um estúpido mulherengo. O Philipp mexia em tachos e panelas, embaraçado, pela cozinha. — Talvez agora possas contar-me o que tinhas perdido nas IQR. — Perder, não perdi nada, mas encontrei algumas coisas. Além deste trapo nojento e molhado, encontrei a arma do crime e provavelmente também o assassino. Daí o trapo molhado. Enquanto bebia o grogue fumegante, contei ao Philipp a história da furgoneta e das suas surpreendentes opções.


— Mas se foi assim tão simples varrer o teu Mischkey de cima da ponte, porquê os ferimentos do veterano da segurança? — perguntou o Philipp quando terminei o relato. — Devias ter ido para detective privado. És de compreensão rápida. Ainda não sei a resposta, a não ser que… Lembrei-me do que a patroa do restaurante da estação me havia contado. — A mulher da antiga estação de comboios ouviu dois estrondos, um logo a seguir ao outro. Agora já percebi. O carro do Mischkey ficou pendurado nos rails de protecção da ponte, então, com um esforço enorme, o Schmalz sénior conseguiu tirá-lo do seu equilíbrio precário e foi aí que se feriu. Duas semanas mais tarde morria por causa desse esforço. Sim, deve ter-se passado assim. — Tudo isso bate certo, até do ponto de vista médico. O primeiro estrondo ao bater nos rails, o segundo no embate com a via férrea. Quando as pessoas idosas fazem esforços exagerados, pode acontecer que sofram um pequeno acidente vascular cerebral. Do qual não se apercebem até ao momento em que o coração deixa de colaborar. De repente, senti-me muito cansado. — Apesar disso, ainda há muitas coisas que não estão claras. Não foi o velho Schmalz que teve a ideia de matar o Mischkey. E também ainda não sei qual foi o motivo. Philipp, leva-me a casa, por favor. O Bordéus fica para a próxima. Só espero que não venhas a ter complicações por causa das minhas aventuras. Quando virámos na Rua Gerwig para a Rua Sandhofen, um carro da Polícia passou por nós a toda a velocidade com a luz azul a piscar e sem sirene, em direcção ao cais. Nem sequer me virei.


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De mãos postas a rezar

Depois de uma noite febril, telefonei à Brigitte. Ela veio logo, trouxe quinino para combater a febre e gotas para o nariz, massajou-me as costas, pendurou a roupa que eu deixara caída no corredor na noite anterior para que secasse, preparou-me qualquer coisa na cozinha para o almoço, que bastaria aquecer, saiu, comprou sumo de laranja, glucose e cigarros e deu de comer ao Turbo. Foi eficiente, valorosa e preocupada. Quando eu quis que se sentasse por um bocadinho na beira da minha cama, teve de se ir embora. Dormi quase o dia inteiro. O Philipp telefonou e confirmou o grupo sanguíneo O e o factor Rhesus negativo. Na penumbra do meu quarto, penetravam pela janela os ruídos do trânsito no Centro Augusta e os gritos de crianças a brincar. Lembrei-me dos meus dias de doença em menino, do desejo de brincar lá fora com as outras crianças, e, ao mesmo tempo, do gozo da minha própria fraqueza e dos mimos maternos. Numa sonolência febril, fugia, correndo uma e outra vez à frente do cão a ofegar e de Energia e Resistência. O medo que no dia anterior não sentira, porque tudo se havia passado demasiado depressa, apossava-se de mim. Tive fantasias febris sobre o assassinato do Mischkey e os motivos do Schmalz. Melhorei ao fim da tarde. A febre baixou, mas eu sentia-me fraco, e soube-me bem comer o caldo de carne com massa e legumes que a Brigitte preparara, e fumar depois um Sweet Afton. Como deveria prosseguir o trabalho no meu caso? Um crime é um assunto de Polícia, e mesmo que as IQR, coisa que eu conseguia imaginar, fizessem correr o véu do esquecimento sobre o incidente de ontem, os empregados da fábrica nunca mais me contariam coisa alguma. Telefonei ao Nâgelsbach. Ele e a mulher já tinham jantado e estavam no atelier. — Claro que pode passar por cá agora. Também pode ou vir connosco a Hedda Gabler, estamos neste momento no terceiro acto. Pendurei um papel na porta para sossegar a Brigitte, caso ela ainda passasse por ali para ver como eu estava. A viagem até Heidelberg foi horrível. Só com muita dificuldade é que a minha lentidão e a velocidade dos outros carros se entendiam. Os Nâgelsbach viviam numa casa modesta dos anos vinte. O alpendre, inicialmente pensado para galinhas e coelhos, tinha sido transformado por Nâgelsbach no seu atelier, com uma janela enorme e muitos candeeiros. A noite estava fresca, e na salamandra ardiam cavacos. O Nâgelsbach estava sentado no seu banco alto, diante do grande tampo da mesa, sobre o qual ia tomando forma o “De mãos postas a rezar”, de Dúrer, em paus de fósforo. A sua mulher lia alto, sentada na poltrona ao lado da salamandra. Era o idílio perfeito que se oferecia aos meus olhos, quando entrei pelo portão de trás do jardim e me dirigi logo para o atelier, espreitando pela janela antes de bater. — Meu Deus, mas que aspecto tem! A senhora Nâgelsbach cedeu-me a poltrona e sentou-se num escabelo.


— Deve ser uma coisa muito importante, para ter vindo aqui nesse estado — cumprimentou-me o Nâgelsbach. — Incomoda-o que a minha mulher fique? Eu conto-lhe tudo, mêsmo do serviço. A obrigação de sigilo não se aplica a casais sem filhos, que só se têm um ao outro. Enquanto eu falava, o Nàgelsbach continuou a trabalhar. Não me interrompeu. No fim do meu relato, ficou calado durante algum tempo; depois apagou o candeeiro de trabalho, virou-se para nós no seu banco alto e disse: — Explica ao senhor Selb o ponto da situação. — Com aquilo que acabou de contar, a Polícia talvez obtenha um mandato de busca para o velho hangar. Talvez ainda lá encontre a Citroen. Mas nada nela será estranho ou suspeito, já não existirá nenhuma película reflectora nem nenhum triplico mortal. A propósito, descreveu isso tudo maravilhosamente. Bem, e depois a Polícia pode interrogar alguns dos seguranças da fábrica, a viúva Schmalz e ainda mais alguém entre as pessoas que nomeou, mas que resultados terá? — Assim é. Claro que eu posso dar esse caso ao Herzog e ele pode tentar utilizar os seus conhecimentos nos serviços de Segurança da fábrica, mas isso não irá modificar nada. Mas isso tudo já o senhor sabe, senhor Selb. — Sim, também já tinha chegado a essa conclusão. Contudo, pensei que talvez se lembrassem de mais alguma coisa que a Polícia pudesse fazer, que… Ora, também não sei o que pensei. Não consigo resignar-me com que o caso tenha este fim. — Tens alguma ideia quanto ao motivo? — A senhora Nàgelsbach dirigia-se ao marido. — Não é possível fazer nada a partir disso? — Com tudo aquilo que sabemos até agora, só consigo supor que houve qualquer coisa que correu mal. Da mesma maneira que na história que me leste há pouco. As IQR têm problemas com o Mischkey, este torna-se cada vez mais incómodo e, então, um dos que manda, diz: “Agora já chega”, e o seu subordinado apanha um susto e diz, por sua vez: “Trate desse Mischkey de maneira a que ele nos deixe em paz, arranje-se”, e o que recebeu esta ordem quer mostrar eficiência e esporeia os seus subordinados e encoraja-os a encontrarem uma solução, mesmo que extraordinária, e no final desta longa cadeia um deles pensa que o que querem é que o Mischkey seja morto. — Mas o velho Schmalz estava reformado e já não pertencia sequer a essa cadeia — reflectiu a mulher. — Isso é difícil de afirmar. Quantos polícias não conheço eu que, mesmo depois de reformados, ainda se comportam como tal? — Pelo amor de Deus — interrompeu-o ela —, não me estás a querer dizer que tu… — Não, não estou a querer dizer-te nada. Talvez o Schmalz sénior fosse um desses que ainda se sentia ao serviço. O que eu quero dizer, com tudo isto, é que não é necessário que exista um motivo para o crime, na acepção clássica do termo. O assassino pode ser apenas um executor sem motivo e, por sua vez, quem tinha o motivo não queria que houvesse uma morte. Esse é o efeito e, ao fim e ao cabo, a razão de ser das hierarquias. Também conhecemos isto na Polícia, nas Forças Armadas.


— Pensas que poderia fazer-se mais alguma coisa, se o velho Schmalz ainda estivesse vivo? — Bem, primeiro o senhor Selb nunca teria ido tão longe. Não teria sabido do ferimento do Schmalz, não teria ido procurar o velho hangar e nunca teria encontrado a furgoneta assassina. As pistas há muito que teriam sido destruídas. Mas está bem, imaginemos que teríamos chegado às nossas informações de outra maneira. Não, não penso que pudéssemos vir a saber mais alguma coisa pelo velho Schmalz. Esse deve ter sido um osso bem duro de roer. — Mas isto não pode ser assim, Rudolf. Quando te ouvimos, parece que o único que se pode prender nesse tipo de cadeias hierárquicas é o último elo. E os outros todos, são inocentes? — Se são inocentes ou não, é uma questão; se conseguimos apanhá-los, é outra questão diferente. Vê bem, Reni, claro que não sei se houve realmente alguma coisa que tenha corrido mal, ou se, antes pelo contrário, a cadeia estava tão bem oleada que cada um sabia bem o que se pretendia, sem ser necessário nomeá-lo. Mas se estava assim tão bem oleada, não é possível arranjar provas nenhumas. — Deveremos então aconselhar o senhor Selb a falar com um dos manda-chuvas das IQR? De modo a compreender o seu comportamento? — Isso não ajudará a instrução criminal. Mas tens razão, é a derradeira coisa que ele ainda poderá fazer. Fez-me bem o modo como os dois resolveram o jogo de perguntas e respostas sobre o qual eu, no meu triste estado, não conseguia reflectir como devia ser. Restava então ter uma conversa com o Korten. A senhora Nágelsbach fez-me uma verbena, e falámos sobre arte. O Nágelsbach contou o que o seduzia a realizar o “De mãos postas a rezar”. Achava as reproduções habituais demasiado sentimentais, tal como eu. Exactamente por essa razão, o seu desejo era conseguir, através da estrutura severa dos paus de fósforo, a sublime sobriedade do modelo de Dúrer. Quando nos despedimos, ele prometeu verificar a matrícula do Citroen do Schmalz. O recado para a Brigitte ainda estava pendurado na porta. Quando já estava deitado, ela telefonou. — Estás melhor? Lamento não ter podido voltar a passar por aí, mas simplesmente não consegui. Tens planos para o fim-de-semana? Achas que consegues vir jantar a minha casa amanhã à noite? Algo não estava bem com ela. A sua jovialidade parecia forçada.


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Chá na loggia

Na manhã de sábado, encontrei uma mensagem do Nágelsbach e uma do Korten no gravador de chamadas. A matrícula do Citroen do velho Schmalz tinha sido atribuída há cinco anos a um VW-Carocha de um funcionário dos Correios de Heidelberg. A matrícula que eu tinha visto provinha provavelmente desse antecessor tornado ferro-velho. O Korten perguntava se eu não queria dar um salto a casa dele, na Rua Ludolf Krehl. Que lhe telefonasse a dar uma resposta. — Meu querido Selb, ainda bem que telefonas. Queres vir hoje à tarde beber um chá na loggia? Ouvi que provocaste alguns distúrbios lá na fábrica. E pareces constipado, mas isso não me espanta, ah! ah! Os meus parabéns pela tua condição física. Às quatro, estava na Rua Ludolf Krehl. Para Inge, caso ainda fosse a Inge, trouxera um ramo de flores outonal. Admirei o portão da entrada, a câmara de vídeo e o intercomunicador. Consistia num auscultador de telefone preso a um longo cabo, que o motorista podia tirar de uma caixa ao lado do portão e passar a Sua Senhoria, dentro do carro. Quando fiz menção de me sentar no carro com o auscultador, ouvi o Korten dizer, com a paciência atormentada com que se fala com uma criança mal-educada: — Não faças disparates, Selb! O teleférico já vai a caminho. Durante o trajecto, tinha uma vista de Neuenheim, da planície do Reno até à floresta do Palatinado. O ar estava transparente e eu conseguia reconhecer as chaminés das IQR. O seu fumo branco perdia-se inocentemente no céu azul. Vestindo umas calças de flanela grossa, camisa aos quadrados e casaco de malha de andar por casa, o Korten cumprimentou-me calorosamente. A sua volta saltitavam dois salsichas. — Mandei pôr a mesa na loggi. Não está demasiado frio para ti, pois não? Posso emprestar-te um dos meus casacos de malha, a Helga tricota uns atrás dos outros. Ficámos ali de pé e saboreámos a vista. — Aquela igreja lá em baixo é a tua? — A Igreja de S. João? Não, pertencemos à paróquia da Igreja da Paz, em Handschuhsheim. Fui lá presbítero. Um mester bonito, esse. A Helga apareceu com a cafeteira, e eu livrei-me das flores. Conhecera a Inge apenas de passagem e também não sabia se ela morrera, se divorciara ou se simplesmente partira. A Helga, a nova mulher ou a nova amante, era parecida com ela. A mesma vivacidade, a mesma modéstia fingida, a mesma alegria pelo meu ramo de flores. Comeu a primeira fatia do bolo de maçã connosco. Depois: “Vocês, homens, querem certamente ficar sozinhos”. Como é próprio, ambos a contradissemos. E, como é próprio, apesar disso ela deixou-nos sós. — Posso comer mais uma fatia do bolo de maçã? Está muito bom.


O Korten recostou-se na poltrona. — Estou certo de que tinhas um motivo muito forte para teres assustado os nossos seguranças, na noite de quinta-feira. Se não te importares, gostaria muito de saber qual era. Fui eu quem te introduziu há pouco tempo na fábrica, e tenho sido alvo de olhares espantados desde que a tua aventura se tornou conhecida. — Conhecias bem o velho Schmalz, em cujo enterro foi lida uma despedida pessoal tua? — Certamente que não foste ao barracão à procura da resposta a essa pergunta. Mas está bem, conhecia-o melhor e gostava mais dele do que de todos os outros seguranças da fábrica. Naquele tempo, nos anos maus, estabelecemos relações de amizade com alguns trabalhadores simples, o que hoje em dia já não é possível. — Foi ele quem matou o Mischkey. E eu encontrei no hangar provas disso, a arma do crime. — O velho Schmalz? Esse não era capaz de fazer mal a uma mosca. Mas como foi possível convenceres-te disso, meu querido Selb? Sem falar na Judith, e sem entrar em pormenores, relatei o que se passara. — E se me perguntares o que tenho eu a ver com isso, então lembra-te da nossa última conversa. Pedi-te para tratares o Mischkey suavemente, e pouco tempo depois ele morre. — E onde está a razão, o motivo, do velho Schmalz, para uma acção desse género? — Podemos falar disso já a seguir. Mas primeiro gostaria de saber se tens ainda alguma pergunta em relação ao que se passou. O Korten levantou-se e andou de um lado para o outro Com passos pesados. — Por que é que não me telefonaste logo, ontem de manhã? Talvez pudéssemos ter encontrado mais alguma coisa no hangar. Agora é tarde de mais. Já estava marcado há semanas: ontem demolimos o complexo dos antigos edifícios, incluindo o velho hangar. Esse foi também o motivo pelo qual fui falar pessoalmente com o velho Schmalz há quatro semanas. Tentei explicar-lhe, enquanto bebíamos uma aguardentezinha, que, Infelizmente, não podíamos deixar-lhe o velho hangar, nem a antiga casa da fábrica. — Estiveste em casa do velho Schmalz? — Pedi-lhe que viesse ter comigo. Claro que uma comunicação desse tipo não passa normalmente por mim. Mas ele recordava-me sempre os velhos tempos. Sabes que ultimamente estou cada vez mais sentimental. — E o que é que aconteceu à furgoneta? — Não faço ideia, o filho deve ter-se ocupado dela. Mas, voltando atrás, onde vês tu um motivo? — Na verdade, pensei que tu pudesses dizer-me isso. — Como assim? Os passos do Korten diminuíram a cadência; depois parou, virou-se para mim e olhou-


me com atenção. — Que o velho Schmalz não tinha nenhum motivo pessoal para matar o Mischkey, percebe-se. Mas a fábrica tinha alguns problemas com ele, tinha-o pressionado, até o tinha mandado espancar; e ele reagiu. E, de um momento para o outro, poderia expor o vosso acordo com o Gremlich. Não queres com certeza dizer-me que não sabias de nada? Não, o Korten não queria dizer isso. Soubera dos problemas, e também do acordo com o Gremlich. Mas nada daquilo chegava para cometer um assassinato. — A não ser que… — tirou os óculos —, a não ser que o velho Schmalz tivesse percebido mal. Sabes, ele era uma daquelas pessoas que ainda pensava estar ao serviço, e se o filho ou outro segurança qualquer lhe contou os problemas com o Mischkey, talvez ele tenha pensado que tinha de se armar em salvador da fábrica. — O que poderia o velho Schmalz ter entendido de uma maneira tão errada? — Não sei o que o filho, ou qualquer outra pessoa, lhe terá contado. Ou se alguém o terá mesmo instigado? Vou investigar essa coisa a fundo. É insuportável pensar que afinal abusaram do meu velho Schmalz dessa maneira. E que fim trágico. Um grande amor pela fábrica, um pequeno e estúpido mal-entendido, e eis que, sem razão, ele ceifa uma vida e sacrifica a sua. — O que é que se passa contigo? Sacrificar a vida, ceifar uma vida, tragédia, abuso… pensava que não era condenável usarmos as pessoas e que era apenas pouco delicado deixar que elas se apercebessem disso. — Tens razão, mas voltemos ao assunto. Devemos informar a Polícia? E isso era tudo? Um segurança veterano, demasiado zeloso, havia morto o Mischkey, e isso nem sequer tirava o apetite do Korten pelo ovo do pequeno-almoço. A perspectiva de ver a Polícia na fábrica assustá-lo-ia? Fiz uma tentativa. O Korten pesou as vantagens e as desvantagens. — Não se trata apenas do facto de ser sempre desagradável ter a Polícia na fábrica. Tenho pena da família Schmalz. Perder o marido e pai e depois ainda vir a saber que ele cometeu um erro mortal… Poderemos assumir isso? Não há nada mais a expiar: o Schmalz pagou com a vida. Ainda estou preocupa do com a indemnização. Sabes se o Mischkey ainda tinha pais, dos quais cuidasse, ou quaisquer outras obrigações, ou se tem uma lápide decente? Terá deixado alguém a quem se possa oferecer alguma coisa? Importar-te-ias de tratar disso? Parti do princípio de que a Judith não quereria coisa nenhuma. — Já investiguei o suficiente no caso Mischkey. O que ainda pretendes saber, se essa for verdadeiramente a tua intenção, pode a senhora Schlemihl tratar com uns poucos de telefonemas. — És sempre tão susceptível. Fizeste um trabalho excepcional no caso Mischkey. Também te estou agradecido por teres continuado com a segunda parte das tuas investigações. Tenho de estar informado sobre essas coisas. Posso estender até ao tempo presente o trabalho original de que te incumbi e pedir-te que me apresentes a conta?


Enviar-lhe-ia a conta. — Ah, e uma coisa ainda — disse o Korten —, já que estamos a tratar de coisas práticas. Esqueceste-te de devolver a identificação especial com o teu relatório. Desta vez, mete-a dentro do envelope com a factura. Tirei a identificação do bolso. — Podes ficar já com ela. E agora vou-me embora. A Helga entrou na loggía como se tivesse estado à escuta atrás da porta e ouvisse o sinal de despedida. — As flores são maravilhosas, quer ver onde as coloquei? — Ora, tratem-se por tu, meninos. O Selb é o meu amigo mais antigo. O Korten pôs-nos os braços em redor dos ombros. Eu queria desaparecer dali. Em vez disso, segui os dois até ao salão, admirei o meu ramo de flores sobre o piano, ouvi o estalo da rolha da garrafa de champanhe e brindei com a Helga ao tratamento por tu. — Por que é que não o vimos mais frequentemente aqui em casa? — perguntou ela com toda a inocência. — Sim, isso tem de se alterar — disse o Korten, antes que eu pudesse dizer alguma coisa. — O que pensas fazer na Passagem do Ano? Pensei na Brigitte. — Ainda não sei. — Isso é óptimo, meu querido Selb. Então, voltaremos a falar em breve.


23

Tens um lenço?

A Brigitte havia cozinhado strogonoffáe lombo de vaca com cogumelos e arroz. Estava delicioso, o vinho estava à temperatura adequada, e a mesa afectuosamente posta. A Brigitte falou muito. Eu trouxera-lhe o Greatest Hits do Elton John, e ele cantava o amor, a mágoa, a esperança e a separação. Ela alargou-se sobre a reflexologia, a acupressura e o rol-fing. Falou-me de doentes, de caixas de previdência e de colegas. Não se estava a importar nada se isso me interessava ou se eu me sentia melhor. — O que é que está a passar-se contigo? Hoje à tarde, quase não reconheci o Korten, e agora estou sentado ao lado de uma Brigitte que apenas tem a cicatriz no lóbulo da orelha em comum com a mulher de quem eu gosto. Ela pousou o garfo, apoiou os braços na mesa, tapou a cara com as mãos e começou a chorar. Dei a volta à mesa e fui até junto dela; ela escondeu a cara na minha barriga e chorou ainda com mais força. — O que é que se passa? — fiz-lhe festas no cabelo. — Eu… Ora… Eu, isto é de ir às lágrimas. Vou-me embora amanhã. — E é por isso que estás a chorar? — É por tanto tempo. E é tão longe daqui. Levantou o nariz. — Por quanto tempo e para onde? — Ora… Eu… — Controlou-se. — Tens um lenço? Vou passar seis meses ao Brasil. Por causa do meu filho. Sentei-me novamente. Agora era eu que estava à beira das lágrimas. Ao mesmo tempo, sentia-me furioso. — Por que é que não me contaste isso há mais tempo? — Eu não fazia ideia de que isto se tornaria tão bom contigo. — Não compreendo. Ela pegou na minha mão. — Eu e o Juan planeámos estes seis meses para ver se ainda conseguíamos viver juntos. O Manuel sente muito a falta da mãe. E contigo, pensei, era apenas um curto episódio e estaria tudo acabado quando partisse para o Brasil. — O que é que queres dizer com o facto de teres pensado que estaria tudo acabado quando partisses para o Brasil? Os bilhetes postais com o Pão-de-Açúcar não vão modificar nada.


Sentia-me triste como um viúvo. Ela não disse mais nada e ficou a olhar o vazio. Depois de um bocado, tirei a minha mão das suas e levantei-me. — É melhor ir-me embora agora. Ela assentiu com a cabeça, sem dizer nada. No corredor, ainda se apoiou em mim por um momento. — De qualquer maneira, não posso continuar a ser a mãe-cuco que tu detestas.


24

De cabeça bem erguida

Tive uma noite sem sonhos. Acordei às seis horas, sabia que tinha de falar naquele dia com a Judith, e pensei no que deveria contar-lhe. Tudo? Como iria ela conseguir continuar a trabalhar nas IQR e a viver como vivia? Mas esse era um problema que eu não podia resolver por ela. Às nove horas, telefonei-lhe. — Cheguei ao fim do caso, Judith. Vamos dar um passeio pelo porto e conto-te? — Não me está a soar bem. O que é que descobriste? — Vou buscar-te às dez. Pus café a fazer, tirei a manteiga do frigorífico, os ovos e o presunto, piquei cebolas e cebolinho, aqueci leite para o Turbo, espremi três laranjas, pus a mesa e fiz dois ovos estrelados sobre o presunto e cebolas levemente refogadas. Quando os ovos estavam no ponto certo, polvilhei-os com cebolinho. O café estava pronto. Fiquei sentado durante muito tempo diante do meu pequeno-almoço, sem lhe tocar. Pouco antes das dez bebi uns golos de café. Dei os ovos ao Turbo e saí. Quando toquei à campainha, a Judith desceu logo. Estava linda no seu casaco de lã grossa com a gola levantada, tão linda como só se consegue quando se está triste. Deixámos o carro perto dos escritórios do porto e caminhámos ao longo da Rua Rheinkai, por entre os edifícios dos caminhos-de-ferro e os antigos armazéns. Sob o céu cinzento de Setembro, estava tudo numa quietude dominical. Os tractores John Deere estavam parados como se esperassem o começo de uma missa campal. — Começa lá a contar-me. — O Firner não te contou nada da minha peripécia com os seguranças da fábrica, na quinta-feira à noite? — Não. Acho que ele descobriu que eu andava com o Peter. Comecei a contar a conversa que havia tido no dia anterior com o Korten, demorei-me mais tempo com a questão de saber se o velho Schmalz, como último elo de uma cadeia de ordens muito eficiente, se teria excedido, armando-se megalomanamente em salvador da fábrica, ou se teriam abusado dele, e também não poupei nos pormenores do assassinato na ponte. Deixei muito claro que ia uma grande distância entre aquilo que eu sabia e aquilo que era possível provar. A Judith caminhava com passos seguros ao meu lado. Tinha a cabeça bem erguida e com a mão esquerda mantinha a gola do casaco fechada contra o vento do Norte. Não me interrompeu. Mas agora dizia-me com um pequeno sorriso, que me atingiu mais fortemente do que se ela tivesse chorado: — Sabes, Gerhard, é tão absurdo. Quanto te pedi que descobrisses a verdade, pensei que ela iria ajudar-me. Mas sinto— me mais desamparada do que antes.


Invejei a Judith pela clareza da sua mágoa. A minha tristeza estava empapada com o sentimento de impotência, de culpa, porque, embora sem querer, tinha entregado o Mischkey aos carrascos, com o sentimento de terem abusado de mim, e com o orgulho inadequado de ter levado tão longe o esclarecimento. Também me entristecia o modo como o caso começara por nos aproximar, àjudith e a mim, e depois nos envolvera de tal maneira que nunca poderíamos voltar a aproximar-nos inocentemente. — Envias-me a conta? Ela não percebera que o Korten queria pagar a minha investigação. Quando lho expliquei, ainda se introverteu mais e disse: — Isso diz mesmo bem com este caso. Também diria bem se eu fosse promovida e me tornasse secretária-chefe do Korten. Isto repugna-me tanto… Entre o armazém com o número 17 e aquele com o número 19, virámos à esquerda e aproximamo-nos do Reno. Do outro lado, estava o arranha-céus das IQR. O Reno fluía, largo e silencioso. — O que é que devo fazer agora? Eu não sabia a resposta. Se no dia seguinte ela conseguisse colocar a pasta dos documentos para serem assinados diante do Firner, como se não se tivesse passado nada, então tudo continuaria como antes. — O que é horrível é o Peter estar já tão longe, interiormente. Em casa, deitei fora tudo o que me lembrava dele, porque me fazia doer demasiado. Mas agora sinto frio, na minha solidão arrumada. Descemos ao longo do Reno. De repente, ela virou-se para mim, agarrou-me pelo casaco, abanou-me e gritou: — Não podemos simplesmente resignar-nos com isto! — Com a mão direita descreveu um largo arco que abarcava a fábrica do outro lado. — Eles não podem safar-se assim! — Não, eles não deviam poder, mas podem. Os poderosos sempre se safaram, ao longo da História. E, neste caso, talvez nem sequer se trate dos poderosos, mas apenas de uma megalomania do Schmalz. — Mas essa é que é realmente a força do poder: que não seja necessário agir pessoalmente, mas encontrar um megalómano qualquer que o faça. Isso não pode desculpá-los, de maneira nenhuma. Tentei explicar-lhe que não queria encontrar desculpas para ninguém, mas que simplesmente não podia continuar com a investigação. — Tu também és um qualquer que faz o trabalho sujo para os poderosos. Agora, deixame só, eu sei o caminho de regresso. Reprimi o meu impulso de a deixar e, em vez disso, disse: — Isso é uma loucura. A secretária do director das IQR acusa o detective, que conduziu uma investigação para as IQR, de trabalhar para as IQR. Mas que arrogância. Continuámos a andar. Depois de um bocado, ela enfiou o braço no meu.


— Antigamente, quando acontecia uma coisa má, tinha sempre a sensação de que tudo iria compor-se. A vida, quero eu dizer. Até mesmo depois do meu divórcio. Agora sei que nada irá ser igual ao que era dantes. Conheces esta sensação? Assenti com a cabeça. — Olha, o que me fará melhor agora é andar mais um pouco por aqui, sozinha. Vai-te embora descansado. Não precisas de me olhar com esse ar preocupado, não vou fazer nenhum disparate. Na Rua Rheinkai, voltei a olhar para trás. Ela ainda não tinha dado um passo. Olhava as IQR sobre o recinto plano da fábrica antiga. O vento levava um saco vazio de cimento pela rua.


TERCEIRA PARTE


1

Um marco na Jurisprudência

Depois de um longo e dourado final de Estio, o Inverno irrompeu rudemente. Não me recordo de nenhum Novembro mais frio. Não trabalhei muito. A investigação do caso Sergej Mencke avançava a passo de caracol. A companhia de seguros fazia-se rogada em me enviar à América. O encontro com o mestre de bailet ocorrera durante os ensaios e instruíra-me sobre danças indianas, que estavam nesse momento a ser ensaiadas, mas de resto apenas me mostrara que havia quem gostasse e quem não gostasse do Sergej, e que o mestre de ballet pertencia a estes últimos. Durante duas semanas, o reumatismo atacou-me de tal maneira que não consegui fazer mais do que os esforços quotidianos imprescindíveis. Para além disso, passeei muito, fui frequentemente à sauna e ao cinema, terminei de ler o Grúnen Heinrich, que deixara suspenso durante o Verão, e vi a pelagem de Inverno do Turbo a crescer. Num sábado, encontrei ajudith no mercado. Já não trabalhava nas IQR, vivia do subsídio de desemprego e ajudava na livraria feminista Xanthippe. Ficámos de nos encontrar um dia, mas nenhum de nós deu o primeiro passo. Joguei com o Eberhard as partidas do campeonato mundial de xadrez entre o Karpov e o Kasparov. Quando estávamos no último jogo, a Brigitte telefonou-me do Rio. A ligação zunia e fazia outros ruídos, e eu quase não a percebi. Acho que disse que sentia a minha falta. Isso não me servia de nada. Dezembro começou com uns inesperados dias de ventos quentes. No dia dois de Dezembro, o Tribunal Constitucional promulgou a inconstitucionalidade do registo directo de emissões de poluentes em vigor em Baden-Wúrtenberg e na Renânia-Palatinado. Censurava a violação da liberdade de informação das empresas e do direito ao livre exercício de uma actividade industrial, mas, ao fim e ao cabo, foi por uma questão de competência que rejeitou este regulamento. O conhecido redactor-chefe do Frankfurter Allgemeinen Zeitung festejava a decisão como um marco da Jurisprudência, porque a protecção de dados fizera finalmente explodir as amarras da mera protecção do cidadão e conquistara a dimensão da protecção empresarial. Apenas agora se revelava toda a importância da decisão para efectuar o recenseamento populacional. Fiquei a pensar no que aconteceria à lucrativa actividade paralela do Gremlich. Iriam as IQR continuar a pagar-lhe para o manterem calado? Também me perguntei se a Judith teria lido a notícia de Karlsruhe, e o que lhe teria passado pela cabeça ao lê-la. Se essa decisão tivesse sido tomada um ano mais cedo, não teriam existido problemas entre o Mischkey e as IQR. No mesmo dia encontrei na caixa do correio uma carta de São Francisco. Vera Múller era uma antiga habitante de Mannheim, emigrara em 1936 para os EUA e ensinara literatura europeia em diversas faculdades californianas. Havia alguns anos que estava reformada e lia, por nostalgia, o Mannheimer Morgen. Tinha-se admirado por não ter tido resposta à sua primeira carta para o Mischkey. Reagira ao anúncio porque o destino da sua amiga judia, durante o Terceiro Reich, estava tristemente enredado com as IQR. Achava que se tratava de um trecho da História recente sobre o qual deveriam existir mais


investigações e publicações, e estava pronta a estabelecer o contacto com a senhora Hirsch. Não queria provocar nenhuma aflição desnecessária, mas apenas estabelecer o contacto se o projecto de investigação fosse cientificamente sólido e frutuoso sob o ponto de vista da consideração do passado. Pedia mais informações. Era a carta de uma senhora culta, redigida num alemão bonito, encantadoramente arcaico e escrito com uma letra alcantilada e austera. Em Heidelberg, durante o Verão, vejo de vez em quando velhas turistas americanas com tons azulados no cabelo branco, óculos de aros cor-de-rosa e maquilhagem garrida sobre a pele rugosa. Sempre me causou estranheza essa coragem de se apresentarem como caricaturas, expressão de um desespero cultural. Ao ler a carta de Vera Múller, consegui imaginar subitamente uma dessas senhoras idosas como sendo interessante e fascinante, e descobri, no seu desespero cultural, o cansaço sábio de povos há muito esquecidos. Escrevi-lhe dizendo que tentaria, em breve, ir ter com ela. Telefonei às Seguradoras Reunidas de Heidelberg. Deixei ficar claro que sem a viagem à América apenas me restava escrever o relatório final e apresentar a conta. Uma hora depois telefonou-me um responsável a dizer-me que podia partir. Por isso, estava outra vez no caso Mischkey. Não fazia ideia do que ainda poderia descobrir. Mas ali estava aquela pista que se havia perdido e que agora aparecera novamente. E com a luz verde das Seguradoras Reunidas de Heidelberg, podia segui-la com tanta facilidade que não tive de pensar muito no porquê e no fim a atingir. Eram 15 horas, e verifiquei, com a ajuda da minha agenda de bolso, que eram 9 horas em Pittsburgh. Ficara a saber pelo mestre de ballet que os amigos do Sergej Mencke trabalhavam no Pittsburgh State Ballet, e as informações telefónicas internacionais deramme o respectivo número de telefone. A rapariga dos Correios estava muito bem-disposta. — Quer telefonar à pequena do Flashdance? Eu não conhecia o filme. — O filme presta para alguma coisa? Vale a pena ir vê-lo? Ela tinha ido vê-lo três vezes. O telefonema internacional para Pittsburgh foi uma tortura por causa do meu mau inglês. Mas pelo menos consegui ficar a saber, pela secretária do ballet que ambos os bailarinos passariam o mês de Setembro em Pittsburgh. Combinei com a minha agência de viagens que receberia uma factura correspondente a um voo Lufthansa de Frankfurt para Pittsburgh mas que me reservariam um voo a preços económicos de Bruxelas para São Francisco, com mudança de avião em Nova Iorque e uma saltada a Pittsburgh. No início de Dezembro nunca havia muito movimento sobre o Atlântico. Reservaram-me um voo para quinta-feira de manhã. Ao fim da tarde telefonei para São Francisco, a Vera Múller. Disse-lhe que tencionava escrever-lhe, mas que subitamente surgira a possibilidade de uma estada nos EUA e que no fim-de-semana estaria em São Francisco. Ela disse que me anunciaria à senhora Hirsch, que ela própria estaria ausente de São Francisco durante o fim-de-semana, mas que gostaria muito de estar comigo na segunda-feira. Anotei o endereço da senhora Hirsch: 410 Connecticut Street, Potrero Hill.


2

Com um estalo, apareceu a imagem

Recordava imagens de filmes antigos, de navios a chegarem a Nova Iorque, a passarem pela estátua da Liberdade e diante dos arranha-céus, e imaginara poder ver mesmo a partir da pequena janela à minha esquerda, em vez da do convés de um navio a vapor. Mas o aeroporto situava-se muito longe da cidade, era frio e sujo, e fiquei contente quando mudei e me sentei dentro do avião para São Francisco. As filas de cadeiras estavam de tal maneira perto que só se aguentava estar sentado com o assento reclinado. Aquando da distribuição da refeição, as costas tinham de voltar à posição vertical e, provavelmente, a companhia só servia a comida para que ficássemos contentes por podermos depois recostar-nos novamente. Cheguei à meia-noite. Um táxi levou-me por uma auto-estrada de seis faixas para a cidade e o hotel. Sentia-me num estado miserável por causa da tempestade que o avião havia atravessado. O moço do hotel que me transportou as malas até ao quarto ligou a televisão; com um estalo, apareceu a imagem. Um homem falava com uma impertinência obscena. Mais tarde apercebi-me de que se tratava de um pregador. Na manhã seguinte, o porteiro chamou-me um táxi, e eu saí para a rua. A janela do meu quarto dava para a parede de um edifício vizinho, e a manhã passada no quarto fora cinzenta e silenciosa. Agora, as cores e os barulhos da cidade explodiam ao meu redor, sob um céu azul sem nuvens. A viagem sobre as colinas da cidade, pelas ruas rectas que conduziam colina acima e depois se precipitavam para baixo, os solavancos rangentes das molas gastas do táxi quando passávamos num cruzamento de ruas perpendiculares, as vistas para os arranha-céus, as pontes e um grande bosque, deixaram-me num estado semelhante ao da embriaguez. A casa situava-se numa rua sossegada. Como todas as casas em redor, também era de madeira. Uma escada conduzia à porta de entrada. Subi-a e toquei à campainha. Um ancião abriu-me a porta. — Senhor Hirsch? — O meu marido morreu há dez anos. Não tens de te desculpar, é frequente pensarem que sou um homem e já estou habituada. És o tal alemão de quem a Vera me falou, não é verdade? Talvez fosse da confusão ou do voo ou da viagem de táxi — devo ter desmaiado e voltei a mim quando a velhota me despejou um copo de água no rosto. — Tiveste sorte em não teres caído pelas escadas abaixo. Quando conseguires, entra e eu sirvo-te um whisky. Senti as entranhas a arder. A sala era mofenta e cheirava a velhice, a corpos velhos e a comida velha. Em casa dos meus avós também pairava o mesmo cheiro, lembrei-me subitamente, e subitamente fiquei transido do medo de envelhecer que eu sempre reprimia.


A mulher estava sentada diante de mim e observava-me. A luz do sol entrava em faixas pelas persianas e caía sobre ela. Era totalmente calva. — Queres falar comigo sobre Karl Weinstein, o meu marido. A Vera acha que é importante falar sobre o que se passou naquele tempo. Mas não são histórias bonitas. O meu marido tentou esquecê-las. Não me apercebi logo de quem era Karl Weinstein. Mas quando ela começou a falar, lembrei-me. Ela não sabia que não estava apenas a contar a sua história, mas também a tocar no meu passado. Falou com uma estranha voz monocórdica. Weinstein havia sido professor de química orgânica em Breslau, até 1933. Em 1941, quando foi enviado para um campo de concentração, o seu antigo assistente, Tyberg, requisitou-o para os laboratórios das IQR e ficou na equipa deste. Weinstein até ficou muito contente por poder trabalhar novamente na sua área e por lidar com alguém que o apreciava como cientista, que se lhe dirigia por “senhor professor” e que se despedia dele amavelmente, à noite, antes de regressar, com os outros trabalhadores forçados da fábrica, ao acampamento de barracas. — O meu marido não tinha muito sentido prático, e também não era muito corajoso. Não fazia ideia nenhuma, ou não queria fazer ideia nenhuma, do que se passava em seu redor e do que o esperava. — Esteve com ele nesse tempo das IQR? — Encontrei o Karl no transporte para Auschwitz, em 1941. E outra vez depois do fim da guerra. Sabes, sou flamenga e primeiro consegui esconder-me em Bruxelas, até eles me descobrirem. Eu era uma mulher bonita. Fizeram experiências médicas com a pele da minha cabeça. Penso que foi isso que me salvou a vida. Mas em 1945 eu era velha e careca. Tinha vinte e três anos. “Um dia, eles foram ter com o Weinstein, um da fábrica e um das SS. Disseram-lhe o que ele tinha de dizer perante a Polícia, o procurador do Ministério Público e o juiz. Tratava-se de sabotagem, de um manuscrito que ele teria encontrado na secretária do Tyberg, de uma conversa que ele teria ouvido entre o Tyberg e um colaborador. Voltei a ver diante de mim Karl Weinstein a ser conduzido ao meu gabinete, nas suas roupas de prisioneiro, e a prestar o seu testemunho. — Primeiro, ele recusou-se. Era tudo mentira, e o Tyberg nunca o tratara mal. Mas eles mostraram-lhe como iriam espancá-lo até morrer. Nem sequer lhe prometeram a vida, mas apenas que o deixariam sobreviver mais um pouco. Consegues imaginar isto? Depois, o meu marido foi transferido e simplesmente esquecido num outro campo qualquer. Havíamos combinado um lugar de encontro, caso alguma vez tudo aquilo terminasse. Em Bruxelas, na Grand’ Place. Fui lá parar por puro acaso, na Primavera de 1946, e nunca mais voltara a pensar nele. Ele estava lá à minha espera, desde o Verão de 1945. Reconheceu-me logo, embora eu me tivesse tornado uma mulher velha e careca. Quem é que poderia resistir? Riu-se. Não consegui contar-lhe que fora diante de mim que o Weinstein prestara o seu


testemunho. Também não consegui contar-lhe a razão por que aquilo era tão importante para mim. Mas eu tinha de saber. Por isso, perguntei-lhe: — Tem a certeza de que o testemunho que o seu marido prestou era falso? — Não compreendo, contei-lhe o que ele me contou. — Tornou-se distante. — Vá-se embora — disse —, vá-se embora.


3

Do not disturb

Desci a colina e fui parar às docas e aos armazéns da Bay. Não se viam táxis, nem autocarros, nem uma estação de Metro. Eu nem sequer tinha a certeza de haver Metro em São Francisco. Segui em direcção aos arranha-céus. As ruas não tinham nome, apenas um número. Diante de mim avançava lentamente um pesado Cadillac preto. Parava passo a passo, um negro num fato de seda cor-de-rosa saía, achatava com os pés uma lata de cerveja ou de cola e fazia-a desaparecer num grande saco de plástico azul. Avistei uma loja a poucas centenas de metros de distância. Quando me aproximei, verifiquei que estava protegida por grades como se fosse uma fortaleza. Entrei à procura de uma sanduíche e de um maço de Sweet Afton. As mercadorias estavam atrás de grades, a caixa lembrava-me um guiché de um banco. Não obtive nenhuma sanduíche e ninguém sabia o que era Sweet Afton, e eu senti-me culpado embora não tivesse feito nada. Quando saí da loja com um maço de Chesterfield, passou por mim, no meio da entrada, um comboio de mercadorias. No molhe, encontrei uma loja de aluguer de automóveis e aluguei um Chevrolet. O banco da frente, corrido, tinha-me fascinado. Lembrava-me o Horch, em cujo banco dianteiro a mulher do meu professor de latim me introduzira no amor. Com o carro, recebi um mapa da cidade com as 49 Mile Drive assinaladas. Consegui orientar-me nele facilmente, graças às numerosas marcações. Encontrei um restaurante perto dos rochedos. Tive de ficar numa fila a entrada até ser conduzido a um lugar à janela. Sobre o Pacífico levantava-se nevoeiro. O espectáculo cativou-me, como se por detrás do nevoeiro a rasgarse se tornasse visível, por um instante, a costa do Japão. Comi um bife de atum, uma batata envolvida em papel de alumínio e salada de alface. A cerveja chamava-se Anchor Steam e sabia quase ao mesmo que a cerveja com sabor a fumo do Schlenkerla de Bamberg. O serviço era atencioso: a empregada enchia sempre a minha chávena de café de novo sem ser necessário pedir, e informava-se acerca do meu bem-estar e de onde eu vinha. Também conhecia a Alemanha: uma vez tinha visitado o namorado em Baumholder. Depois da refeição fui esticar as pernas; andei a trepar pelos rochedos e vi de repente diante de mim, mais bonita do que a recordava dos filmes, a Golden Gate Bridge. Despi o casaco, dobrei-o, coloquei-o sobre uma pedra e sentei-me em cima dele. Ali, a costa caía abruptamente; debaixo de mim cruzavam-se veleiros coloridos, e um cargueiro traçava o seu rumo tranquilo. Tinha planeado viver em paz com o meu passado. Culpa, expiação, entusiasmo e cegueira, orgulho e cólera, moral e resignação — tinha conseguido manter tudo isso num equilíbrio engenhoso. Dessa maneira, o passado tornara-se numa abstracção. Agora, a realidade havia-me apanhado e punha em perigo esse equilíbrio. Claro que tinha deixado que abusassem de mim como procurador do Ministério Público, tinha aprendido isso depois da guerra. Podemos perguntar-nos se existem abusos melhores e piores. Para mim, contudo, à partida, não era a mesma coisa ter-me tornado culpado ao serviço de algo presumivelmente grande e mau, ou terem-me usado como um estúpido labrego ou, se


preferirem, como oficial, no tabuleiro de xadrez de uma intriga pequena e mesquinha que eu ainda não conseguia compreender totalmente. O que significava aquilo que a senhora Hirsch me contara? O Tyberg e o Dohmke, cujo processo eu instruíra naquele tempo, haviam sido condenados com base no falso testemunho de Weinstein. Segundo qualquer medida, mesmo nacional-socialista, a sentença tinha sido um erro judiciário, e a minha instrução criminal era uma instrução falseada. Eu fora enganado numa trama em que o Tyberg e o Dohmke eram as vítimas escolhidas. As minhas recordações tornaram-se mais nítidas. Na secretária do Tyberg tinham-se encontrado documentos escondidos que serviam de base a um projecto com elevada probabilidade de sucesso, importantíssimo para a guerra, que havia sido inicialmente desenvolvido pelo Tyberg e pelo seu grupo, mas que depois fora, aparentemente, interrompido. Os acusados tinham sempre feito notar, perante mim e perante o Tribunal, que nunca teriam podido desenvolver as duas vertentes de investigação simultaneamente. Tinham interrompido uma delas apenas para mais tarde a reatarem. Tudo aquilo estava guardado em segredo absoluto, e a sua descoberta também fora tão emocionante que haviam velado sobre ela com os ciúmes próprios dos cientistas. Apenas por essa razão, o esconderijo na secretária. Com isso, eles talvez se tivessem safado, mas o Weinstein referia ainda uma conversa entre o Dohmke e o Tyberg, em que ambos haviam combinado abafar a descoberta para causar um fim rápido da guerra, pelo preço da derrota alemã. E, agora, esta conversa nunca tinha acontecido. A história da sabotagem tinha provocado, naquele tempo, grande indignação. O segundo ponto da acusação de desonra da raça já então não me convencera; as minhas investigações não haviam encontrado nenhuma prova de que o Tyberg tivesse tido relações com uma trabalhadora forçada judia. Também fora condenado à morte por essa razão. Reflecti sobre quem das SS, e quem da fábrica, poderia ter tecido aquela trama. O trânsito sobre a Golden Gate Bridge fluía ininterruptamente. Para onde quereriam todos eles ir? Fui de carro até à entrada, estacionei debaixo do monumento ao construtor e fui a pé até meio da ponte. Era o único peão. Olhei para baixo, para o brilho metálico do Pacífico. Por detrás de mim, os transportes rodoviários rumorejavam numa cadência igual e insensível. Um vento glacial assobiava pelos cabos de sustentação. Sentia-me gelado. Foi com muita dificuldade que voltei a encontrar o meu hotel. Anoitecia rapidamente. Perguntei ao porteiro onde poderia comprar uma garrafa de Sambuca. Mandou-me à liquor store, a duas ruas de distância. Em vão, passei revista a todas as prateleiras. O dono da loja lamentava não ter Sambuca, mas tinha algo parecido, se eu não queria experimentar o Southern Comfort. Meteu a garrafa num saco de papel que girou no topo, de modo a fechá-lo. No caminho de regresso ao hotel, comprei um hambúrguer. Com a minha gabardina, o saco de papel castanho numa mão e o hambúrguer na outra, sentia-me como um comparsa num filme policial americano de segunda categoria. No quarto do hotel, deitei-me sobre a cama e liguei o televisor. O meu copo de lavar os dentes estava embrulhado num saco de celofane; rasguei-o e enchi-o. O Southern Comfort não tem absolutamente nada a ver com a Sambuca. Contudo, sabia-me bem e descia muito naturalmente pela minha garganta. O football na televisão também não tinha rigorosamente nada a ver com o nosso futebol. Mas percebi as regras e segui o jogo com um entusiasmo crescente.


Pouco tempo depois, batia palmas quando a minha equipa conseguia avançar um bom bocado com a bola. Depois, diverti-me com os anúncios que interrompiam o jogo. Por fim, devo ter berrado quando a minha equipa ganhou porque alguém bateu na parede. Tentei levantar-me e bater em resposta, mas a cama estava sempre a empinar-se de lado quando eu queria sair dela. Depois, isso tinha deixado de ser importante. O que me interessava mais era que ainda conseguia encher o copo. Deixei um último golo dentro da garrafa. Para a viagem de regresso de avião. Acordei a meio da noite. Sentia-me bêbado. Estava deitado vestido sobre a cama, a televisão cuspia imagens. Quando a desliguei, a minha cabeça implodiu. Consegui despir o casaco antes de voltar a adormecer. Ao despertar, por um instante não soube onde estava. O meu quarto estava limpo e arrumado, o cinzeiro vazio e o copo outra vez embrulhado em celofane. O meu relógio de pulso marcava duas e meia. Fiquei sentado durante muito tempo na casa de banho, segurando a cabeça. Quando lavei as mãos, evitei olhar para o espelho. Encontrei um pacotinho de Saridon no meu nécessaire, e vinte minutos depois já não tinha dores de cabeça. Mas, a cada movimento, os fluidos do meu cérebro batiam fortemente contra as paredes do crânio, e o estômago gritava por comida e ao mesmo tempo dizia-me que não iria guardá-la. Se estivesse em casa, teria feito um chá de camomila, mas não sabia como se dizia camomila em inglês, nem onde arranjá-la, nem de que maneira poderia aquecer a água. Tomei um duche, primeiro quente, depois frio. No Tea Room do hotel, serviram-me chá preto e torradas. Dei uns passos na rua. O caminho levou-me à liquor store. Ainda estava aberta. Não levei a última noite a mal ao Southern Comfort, não sou rancoroso. Para que isso ficasse claro, comprei mais uma garrafa. O dono disse: — Better than any of your Sambuco, hey? Não fiz nenhum comentário. Desta feita, queria embebedar-me com preceito. Despi-me, pendurei o letreiro com o Do not disturb na porta, e o meu fato no cabide. A minha camisola interior, que entretanto ficara enrodilhada, enfiei-a num saco de plástico apropriado, que também deixei no corredor. A isso juntei os meus sapatos e esperei que fosse encontrar na manhã seguinte tudo aquilo em condições. Tranquei a porta por dentro, corri os cortinados, liguei o aparelho de televisão, enfiei-me no pijama, enchi o primeiro copo, coloquei a garrafa e o cinzeiro à mão sobre a mesinha-de-cabeceira, pus ao seu lado os cigarros e a caixinha de fósforos, e a mim dentro da cama. Na televisão, apareceu o lied River. Puxei a coberta até ao queixo, fiquei a ver, a fumar e a beber. Após algum tempo, desapareceram as imagens da sala de audiências em que eu exercia, as das execuções a que eu tinha de assistir, dos uniformes verdes e cinzentos e negros, e da minha mulher vestida de BDJVP. Deixei de ouvir o soar de botas nos compridos corredores, os discursos do Fúhrerna, rádio do povo, as sirenes. John Wayne bebia whisky, eu bebia Southern Comfort e, quando ele agia e impunha a ordem, eu acompanhava-o. No dia seguinte, o regresso da bebedeira já se havia tornado num ritual. Ao mesmo tempo, apercebi-me de que era tempo de parar de beber. Fui de carro até ao Golden Gate Park e passeei durante duas horas. A noite, descobri o Perry’s, um restaurante italiano


onde me sentia quase tão bem como no Kleinen Rosengarten. Dormi um sono profundo e sem sonhos e, na segunda-feira, descobri o pequeno-almoço americano. Às nove, telefonei para casa de Vera Múller. Ela esperava-me para o almoço. Ao meio-dia e meia encontrava-me diante de sua casa, em Telegraph Hill, com um ramo de rosas amarelas. Ela não era a caricatura de cabelos azuis que eu imaginara. Era mais ou menos da minha idade, e se eu tivesse envelhecido como homem da mesma maneira que ela envelheceu como mulher, estaria muito satisfeito. Era alta, elegante, ossuda, tinha os cabelos grisalhos presos, sobre os jeans trazia uma túnica tradicional russa, os óculos pendurados de uma correntezinha e uma expressão trocista em torno dos olhos cinzentos e da boca fina. Tinha duas alianças na mão esquerda. — Sim, sou viúva. — Tinha-se apercebido do meu olhar. — O meu marido morreu há três anos. O senhor recorda-mo. Conduziu-me ao salão, através da janela via-se Alcatraz, a ilha da prisão. — Quer um pastis como aperitivo? Sirva-se, vou meter a pizza no forno. Quando voltou, eu tinha enchido dois copos. — Tenho de lhe confessar uma coisa. Não sou um historiador de Hamburgo, mas um detective privado de Mannheim. O homem a cujo anúncio respondeu, também ele não era nenhum historiador de Hamburgo, e foi assassinado, e eu estou a tentar descobrir porquê. — Já sabe quem o matou? — Sim e não. Contei-lhe toda a minha história. — Mencionou à senhora Hirscli o seu envolvimento pessoal no caso Tyberg? — Não, não me atrevi. — Lembra-me mesmo o meu marido. Era jornalista, um repórter famoso e muito empreendedor, mas que tinha medo em todas as reportagens. A propósito, é bom que não lhe tenha dito nada. Ela ter-se-ia afligido muito, também por causa da relação dela com o Karl. Sabia que ele voltou a ter uma brilhante carreira em Stanford? A Sarah nunca se adaptou a esse mundo. Ficou com ele porque pensava que lho devia, por ele ter esperado por ela durante tanto tempo. E, ao mesmo tempo, ele vivia com ela apenas por lealdade. Nunca se casaram. Conduziu-me ao balcão da cozinha e foi buscar a pizza. — No envelhecer, agrada-me que os princípios adquiram falhas. Nunca teria imaginado poder estar sentada a comer com um antigo procurador do Ministério Público nazi, sem que a pizza me ficasse entalada na garganta. Ainda é nazi? A pizza ficou-me entalada na garganta. — Pronto, pronto. Também não se parece com um nazi. Tem por vezes problemas com o seu passado? — Pelo menos o suficiente para duas garrafas de Southern Comfort.


Contei-lhe como tinha aguentado o fim-de-semana. Às seis horas ainda estávamos sentados juntos. Ela contou-me o seu começo na América. Tinha conhecido o marido nas Olimpíadas de Berlim e mudara-se com ele para Los Angeles. — Sabe o que me custou mais? Andar de fato de banho na sauna. Depois, ela teve de ir para o seu turno da noite no Centro SOS Voz Amiga e eu voltei ao Perry e só levei para a cama uma embalagem com seis latas de cerveja. Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, escrevi um postal a Vera, paguei a conta e fui de carro para o aeroporto. A noite estava em Pittsburgh. Completamente nevada.


4

Não há nada que preste no Sergej

Os táxis que me levaram à noite para o hotel, e na manhã seguinte para o ballet, eram tão amarelos como os de São Francisco. Eram nove horas, o ensembleyk ensaiava, às dez faziam um intervalo, e eu fui perguntando até encontrar os meus dois mannheimerenses. Estes estavam em meias-calças e maio, encostados ao aquecimento com um iogurte na mão. Quando me apresentei e disse ao que vinha, quase não conseguiam acreditar que eu havia percorrido aquele longo caminho só por causa deles. — Sabias que tinha acontecido isso ao Sergej? — A Hanne virou-se para o Joschka. — Bem, isso afecta-me muito. Também o Joschka se tinha assustado. — Se pudermos ajudar o Sergej de alguma maneira… Vou falar com o chefe. Na verdade, deve bastar que estejamos de volta às onze horas. Então, podemos sentar-nos na cantina e falar. A cantina estava vazia. Através da janela via-se um parque com grandes árvores despidas. As mães percorriam os caminhos com os filhos, esquimós dentro de sobretudos acochados que brincavam em algazarra na neve. — Bem, acho que é muito importante contar-lhe o que sei sobre o Sergej. Acharia horrível se partisse de algo errado… se pensasse que… o Sergej, ele é tão imensamente sensível. Também é muito susceptível, não é assim tipo macho latino. Sabe, nem que seja só por isso, não pode ter sido ele a automutilar-se; ele sempre teve pavor de feridas. O Joschka já não tinha assim tanta certeza. Pensativamente, mexia um pauzinho de plástico no seu copinho sintético de café. — Senhor Selb, eu também não acredito que o Sergej se tivesse automutilado. Não consigo simplesmente imaginar que alguém consiga fazer isso. Mas quando alguém… Sabe uma coisa? O Sergej sempre teve ideias malucas. — Como é que podes dizer uma coisa tão horrível? — interrompeu-o a Hanne. — Pensei que fosses amigo dele. Não, bem, isso deixa-me mesmo muito triste, a sério. O Joschka pousou a mão no braço dela. — Mas, Hanne, já não te lembras daquela noite em que recebemos o ensemble do Gana? Ele contou que, quando era escuteiro, se tinha cortado de propósito na mão quando estava a descascar batatas, de modo a não ter de trabalhar mais na cozinha. Todos nos fartámos de rir disso, tu também. — Mas tu percebeste tudo mal. Ele apenas fingiu que se tinha cortado, e atou a mão com uma grande ligadura. Bem, quando torces dessa maneira a verdade… Bem, Joschka, realmente…


O Joschka não pareceu muito convencido, mas não queria discutir com a Hanne. Perguntei pela disposição e pelo estado de espírito do Sergej nos últimos meses da temporada passada. — Exactamente — disse Hanne —, isso também não bate certo com a sua estranha suspeita. Ele acreditava muito em si próprio, queria ainda aprender a dançar flamenco e esforçou-se para conseguir uma bolsa para Madrid. — Mas, Hanne, ele não conseguiu essa bolsa. — Mas não compreendes que o facto de ele se ter esforçado por a obter contém de uma maneira ou outra tanto poioer. E no Verão aquele namoro com o professor de germânicas dele também deu, finalmente, certo. Sabe, o Sergej, não, ele não é maricas, mas também ama os homens. Acho isso óptimo nele. E depois nunca é assim uma coisa curta, sexual, mas verdadeiramente profunda, a sério. Tem de se gostar dele. Ele é tão… — Doce? — propus. — Exactamente, doce. Conhece-o, senhor Selb? — Bem, digam-me ainda: quem é o professor de germânicas que mencionou? — Era mesmo de germânicas, ou era de direito? — O Joschka franziu a testa. — Disparate, tu achas que não há nada que preste no Sergej. Era o de germânicas, um muito queridinho. Mas o nome… Nem sei se devo dizer-lho. — Hanne, os dois não fizeram segredo nenhum disso, a julgar pela maneira como passeavam juntos pela cidade. É o Fritz Kirchenberg, de Heidelberg. Talvez seja bom o senhor falar com ele. Perguntei a opinião dos dois sobre as qualidades do Sergej como bailarino. A Hanne respondeu primeiro. — Mas isso não tem nada a ver com este assunto. Mesmo quando não se é um bom bailarino, não tem de se cortar nenhuma perna. Recuso-me a falar sobre isso. E continuo a achar que o senhor não tem razão. — Ainda não tenho nenhuma opinião, senhora Fischer. E também quero deixar claro que o senhor Mencke não ficou sem perna, limitou-se a parti-la. — Não sei se o senhor percebe alguma coisa de bailet, senhor Selb — disse Joschka. — Na realidade, aqui é como em todo o lado. Há as estrelas e aqueles que alguma vez o irão ser; há uma boa média daqueles que já deixaram de ter ilusões mas que nunca precisarão de ter medos existenciais. E depois há ainda aqueles que têm de viver num medo constante pelo contrato seguinte, aqueles para quem seguramente tudo acaba quando envelhecem. O Sergej pertence ao terceiro grupo. A Hanne não o contradisse. Pelo seu ar teimoso, deu a perceber que achava que aquela conversa não tinha nada a ver com o assunto. — Pensei que o senhor queria saber algo sobre o Sergej como pessoa. Os homens também não querem saber de mais nada senão da carreira. — Como é que o senhor Mencke imaginava o futuro dele?


— Paralelamente, fazia dança de salão e disse-me uma vez que gostaria de abrir uma escola de dança, uma escola muito tradicional, para jovens de quinze e dezasseis anos. — Isso também demonstra logo que ele não pode ter auto-infligido qualquer mutilação. Pensa lá um pouco, Joschka. Como é que ele pode ser professor de dança sem uma perna? — Também sabia dos planos dele de ser professor de dança, senhora Fischer? — O Sergej estava sempre a fazer montes de planos. É muito criativo e tem uma grande fantasia. Também poderia imaginar-se a fazer coisas completamente diferentes, a criar ovelhas na Província ou coisa assim. Eles tinham de voltar ao ensaio. Deram-me os números de telefone, caso eu ainda tivesse perguntas, perguntaram-me se tinha alguns planos para a noite e prometeram deixar-me um bilhete gratuito no guiché. Fiquei a olhá-los. O andar do Joschka era concentrado e elástico; a Hanne caminhava com uns passos leves e flutuantes. Ela dissera muitas parvoíces, a sério, mas andava de uma maneira convincente e eu teria gostado de a ver à noite no ballet. Mas Pittsburgh era demasiado frio. Mandei que me levassem ao aeroporto, voei para Nova Iorque e consegui obter, ainda para a mesma noite, o regresso a Frankfurt. Acho que sou demasiado velho para a América.


5

O que é que ele anda a cozinhar!

Fiz o programa para o resto da semana no Café Grneiner, ao brunch. Lá fora caíam densos flocos de neve. Tinha de descobrir o chefe dos escuteiros a cujo grupo o Mencke pertencera, e falar com o professor Kirchenberg. E queria ainda ter uma conversa com o juiz que naquele tempo condenara à morte o Tyberg e o Dohmke. Tinha de saber se a condenação resultara de uma indicação vinda de cima. Depois da guerra, o juiz Beufer tornara-se presidente dos senadores no Oberlandsgericht de Karlsruhe; encontrei o seu nome na lista telefónica da estação central dos correios de Karlsruhe. A sua voz era surpreendentemente jovem, e ele recordava-se do meu nome. — O Selb! — exclamou. — O que é feito dele? Estava disposto a receber-me à tarde para conversarmos. Morava em Durlach, numa casa na encosta com vista sobre Karlsruhe. Vi o enorme gasómetro que nos saúda com a inscrição Karlsruhe. Foi o próprio juiz Beufer que me abriu a porta. Perfilava-se direito como um militar, vestia um fato cinzento, debaixo deste uma camisa branca com gravata vermelha e alfinete prateado. O colarinho tornara-se demasiado largo para o pescoço velho e enrugado. O Beufer era careca, o seu rosto pendia pesadamente: sacos lacrimais, bochechas, queixo. No Ministério Público, tínhamos sempre troçado das suas orelhas destacadas. Estas estavam mais impressionantes do que nunca. Parecia estar doente. Devia ter oitenta e muitos anos. — Com que então, ele tornou-se detective privado. E não se envergonha? Ele era um bom jurista, um advogado incisivo. Eu sempre esperei voltar a vê-lo entre nós quando o pior passou. Estávamos sentados no seu escritório e bebíamos xerez. Ele ainda lia a Neue Júristische Wochenschrift. — O Selb não veio aqui apenas para visitar o seu velho juiz — os seus olhinhos de porco brilhavam com ar traquinas. :— Recorda-se do processo-crime contra o Tyberg e o Dohmke? Nos finais de 1943, inícios de 1944? Naquele tempo, eu conduzi a instrução criminal, o Sòdelknecht representou a acusação, e o senhor presidiu ao Tribunal. — O Tyberg e o Dohmke… Repetiu algumas vezes os nomes em voz alta. — Sim, foram condenados à morte e, no caso do Dohmke, ele chegou a ser executado. O Tyberg subtraiu-se à execução. Chegou bem longe, o homem. E era um homem do mundo… era… ou ainda está vivo? Encontrei-o uma vez numa recepção na Solitude, gracejámos sobre os velhos tempos. Ele entendeu que naquele tempo todos tínhamos de cumprir o nosso dever. — O que eu queria saber é o seguinte: naquele tempo, o Tribunal recebeu algum sinal vindo de cima em relação ao resultado do processo, ou foi um processo absolutamente


normal? — Por que é que está interessado nisso? O que é que ele anda a cozinhar, o Selb? A pergunta tinha de ser feita. Falei-lhe de um contacto acidental com a senhora Múller e do meu encontro com a senhora Hirsch. — Quero apenas saber o que aconteceu naquele tempo e que papel é que eu desempenhei. — O que a mulher lhe contou nunca serviria para uma reabertura do processo. Se o Weinsteín ainda fosse vivo… Mas assim… Também não acredito nisso. Cada qual tem a sua opinião e, quanto melhor me recordo, mais certo estou de que a sentença foi a correcta. — E houve sinais vindos de cima? Não me compreenda mal, senhor Beufer. Ambos sabemos que os juízes alemães souberam manter a sua independência, mesmo em condições extraordinárias. Apesar disso, havia sempre tentativas para exercer alguma influência pela parte interessada, e eu gostaria muito de saber se neste caso havia alguma parte interessada. — Ora, por que é que ele não deixa as coisas do passado em paz, o Selb? Mas, se ele tem de o saber, é para sossego da sua alma… O Weismúller telefonou-me algumas vezes, era o director-geral naquele tempo. Era importante para ele que o caso saísse de cima das nossas mesas e que as IQR deixassem de ser faladas. Talvez por essa razão lhe tivesse calhado bem a condenação do Tyberg e do Dohmke. Nada faz sair um caso tão rapidamente das nossas mesas como uma execução rápida. Se o Weismúller ainda tinha outras razões para querer a execução… Não faço ideia, mas não acredito. — E isso foi tudo? — O Weismúller ainda teve de falar com o Sòdelknecht. O advogado de defesa do Tyberg tinha apresentado como testemunha abonatória alguém das IQR, que arriscou o pescoço da maneira como falou, e por quem o Weismúller se empenhou. Espere, esse homem também foi longe, claro, o nome dele é Korten, o actual director-geral. Agora temos os directores-gerais todos juntos! — riu-se. Como é que eu pudera esquecer aquilo? Naquele tempo, eu ficara satisfeito por não ter de envolver o meu amigo e cunhado no processo, mas depois a defesa fora buscá-lo. Fiquei contente porque, como o Korten trabalhava em estreita colaboração com o Tyberg, a sua participação no processo poderia ter lançado também suspeitas sobre ele ou, pelo menos, poderia ter-lhe prejudicado a carreira. — Naquele tempo, sabia-se no Tribunal que o Korten e eu éramos cunhados? — Por Deus! Eu nunca chegaria lá. Então aconselhou bastante mal o seu cunhado. Ele empenhou-se tanto pelo Tyberg que o Sòdelknecht quase o mandou prender ali mesmo, durante o processo. Muito decente, demasiado decente, não serviu de nada ao Tyberg. Deixa um certo sabor acre na boca, quando uma testemunha da defesa não sabe dizer nada em relação ao acto em si e apenas debita lugares-comuns amáveis sobre o acusado. Não havia mais nada que eu tivesse ainda de perguntar ao Beufer. Bebi um segundo xerez, que ele me serviu, e conversei sobre colegas que ambos conhecíamos. Depois,


despedi-me. — Este Selb! Agora vai outra vez atrás do seu faro… Mas ela não o deixa em paz, a Justiça, não é verdade? Volta a aparecer em casa do velho Beufer? Dar-me-ia muito gosto. Havia dez centímetros de neve acabada de cair sobre o meu automóvel. Limpei-a, consegui descer, com muita sorte, a colina até à estrada nacional e segui pela auto-estrada atrás de um limpa-neve, em direcção ao Norte. Escurecera. O rádio do carro falava de filas de trânsito e tocava êxitos dos anos sessenta.


6

Batatas, couve branca e morcela picante

Por causa da neve espessa, falhei o desvio para Marinheiro no cruzamento de Walldorf. Depois, o limpa-neves entrou num parque de estacionamento e eu estava perdido. Ainda consegui chegar à área de serviço de Hardtwald. No pronto-a-comer, esperei em pé, ao lado do meu café, que a neve parasse. Observei os flocos dançando. De repente, as imagens do meu passado tornaram-se muito vivas. Tinha sido numa noite de Agosto ou Setembro de 1943. A Klara e eu tivemos de sair da nossa casa na Rua Werder e acabávamos de terminar as mudanças para a Rua Bahnhof. O Korten estava a jantar connosco. Havia batatas, couve branca e morcela picante. O Korten estava encantado com a nova casa, elogiou a Klara pelo jantar, e eu irritei-me com isso porque sabia quão lastimosamente a Klara cozinhava, e porque não era possível que lhe tivesse passado despercebido que as batatas estavam salgadas e a couve queimada. Depois, a Klara deixou-nos a nós, homens, sozinhos no escritório com os nossos charutos durante cerca de uma hora. Nesse tempo, acabara de me ser atribuído o caso Tyberg e Dohmke. Não estava convencido com os resultados da investigação policial. O Tyberg vinha de uma boa família, tinha-se proposto para a frente de batalha e fora contra a sua vontade que ficara nas IQR por causa dos seus trabalhos de investigação, importantíssimos para o esforço de guerra. Não conseguia imaginá-lo como sabotador. — Tu conheces bem o Tyberg. O que pensas dele? — É um homem irrepreensível. Todos estamos indignados que ele e o Dohmke tenham sido presos no local de trabalho, sem ninguém saber porquê. Membro da equipa de hóquei alemã de 1936, agraciado com a medalha Professor Demel, um químico dotado, colega estimado e superior venerado… por isso, realmente não entendo o que lhes deu na cabeça, a vocês, os da Polícia e do Ministério Público. Expliquei-lhe que uma detenção não é uma condenação e que ninguém poderia ser condenado num tribunal alemão, a menos que aparecessem as provas necessárias e suficientes. Este era já um tema antigo desde o nosso tempo de estudantes. O Korten encontrara então, num alfarrabista, um livro sobre erros judiciários famosos e discutira comigo acerca deles noites a fio, se a justiça humana poderia evitar os erros judiciários. Eu tinha defendido isso, mas o Korten, pelo contrário, defendera o ponto de vista de que tinha de se viver com os erros judiciários. Lembrei-me de uma noite de Inverno dos tempos de estudante, em Berlim. A Klara e eu andávamos de trenó no Kreuzberg e depois éramos esperados em casa do Korten para o jantar. A Klara tinha 17 anos, para mim era apenas, e continuava a ser, como há um milhão de anos, a irmã mais nova do Ferdi-nand, e eu só tinha levado a miúda comigo para andar de trenó porque ela me pedira muito. Na verdade, esperava encontrar a Pauline na pista de trenós, e poder ajudá-la a levantar-se depois de um tombo ou defendê-la de algum dos


antipáticos rapazes da rua do Kreuzberg. A Pauline estaria lá? De qualquer maneira, de repente passei a ter só olhos para a Klara. Ela vestia um casaco de peles e um cachecol colorido, os seus caracóis loiros voavam, e nas suas faces vermelhas derretiam-se os flocos de neve. No caminho de regresso, beijámo-nos pela primeira vez. A Klara teve de me convencer a subir ainda para o jantar. Não sabia como deveria comportar-me em frente dos seus pais e do irmão. Quando mais tarde me fui embora, ela acompanhou-me até à porta com um pretexto qualquer e deu-me um beijo furtivo. Surpreendi-me a sorrir para a janela. No parque de estacionamento da área de serviço parou uma coluna militar que não conseguia avançar mais na neve. O meu carro já carregava uma espessa camada. Fui ao balcão buscar mais um café e uma sanduíche. Voltei à janela. Na altura, o Korten e eu chegámos também a falar do Weinstein. Um acusado irrepreensível e um judeu como testemunha de acusação — reflecti se não deveria arquivar a instrução criminal. Não podia informar o Korten sobre a importância do Weinstein para a instrução criminal, mas não queria perder a oportunidade de ficar a saber alguma coisa sobre ele. — O que é que achas da utilização de trabalhadores forçados judeus na vossa fábrica? — Sabes bem, Gerd, que sempre tivemos opiniões diferentes em relação à questão judaica. Nunca dei grande importância ao anti-semitismo. Acho que é penoso termos trabalhadores forçados na fábrica, mas se são judeus, ou franceses ou alemães, é-me indiferente. Connosco, no laboratório, trabalha o professor Weinstein, e é uma vergonha que esse homem não esteja numa cátedra ou no seu próprio laboratório. Presta-nos um serviço inestimável, e se começares a dar importância à aparência ou à mentalidade, não encontras ninguém que seja alemão. Professor da velha escola, até 1933 foi professor de Química Orgânica em Breslau, tudo o que o Tyberg é como químico pode agradecê-lo ao Weinberg, de quem foi estudante e assistente. Um sábio amável e distraído. — E se eu te contar que ele acusa o Tyberg? — Pelo amor de Deus, Gerd. Mas o Weinberg gosta tanto do seu aluno Tyberg… Não faço ideia do que deva dizer. Um limpador de neve sulcou o caminho no parque de estacionamento. O condutor desceu e entrou na área de serviço. Perguntei-lhe como conseguiria chegar a Mannheim. — Um colega meu acabou de ir até ao cruzamento de Heidelberg. Apresse-se, antes que a estrada volte a ficar coberta. Eram sete horas. Ao quarto para as oito tinha chegado ao cruzamento de Heidelberg e às nove a Mannheim. Tinha ainda de estender as pernas e alegrei-me com a neve espessa. A cidade estava quieta. Gostaria de atravessar Mannheim com uma tróica.


7

O que estás tu realmente a investigar?

Acordei às oito mas não consegui levantar-me. Tudo aquilo tinha sido demasiado para mim: o regresso de Nova Iorque no voo nocturno, a viagem até Karlsruhe, a conversa com o Beufer, as recordações e a odisseia nas auto-estradas cobertas de neve. Às onze, o Philipp telefonou. — Até que enfim te apanho. Por onde é que andaste? Tenho o teu trabalho de doutoramento acabado. — O meu trabalho de doutoramento? Não fazia ideia do que ele estava a falar. — Fracturas provocadas por portas. Também junto um relatório sobre a morfologia dos auto-agressivos. Foi o que me encomendaste, não é verdade? — Ah, pois. E agora tens uma tese científica sobre o assunto? Quando é que posso vêla? — Quando quiseres, só tens de passar aqui pelo meu gabinete no hospital e levá-la. Levantei-me e fiz café. O céu sobre Mannheim ainda estava carregado de neve. O Turbo entrou vindo da varanda, polvilhado de branco. O meu frigorífico estava vazio e fui fazer compras. É bom que agora se tenha o cuidado de Utilizar sai nas cidades. Não tive de calcar lama castanha, tinha sob os pés neve acabada de cair, bem prensada e que rangia a cada passo. Algumas crianças construíam bonecos de neve e faziam batalhas de bolas de neve. Encontrei a Judith na padaria, perto da torre do depósito de água. — Não está um dia maravilhoso? — Os seus olhos brilhavam. — Antigamente, quando tinha de ir trabalhar, irritava-me sempre com a neve. Ter de limpar os vidros, o carro não pegar, andar devagar, ficar atolada. O que eu não perdia… — Anda — disse eu —, vamos dar um passeio invernal até ao Kleinen Rosengarten. Estás convidada. Desta vez, ela não disse que não. Sentia-me um pouco antiquado ao lado dela; ela num casaco acolchoado e calças com botas altas, que provavelmente eram um subproduto da investigação espacial, eu de paletó e galochas. Pelo caminho, constei-lhe a minha investigação no caso Mencke e falei-lhe da neve em Pittsburgh. Também ela me perguntou logo se eu tinha encontrado a pequena do Flashdance. Fiquei curioso por ver o filme. O Giovanni fez um ar muito admirado. Quando a Judith foi à casa de banho, aproximou-se da mesa. — Velha mulher não boa? Nova mulher melhor? A próxima vez eu arranjar-te mulher italiana, então tu teres paz.


— Homem alemão não precisar de paz, precisar de muitas, muitas mulheres. — Então teres de comer muito. — Aconselhou o Steak Pizzaiola e, antes, a canja. — Foi o próprio chefe que matou a galinha, hoje de manhã. Para a Judith pedi simplesmente o mesmo e, para acompanhar, uma garrafa de Chianti clássico. — Também fui à América por outro motivo, Judith. Não consigo deixar de pensar no caso Mischkey. Não é que tenha avançado. Mas a viagem fez-me enfrentar o meu próprio passado. Ela ouviu atentamente a minha história. — O que estás tu realmente a investigar? E porquê? — Não sei bem. Gostaria de falar com o Tyberg, se é que ele ainda é vivo. — Sim, sim, ainda é vivo. Escrevia-lhe frequentemente relatórios comerciais ou cumprimentos festivos. Vive perto do lago Maggiore, em Monti sopra Locarno. — Depois, quero voltar a falar com o Korten. — E o que é que isso tem a ver com a morte do Peter? — Não sei, Judith. Daria qualquer coisa para conseguir compreender tudo. O que é um facto é que o Mischkey fez com que me ocupasse do meu passado. Não te lembraste de mais nenhuma coisa em relação ao assassinato? Ela tinha pensado se não deveria contar a história aos jornais. — Acho simplesmente insuportável que tudo isto termine assim. — Queres dizer com isso que é pouco satisfatório, aquilo que sabemos? Mas isso de ir contar tudo aos jornais também não vai melhorar nada. — Não. Acho que as IQR não pagaram realmente o que deviam. Independentemente do modo como as coisas se passaram com o velho Schmalz, a responsabilidade foi deles. E, além disso, talvez venhamos a saber mais alguma coisa, se a imprensa sacudir o ninho de vespas. O Giovanni trouxe os bifes. Comemos calados durante algum tempo. Não me agradava a ideia de contar tudo à imprensa. Ao fim e ao cabo, eu descobrira o assassino do Mischkey por incumbência das IQR; fosse como fosse, as IQR tinham-ma pago por isso. O que a Judith sabia e podia relatar à imprensa, sabia-o a partir de mim. A minha lealdade profissional estava em jogo. Irritei-me por ter aceite o dinheiro do Korten. Se não o tivesse feito, agora estaria livre. Expliquei-lhe os meus escrúpulos. — Vou pensar se não poderei proceder de outra maneira, mas preferiria que esperasses. — Está bem. Naquela altura, também fiquei contente por não ter de pagar a tua conta, mas devia ter pensado logo que uma coisa assim tem o seu preço. Tínhamos acabado a refeição. O Giovanni serviu duas Sambucas.


— Com os cumprimentos da casa. A Judith falou-me da sua vida de desempregada. Primeiro, tinha gozado a liberdade, mas lentamente começaram os problemas. Não podia esperar que o Instituto do Emprego lhe arranjasse uma ocupação semelhante à anterior. Tinha de se mexer. Ao mesmo tempo não sabia bem se queria meter-se novamente numa vida de secretária-chefe. — Conheces o Tyberg pessoalmente? Eu vi-o pela última vez há mais de quarenta anos e não sei se conseguiria reconhecê-lo. — Sim, naquela festa do centenário das IQR encarregaram-me de cuidar dele. Porquê? — Queres vir comigo quando eu for a casa dele, a Locar-mo? Gostaria muito que viesses. — Então queres mesmo ficar a saber. O que pensas fazer para reatar o contacto com ele? Fiquei a pensar. — Deixa estar — disse ela —, hei-de lembrar-me de alguma coisa. Quando é que partimos? — Qual é a primeira data que consegues marcar com o Tyberg? — Domingo? Segunda-feira? Não sei dizer. Talvez ele esteja nas Bahamas. — Marca o encontro logo que puderes, depois partimos.


8

Vá até à Scheffelterrasse

O professor Kirchenberg prontificou-se a receber-me imediatamente, mal lhe disse que se tratava do Sergej. — O pobre rapaz, e o senhor quer ajudá-lo. Então venha já. Estarei toda a tarde no Palais Boisserée. Dos artigos da imprensa sobre o então chamado processo dos germanistas, ainda sabia que o Palais Boisserée acolhe o Curso de Germânicas da Universidade de Heidelberg. Os professores sentem-se como legítimos sucessores dos antigos habitantes principescos. Quando os estudantes insubordinados profanaram o palácio, fizeram um exemplo deles, com a ajuda da justiça. O Kirchenberg era especialmente professoral-principesco. Era um pouco careca, tinha lentes de contacto, uma cara farta e rosada e, apesar da sua tendência para a corpulência, movia-se com uma elegância saltitante. Ao cumprimentar-me, segurou a minha mão nas suas duas. — Não é simplesmente abalador, o que aconteceu ao Sergej Tornei a colocar as minhas perguntas sobre o seu estado de espírito, objectivos profissionais, situação financeira. Ele recostou-se na poltrona. — O Serjoschka foi marcado por uma juventude difícil. Os anos entre os oito e os catorze passados em Roth, uma cidade “praça-forte” do bigotismo, foram um martírio para a criança. O pai, que só conseguia viver o seu homo-erotismo através de uma brutalidade militar, a mãe, diligente como uma abelha, bondosa, de uma fraqueza mimosa. E o tap, tap, tap — bateu com os nós dos dedos sobre a mesa —, diariamente, os soldados a entrarem e a saírem a marchar. Imagine isso, só por um momento. Fez um gesto que me pedia para ficar em silêncio com uma das mãos, e continuou a bater com a outra na mesa. Lentamente, a mão emudeceu. O Kirchenberg suspirou. — Apenas comigo é que ele conseguiu ultrapassar esses anos. Quando abordei a suspeita da automutilação, o Kirchenberg perdeu a cabeça. — Aí, tenho de me rir em voz alta. O Sergej tem uma relação muito carinhosa com o seu próprio corpo, quase narcísica. Com todos os preconceitos que correm sobre nós, maricas, pelo menos já deviam ter compreendido que tratamos do nosso corpo muito mais cuidadosamente do que o corriqueiro heterossexual. Nós somos o nosso corpo, senhor Selb. — O Sergej Mencke é mesmo maricas? — Mais uma afirmação preconceituosa — disse o Kirchenberg quase com piedade. — Nunca esteve sentado na Scheffelterrasse a ler Stefan George? Faça isso uma vez. Então


talvez venha a sentir que o homo-erotismo não é uma questão de ser, mas sim de se tornar. O Sergej não é, tornar-se-á. Despedi-me do professor Kirchenberg e passei pela casa do Mischkey, subindo o Burgweg. Também me demorei por um momento na Scheffelterrasse. Tinha frio. Ou teria ficado com frio? De resto, não me aconteceu mais nada, talvez também nao pudesse, sem Stefan George. No Café Gundel já havia Springerle para a festa de Natal. Adquiri um pacote: queria surpreender a Judith com eles, no caminho para Locarno. No meu escritório, correu tudo sobre rodas. Obtive o número de telefone da Residência Paroquial católica de Roth através do serviço de informações; o capelão acolheu de bom grado a interrupção da preparação do sermão para me dizer que o chefe dos escuteiros de São Jorge em Roth é, desde sempre, Joseph Maria Jungbluth, professor efectivo de liceu de profissão. Logo a seguir, consegui falar com o professor efectivo de liceu Jungbluth, e ele disse que gostaria muito de falar comigo no dia seguinte de manhã cedo sobre o pequeno Siegfried. A Judith conseguira marcar um encontro com o Tyberg para a tarde de domingo, e decidimos partir no sábado. — O Tyberg está ansioso por te ver.


9

Agora, já só restávamos três

Com a nova auto-estrada, vai-se de Mannheim até Nuremberga em apenas duas horas. A saída para Schwabach/ Roth aparece cerca de trinta quilómetros antes de Nuremberga. Um dia, Roth chegará até à auto-estrada Augsburgo-Nuremberga. Mas eu já não estarei cá para ver. Nevara durante a noite. Na estrada, podia escolher entre dois rastos de regos: o mais usado, à direita, e um estreito, para as ultrapassagens. Ultrapassar um camião era uma baloiçante aventura. Cheguei ao meu destino depois de uma viagem de três horas e meia. Em Roth existem uns poucos edifícios ao estilo do século XVI ou XVII, alguns de arenito, uma igreja católica e uma evangélica, algumas tabernas que se adaptaram às necessidades dos soldados, e muitas casernas. Nem sequer um patriota local poderia designar Roth como a pérola dos francos. Faltavam poucos minutos para as treze, e procurei um restaurante. No Roten Hirschen, que resistira à moda do fastfood e até mantivera a sua antiga decoração, ainda era o patrão quem cozinhava. Perguntei à empregada por um prato típico da Baviera. Ela não compreendeu a minha pergunta. — Da Baviera? Estamos em terra de Francos. Então, perguntei-lhe por um prato frâncico típico. — São todos — disse ela. — Toda a ementa é frâncica. O café também. Gente prestável, esta. Pedi, à sorte, Saure Zipfd com batatas assadas e, para acompanhar, cerveja preta. As Saure Zipfel são Bratwúrste que não são grelhadas, mas aquecidas numa infusão de vinagre, cebola e condimentos. E também sabem a isso. As batatas assadas estavam deliciosamente tostadas. A empregada deixou-se convencer a indicar-me, depois da refeição, o caminho para a Rua Allersberger, onde o professor Jungbluth vivia. Jungbluth abriu a porta vestido à civil. Na minha imaginação, vira-o em meias até aos joelhos, calções castanhos, lenço de pescoço azul e chapéu de escuteiro de aba larga. Já não se recordava do acampamento de escuteiros em que o pequeno Mencke andara com uma ligadura verdadeira ou falsa e conseguira furtar-se à lavagem da loiça. Mas lembravase de outras coisas. — Ele gostava de se esquivar, o Siegfried. Na escola também teve aulas comigo na primeira e segunda classes. Sabe, ele era uma criança muito esquiva. E também era uma criança medrosa. Não sei muito de medicina excepto, evidentemente, os conhecimentos de primeiros socorros que as minhas actividades como professor e líder dos escuteiros exigem. Mas acho que é necessário ter uma certa coragem para alguém se auto— mutilar, e não acredito que o Siegfried tenha essa coragem. O seu pai já é feito de um material completamente diferente.


Já me estava a acompanhar à porta da rua quando se lembrou de algo. — Quer ver fotografias? No álbum estava escrito 1968, as fotos mostravam diversos grupos de escuteiros, tendas, fogueiras de acampamento Bicicletas. Via as crianças a cantar, a rir e a fazer momices, mas também via nos seus olhos que o chefe dos escuteiros Jung-bluth comandara aquelas fotografias instantâneas. — Este é o Siegfried. Apontou para um rapaz loiro e bastante franzino, com uma expressão reservada. Umas fotografias à frente voltei a encontrá-lo. — O que é que se passou aqui com a perna dele? Tinha a perna esquerda engessada. — É verdade — disse o professor Jungbluth. — Foi uma história desagradável, essa. Durante seis meses, a companhia de seguros tentou acusar-me de negligência. Mas o Siegfried caiu de uma maneira bastante estúpida, quando fomos visitar a gruta de Trofstein, em Pottenstein, e partiu a perna. É impossível estar em todo o lado ao mesmo tempo. Ele olhou-me, pedindo a minha aquiescência. Eu concordei de bom grado. Durante o caminho de regresso, fiz um balanço. Não havia muito mais a fazer no caso Sergej Mencke. Ainda queria dar uma vista de olhos ao trabalho de doutoramento do Philipp e, para o final, tinha reservado a visita ao Sergej no hospital. Estava farto de todos eles, dos professores, dos líderes, dos professores de germânicas maricas, do ballet inteiro e também do Sergej, ainda antes de o ter visto. Estaria farto do meu emprego? Já no caso Mischkey ficara aquém do meu normal desempenho profissional, e a maneira como me enjoava o caso Mencke nunca me tinha acontecido antes. Deveria parar de trabalhar? Quereria eu verdadeiramente envelhecer para além dos oitenta? Podia dar ordem de pagamento do meu seguro de vida e teria sustento para doze anos. Decidi ir falar depois do Ano Novo com o meu conselheiro de impostos e agente de seguros. Dirigi-me para Oeste, em direcção ao pôr-do-sol. Tão longe até onde o meu olhar alcançava, brilhava neve rosada. O céu estava de um azul-pálido de porcelana. Das chaminés das aldeias e cidades francas pelas quais passava, subia fumo. A Reconfortante luz nas janelas acordou uma antiga ânsia de protecção. Saudades de nenhures. O Philipp ainda estava a trabalhar quando, às sete horas, perguntei por ele no hospital. — O Willy morreu — cumprimentou-me ele, comovido. — Aquele parvo. É simplesmente ridículo, morrer hoje em dia por causa de um apêndice perfurado. Não compreendo por que é que ele não me telefonou; deve ter tido dores horríveis. — Sabes, Philipp, neste último ano, depois da morte da Hilde, tive muitas vezes a impressão de que ele não queria viver mais. — Estes estúpidos maridos e viúvos. Se ele tivesse dito uma palavra… Conheço mulheres que fazem esquecer qualquer Hilde. A propósito, o que é que aconteceu à tua


Brigitte? — Anda a passear pelo Rio. Quando é que é o enterro? — De hoje a uma semana. Às catorze horas no cemitério principal de Ludwigshafen. Tive de tratar de tudo. Já não existia mais ninguém. Estás de acordo com um monumento funerário de arenito vermelho, com uma corujinha em cima? Contribuímos todos, tu, o Eberhard e eu, de modo a que ele vá para debaixo da terra de maneira digna. — Já pensaste nos anúncios? E temos de informar o decano da sua antiga faculdade. A tua secretária pode encarregar-se disso? — Está a ser tratado. Gostaria de ir contigo, vais certamente comer agora. Mas não posso sair, não te esqueças do trabalho de doutoramento. Agora, já só restávamos três. Fui para casa e abri uma lata de sardinhas. Este ano, queria experimentar decorar a minha árvore de Natal com latas vazias de sardinhas em óleo, e tinha de começar ajuntá-las. Já era quase demasiado tarde para conseguir arranjar as suficientes até ao Natal. Deveria convidar o Philipp e o Eberhard na próxima sexta-feira ao fim da tarde, depois do enterro, para uma refeição de sardinhas em óleo? “Fracturas provocadas por portas” tinha cinquenta páginas de grossura. O trabalho sistematizava uma relação entre portas e fracturas. A introdução tinha um diagrama em que o eixo horizontal tinha os diversos tipos de portas que provocaram as fracturas, e o eixo vertical os tipos de fracturas provocadas pelas portas. Na maioria dos 196 campos, os números informavam se e quantas vezes tinha aparecido o caso em questão nos últimos vinte anos nos hospitais de Mannheim. Procurei a secção “porta de carro” e a linha “fractura da tíbia”. No ponto de intercepção encontrei o número dois; atrás, no texto, as correspondentes histórias clínicas. Embora fossem anónimas, reconheci numa delas o caso Sergej. A outra tinha ocorrido no ano de 1972. Um cavalheiro nervoso ajudara a sua dama a descer do automóvel e fechara a porta demasiado depressa. O trabalho só enunciava um único caso de automutilação. Um ourives falhado quisera ganhar o sustento para o resto da vida com o seguro do polegar partido da mão direita. Na cave, colocara a mão direita na moldura da porta de ferro e fechara-a com a esquerda. A coisa só tinha sido descoberta porque, depois de o seguro ter pago, começara a falar sobre o golpe que dera. Confessou à Polícia que, em criança, costumava arrancar os dentes de leite que já abanavam prendendo-lhes uma linha e atando a outra ponta da linha à maçaneta da porta. Isso dera-lhe a ideia. Deixei para mais tarde a decisão de telefonar à senhora Mencke e perguntar-lhe pelos métodos de extracção de dentes do pequeno Siegfried. No dia anterior tinha estado demasiado cansado para ainda ver o Flashdance, que entretanto fora buscar ao clube de vídeo da Rua Seckenheim. Então, pus a cassete a andar. Mais tarde, dancei no duche. Por que é que não ficara um pouco mais de tempo em Pittsburgh?



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Agarrem, que é ladrão!

A Judith e eu parámos primeiro em Basileia. Saímos da auto-estrada em direcção à cidade e estacionámos na Praça Múnster. Esta estava coberta de neve mas sem os perturbadores enfeites natalícios. Andámos um pouco até ao Café Spielmann, encontrámos uma mesa livre junto da janela e desfrutámos de uma vista sobre o Reno e sobre a ponte com a pequena capela no meio. — Agora, conta-me, com todos os pormenores, como é que convenceste o Tyberg — pedi à Judith enquanto comíamos o Birchermúsli que aqui é feito de uma maneira especialmente deliciosa, com muitas natas e sem excesso de flocos de aveia. — Quando fui destacada para as comemorações das IQR, ele convidou-me, caso passasse por Locarno, a ir a casa dele. Peguei-lhe então na palavra, e disse-lhe que tinha de fazer de motorista ao meu idoso tio — apaziguadoramente, colocou a sua mão sobre a minha —, que queria procurar no lago Maggíore uma casa para passar a velhice. Acrescentei que ele conhecia este meu tio idoso do tempo da guerra. Convidou-nos logo para tomar chá amanhã. AJudith estava orgulhosa da sua diplomática jogada de xadrez. Eu tinha as minhas dúvidas. — O Tyberg não irá pôr-me imediatamente fora de casa, quando reconhecer em mim o desagradável procurador nacional-socialista? Não teria sido melhor contar-lhe tudo sem mais rodeios? — Também pensei nisso, mas nesse caso talvez ele não deixasse sequer o desagradável procurador nacional-socialista entrar em casa. — E por que razão um tio idoso e não um amigo mais velho? — Isso soa a amante. Penso que agrado ao Tyberg como mulher, e talvez ele não me convidasse se me soubesse arrumada e, ainda por cima, acompanhada pelo dito cujo. És um detective privado muito susceptível. — Sim. Estou pronto a assumir a responsabilidade de ter sido o procurador no caso do Tyberg. Mas então deverei confessar logo a seguir que sou teu amante e não teu tio? — Isso é uma pergunta para mim? Ela disse isto rápida e impertinentemente, mas ao mesmo tempo foi buscar o tricô, como se quisesse preparar-se para uma longa discussão. Eu acendi um cigarro. — Sempre me interessaste, também como mulher, e agora pergunto-me se para ti eu represento apenas um velhote decrépito, com ar de tio e desassexuado. — O que é que queres agora? “Sempre me interessaste, também como mulher.” Interessaste-te por mim no passado, então deixa. Estás interessado no presente, então


assume-o. Preferes sempre assumir a responsabilidade pelo passado do que pelo presente. Duas direitas, duas esquerdas. — Não tenho problema nenhum em assumir que me interesso por ti, Judith. — Sabes, Gerd, claro que te vejo como homem, e também gosto de ti como tal. Mas isso nunca foi tão forte a ponto de fazer com que eu quisesse dar o primeiro passo. Muito menos Nas últimas semanas. Mas que primeiros passos tão torturados são esses que dás? Ou não são sequer primeiros passos? “Não tenho problema nenhum em assumir isso”, e contudo tens as maiores dificuldades em sequer pronunciar essa frase cuidadosa e tortuosa. Vá, vamos andando. Ela enrolou em torno das agulhas de tricô a manga da camisola começada e ainda mais um pouco de fio. Não me lembrava de mais nada. Sentia-me humilhado. Até Olten, não dissemos uma palavra. A Judith encontrara no rádio o concerto para violoncelo de Dvorak e tricotava. O que é que me teria verdadeiramente humilhado? A Judith só me tinha atirado à cara aquilo que eu próprio sentira nos últimos meses: a falta de clareza dos meus sentimentos em relação a ela. Mas tinha-o feito de uma maneira tão insensível que me sentia exposto e ferido com as suas citações, um pobre diabo hesitante. Disse-lho ao passarmos por Zofingen. Ela pousou o tricô no colo e ficou durante muito tempo a olhar em frente, para a autoestrada. — Isso aconteceu-me tantas vezes, no meu trabalho como secretária-chefe… Homens que queriam alguma coisa de mim, mas que não o assumiam. Gostariam muito de ter algo comigo, mas ao mesmo tempo não queriam tê-lo. Também constroem a coisa de tal maneira, que podem retirar-se imediatamente, sem se envolverem, ao fim e ao cabo. Pareceu-me que era a mesma coisa contigo. Dás um primeiro passo, que se calhar também não é passo nenhum, fazes um gesto que não te custa e com o qual não arriscas nada. Falas de humilhação… Não quis humilhar-te. Oh, merda por que razão é que só consegues ser sensível com os teus próprios melindres? Virou a cabeça. Parecia estar a chorar. Mas eu não consegui ver. Chegámos a Lucerna ao anoitecer. Ao chegarmos perto da água, eu não quis continuar. A auto-estrada tinha pouco trânsito, mas começara a nevar. Eu conhecia o Hotel des Alpes de antigas viagens para o Adria. Na recepção, ainda existia a gaiola com a original gralha indiana. Quando nos viu, crocitou: — Agarrem, que é ladrão! Agarrem, que é ladrão! Ao jantar, comemos Geschnetzelten à moda de Zurique e Rosti. Durante a viagem, tínhamos começado a discutir se o sucesso obriga o artista a desprezar o seu público. A Ròschen constara-me um concerto com o Serge Gainsbourg, em Paris, em que o público aplaudira tanto mais agradecido quanto maior o desprezo com que fora tratado pelo artista. Desde então, esta questão preocupava-me, e tinha-se alargado a um problema maior: se


uma pessoa pode envelhecer sem desprezar a Humanidade. AJudith opôs-se durante bastante tempo à tese da relação entre o sucesso artístico e o desprezo pelo humano. Ao terceiro copo de Fendant, cedeu. — Tens razão, o Beethoven acabou por ficar surdo. A surdez é a expressão mais perfeita do desprezo pelo meio que nos rodeia. Dormi profundamente e bem no meu monástico quarto de pessoa só. Partimos cedo para Locarno. Quando saímos de dentro do túnel de S. Gotardo, o Inverno terminara.


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Suite em si bemol

Chegámos por volta do meio-dia, ficámos nos quartos de um hotel perto do lago e comemos num terraço envidraçado com vista para os barcos coloridos. O sol fazia com que estivesse muito calor por detrás dos vidros. Eu estava nervoso por pensar no chá com o Tyberg. De Locarno para Monti há uma linha azul de teleférico. A meio caminho, onde a cabina do funicular descendente se cruza com a que sobe, há uma estação, Madonna del Sasso, uma famosa capela de peregrinação que não é bonita mas está num sítio bonito. Fomos até lá pelo caminho de romaria, calçado com pedras grandes e redondas. Poupámonos ao resto da subida apanhando o teleférico. Descrevendo inúmeras curvas, percorremos a rua até casa do Tyberg, numa pequena praça com uma estação dos Correios. Estávamos diante de um muro com mais de três metros de altura, que descia até à rua, e ao longo do qual se estendia um gradeamento de ferro forjado. O pavilhão do canto e as árvores e arbustos atrás do gradeamento deixavam adivinhar o local sobranceiro da casa e do jardim. Tocámos, abrimos a porta maciça, subimos as escadas até ao jardim da frente e vimos diante de nós uma casa com dois andares, despretensiosa e pintada de vermelho. Ao lado da entrada vimos uma mesa de jardim e umas cadeiras iguais às dos Jardins da Cerveja. A mesa estava coberta com muitos livros e manuscritos. O Tyberg desenvencilhou-se da manta de pêlo de camelo e dirigiu-se a nós, alto, com um andar ligeiramente flectido para a frente, cabelo branco farto, barba grisalha bem aparada e sobrancelhas farfalhudas. Tinha óculos de leitura, por sobre os quais nos observava com uns olhos castanhos cheios de curiosidade. — Cara senhora Buchendorff, que bom ainda se lembrar de mim. E este é o senhor seu tio. Bem-vindo também à Villa Sempre verde. Já nos encontrámos uma vez, contou-me a sua sobrinha. Não, deixe — interrompeu quando eu quis começar a falar —, lembrar-meei sozinho. Estou neste mesmo momento a trabalhar nas minhas memórias — indicou a mesa —, e gosto de a exercitar. Levou-nos através da casa para o jardim das traseiras. — Vamos dar um pequeno passeio? O mordomo está a preparar o chá. O caminho do jardim conduziu-nos encosta acima. O Tyberg perguntou à Judith como estava, quais as suas perspectivas e como ia o trabalho nas IQR. Tinha uma maneira calma e agradável de fazer as perguntas e de mostrar o seu interesse pela Judith através de pequenas observações. Apesar disso, espantei-me com a sinceridade dela que, sem mencionar o meu nome ou o meu papel, lhe contou a sua saída das IQR. E da mesma maneira me espantou a reacção do Tyberg. Não estava nem céptico em relação à descrição da Judith, nem indignado com nenhum dos envolvidos, do Mischkey ao Korten, e nem manifestou compaixão, nem pena. Tomava apenas conhecimento do que a Judith ia contando. Ao chá, o mordomo serviu bolinhos. Estávamos sentados num grande salão com um piano de cauda, a que o Tyberg chamava a sua sala de música. A conversa abordava agora


a situação económica. A Judith fazia malabarismos com o capital e o trabalho, entradas e saídas, balanço do comércio externo e produto interno bruto. O Tyberg e eu encontrámonos na tese da balcanização da República Federal da Alemanha. Ele concordou tão rapidamente comigo que primeiro tive medo de que me tivesse percebido mal e achasse que existiam demasiados turcos. Mas ele também queria dizer que os comboios eram cada vez menos numerosos e andavam cada vez mais atrasados, que os Correios trabalhavam cada vez menos e com menos seriedade e que a Polícia estava cada vez mais atrevida. — Sim — disse ele pensativamente —, também existem tantos regulamentos que os próprios funcionários não os levam a sério; dependendo do estado de espírito, umas vezes empregam-nos severamente, outras desleixadamente, e às vezes nem sequer os empregam. É apenas uma questão de tempo até que o bakschisch reja a vontade e a disposição. Por vezes fico a pensar que tipo de sociedade industrial se irá criar a partir disso. A burocracia feudal pós-democrática? Adoro este tipo de conversas. Infelizmente, o Philipp, apesar de ler um livro de vez em quando, só se interessa por mulheres, e o horizonte do Eberhard não vai para além do tabuleiro com os sessenta e quatro quadrados. O Willy reflectia nas grandes perspectivas evolutivas e namorava o pensamento de que o mundo, ou aquilo que os homens deixassem ficar dele, seria conquistado pelos pássaros na próxima era. O Tyberg examinou-me longamente. — Claro. Como tio da senhora Buchendorff, não tem de se chamar também Buchendorff. O senhor é o procurador do Ministério Público reformado, o doutor Selb. — Não sou reformado, saí em 1945. — Foi saneado, suponho — disse o Tyberg. Não quis explicar-me. A Judith compreendeu e intromete-se. — Sair não quer dizer grande coisa. A maioria retornou. O tio Gerd, não; não porque não tivesse podido, mas porque não quis continuar. O Tyberg continuou a examinar-me. Eu não me sentia nada bem na minha pele. O que é que se deve dizer quando estamos sentados diante de alguém que quase levámos à morte com averiguações falseadas? O Tyberg queria saber mais. — Então, depois de 1945, já não quis continuar a ser procurador do Ministério Público. Isso interessa-me. Quais foram os seus motivos? — Quando tentei uma vez explicar isso à Judith, ela achou que os meus motivos tinham sido mais de natureza estética do que moral. Repugnou-me a atitude que os meus colegas exibiam durante e depois da reintegração, a ausência de qualquer consciência da sua própria culpa. É claro que poderia ter-me reintegrado com uma outra atitude e com consciência da minha culpa. Mas, dessa maneira, ter-me-ia sentido como um estranho, e então preferi ficar realmente de fora. — Quanto mais olho para si, tanto mais claramente o vejo novamente como o jovem procurador. Claro que se modificou. Mas os seus olhos azuis ainda brilham, apenas um pouco mais baços, e onde agora tem essa cratera no queixo, havia antes apenas uma covinha. O que é que pensou naquele tempo, quando nos apanhou, nos caçou, a mim e ao


Dohmke? Terminei agora de me ocupar do processo, nas minhas memórias. — No meu caso, foi também apenas há pouco que o processo voltou a surgir. Por essa razão é que eu estou contente por poder falar consigo. Encontrei-me em São Francisco com a companheira do professor Weinstein, a testemunha de acusação de então, e fiquei a saber que o testemunho dele era falso. Foi pressionado por alguém da fábrica e alguém das SS. Tem alguma suspeita, ou porventura sabe quem das IQR poderia ter interesse no seu desaparecimento e no do Dohmke? Sabe, está a dar-me que fazer, abusarem de mim como instrumento de interesses obscuros. A uma campainhada do Tyberg o mordomo entrou, levou a loiça e serviu xerez. O Tyberg ficou sentado com a testa franzida e olhando o vazio. — Comecei a pensar nisso quando estava preso preventivamente, e até hoje não consegui encontrar nenhuma resposta. Pensei sempre no Weismúller. Esse também foi o motivo pelo qual não quis voltar às IQR imediatamente depois da guerra. Mas não descobri nenhuma confirmação para esse pensamento. Também reflecti durante muito tempo sobre o modo como o Weinstein poderia ter feito aquela acusação. Já me consternara que ele tivesse ido mexer na minha secretária, encontrado os manuscritos na gaveta, os tivesse interpretado mal e me tivesse denunciado. Mas o seu testemunho sobre uma conversa que nunca tinha existido, entre o Dohmke e eu, atingiu-me profundamente. Tudo para obter umas quaisquer vantagens no campo de concentração?, perguntei-me. Agora, ouço que o obrigaram a isso. Deve ter sido horrível para ele. A companheira dele também o sabia? Contou-lhe que ele tentou contactar-me depois da guerra, e que eu recusei? Estava demasiado ferido, e ele era demasiado orgulhoso para me falar por carta da pressão sob a qual estivera. — O que é que aconteceu ao seu trabalho de investigação nas IQR, senhor Tyberg? — Foi continuado pelo Korten. Era, sem dúvida, o resultado de um trabalho conjunto entre o Korten, o Dohmke e eu. Fomos também os três que decidimos seguir primeiro uma vertente da investigação e deixar a outra. Tudo aquilo era, por assim dizer, o nosso bebé, que mimávamos e protegíamos ciumentamente e do qual não deixávamos ninguém aproximar-se. Nem sequer tínhamos confiado o segredo ao Weinstein, embora este tivesse um papel importante na nossa equipa, quase com os mesmos direitos que nós, cientificamente falando. Mas quer saber o que foi feito da investigação. Desde a crise do petróleo que, por vezes, me interrogo se não será novamente muito actual. Era sobre a síntese de combustíveis. Tínhamos seguido caminhos diferentes de Bergius, Tropsch c Fischer, porque desde o início reconhecemos a importância decisiva do factor dos custos. O Korten continuou a desenvolver esse processo concebido por nós com enorme empenho, e levou-o ao esplendor produtivo. Esse trabalho foi o merecido fundamento da sua subida meteórica nas IQR, apesar de o método ter deixado de ser importante após o fim da guerra, contudo, acho que o Korten ainda tratou de o proteger com um copyright como o método Dohmke-Korten-Tyberg. — Não sei se consegue imaginar o quanto me aflige que o Dohmke tenha sido então executado; e, do mesmo modo, a minha alegria por o senhor ter conseguido escapar. Claro que é apenas por curiosidade, mas importar-se-ia de me contar como o conseguiu? — Essa é uma longa história. Não me importo de lha contar, mas… Ficam com certeza


para o jantar, não é verdade? Contá-la-ei depois. Vou dizer ao mordomo para preparar o jantar e para atear o fogo na lareira. E até então… Toca algum instrumento, senhor Selb? — Toco flauta, mas não tive a disposição nem o vagar necessário durante todo o Verão e o Outono. Levantou-se, tirou da cómoda estilo Biedermeier um estojo de flauta e deixou-mo abrir. — Acha que consegue tocar com ela? Era uma Buffet. Encaixei-a e toquei algumas passagens. Tinha um som maravilhosamente suave e contudo claro, rejubilante nos agudos, apesar do meu deficiente começo depois de uma longa pausa. — Gosta de Bach? Que tal a suite em si bemol? Tocámos música até ao jantar, depois da suite em si bemol ainda o concerto em ré maior de Mozart. Ele tocava de forma segura e muito expressiva. Às vezes tinha de fazer um pouco de batota nas passagens mais rápidas. No final das peças, a Judith pousava o tricô e batia palmas. Comemos pato recheado com castanhas, acompanhado por Klõsse e couve roxa. Não conhecia o vinho, um Merlot frutado da região de Ticino. A lareira, o Tyberg pediu-nos para guardarmos segredo da sua história. Iria ser tornada pública brevemente, mas até lá agradecia discrição. — Eu estava à espera da execução nas celas da morte, na penitenciária de Bruchsal. Descreveu a cela, o quotidiano do condenado à morte, o contacto por batidas com o Doh, na cela ao lado, a manhã em que foram buscar o Dohmke. — Poucos dias depois, também foram buscar-me, a meio da noite. Dois SS exigiam a minha transferência para um campo de concentração. E então reconheci o Korten num dos oficiais das SS. Naquela mesma noite, fora levado pelo Korten e um outro homem das SS até à fronteira para lá de Lõrrach. Do outro lado, esperavam-me dois homens da Hoffmann-La Rache. — No dia seguinte, bebi chocolate quente e comi croissants como em plena paz. Ele era um bom contador de histórias. AJudith e eu ouvíamos fascinados. O Korten. Novamente, o Korten assombrava-me ou enchia-me de espanto. — Mas por que é que isso não podia ser tornado público? — O Korten é mais modesto do que parece. Pediu-me insistentemente para calar o seu papel na minha fuga. Eu sempre respeitei isso, não apenas como uma expressão de modéstia como de sabedoria. Aquele gesto não bateria certo com a imagem de líder da fábrica que ele cultivava. Apenas agora, no Verão, é que revelei o segredo. A posição do Korten como líder da fábrica é hoje reconhecida por todos, e penso que lhe agradará quando o episódio tiver o seu lugar no artigo biográfico que o jornal Die Ze.it pretende publicar, na Primavera, por ocasião do seu septuagésimo aniversário. Por essa razão contei a história ao repórter que está a fazer essa investigação de fundo e que esteve cá em casa há alguns meses.


Juntou mais um cavaco ao fogo. Eram onze horas. — Ainda uma pergunta, senhora Buchendorff, antes que a noite termine. Gostaria de trabalhar para mim? Desde que estou a escrever as minhas memórias que procuro alguém que investigue por mim, no arquivo das IQR, em outros arquivos e nas bibliotecas, que saiba fazer uma leitura crítica, que se habitue à minha letra e que passe o manuscrito final a limpo. Gostaria muito que pudesse começar no dia 1 de Janeiro. Trabalharia sobretudo em Mannheim, uma semana ou outra aqui. O ordenado não seria pior do que até agora. Pense nisso até amanhã à tarde, telefone-me, e, se disser que sim, poderemos esclarecer os pormenores ainda amanhã. Levou-nos até à porta do jardim. O mordomo esperava-nos com o Jaguar, para nos levar ao hotel. A Judith e o Tyberg despediram-se com beijos nas faces. Quando lhe estendi a mão, piscou-me o olho com um sorriso. — Tornaremos a ver-nos, tio Gerd?


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Sardinhas de Locarno

Ao pequeno-almoço, perguntei àJudith o que achava da proposta do Tyberg. — Gostei dele — comecei. — Acredito. Foram um belo número, vocês os dois. Quando o procurador do Ministério Público e a sua vítima se puseram a tocar música de câmara, não quis acreditar nos meus ouvidos. Está muito bem que ele te agradasse, eu também gostei dele, mas o que é que tu pensas da sua proposta? — Aceita-a, Judith. Penso que não te pode acontecer nada melhor. — E que ele esteja interessado em mim como mulher, não me dificultará o trabalho? — Isso pode acontecer-te em qualquer trabalho, e tu sabes lidar bem com isso. E o Tyberg é um cavalheiro, nunca te meterá a mão na perna enquanto estiver a ditar-te os seus textos. — E o que farei eu, quando ele terminar as memórias? — Já te digo. Levantei-me, dirigi-me ao buffet do pequeno-almoço e fui buscar, para terminar, um pão sueco com mel. Esta agora, Pensei. Estará ela a pensar em construir um lar? De volta à mesa, disse: — Ele lembrar-se-á de algo. Isso deverá ser a tua última preocupação. — Ainda vou pensar nisso, enquanto dou um passeio em redor do lago. Vemo-nos ao almoço? Eu sabia o que iria acontecer. Ela iria aceitar o emprego: telefonaria ao Tyberg às quatro horas e discutiria os pormenores com ele até ao fim da tarde. Decidi ir à procura da minha casa para passar a velhice. Deixei um recado à Judith com os melhores desejos de boas negociações com o Tyberg, parti de carro ao longo do lago até Brissago e atravessei de barco até Isola Bella, onde almocei. Depois dirigi-me às montanhas e dei uma grande volta que me levou de novo até ao lago, perto de Ascona. Vi imensas casas para passar os últimos dias. Mas preferi não reduzir daquela maneira a minha expectativa de vida, comprando uma delas com o dinheiro do meu seguro. Talvez o Tyberg me convidasse também para passar as próximas férias em casa dele. Ao romper do crepúsculo, estava de volta a Locarno e passeei pela cidade enfeitada para o Natal. Procurei latas de sardinhas para a minha árvore de Natal. Na loja de mercearias finas, debaixo das arcadas, encontrei sardinhas portuguesas com a designação do ano. Comprei uma lata de 1983, em verdes e vermelhos brilhantes, e uma de 1984, num branco simples com letras douradas. Na recepção do hotel esperava-me um recado do Tyberg. Ele teria muito gosto em mandar buscar-me para jantar. Em vez de lhe telefonar e deixar-me ir buscar, fui para a


sauna do hotel, onde passei três agradáveis horas, e fui deitar-me. Antes de adormecer ainda escrevi uma breve carta ao Tyberg, em que lhe agradecia. As onze e meia, a Judith bateu à porta. Abri. Ela elogiou o meu pijama, e combinámos a partida para as oito. — Estás satisfeita com a tua decisão? — Perguntei. — Sim. O trabalho com as memórias vai durar dois anos, e sobre o futuro, o Tyberg também já pensou. — Maravilhoso. Então, dorme bem. Esqueci-me de abrir a janela e acordei do meu sonho. Estava a dormir com a Judith, mas ela era a filha que eu nunca tive e vestia uma saia ridícula. Quando abri uma lata de sardinhas para mim e para ela, saiu de lá de dentro o Tyberg, tornou-se cada vez maior e finalmente encheu o quarto todo. Senti-me apertado, e acordei. Já não consegui voltar a adormecer e fiquei contente quando chegou a hora de tomar o pequeno-almoço e, sobretudo, de finalmente nos irmos embora. Depois de S. Gotardo começou novamente o Inverno, e levámos sete horas a chegar a Mannheim. Tinha intenções de visitar o Sergej na terça-feira. Este estava outra vez no hospital, depois de uma nova intervenção cirúrgica, mas já não me sentia capaz. Convidei a Judith para beber sekte festejarmos o seu novo emprego, mas ela estava com dores de cabeça. Por isso, bebi sozinho o sekt, a acompanhar as minhas sardinhas.


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Não vê como o Sergej está a sofrer?

O Sergej Mencke estava internado na clínica Oststadt, num quarto duplo virado para o jardim. Naquele momento, a outra cama estava vaga. A perna pendia elevada de uma espécie de sistema de roldanas e era mantida na posição oblíqua correcta por um sistema metálico de caixilhos e parafusos. Com excepção de poucas semanas, ele passara os últimos três meses no hospital e a sua aparência era correspondentemente desgraçada. Apesar disso, conseguia ver-se facilmente que era um homem bonito. Cabelos loiros claros, um rosto britânico comprido, com um queixo forte, olhos escuros e uma expressão melindrada e de superioridade em torno da boca. Infelizmente, a voz tinha algo de choramingas, talvez apenas por causa dos últimos meses. — Não teria sido melhor vir ter primeiro comigo, do que ir irritar todo o meu território social circundante? Então, era assim que ele era. Um quezilento. — E o que é que me teria então contado? — Que a sua suspeita não tem fundamento nenhum, fruto diabólico de cérebros doentes. Consegue imaginar-se a estropiar a própria perna desta maneira? — Ora, senhor Mencke — puxei uma cadeira para perto da sua cama —, há tantas coisas que eu nunca faria. Também nunca me cortaria no polegar para não ter de lavar mais a loiça. E também não faço ideia do que faria para receber um milhão, se fosse um bailarino sem futuro. — Essa história parva do acampamento dos escuteiros. Como é que soube dela? — Irritando o seu território social circundante. O que é que se passou com o seu polegar? — Foi um acidente absolutamente normal. Estava a amanhar arenques com o canivete. Sim, já sei o que está a pensar. Que eu já contei uma história diferente, mas isso foi apenas porque era uma história gira, e a minha juventude não é assim tão cheia de histórias. E quanto ao meu futuro como bailarino… ouça lá, o senhor também não me impressiona como ainda tendo um grande futuro diante de si, mas essa razão com certeza não será motivo bastante para quebrar um membro qualquer. — Diga-me, senhor Mencke, como é que pretende financiar a escola de dança de que tanto tem falado? — O Frederik queria apoiar-me, o Fritz Kirchenberg, quero eu dizer. Ele tem montes de dinheiro. Se eu quisesse intrujar a seguradora, teria pensado em algo muito mais esperto. — A história da porta do carro não é assim tão estúpida. Mas o que é que teria sido muito mais esperto? — Não me apetece falar nisso consigo. E eu só disse: se eu quisesse intrujar a


seguradora. — Está disposto a sujeitar-se a um exame psiquiátrico? Isso facilitaria muito a decisão da seguradora. — Nem pensar nisso. Ainda me faziam passar por louco. Se não me pagarem imediatamente, vou falar com um advogado. — Durante o processo, não poderá escapar-se ao exame psiquiátrico. — Isso é o que iremos ver. A enfermeira entrou e trouxe um pires com comprimidos coloridos. — Os dois vermelhos para agora, o amarelo antes e o azul depois da refeição. Como é que nos sentimos hoje? O Sergej tinha lágrimas nos olhos quando olhou para a enfermeira. — Já não aguento mais, Katrin. Sempre estas dores e nunca mais poder dançar. E agora este senhor da companhia de seguros a acusar-me de ser um intrujão. Katrin, a enfermeira, pôs-lhe a mão na testa e olhou-me com ar zangado. — Não vê como o Sergej está a sofrer? Não tem vergonha? Deixe-o em paz. É sempre o mesmo, com as companhias de seguros; primeiro tiram-nos o dinheiro dos bolsos, depois torturam-nos porque não querem pagar. Eu já não conseguia aproveitar mais nada desta conversa e fugi. A refeição, anotei alguns pontos fulcrais para o meu relatório para as Seguradoras Unidas de Heidelberg. A minha conclusão era que não se tratava nem de uma automutilação premeditada nem de um simples azar. Só podia resumir os pontos de vista a favor de cada uma das hipóteses. Se a companhia de seguros não lhe quisesse pagar, ficaria bem defendida com base naquele relatório. Quando atravessei a rua, um carro salpicou-me dos pés à cabeça com neve lamacenta. Eu já estava mal-disposto quando fui para o escritório, e trabalhar no relatório ainda me dispôs pior. A noite, acabei de ditar penosamente duas cassetes que levei à Rua Tattersall para serem passadas. No caminho de regresso, lembrei-me de que ainda queria perguntar à senhora Mencke sobre os métodos de extracção de dentes do pequeno Siegfried. Mas agora isso era-me completamente indiferente.


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Mateus 6, versículo 26

Foi uma pequena assembleia enlutada, a que se reuniu na sexta-feira, às 14 horas, no cemitério principal de Lud-wigshafen. O Eberhard, o Philipp, o representante do decano da Faculdade de Ciências de Heidelberg, a mulher-a-dias do Willy e eu. O representante do decano preparara um discurso que leu contra-vontade por causa da reduzida audiência. Ficámos a saber que o Willy era uma autoridade reconhecida internacionalmente no âmbito dos estudos das corujas. E fazia isso apaixonadamente: durante a guerra, então assistente na Universidade de Hamburgo, salvara uma família de corujas, profundamente transtornada, de uma gaiola a arder no Jardim Zoológico de Hagenbeck. O padre comentou Mateus 6, versículo 26, sobre as aves do céu. Sob um céu azul e uma neve rangente, avançámos da capela para a sepultura. O Philipp e eu éramos os primeiros, logo depois do caixão. Ele sussurou: — Tenho de te mostrar uma fotografia. Encontrei-a durante as arrumações. O Willy e as corujas salvas com, respectivamente, cabelos e penas chamuscadas, seis pares de olhos fitam a máquina fotográfica, esgotados mas felizes. Fiquei muito comovido. Depois, rodeámos a cova funda. É como uma lengalenga. Pela ordem de idades, o Eberhard é o próximo e depois sou eu. Quando morre alguém de quem gosto, já não penso: “Ah, eu devia ter feito isto e dito aquilo…”. E quando morre alguém da minha idade, é como se me tivesse precedido, embora não saiba para onde. O padre rezava o Pai Nosso, e todos nós o acompanhámos; até o Philipp, que conheço bem como implacável ateu, o disse connosco em voz alta. Depois, cada um de nós deitou a sua pazinha de terra na cova, e o padre cumprimentou-nos a todos com um aperto de mão. Era um jovem, mas convicto e convincente. O Philipp tinha de voltar para o serviço logo a seguir. — Vocês vêm esta noite a minha casa, comer qualquer coisa?

No dia anterior comprara na cidade mais doze latas de sardinha pequenas para a árvore de Natal e pusera os peixinhos em molho de escabeche. A acompanhar, haveria pão de trigo e Rioja. Combinámos encontrar-nos às oito horas. O Philipp partiu a correr, o Eberhard fez as honras ao representante do decano, e a mulher-a-dias, que continuava a soluçar comovedoramente, foi suavemente conduzida pelo braço do padre. Eu tinha tempo e passeei lentamente pelas ruas do cemitério. Se a Klara estivesse ali, tê-la-ia visitado e conversado um pouco com ela. — Senhor Selb! Voltei-me e reconheci a senhora Schmalz, com um pequeno sacho e um regador. — Vou agora mesmo ao jazigo da família, onde agora descansa também a urna do Heinrich. Ficou bonito, o jazigo. Quer vir vê-lo? Olhou para mim timidamente, com a sua cara estreita e acabrunhada. Tudo o que vestia


era fora de moda: um sobretudo negro, botas pretas abotoadas, um barrete de pele preto sobre o cabelo grisalho apanhado num totó, e uma malinha de mão em pele digna de misericórdia. Na minha geração há figuras femininas que, quando as vejo, me fazem acreditar em tudo o que as profetisas dos movimentos feministas escrevem, embora nunca as tenha lido. — Ainda vive na parte antiga da fábrica? — perguntei-lhe durante o caminho. — Não, tive de sair, demoliram tudo. A fábrica alojou-me na Pfingstweide. A casa é boa, muito moderna, mas, sabe, é duro, depois de tantos anos. Demoro uma hora a chegar ao túmulo do meu Heinrich. Depois, graças a Deus, o meu filho vem buscar-me de carro. Estávamos diante do jazigo. Estava completamente coberto de neve. O laço da coroa enviada pela fábrica, e há muito decomposta, estava preso a um pauzinho e saltava à vista: parecia um estandarte ao lado da pedra tumular. A viúva Schmalz pousou o regador e baixou o sacho. — Hoje já não vou poder fazer nada, com toda esta neve. Estávamos ali de pé e ambos pensávamos no velho Schmalz. — Também já quase não vejo o pequeno Richard. Agora, vivo demasiado longe. O que é que o senhor acha, é justo que a fábrica… Oh, meu Deus, desde que o Heinrich já não está comigo penso sempre em certas coisas. Ele nunca mo permitiu, nunca deixou que dissesse nada que prejudicasse as IQR. — Quando é que soube que tinha de se mudar dali? — Hájá meio ano. Escreveram-nos. Mas depois tudo se passou muito depressa. — O Korten não foi de propósito falar com o seu marido, quatro semanas antes da mudança, de modo a que não lhe custasse tanto? — Falou? Ele nunca me disse nada sobre isso. Tinha uma relação estreita com o director. Do tempo da guerra, quando as SS o destacaram para a fábrica. É verdade o que eles disseram no seu enterro: desde então, a fábrica era a sua vida. Não ganhou muito com isso, mas nem isso eu podia dizer. Oficial das SS ou oficial-chefe da segurança, a luta continuava, era o seu lema. — O que é que aconteceu à oficina dele? — Construiu-a com tanto amor… E também gostava muito dos carros. Tudo isso desapareceu muito rapidamente nas demolições, o meu filho mal teve tempo de lá ir buscar alguma coisa, penso que transformaram tudo em sucata. Também não achei isso bem. Oh, Deus — mordeu os lábios e fez uma expressão como que se estivesse a cometer algum sacrilégio. — Desculpe-me, não queria falar mal das IQR. Agarrou o meu braço apaziguadoramente. Ficou durante algum tempo agarrada a ele e olhou para o túmulo. Pensativamente, continuou: — Mas talvez, no fim, o Heinrich também não achasse que a fábrica nos estava a tratar como devia ser. No leito de morte, ainda quis dizer alguma coisa da garagem e dos carros ao director. Eu já não consegui entendê-lo. — Permite que um velho lhe faça uma pergunta, senhora Schmalz? Tinha um


casamento feliz com o Heinrich? Ela agarrou no regador e no sacho. — É o que se pergunta hoje. Nunca pensei nisso. Ele era o meu marido. Dirigimo-nos para o parque de estacionamento. O jovem Schmalz acabara de chegar. Ficou contente por me ver. — O doutor! Encontrou a mãe no túmulo do papá. Contei-lhe do enterro do meu amigo. — As minhas condolências. Dói muito, a perda de um amigo. Também já me aconteceu. Continuo muito agradecido por ter protegido o pequeno Richard. E, um dia qualquer, tem de vir beber o tal café comigo e com a minha mulher. A mãe pode também vir. Que bolo prefere? — O meu preferido é o Zwetschgenstreusel. Não disse aquilo por maldade. É mesmo o meu bolo preferido. O Schmalz respondeu principescamente. — Oh, bolo de ameixas com torrõezinhos de farinha e manteiga. A minha mulher sabe fazê-lo como ninguém. Talvez um cafezinho, entre o Natal e o Ano Novo, quando já está tudo mais calmo? Aceitei. Para acertarmos uma data, voltaríamos a telefonar-nos. A noite com o Philipp e o Eberhard foi de uma alegria dolorosa. Recordámos a nossa última noite de jogo de Doppelkopf com o Willy. Tínhamos então gracejado sobre o que iria acontecer aos nossos jogos quando um de nós morresse. — Não — disse o Eberhard —, não vamos procurar mais nenhum jogador. A partir de agora jogamos Seat. — E depois, xadrez, e o último encontra-se duas vezes por ano a fazer paciências — disse o Philipp. — Bem te podes rir, és o mais novo. — Rir-me de quê? Fazer paciências? Prefiro morrer, profilacticamente!


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And the race is on

Desde que me mudei de Berlim para Heidelberg, compro a árvore de Natal no Handschuhsheim, em Tief-burg. Há muito tempo que elas já não são diferentes das outras. Mas gosto da pequena praça diante do castelo em ruínas. Antigamente, o eléctrico andava em seu redor sobre calhas, a chiar; a linha acabava aqui, e a Klarinha e eu costumávamos passear, no Verão, desde aqui até ao Monte Santo. Hoje em dia, o Handschuhsheim tornou-se local da moda e, no mercado semanal, encontram-se todos aqueles que acham ter algum valor cultural e intelectual em Heidelberg. Virá o dia em que apenas os aglomerados urbanos do tipo do Màrkischen Viertels serão autênticos. Gosto especialmente de abetos. Mas, para as minhas latas de sardinhas, pareceu-me mais apropriada a árvore chamada pseudotsuga. Encontrei uma árvore bonita, direita, espessa, da altura da parede. Cabia mesmo ajusta no meu Kadett, sobre as costas rebatidas do banco da frente e os lugares traseiros rebaixados, na diagonal. Estacionei no parque perto da Câmara Municipal. Fizera uma pequena lista de compras de Natal. Na rua principal, andava o diabo à solta. Abri caminho até ao joalheiro Welsch e comprei uns brincos para a Babs. Nunca se proporciona, mas gostaria de, um dia, ir beber uma cerveja com o Welsch. Ele tem o mesmo gosto que eu. Para a Rõschen e o Georg escolhi, das sugestões de uma dessas boutiques de presentes impertinentes, dois relógios descartáveis, que são considerados modernos pela actual juventude pós-moderna, de plástico transparente com mecanismo e mostrador integrados. Fiquei esgotado. No Café Schafheutle encontrei o Thomas com a mulher e três filhas pubescentes. — Um agente de segurança da fábrica não tem de ofertar filhos à fábrica? — No campo da segurança, há cada vez mais trabalhos fascinantes para mulheres. Para o nosso curso, estamos a contar com trinta por cento de participantes femininas. A propósito, o Ministério da Cultura apoia-nos como projecto-piloto, e por essa razão a Universidade Técnica decidiu introduzir uma especialização própria em segurança interna. Posso apresentar-me hoje ao senhor como decano já nomeado. No dia 1 de Janeiro saio das IQR. Dei os parabéns ao próspero senhor pelo cargo, honra, dignidade e título. — O que é que o Danckelmann irá fazer sem o senhor? — Vai ser difícil para ele nos próximos anos, até se reformar. Mas eu quero que a especialização também seja activa em termos de peritagem e, depois, ele poderá comprarnos conselhos. Está a trabalhar no currículo do curso que ficou de me enviar, senhor Selb? Aparentemente, o Thomas já se emancipara das IQR e assumia o novo papel. Convidoume a sentar à sua mesa, onde as filhas davam risadinhas e a mulher piscava os olhos nervosa mente. Olhei para o relógio, desculpei-me e apressei-me para a ir ao Café Scheu. Depois disso, fiz uma segunda tentativa de continuar a riscar coisas da minha lista. O que é que se dá como prenda a um homem viril de cinquenta e muitos anos? Um conjunto


de cuecas figuradas? Geleia real? As histórias eróticas de Anais Nin? Por fim, comprei um picador de gelo para o bar do barco. Depois, a minha aversão às lojas e aos tinidos natalícios tornou-se demasiado grande. Sentia uma profunda insatisfação com a Humanidade e comigo mesmo. Necessitaria de muitas horas em casa para voltar outra vez a mim. Por que é que me tinha precipitado no movimento natalício? Por que é que cometia todos os anos o mesmo erro? Não teria aprendido nada em relação a isso, ao longo da minha vida? Para quê aquilo tudo? O Kadett cheirava agradavelmente a floresta de abetos.

Quando consegui vencer o trânsito até à auto-estrada, respirei fundo. Pus uma cassete a tocar; tirei uma mesmo do fundo da pilha, porque ouvira as outras demasiadas vezes na viagem para Locarno. Mas não saiu música nenhuma: ouvi levantarem o auscultador de um telefone, o sinal de marcar, marcaram um número, e tocou no destinatário. Ele atendeu. Era o Korten. — Bom dia, senhor Korten. Aqui fala o Mischkey. Aviso-o. Se os seus homens não me deixarem em paz, atiro-lhe à cara o seu passado. Não vou deixar que continuem a pressionar-me, e muito menos que me espanquem novamente. — Pensei que era mais inteligente, segundo o relatório do Selb. Depois da violação do nosso sistema informático, agora ainda uma tentativa de chantagem. Não tenho nada para lhe dizer. Na realidade, o Korten deveria ter desligado nesse mesmo segundo. Mas o segundo passou, e o Mischkey continuou a falar. — Já passaram os tempos, senhor Korten, em que era apenas necessário um contacto nas SS e um uniforme das SS para empurrar as pessoas para onde se quisesse, para a Suíça ou para o cadafalso. O Mischkey desligou. Ouvi-o respirar fundo, depois o barulho do desligar do gravador. A música come-on. “And the race is on and it looks like heartache and the winner loses ail.” Desliguei o leitor de cassetes e parei na berma. A cassete do cabriolet do Mischkey! Tinha-me esquecido completamente dela.


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Tudo pela carreira?

Nessa noite, não consegui dormir. Às seis horas desisti e pus-me a montar e a enfeitar a árvore de Natal. Ouvira e tornara a ouvir a cassete do Mischkey. No sábado não estava ainda em estado de pensar e ordenar todas as informações. Pus dentro de água as trinta latas de sardinhas vazias que juntara. Não podiam cheirar a peixe quando estivessem penduradas na árvore de Natal. Fiquei a olhá-las, com os cotovelos apoiados na beira do lava-louças, vendo-as descer para o fundo. Algumas tinham a tampa arrancada desde quando as abrira. Iria colá-las. Tinha então sido o Korten quem mandara encontrar e denunciar os documentos na secretária do Tyberg? Devia tê-lo notado quando o Tyberg contou que apenas ele, o Dohmke e o Korten sabiam do esconderijo. Não, o Weinstein não fizera nenhuma descoberta casual, como o Tyberg pensara. Tinham-lhe ordenado que encontrasse os documentos na secretária. Era o que a senhora Hirsch havia dito. Talvez o Weinstein até nunca tivesse visto os documentos; o que interessava era o seu testemunho, e não o achado. Quando começou a clarear lá fora, fui para a varanda e adaptei a árvore de Natal ao suporte, Tive de utilizar o machado c serrar. A extremidade era demasiado comprida; serrei-a de maneira a podei recolocá-la na árvore com uma agulha. Depois, coloquei a árvore no seu lugar, na sala. Porquê? Tudo pela carreira? Sim, o Korten nunca poderia ter ido tão longe se o Tyberg e o Dohmke tivessem ficado. O Tyberg falara dos anos depois do processo como a pedrabase da sua ascensão. E a libertação do Tyberg tinha sido o resseguro. Este foi totalmente reembolsado. Quando o Tyberg se tornou director-geral das IQR, catapultou o Korten para alturas nunca antes vistas. Uma trama em que eu tivera o papel do idiota útil. Concebido e orquestrado pelo meu amigo e cunhado. Por quem eu ainda tinha ficado contente por não ter de envolver no processo. Servira-se de mim de uma forma magistral. Pensei na nossa conversa quando mudámos para a Rua Bahnhof. Pensei também nas últimas conversas que tivéramos, no Salão Azul e no terraço da sua casa. Eu, o coraçãozinho de manteiga. Os meus cigarros tinham acabado. Há anos que isso não me acontecia. Vesti o paletó e calcei as galochas, meti no bolso o São Cristóvão que tirara do carro do Mischkey e de que também me lembrara no dia anterior, e fui a casa da Judith. Entretanto, a manhã já ia avançada. Ela veio à porta em roupão. — O que é que se passa contigo, Gerd? — Olhou-me com um ar assustado. — Sobe, acabei agora mesmo de fazer café. — Estou assim com tão mau aspecto? Não, não vou subir, estou a enfeitar a minha árvore de Natal. Queria trazer-te o São Cristóvão. Não tenho de te dizer de onde ele


veio… tinha-o esquecido completamente e agora voltei a encontrá-lo. Ela agarrou no São Cristóvão e encostou-se à ombreira da porta. Lutava contra as lágrimas. — Diz-me ainda uma coisa, Judith, lembras-te se o Peter fez alguma viagem de dois ou três dias entre o episódio do cemitério e a sua morte? — O quê? Não me tinha ouvido, e eu repeti a pergunta. — Viagem? Sim, como é que sabes? — Sabes para onde? — Para o Sul, disse ele. Para voltar a si, porque estava farto de tudo. Por que perguntas? — Estou a pensar se ele não foi ter com o Tyberg, no papel do repórter do jornal Die Ze.it. — Queres dizer procurando material que pudesse utilizar contra as IQR? — Ela reflectiu. — Bem capaz disso era ele. Mas não havia nada a descobrir, da maneira como o Tyberg descreveu a visita. Apertou mais o roupão, cheia de frio. — Não queres mesmo um café? — Volto a dar notícias, Judith. Fui para casa. Tudo batia certo. Um Mischkey desesperado tentara usar contra o Korten o hino da decência e da resistência que o Tyberg cantara. Intuitivamente, distinguira, melhor do que todos nós, as dissonâncias: a ligação às SS, o salvamento do Tyberg mas não do Dohmke. Ele não se apercebeu de quão próximo estivera da verdade e do quão ameaçador deve ter soado aos ouvidos do Korten. Não deve apenas ter soado — aquelas investigações obstinadas eram uma verdadeira ameaça. Por que é que eu não me apercebera disso? Se o Tyberg era assim tão fácil de salvar, por que é que o Korten não fora libertar os dois, dois dias antes, quando o Dohmke ainda estava vivo? Como seguro bastava um, e o Tyberg, o chefe do grupo de investigação, era mais interessante do que o colaborador Dohmke. Tirei as galochas dos pés e bati-as uma contra a outra até a neve cair toda. Nas escadas, cheirava a Sauerbraten. Na véspera não comprara comida nenhuma e só pude estrelar dois ovos. Bati o ovo que sobrava para o Turbo e deitei-o por cima da sua comida. Ele sofrera muito nos últimos dias com a casa impregnada do cheiro a sardinhas. O homem das SS que ajudara o Korten na libertação do Tyberg tinha sido o Schmalz. Juntamente com o Schmalz, o Korten pressionara o Weinstein. Fora para o Korten que o Schmalz assassinara o Mischkey. Passei as latas de sardinhas por água limpa e quente, e sequei-as. Colei as tampas às que as não tinham. Passei o fio de lã verde, com que queria pendurá-las, umas vezes pela


espiral da tampa aberta, outras pelo aro da tampa, outras pelo ponto em que a tampa aberta se unia à lata. Logo que tinha uma lata pronta, procurava o lugar apropriado para ela na árvore de Natal; as maiores mais para baixo, as pequenas mais para cima. Mas não conseguia iludir-me. Estava-me nas tintas para a árvore de Natal. Por que é que o Korten deixara sobreviver o Weinstein, que sabia tudo? O Korten, possivelmente, não tinha nenhuns conhecimentos dentro das SS; cativara e dominara apenas o Schmalz, o oficial das SS na fábrica. Não podia ter a certeza, mas partiu do princípio de que o Weinstein, de volta ao campo de concentração, seria morto. E depois da guerra? Mesmo que o Korten viesse a saber que o Weinstein sobrevivera ao campo de concentração, podia partir do princípio de que uma pessoa que tivesse feito o que o Weinstein tivera de fazer preferiria não abrir a boca. Agora, também faziam sentido as últimas palavras que a viúva dissera ter ouvido ao marido no leito de morte. O Schmalz deve ter tentado avisar o seu mestre e senhor da pista que não conseguira destruir devido ao seu estado físico. Como o Korten conseguira tornar aquele homem tão dependente de si! O jovem académico de boas famílias e o oficial das SS de origens modestas, os grandes desafios e missões, dois homens ao serviço da fábrica, mas cada um no seu lugar. Conseguia imaginar o que se tinha passado entre os dois. Ninguém sabia melhor do que eu quão convincente e sedutor o Korten podia ser. A árvore de Natal estava pronta. Trinta latas de sardinhas penduradas, trinta velas brancas acesas. Uma das latas de sardinhas, pendurada verticalmente, era oval e recordoume o halo de luz de algumas pinturas de Nossa Senhora. Fui à cave, encontrei a caixa de cartão com os enfeites da árvore de Natal da Klarinha e, lá dentro, uma pequena e esbelta Madonna com manto azul. Cabia dentro da lata.


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Já sabia o que tinha de fazer

Também não consegui dormir nas noites seguintes. Por vezes adormecia durante um bocadinho e sonhava com a execução do Dohmke e a intervenção do Korten no processo, com o meu mergulho para dentro do Reno em que, no sonho, nunca mais voltava à superfície, com a Judith em roupão lutando contra as lágrimas encostada à ombreira da porta, com o velho Schmalz, largo e maciço, a sair do soco do monumento do jardim Bismarck, em Heidelberg, e a vir ao meu encontro, com o jogo de ténis contra o Mischkey em que um rapazinho vestido com um uniforme das SS e com o rosto do Korten nos atira as bolas, com o meu interrogatório ao Weinstein e, sempre, o Korten a rir-se de mim e a dizer: “Selb, o coraçãozinho de manteiga, o coraçãozinho de manteiga, o coraçãozinho de manteiga…”. Às cinco horas da madrugada fiz um chá de camomila e tentei ler, mas os meus pensamentos não queriam sossegar. Continuavam a girar. Como é que o Korten pudera fazer aquilo, por que é que eu deixara tão cegamente que ele abusasse de mim, o que iria acontecer agora? Teria, o Korten medo? Devia eu alguma coisa a alguém? Haveria alguém a quem eu pudesse contar tudo? Ao Nágelsbach? Ao Tyberg? A Judith? Deveria ir contar tudo aos jornais? O que fazer com a minha culpa? Os pensamentos giraram em círculos durante muito tempo, cada vez mais rapidamente. Quando a sua velocidade se tornou absurda, dispersaram-se e ordenaram-se numa imagem completamente nova. Já sabia o que tinha de fazer. Às nove horas, telefonei à senhora Schlemihl. O Korten partira de férias no fim-desemana, para a sua casa na Bretanha onde ele e a mulher passavam o Natal todos os anos. Consegui encontrar o postal que ele me enviara no Natal anterior. Mostrava uma casa senhorial de pedra cinzenta com telhado de lousa e portadas vermelhas, cujas travessas diagonais formavam um “Z” invertido. Ao lado, via-se um grande moinho de vento, atrás estendia-se o mar. Consultei os horários e encontrei um comboio que me faria chegar a Paris por volta das cinco horas da tarde. Tinha de me apressar. Mudei a casa de banho do Turbo, meti-lhe suficiente comida granulada no pratinho e fiz a mala. Corri para a estação, troquei dinheiro e comprei um bilhete de 2ª classe. O comboio estava cheio. Já não encontrei lugar na carruagem e por isso tive de mudar de comboio em Saarbrúcken. O comboio seguinte também estava cheio. Soldados barulhentos que tinham autorização para irem passar o Natal a casa, estudantes, homens de negócios atrasados. A neve das últimas semanas derretera completamente, paisagens sujas verdesacastanhadas voavam ao lado do comboio. O céu estava cinzento, por vezes o sol tornavase visível como uma lente lívida atrás das nuvens. Reflecti sobre a razão pela qual o Korten temera as revelações do Mischkey. Do ponto de vista judicial, ainda poderia ser acusado do assassínio do Dohmke, não-prescrito e não-prescritível. E, mesmo que fosse libertado por falta de provas, a sua existência burguesa e o seu mito teriam sido destruídos. Na Gare de l’Est havia um stand de aluguer de carros, e escolhi um automóvel de classe


média, que é semelhante em todas as marcas. Ainda lá deixei ficar o carro algum tempo e fui para a cidade noctívaga e freneticamente pulsante. Diante da estação havia uma gigantesca árvore de Natal que derramava tanta atmosfera natalícia como a torre Eiffel. Eram cinco e meia e eu tinha fome. A maioria dos restaurantes ainda estava fechada. Encontrei uma cervejaria que me agradou e onde serviam a qualquer hora. Fui conduzido pelo chefe a uma pequena mesa e fiquei numa fila com mais cinco outros comensais que comiam cedo, a desoras. Todos comiam Sauerkraut com carne de porco e salsichas, e eu escolhi o mesmo. A acompanhar, uma meia garrafa de Riesling da Alsácia. Num abrir e fechar de olhos, tinha ante mim um prato deitando vapor, uma garrafa num recipiente baço com gelo e um cesto de pão de trigo. Em certas ocasiões, gosto do ambiente de cervejarias, de Bierkellern e de pubs. Naquele dia, não era o caso. Comi rapidamente. Arranjei um quarto no hotel mais próximo e pedi para me acordarem daí a quatro horas. Dormi como uma pedra. Ao acordar com o barulho do telefone, não fazia ideia de onde estava. Não abrira as portadas e o barulho da rua apenas chegava abafado ao quarto. Tomei um duche, lavei os dentes, fiz a barba e paguei. No caminho para a Gare de l’Est, bebi um café expresso duplo. Mandei meter mais cinco na garrafa térmica. Os meus Sweet Aflon tinham acabado. Voltei a comprar um maço de Chesterfield. Tinha previsto seis horas para a viagem até Trefeuntec. Mas passou uma hora antes de conseguir sair de Paris e entrar na auto-estrada para Rennes. Havia pouco trânsito, a viagem foi monótona. Apenas agora me apercebia de quão ameno estava. “Natal ameno, Páscoa nevada”. De vez em quando passava por uma portagem e nunca sabia se tinha de pagar logo ou levantar um cartão. Saí uma vez para pôr gasolina e admirei-me com o seu preço. As luzes das povoações tornaram-se mais esparsas, pensei se seria do tardio da hora ou porque a região era menos povoada. Primeiro, alegrei-me com o rádio do meu carro. Mas só conseguia apanhar um posto e, depois de ter ouvido pela terceira vez a música do angelque passa pelo room, desliguei-o. Por vezes, o piso da auto-estrada modificava-se e os pneus cantavam uma nova canção. Às três horas, pouco antes de Rennes, quase adormeci; de qualquer maneira tive alucinações com pessoas que atravessavam a autoestrada diante de mim. Abri a janela, virei no parque de estacionamento seguinte, bebi a minha garrafa térmica até ao fim e fiz dez flexões. Na continuação da viagem, pensei no papel do Korten no processo. Tinha jogado uma cartada arriscada. O seu testemunho não podia salvar nem o Dohmke nem o Tyberg, mas tinha de soar como se fosse essa a intenção e, ao mesmo tempo, não podia prejudicá-lo seriamente. O Sòdelknecht quase o mandara prender. Como é que o Korten se sentira ao fazer aquilo? Seguro e superior, porque sabia representar à frente de todos? Não, não deve ter tido nenhuns remorsos. Dos meus antigos colegas na Justiça, conhecia as duas coisas necessárias para ultrapassar o passado: o cinismo e o sentimento de ter tido sempre razão e de apenas ter cumprido o dever. O caso Tyberg teria servido para aumentar a fama das IQR, aproveitando ao mesmo tempo ao Korten? Quando deixei para trás as casas de Carhaix-Plouguer, vi no espelho-retrovisor a primeira risca do nascer do sol. Ainda faltavam setenta quilómetros até Trefeuntec. Em Plonévez-Porzay, o bar e a padaria já estavam abertos, e comi dois croissants acompanhados de café com leite. Ao quarto para as oito, estava no golfo de Trefeuntec. Tinha ido de carro até à areia ainda húmida e compactada. Sob um céu cinzento, o mar ia e


vinha, rolando, cinzento. Na costa abrupta, à esquerda e à direita da enseada, rebentava em coroas sujas de espuma. Ainda estava mais ameno do que em Paris, apesar do forte vento de Oeste que empurrava as nuvens diante de si. Gaivotas deixavam-se elevar por ele e precipitavam-se, gritando, numa queda íngreme em direcção à água. Comecei a procurar a casa do Korten. Internei-me um pouco em direcção a terra e encontrei uma vereda na riba Norte. Com as suas enseadas e rochedos, estendia-se até onde a vista podia alcançar. Ao longe, distingui um vulto que poderia ser tudo, desde uma torre de depósito de água até um grande moinho de vento. Deixei o carro atrás de uma cabana destruída pelo vento e dirigi-me à torre. Ainda antes de ter visto o Korten, já os seus dois salsichas me tinham descoberto. Correram para mim desde longe e ladraram-me. Depois, ele surgiu de uma depressão do terreno. Não estávamos muito longe um do outro, mas entre nós havia uma enseada, que rodeámos. Por um carreiro estreito que percorre o topo da riba, dirigimo-nos ao encontro um do outro.


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Velhos amigos, como tu e eu

Estás com muito mau aspecto, meu querido Selb. Uns dias de descanso aqui vão fazer-te bem. Não contava que viesses tão cedo. Vamos dar um passeio. A Helga está a preparar o pequeno-almoço para as nove. Vai ficar contente por te ver. O Korten enfiou o braço no meu e preparou-se para continuar a andar. Tinha um casaco leve de pano cru e parecia descontraído. — Agora, já sei tudo — disse eu, e afastei-me dele. O Korten olhou-me com atenção. E compreendeu logo. — Não vai ser fácil para ti, Gerd. Para mim também não foi, e fiquei contente por não ter de sobrecarregar ninguém com isso. Fiquei a olhá-lo fixamente, sem fala. Ele voltou a aproximar-se de mim, tornou a enfiar o seu braço no meu e levou-me com ele, pelo caminho. — Pensas que o fiz por causa da minha carreira. Não, na confusão dos últimos anos da guerra, era da maior importância conseguir-se uma verdade e uma clareza responsáveis, tomar decisões inequívocas. A nossa equipa de investigação não teria tido muito futuro. Tive pena de que o Dohmke ficasse fora do jogo. Mas muita gente melhor do que ele deixara lá a pele. O Mischkey também teve a hipótese de escolher, e agiu, arriscando a vida. — Parou e agarrou-me pelos ombros. — Tenta compreender-me, Gerd. A fábrica precisava de mim, da maneira como eu me tornei nesses anos duros. Tive sempre uma grande consideração pelo velho Schmalz que, apesar de ser uma pessoa tão simples como era, sempre compreendeu essas relações difíceis. — Tu deves ser completamente louco! Mataste duas pessoas, e falas disso como se… como se… — Ora, isso é um grande exagero. Fui eu que as matei? Ou foi o juiz, ou o carrasco? Ou o velho Schmalz? E quem é que dirigiu as investigações contra o Tyberg e o Dohmke? Quem é que construiu a armadilha para o Mischkey e o apanhou? Todos estamos envolvidos, todos, e temos de o reconhecer, suportar, e cumprir o nosso dever. Desprendi-me do seu braço. — Envolvidos? Talvez estejamos todos envolvidos, mas foste tu quem mexeu os cordelinhos, tu! — gritei eu no seu rosto calmo. Ele também parou. — Isso é uma criancice: Foi ele! Foi ele! Nem sequer quando éramos crianças acreditávamos nisso; sabíamos muito bem que estávamos todos envolvidos, quando o professor se irritava, quando um camarada era troçado, ou quando se fazia batota ao jogo. Falava muito concentrado, pacientemente, ensinando, e eu sentia-me atordoado e


confuso. Sim, o meu complexo de culpa tinha evitado enfrentar aquela realidade, ano após ano. O Korten continuou a falar. — Mas, por favor!.. .Fui eu! Se precisas mesmo de ouvir isso: eu confesso! O que é que pensas que iria passar-se se o Mischkey tornasse tudo público, fosse contar tudo aos jornais? Uma coisa daquelas não termina assim, com o antigo chefe a ser substituído por outro, e tudo continua. Não tenho de te dizer a repercussão que a sua história iria ter nos EUA, em Inglaterra e em França, da concorrência onde se combate por cada centímetro, com todos os meios, do número de empregos que seriam destruídos, daquilo que representa hoje em dia o desemprego. As IQR são um navio grande e pesado que, apesar da sua lentidão, se desloca a uma velocidade louca num mar de gelo flutuante e, se o capitão se vai embora e deixa a roda do leme, encalha e destroça-se. Por isso é que eu tratei de tudo. — Indo até ao assassinato? — Deveria tê-lo comprado? O risco era demasiado alto! E não me venhas com a conversa de que nenhum risco é demasiado alto quando se trata de salvar uma vida. Isso não é verdade… pensa nos mortos em acidentes de viação, nos acidentes de trabalho, nos tiros mortais da Polícia. Pensa na luta contra o terrorismo, em que a Polícia já matou, sem querer, quase o mesmo número de pessoas que os terroristas com intenção. Desistir por causa disso? — E o Dohmke? Subitamente, sentia-me vazio. Via-nos ali, em pé, a conversar, como se estivesse a passar um filme sem som. A costa abrupta sob as nuvens cinzentas, a espuma suja pulverizada, a estreita vereda e atrás dela os campos, dois homens idosos numa conversa agitada — as mãos gesticulam, as bocas movem-se, mas a cena é muda. Desejei estar muito longe dali. — O Dohmke? Na realidade não tenho mais nada a dizer em relação a ele. Que os anos entre 1933 e 1945 se mantenham no esquecimento, é o fundamento sobre o qual o nosso Estado foi construído. Bom, tiveram e têm de fazer um pouco de espectáculo com processos e condenações. Mas em 1945 não houve nenhuma Noite das Facas Longas, e essa teria sido a única maneira de haver um ajuste de contas. Dessa forma, o fundamento estaria selado. Não estás satisfeito? Bom, então: não se podia confiar no Dohmke, ele era imprevisível. Talvez fosse um químico dotado mas, em todos os outros aspectos, era um diletante que não teria sobrevivido na frente de batalha dois dias sequer. Continuámos a andar. Ele não teve de enfiar outra vez o seu braço no meu: quando arrancou, acompanhei-o. — O Destino pode falar assim, Ferdinand, mas tu não. Navios que abrem os seus próprios caminhos, fundamentos inalteráveis, envolvimentos nos quais somos apenas marionetas, pendurados por cordelinhos… o que tu me contas sobre as forças e poderes da vida não altera nada no facto de tu, Ferdinand Korten, e só tu… — O Destino? — Agora, ele estava furioso. — Nós somos o nosso próprio destino, e eu não imputo nada a quaisquer forças ou poderes. Tu é que és aquele que nem leva as coisas


até ao fim, nem deixa de as fazer. Manobras o Dohmke e o Mischkey, sim, mas quando se passa o que tem de se passar, ficas cheio de escrúpulos e não queres ter visto nada, nem feito nada. Santo Deus, Gerd! Cresce, de uma vez por todas! Continuou a andar, com o passo pesado. A vereda tornara-se muito estreita, e eu corri atrás dele, à esquerda a costa, à direita um muro. Atrás de nós, campos. — Por que vieste? — Voltou-se. — Para veres se eu também te mato? Se te empurro daqui abaixo? O mar espumava, cinquenta metros abaixo de nós. Riu-se, como de uma boa piada. Depois leu-o no meu rosto, ainda antes de eu o dizer. — Vim para te matar. — Para que eles tornem à vida? — troçou ele. — Porque tu… Com que então o criminoso quer fazer o papel de juiz, hein? Sentes-te inocente e achas que foste usado? O que seria de ti sem mim antes de 1945, sem a minha irmã e os meus pais e, depois disso, sem a minha ajuda? Atira-te tu próprio daqui de cima, se já não aguentas mais. A sua voz esganiçou-se. Olhei-o fixamente. Depois, o seu rosto foi iluminado pelo sorriso que eu já conhecia, e de que gostava, desde a nossa juventude. Tinha-me incitado a participar em partidas comuns e a sair delas, compreensivo, convincente, superior. — Homem, Gerd, isto é uma loucura. Dois velhos amigos, como tu e eu… Anda, vamos tomar o pequeno-almoço. Já me cheira a café. Assobiou aos cães. — Não, Ferdinand. Ele olhou-me com uma expressão de imenso espanto quando o empurrei com as minhas mãos diante do peito, quando perdeu o equilíbrio e se precipitou no abismo com o casaco a drapejar. Não ouvi nenhum grito. Bateu num rochedo, antes de ser levado pelo mar.


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Um pacotinho do Rio

Os cães seguiram-me até ao carro e correram alegremente ao meu lado até que saí do caminho, para a estrada. O meu corpo tremia todo e, ao mesmo tempo, sentia-me tão aliviado como já há muito tempo não acontecia. Na estrada, passou por mim um tractor. O agricultor olhou-me com atenção. Ter-me-ia visto, do seu lugar elevado, a empurrar o Korten para a morte? Não considerara a hipótese de existirem testemunhas. Olhei para trás; um outro tractor abria sulcos num campo, e duas crianças passeavam de bicicleta. Dirigi-me para Oeste. Pensei em ficar em Point-du-Raz e festejar anonimamente o Natal em terra alheia. Mas não encontrei nenhum hotel, e a costa alcantilada era exactamente igual à de Trefeuntec. Fui para casa. Em Quimper, havia um controlo da Polícia. Embora dissesse um milhão de vezes, de mim para comigo, que aquele era um sítio pouco provável para procurarem o assassino do Korten, tive muito medo, durante a espera, em fila, até o polícia me mandar avançar. Em Paris, apanhei o comboio das onze da noite, que ia vazio, e não tive problemas em arranjar lugar na carruagem-cama. Na véspera de Natal, por volta das oito horas, estava de novo em Casa. O Turbo cumprimentou-me, amuado. A senhora Weiland tinha-me deixado o correio de Natal sobre a secretária. Para além dos votos comerciais de Feliz Natal, encontrei um cartão de Natal de Vera Múller, um convite do Korten para passar a Passagem do Ano com ele e com a Helga, na Bretanha, e um pacotinho vindo do Rio, da Brigitte, com uma roupagem índia. Fiz dela camisa de noite, e enfiei-me na cama. Às onze e meia tocou o telefone. — Feliz Natal, Gerd! Onde é que tens estado? — Brigitte! Feliz Natal. Fiquei satisfeito mas, ao mesmo tempo, sentia-me completamente exausto e esgotado. — Então, meu rabugento, não ficaste satisfeito? Já cá estou novamente. Esforcei-me. — Não me digas. Óptimo. Desde quando? — Cheguei ontem cedo e, desde então, tento encontrar-te. Onde é que te meteste? Ouvia-se um tom de censura na sua voz. — Eu não queria cá estar na Noite de Natal. Caiu-me o céu em cima da cabeça. — Queres comer connosco um Tafdspitz? Já está ao lume. — Sim… Quem é que está aí? — Trouxe o Manu comigo. Olha… Ficarei muito contente por te ver! Mandou-me um beijo pelo telefone. — Eu também. Retribuí-lhe o beijo.


Fiquei deitado na cama e regressei ao presente. Ao meu mundo, em que o Destino não conduz nenhum navio, nem faz dançar marionetas, em que não se constrói nenhum fundamento, e não se faz história. A edição de Natal do Súddeutschen estava em cima da cama. Fazia o balanço dos acidentes de trabalho por envenenamento na indústria química. Larguei-o logo. O mundo não tinha ficado melhor com a morte do Korten. O que tinha eu feito? Vencera o meu passado? Enterrara-o? Cheguei muito atrasado à refeição.


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Daí, o nome Opodeldoque!

Na Véspera de Natal não houve qualquer notícia sobre a morte do Korten, e no Dia de Natal também não. Por vezes, eu ficava com medo. Assustava-me quando tocavam à porta, e ficava à espera de que a Polícia irrompesse pela casa adentro. Às vezes, quando me estava a sentir bem nos braços da Brigitte, abençoado por beijos ternos, perguntava ansiosamente a mim mesmo se aquele não seria o nosso último encontro. De vez em quando imaginava a cena em que eu estaria diante do Herzog a confessar tudo. Ou preferiria prestar o meu depoimento ao Nàgelsbach? A maioria das vezes sentia uma serenidade fatalista, e consegui gozar os dias entre os dois anos, até mesmo o café com bolo de ameixas e torrõezinhos de farinha e manteiga em casa do Schmalz júnior. Simpatizei com o pequeno Manuel. Este tentava corajosamente falar alemão, aceitou sem ciúmes a minha presença matinal na casa de banho, e esperava intrepidamente que nevasse. No começo, fazíamos excursões a três — visitas ao Trono do Parque dos Contos de Fadas e ao Planetário. Depois, começámos a sair os dois sozinhos. Ele gostava tanto de ir ao cinema como eu. Quando saímos da Única testemunha, tínhamos ambos os olhos molhados. No Sfrtash, ele não compreendeu por que razão a rapariga amava um tipo que era tão mau para ela — não lhe disse que era sempre assim. No Kleinen Rosengarten compreendeu logo o jogo que eu e o Giovanni jogávamos, e entrou nele. Depois disso, foi impossível ensinar-lhe mais alguma frase em alemão correcto. No caminho de regresso, depois de andar de patins, agarrou me na mão e disse: — Tu sempre connosco quando eu voltar cá? A Brigitte e o Juan haviam decidido que, a partir do Outono seguinte, o Manuel iria frequentar o liceu em Mannheim. No Outono seguinte, estaria eu na prisão? E senão — estaria a viver com a Brigitte? — Ainda não sei, Manuel. Mas, de qualquer maneira, iremos juntos ao cinema. Os dias passaram sem que o Korten provocasse o aparecimento de grandes parangonas nos jornais, fosse como morto, fosse como desaparecido. Houve momentos em que desejei que a coisa tivesse um fim, qualquer que este fosse. Mas, logo a seguir, ficava agradecido pelo tempo que me era oferecido. No dia a seguir ao Natal, telefonei ao Philipp. Este queixou-se por ainda não ter tido oportunidade de ver a minha árvore de Natal. — E onde é que te meteste nestes últimos dias? Então tive a ideia de dar uma festa de Passagem de Ano. — Tenho algo a festejar — disse. — Vem a minha casa para a Passagem do Ano, vou fazer uma festa. — Queres que te leve uma da Formosa, maneirinha? — Não é necessário, a Brigitte já cá está outra vez. — Daí, o nome Opodeldoque! Mas, e eu? Posso levar uma comigo, para a festa?


A Brigitte ouvira a conversa telefónica. — Festa? Que festa? — Vamos festejar a Passagem do Ano com os meus e os teus amigos. Quem queres convidar? Passei por casa da Judith no sábado à tarde. Encontrei-a a fazer as malas. Tencionava partir no domingo para Locarno; o Tyberg queria apresentá-la à sociedade de Ticino, em Ascona, na Passagem do Ano. — Ainda bem que vieste cá, Gerd, mas estou cheia de pressa. É importante? Não pode esperar? No fim de Janeiro estou cá outra vez. Apontou para as malas abertas e fechadas, para duas grandes caixas de cartão das mudanças e para uma grande confusão de roupas. Reconheci a blusa de seda que ela vestia quando me guiara do gabinete do Korten ao do Firner. Ainda lhe faltava o botão. — Agora já sei a verdade sobre a morte do Mischkey. Ela sentou-se numa mala e acendeu um cigarro. — Sim? Ouviu-me sem me interromper. Quando terminei, perguntou: — E agora, o que é que vai acontecer ao Korten? Tinha temido esta pergunta e por isso reflectira durante muito tempo se não deveria ir ter com a Judith apenas quando a morte do Korten fosse tornada pública. Mas não podia deixar que a morte do Korten determinasse as minhas acções e, sem ele, não havia motivo nenhum para calar por mais tempo a solução do caso. — Vou tentar desmascará-lo. O Korten volta da Bretanha no início de Janeiro. — Ora, Gerd, certamente não acreditas que o Korten se vá abaixo no meio da conversa e confesse? — Não acreditas que a Polícia consiga provar a culpa dele? Desagradava-me discutir o que se iria passar com o Korten. A Judith tirou outro cigarro do maço e rolou-o entre as cabeças dos dedos das duas mãos. Tinha um ar triste, esgotada com as reflexões em torno do assassinato do Peter, e também enervada, como se quisesse deixar tudo aquilo, finalmente, atrás de si. — Vou falar com o Tyberg. Não tens nada contra isso, pois não? Nessa noite, sonhei que o Herzog me interrogava. — Por que é que não se dirigiu à Polícia? — O que é que a Polícia poderia fazer? — Oh, hoje em dia temos meios impressionantes. Venha, vou mostrar-lhos. Através de longos corredores e muitas escadas, chegámos a uma sala, como as que conheço dos castelos medievais, com tenazes, ferros, máscaras, correntes, chicotes, correias e agulhas. Na chaminé ardia um fogo infernal. O Herzog apontou para o leito do


suplício. — Aqui teríamos feito o Korten falar. Por que é que não confiou na Polícia? Agora, é o senhor que se tem de estender aqui. Não reagi e prenderam-me com correias. Quando já não conseguia mover-me, entrei em pânico. Devo ter gritado antes de acordar. A Brigitte tinha acendido o candeeiro da mesade-cabeceira e falou comigo, preocupada. — Está tudo bem, Gerd! Ninguém te faz mal. Desenvencilhei-me dos lençóis que me apertavam. — Meu Deus, mas que pesadelo. — Conta-mo, vai fazer-te bem. Eu não quis, e ela ficou ofendida. — Gerd, já notei que há algo que não está bem contigo. Por vezes, estás totalmente ausente. Aninhei-me nos seus braços. — Já passa, Brigitte. Não tem nada a ver contigo. Tem paciência aqui com o velhote. Apenas na Passagem do Ano é que os meios de comunicação falaram da morte do Korten. Um acidente trágico fizera com que se precipitasse no mar durante um passeio pela costa, na sua residência de férias, na Bretanha, na manhã da Véspera de Natal. As informações que haviam sido preparadas pela imprensa e pela rádio, para comemorar o septuagésimo aniversário do Korten, eram agora utilizadas nos discursos fúnebres e nos elogios. Com o Korten, terminava uma época, a época dos grandes homens da reconstrução do Pós-Guerra. O enterro realizar-se-ia no início de Janeiro, com a presença do Presidente da República Federal da Alemanha, do Chanceler federal, do Ministro da Economia alemão, assim como de todos os membros do governo da Renânia-Palatinado. Nada de melhor poderia ter acontecido à carreira do filho. Eu seria convidado, como cunhado que era, mas não iria. Também não iria apresentar as minhas condolências à sua mulher, Helga. Não tinha inveja da fama dele. Também não lhe perdoava. Assassinar alguém significa não ter de perdoar.


21

Lamento muito, senhor Selb

A Babs, a Rõschen e o Georg chegaram às sete horas. A Brigitte e eu tínhamos terminado naquele momento os preparativos para a festa, acendido as velas da árvore de Natal, e estávamos sentados no sofá com o Manuel. — Até que enfim a vemos! — A Babs olhou para a Brigitte com curiosidade, com simpatia, e deu-lhe um beijo. — Muitos parabéns, tio Gerd! — disse a Rõschen. — E a árvore de Natal está muita louca). Dei-lhes os presentes. — Mas, Gerd — disse a Babs, repreendendo-me —, não tínhamos combinado que, este ano, não nos daríamos nada?! — e fez aparecer um pacotinho. — Isto é de nós os três. A Babs e a Ròschen tinham tricotado uma camisola vermelha escura, em que o George integrara, nos lugares apropriados, um circuito eléctrico com oito lampadinhas formando um coração. Quando vesti a camisola, as lampadinhas começaram a piscar ao ritmo do meu coração. Depois chegaram o senhor e a senhora Nágelsbach. Ele vestia um fato preto, colarinhos altos e laço, no nariz umas lunetas, e era a cara chapada do Karl Kraus. Ela tinha um vestido fin-de-siècle. — Senhora Gabler? — cumprimentei, cerimoniosamente. Ela fez uma pequena vénia e juntou-se às outras mulheres. Ele ficou a olhar para a minha árvore de Natal com ar de desprezo. — Burgueses que não se levam a sério, e que também não conseguem despir a pele… A campainha não parava. O Eberhard entrou com uma pequena mala. — Preparei uns truques de magia. O Philipp trazia com ele a Fúruzan, uma enfermeira turca cheia de raça e exuberância. — A Fúrzinha sabe dançar a dança do ventre! A Hadwig, uma amiga da Brigitte, tinha o Jan consigo, o filho de catorze anos, que começou logo a dar ordens ao Manuel. Todos se apertavam na cozinha, em torno do buffet frio. Despercebida, a Beiss nicht gleich jeder Apfel, de Wencke Myhres, soava na sala vazia; o Philipp pusera a tocar os êxitos do ano de 1966. O escritório estava vazio. O telefone tocou. Fechei a porta atrás de mim. A alegria da festa chegava, amortecida, aos meus ouvidos. Todos os meus amigos estavam ali. Quem estaria a telefonar-me?


— Tio Gerd? — era o Tyberg. — Feliz Ano Novo! A Judith contou-me, e eu li os jornais. Parece que resolveu o caso Korten. — Olá, senhor Tyberg. Também lhe desejo um Bom Ano Novo. Vai escrever o tal capítulo sobre o processo? — Mostro-lho quando me vier visitar. A Primavera é maravilhosa aqui, no Lago Maggiore. — Irei. Até então. O Tyberg compreendera. Fez-me bem saber que havia alguém que também sabia, e que não iria pedir-me contas. A porta abriu-se de supetão e os meus convidados exigiram a minha presença. — Onde estás escondido, Gerd? A Fúruzan vai começar a dança do ventre para nós. Arranjámos um espaço para dançar, e o Philipp enroscou uma lâmpada vermelha no candeeiro. A Fúruzan saiu da casa de banho com um biquíni que tinha véus, cordões e coisinhas a brilhar pendurados. O Manuel e o Jan ficaram de olhos esbugalhados. A música começou lamentosa e lenta, e os primeiros movimentos da Fúruzan foram de uma insinuação calma e lasciva. Depois a música intensificou-se e, com ela, o ritmo da dança da Fúruzan. A Rõschen começou a bater palmas, e todos a imitaram. A Fúruzan deixou cair os véus, fez girar muito rapidamente os cordões que tinha presos ao umbigo, e o chão da sala tremeu. Quando a música terminou, a Fúruzan terminou a dança numa pose triunfante, e atirou-se para os braços do Philipp. — Assim é o amor das turcas — riu-se o Philipp. — Ri-te, ri-te, que eu já te apanho. Não se brinca com as mulheres turcas — ela olhou-o orgulhosamente nos olhos. Eu trouxe-lhe o meu roupão. — Alto! — gritou o Eberhard, quando o público se preparava para dispersar. — Convido-os para um espectáculo de cortar a respiração, do grande mágico Ebus Erus Hardabakus. E fez aros girar, e entrar uns dentro dos outros, e voltar a sair, de panos amarelos fez vermelhos, fez moedas aparecer e desaparecer novamente, e o Manuel teve autorização para verificar se tudo se passava sem batota. O truque com o ratinho branco correu mal. O Turbo saltou para cima da mesa logo que o viu, atirou pelos ares o cilindro, debaixo do qual o Eberhard acabara de o fazer desaparecer, correu atrás dele pela casa fora e, brincando, partiu-lhe o pescoço atrás do frigorífico, antes que um de nós pudesse intervir. A seguir, o Eberhard quis partir o pescoço ao Turbo, mas felizmente a Rõschen pendurouse-lhe no braço. Era a vez do Jan. Recitou Os Pés em Fogo, de Conrad Ferdinand Meyer. Ao meu lado, estava sentada a Hadwig, ansiosa, e os seus lábios diziam mudamente o poema. — Minha é a vingança, assim fala o Senhor! — bradou o Jan por fim. — Encham copos e pratos, e venham outra vez para aqui — gritou a Babs —, o espectáculo vai continuar.


Falou em segredo com a Ròschen e o Georg, e os três afastaram a mesa e as cadeiras, e fizeram da pista de dança um pequeno palco. Adivinhar nomes de filmes. A Babs soprou com as bochechas bem cheias, e a Ròschen e o Georg correram dali. — E tudo o vento levou!— gritou o Nágelsbach. Depois o Georg e a Ròschen começaram à pancada, até que a Babs se meteu entre eles, lhes agarrou nas mãos e as pôs uma na outra. — Kemal Atatúrk na guerra e na paz! — Demasiado turco, Fúrzinha — disse o Philipp e fez-lhe uma festa no braço —, e não é que ela não é tão cheiinha?! Eram onze e meia e eu assegurei-lhe de que havia gelo suficiente no congelador. Na sala, a Ròschen e o Georg haviam tomado a aparelhagem e faziam disparar músicas antigas pelas colunas. Eins und eins, das macht zwei, cantava a Hildegard Knef, e o Philipp tentou valsar no estreito corredor com a Babs. As crianças jogavam à “apanhada” com o gato. Na casa de banho, a Fúruzan lavava-se do suor da dança do ventre. A Brigitte veio ter comigo à cozinha e deu-me um beijo. — Bonita festa. Quase não ouvi soar a campainha. Pressionei o botão para abrir a porta lá de baixo, mas depois vi a silhueta verde através do vidro martelado da entrada, e soube que o visitante já cá estava em cima. Abri. Diante de mim estava o Herzog, vestido de uniforme. — Lamento muito, senhor Selb. Então, era o fim. Diz-se que isso sucede apenas pouco antes da execução mas, naquele momento, passaram-me pela cabeça as imagens da última semana: o último olhar do Korten, a chegada a Mannheim na manhã da véspera de Natal, a mão do Manuel na minha, as noites com a Brigitte, o nosso grupo descontraído em redor da árvore de Natal. Quis dizer alguma coisa. Não consegui que saísse nenhum som. O Herzog passou por mim e entrou na sala. Ouvi baixarem o som da música. Mas os amigos continuavam a rir e a conversar animadamente. Quando consegui controlar-me e entrei na sala, o Herzog tinha um copo de vinho na mão, e a Rõschen, um pouco tocada, brincava com os botões do seu uniforme. — Estava agora mesmo no caminho de regresso a casa, senhor Selb, quando me chegou pelo rádio uma queixa por causa da sua festa. Então resolvi ser eu mesmo a dar um salto cá a sua casa. — Despachem-se! — gritou a Brigitte. — Só faltam dois minutos. Era o tempo suficiente para distribuir os copos de champanhe e fazer saltar as rolhas. Agora, estamos todos na varanda: o Philipp e o Eberhard lançam os foguetes, de todas as igrejas ouvem-se sinos a repicar, todos brindamos. — Feliz Ano Novo!


FIM


AUTORES

BERNHARD SCHLINK (Bielefeld,

6 de julho de 1944) é um jurista e escritor alemão, professor de Direito e Filosofia na Universidade Humboldt desde 1996. Neto de Wilhelm Schlink. Sua obra de ficção mais renomada é o livro Der Vorleser (O Leitor) publicado em 39 idiomas e adaptado para o cinema pelo diretor inglês Stephen Daldry.

WALTER POPP (pseudônimo Thomas Richter , nascido em 1948 em Nuremberg) é um

autor alemão e ex-advogado. Estudou Direito em Erlangen e trabalhou até 1983 como advogado em Mannheim. Depois, ele foi para a França: em Paris trabalhou como barman, em 1984 mudou-se para Provença e se tornou um tradutor literário e depois técnico. Os primeiros registros de seu livro Marcel Dauphin, diário de um jogador de Boule 2007 também surgiram durante este tempo. Em 1985, Popp, juntamente com seu amigo Bernhard Schlink, escreveu o livro Selbs Justiz , traduzido para vários idiomas e transformado em um filme, a primeira parte da chamada Trilogia Selb .


http://asa.pt/pt/ Criada em 1951 por Américo Sousa Areal, e integrada desde 2007 no grupo LeYa – um dos maiores grupos editoriais de língua portuguesa do mundo, com presença em Angola, Moçambique e Brasil –, a ASA assenta a sua atividade em três pilares INOVAÇÃO, RIGOR E EXIGÊNCIA, PROXIMIDADE E ACOMPANHAMENTO. ******** Epub feito: Fev/2018


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