26SETÚBALoutubro|novembro|dezembro13
História
Quinta que já deu fruto A laranja de Setúbal correu mundo num tempo em que o asfalto e as urbanizações eram impensáveis nas paisagens de então. Dos solos férteis das quintas brotavam os mais variados produtos hortofrutícolas. Algumas subsistem, outras, abandonadas, como as da Várzea, vão dar lugar a um espaço aberto ao lazer dentro da cidade
AZEDA. Foto de 1958, do Arquivo Fotográfico Américo Ribeiro
Doze quintas compõem a chamada Várzea de Setúbal, área que teve os seus tempos áureos de agricultura, sobretudo na produção de laranja, e que agora vai dar lugar a um espaço verde de lazer, o Parque Urbano da Várzea. Quinta do Paraíso, a maior, das Palmeiras, a mais pequena, São Joaquim, Azeda, Azedinha, Saudade, Boa Esperança, Inveja, Quadrado, Próstes, Restaurada e Mouca foram as quintas que ocuparam a várzea devido aos solos férteis e às águas subterrâneas, conferindo a Setúbal uma notável importância na exportação de grande variedade de produtos hortícolas e frutícolas. A atividade agropecuária, fortemente marcada nos séculos XVIII e XIX, com extensos pomares da suculenta laranja da região, nalguns casos mantidos ainda no século XX, não era apenas desenvolvida nestas quintas do norte de Setúbal, mas também noutras zonas, principalmente a oeste. No entanto, com o crescimento da população e da indústria conserveira, em detrimento da atividade rural, o espaço agrícola acabou por ser urbanizado e ocupado por infraestruturas inerentes ao
desenvolvimento socioeconómico. Algumas das propriedades da várzea, de pequena e média dimensão, dão atualmente nome a urbanizações como a Quinta das Palmeiras e a Quinta do Quadrado. Tal como a variante que contorna precisamente a várzea, construída para desviar o trânsito automóvel, principalmente o pesado, do centro da cidade, fazendo a ligação sobretudo entre a Avenida Antero de Quental e a Estrada dos Ciprestes à Estrada Nacional 10, em direção a Azeitão e Lisboa. Outras quintas, como a da Azeda, agora com a área prestes a ser convertida em parque urbano, foram descuradas pelos proprietários embora subsistam ainda elementos patrimoniais intrínsecos à atividade agropecuária. Inês Vidal de Goes, na dissertação de mestrado em Arquitetura Paisagista, em 2012, refere que “muitas destas quintas encontram-se agora em abandono”, propriedades que se estendem sobretudo a norte da cidade, em direção à Baixa de Palmela. Cada quinta, além da parcela de cultivo, contava com uma área residencial dos proprietários, outra
dos caseiros e equipamentos funcionais e estéticos.
Poço de história No estudo que fez sobre a Várzea de Setúbal, intitulado “De Espaço Rural Agrícola a Espaço Público Urbano”, Inês Vidal Lopes ressalva o valor patrimonial das quintas do Paraíso, da Azeda e de Próstes. Moradias, tanques e sistemas de rega e de distribuição de água são elementos que ainda persistem, embora em estado de degradação ou mesmo em ruínas. O sistema de distribuição de água da Quinta de Próstes é, talvez, um dos exemplos desse património deixado ao longo de várias gerações. Um poço, uma nora e um aqueduto encontram-se em ruínas, é certo, ainda na área daquela propriedade. A autora menciona no seu trabalho académico que “a água retirada do poço, através da nora, era lançada sobre um aqueduto”. Dali, a água era encaminhada, “para oeste, para um grande tanque de rega” e, “para este, para casa do proprietário”, local onde ainda se encontra um pombal entre um aglomerado de ruínas.
Um processo rudimentar mas engenhoso, com a água a correr por caleiras, construídas em alvenaria e tijolo, e a regar os campos através do sistema de sulcos e caldeiras. Indissociável da Quinta da Azeda é o emblemático mirante (ver peça nestas páginas) que, embora degradado, além do valor estético que possui, constitui um marco na arquitetura do início do século XX, sendo uma das mais antigas obras em que foi utilizado betão armado. Além do monumento, existe a residência de dois pisos, do final do século XIX. Curiosa é a ligação da habitação ao mirante, feita através de um passadiço aéreo em ferro.
Laranja de regresso Originalmente da China, a laranja chegou à Europa no século XV e estima-se que, um século depois, o citrino produzido em Setúbal figure na lista dos produtos exportados por Portugal. Até ao desenvolvimento industrial e, em particular, ao advento da indústria conserveira, Setúbal era famosa pelas suas quintas, sobretudo no norte e no oeste, com pomares a
perder de vista e os melhores produtos hortofrutícolas a abastecerem mercados. Cobiçada em terras distantes, era a laranja que aqui nascia em solos prósperos, como os da Quinta das Machadas, pertencente à família O’Neill, desde o século XVIII, a grande responsável pelo incentivo da produção deste citrino. “Setúbal foi considerada a capital da laranja. Onde começou a sério foi aqui e só depois passou para o Algarve”, lembra Hugo O’Neill, que recriou recentemente naquela propriedade o pomar original pela simples razão da inexistência de cultivo organizado de laranja na zona e pelo marco histórico e económico deixado pelos antepassados. Por vaidade ou simples orgulho, as palavras de um dos escritores que marcaram a literatura do século XIX, o dinamarquês Hans Christian Andersen, que passou por Setúbal em 1866, são reescritas incansavelmente: “Em breve temos Setúbal a St. Ybes dos ingleses, onde laranjais, seguindo-se uns aos outros, cobrem todo o vale, de Palmela a S. Luís e à Arrábida para os lados do oceano.”