Revista Mensal Paola Rhoden

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CONTOS


Revista de Contos ©Paola Rhoden Registro na BN 406.802 – todos os direitos dos contos são reservados Edição – Dezembro/2015 Fotos de Paola Rhoden e Google Imagens Circulação Mensal

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ATITUDES®

abrir seu computador para o serviço do dia, como sempre fazia.

Janice estava naquele dia particularmente escandalosa. Uma minissaia rodada rosa choque, um top curtíssimo preto, uma sandália que podia fazer o maior sucesso na Sapucaí em dia de desfile, cabelo preso em rabo de cavalo com um grande laço também

Todo mundo voltou a seu trabalho e esqueceu-se de Janice, até o momento em que o chefe saiu de sua sala e perguntou: - Janice, onde está a planilha que deixei em sua mesa com o bilhete que era para hoje?

rosa choque. Se não bastasse, seus olhos, que tinham um verde bonito combinando com seu cabelo loiro, estavam pintados de preto com uma larga faixa abaixo dos cílios, deixando-a com ar assustado. Não seria exatamente feio se ela fosse magrinha. Mas Janice tinha quinze quilos a mais do que seria seu peso normal, e as gorduras excessivas saltavam pelas laterais como bolas fofas infladas de ar. E olha que gosto dela porque é minha

Novamente todos voltaram a olhar para ela na esperança de que não tivesse atendido ao pedido. Isso sempre ocorria! Embora poucos dos funcionários deixassem de fazer o que o chefe solicitava, porque se alguém se esquecia de atender um só de seus pedidos malucos, havia briga na certa. Diga-se de passagem, que nem sempre o que ele pedia tinha razão de ser. Então todos ficaram atentos para ver qual mico ela ia pagar.

amiga e parceira de trabalho. Mas acho que

Mas a garota puxou de sua imensa sacola,

as pessoas deviam olhar-se no espelho antes

onde devia ter de tudo um pouco pelo tamanho

de sair de casa. Ou será que se olham e não

que era, e foi entregando ao chefe um maço de

se vêm como realmente são?

papéis, não tão em ordem como deveria, mas ra-

Janice entrou no escritório, e todo o pessoal

zoavelmente aceitável.

da área de informática virou-se para olhar. Foi

Discretamente todos voltaram suas cabeças

instintivo! Involuntário! Não teve nenhuma cabeça

aos lugares devidos, um tanto quanto decepcio-

que não virou quando ela entrou.

nados, e com certeza pensando que ela era mais

- Jesus – pensei - onde ela acha que está indo com esta roupa? Colocou suas coisas sobre a mesa de trabalho com estrondo, mascando seu inseparável chiclete, sentou, cruzou as pernas e dedicou-se a

responsável do que parecia. Na hora do lanche, Jonas, que era o espírito sem noção do time de informática, chegou ao lado dela e perguntou: - Janice, meu amor, vai a algum desfile de escola de samba depois do expediente? 3


Ela virou-se sem pestanejar: - Claro. Vou àquele desfile com sua mãe e sua irmã, lembra? Temos um compromisso sério.

Enquanto caminhávamos em direção a minha mesa, perguntei se ela estava bem. Olhando-me de sobreaviso perguntou: - Pareço não estar bem?

Todos riram. Jonas chamou Janice para um lado e perguntou: - Em sua opinião, se é que não vou deixá-la inibida com a pergunta, qual é a característica ideal

- Parece estar aborrecida – falei por pura intuição, porque ela não parecia nem um pouco triste mesmo.

para ser vulgar? - Olha – respondeu ela com olhar fuzilando – a mesma que sua bela esposa usa. Jonas saiu de fininho, porque a conversa po-

- Bem! Aborrecida não seria bem o caso. Estou chateada porque lá em casa as coisas não estão exatamente conforme eu queria que estivessem. Mas procuro não trazer os problemas com meu marido para o trabalho.

deria desandar para um patamar perigoso que atrairia a atenção de sua mulher, que por sinal estava vindo em sua direção naquele momento.

Bingo! Acertei em cheio sem querer, pensei com meus botões.

Ela trabalhava no setor ao lado, mas no intervalo

- Estão brigados? Você e seu marido?

costumava lanchar conosco.

- Nem tanto! Só um pouco de ciúmes de mi-

Saí do meu canto onde me coloquei decidida

nha parte. É que ultimamente ele anda fazendo

a não interferir em nada naquele dia, fosse o que

coisas que me deixam com a pulga atrás da orelha.

fosse que se passasse. Mas resolvi mudar de ideia

Por exemplo, aos sábados em vez de irmos a al-

porque Janice estava prestes a ser abordada por

gum lugar juntos, ele sai para o futebol, ou um

outro gaiato metido a engraçadinho. Cheguei jun-

churrasco, ou qualquer coisa que não seja para me

to a ela e entabulei uma conversa sobre o material

levar com ele. No domingo fica o dia todo em fren-

em que estava trabalhando, e que por acaso tinha

te à TV e nem me dá bola. Não é para ficar pensati-

a ver com a planilha que o chefe pedira a ela. Nos-

va?

sa conversa estava no início quando o gaiato estacionou ao nosso lado. Tentou entrar na conversa, mas o descartei gentilmente, dizendo que precisava levar Janice para minha mesa onde iríamos resolver um assunto urgente.

- Algum sábio já disse em alguma ocasião, que se conselho fosse bom, não se dava, se vendia. Mas, mesmo assim, vou lhe dizer algo que pode machucar, mas tenha certeza, só quero ajudar como amiga que sou. 4


- Ora! Deixe de rodeios e diga logo. O chefe pode precisar de nós. - Que tal você emagrecer um pouco. Vestir-se menos vistosamente. Parar de mascar este tenebroso chiclete o tempo todo e lembrar que, quando vocês dois se conheceram, você era bem diferente do que é agora? Ela deu um grande, ruidoso e profundo suspiro antes de falar. - Pois é! E você diz ser minha amiga! - E sou! Só uma amiga verdadeira tem a coragem de dizer umas verdades de vez em quando, para quem realmente se gosta. Nisso a porta da sala do chefe abriu-se. To-

- E mais! Acertei com o maridão. Agora ele sai para o futebol nas quartas. Sábado e domingo é nosso. Precisa ver! Estamos pensando até em fazer uma viagem nas férias. - Maravilha minha querida garota! É assim que se fala e que se faz. Naquela tarde fiquei pensando. O que poderia ter acontecido naquele dia, se em vez de ter ido falar com Janice, tivesse ficado em meu canto como decidira no início do dia? O pessoal continuaria tirando com a cara dela, e em vez de tomar a decisão certa, poderia ter ficado magoada com as brincadeiras e fazer tudo ao contrário. Às vezes uma atitude pode mudar uma vida. Uma falta de atitude também pode.

dos se sentaram imediatamente em frente a suas máquinas. Janice dirigiu-se a sua mesa. No dia seguinte precisei fazer uma viagem a trabalho e fiquei dois meses fora do setor. Quando voltei, dei de cara com uma Janice uns bons tantos quilos a menos, vestida decentemente, maquiada suavemente como manda os bons figurinos de moda, e com um ar de felicidade que dava gosto. Ela abraçou-me num cumprimento e disse: - Pensei em seu conselho e resolvi fazer algumas mudanças em minha vida. Como vê, estou diferente não é mesmo? - Menina! Está linda! Tudo muito bom. Cabelo, roupa, maquiagem. Fez um grande trabalho com você mesma! 5


O ANJO DE ROSINHA®

sobre sua vida. Contou como e onde nasceu, como viveu na casa de seus pais, depois em sua casa

Rosinha apanhava todos os dias do marido.

após o casamento. As surras ela enumerou desde

Ele chegava embriagado e sem motivo, sem ra-

a primeira, esmiuçando os detalhes. No início foi

zão, nem nada, agredia com palavras e safanões,

bom o viver a dois. Mas foi por pouco tempo. Logo

e a deixava caída em um canto da sala.

o marido mostrou o que era. Um ser violento e

Não tinham filhos. Ainda bem - pensava ela.

odioso. Nem quando estava sóbrio a tratava bem.

Não gostaria de ter testemunhas de sua miséria,

Por isso, bem escondidinho no coração, ela passou

principalmente um filho. O que iria aprender com

a odiá-lo. Por que permaneceu ali apanhando,

isso para a vida?

sendo maltratada? Talvez porque tivesse vergonha. Ou quem sabe, porque o que Deus uniu nin-

Todas as noites ela rezava. Ajoelhada ao lado

guém separa. Sofreu calada.

da cama enquanto o marido roncava a bebedeira, ela falava com seu Anjo da Guarda. Embora ele não respondesse nunca.

Concluiu seu relato. Relendo os papéis escritos em cima da mesa, achou que não devia mostrar ao marido. E como fazia todos os dias, guar-

Certa noite Rosinha sonhou. No sonho seu

dou na gaveta da mesa o maço de papéis.

Anjo apareceu e disse: “Escreva sua história. Conte o que lhe acontece. As pessoas precisam saber.”

Quando o marido chegou do trabalho, enquanto ela preparava o jantar, ele abriu a gaveta.

Rosinha embevecida, no sonho, olhava o Anjo. Lindo! Mas não conseguia responder. Três noites seguidas ele veio em seu sonho. Repetiu a mesma orientação. Cada sonho era uma vestimenta. Cada sonho era uma nova luz. Parecia um guerreiro divino.

Que tanto papel é esse? Perguntou com raiva. Ela correu. Isso é meu. Não olhe. Pegou o maço avantajado de folhas e correu para o quarto com a intenção de esconder. Ele não foi atrás. Ela volta. Mas ele ficou matutando no que seria aquilo. Pra que diabos ela escrevia tanto? E lá no fundo

O Anjo era lindo, e Rosinha se apaixonou por

começou a pensar em traição. Seria outro homem?

ele. Não importava mais as surras diárias nem o

Mas por que escreveria tanto assim? E a semente

sofrer pelas palavras impróprias. Ficava ansiosa

ficou germinando. Ficou enciumado daqueles pa-

esperando a hora do dormir para vê-lo. Mas seu

péis. Chamou-a e bateu nela com raiva até ela cair,

Anjo não veio mais. Em vão esperou.

e foi dormir sem comer. Ela não. Não podia dormir, estava muito machucada. Matutava o que

Decidiu então fazer o que ele pediu. Arranjou

fazer com tanto papel. Pediu ajuda ao Anjo.

papel, uma caneta, e nas horas de folga escrevia 6


No sonho o Anjo voltou e disse: “Publique! Mostre a todos o que escreveu!” Acordou assustada. Seu Anjo lindo dissera: Publique e mostre a todos. Publique. Foi ver o que era isso. Falou com muita gente. Ninguém sabia dizer. Lembrou-se de sua antiga professora. Foi lá. Publicar é complicado, disse a professora. Mas toma um endereço, essa pessoa pode ajudar. Rosinha saiu esperançosa e foi procurar. Ficou animada com a ideia. O marido vendo a esposa diferente começou a desconfiar ainda mais. Aí tem coisa! Com muito andar, Rosinha conseguiu que alguém se interessasse pela história e publicou. O marido em casa, cada vez mais desconfia-

Muitos dias depois, em uma noite chuvosa, o marido chegou a casa e havia uma grande caixa na pequena sala. Abriu. Estava cheia de livros. Na capa escura um título: “Minha vida por um Anjo”. Autora: Rosinha. O homem curioso abriu um volume e começou a ler. Sorriu com as peripécias da esposa criança e quando ela falou de seu noivado e casamento. Franziu o semblante com a mágoa revelada pelas surras horríveis de quase todos os dias. E o Anjo! Ele teve ciúmes de um Anjo! Ciúmes de um sonho com um Anjo! Beijou o livro! No dia seguinte acharam-no morto. Suicidara-se.

do, queria ver os papéis. O que tinha lá que ele não podia ver? Mas ela não mostrou. Mesmo porque os papéis estavam já na editora. No dia em que foi chamada, levou assim mesmo, manuscrito, do jeitinho que escreveu. Uma noite o marido chegou mais bêbado que nunca. Bateu tanto na pobre Rosinha que ela não resistiu. Morreu ali mesmo no piso da cozinha. No enterro, só a mãe chorou. Ninguém soube por que ela morreu. Acho que foi colapso, disseram. Ninguém comentou as manchas pretas pelo rosto e corpo da mulher. Não era importante. Morrer? Morre-se todo dia por qualquer coisa. 7


A Lei da Vida ou do Sucesso®

Durante toda a minha vida, desde os doze anos de idade, consegui realizar quase todos os meus desejos. Sempre tive facilidade em conseguir as coisas que queria. E olha que naquele tempo, há muitos anos, pouquíssimas pessoas falavam no poder da mente, poder da atração, poder do subconsciente, e outros poderes mais. Mas uma coisa é certa. Foi a minha vontade e meu querer que fizeram as coisas acontecerem. Confesso que inúmeras ocasiões as coisas pedidas e conseguidas, só me trouxeram tristeza e decepção. Mas eu as pedi. Na maioria das vezes não em palavras, mas em pensamento firme e com visualização perfeita do que imaginava ser bom naquele momento específico de minha vida. Uma das coisas que eu não queria realmente, mas aconteceu, foi meu marido me deixar. Nós fomos um casal que todos os amigos diziam ser perfeito. E nós também acreditávamos nisso. Em vinte anos de convívio nunca brigamos, sequer uma pequena discussão. O que ele fazia eu aprovava, e vice e versa. Combinávamos em tudo. Desde os gostos pela vida até o momento de parar para conversar sobre assuntos, que para alguns levava a discussões intermináveis, mas que para nós resumia-se em agradável bate-papo de dois amigos sinceros. Em nosso casamento existia uma única coisa que me incomodava. As intermináveis briguinhas entre meu marido e nossa filha. Desde que ela era criancinha que ele implicava com as atitudes dela. Quando ela ficou adolescente então, era todo dia uma rusga daqui outra dali. Um certo dia, lembro perfeitamente a data, os dois discutiram feio por alguma coisa muito insignificante. Aquilo me deixou triste. Deixei os dois em casa e saí andando pela rua sem destino. Eu amava muito os dois, e nunca me metia em suas dis-

cussões. Por isso saí para evitar interferência. Caminhando fui pensando naquela situação, e sem querer visualizei o fim daquelas brigas e discussões sem sentido. Cheguei a uma Igreja próxima, entrei, e meu pensamento divagou por uma cena agradável de vivência tranquila de nossa família. Tudo sem premeditação de nada. Apenas “vi”, nós três vivendo sem brigas e felizes. Uma semana depois meu marido chegou e falou que ia sair de casa. Como disse, nunca brigamos. Por isso, aceitei sua decisão sem pedir explicações. Afinal, se ele decidira era seu querer, e quem seria eu para mudar alguma coisa. É claro que meu coração ficou pequeno com a mágoa e tristeza que aquela atitude resultou. Só não entendia nada, nem o porquê daquela decisão súbita e sem cabimento. No dia que ele saiu para morar fora, ele chorava, eu chorava, minha filha chorava. Ele dizia que eu era a pessoa mais importante de sua vida, que me amava, e que não sabia por que estava saindo de casa. Nem eu. Alguns dias depois, quando minha mágoa ainda era grande, alguém me deu um livro que falava sobre o milagre do poder da criação mental, do poder da atração do universo, entre outros ensinamentos. E percebi então o porquê das coisas acontecerem em minha vida, muitas vezes ao contrário do que eu realmente queria. Era o poder que sempre tivera de atrair para minha vida todas as coisas, com o simples pensar vigorosamente. Só que não sabia direcionar esse poder. E as coisas ruins aconteciam porque eu as lançava no universo, onde tudo se cria, sem critério de seleção. E quando naquela Igreja, pensei com profundidade em uma maneira de acabar com as brigas dos dois seres que eu amava, não o fiz corretamente, e a solução que as forças universais encontraram para atenderem meu pedido rapidamente, foi tirando de mim o amor de minha 8


vida, que logo encontrou alguém para nos substituir, e viver feliz em outro lugar.

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Um pouco tarde para meu casamento, mas ainda em tempo para a vida, aprendi a direcionar corretamente meus desejos. Agora, seleciono meus pensamentos, minhas criações mentais, minhas atitudes, para que o resultado que eu receba do Universo seja sempre a meu favor, e nunca contra mim. Porque tomar cuidado com o que se pede, está diretamente ligado ao que recebemos em todos os dias de nossas vidas. Para o bem, ou para o mal. Somos os criadores de nossos destinos.

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Amores que vão e vêm®

casar, a Madre Superiora achou que ela não seria uma boa companhia para as ninfetas solteiras, suas alunas. Mas que seja! Foi para uma escola pública.

O primeiro amor de Aninha foi com quatorze anos. Conheceu e apaixonou. Ele também caiu de amores na hora por ela. Moacir era o nome do rapaz. Não era muito sensato, nem muito correto, mas era filho do compadre do pai de Aninha, e por isso mesmo estava aprovado. Aninha casou. Ainda era uma menina, mas nessa época, moça tinha que casar cedo para não fazer bobagem. O casamento foi o mais badalado. Saiu até em jornal da capital, porque o pai de Aninha, muito amigo dos políticos da região, às vezes rendia notícia. E afinal, bajular amigos dos caras, fazia vender jornal. Moacir, folgazão, meio boêmio e arruaceiro, não deixou de suas festas e orgias por ter se casado. E Aninha ficava em casa brincando de boneca. Sim. Ela levara toda sua coleção de bonecas de porcelana para a nova casa. Dois anos depois de casados, Moacir saiu para uma de suas farras costumeiras, e por algum motivo que não ficou bem explicado, um sujeito atirou nele e ali mesmo, no meio de uma rua suja no bairro dos encrenqueiros, o marido de Aninha morreu sem mais aquela. Ela chorou, esperneou, deixou todos os familiares preocupados por sua saúde mental. Mas, diga-se de passagem, ela fazia semelhante escândalo se perdesse um de seus gatos. E Aninha ficou viúva com dezesseis anos voltando a morar com os pais. Também voltou a estudar. Só que agora em uma escola pública, porque no colégio de freiras onde estudava antes de

Quem via Aninha estudando, ajudando a mãe nos afazeres da casa, dizia: ‘Que menina séria! Mas, Aninha bem escondidinho, dava suas saídas com algum moleque mais atrevido. Bem escondido e prometido segredo, senão o pai dela mandava dar uma surra de patrão no mentiroso. Porque a verdade sempre pertence ao mais forte. Com dezoito anos Aninha viajou com sua mãe para a Capital. Foram visitar uns parentes. Lá conheceu o Juca, filho de outro compadre de seus pais. Os dois se viram, e pronto. Estavam apaixonados. Foi um olhar, e estava escrito nas estrelas! Namoraram sério. Afinal o pai dela era muito bravo, tal e qual cão de guarda. Menina viúva era, na época, muito mais vigiada, pelos pais e, principalmente, pelos vizinhos. Então, nada de moleza. Um ano depois de se conhecerem Aninha e Juca se casaram. Amavam-se de verdade, precisa que se diga. E formavam um belo par. Foram morar na Capital onde ele exercia a profissão de advogado, trabalhando na maioria dos casos, para os políticos de sua região. No escritório de Juca trabalhava uma loira bonita, com direito a olhos azuis e quase um metro e meio de pernas. Pernas essas, bonitas e bem torneadas. Ela dava mole para o Juca desde antes do casamento dele. Continuou depois de casado. Quase dois anos de casamento, Juca resolveu sair com a loira. Afinal Aninha nunca ficaria sabendo. Seria uma única vez, só para não deixar a loira muito triste. Só que alguns dias depois da saída de Juca com a Loira, Aninha recebeu um bilhete e algu10


mas fotos. O bilhete contava o ocorrido, e as fotos mostravam os atos. Aninha agora com vinte e um anos, já estava amadurecida o suficiente para entender a traição, e quando Juca chegou em casa naquela tarde, encontrou na mesa da sala o bilhete e as fotos. E Aninha sumira. Não estava na casa de nenhum dos conhecidos ou parentes. Na Capital, positivamente ela não estava mais, e se estivesse, estava bem escondidinha sem querer ser encontrada. Alguns dias depois souberam que ela estava na casa de uma tia por parte de pai. Juca foi atrás. Não adiantou o esforço para conseguir que ela o recebesse, nem sequer que lhe atendesse ao telefone. Era o fim de tudo. Não queria mais nada com o traidor. Aninha realmente sofreu muito com o ocorrido. Ela o amava de verdade. Chorou demais. Não aos berros, mas silenciosamente como faz todo coração ferido profundamente. Trancou-se por uma semana inteira no quarto de hóspedes da tia, sem comer nem beber nada. É claro que a família já estava com receio de que algo mais grave acontecesse. No sétimo dia de reclusão, a porta do quarto se abriu e de lá saiu uma Aninha esquálida, triste, com enormes olheiras e com uma fome do caramba. Enquanto comia uma montanha de torradas com caldo quente, ela falava para a família reunida. Queria a separação. Voltaria a estudar e nunca mais se apaixonaria na vida. Queria ser uma mulher livre e feliz. Bem! Livre ela ficou. Mas feliz, positivamente a menina não era. Orgulhosa mandou às favas o homem que amava. Mas isso não quis dizer que deixou de amá-lo. Apenas ela era alguém que tinha vergonha na cara. Isso era.

E por isso passou nove anos de sua vida sozinha. Estudou, formou-se na faculdade de odontologia, fez mestrado e especialização. Preparouse para a vida. Afinal seu pai não era eterno. Montou um consultório dentário na Capital. Seu pai ajudou financeiramente. Um dia foi a uma festa de aniversário onde conheceu Paulo. Um verdadeiro Deus Grego. E pela primeira vez após a separação ela deixou um cara se aproximar para uma conversa que não fosse profissional. Foi bom estarem juntos e conversaram sobre muitas coisas. Marcaram novo encontro. Saíram muitas vezes e afinal foram dormir juntos. Combinaram que não seria nada sério. Namorariam, mas cada um em seu canto, sem compromisso. Os pais de Aninha achavam que ela devia seguir as regras, regularizar a situação. Mas ela não. Embora as coisas da vida tivessem evoluído muito, e as pessoas da Capital não se importarem de quem dorme com quem, lá na cidade do interior onde seus pais moravam, existia uma certa prevenção contra essas mulheres liberais, metidas a agir como homens. Para alguns, essas atitudes era só para mulheres perdidas. Aninha não se importava, e por isso nem ia mais para a casa de seus pais. Nem queria mesmo! Que se danem as comadres fofoqueiras. Seu novo relacionamento com Paulo durou dez anos. Cada qual vivendo no seu cantinho. Por isso durou tanto. Terminaram porque ambos decidiram que assim seria. Sem mágoas, sem choros, sem rancores. E tudo ficou em seu lugar. Aninha não sofreu por Paulo. Isso porque lá no fundo do coração, bem escondidinho, ela ainda amava o Juca. Ah! Aquele amor não morrera! Será que morreria um dia? Aninha não tinha certeza. Em 11


seus sonhos ela ainda o encontrava, amava-o, delirava com seus beijos. Mas só nos sonhos. Ela sabia que ele se casara com outra e era feliz. Nunca quis saber quem foi a felizarda que o conquistou. Apenas soube que se casou. Que lá ficasse. Agora, a Dra. Ana Carolina Machado era dona de seu nariz, de seu apartamento, seu carro e sua vida. Quem sabe um dia, esse amor vai embora. Por enquanto ele aí está. Até quando? Só Deus sabe!

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Mariah®

Ela não tinha gosto, nem rosto, só desgosto e saudade. Nasceu a última de um grande número de filhos, de um casal pobre, sofrido. Roupa as tinha muito poucas, sapato um só. Na escola gostaria de ser como as outras, bem vestida, cheirosa. Mas não tinha sabonete para se lavar. Cresceu triste, querendo ser o que não era. Gostaria de ter carro bonito, mas não tinha. Andava a pé. Longas caminhadas para ir estudar. Pés sujos da poeira que se enlameavam no suor do andar. Cabelos em grossas tranças claras, quase louras, jogadas para traz, deixavam à mostra um rosto doce e perfeito, onde olhos grandes cor de mel andavam sempre cheios de lágrimas. Lágrimas essas, na maioria das vezes por não ter o que queria. Era ambiciosa. Mas de coração bom. Tinha inveja, mas não fazia mal a ninguém. Cresceu assim, querendo o que não tinha, pensando ser o que não era. Esforçou-se nos estudos, formou-se. Trabalhou duro para isso. Destacou-se dos demais estudando mais, assim aprendeu mais que eles, forçando a barra da vida para o seu lado. Mesmo de pés sujos e roupa surrada.

a mãe, que passou a maior parte de sua vida com um vestido só. Foi para a esquina no armazém do Seu Joaquim trabalhar pesado para ganhar pouco. Um ano depois se casaram ela e ele. Mariah então teve carro, roupas novas, sapatos de marca. O armazém progrediu porque ela era muito inteligente, comerciante nata. Ajudava muito a Seu Joaquim que a olhava feliz. Aquele dia amanheceu estranho, nuvens escuras, vento forte, as portas batiam nos gonzos, janelas tremulavam nos caixilhos. Que dia estranho! Olhou para o lado, barulho também estranho, dois estampidos. Seu olhar espantado deu com Seu Joaquim no chão, estirado, e um vulto correndo com o cofre nos braços. Mariah desmaiou! Já noite, lua no céu, foi que acharam a moça no chão. Rosto bonito, branquelo, amarelo, vestido bonito, ficou triste e só.

Era bonita. Chamava a atenção dos meninos e rapazes. Só não se chegavam porque ela não cheirava bem. As outras eram mais feias, mas tinham perfume de flores. ‘Ora! Não faz mal. Daqui a pouco vou poder’- pensava ela com seus botões. O mundo girou. Seu Joaquim do Armazém da esquina viu que ela era bonita. E inteligente. Deu-lhe emprego. Antes pediu que ela se lavasse e deu-lhe um sabonete e um vestido novo. Ela aproveitou a sorte, lavou a roupa velha também. Afinal já era moça. Era hora de dar descanso para

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O Asilo

A que estava na cama, chamava-se Carlita, acenou para que eu me aproximasse. Sua voz era fraca, seu olhar muito triste. Ela começou a falar:

Cheguei ao asilo às 07h30m da manhã. Meu primeiro emprego de verdade, com carteira assinada e tudo mais. Aceitei esse emprego por pura falta de opção e por extrema necessidade de trabalhar. Nunca tive propensão a cuidar de velhinhos, porque nem de minha avó eu ajudei cuidar quando precisou. Por isso pensei, ficarei aqui até arranjar coisa melhor.

− Estou com 90 anos e muito fraca. Sei que vou morrer logo, pois é a natureza. Assim espero. Estou cansada de viver.

Muito pobre, precisei ficar morando no trabalho por não ter outro local para morar.

Falava com o cansaço dos anos nos lábios e nos olhos. Simpatizei logo com ela.

Meus afazeres no asilo consistiam em cuidar da higiene e limpeza do quarto de três senhoras, muito idosas e absolutamente carentes. Duas delas, carentes por serem pobres, e mais ainda, por falta de afeto. A outra apenas precisava de amor. Além da limpeza, deveria levá-las a passear no jardim quando o clima permitisse.

Após um ano de cuidar das minhas moças, como eu as chamava, Carlita faleceu. Durante todo esse ano, nenhuma vez apareceu alguém para lhe visitar. Ninguém. Ela me disse um dia, que já fazia dez anos que ela morava ali, e nesse tempo, nenhum filho, neto ou bisneto, vieram para lhe ver. Mas ali, isso era muito normal. A grande maioria dos internos não recebia visitas. Absolutamente esquecidos, largados aos cuidados de pessoas que nem sempre eram gentis, ou tinham um mínimo de paciência.

Quando entrei a primeira vez no quarto para iniciar meu trabalho, a pessoa que estava deitada na cama perto da porta me olhou de uma maneira tão peculiar, que fiquei imaginando se era medo a expressão desalentada que seu olhar revelava. No momento não me ative a analisar o fato, já que minha tarefa era árdua, primeiro teria que limpar bem o chão, armários, cômoda, mesinhas de cabeceira, banheiro, vidraças, e depois teria de ajudar as três mulheres a tomarem banho e vestir roupas limpas. Depois disso deveria trocar os lençóis, porque após o desjejum, elas voltariam para o quarto e este deveria estar impecável. Eram as ordens da diretora. Quando terminei meu trabalho, e elas estavam novamente instaladas, uma em sua cadeira de balanço, outra no sofá e a mais idosa de todas em sua cama, coloquei-me à disposição delas.

Aproximei-me e arrumei os lençóis, dei-lhe um beijo na testa. Ela continuou: − Obrigado! A outra moça não era gentil assim como você.

Os parentes foram avisados de sua morte, mas, como acontecia inúmeras vezes, ninguém veio para levar o corpo. Quando isso acontecia, o asilo se incumbia do enterro em um cemitério próximo.. Fui designada para arrumar os pertences de Carlita. Era pouca coisa. Alguns vestidos, roupas íntimas, meias de lã, um casaco e um xale. Tudo muito velho e desgastado pelo uso. Fui tirando da gaveta da cômoda que lhe era destinada, e colocando dobrados dentro de um cesto de vime. Quando terminei com as roupas, peguei uma velha caixa de sapatos que estava com um elástico amarelecido servindo de fecho. Pensei: Será que 14


devo abrir? Acho que não. Ela nunca havia mencionado nada sobre a caixa e seu conteúdo, embora cada vez que eu arrumasse as gavetas, tirasse do fundo para limpar o pó. Em uma ocasião quando ela percebeu meu trabalho de limpeza, disse: ‘Aí está toda minha vida’, referindo-se à caixa de sapatos. Bem, devo entregar à direção, eles farão o que se deve fazer, não tenho direito de mexer no que não me pertence. No mesmo dia chegou outra senhora, essa ainda era jovem, se comparado com suas companheiras de quarto. Ocupou o leito de Carlita. Isso fez doer meu coração porque eu realmente me apegara àquela figurinha quieta, gentil, meiga e sozinha. Carlita era a mãe que perdi muito cedo. Uma semana depois do ocorrido fui chamada na direção. Quando entrei na espaçosa sala da diretora e fiquei por alguns minutos esperando, lembrei que durante todo o ano que vivi ali dentro, nunca passei das portas da enfermaria, do jardim ou do refeitório. Fiquei sempre lá nos fundos, junto de minhas três pupilas. Percebi que havia me apegado demais àqueles seres abandonados, e esqueci que havia vida fora dali. Olhei pela grande janela e vi o jardim onde tantas vezes levei minhas moças para passear. Senti saudades da meiga Carlita. A porta se abriu e a Diretora entrou com um grande sorriso. Em poucas palavras explicoume que Carlita havia deixado naquela caixa de sapatos, junto com fotos antigas, um testamento redigido e devidamente registrado com testemunhas idôneas, muito antes de entrar para o asilo. Nele, ela deixava tudo o que lhe pertencia à pessoa que estivesse cuidando dela ao morrer. Fosse essa pessoa quem fosse. A diretora explicou também, que antes de me chamar para comunicar essa decisão de Carlita, eles foram verificar junto aos canais competentes a validade de tal testamento, e também ver o que teria a gentil senhora em termos de bens e valores. Não era

uma fortuna, mas havia uma poupança razoável e um apartamento no centro da cidade. E o testamento não podia ser contestado pela família, por ter sido feito muito antes de ela entrar para o asilo. E nem um ente vivo sequer foi ao asilo para contestar qualquer coisa. Resumindo, eu havia herdado os bens de Carlita. A diretora me dispensou e disse que todos os trâmites estavam sendo feitos pelo advogado do estabelecimento, e que assim que tudo estivesse pronto, eu seria comunicada. Fui chorar no jardim. E sentada no banco preferido de Carlita deixei as lágrimas correrem. Agora teria onde morar e poderia ter algumas roupas melhores, graças a uma pessoa a quem cuidei durante um ano de minha curta vida. Continuei chorando por ela, a quem me apeguei como se fosse sua filha ou algo parecido. As outras duas eu as amava também. Mas Carlita era tão quietinha, tão meiga, que todas as pessoas a estimavam. Eu mais que todos. E agora mais ainda. Poderia ter sido um parente dela o herdeiro. Um filho, um neto ou bisneto, quem sabe. Até mesmo o asilo, a diretora, ou outra atendente. Mas era eu que estava a seu lado quando morreu. No canteiro de flores em frente ao banco preferido dela, por entre as lágrimas, vi Carlita sorrir para mim e dizer: ‘Aí está toda minha vida’.

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AGUARDANDO UMA COMPENSAÇÃO I Com os olhos marejados eu olhava aquele homem, ainda bonito em seu caixão, aonde as pessoas da comunidade vinham prestar a última homenagem. Era meu marido. Sua expressão doce e delicada estava estampada em seu rosto, pois fora sua marca durante todos os anos que vivemos juntos. Ah! Que anos maravilhosos vivemos! II - Senhorita, por favor! Pode dizer onde fica o Banco do Brasil? Olhei para a pessoa que me parava na rua para fazer essa pergunta. Era um homem alto, louro, com espáduas largas, incríveis olhos azuis e doces. Então disse: - Fica na segunda quadra nessa direção que o senhor está indo, bem na esquina. - Obrigado! - disse ele - Posso acompanhála por um momento? - Não obrigado. Já estou chegando ao meu trabalho que é logo ali. - Desculpe-me, mas faz alguns dias que a observo. Estou hospedado no hotel aí da esquina, e todas as manhãs vejo-a passar em frente minha janela e entrar aqui nesse prédio. - Hum! Bem! Já sabe onde trabalho, agora já sabe onde é o banco. Preciso ir trabalhar. Ele sorriu. Quando saí do trabalho na hora do almoço ele estava lá: - Olá senhorita! - Puxa que susto! O senhor tem o costume de assustar as pessoas assim? – Ele estava tão bonito em sua camiseta azul! - Não se assuste! - disse rindo. - Como não iria me assustar? O senhor estava aqui esperando eu sair? - Sim. Hoje você atrasou um pouco, não foi, menina bonita? - Acho que o senhor está me seguindo faz um bocado de tempo, não? Já sabe até a hora

que saio para almoçar! Tentava mostrar indignação, mas olhava aquele sorriso e aquele olhar, e ficava apenas em um sorriso amarelo, sem graça. - Está bem! Para me redimir de tanto descaramento, convido-a para almoçar. Sei onde almoça, também vou lá algumas vezes. Aceita? - Tudo bem. Vamos lá. Acho que não adiantaria dizer não, parece que o senhor sabe tudo de minha vida mesmo. Deve estar seguindo-me há um século! - Que coisa! - disse ele rindo às gargalhadas - Um século! Nossa! Será que pareço tão velho? Calei-me, e nos dirigimos ao restaurante que ficava logo na esquina. Quando chegamos foi ele quem escolheu a mesa. Puxou a cadeira para eu sentar. Trocamos algumas palavras banais e fui servir-me sempre calada. - Que sujeitinho sem jeito esse. Tão senhor de si, me deixa sem graça - pensava aborrecida, sem externar meu pensamento. Almoçamos, conversamos pouco, e ele acompanhou-me até o trabalho. - Pode dar-me seu telefone? Ligarei a noite para conversarmos, contarei a você porque estou aqui, porque pretendo morar nesta cidade e você poderá me dar algumas dicas sobre tudo o que posso fazer, e acho que você conhece isso aqui muito bem! Não é mesmo? - Meu telefone! Por que o daria a um estranho? Precisa me dar um bom motivo. - Preciso de sua ajuda! - seu sorriso agora era meigo e o olhar mais doce ainda. - Está bem. - sucumbi àquele pedido tão diferente, e dei-lhe o número do telefone de minha casa para que pudéssemos conversar. III Passaram-se vários dias. Ele ligava todas as noites para conversarmos durante uma hora. Quando dava o horário ele falava: - amanhã conversamos mais, você precisa levantar cedo e não quero atrapalhar sua vida. Após um mês de telefonemas, almoços, alguma conversa na porta do trabalho, ele sumiu. Sumiu assim, sem dizer nada. Ficou três dias sem aparecer nem telefonar. No terceiro dia na hora 16


do almoço, quando descia as escadas, eu o vi. Lá estava no mesmo lugar de sempre, esperando. Meu coração deu um salto. Estava feliz! Sim, estava feliz por ele estar ali esperando no mesmo lugar, bem vestido como sempre, cheiroso, com aqueles incríveis olhos azuis! - Feliz por me ver? - disse ele vindo a meu encontro e sorrindo. - Por incrível que pareça estou. Por onde andou esses dias? Fiquei preocupada. - Ficou preocupada? Isso é bom sinal! - riu com aquele jeito meigo dele. - Está bem. Deixe de brincar comigo e me desculpe, afinal não tenho nada a ver com sua vida, você faz o que lhe aprouver. - Bobinha! É claro que tem! Vamos almoçar. Tenho algo muito importante para lhe dizer. Fomos ao melhor restaurante da cidade e ele falou pausadamente: - Hoje vou lhe fazer uma proposta. Você pode aceitar e me deixar feliz, ou levantar e sair sem dizer nada, e então serei o homem mais infeliz da vida. Tudo depende de você aceitar ou não. - Espere! Não sei ainda o que você vai propor, mas imagino. Por isso, preciso lhe dizer algo que você nunca perguntou, mas que para mim é muito importante. Ele sorriu. Aquele sorriso me dizia que não havia nada que ele não soubesse a meu respeito. - Sou separada de meu marido, por isso vivo sozinha. Preciso trabalhar para viver, ganho pouco e gosto de gastar muito. Nunca havia falado isso porque achei que você não era importante para mim, apenas um homem que estava de passagem pela cidade e que logo iria embora sem deixar rastro. Aliás, achei que havia acontecido isso quando sumiu por esses três dias. - Desculpe! Não queria lhe deixar triste, nem desapontá-la. Fui à capital do Estado para fazer algo muito importante. E tirando uma pequena caixinha forrada de cetim de sua carteira, abriu-a colocando-a em minha frente. Dentro havia o mais lindo anel de brilhantes que eu já vira. Olhei para aquele homem gentil que me olhava com seu sorriso doce e que falava:

- Sei que você não pode casar porque é separada, mas podemos viver juntos, e esse anel está pedindo para estar em seu dedinho, assim como eu estou pedindo para estar em seu coração para sempre! - Você é imprevisível! Ou melhor, previsível. Nem sei. Você me confunde. Fiquei rolando o anel entre os dedos por algum tempo. Olhava para o anel, depois para o rosto do homem que o dera. Pensava em como lhe dizer que embora não soubesse até aquele momento, mas era isso mesmo o que queria. Queria muito, mas tinha medo. - Tenho muito medo de errar novamente... tenho medo de ser infeliz... gostaria que ... - Não diga mais nada! Sei o que deve estar sentindo agora - falou enquanto segurava minha mão delicadamente – mas vai passar. Foi o que bastou! Sua mão acariciando suavemente a minha, seu olhar doce, sua fala meiga, aceitei o pedido. E naquele mesmo dia, ele mudou suas coisas para minha casa. Fez-me deixar o emprego, disse que tinha o bastante para vivermos os dois e mais duas gerações sem preocupações financeiras. E assim vivemos durante vinte anos como se casados fôssemos. A sociedade nos acolheu (é fácil acolher quem tem dinheiro), e tivemos todos os nossos momentos felizes. Nenhum dia de minha vida com ele precisei chorar, nenhum dia tive que me preocupar onde ele estava, pois estava sempre comigo. Tivemos dois filhos, uma moça que está com dezenove anos e estuda no primeiro ano de medicina. Um rapaz, hoje com dezessete anos, o mesmo nome do pai, estuda em um seminário. Vai ser sacerdote da Igreja Católica. IV Há duas semanas meu marido chamou-me para uma conversa: - Preciso contar a você quem sou e quem fui. Você conheceu o lado de minha vida que passamos juntos. Nunca me perguntou nada. Estou com setenta e cinco anos, dos quais vinte vivi 17


com você, e pode ter certeza que foram os anos mais abençoados que Deus me deu. - Só se você quiser falar de seu passado. Afinal nunca perguntei nada porque sempre confiei em você. - falei convictamente. - Mas preciso contar-lhe! É como uma confissão. Algo que me aliviará e me deixará mais tranquilo. Se eu morrer amanhã estarei com a consciência mais leve. Peço que não me interrompa nunca, me deixe falar. E segurava minhas mãos docemente, enquanto começou longa sua narrativa de vida: Quando eu nasci minha mãe morreu. Sempre acreditei não ter sido a causa de sua morte, acho que não fui, pois meu pai nunca disse nada, porque estava sempre bêbado. Criei-me nas ruas, comendo quando me davam alguma coisa, ou ficando dois dias sem comer nada. Às vezes quando comia alguma coisa no lixo, mesmo que estivesse estragado, meu estômago aceitava e não fazia mal, pois estava tão necessitado daquela comida que tudo parecia bom. Foi assim que vivi nas ruas até os treze anos. Mesmo me alimentando mal cresci bastante. Para a idade era bem alto. Magro como uma vara, mas alto. E para um menino grande ninguém mais dá nada. Dizem: "vá trabalhar vagabundo", e batem a porta com muita força. Assim, vivendo nas ruas, sujo, com trapos pelo corpo, ninguém me dava emprego, quando pedia para trabalhar em algum lugar, perguntavam: "você sabe ler?" - não, não sabia, nunca estudei, pois meu pai, sempre bêbado nunca se preocupou em me dar estudo. Diziam que ele passou a beber quando mamãe morreu, e que perdeu a vontade de viver também. Acho que era verdade, pois morreu quando eu ainda tinha dez anos. Assim, sem ter estudo, sem emprego, sem ninguém por mim, fui parar nas mãos de um traficante de drogas. O homem simpatizou comigo. Deu-me roupas, sapatos, colocou-me em um colégio, mas dizia: "para pagamento disso tem de trabalhar", e o trabalho era buscar pacotes de drogas em algum lugar pré-determinado, e deixar com algum capanga dele em outro local. Era trabalho fácil. De manhã ia para o colégio, a tarde ia buscar pacotes de drogas. Fazendo isso tinha comida boa, sapatos novos sempre que precisa-

va, dinheiro para o cinema e para os doces. Doces que por muitos anos só olhava nas vitrines das lojas e nas padarias da cidade. Agora podia comer quantos quisesse. Morava em um quarto limpo e decente e era bem tratado pelo pessoal da casa. E o mais importante, não consumia drogas. O patrão dizia: você nem tente experimentar. Eu o proíbo terminantemente. A casa onde o homem morava era muito bonita. Rica mesmo. Tinha piscina que podia usar quando quisesse, jardins limpos e bem cuidados por um jardineiro que morava em uma casinha nos fundos do terreno. A comida era feita por um chinês que estava sempre de roupa branca e muito limpa. A limpeza da casa era por conta de uma senhora gorda que morava há muitos anos ali, e um cara gay que ajudava em tudo, desde a limpeza dos tapetes até arrumar a mesa do almoço. Mas tudo sempre estava muito asseado e bem cuidado com muito esmero. V Vivi nessa casa até os dezoito anos, quando houve uma grande batida policial nas bocas de fumo do Rio de Janeiro, e meu protetor assustado mudou-se para a Colômbia, país onde tinha um reduto de fornecimento de drogas ainda maior que o do Brasil. Levou-me junto. Lá ele possuía uma casa ainda maior e mais bonita, com muito mais empregados e mais traficantes da pesada que aqui no Brasil. A essa altura eu já era um homem. Embora podendo participar de grandes partidas de drogas, o patrão não deixava, dizia que era melhor ficar de fora. Meu trabalho era comandar um grupo de marginais que garantiam a segurança da fortaleza do patrão. Tinha toda a confiança do meu protetor. Ele confiava em meus atos como se fosse ele mesmo. Considerava-me como seu filho, pois não tinha nenhum. Fiquei na Colômbia com meu protetor até os quarenta e cinco anos. Nunca me casei. Sempre que aparecia alguém que me interessasse um pouco mais, o homem dizia: "Essa vida não tem lugar para mulheres, você tem todas que quiser, pois tem dinheiro, não precisa casar-se." E era verdade. Mulheres além de atrapalharem nossas andanças, poderiam ser perigosas. Sempre da18


vam com a língua nos dentes. Os maiores problemas que tínhamos eram com mulheres desgostosas com algum sujeito. Por da cá aquela palha, lá iam denunciar o bando. Um dia, quando todos estavam descansando de uma escaramuça da noite anterior, ouvimos ruídos estranhos e preocupantes. A casa ficava em cima de um morro, com dificílimo acesso por terra. O acesso maior era por ar, com helicópteros que pousavam no heliporto da casa. O barulho que ouvíamos era de helicópteros, e o radar anunciava que eram vários que se aproximavam com rapidez em nossa direção. Foi um alvoroço danado. Todos os capangas do homem correram para seus postos, executando a defesa de emergência diversas vezes treinada. Como sempre eu estava ao lado do meu patrão. Ele deu ordens rápidas a seus assessores de maior confiança, e todos sabiam exatamente o que fazer. Enquanto os homens treinados para a segurança morriam bombardeados pelos helicópteros da polícia, nós, o patrão, seus guarda-costas e eu, descíamos por uma escada que era camuflada atrás de uma estante na sala de leitura, que após a passagem se fechava e nada a abria pelo lado da sala novamente, só por dentro, no local onde estávamos. A luz acendia automaticamente ao movimento de pessoas. A escadaria nos levava a um pequeno porto no final do rochedo, alguns quilômetros da porta onde saímos. A descida pelos intermináveis degraus foi longa. Quando chegamos ao último degrau, o patrão que já era bem velho sufocava e pedia ajuda. Mas como entre nós não havia nenhum médico, não sabíamos o que fazer. Então o homem me chamou: - Meu filho! Sinto não tê-lo feito estudar medicina! - e sorria com sua brincadeira - mas sei que não vou conseguir passar por aquela porta. Então, de hoje em diante, você é um homem livre. Tenho muito dinheiro e muitos bens. Os bens, imagino eu, vão ser todos confiscados pelos governos dos países onde estão. Mas o dinheiro, esse você pode usufruir. Você nunca matou ninguém porque nunca o coloquei em aventuras que o arriscassem a isso. Só participou de coisas que não o incriminariam muito. Sua consciência pode ficar em paz. Essa bolsa preta que aí está, tem vinte milhões de dólares, limpos, e são

seus. Se eu não morrer, vamos gozar a vida juntos, pois nesse instante deixei de ser o que era. Se eu morrer, leve esse dinheiro da pasta, e aqui está o número de uma conta que está na suíça. Você pode ir lá e pegar o que tem no cofre. Também é seu. Você foi para mim o filho que nunca tive. Se Deus existe, foi Ele que colocou você em minha vida naquele dia. Fui muito feliz por tê-lo a meu lado e lhe dado abrigo. A voz dele estava ficando cada vez mais entrecortada, e seus olhos foram perdendo o brilho. Alguns minutos mais, ele sempre apertando minha mão, expirou. Fiquei ali sem saber muito bem o que fazer. E a perda dele estava sendo muito dolorosa, porque ele foi o único pai que realmente tive e a única pessoa que se importou comigo. Por isso não sabia se chorava, gritava ou pedia ajuda. Mas ajuda não adiantava mais. Ele estava morto. Então o capanga gritou: "Vamos sair. Tem dois barcos a motor lá fora, vamos partir." Então lembrei porque estávamos ali. Precisava tomar uma decisão, então disse: "O patrão morreu. Venham aqui." Os que estavam no barco vieram, pois até aquele momento não haviam percebido o que tinha acontecido, estavam preocupados em tirar o patrão dali e não prestaram atenção no que falávamos. Aí lhes disse: "Precisamos enterrá-lo. Não vamos deixá-lo aqui nas escadas." Rapidamente os homens acostumados a seguir ordens, e aceitando-me como patrão no mesmo instante, saíram para a praia. Encontraram um local ao lado do rochedo e aí cavaram um buraco, não muito fundo, mas suficiente para colocar o corpo do homem que fora meu escudo na vida. Quando o corpo caiu no buraco com um som oco, deixei ir junto minha vida passada, treze anos de fome e frio e trinta e dois anos de conforto com meu patrão. Nesse instante nasceu outra pessoa, o verdadeiro ser humano que Deus colocou nesse planeta, e que agora iria cumprir outra missão. VI Após o trabalho do simulacro de enterro, subimos nos barcos e nos dirigimos para uma ilha próxima onde acampamos na praia. Ali, conversei com os rapazes. Disse-lhes que na minha bolsa preta havia dinheiro suficiente para que nós qua19


tro vivêssemos ricos para sempre. Dividiríamos a grana e cada um seguiria por um lado da vida, mas eles tinham de prometer que deixariam aquela vida para sempre. Enquanto conversávamos, devido já estar escuro, não percebíamos alguns policiais aproximarem-se. Foi um dos capangas que viu e disse: "Corram. Ai vem a polícia" e saíram os três em disparada em direção ao matagal que ficava atrás de nós. Eu corri em direção a uma rocha carregando minha mala preta com o dinheiro. Atrás da rocha havia uma espécie de gruta, entrei nela e segui correndo pela trilha que havia dentro do que achava fosse uma caverna, até chegar a uma parte um pouco mais larga. Percebi isso porque meus braços já não alcançavam a parede de pedra quando caminhava. Agachei-me e fiquei escutando. Não ouvia nada. Estava tudo quieto. Com o tempo meus olhos foram acostumando com a escuridão, e pude verificar que a trilha seguia adiante. Fui então seguindo a trilha meio aos trancos e barrancos, não vendo quase nada. Andei por quinze horas. Já muito cansado vi que a trilha terminava em uma praia. Percebi o sol no final do caminho. Com cautela fui em direção ao sol. Com sede e fome me dirigi até o final do túnel e verifiquei o que havia lá fora. Na praia, muitas pessoas caminhavam, quiosques com cobertura de palha serviam bebidas e sucos, crianças brincavam. Olhei novamente com atenção e percebi que havia atravessado a ilha pelo túnel. Era de manhã! Quinze horas caminhando no escuro me deixaram com os olhos sensíveis. Abria e fechava as pálpebras com insistência para acostumar com a claridade daquela manhã radiosa. Saí para a praia, fui tomar um suco em uma das barracas. Devia estar com péssima aparência porque todas as pessoas olhavam para o lado ao me avistarem. O rapaz da barraca serviu o suco que pedi e que paguei adiantado, olhando-me de soslaio. Um jornaleiro passou. Pedi um jornal. Lá estava bem grande na manchete: "Desbaratada quadrilha de traficantes." E mais adiante a noticia toda da invasão da nossa casa. Todos estavam mortos. No entanto o chefe da quadrilha estava desaparecido, ninguém sabia se ele realmente estava na casa na hora da invasão, pois não fora encontrado o corpo. Com certeza estaria fora da mansão. A polícia disse não haver como sair sem ser visto, porque a mansão

estava cercada por terra e por ar. Sorri e pensei. Muito inteligente era o meu patrão, nunca descobriram a passagem secreta, nem poderiam, era realmente muito engenhosa, mas o que não sabiam os repórteres, é que ele estava morto mesmo. Sem tiros. Pela velhice de seu coração senil. O patrão já tinha 87 anos ao morrer. VII Deixei o jornal cair sem interesse e fui em busca de um barco que me levasse até o continente. Fretei o barco, paguei em dinheiro e segui olhando o céu azul, pedindo a Deus que me perdoasse pelos males que indiretamente houvesse causado, e olhando as nuvens pedi a Ele que me desse um sinal se havia perdão para mim. Chegamos até o cais onde estavam centenas de barcos e iates ancorados. Fui até a cidade e entrei em uma loja para comprar roupas novas, porque as minhas estavam em petição de miséria. Hospedei-me em um hotel, registrei-me com meu nome verdadeiro, porque na vida com meu patrão tinha vários nomes, nunca usava o nome que recebi no batismo. Fiquei nesse hotel por duas semanas. Nesse tempo, voltei à ilha para buscar o corpo de meu patrão. Precisava enterrá-lo em um lugar decente. Com a ajuda de uma empresa que não fazia perguntas se pagassem bem, trouxe seu corpo dentro de um caixão de luxo, e o enterramos naquela cidade mesmo. Achei que o mais importante era não deixá-lo lá nas rochas. A cidade onde ficasse enterrado não era tão importante. Depois disso fiquei no quarto do hotel ruminando no que deveria fazer, e esperando uma resposta de Deus se havia perdão para meus pecados. Pecados cometidos involuntariamente. Então, em uma manhã saí para a praia e fiquei olhando os navios que saíam de um porto ali perto. Tive a sensação que deveria ir para algum lugar. Que lugar era esse? Então me lembrei de meu patrão dizer antes de morrer, que deveria ir à Suíça, pois lá tinha muito dinheiro que era meu. Tirei a carteira do bolso e procurei o papel que ele me havia entregado na escada onde morria. O papel tinha o nome de uma cidade, o nome do banco, um número de conta. Uma anotação em espanhol dizia: "Apresentar esse junto com seus documentos verdadeiros". Voltei para o hotel, 20


comi alguma coisa, subi para o quarto onde fiquei pensando que rumo tomar. Na melhor das hipóteses, pegaria o dinheiro e doaria a alguém que precisasse. Então decidi: iria à Suíça. Como imaginei tudo estava muito bem arranjado pelo meu patrão. Cheguei ao banco, fiz a transferência do dinheiro para uma agência bancária no Pará no Brasil. VIII Voltei ao Brasil. Fui ao Rio de Janeiro ver as posses de meu patrão por curiosidade. Todas estavam confiscadas pelo governo como ele previra. Fiquei por lá durante dois anos. Nesse tempo, os companheiros que haviam ficado naquela praia quando saí da ilha na Colômbia, me procuraram. Por algum motivo que não quis saber, eles escaparam da polícia. Repartimos o dinheiro como se havia combinado e eles sumiram de minha vida. Aí resolvi viajar. Visitei o Brasil inteiro enquanto esperava uma resposta de Deus para minha pergunta que já era uma obsessão. Ia à Igreja, rezava, ajudava as entidades de caridade, ajudava creches, dava muito dinheiro para pessoas na rua, meninos que pediam eu os vestia e lhes dava o que comer. Algumas vezes ia mais a fundo, procurava saber onde moravam, com quem moravam. Se não tinham ninguém por si, dava um jeito de colocar ao abrigo de alguém, pagava para cuidarem das crianças. Jovens que queriam sair das drogas e os pais não tinham dinheiro para internamento adequado, eu os internava e acompanhava sua recuperação. Fiz campanhas gigantescas para o combate às drogas. Fiz tudo isso anonimamente, não gostava de aparecer. Até hoje tenho pessoas que cuidam de meninos e meninas por minha conta. Também resolvi manter creches que atendessem crianças de mães pobres, que não tinham onde deixar os filhos para trabalhar. Mas até aqui, ainda não havia encontrado a resposta a minha pergunta a Deus, feita naquele barco longínquo.

guém feliz com sua existência, sem dores na consciência, feliz por viver’. Resolvi esperar mais alguns dias. Em primeiro lugar, fiquei observando-a. Notei que descia de uma rua lateral a do hotel. Passava em frente à janela de meu quarto e entrava em uma porta do prédio ao lado. Pensei. Deve trabalhar ali. Passei a observar você, plantado ali na praça. Olhava-a na janela onde passava todo o tempo trabalhando de cabeça baixa, sem olhar para a rua nem para os lados, ou na direção onde eu estava. Então um dia decidi: - Senhorita, por favor! Pode dizer onde fica o Banco do Brasil? E o resto você já sabe. Soube que Deus havia me perdoado, no dia em que você disse sim, para compartilhar sua vida comigo. Você foi o Anjo Mensageiro que Deus colocou para me dizer o Seu perdão! IX - Senhora! Senhora! Aceita um café? - Ouvi alguém dizer, tirando-me das recordações. - Não obrigado! Agora olhando aquele homem ali tão sereno em seu caixão, me pergunto: “será que Deus o perdoou? Sua caridade de trinta anos ajudou a tantos jovens, meninos, meninas, mães carentes e desesperançadas com o filho nas drogas. Ajudou a todos. Sempre procurou fazer o melhor para as pessoas. Esquecia dele mesmo para ir ao hospital cuidar de algum velhinho doente. Fazia tudo para ser perdoado. Será que o ajudei a salvar sua alma?” Chegou a hora do enterro. As pessoas da comunidade onde morávamos vieram. Todas elas! Acompanharam o féretro até o cemitério. Lá o Padre abençoou-o mais uma vez, e o caixão desceu para o túmulo sua eterna morada. Espero que o Senhor o tenha perdoado. Será que a compensação foi aceita? Só Deus sabe!

Passaram-se dez anos desde que meu patrão morreu. Um dia parei aqui nessa sua cidade. Olhava pela janela do hotel e vi você caminhando com um sorriso nos lábios, vindo não sei de onde, indo não sei pra onde. Sorri e pensei: ‘aí vai al21


todos esperavam. Viveram felizes por trinta natais. Seus filhos nasceram, cresceram e se foram para a vida. E eles voltaram a ser dois. Até o dia em que Marina descobriu, por acaso, que agora eram três. Valter tinha outra mulher. Muito jovem, alegre e cheia de vida. Marina falou com ele, disse de sua angústia e tristeza se ele a deixasse. Mas Valter escolheu a outra.

Os natais de Marina Sentada em frente a lareira olhando o fogo que crepitava alegre, Marina jogava aos poucos, punhados de velhas cartas, bilhetes e cartões que ia rasgando sem pressa. Coisas que ficaram por muitos anos fechados na gaveta de sua cômoda. Enquanto as chamas consumiam devagar os papéis amarelecidos, seus pensamentos voltaram no tempo, e postaram-se junto à pessoa autor daqueles escritos, que por longos anos foi sua razão de viver. Nos ecos de suas lembranças, lá estava ele, com aquele sorriso gentil que a cativou e a deixou a mercê de suas vontades. Marina era linda em seus dezesseis anos graciosos, com a voluntariosa soberba da idade que a fazia a mais cobiçada. Todos os rapazes da pequena cidade onde morava, sonhavam em conquistá-la. Naquela semana que antecedeu o Natal, seu irmão mais velho trouxe um amigo. Era ele. Vieram da Capital, onde estudavam, para as festas de final de ano. Valter era o nome dele. Como acontecia algumas vezes, antes do Natal chovia muito e o tempo esfriava. As pessoas reuniam-se então dentro de suas casas, com a lareira acesa e os preparativos para as festas. Enquanto uns preparavam as deliciosas guloseimas, outros ficavam às voltas com a árvore que precisava ficar cintilante. Da cozinha até a sala era uma correria. Marina, seu irmão e Valter, ocupavam-se com a árvore. Ela passava-lhes os enfeites tirando-os das caixas, e por vezes quando era para Valter, por descuido, ou não, suas mãos se tocavam e seus olhos se encontravam, e os sorrisos eram francos e alegres. E nessa agradável tarefa de namorar, os dois se apaixonaram. Alguns meses depois se casaram como

O crepitar do fogo a trouxe novamente ao presente. À realidade do momento doloroso quando resolveu queimar o passado, jogando no fogo da lareira os pedaços que restavam de sua vida. Não havia mais nada dele ali. Limpou as gavetas de seu coração, purificando-as com as lágrimas da solidão. Estava com 56 anos. Dos quais, trinta passou muito feliz casada. E os últimos dez, ela os passara pensando no que fazer de sua tristeza, da sua falta de presença humana, do descaso do coração que a fazia sofrer. Até tomar a decisão de voltar a viver. As chamas levavam as dores, as mágoas, as decepções, e nem as cinzas ficaram para lhe escurecer os dias. Levantou-se defronte a lareira, abriu as janelas, olhou a chuva. Seria a mesma chuva? Não. Não era. Porque a vida se renova todos os dias, e as águas sobem e descem da terra para as nuvens, renovandose também, como ela estava fazendo agora. O Natal está aí. É já na próxima semana. Também não é o mesmo Natal. Porque agora está só. Não tem risos na sala. Mas ela colocará risos no coração. Não tem mais o sorriso meigo dele aca-

lentando seu olhar, mas ela dará ao seu coração a sua própria alegria.

A campainha da porta está tocando. São seus filhos que vieram para o Natal da próxima semana. Uma semana inteirinha com eles, será muito bom. Só aquele Natal não volta mais. 22


A brisa e a poesia As folhas do meu jardim, na brisa brincalhona, agitam suavemente. Prestando atenção eu vi, em cada movimento uma mensagem veemente enviada ao coração, que vibra docemente, ao trinar do bem-te-vi. Pensamento vem à mão tocado pela mente do poeta brincalhão. E no crescer da grama acontece, o assovio do vento oeste, trazendo a chuva faceira, que em pingos macios semeia a vida do verde em mim, cantando pra luz do leste, as flores do meu jardim.

PAOLA RHODEN: ROMANCISTA, CONTISTA, CRONISTA E POETISA.

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