FILE #1 BALLAD OF TODAY

SEM TÍTULO
André Cepeda, 2019, Lisboa
Sem Título é uma das oitenta fotografias da série de André Cepeda “Ballad of Today”. Todas as obras desta exposição encontram-se sem legenda, como que se todas elas fossem a “balada de hoje”, não requerendo uma data ou título. Esta imagem apresenta um muro de pedra intersetado a meio por um colchão numa das ruas da cidade de Lisboa. Porém, esta fotografia não revela toda a sua informação de uma vez só ao observador. Atrás do colchão, encontra-se uma figura humana, na penumbra, que apenas se vê após uma leitura atenta dos elementos que compõem a imagem.
Cepeda captou este enquadramento em 2019 com uma máquina fotográfica de grande formato 4x5, recorrendo a um tripé e a um pano preto. Em termos de tonalidade, o fotógrafo optou pelo uso do preto e branco enquanto opção discursiva para a fotografia.
A obra é fruto da atenção aguçada do artista que nos convida descodificar os elementos escondidos dentro da mesma. Nesta série fotográfica, Cepeda opta por criar imagens intensas que denunciam a realidade da sociedade atual, apresentando a nossa existência tanto individual quanto coletiva no sistema urbano. A fotografia selecionada transmite estes conceitos de um modo único e extremamente simbólico, “cortando” a tranquilidade do passeio pela cidade de um modo inesperado, algo que me captou a atenção. Cepeda procura sempre as zonas menos conhecidas e luxuosas, dando maior valor a zonas exteriores do que interiores. As oitenta fotografias que compõem a exposição contam uma história, não só sobre a cidade, como de quem lá vive, o que se comprova na obra em análise.
Esta é uma fotografia intensa que enfrenta a realidade, focando a objetiva nos pedaços da cidade que, frequentemente, escolhemos evitar. Os principais valores presentes na imagem são, portanto, a busca pelo fiável, a importância real do mundo e o sentido do ser. Deste modo, o autor usa a imagem como uma chamada de atenção, um acordar para a realidade e para a existência da vida, procurando despertar nos observadores sentimentos e questões não exploradas anteriormente.
Ao observar esta imagem deve-se ter cuidado: há pessoas por detrás do colchão. Segundo Urs Stahel (o curador deste projeto), esta parece uma imagem surrealista e apresenta valores carregados e reais que não se vêm tão usualmente e que necessitam ser descodificados, por se apresentarem “escondidos” na fotografia. André Cepeda optou pela captura de imagens que nos “assustam”, temas que evitamos, realidades que ignoramos. Perante esta ideologia, a dupla responsável pelo projeto selecionou fotografias em que se vê a pobreza, a desgraça e a miséria. Nesta, por exemplo, vêm-se representadas as barreiras intrespassáveis que escondem a realidade que escolhemos ignorar (representada pelo colchão que trespassa o muro de pedra).
“IT’S ABOUT US IT’S ABOUT LIVING. IT’S ABOUT SEEING AND FEELING AND BEING PART OF ALL THIS.”
O centro de interesse da imagem em análise é o colchão que atravessa o muro. Este é o foco que capta a atenção do observador e ocupa uma função essencial para a simbologia que o autor escolheu transmitir. Este ponto central da imagem é composto pela forma geométrica do retângulo (seccionado numa das pontas), um elemento simples e de fácil reconhecimento por parte do observador. As linhas dos dois muros transmitem a ideia de profundidade à imagem. Estas são intersetadas perpendicularmente pelas linhas verticais das colunas cilíndricas que se encontram quase no fundo, distantes do observador. Contudo, as linhas que mais interesse ocupam nesta imagem são as que formam os contornos do colchão que seguem uma direção semelhante à dos eixos diagonais da imagem. O primeiro plano espacial é composto pelo colchão, a figura humana escondida atrás deste e todos os elementos que se encontram do lado do muro mais próximo do observador. O segundo plano espacial é circunscrito pela área entre os dois muros. Parte deste plano encontra-se encoberto pelo colchão que assume o centro da imagem. O terceiro e último plano espacial é formado pela fração da cidade que se vê por debaixo da ponte. Este é apenas uma “paisagem de fundo” e não um elemento essencial para a fotografia, apesar de lhe fornecer interesse visual. Podemos concluir que esta composição é um plano médio, pois a câmara está a uma distância intermédia do principal objeto fotografado, o colchão. Este ocupa uma parte considerável do ambiente deixando, ainda, algum espaço à sua volta. Quanto mais próximo está o objeto fotografado daquele que o observa, maior é o grau de aproximação emotiva ou intelectual do espetador perante o motivo da imagem, desta forma, podemos afirmar que o fotógrafo procurou que o observador estabelecesse uma relação com a temática em evidência. Nesta imagem é possível identificar diversas texturas nos elementos que a constituem. O tecido maleável e suave do colchão choca com o ambiente da cidade em seu redor, recheada de muros duros, pilares robustos e pavimentos irregulares.
O colchão, usualmente associado ao conforto e ao familiar, encontra-se, agora, num ambiente desconfortável e desconhecido (aos olhos do fotógrafo). Outras texturas que compõem esta imagem são as fornecidas pelo tecido presente no canto direito (que transmite a sensação de suavidade e leveza) e as árvores situadas no terceiro plano visual (aquele mais distante do observador) que aparentam ter uma textura áspera.

A iluminação apresentada na imagem é natural e de bastante intensidade, produzindo diversos contrastes e jogos de luz-sombra através dos vários elementos citadinos (como os muros, colunas e ponte). A luz provém do canto superior esquerdo da imagem e fornece-nos uma indicação aproximada da hora a que a fotografia foi tirada (durante o dia). Os próprios contrastes nesta fotografia são essenciais para a simbologia da mesma na medida em que são utilizados para transmitir as ideias principais da obra como o contraste de luz-sombra criado pelo colchão, deixando um dos seus lados iluminado e outro na penumbra. Isto cria quase um “engolir” da figura humana pela sombra, que vem responder à temática apresentada. A imagem não apresenta saturação, ou seja, é utilizado o preto e branco. Esta opção discursiva é carregada de significado e conferiu à fotografia uma forte expressividade.
De tripé debaixo do braço e pano preto no bolso, André Cepeda circula por Lisboa a fotografar com a sua máquina fotográfica de grande formato 4x5. Algumas das imagens deste projeto são tão um “fruto do momento” que, facilmente, se poderia pensar que teriam sido produzidas por uma pequena câmara digital ou até um smartphone. A sua técnica de fotografar, para além de contraproducente, é um trabalho pesado, demorado e até “perigoso” por colocar o fotógrafo numa posição de extrema vulnerabilidade quando “desaparece” por debaixo do pano, pondo em causa a sua existência no exterior do panorama fotográfico que se sujeita a criar. Contudo, esta técnica tem um forte interesse visual pela intensidade que confere às fotografias, a densidade da informação e a riqueza tonal. O tempo de exposição longo e o grande formato acentuam a força fotográfica, o detalhe, o ângulo de visão, a distância em relação ao assunto e o ponto de vista do fotógrafo. Este não procura um registo documental, mas sim expressar aquilo que vê, que experimenta e que o provoca nesta exploração da cidade.
