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COM AMOR DIEGO E FRIDA
Analisar a obra de um arquiteto dentro de um curso de Arquitetura e Urbanismo não parece ser uma tarefa difícil, visto que a prática de projeto é, rotineiramente, um dos principais objetos de estudo das mais variadas escolas de Arquitetura - dividindo espaço, em muitas situações, com as disciplinas de Teoria e História. É justamente a necessidade de se entender processos históricos o que torna, por sua vez, a análise de uma obra num trabalho difícil - mais ainda quando o projeto se trata de casas planejadas para duas das maiores personalidades da arte mexicana: Diego Rivera e Frida Kahlo, um casal cuja tumultuosa relação poderia render roteiros épicos de teledramaturgias, pelas quais o México, dentre inúmeros outros elementos, é comumentemente lembrado. O intuito deste capítulo é produzir uma análise sobre a relação entre os artistas através de uma viagem pelo vasto legado de ambos: suas pinturas, sempre situando-as nos diferentes contextos aos quais os artistas se inseriram ao longo de suas carreiras. Antes de partir para tal análise, no entanto, é importante traçar um plano de fundo sobre cada um, para que se possa realizar uma reflexão crítica acerca do imagético construído por ambos. Para fins didáticos, uma linha cronológica será seguida de modo a auxiliar o traçado de um panorama geral, até que se alcance o momento em que a arte de ambos passe a se entrelaçar, fruto de sua intensa relação amorosa.
O POLÊMICO MURALISTA
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Diego Rivera nasceu em Guanajuato, a cerca de 400 quilômetros da capital, em 1886. Aos 10 anos de idade se mudou com sua família para a Cidade do México, onde passou a estudar na Academia San Carlos, a primeira academia voltada para o ensino artístico nas Américas. Lá, teve contato com estilos clássicos de pintura, advindos do Renascimento, e algumas práticas simbolis- Después de la tormenta, Diego Rivera, 1910
tas e impressionistas, com foco nas pituras de paisagem ao ar livre.
É em 1907, aos 21 anos, que ele começa a traçar um caminho para seguir em sua carreira artística. Após ganhar uma bolsa de estudos do então governo mexicano para estudar na Europa, Diego entra em contato com o universo das cidades industriais hiper-populosas (e todas as problemáticas econômico-sociais trazidas com o progresso). Em 1909, muda-se para Paris, quando passa a frequentar os círculos artísticos e intelectuais da região de Montparnasse, acabando por aproximar-se de Georges Braque e Pablo Picasso - e, consequentemente, com o movimento de vanguarda cubista. A participação de Diego junto ao movimento, no entanto, não gera grandes frutos. Em 1917, rompe com o cubismo a fim de buscar sozinho a construção de um estilo próprio de pintura, e nesse período volta seu olhar para o que mais tarde se tornaria seu principal objeto de estudo: operários e trabalhadores do campo. Diego choca-se e ao mesmo tempo sente fascínio pelo que vê - surpreende-se pois pela primeira vez entrou em contato com uma sociedade em pleno desenvolvimento industrial, ao mesmo tempo que via com clareza pelas ruas o rastro de desigualdade deixado pelos ideais de progresso, que, ao passo de seu gradativo desenvolvimento técnico contribuía também com a crescente marginalização das classes trabalhadoras. Em 1920, ao fim de sua estadia na Europa, viaja para a Itália, onde passa a estudar com afinco a arte renascentista, com a qual já havia tido contato em sua primeira formação. Após 14 anos vivendo no berço da modernização e lidando com os mais variados estilos e movimentos artísticos, retorna ao México, em 1921. Um importante ponto a ser acrescentado é o de que Diego retorna ao seu país de origem em um momento pós-revolucionário, no governo de Álvaro Obregón, principal caudilho militar de todos que surgiram com a Revolução que estourou após anos de guerras ci- Paisaje zapatista, Diego Rivera, 1915

vis protagonizadas por governantes autoritários - derrotando o liberalismo progressista de Madero e a utopia camponesa de Zapata. Mais importante ainda foi a nomeação de José Vasconcelos para ministro da Secretaria de Educação Pública do México, personagem crucial para o surgimento do Movimento Muralista, fundado por Diego em conjunto com dois outros ex-colegas do período da Academia San Carlos, David Alfaro Siqueiros e José Orozco. Vasconcelos, enquanto ministro da Educação, propunha um ensino voltado para a multiplicidade cultural e étnica mexicanas, incentivando a criação de uma identidade nacional num país esfacelado por anos de colonização espanhola e mergulhado em guerras civis. Para o ministro, a transformação social só poderia ocorrer quando aliada ao desenvolvimento estético - neste caso, o desenvolvimento de uma sensibilidade cujas raízes se encontravam no próprio México, e não no exterior. Para pôr em prática tais concepções, Vasconcelos propunha o resgate das manifestações do passado pré-hispânico através da produção de uma iconografia que representasse o país enquanto uma nação única e independente. Dessa forma, em 1922 o ministro encomenda a Diego Rivera uma série de murais para serem realizados na Escola Nacional Preparatória do México, o que seria o pontapé inicial para o desenvolvimento do Movimento Muralista; mais do que um gesto de resgate da tradição cultural pré-hispânica, era uma forma de educar as gerações futuras através das imagens, fazendo surgir desde cedo o sentimento de pertencimento a uma nação cuja história é rica. O muralismo de Diego Rivera surge, portanto, em um contexto de junção de esforços para criar uma arte assumidamente política e de caráter revolucionário, em consonância com a proposta de se construir uma identidade comum a todos, nacional, buscando no passado respostas para o futuro, se afastando dos ideais de progresso ocidental e indo em direção à construção de uma nova 38história para um México pós-revolucionário. Nesse sentido, a obra

de Diego se constitui como resultado de anos de experiência com diferentes abordagens artísticas, culminando em um estilo único que mesclava o clássico - como os grandes murais e afrescos renascentistas - com o contemporâneo, sendo tema recorrente em suas pinturas as camadas marginalizadas da sociedade. É nesse contexto do muralismo que a trajetória na pintura de murais dos dois artistas, Diego Rivera e Juan O’Gorman, começa a ganhar maior intensidade e se entrecruzar entre si, mesmo que as obras de cada um insiram-se em momentos distintos do muralismo. Rivera mostrou-se um importante mestre, nesse sentido, para O’Gorman na pintura, além de também influenciá-lo politicamente para também atuar nessa esfera. A análise de Camilo de Mello Vasconcellos expõe essa relação temporal dos dois artistas em questão muito bem: “Nos anos em que Rivera pintou sua história do México, o enigma a ser resolvido era o da nação mexicana em um momento em que a Revolução, agora no poder, passava por sua institucionalização. Com O’Gorman, o contexto político era outro e o poder político oficial buscava sua legitimação ao apropriar-se da leitura da Independência como comparativo dos novos tempos vividos pela Revolução de 1910, numa espécie de legado ou herança a ser preservada até os dias atuais” (VASCONCELLOS, 2010, p. 201)
O início do movimento muralista, marcado pela execução do mural “Criação”, em 1922, marca também o início da relação de Diego Rivera com Frida Kahlo, ainda que de forma embrionária. Ocorre que naquele mesmo ano, a artista estudava na Escola Preparatória e foi lá que viu, pela primeira vez, aquele que acabaria por tornar-se o amor de sua vida.
A AMANTE DE AZUL
Nascida Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón em 7 de julho de 1907, em Coyoacán, Cidade do México, em uma casa toda azul que hoje abriga o Museu Frida Kahlo, foi filha de Guilhermo Kahlo, alemão que foi o primeiro fotógrafo oficial do Patrimônio Cultural do México e Matilde Calderón y González, de Oaxaca (a cerca de 460 km da capital), cristã e dona de casa. Teve sua infância marcada pela convivência com a feminilidade: possuía cinco irmãs - e também com a poliomelite, que, aos 6 anos de idade, a deixou com as pernas afinadas e um pé atrofiado - o que a fez utilizar, até sua adolescência, calças compridas e largas para esconder as pernas sequeladas, quando optou por utilizar saias longas e coloridas (o que acabou tornando-se uma marca de seu visual). Desde pequena com inclinações políticas, Frida ingressa, aos 13 anos, na juventude comunista; aos 15 passa a ser uma das poucas mulheres matriculadas na Escola Preparatória Nacional, com o objetivo de tornar-se médica. É nesse momento, no ano de 1922, que ela vê Diego Rivera pela primeira vez, pintando os murais da escola; logo se encanta e o adota como inspiração. É em 1925, aos 18 anos, que sua vida muda drasticamen-
te:
Em um dia de setembro, quando o ônibus em que voltava da escola para casa colide com um bonde, ela é gravemente ferida: a perna sequelada pela poliomielite foi quebrada em onze lugares, o pé direito foi deslocado, sua coluna vertebral foi rompida em três pontos, a clavícula e duas costelas são fraturadas. Entretanto, é no longo período de recuperação – quatro meses de repouso absoluto – que Frida Kahlo começa a pintar, tomando isso como sua razão para viver (LE CLÉZIO, 1994 apud BASTOS & RIBEIRO, 2007)
No longo período de recuperação do trágico acidente que a deixou praticamente imóvel, Frida adota a pintura como meio de se ocupar. Terminado o período de convalescença, ela logo retorna a atender suas inclinações políticas, passando a frequentar as reuniões do Partido Comunista Mexicano em 1928, ao qual Diego também era filiado. Ainda mantendo a pintura como hábito, Frida procura Diego a fim de alguma recomendação sobre suas técnicas, ao que o artista, por sua vez, a encorajou a continuar no caminho da pintura. As palavras de Diego exercem forte influência sobre Frida, e dessa forma, a partir desse período, ela se lança em sua arte e faz disso sua carreira. Algum tempo depois, eles começam a namorar e, a partir deste momento, inicia-se a épica história de amor entre o casal.
21 de agosto de 1929. Um casamento simples, após um curto namoro. Ela, Frida Kahlo, tem 22 anos. Ele, Diego Rivera, 43. Nas mesas, há sopa de ostras, arroz com banana, pimentões recheados, mole negro, pozole vermelho. Ao redor, decoração colorida e um punhado de amigos: artistas, fotógrafos e militantes do Partido Comunista. De repente, surge a ex-mulher dele, Lupe Marín, para levantar a saia da noiva e mostrar suas pernas, uma mais magra que a outra, uma sequela da espinha bífida, de que ela padecia. “Olhe para esses dois pauzinhos. É o que Diego tem em vez de pernas”, grita bem alto. O episódio define o tom do que seria daquele dia em diante um relacionamento tempestuoso e fascinante entre os dois grandes artistas mexicanos. (EL PAÍS, 2019)

A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL SOB DUAS PERSPECTIVAS
Tendo bem definido um plano de fundo para ambos, torna-se possível, agora, partir para uma análise reflexiva sobre a pintura de Diego e Frida, de modo a buscar elementos que contem mais sobre suas vidas e também sobre os processos aos quais estavam vivenciando em um contexto pós-Revolução Mexicana. As obras de Diego e Frida, apesar de estilisticamente divergentes, apontam para duas diferentes possibilidades de concepção de uma iconografia que respondem ao anseio único de se construir uma identidade nacional para o México. Se por um lado os murais de Diego narram a história mexicana de forma épica, as angustiantes pinturas de Frida perpassam por todos os processos dolorosos percorridos até o estopim da revolução, de forma autobiográfica. A primeira obra do movimento muralista representou também o primeiro contato de Frida e Diego, em 1922. Em “Criação”, nota-se a aproximação com elementos iconográficos clássicos de pintura, como as auréolas representando as figuras sagradas, a composição triangular amplamente utilizada na pintura renascentista, ao mesmo tempo que se insere personagens característicos da sociedade mexicana - os anjos possuem a pele parda e os cabelos lisos e castanhos. Ao centro, em destaque, um portal que leva à fauna, à flora e a um homem de pele mais clara mas ainda com cabelo escuro - um mestiço - que está de braços abertos, tal qual a figura de um Jesus não-crucificado, pronto para acolher o espectador. Tais temas são recorrentes na obra de Diego, assinalando sua intenção de aplicar seus conhecimentos adquiridos

Creación, Diego Rivera, 1922-23

ao longo de sua formação em prol de figuras que representem o México como nação. Em 1924, Diego foi contratado para produzir uma série de murais na então recente Universidade Autônoma de Chapingo (desde 1923), cujo ensino se voltava para agricultura. As composições, executadas na Capilla Riveriana, atual Museu Nacional de Agricultura, abordam os temas da reforma agrária, e a proposta do artista foi a de abordar tal assunto a partir de uma visão épica, heróica. Com cerca de 700 metros quadrados de área, o conjunto de murais foi dividido em três partes: no painel da esquerda, a luta do homem pela terra, à direita a evolução da Mãe Natureza e no painel central a comunicação entre o homem e a terra. Logo à primeira vista, chama a atenção no painel central a presença de uma figura feminina nua, grávida, com a mão esquerda erguida para os céus e na direita, repousada, há uma semente da qual brota um casulo. Abaixo, no lado esquerdo, há uma mulher com cabelos compridos representando a água - que no caso da pintura, está saindo de uma represa; logo ao lado há um moinho que representa a produção de energia eólica. À mesma altura, no lado direito, há o Deus Vulcano, representando o fogo e as forças subterrâneas. Abaixo, completando a forma triangular que perpassa pelas quatro figuras principais do painel, há um homem nu que carrega em sua mão esquerda uma maçã, representando o conhecimento. Como pode-se perceber, a união dos quatro elementos no mural é apresentada como uma utopia realizada, como uma representação da aspiração humana de submeter todas as forças da natureza para colocá-las a seu serviço. Tais forças são controladas pela figura humana, como resultado de seu trabalho e sacrifício ao longo de sua história, e é por isso que a terra pode ser fertilizada em proveito próprio - daí a figura da mulher grávida em destaque. No mesmo período, Diego é convidado a produzir outra série de 42murais, desta vez no complexo de edifícios da Secretaria de Edu- El Arsenal, Diego Rivera, 1928

cação Pública. A proposta do artista para os painéis que seriam localizados ao longo das escadarias e dos corredores dos três níveis do Pátio Principal (ou Patio del Trabajo) e do Pátio Secundário (ou Patio de las Fiestas) constitui uma alegoria da Revolução Mexicana e ao mesmo tempo uma crítica aos opositores do movimento muralista. Um dos principais murais desse conjunto é O Arsenal, executado no ano de 1928, quando Diego e Frida já estavam se envolvendo em um romance - não obstante, ela aparece como figura de destaque. A obra é baseada em um Corrido, um tipo popular de música no México, escrito por Rivera e chamada “Então será a revolução proletária”. É possível ver as palavras do Corrido na faixa vermelha no topo. Ao centro, Frida distribui armas a soldados revolucionários. à esquerda, David Siqueiros, muralista e amigo de Rivera. À direita, Tina Modott ao lado de seu amante Julio Antonio Mella, um revolucionário cubano que lutou contra a ditadura de Machado na década de 1920. Logo após o casamento com Frida, o casal parte para os Estados Unidos, no início da década de 1930, quando Diego é contratado para produzir murais em diversos edifícios de São Francisco. Em 1931, ele completa seu primeiro painel na cidade norte-americana, intitulado A Alegoria da Califórnia, no City Club de São Francisco, mais especificamente na Stock Exchange Tower, o qual conta com uma enorme imagem feminina (cuja musa inspiradora foi a campeã de tênis Helen Wills) ao centro representando o estado da Califórnia e Calafia, uma figura mítica que é frequentemente chamada de Espírito da Califórnia. O mural, que adorna uma escadaria em estilo art-déco, tem a Califórnia (representada pela figura da mulher) servindo como plano de fundo e mostrando sua generosidade natural - com a mão esquerda ela segura os frutos, enquanto que com a mão direita segura todo o plano sobre o qual os trabalhadores, de diversas áreas do conhecimento, estão apoiados. Em seu pescoço, um colar feito The Allegory of California, Diego Rivera, 1930-31

de trigo que simboliza a fertilidade das terras californianas. Ao fundo, a indústria de São Francisco, uma homenagem ao desenvolvimento urbano-industrial. No mesmo ano, Frida produz um autorretrato em homenagem ao seu matrimônio com Diego. Na obra, Frida posa com postura rígida - em uma referência às pinturas de José Maria Estrada, que também foi uma influência para Diego. Ao seu lado, o grande Diego, que carrega consigo seus instrumentos de pintura, cujos grandes pés apoiados sobre o chão contrastam com os pequeníssimos, mal apoiados, de Frida. Acima do casal, uma pomba carrega uma faixa com os seguintes dizeres: “Aqui você vê a mim, Frida Kahlo, com meu amado marido Diego Rivera. Pintei este retrato na linda cidade de São Francisco, Califórnia, para nosso amigo, o Sr. Albert Bender, no mês de abril do ano de 1931”. A pintura simboliza a esposa do gênio, inferior, segurando levemente a mão de seu companheiro, o qual não a pertence por completo - à mesma época, Diego estava pintando um nu deHelen Wills, no teto do Luncheon Club da Pacific Stock Exchange. É possível observar, ao longo da carreira de Frida, outras manifestações de sua postura de inferioridade em relação ao companheiro. Em 1949, já no fim de sua carreira, a artista produz um quadro que, diferentemente de seu primeiro representando o matrimônio, traz a imagem do casal dramaticamente fundida em uma figura só. Intitulada “Diego e eu”, a obra conta como o marido de Frida exerce influência sobre ela, estando sempre presente em seus pensamentos. Os cabelos soltos de Frida, enrolados em seu pescoço, indicam uma sensação de sufoco e estrangulamento. A imagem de Diego, em sua testa, simula a presença de um terceiro olho, elemento representativo, nos mitos de origem asteca, da sabedoria e da criatividade - e dentro da imagem de seu marido, um terceiro olho próprio, simbolizando a independência de Diego em relação a Frida; enquanto o marido possui sua própria fonte de 44conhecimento, é ele quem se constitui como a fonte de sua mu-

Frida and Diego Rivera, Frida Kahlo, 1931

lher - tal simbologia assinala a forte relação de poder e influência que permeava o matrimônio de ambos. As lágrimas no rosto de Frida, por sua vez, possuíam uma textura sólida, indicando que seu sofrimento era duradouro. À época em que Diego estava trabalhando nos murais do Instituto de Artes de Detroit, no início da década de 1930, Frida produziu um autorretrato com o intuito de expressar onde seu coração realmente pertencia. Em “Autorretrato na fronteira entre México e Estados Unidos”, ela posa com um vestido rosa e luvas de renda, empunhando na mão esquerda uma bandeira de sua terra natal, mostrando lealdade. Na pedra sobre qual Frida se apoia, marcando o limite entre os dois países, lê-se: “Carmen Rivera pintou seu retrato em 1932” - Carmen é seu nome de batismo, Rivera, o sobrenome de seu marido. Ao fundo da pintura, há um sol e um quarto de lua entre as nuvens, que ao se tocar, criam um raio luminoso que incide sobre o templo do período pré-colombiano. Em contraste com a figura do sol e da lua no lado mexicano da fronteira, há uma nuvem de fumaça, no lado direito, que sai de quatro chaminés rotuladas FORD. Do lado esquerdo, nota-se imagens que remetem ao passado pré-colombiano do México, ao passo que do lado direito vê-se em sua maioria arranha-céus; na parte inferior, do lado esquerdo, a rica vegetação exótica mexicana, em contraste com o maquinários e seus cabos de ligação; analisando o campo visual como um todo, nota-se também que o espaço ocupado pelas terras mexicanas é maior do que o ocupado pelas terras norte-americanas, reforçando a ideia de que Frida não estava se sentindo confortável durante sua estadia aos Estados Unidos. Ainda em 1932, a artista encontrou mais motivos que a fizeram querer retornar ao seu país - Frida sofre seu segundo aborto espontâneo (o primeiro também ocorreu nos Estados Unidos) e resolve transpôr seu sofrimento em uma tela insuportavelmente angustiante.

Na tela, observa-se seis elementos flutuantes em volta de Frida, nua, deprimida e ensanguentada: em destaque, a figura do feto, ao lado esquerdo, uma prótese ortopédica de gesso, ao direito, um caracol que representa a lentidão do processo de aborto; na parte de baixo, do lado esquerdo, um aparelho que ela viu no hospital em que estava internada, ao centro, uma orquídea lilás (um presente oferecido por Diego), e ao lado direito, a bacia de Frida, onde o feto se encontrava junto de seu útero. Ao fundo, a linha do horizonte nos Estados Unidos, evidenciando o fato de Frida estar longe de casa, o que provavelmente tornou o processo mais doloroso. Uma outra obra de Frida, em 1933, marca o início de conflitos com Diego: após dois abortos espontâneos e mais de três anos em terras norte-americanas, a pintora sentia falta de seu país, ao passo que Diego mantinha-se satisfeito com seu crescimento profissional e não pretendia ir embora. Tentando descrever a superficialidade do modelo norte-americano de economia, Frida preenche o quadro com ícones da moderna sociedade industrial dos Estados Unidos, sugerindo a decadência de tal modo de vida e a destruição dos valores humanos fundamentais. Diferentemente de outros autorretratos de Frida, nesta pintura observa-se somente os vestidos pendurados, vazios, solitários, com o caos ao fundo - é como se somente sua aparência material estivesse presente em terras norte-americanas, enquanto que sua alma ainda permanecia no México. No mesmo período, enquanto Frida lamentava a distância de sua terra, Diego era contratado para produzir um mural que exaltasse o ideal de progresso no Rockefeller Center, em Nova Iorque. Nelson Rockefeller foi convencido pela mãe a contratar Diego para executar um conjunto de três murais, cujo tema do principal deles deveria ser “Homem na encruzilhada, olhando com esperança e alta visão para a escolha de um futuro novo e melhor” - a proposta 46inicial, aprovada por Rockefeller, era a de representar o contraste

Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos, Frida Kahlo, 1932

entre o capitalismo e o socialismo, obviamente valorizando o primeiro em detrimento do segundo. O que ocorreu na execução do mural é que Diego acabou por pintar a imagem de Vladimir Lênin e um desfile soviético do Dia Internacional dos Trabalhadores (1º de maio). Antes que o artista pudesse finalizar, Nelson Rockefeller ordenou a destruição do mural imediatamente após ser surpreendido com tais imagens. O mural é composto por uma grande diversidade de aspectos culturais e sociais daquela época - chama a atenção, além da presença da figura de Lênin, o modo como Diego retratou a classe burguesa: mulheres rindo enquanto bebiam e fumavam. Em abril de 1933, um jornal publicou um artigo atacando a obra inferindo que a mesma se tratava de uma propaganda anticapitalista, e Diego se oferece para retratar Abraham Lincoln no trabalho para compensar a presença de grandes nomes da esquerda política, contudo, a destruição já estava ordenada. Tal ocorrido prejudicou a imagem de Diego frente à imprensa, o que o fez retornar ao México, para o alívio de Frida. Algum tempo depois, a partir de fotografias, o artista refez o mural, desta vez no Palácio de Belas Artes, na Cidade do México, onde foi renomeado de “O homem controlador do Universo”. A nova versão incluía um retrato de Leon Trótski ao lado de Karl Marx e Friedrich Engels à direita, e outros, incluindo Charles Darwin, à esquerda, e o pai de Nelson Rockefeller, John D. Rockefeller Jr., um viciado em vida por toda a vida, visto bebendo em um boate com uma mulher; acima de suas cabeças há um prato de bactérias transmissoras da sífilis, em uma clara e irônica homenagem. De volta ao México, o casal se mudou para as novas casas projetadas por Juan O’Gorman, no bairro de San Angél. Naquele mesmo ano, quando Diego concluía a recriação de seu polêmico mural, inicia-se um período que culminaria na grande crise de seu casamento com Frida. Ocorre que o casal planejava uma pintura que se chamaria “O Conhecimento e a Pureza”, ao que Frida con-

Allá cuelga mi vestido, Frida Kahlo, 1933

venceu Diego a contratar sua irmã, Cristina Kahlo, para posar nua para a obra. A proximidade resultou em um caso entre Diego e sua irmã, e Frida, enfurecida, decidiu deixar a casa. Decidindo, novamente, transformar sua dor em uma tela de pintura, Frida executa o quadro intitulado “Umas facadinhas de nada”, em 1935. Na pintura, uma mulher nua e ensanguentada, com a parte superior e inferior de seu corpo reviradas em lados opostos, está deitada em uma cama; ao seu lado, de pé, um homem empunhando uma faca. A cena é baseada em uma reportagem de jornal que contava sobre um homem bêbado que matou sua namorada esfaqueando-a repetidamente. No tribunal, o assassino alegou: “Mas eu só dou a ela alguns beliscões!” Frida, que passava por um momento de profunda angústia, resolveu utilizar o caso policial como meio de externalizar os conflitos de seu casamento. Por outro lado, os casos extraconjugais não partiam somente de Diego. Em 1937, o político soviético Leon Trótski e sua companheira, Natalia Sedova, fugiam tanto da perseguição stalinista quanto da fascista. Asilados no México, onde o então presidente Lázaro Cárdenas abria as portas para refugiados políticos, os dois encontraram abrigo na capital - mais especificamente, na Casa Azul, em Coyoacán, onde Frida havia nascido. A proximidade, desta vez, entre o político, que já beirava os 60 anos, e a jovem com menos de 30, resultou em um romance - e um quadro. Na pintura, Frida se apresenta vestida com uma longa saia bordada, um xale com franjas e joias douradas, enquanto flores adornam seus cabelos e a maquiagem cuidadosamente aplicada destaca suas características. Com um semblante de confiança em um cenário que aparenta ser um palco, Kahlo segura um buquê de flores e uma carta de dedicação a Trotski onde diz: “com todo o meu amor”. Os elementos que compõem o palco e as cor-

tinas se baseiam em pinturas vernaculares mexicanas chamadas Retablos - imagens de devoção à Virgem Maria ou santos cristãos pintados em estanho, cujos Kahlo colecionava. E, em 1938, a artista produz uma pintura que viria a ser, mais tarde, considerada por muitos historiadores, como uma obra surrealista. Intitulada “O que a água me deu”, a pintura se constitui como um arranjo de memórias - especialmente as que lhe causaram sofrimento - ao longo da vida de Frida. Diferentemente da maioria de suas obras, o quadro não possui um foco principal, uma figura única em destaque; tem, ao contrário, representações simbólicas para os diversos eventos da vida da pintora, dispostas ao longo do plano visual. Ná água observa-se reflexos de imagens de vida e morte, felicidade e tristeza, conforto e dor, passado e presente. No meio das imagens, a própria Frida, afogada em sua imaginação. A obra chamou a atenção de André Breton, expoente do movimento surrealista europeu, o qual a convidou para expor na galeria Pierre Colle em Paris, em 1939, sem adicionar o nome da autora tampouco a data da criação. Apesar de tal aproximação com o movimento, a obra de Frida, como a própria costumava afirmar, não pode ser considerada de caráter surrealista, pois, em primeiro lugar, ela estava preocupada em transpor para as telas a dor de seu sofrimento, sem, necessariamente, pretender causar possíveis confusões na mente do espectador. Frida, em suas pinturas, não buscava acessar as camadas de seu inconsciente tampouco dialogar com uma temática onírica; ela pintava o que via e o que sentia. Tal qual os artistas do modernismo da Semana de 1922 o propuseram fazer, Frida buscava produzir obras que de alguma forma pudessem traduzir, não somente sua visão particular de mundo, mas também uma visão livre dos parâmetros estabelecidos para a produção de arte europeia. Esse gesto, de olhar para dentro de si, se transpôs para as obras da artista como uma forma de olhar para o próprio México, sua terra, buscando em sua própria Autorretrato dedicado a Leon Trotsky, Frida Kahlo, 1937

tradição, pré-chegada-do-homem-branco, elementos que pudessem constituir uma ideia de nação soberana e independente, livre das normas do progresso ocidental. É nesse sentido que Kahlo rejeitava o rótulo de artista surrealista, pois a vanguarda estava inserida em um contexto que ia de encontro à história de seu país, a qual estava disposta a contar. Assim o fazia também seu companheiro, Diego, que mesmo durante o período em que aceitou encomendas para produzir murais nos Estados Unidos, buscava incluir elementos que marcassem sua reticência quanto ao modelo de economia capitalista. Ao escolher a temática social como destaque de seus murais, sempre colocando em primeiro plano as classes trabalhadoras, o artista buscava contar uma história a partir da visão daqueles que se situam na base da cadeia produtiva. Da mesma forma o artista colaborava com uma narrativa que destacava a visão de seu país em contraponto às potências industriais que comandavam a economia e, consequentemente, exploravam as nações do Terceiro Mundo.


