dossier deleuze (carlos henrique de escobar)

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Ser, o Uno e o Todo), Espinoza (contra o Bem, o fim etc), Nietzsche (em nome de novos valo45 ▲ res), Bergson (segundo sua concepção antigrega do tempo) etc. Em troca, se aborrecerá em inverter o platonismo nos quase - ou símiles - ou pseudoplatônicos: Descartes, Leibniz, Kant, Hegel. Assim, Descartes é criticado por conservar a eminência, a analogia e mesmo a equivocidade {Spinoza et le problème de l'expression, p. 51-2). Leibniz, por excluir a divergência (artigo citado, p. 433); Kant, por ter somente multiplicado a forma do senso comum, em vez de o inverter (Différence etrêpêtition, p. 179); Hegel, por conservar o infinitamente grande da teologia para além da sua teoria da cisão (Différence et répétition, p. 64). A dialética hegeliana seria por aí a mais pesada coisa a inverter, um embaraço na filosofia: «A dialética < esquece > sua relação íntima com os problemas enquanto que idéias... ela perde sua verdadeira potência para cair sob o poder do negativo», enquanto que para Deleuze «ninguém melhor que Albert Lautman, em sua obra admirável, mostrou que os problemas eram de início idéias platônicas, ligações ideais entre noções dialéticas, relativas a < situações eventuais do existente >, mas também completamente que eles se atualizavam nas relações reais constitutivas da solução procurada sobre o seu campo matemático ou físico etc» (Ib., p. 212-13). Onde aparece paradoxalmente que é preciso permanecer sempre todo próximo do platonismo para o inverter, e onde essa proximidade implica a possibilidade do diferencial e a virtualidade do redobramento. Lacan representa enfim o platonismo a inverter na psicanálise se se quer introduzir o inconsciente na filosofia. Se recorda talvez a disputa do inconsciente maquínico contra o inconsciente estrutural, e talvez se considerará que a antifilosofia segundo Lacan (um texto muito curto concernente à universidade de Vincennes) era uma réplica ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari. Mas hoje, que a psicanálise continua conforme seus princípios, e que a esquizo-análise do AntiÉdipo não se institucionalizou, conforme aos seus, se perdeu talvez de vista a entrada da disputa. Seria contudo interessante revelar o rigoroso contraponto à orientação lacaniana que constituíram os escritos propriamente psicanalíticos de Deleuze e Guattari, as linhas de fuga se aproximando de tão perto do que elas fugiam que chegavam até a constituir um autêntico negativo: esquizofrenia contra neurose, fluxo contra significante, so46 ▲ cial contra familial, singularidade contra o eu, lobos contra Lobo etc. Mas guardando absolutamente o inconsciente (maquínico, não significante), em que eles puderam se dizer freudianos contra Freud. Ora, Deleuze, se unindo assim a Guattari, o filósofo com o analista, fazia o que nenhum filósofo desse tempo fez: levar a sério a cura analítica (só Alain Badiou levou a sério a psicanálise, isto é, Lacan de preferência ao dispositivo analítico propriamente dito). Era preciso curiosidade (Heidegger, por exemplo, não terá tido uma palavra sobre Freud) para admitir a existência do diva, paciência para enfiar o nariz na literatura psicanalítica, muitas vezes espezinhada. Sabe-se aliás que, antes de Guattari (antes de Pim), Deleuze, no dizer de Lacan, tinha apresentado magistralmente a questão do masoquismo no pensamento (Apresentação de Sacher-Masoch). Parece, portanto, que com Guattari, Deleuze tenha dito que ler Freud, ler Lacan, não seria suficiente para pôr verdadeiros problemas filosóficos, se não se fosse com eles até o único real, do qual eles tiravam sua experiência: a cura. Não se teria senão um Freud para a classe de filosofia, ou este Lacan para o filósofo que conquista hoje alguns dentre eles, pois que os outros o ignoram sabiamente (esses mesmos aliás também ignoram Deleuze). A parada era portanto a seguinte: inventar uma outra análise (a esquizo) para substituir a psico, a fim de que o inconsciente pudesse ser introduzido na filosofia, a fim de que uma vida filosófica fosse compatível com a análise. Talvez apenas Deleuze e Guattari tenham praticado essa esquizo-análise, e talvez alguns de seus leitores: talvez algum esquizofrênico. Se poderá considerar como derrisório, em nome do que Deleuze chamou um dia «a interpretação mais ridícula», ou antes cômica, como eles dizem, que a esquizo-análise permaneça um programa sem dispositivo, salvo aquele do diva vilipendiado. Lhe supor o lugar público ou - porque não - uma máquina especial (Reich tinha inventado uma, mas Deleuze e Guattari mediram a sua inutilidade) teria sido territorializá-la: «A psicanálise reterritorializa sobre o diva» (Anti-Oedipe, p. 375). O único dispositivo produzido poderia ser o sofá de Henry Miller: «Estenda-se portanto sobre o sofá macio que lhe oferece o analista, e trate de conceber outra coisa» (p. 399), o único exemplo de esquizo-análise poderia ser a Recherche du temps perdu. Mas se podia estar atento, nessa


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