Cafezal em flor: dramaturgia e trilha sonora

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CAFEZAL EM FLOR

Criação Coletiva Trupe das Pulgas Dramaturgia final: Janaina Graboski, Jean Cequinel e Vinícius Staub Dramaturgia Musical: Lucas Franco Letras: Lucas Franco e Vinícius Staub Atrizes Dramaturgas: Daniele Rocha, Gislaine Staub, Kamila Martins e Paula Neuburger Ilustrações: Janaina Graboski Diagramação: Gislaine Staub Divulgação: Trupe das Pulgas, Victor Catarino e Nicole Caroline Oficina sobre Escrita Coletiva: Fernando Vettore Revisão Final do Texto: Sonia Nascimento


TODAS AS INFORMAÇÕES CONSTANTES NESTA OBRA SÃO DE RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DOS AUTORES.

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APRESENTAÇÃO Este espetáculo passou muito tempo como semente, sem pressa de crescer. Fomos nos juntando, pessoa a pessoa, conversa a conversa: quer fazer com a gente uma peça sobre o sentimento que temos pelas nossas avós? Foi no início de 2020 que reunimos todo mundo para compartilhar histórias de nossas avós, encontrar temas, saudades e lembranças em comum. Começamos os ensaios e improvisações para criar, cena por cena, o nosso registro e homenagem. Mas aí já sabe: veio a pandemia. Ficamos distantes uns dos outros por bastante tempo, um inverno. Graças à Lei Aldir Blanc, conquistada com muito esforço pela classe artística, pudemos voltar, de forma remota, a lembrar e criar juntos. E Cafezal em Flor frutificou. A estória de lobisomem que aparece nesta peça mistura dois relatos da tradição oral paranaense: uma da família de Janaína Grabowski e outra coletada pelo contador de histórias Carlos Daitschman. No momento desta publicação, Cafezal em Flor ainda não foi apresentada. Compartilhamos com o público sua dramaturgia (texto escrito) e trilha sonora, além de croquis que fazem parte da concepção visual do processo. É possível ouvir as músicas clicando no título delas, quando estiverem azuis e sublinhados; isso abrirá uma janela no Youtube. Ou, então, pode-se acessar a playlist inteira da peça clicando aqui. Nosso encontro teatral presencial ainda está adiado. Mas esperamos que a peça ganhe vida na casa de cada um e cada uma que leia o texto enquanto ouve a trilha sonora. Durante estes dois anos difíceis, chegamos a ouvir que a vida dos idosos era quase dispensável diante das necessidades da economia e do futuro do país. Mas os nossos idosos são o nosso futuro. São a memória do tempo

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que não vivemos e do tempo que vivemos junto com eles. São o testemunho do amor incondicional que nos ensinaram. Eles são a imagem da nossa velhice, assim como foram o mais doce de nossa juventude. Já havíamos perdido algumas de nossas avós antes de iniciar este processo; outras, perdemos no decorrer dele; e muitas ainda estão conosco, nos enchendo de vida. Alziras, Alcinas, Geraldas, Eugênias. Leonildas, Hildas e Zildas, Meletinas e Neides. Lucys, Terezas, Carmelitas e Raqueis. Marias e Rosas. Por tudo que já foram e que somos, dedicamos a elas esta peça de teatro.

Curitiba, julho de 2021

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TRILHA SONORA

01 - Orvalho em Dobro (Lucas Franco e Vinícius Staub) .... LINK 02 - Uma voz (Lucas Franco e Vinícius Staub) .... LINK

09 - Brincadeira da lagarta (Lucas Franco) .... LINK 10 – Caixinha (Lucas Franco) .... LINK 11 - Mãezinha do Céu (Domínio público / Lucas Franco)

03 - Bolo com Café (Lucas Franco) .... LINK

.... LINK

04 – Avó (Lucas Franco) .... LINK

12 – Adeus (Lucas Franco) .... LINK

05 - Santa Ceia (Lucas Franco) .... LINK

13 – Procissão (Lucas Franco) .... LINK

06 – Mariposa (Lucas Franco) .... LINK

14 – Céu (Lucas Franco) .... LINK

07 – Memória (Lucas Franco) .... LINK

15 - O Rio (Lucas Franco e Vinícius Staub) .... LINK

08 - Hino de Lugar Nenhum (Lucas Franco e Vinícius

Bônus – Oração (Lucas Franco) .... LINK

Staub) .... LINK

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Personagens:

Ambientes:

Vó Boneca

Hall de Entrada

Mãe

Cozinha

Filha

Sala de Jantar

Moça

Sala de Estar

Neta Senhora 1 Senhora 2 Atriz 1 Atriz 2 Atriz 3 Atriz 4

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PRÓLOGO Hall de entrada. Em meio ao público, três atrizes em afazeres domésticos com objetos do processo. Ação Atriz 1: Colocar música “Orvalho em Dobro” (todas cantam) e varrer o hall de entrada, entre os espaços vazios e o público. Ação Atriz 2: Passar Ferro de Roupa, porém, irá passar cartas escritas durante o processo de montagem e cartas antigas das avós. Ação Atriz 3: Pendurar Roupa, porém irá pendurar com grampos de roupas as cartas passadas pela Atriz 2 e fotos das avós da equipe do projeto. Será um varal de exposição para o público.

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Orvalho em Dobro O orvalho é uma coberta que a noite estende sobre a lavoura para o conforto do chão A noite tem ciúmes da sua terra, tem medo do que a espera sob a labuta do sol Do dia que lhe arranca do sono que lhe arranca os frutos que lhe arranca o suor A noite vai mimando a terra com descanso, com grilos, namorados, cauim E deixa o cafundó sossegar A noite só quer a terra dormindo de olhos fechados sorrindo perfumada de jasmim O dia sonha com a cesta cheia a terra com a cara feia reclama sobrou pra mim O dia é um pai exigente que não entende a gente que não entende de paz A noite estende o véu o seu ventre e acaba de repente e o dia segue sem dó, e assim vai seco Não acaba jamais O orvalho unguenta as juntas inchadas de uma terra devastada sem hora pra descansar Juntando o suor que cai do rosto pra fazer pão e colostro até o sol desabar

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Um tempo depois, abre-se a porta do teatro. Há um mosquiteiro ou renda na porta que atrapalha a visão do público ao tentar olhar para dentro do teatro. Dessa cortina, renda ou filó surge uma boneca manipulada pela Atriz 4. Essa boneca é uma senhora com rugas e que aparenta muita idade. Uma senhora vaidosa, que mesmo com as rugas não deixa de ser bem maquiada. A boneca andará pelo público e dará benção para as pessoas com quem encontrar por um pequeno tempo até dizer a todos: Vó Boneca - Boa noite meus filhos, fico feliz que tenham tido um tempinho para virem me ver, ultimamente me sinto muito sozinha. Vamos entrar, vamos. (indo em direção à porta e chamando o público). A casa é simples, mas sempre tem espaço para mais um netinho. Vamos, vamos fazer um bolinho para receber vocês.

A boneca entra para o palco e observa o público. O público entra, passa por aquela cortina de filó e vai para seu lugar. Ao fundo, ouve-se o chorinho “Uma voz”.

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Uma voz Ouço uma voz que me fala de longe De um outro tempo, um lugar, não sei onde De uma vida que o tempo esconde Vida de alguém familiar

Vejo através de um retrato antigo Leio cochichos num livro esquecido Escuto os passos de um velho amigo Ouço pairando no ar

E de repente essa voz, risonha Chamou sem vergonha Pra eu imitar O seu cantar E num dueto

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Eu fui sem medo Ouvindo a nossa voz

E eu respondo essa voz cantando Um velho fandango Que eu sei de cor E ela, melhor E num dueto Sem folheto Ouvi a nossa voz

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O BOLO COM CAFÉ Cozinha Enquanto o público entra, sobre o palco há outros objetos relacionados a avós. Eles são desproporcionais ou absurdos. A Vó Boneca se dirige ao público, falando de forma poética os ingredientes de um bolo, durante a música “Bolo com Café”. A Vó Boneca representa uma lembrança. Enquanto isso, as outras atrizes deixam de se relacionar com o

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cenário atual e vão transformando o cenário numa cozinha e preparando os ingredientes que serão utilizados para fazer o bolo e o café. Vó Boneca - O açúcar vem da Índia, onde uma pitada valia um reino O sal, como tudo, vem do mar O fermento vem do desejo da abundância E farinha de trigo da riqueza dourada do sol O fubá, da cor do ouro, vem do milho O óleo vem do girassol que espia de leste a oeste O leite, vem da vida que se espalha E o ovo? Vem da galinha. Não tem muito mistério. E esses são os ingredientes para aquele bolo da vovó.

A Vó Boneca vai para a cadeira de balanço e fica assistindo e interrompendo à ação seguinte. A Mãe irá ensinar a Filha a fazer o bolo. Quando a chaleira apitar, a Mãe passará o café durante o diálogo.

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Mãe - Vou te ensinar a fazer um bolo que aprendi com a avó. Não tem muito segredo nessa receita, vamos misturar bem 4 ovos com 1 xícara e meia de açúcar. Você pode misturar? Vó Boneca - Ah, nada de usar batedeira e esses entulhos de cozinha. O velho bolo bom da vó tem que ser feito na mão, que fica mais gostoso. Mãe - (entrega para a Filha misturar e continua dando as orientações para ela). Vamos acrescentar um pouco menos de uma xícara de óleo aqui e voltar a mexer. Agora vem um segredinho, vamos acrescentar uma xícara de farinha de trigo e uma de fubá mimoso, porém vamos peneirar as duas farinhas (a Mãe prepara as coisas do café). E mexer bem novamente. Vó Boneca - Serve para o bolo ficar fofinho. E esse segredinho aprendi com minha avó. (em tom de brincadeira) Aquela que era um vaso ruim. Mãe - Vai ficar uma massa líquida, tá vendo? Mas não tem problema. Vamos acrescentar uma colher de fermento, um pouco de erva doce e incorporar tudo. Vó Boneca - Eita, tá esquecendo do leite morno e do sal. Mãe - Ah, lembrei. Outro segredo que aprendi com a avó é pôr uma xícara de leite morno e uma pitada de sal. Misturando tudo, vamos colocar na nossa forma untada e levar para o forno. Aprendi com a avó que, quando vamos untar a forma para bolo de fubá, podemos usar a farinha de fubá no lugar do trigo, assim quando formos desenformar o bolo ele não vai ficar branco. Vó Boneca - Mas também, se não fosse eu, hem, você não ia saber fazer nada mesmo, né?

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Mãe - Prontinho, levamos ao forno em temperatura baixa e deixamos por cerca de uma hora, vamos dar uma olhada quando começar a cheirar. Filha - Uma hora? Tudo isso mãe? Mãe - Como já dizia sua avó: Mãe e Vó Boneca - Respeite o tempo das coisas.

A Mãe leva o bolo para assar. A Filha serve uma xícara de café. De dentro do forno saem bolhas com fumaça. A Mãe estoura algumas bolhas e se direciona para o público.

Mãe - Quando a avó era viva, logo que eu a conheci, ficava com ela na cozinha, e associei a ela o cheiro do café. Que nutre, desperta, acalenta.

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OS OVOS DA MARIPOSA Cena Visual Música “Avó” O forno começa a soltar várias bolhas de fumaça. Duas atrizes se relacionam com essas bolhas e as outras atrizes começam a desmontar o cenário. Todas dançam improvisadamente conforme o movimento que as bolhas fazem antes de tocar o palco.A Vó Boneca observa a cena. Duas atrizes preparam o cenário para a próxima cena durante a dança.

SANTA CEIA

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Sala de jantar Em meio ao palco, uma mesa. Vó Boneca senta-se na cadeira ao centro da mesa, semelhante a Jesus no quadro A Última Ceia. Duas atrizes montam a mesa do jantar. A atriz que fará a Moça traz o último prato e se direciona ao público. Moça - Quando eu era menina, perguntava à minha avó quem eram aquelas pessoas nas fotografias fantasmagóricas da parede.Com um sorriso no rosto e um olhar nostálgico, ela me contava as histórias da nossa família. Eu tentava reconhecer meus tios pequenos, minha mãe bebê e, nossa, como a minha avó era bonita! A vida desenhou em seu rosto marcas de alegrias, e tristezas. Mas o que mais destacava em meio àquelas fotos em preto e branco era uma foto colorida. Bom, pelo menos eu achava que era uma foto colorida. Perguntei para a Vó quem eram aqueles familiares que eu não conhecia. Ela me explicou que aquilo não era uma foto e sim um quadro, A Santa Ceia, ela disse, e seus olhos encontraram o teto. Depois vim a entender que era quase uma reverência. Eu achei que era uma foto porque parecia com a casa da minha avó, quando a gente se reunia no domingo.

Neste momento ouve-se a música “Santa Ceia” e será projetado um vídeo da santa ceia e as atrizes se relacionam com a projeção no palco, como se tudo fosse uma coisa só. A Moça apenas assiste a cena e depois de algum tempo ela fala:

Moça - No quadro, parecia que aquelas pessoas se mexiam e eu achava que tinha, pelo menos, duas mulheres. Eram mais ou menos como a minha família. Enquanto minha família jantava, a família do quadro também estava unida à

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mesa. Tinha gente no quadro levantando e, na casa da avó, sempre tinha alguém saindo da mesa para ir olhar as crianças. Nesse momento, as atrizes vão deixando a mesa, até saírem todas. A atriz-animadora da Vó Boneca sai de cena e deixa a boneca sozinha na mesa, enquanto a Moça continua falando e caminha até a boneca. A Moça veste a boneca e aos poucos a manipula, dando-lhe vida. Moça - Nas duas famílias tinha gente falando sério e outras brincando, tudo era muito semelhante. Toda vez era o mesmo furdunço e eu olhava para o quadro, e eles também nunca paravam, nunca ficavam no mesmo assunto. Com o tempo, minha avó foi ficando sozinha. Mas ela ficou sempre emoldurada como a calmaria em meio a solidão, e acho que eu, pra ela, emoldurada sempre como a companheirinha da vovó.

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O NASCIMENTO DA LAGARTA Cena Visual Música “Mariposa” A luz que foca onde estão Vó Boneca e a Moça abaixa e as duas assistem à cena. Uma atriz entra com uma bola transparente gigante, no interior dessa bola há fumaça. Em algum momento a atriz começa a esvaziar a bola, liberando a fumaça. A cena toda mistura dança e animação. Da coxia é liberada mais fumaça, até criar um ambiente com neblina e com a luz baixa é montado o cenário da próxima cena. A Vó Boneca e a Moça saem de cena.

A CHUVA Sala de estar Ouve-se a música “Memória” com som de chuva que vai crescendo aos poucos. Cenário com duas cadeiras de balanço e vários novelos de lã espalhados pelo palco. Duas atrizes interpretam duas senhoras. Uma está senil, a outra às vezes demonstra paciência com este estado. De vez em quando a cena é banhada por luzes que passam pela coxia, faróis de carro. Senhora 1 - Como pode chover forte por horas? Como o mundo aguenta?

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Senhora 2 - É chuva de verão, logo acaba. Senhora 1 - Já é inverno, comadre. (Pausa) Senhora 2 - Já é inverno? Como o tempo passa! Senhora 1 - Passa. Faz um ano que a chuva arrastou a casa de cima, com o vizinho e a mulher dentro, lameira abaixo. Senhora 2 - (Um pouco surpresa). Mas o vizinho morreu? Senhora 1 - (Sem paciência). Morreu o vizinho e a mulher! (Mais tolerante). Você já está ficando caduca. Senhora 2 - (Ri). Eu e você. Senhora 1 - Não vou dizer que não, mas você está mais ainda. Senhora 2 - Antes caduca que rangendo igual a uma porta véia. Senhora 1 - (Concedendo). Ah, a minha coluna não é mais a mesma. Sabe que eu fiquei reta que nem um poste quando a mulher do Mário veio e me passou aquela arnica. Ela fazia uma carne bem molinha, eu nem precisava mastigar. O Mário, mesmo, não vem faz tempo. (Silêncio. A amiga não estava prestando atenção. Um farol de carro ilumina a cena e vai embora) Senhora 2 - (Distraída com o barulho da chuva). Como é que a gente ainda não virou sapo...? Senhora 1 - O sol seca o que a água molha. É um cabo de guerra. Senhora 2 - É pouco sol pra muita água.

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Senhora 1 - É que às vezes o sol perde. Não entra sol pelas frestas uma semana, só goteira. Cada passo é uma bacia no chão. Não posso mais agitar os braços sem bater num pingo gelado. Senhora 2 - Tá com frio, comadre? Comadre, esquente uma chaleira e ponha numa bolsa de água. Mete assim debaixo das cobertas, bem do jeitinho, um pouquinho antes de você ir deitar. Aí, tira a roupa, põe o pijama, e vupt! (fazendo gesto de entrar sob as cobertas) Parece até que já tinha alguém deitado na cama! Senhora 1 - (Agoniada). Eu não consigo dormir debaixo de uma chuva dessa. Tenho medo que o teto me caia sobre a cabeça. Como sobre a cabeça de seu Osvaldo, Deus o tenha. Senhora 2 - (Em dúvida) Que Osvaldo, comadre? Senhora 1 - (Brava) O nosso vizinho morto, comadre! Senhora 2 - Ah. (Pausa). Eu nem lembro o rosto dele. Não lembro do jeito que era a casa que tinha ali. Eu tento lembrar, mas só me vem a voçoroca. Senhora 1 - Como não virou tudo barro, chovendo forte todos os dias? Senhora 2 - Chuva que Deus manda! (Começa a se maravilhar com gotas que caíram sobre seus braços) Senhora 1 - A chuva deixa tudo pesado. Daqui a pouco atola um carro desses aqui na frente. Bem que podia ser um da prefeitura. O Mário não dirige na chuva, é míope. Comadre, você sentou debaixo de uma goteira, comadre?! A Senhora 2 balbucia alguma coisa, tentando se lembrar, olhando as gotas em seus braços. Mais um farol de carro passa pela cena. A Senhora 2 é como que iluminada por uma lembrança e passa a cantar, admirada e frágil, a música “Hino de Lugar Nenhum“.

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Senhora 2 - Quando o orvalho pinga na roseira Luzindo um raio do sol Eu lembro a terra da infância primeira Onde o poeta nasceu Lar dos sorrisos, paixão verdadeira Onde a tristeza não há Dádiva verde da terra vermelha Dos filhos não esqueceu Senhora 1 - (Caminha até a cadeira da Senhora 2 e lhe toca os ombros por trás, tímida e maternal). Comadre, você não quer se deitar na minha cama hoje, pra ver se esquenta? A Senhora 2 sai lentamente do arrebatamento e passa a se virar para a Senhora 1, sem perder o encanto. Uma luz forte invade o palco a partir da coxia, como se um carro tivesse parado de frente à casa. A Senhora 1 fica confusa enquanto a Senhora 2 se anima. Toca música instrumental de Hino de Lugar Nenhum. Senhora 2 – (Levanta-se a abre os braços) Tá fazendo sol! Tá fazendo sol! Tá fazendo sol! Senhora 1 – (Confusa, ofuscada pela luz, caminhando em direção à coxia, com as costas tortas) Mário? Filho? A luz da coxia vai se apagando. Música instrumental toca até o fim da cena. O barulho da chuva começa a diminuir. Luz sobre Senhora 2, ainda comemorando, vai se apagando. Luz sobre a Senhora 1, feliz, vai se apagando.

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Blackout. A VIDA DA LAGARTA Cena Visual Música “Brincadeira da lagarta” Três atrizes entram animando uma lagarta gigante pelo palco. As atrizes têm tom jovial como se fossem crianças. Elas animam e interagem uma a uma com a lagarta. Uma das atrizes é engolida pela lagarta e, em tom de brincadeira, chama-as para entrar. Elas acendem lanternas e brincam com as silhuetas dentro da lagarta. A Vó Boneca entra em cena e senta para observar a brincadeira, as crianças brincam baixinho "xiiu" e risadas. Em tom baixinho elas saem da lagarta. Duas atrizes saem de cena, deixando a Vó Boneca e a Neta. A Neta com uma lanterna na mão ilumina seu rosto como se fosse contar uma história de terror.

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BRINCADEIRA FANTÁSTICA Sala de estar A cena acontece em dois planos simultâneos. Um real e outro da imaginação da Neta. No plano real, a Vó Boneca está sentada em uma cadeira de balanço e a Neta sentada no chão. O plano imaginação está em blackout, duas atrizes manipulam objetos relacionados com a história que a avó conta, tentando representar a imaginação da Neta. A Neta interage nos dois planos, no real através do diálogo e, na imaginação, iluminando os objetos com a lanterna. A Vó Boneca não vê o que está acontecendo no plano imaginação, apenas conta a história. Somente a Neta enxerga porque é ela que está imaginando.

Neta - Vó, é verdade que lobisomem existe? Vó Boneca - Existe sim, minha filha. Neta - Como a senhora sabe? Vó Boneca - Ah, não, se eu te contar você vai se assustar, depois não quero ninguém com medo de dormir. Neta - Vó, eu já sou grande!

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Neta se junta com as outras atrizes no plano imaginação para brincar com as sombras e objetos no outro plano, mas continua conversando com a Vó Boneca que continua na cadeira de balanço. As sombras e os objetos representam a compreensão literal e caótica da imaginação da Neta enquanto ouve a história da Vó Boneca.

Vó Boneca - Tá, então eu te conto. Uma vez era inverno, tava frio de lascar os beiço e escuro que não se via um palmo depois do nariz. Do lado de fora a gente tinha deixado as roupas molhadas que tinha lavado à tarde. Neta - Lavado na máquina da minha mãe, vó? Vó Boneca - Que máquina, a gente batia no tanque, com a mão, mesmo! Tava eu, teu falecido avô, teus tios, tua mãe, que era pequena, tudo encorujado dentro de casa. Tinha servido sopa na janta, o pessoal todo comeu até ficar triste. Foi quando o cachorro começou a latir. Neta - Era um poodle toy, vó? Vó Boneca - Não era isso aí não, era um vira lata grande, era um cachorro pastor! Primeiro ele começou a latir, mas de repente ele latia que parecia que queria ir pra cima. Teu avô foi espiá, não viu foi nada. Achamo que coisa de ser um gato, um quati... Neta - Um papagaio?? Vó Boneca - Não, papagaio, não. Neta - (triste) ...queria tanto um papagaio... Vó Boneca - (ficando mais assustadora). Mas daí começamos a ouvir um arranhado forte nas paredes pelo lado de

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fora da casa. A casa era de madeira, parecia que tavam arrancando os sarrafos. Aí que a gente abriu a janela que dava pro terreiro e a luz caiu em cima do bicho: pelo curto que nem porco, com as orelha comprida caindo pra cima da cara, uma boca na frente e outra atrás, que parecia que andava com os cotovelos, mas com mão de gente!

Nesse momento um boneco bizarro e divertido do lobisomem aparece, manipulado por uma atriz, e persegue a Neta, que grita assustada e divertindo-se

Vó Boneca - Aí o seu avô, que era medroso que era só ele, falou pra eu mandar o bicho voltar no outro dia pra pegar sal. (Com autoridade). Sabia que os antigos dizem que se mandar o lobisomem voltar pra pegar sal, ele vai embora? Neta - Vem pegar sal, pega saaaaaaal! (Lobisomem para, desdenha e vai embora) Vó Boneca - E quando a gente foi ver, não tinha mais lobisomem nenhum. Só o cachorro que tava cuspindo e tossindo, que nem se tivesse mordido um sapo. Sabe quem apareceu no outro dia? O seu Inácio que morava na casa de cima! Veio pedir uma xícara de sal, e mancando como se o cachorro tivesse mordido a perna dele! Ui, eu me arrepio só de lembrar. Neta - Eu gostei do lobisomem, vó! Vó Boneca - Credo, que horror, menina. Vamo dormir, vamo?

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As atrizes que estavam no outro plano se retiram de cena. Neta se aproxima da cadeira e pede benção para sua avó. A Vó Boneca sai de cena.

O FECHAMENTO DO CASULO Cena Visual Música “Caixinha” A luz do plano real onde a avó estava começa a diminuir e acende a luz do plano imaginação, onde os objetos estão no chão. Neta observa e brinca um pouco com eles, num jeito algo melancólico e distante, como se tudo o que se passou na cena anterior fosse uma lembrança. Há no palco uma toalha grande de mesa de crochê e a Moça junta os objetos sobre essa toalha, faz uma trouxa e sai de cena.

O ADEUS Sala de estar De fundo, ouve-se os acordes de “Mãezinha do Céu”. A Neta entra em cena e a Vó Boneca se aproxima.

Vó Boneca - Deus te abençoe minha filha. Neta - Vó, será que a senhora vai me abençoar para sempre?

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Vó Boneca - Estarei sempre contigo. Eu vou te amar sempre, de onde eu estiver. Não se esquece nunca. Neta - Vó, (pausa) eu te amo. Sinto sua falta.

Penumbra. Vó Boneca canta a música “Adeus”. Adeus Adeus Não chore assim meu bem Eu vou Aqui quem vem sempre há de ir Um beijo pros seus pais Abraços nos irmãos A bença pra vcs

Adeus Não é momento de chorar Me faz tão bem te ver sorrir

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Promete que vai ser feliz Assim

Não sei se vou com os meus Ou vou na solidão Será que vou sentir A quinta estação? Não sei se sigo ouvindo essa canção Talvez

Não sei se espero por vocês Só espera quem pisa no chão Mas sigo então feliz Na estrada que a vida quis Neta se aproxima e a Vó Boneca lhe dá um beijo na testa. Blackout.

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O CAMINHO PARA TODAS Ouve-se a música “Procissão”. Quatro bancos com quatro trouxas de crochê com objetos das suas avós. Começa a passar uma procissão, formada por quatro figuras. Elas tocam sinos enquanto rezam a Ave Maria em Latim.

Todas - Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum, Benedicta tu in mulieribus Et benedictus fructus ventris tui, Jesus Sancta Maria, Mater Dei, Ora pro nobis peccatoribus, Nunc et in hora mortis nostrae. Amen.

Cada atriz senta em um banco. Mantém contraluz. Quando dizem a próxima frase, abrem as trouxas e cada uma retira um objeto de dentro.

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Todas - Por todas as Alziras, Carmelitas, Geraldas, Lucys, Marias, Raqueis, Terezas e Zildas. Por todas elas. Por todas, por todas nós.

A seguir, serão quatro pequenos monólogos contados em parte. As quatro atrizes formam silhuetas. Atriz 1, com um colar na mão, conta como sua avó era bonita e vaidosa; Atriz 2, com um livro (bíblia) na mão, conta a relação da sua avó com a fé; Atriz 3, com um cinto, conta como sua avó foi também sua mãe; Atriz 4, com uma caneca na mão, conta como sua avó gostava de ver a família reunida. Atriz 4 - Minha avó adorava receber a família em casa, teve doze filhos, que vingaram foram dez. Quando todos já estavam casados e com as crias, era sagrado todo domingo almoço na casa da avó. Os homens ficavam na churrasqueira queimando a carne, as mulheres preparando os cozidos e as crianças espalhadas pelo terreno, correndo, brincando, caindo, brigando e se resolvendo sozinhas. Só não podia correr e nem brincar dentro de casa. E deuzolivre da gente chutar a bola no portão. Ela dava um berro “Óh o portãããão”. Atriz 3 - Minha avó que me criou. Quando meus pais se separaram, a gente ficou com a minha avó. Ela também foi minha mãe. Sabe aquele ditado que avó é mãe com açúcar? Pois a minha era mãe com limão. Eu e meu irmão fomos criados à base de arroz e feijão, pão de casa e rédeas curtas. Mas como toda criação tem suas falhas, nós saímos um pouco da linha, a gente era meio preguiçoso com estudos, reprovamos várias vezes. E em todas as vezes a vara de marmelo estava pronta nos esperando. Rígida, sisuda e brava. Mas a gente sabia que ela brigava porque nos queria bem. Atriz 2 - Minha avó sempre foi muito apegada a Deus. Não me lembro dela ter relaxado uma semana sem ir à igreja. Todo domingo de manhã, sagrado. E às vezes quarta feira de madrugada a novena. E eu ia com ela, acordava cedinho,

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pegava dois ônibus e ia até o centro da cidade na Igreja do Perpétuo Socorro. Eu era criança e achava muito chato, tinha impressão que demorava mais que uma missa normal.

Atriz 1 - Esse era o colar preferido da minha vó, minha vó por parte de pai, ela gostava de se arrumar, sempre se emperiquitava toda até pra ir na padaria, ela era de leão, fazia jus ao signo, às vezes até em casa mesmo. Usava sua roupa domingueira quando queria se sentir bonita. Sempre me pedia para pintar seus cabelos prateados. E não dispensava um cor-de-rosa nas unhas. Todas as tonalidades.

Atriz 2 - Me lembro da minha avó repetindo a oração de confissão e batendo no peito “por minha culpa, minha tão grande culpa”. Eu com minha inocência de criança pensava, o que será que a vó tinha feito pra se sentir tão culpada? Mas o que eu gostava mesmo era do passeio. Tinha um caminho especial que eu sempre pedia pra gente passar. Era uma escadaria, que no meu mundo infantil era um parque de diversões que eu visitava às quartas. Minha avó dizia que ela não gostava dessa escadaria porque, na hora de descer, ela não enxergava direito. Então eu descia com todo cuidado e paciência para ajudá-la e para não cair.

Atriz 3 - Minha avó sempre quis o nosso bem. Principalmente queria que a gente desse valor aos estudos, pois ela mesma não teve oportunidade nem de concluir o ginásio. Sabia fazer continha de mais, menos, vezes e dividir, sabia escrever, mas sempre me perguntava se estava escrito certo. “Conhecimento não ocupa espaço", dizia ela. Eu não entendia direito o que isso queria dizer, mas fixei na minha mente. Hoje entendo e me arrependo de não tê-la escutado antes. A cada ano que passa eu a entendo mais.

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Atriz 4 - Minha avó sempre fazia a maionese de batata e foi com ela que aprendi a bater o molho de ovos na mão. Ela gostava que todos sentassem à mesa para comer. Então tinha uma mesa enorme na churrasqueira onde cabiam os adultos e as crias. Se todo domingo já era uma festa, pensa quando era feriado! Essas eram as minhas datas preferidas, porque minha família, apesar de enorme, tinha o costume de dar uma lembrancinha para todo mundo nas datas comemorativas... Ninguém era rico não, às vezes vinha só um cartão de natal, mas ninguém ficava sem.

Atriz 2 - Ela guardava toda sexta feira santa, e não deixava que a gente fizesse algazarra. Ou seja, a gente não podia dançar, cantar, rir, falar alto, varrer a casa, nem pisar com força no chão, porque isso era desrespeitoso com Jesus. Ela fazia cara feia. E ninguém queria que a avó olhasse com cara feia pra nós, ainda mais quando se tratava do divino.

Atriz 1 - Quando a atmosfera fria da morte já a acolhia no hospital, me lembro de passar os dedos pelos seus cabelos ralinhos e branquinhos e dizer pra ela o quanto ela ficava bonita com eles assim alvos. Que agora estava na moda. Mas ela acenou relutante que não gostava. A camada descascada do esmalte fúcsia sinalizava que o tempo para sua vaidade já estava se esgotando. Eu queria tanto que ela entendesse que estava linda com todas as rugas, pois eram as marcas da sua história. De sua força e de suas batalhas. Atriz 4 - A Vó fazia questão que todos os eventos fossem na casa dela. Às vezes era tanta conversa cruzada que ninguém se entendia, eu olhava pra minha avó e ela nem estava envolvida na conversa, só observava com um semblante de orgulho no rosto, como se tivesse alcançado a felicidade.

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Todas - Por todas as Alcinas, Eugênias, Hildas, Leonildas, Meletinas, Neides e Rosas. Por todas elas. Por todas, por todas nós.

Atrizes guardam as trouxas, se levantam, e saem em procissão falando ladainhas em latim.

Todas - Pater de caelis Deus, miserere nobis. Sancta Maria, ora pro nobis. Sancta Dei Genitrix, ora pro nobis. Sancta Virgo virginum, ora pro nobis. Omnes sanctae Virgines et Viduae, orate pro nobis. Omnes Sancti et Sanctae Dei, intercedite pro nobis. A subitanea et improvisa morte, libera nos, Domine. Et ne nos inducas in tentationem. Sed libera nos a malo. Amen. Penumbra.

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O DESPERTAR DA MARIPOSA Cena Visual Música “Céu” Duas atrizes, com dois pares de par fan veu, se posicionam no centro do palco e simulam o nascimento de uma mesma mariposa. A cena toda mistura dança e animação.

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A HERANÇA Cozinha Cenário volta a ser a cozinha do começo do espetáculo. Vó Boneca volta para a cadeira de balanço e observa a cena. Mãe e Filha vão desenformar o bolo. Enquanto a Mãe retira o bolo do forno, ela conta a história da mariposa.

Mãe - No dia seguinte ao enterro, logo que acordei, uma mariposa enorme entrou na minha casa. Na hora eu pensei que ela iria morrer, mas ficou se mexendo durante todo o dia. (Como se tivesse autoridade no que diz). Sabia que quando entra uma mariposa grande em casa, ou é prelúdio de morte, ou é alguém que veio te ver? (Voltando a falar naturalmente). Acendi uma vela pra ela, e ficou me fazendo companhia. Vendo se estava tudo bem. Passou o dia inteiro comigo. E quando eu fui dormir ela voou embora. Filha - Sinto muita saudade da vó. Mãe - Eu também. (olha para o teto da casa, como se a mariposa estivesse ali) Filha - Mãe, será que minha vó também irá me visitar? Mãe - Ela sempre estará contigo, assim como essa receita que era da avó dela. São essas pequenas heranças que elas nos deixaram.

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Filha - Herança? Tipo as jóias da vó? Mãe - Tipo as jóias, tipo a sabedoria. Filha - Lembro que a minha avó dizia pra gente respeitar o tempo das coisas. Mãe - (Docemente). Com o tempo da despedida é o mesmo, minha filha.

A Mãe começa a cantar a Música “O Rio”, as demais atrizes entram na música. Todas arrumam a mesa com o bolo e o café.

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O Rio No rio De margens que são sempre Iguais Que desce sem se repetir Eu colho os teus anéis As rugas das tuas mãos O doce do olhar

De vó Que trouxe lá dos seus avós De gente que não conheci Prometo que vou ser feliz Aqui

Com a caixa que guardou

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Suas notas da canção Com os ditos que eu gravei Na voz do coração Será que nunca seca o ribeirão

Não sei Eu sinto falta de você Me guarda com tua oração Me ajuda a olhar O cafezal desabrochar

Blackout - FIM Após agradecer, as atrizes levam bolo e café para o público e perguntam sobre as avós das pessoas em off.

FIM

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Imagens do processo de criação

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Dani Rocha

Gislaine Staub

Atriz Dramaturga

Atriz Dramaturga

Janaina Graboski Dramaturgia final

Jean Cequinel

Ilustrações

Dramaturgia final

Kamila Martins

Lucas Franco

Atriz Dramaturga

Dramaturgia Musical Letras

Paula Neuburger

Vinícius Staub Dramaturgia final

Atriz Dramaturga Letras

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PRODUÇÃO

CURITIBA 2021

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