Cadernos de Jornalismo n.° 3 e 4 2010

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Ver melhor o que está perto: jornalismo de proximidade “Os relatos de acontecimentos noticiosos são ‘estórias’ – nem mais nem menos” (Tuchman apu d Tr aqu i n a , 1999 : 258 ) . E, por isso, o jornalista é fun­ damentalmente um “contador de estórias da sociedade con­ temporânea”. “Estórias da vida, estórias das estrelas, estórias de triunfo e de tragédia” (Traquina, 2002:10), estórias sobre figuras públicas, estórias sobre anóni­ mos. E é isso que a maior parte dos leitores procura nos jornais, ainda que por vezes inconscien­ temente: estórias. Nesse sentido, “o jornalismo pode ser explicado como sendo a resposta à pergunta que muita gente faz todos os dias – o que aconteceu/está aconte­ cendo no mundo?, em Timor?, no meu país?, na minha ‘terra’?” (Traquina, 200:10). Deverá ser, talvez, essa a maior ambição do jornalismo: responder às questões dos seus leitores, colocando-se no lugar do outro, do seu interlocutor, colmatando a “fome de conheci­ mento humano” (Stephens apud Kovach, 2001:6) e indo, se preciso for, ao fim da rua ou até ao cabo do mundo (Meneses, 2003:5). Ao contrário do que se verifica na lógica da maior parte dos jornais generalistas contemporâneos, que reflectem “efeitos contraditórios, pois aproximam o que está longe mas, simultaneamente, afastam o que está perto” (Abrantes, 2006), os jornais regionais tendem a dar um especial enfoque ao que é ma is próx imo. Funciona m mesmo, por vezes, como últimos redutos que dão voz às “comu­ nidades de lugar” (Camponez, 2002:20) e que se preocupam em responder às suas inquietações, porque são elas, afinal, que vão servir de matéria-prima ao tra­ balho jornalístico. Não há dúvida de que “as pes­ soas estão interessadas em saber

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o que se passa próximo de si, e por vizinhança deve entender‑se não só a geográfica como a social e até a psicológica” (Fontcu­ berta, 2002:36). Partindo deste princípio, a proximidade é um dos factores mais poderosos no momento de escolher uma notí­ cia e isso ref lecte-se de forma inequívoca no JTM, sendo este o va lor-notícia fundamenta l. O sentido dos interesses dos leitores, em particular daqueles que pertencem às comunidades lusófona s, são o ponteiro da bússola que faz avançar para a cobertura de um determinado acontecimento ou para a decisão quanto ao ângulo de abordagem de um assunto. “O que é que interessa a Macau e aos cidadãos que aqui vivem?” corresponde à “pergunta-chave”, que era feita interiormente todos os dia s, representando invariavelmente o ponto de partida para “agar­ rar” a maior parte dos temas. A aposta neste tipo de jornalismo é visível ao folhearmos o JTM, jornal onde a secção “Local” ocupa a maior parte das pági­ nas, e num rápido vislumbrar da primeira página, percebemos igualmente que a manchete e as chamadas estão reservadas aos assuntos da comunidade. Como exemplos de trabalhos que realizei tendo por base este princípio, recordo-me de uma reportagem, uma das peças que mais prazer me deu, sobre um dos últimos sapateiros-artesãos de Macau. Completamente fora do “agenda-setting”, a ideia sur­ giu do subdirector, que ouviu dizer que perto da sua casa have­ ria uma loja onde era possível fazer sapatos por medida. Acabei por ir até ao local, acompanhada por u m a pe s soa que f a ria a tradução, com o objecti­v o de recolher o testemunho de vida de alguém detentor de uma pro­ fissão cada vez mais em desuso. Ora, o factor “proximidade”

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permitiu-nos conhecer este caso quase singular, chegar com faci­ lidade à fonte e dar-‑lhe um destaque que um jornal distante da comunidade não daria, tendo a estória ocupado as páginas centrais de uma edição. Esta situação é a prova cabal de que o poder do jornalismo reside em contar estórias, estórias essas que saem do “agenda-setting”, estreitamente ligado a aconte­ cimentos institucionais, estórias que não nos chegam em notas de imprensa ou e-ma ils bem re d i g ido s p or a s s e s s ore s de imprensa, estórias que resultam tão somente de um olhar atento sobre a realidade circundante. E, no dia seguinte, são essas estórias que vão fazer a diferença entre os jornais. Um outro assunto que viria tam­ bém a merecer grande destaque surgiu igualmente de modo inu­ sitado com uma aposta quase no escuro. Numa sexta-feira à noite, recebemos na redacção uma nota de imprensa em chi­ nês, onde era apenas possível perceber meia dúzia de pala­ vras: Rotunda Carlos da Maia, “DVD”, o nome de um ateliê de arquitectos e a hora do evento (fosse lá ele qual fosse…). O subdirector deu-me indicações para que passasse por lá, “just in case”, dizendo que aquilo pode­ ria “dar qualquer coisa”, mas competir-me-ia a mim decidir, porque à mesma hora existia um outro acontecimento a decor­ rer. Optei por dirigir-me, um pouco mais cedo, à zona dos Três Candeeiros e, ao contrá­ rio do que esperava, aquilo ia mesmo “dar qualquer coisa” de bastante interessante, ficando o outro evento (a inauguração de uma exposição) completamente anulado, até porque já havia sido realizado um trabalho de antecipação. Ali, tratava-se da apresentação à população de um projecto de

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revitalização da área envolvente à rotunda Carlos da Maia, uma ideia que tinha partido de uma associação de moradores. Ali, havia mesmo notícia. Além de ser uma iniciativa inédita por parte da população, era a primeira vez que o projecto estava a ser apresentado ao público, já com esboços e propostas concretas do que os arquitectos preten­ diam alterar na zona, além disso seriam também ouvidas suges­ tões de todos os moradores. Era, sem dúvida, um movimento de mobilização com uma singu­ lar importância no território, ainda para mais numa altura em que estava a decorrer o pro­ cesso de consulta pública da “Lei de Salvaguarda do Património Cultural”. Daqui retira-se fundamental­ mente a importância de sair da redacção e ir ao local e, por vezes, “apostar”, usando talvez aquilo que alguns chamam de “faro jor­ nalístico”, que ao longo do tempo se torna cada vez mais apurado, pois se o director-adjunto não achasse que aquilo poderia “dar qualquer coisa”, nenhum jorna­ lista ter-se-ia deslocado ao local. Porém, é importante realçar que o facto de gerir os acontecimen­ tos desta forma tem também a ver com as dimensões do próprio espaço, que possibilita a movi­ mentação entre locais num curto espaço de tempo, o que facilita a própria circulação de informação. Esta opção editorial pelo “jorna­ lismo de proximidade” reflecte-se ainda, como referi anteriormente, no ângulo de abordagem dos assuntos. Quando fui à sessão de esclarecimento sobre o novo projecto de “Lei de Salvaguarda do Patri­m ónio Cultura l ”, na qual foi apresentado o conteú­do d o nov o d iplom a , c om e c e i a pensar num modo interes­ sante de expor o assunto, sem que a peça fosse um “lençol” de artigos e linguagem jurídica.


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