SPFUNK: Cultura, identidade e juventude

Page 1

SP FUNK SP FUNK

CULTURA, IDENTIDADE E

JUVENTUDE
3
Introdução 5 Moda, funk e identidade. As conexões que formam a Cultura Funk Paulista Bruna Caetano 8 Funk Consciente, Rap e Samba. Enquanto presentes ancestrais da música negra Thaynah Gutierrez 30 Mais do que consumir: Precisamos proteger e falar de funk Fernanda Souza 36
ÍNDICE

IN TRO DUÇÃO . . . . . .

A história do funk brasileiro tem origem nos bailes black cariocas, que chegam ao Rio de Janeiro na década de 70, com a ascensão do funk e soul norte-americanos. Com essa efervescência cultural, começam a surgir bailes e equipes de som nas favelas, sampleando as músicas gringas, aliadas às batidas de MPC e com forte influência do Miami Bass. Com o sample Voltmix, nasce o funk carioca.

Ele chega ao estado de São Paulo pela Baixada Santista, através das rádios piratas cariocas, que interferiam na programação da Baixada, e das festas organizadas pelo empresário Lourival Fagundes, dono da marca de roupas Footloose. Lá, passou por transformações que deram origem ao funk paulista.

5

Na música, o funk paulista assume batidas mais eletrônicas, em contraste com o famoso “tamborzão” do RJ, letras que falam da vivência na favela e posteriormente de putaria e ostentação. Toda cultura que o permeia passa a desenvolver características próprias a partir da influência de outras escolas.

Com o tempo, o ritmo é ramificado, e assume diferentes subgêneros musicais: o funk putaria ou funk mandelão, funk rave, funk consciente (ou funk de superação/de visão), funk proibidão e, de maneira mais recente, o trap-funk.

O funk absorve características territoriais, sociais e sonoras, fruto do contato com as quebradas paulistas. Funkeiros e funkeiras criaram uma maneira própria de se vestir, comportar e de afirmar sua própria identidade. Essa autoafirmação vai além de uma característica estética e contribui para a expressão e autoestima de jovens das periferias do estado.

Nessa equação, a ancestralidade negra, as vivências periféricas e a moda são alguns dos elementos com papel fundamental na construção identitária da juventude de quebrada, e são indissociáveis de outros aspectos que a cultura funk de São Paulo carrega.

Esse fanzine pretende explorar a relação entre a culturafunkdoestadodeSãoPauloeaconstrução da identidade da juventude paulista através de aspectos como a música, moda e o estilo de vida, como contribuem com a autoafirmação e autoestima, e como a sociedade se comporta em relação a cultura de quebrada.

6
7
“Fantástico Mundo da Oakley” | POPPIN BR Baile da Problemão, 2019 | Foto: Bruna Caetano

,

MODA FUNK E IDENTIDADE

AS CONEXÕES QUE FORMAM A CULTURA FUNK PAULISTA

Bruna

Caetano

Jornalista, fotógrafa e comunicadora no Memorial da Resistência de São Paulo.

O R I G E

No estado de São Paulo, a moda de quebrada e a cultura funk se entrelaçam de um jeito que é difícil de separar uma coisa da outra. Mas é inegável que as roupas, acessórios e características que remetem ao funk têm como ponto central o nascimento e o estabelecimento do funk ostentação.

Quando o funk chega na Cidade Tiradentes, ele passa por um processo de metamorfose com o Festival de Funk Canta Cidade Tiradentes, promovido pela subprefeitura do bairro em conjunto com o MC Bio G3, em 2008. Na época o funk proibidão estava em alta, e com a intenção de não incentivar as músicas que falavam de criminalidade e putaria, não cantar sobre isso virou uma condição para participar do evento.

10
. . .

Justamente nesse momento o país vivia uma ascensão de poder aquisitivo de uma nova classe social, a classe C, o que fez com que os MCs começassem a cantar sobre roupas e acessórios de marca, já que para quem sempre teve o básico negado, poder comprar um kit parcelado quando sobrava um dinheiro significava muito.

Através do aumento do salário mínimo, valorização da CLT e financeirização, a periferia passa a ter acesso ao consumo. A partir daí, o funk paulista passa a espelhar essa mudança que acontecia na conjuntura econômica brasileira, e leva para as letras uma nova realidade da periferia. É o que conta a pesquisadora e historiadora social Laíza Santana.

ESSE FOI O ESTOPIM

para a moda de quebrada virar o que a gente conhece hoje em dia e se destacar tanto da cultura funk de outros lugares do país.

11 .
.
.
Divulgação do 2o “Festival de Funk Canta Cidade Tiradentes” | Crédito: Diário de São Paulo

MODA DE QUEBRADA

E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO CORPO

Camisas de time, bonés de crochê, umbrellas, óculos, tênis de mola, tatuagens e marcas. Tudo isso vem à cabeça quando a gente pensa no que é funk paulista, antes mesmo das músicas em si.

Para quem acha que essa relação se resume na exaltação do consumo de artigos de determinadas marcas, com certeza não conhece as complexidades que as picadilhas de São Paulo traduzem. A ostentação presente no funk é a mesma de uma sociedade consumista – e capitalista. Nesse contexto, a favela também tem o direito de consumir e de cantar sobre isso.

12
|
Backstage “Fantástico Mundo da Oakley” Foto: Fernanda Souza

Por isso, não dá para falar de funk paulista sem falar de marca e de ostentação. neguinhodefavela, stylist de moda de quebrada, resume: “A autoestima através do vestir, do portar.” Mas marca e ostentação não aparecem sozinhas nesse contexto, o que acontece é um processo de antropofagia.

A pesquisadora Laíza Santana explica:

“Um papel fundamental da moda (de quebrada) é você conseguir pegar elementos alheios a uma classe social e modular. (O funkeiro) quer criar aquele novo tipo de identidade corporal, porque ele está construindo um novo corpo para ele. Ele não quer copiar uma classe social, ele não quer copiar um jeito de uma pessoa ser, ele está construindo algo novo.”

Esse novo corpo, de funkeiros e funkeiras, é construído a partir da subversão de elementos que não foram feitos para ele, que não o tem como público-alvo.

Só de olhar para as campanhas publicitárias das marcas a gente percebe isso. A representação da cultura periférica, seja do funk, do rap ou do trap, é pequena.

13
. .

FUNK MARCAS

E A (DES)VINCULAÇÃO DA CULTURA PERIFÉRICA

“A Mizuno não é popular em lugares ricos, quem tem muito dinheiro não usa Planet Girls. É coisa que é fruto da favela. São roupas que são nossas. Apesar de a gente não estar ali no marketing presente, são nossas.” opina Letícia Vital, de 24 anos, colecionadora de peças da Oakley.

A cultura funk é deliberadamente ignorada por marcas como a Lacoste, Oakley, Mizuno e Tommy Hilfiger, que são parte importante da moda nas periferias do estado. Em agosto de 2021, a Lacoste se envolveu em mais uma polêmica pela falta de representatividade no lançamento das redes sociais da Lacoste Brasil, com uma campanha publicitária composta majoritariamente por pessoas brancas e sem MCs brasileiros (do rap, trap, ou funk).

Posteriormente, depois da enxurrada de críticas que recebeu nas redes sociais, a Lacoste Brasil chamou MC Dricka e o trapper MD Chefe para somar.

Kyan, que mistura elementos do funk paulista com trap nas suas músicas - e inclusive tem o nome da marca em uma delas, Tropa da Lacoste - se recusou.

Em seu Twitter, afirmou que a marca não quis pagar pela publicidade, mas enviar roupas como permuta.

14
. . . .
,

Para neguinhodefavela, stylist de Kyan, a relação entre as marcas e o público do funk é de estranheza. “Aqui ainda funcionam nessa base do empurrão, e a Lacoste é o maior exemplo de marca que só se vincula quando tem gente empurrando, por um medo de um cancelamento que seja.”

Segundo Laíza, no auge do funk ostentação, em meados de 2013, a Lacoste foi uma das marcas que participaram do lobby com shoppings de São Paulo para impedir os rolezinhos, que movimentavam o público do funk. Muitos adolescentes frequentavam e consumiam peças da loja, mas a marca não queria ter sua imagem associada aos jovens, que eram na sua maioria das periferias da cidade.

Na época, o Instituto Data Popular, especializado em dados sobre a classe C, foi procurado por marcas que queriam desvincular sua imagem dos rolezeiros:

“Boa parte das marcas tem vergonha de seus clientes mais pobres. São marcas que historicamente foram posicionadas para a elite e o consumidor que compra exclusividade pode não estar muito feliz com essa democratização do consumo”, disse Renato Meirelles, exdiretor do Data Popular em entrevista ao UOL em 2014.

“Eu acredito que seja uma questão de racismo institucional à lá brasileira, que faz com que perca até mesmo essa visão do lucro.” Para neguinhodefavela, as marcas assumem uma visão racista da produção cultural da periferia, e escolhem não vincular sua imagem à ela.

15
16
“Fantástico Mundo da Oakley” | POPPIN BR

AS DIMENSÕES

DE UMA NOVA IDENTIDADE CORPORAL

Letícia Vital começou a colecionar itens da Oakley há mais ou menos 10 anos, e hoje sua coleção tem mais de 200 itens, entre acessórios, tênis e peças de vestuário. Essa relação com a Oakley se iniciou através das músicas do MC Primo, um dos pioneiros do funk da Baixada Santista.

Há três anos ela também trabalha com Oakley, fazendo restauração e manutenção de artigos originais. Na vida dela, o papel da Oakley e do funk paulista se misturam. Foi através do funk que a paixão pela marca começou, e foi através dessa paixão que ela começou a tê-la como sua fonte de renda.

“A Oakley na minha vida foi uma luz mesmo, eu comecei gostando só um pouquinho e foi tomando um espaço. Hoje não ocupa só 80% do meu guarda-roupa, ocupa 80% da minha vida.”

A marca é uma das com maior apelo dentro da cultura, responsável pelo item que se consagrou como principal símbolo do funk paulista até hoje: os óculos da linha X-Metal, sobretudo o Juliet.

17
. . .

Além disso, foi uma das primeiras marcas a aparecer nas músicas de SP. No comecinho do funk ostentação, lá em 2008, surgem músicas que exaltam as roupas e acessórios da marca, como Bonde da Juju, de Backdi e Bio G3, Bonde da Oakley de MC Pikeno e Menor, e Kit da Oakley, de MC Juninho JR, MC Wendy e MC Belet.

Mas não são só as marcas que constituem essa identidade corporal. A forma como essas roupas são usadas, as tatuagens, as jóias, os acessórios. Todos esses elementos contribuem para formação de algo autêntico, que nasce dentro das periferias de São Paulo como parte de uma característica da cultura popular regional que é o funk paulista.

Para a pesquisadora Laíza Santana, as tatuagens são uma das principais características estéticas do funk atualmente, porque além do visual, ela cria uma tridimensionalidade nesses corpos, que gera uma amplitude e uma ilusão de ótica.

“A tatuagem e as correntes de ouro acabam integrando todo esse circuito da moda, porque tem todo um sistema de produção corporal por meio da tinta que você usa no corpo e também do tamanho, peso e a forma como esse ouro vai reluzir no seu corpo.”

“Tatuagem e os piercings também são uma marca registrada do funk, principalmente feminino, que as meninas quanto mais tatuadas, mais mandrakas elas são.” completa Letícia Vital.

18
. . .
19
“Fantástico Mundo da Oakley” | POPPIN BR

COMO FUNKEIRO SE VESTE?

ESTEREÓTIPOS DE MANDRAKE E O IMPACTO DA COLETIVIDADE

De tempos para cá, o funk passou a ocupar na mídia espaços que antes lhes eram negados. Isso acontece porque, segundo Laíza Santana, o ritmo passou a ser visto como um produto a ser consumido. Ele pode não ser reconhecido como cultura popular – e inclusive marginalizado e ameaçado de criminalização – mas é visto como produto.

Neste cenário, o funk virou fenômeno no TikTok, e está presente em grande parte das trends brasileiras. O Mandraka Challenge, por exemplo, bombou por toda a rede durante meses e acumula 80 milhões de visualizações na hashtag #mandrakachallenge. Mas o que essa tendência do TikTok expõe sobre estereótipos do funk paulista?

O challenge – ou desafio, em tradução literal –consiste em se “transformar no estilo mandraka”, a partir de elementos que são associados à cultura funk, mais especificamente, às mulheres funkeiras. O risco na sobrancelha, Juliet ou Dart, cropped, corrente de prata, piercing. Tudo isso faz parte de como as mandrakas se vestem, mas ser mandraka não se resume a isso.

.

20
. .

O problema vai além dos elementos usados para essa caracterização: eles são usados como fantasia, em tom satírico, por mulheres que, muitas vezes, não fazem parte da cultura.

Mas a estereotipação de quem consome funk não é coisa nova. As próprias produções audiovisuais que retratam a periferia costumam cair nesse lugar do senso comum e não se aprofundam no que é a moda de quebrada. neguinhodefavela foi consultor de moda para a série Sintonia da Netflix, e cita a produção como um bom exemplo.

21
. . .
“Fantástico mundo da Oakley” | POPPIN BR

“(Sintonia) trouxe a galera usando marca, trouxe os cabelos, a caracterização e tudo mais. Então eu acho que tem muito para evoluir, porque eu não conseguiria te listar outras séries ou outras novelas que trazem essas informações. Ainda é um bagulho bem defasado.”

Mas como funkeiros e funkeiras se vestem de fato? Para Letícia Vital, existe um padrão: “Um conjunto da Cyclone, um conjunto da Lacoste, um Mizuno, um boné da Quicksilver, é muito padrão. Se você for pra um baile, você vai ver muitas pessoas vestidas dessa forma, mas não necessariamente, fora do baile, aquelas pessoas que vestem aquela roupa são funkeiras.”

Para a pesquisadora Laíza Santana, o fato de existir um padrão está associado à juventude de modo geral.

“Isso é muito comum do jovem, ele começa a se vestir com uma ideia de bando. Ele sozinho não tem tanta força, mas quando ele tá em grupo, ele acha que ele tem muita força. Quer, de certa forma, se dissolver entre as pessoas, então ele acaba se vestindo mais ou menos igual os outros amigos que estão ali dentro do grupo.”

Apesar de existir um padrão de como se vestir entre funkeiros e funkeiras, ainda existe uma gama de diversidade que foge dos estereótipos impostos por quem vê a cultura de fora. É isso que pauta o editorial Essas são as meninas que os menino gosta 011, com direção criativa da jornalista e multiartista Fernanda Souza. Em uma entrevista para a revista Glamour, ela resume: “Há uma linha que nos conecta, mas temos nuances que nos diferenciam.”

22
. .
23
“Essas são as meninas que os menino gosta 011” | Direção: Fernanda Souza | Foto: Isabelle Índia

FUNK EM 2022

E O RESGATE DOS ANOS 2000

Desde a origem do funk paulista, a moda de quebrada passou por transformações não só em relação às marcas, mas também em como essas roupas e acessórios são usados, em quais formatos. Essas mudanças acompanham o cenário da moda no geral, mas também têm suas particularidades.

Uma das mudanças destacadas pela pesquisadora Laíza Santana é das cores e estampas. Quem não lembra das polos com bandeiras de países da Lacoste, as bermudas coloridas de surf, os vestidos da Planet Girls? Essas peças foram substituídas por cores mais chapadas e únicas, com menos estampas.

Para Letícia, as marcas femininas em destaque na cultura também mudaram: “A marca que predominava antes que hoje não tem mais é a Roxy, que é a Quicksilver feminina. Antes tinha muito, hoje eu raramente vejo alguma mina usando. Outra coisa também que mudou no público feminino foram os Evokes e Absurda, e hoje as meninas penderam mais para Oakley.”

Apesar disso, vivemos um momento de nostalgia em que essas peças vêm sendo resgatadas, como mostram os editoriais Essas são as meninas que os menino gosta 011, e Fantástico Mundo da Oakley, produzido pela agência criativa Poppin.

Outro exemplo é o clipe Trap de Cria 2, onde Kyan, Danzo e Veigh aparecem portando peças chaves da cultura funk em São Paulo, como o tênis Adidas Spingblade, jaqueta da Ferrari, bermuda da Cyclone e jaqueta Ed Hardy, além dos óculos da Oakley.

24

Os elementos do funk paulista aparecem em outros gêneros musicais, como no rap e no trap. As músicas e clipes do Kyan são exemplos disso. Junto com o Dj MU540, o músico da Baixada Santista é um dos pioneiros em utilizar o funk de São Paulo em seus sons, seja através dos samples nos beats de MU54O, do styling de neguinhodefavela ou da direção criativa dos clipes.

Em Trap de Cria 2, toda a estética do clipe remete ao funk paulista, contrastando os anos 2010, na cena em frente ao paredão de som, com o momento atual que vive o funk paulista, nas cenas em tabacaria, com uma estética mais neutra e com peças de grife, como os bonés da Gucci e Burberry.

As irmãs rappers Tasha & Tracie são outro exemplo de como a cultura funk em São Paulo transpassa o próprio ritmo e se mistura com a cultura de quebrada do estado. As gêmeas têm forte influência do reggae e do rap dos anos 90 em suas músicas, e incluem nessa mistura aspectos estéticos e musicais do funk, com samples, letras e roupas que remetem ao funk paulista. Uma delas é TANG, com o beat também de MU54O e sample de Essas são as meninas que os menino gosta da MC Menorzinha.

Essa relação rap-funk em São Paulo não acontece por acaso: ela é uma conjunção das vivências de quebrada no estado, onde a cultura periférica atravessa os moradores e tribos sociais de forma multidimensional.

25
26
. . .
Foto: Fernanda Souza
27 . . .
Foto: Fernanda Souza

FAÇA VOCÊ MESMO:

JUVENTUDE NO TOQUE DA CULTURA FUNK PAULISTA . . .

“Eu acredito que no Brasil [o funk] é uma das coisas mais genuínas que tem da gente de periferia. Por ser algo que está bem intrínseco a mim, é como se fosse a relação que eu tenho com meus pais na minha formação, me ajudaram ali com os seus ensinamentos, com a criação, a formar minha identidade.” explica neguinhodefavela.

O funk e o dia a dia nas periferias se misturam, e essa identidade é construída por uma conjunção de fatores sociais, culturais, raciais e geográficos, a que estão expostos no cotidiano.

Para Letícia Vital, a coletividade na cultura do funk é um dos elementos fundamentais para a autoestima da juventude:

“Quando eu vou pra baile, geralmente a gente vai de metrô, e você entrar no vagão de trem e ver aquela negaiada toda vestida com umas bermudas que vão no calcanhar e tal, é uma sensação muito boa, porque parece que aquilo tá te representando de alguma forma. Mesmo você não usando aquele estilo de roupa, parece que tá cada dia mais subindo um degrauzinho de visibilidade.”

28

Nos últimos anos, existe um crescimento de produções sobre e pela periferia, que trazem a autoafirmação dentro da cultura funk: funkeiros e funkeiras conquistando seu espaço e suas próprias narrativas.

neguinhodefavela é um dos principais nomes na produção de conteúdos sobre o funk paulista e a moda de quebrada. Mas para ele, essa produção sempre aconteceu, porém agora estão descobrindo ferramentas para transformar a cultura em criação.

“Se você olhar a página dos caras que são admiradores de Lacoste, de Oakley, lá atrás, já tinha um tipo de dedicação pra fazer a direção de arte de uma foto. Por exemplo, quando o cara senta na frente, faz uma exposição de camisetas atrás. É um tipo de arte que já vinha sendo feita, só que não era observada e também não tinha uma conotação técnica.”

Essa autoafirmação através da produção de conteúdos por e para funkeiros incentiva outros jovens a se orgulharem de sua cultura: “Agora a gente tem ferramentas técnicas pra que consiga passar essa autoestima e atingir mais pessoas, uma técnica que pode ajudar a gente a fazer isso, a transmitir isso” completa.

29
. . .
“Fantástico Mundo da Oakley” | POPPIN BR FURACÃO 2000, década de 70 | Foto: Gilberto Guarany

FUNK CONSCIENTE RAP E SAMBA ,

ENQUANTO PRESENTES ANCESTRAIS DA MÚSICA NEGRA

Thaynah Gutierrez

23 anos, moradora do extremo leste de São Paulo. Administradora pública, educadora popular na Politize e assessora de direitos humanos na Conectas.

Estuda funk e diáspora negra na música em perspectiva anti-colonial.

CONEXÃO

SAMBA-RAP-FUNK CONSCIENTE NA CULTURA PERIFÉRICA DE SP

De acordo com a visão de alguns pesquisadores e movimentos sociais, o samba e o rap fazem parte de uma grande linha de continuidade ancestral da música negra diaspórica no mundo. Nesse sentido, o funk consciente, como parte da cultura periférica paulista, apresenta conexões com essas escolas.

A narrativa das vivências de contextos periféricos e suas contradições para o centro das músicas é o que consolida as raízes das ancestralidades negras, indígenas e tradicionais na cultura periférica, criando o elo entre o samba, o rap e o funk na cidade de São Paulo.

Um dos subgêneros que mais traduz realidades periféricas é o samba de partido alto, que nasce nos subúrbios cariocas e representa diversas periferias ao redor do Brasil. Um grande expoente é Bezerra da Silva, com canções como Quando o Morcego doar sangue, que retrata a marginalização forçadas dos subúrbios e periferias.

No rap nacional, as denúncias levaram o mesmo tom, as mesmas vivências, mas diante de outras possibilidades de produções musicais. Carregando as mensagens dos tambores e das construções sociais dos mesmos terrenos, o grupo O Rappa é um exemplo, que inclusive utilizou da canção Candidato Caô Caô para gravar uma versão com participação do próprio Bezerra.

32

Por fim, com o funk consciente em São Paulo, os elementos de denúncia e protagonismo da vida periférica ganham novas produções musicais, com tambores ainda mais digitalizados, mas que ainda remontam as mesmas mensagens da diáspora musical negra. É possível identificar-las a partir de produções como Associação, de MC Hariel em parceria com MC GP, MC Ryan SP e Salvador da Rima.

Temos a tradução das vivências de quebradas nas diferentes versões e possibilidades que se apresenta o funk consciente. Essa tradução coloca o funk enquanto escola musical essencialmente periférica, capaz de não só de representar, mas de potencializar vivências marginalizadas, as colocando como prioridades dentro de um mundo cada vez mais digital e globalmente conectado.

Além dos aspectos narrativos e musicais, a conexão entre o funk, o rap e o samba pode ser analisada a partir da perspectiva mercadológica da cultura periférica. Essa análise expõe a apropriação cultural da branquitude, que não é responsável por produzir as culturas pelas quais se beneficia financeiramente desde que se iniciaram os mercados culturais no Brasil.

Dentro de suas estruturas de produção musical, produção executiva e da construção narrativa dos artistas que compõem os gêneros, acontece um processo contínuo e velado de espoliação branca, como Ana Maria Rodrigues denunciou no samba. Quando colocamos essas três escolas musicais em perspectiva, é possível notar que o sucesso passa por espaços mercadológicos que ainda pertencem às pessoas brancas que sempre detiveram os poderes dentro do jogo cultural no Brasil, especialmente no contexto de São Paulo.

33

MÚSICA NEGRA

SINCOPADA NAS ENCRUZILHADAS DO FUTURO

Tais portas que se abrem nesse elo ancestral dizem respeito ao trabalho de resgate e continuidade da diáspora musical negra existente no Brasil, que nunca se perdeu completamente, nunca se transformou em música comercial –e consequentemente, música sob estruturas da branquitude – por completo.

34
FURACÃO 2000, década de 70 | Foto: Gilberto Guarany

Aos fundos dos quintais nas quebradas paulistas e no restante do Brasil, nas ruas, esquinas, bailes, botecos e estúdios independentes e improvisados, sempre se conservou essências.

Não apenas na produção musical, mas também na narrativa poética daquilo que não se cria com o interesse de agradar o cenário político. Busca resguardar reflexões e narrativas das brasilidades que sempre estiveram em lados contraditórios, se não opostos, ao Brasil oficial que não protagoniza as culturas periféricas.

Como o historiador Luiz Antônio Simas apontou na entrevista “Bato tambor, logo existo”, ao resgatar a ancestralidade negra, especialmente no que se refere à umbanda, candomblé e jurema, é necessário cuidado para não colocar esses saberes e experiências no lugar pitoresco e reducionista de reparação histórica.

É essencial reafirmar as potências de terreiros e de todas as experiências ancestrais afrodescendentes e indígenas, como ambientes de grande sofisticação de saberes que sempre fizeram parte de nossa construção de identidade e caminho. Hoje, esse caminho se mostra a partir do funk, que deve ser preservado pelo seu lugar sofisticado e potência de cultura essencialmente brasileira e periférica.

35

MAIS DO QUE CONSUMIR:

Fernanda

Souza

Jornalista, multiartista e editora de conteúdo no portal da KondZilla sobre cultura periférica, sobretudo funk.

PRECISAMOS PROTEGER E FALAR DE FUNK

POR QUE

PRECISAMOS FALAR DE FUNK?

O som é de preto, de favelado e quando toca ninguém fica parado. Mas mesmo assim a cultura funk é perseguida, discriminada e de forma brutal, vem sendo encarcerada e violentada. Como produtos, nossas músicas são vendidas, a cultura massificada, a indústria gira, porém será que de fato nossos corpos são “pop”? Trabalhos acadêmicos, pessoas, marcas e muito mais produzem sobre nós, mas em sua maioria não são feitos por nós. Se pergunte sobre isso.

Assim como samba e rap, no Brasil, o funk sofre uma longa história de perseguição, ligada diretamente a quem produz, quem consome e onde nasceu: da cultura preta e periférica. O samba foi caçado no século XX, sendo considerado uma atitude ilegal e crimonosa. Um exemplo disso é o sambista João da Bahia, que foi detido por andar com seu pandeiro.

O rap também foi historicamente perseguido, embora hoje tenha alçado outras camadas sociais. Na contramão dessa onda conservadora, as ideologias do gênero sempre estiveram relacionadas ao papel político de denunciar os problemas sociais. Se você viveu a década de 80/90 ou conversa com familiares que viveram esse período, eles certamente irão falar que o rap era associado ao crime, que essa música era coisa de “bandido”.

38

Um dos exemplos históricos de ataque ao ritmo foi a morte do MC RAP B, pertencente ao grupo Magic, que tinha letras de protestos e denuncia, e foi assassinado com um tiro na testa. Curiosamente, o comandante responsável pelo policiamento era Ubiratan Guimarães, conhecido por ser um dos responsáveis do Massacre do Carandiru. Em 2000, MV Bill foi alvo de investigação por apologia ao crime pela letra Soldado do Morro. Hoje, a bola da vez é o funk.

O debate não é novo. Rap do Silva do MC Bob Rum ou Eu só quero é ser feliz, de MC Cidinho e Doca já falavam da violência nas favelas e do negligenciamento do estado nas comunidades, e dos corpos funkeiros e dos bailes funks. O funk, além de promover cultura e lazer, é dedo na ferida, e previa gerar um Salvador da Rima, que mais tarde traria contestação contra a opressão policial e denúncia da mídia, ou DJ Renan da Penha, que promoveria lazer na comunidade.

Para a memória não falhar, em 2017, o funk já teve proposta no Senado para ser considerado crime de saúde pública às crianças, adolescentes e à família.

Já houveram projetos que tentam proibir bailes funks em São Paulo, sem dialogar com o público e garantir políticas que promovessem os eventos culturais do funk. Ainda, existem ferrenhas críticas à vertente proibidão ou consciente, que denuncia a vida nas periferias, colocando os MCs como eu-líricos das quebradas. Esquecendo, também, que o funk gera potencialidades como dança, produção musical, moda, entretenimento, entre outros.

39

GIRO NOS CASOS

ALGUNS DOS CASOS MAIS MARCANTES QUE EXPÕEM A

PERSEGUIÇÃO, TENTATIVAS

DE

CRIMINALIZAÇÃO E A

VULNERABILIDADE DO FUNK COMO CULTURA PERIFÉRICA

Entre 2010 e 2012, 4 MCs do litoral paulista foram assassinados. Os casos aconteceram com intervalo de um ano entre eles.

2010

Felipe Boladão e DJ Felipe foram assassinados no dia 10 de abril.

2011

Em 12 de abril, MC Duda do Marapé foi morto com cerca de 9 tiros.

2012

Dia 18 de abril, MC Primo teve sua vida interrompida na porta de casa.

Em 19 de abril, MC Careca foi vítima de 15 tiros na sua barbearia, em Santos.

Até hoje, nenhum dos casos foi solucionado.

2012

No dia 25 de junho, Neguinho do Kaxeta foi vítima de 7 tiros, em São Vicente. Felizmente, o cantor sobreviveu. O atentado aconteceu depois de um show, mas até hoje o caso não tem maiores esclarecimentos.

40

2013 2019

Em 6 de julho de 2013, MC Daleste foi alvejado durante um show em Campinas. O dia foi posteriormente definido como Dia do Funk em São Paulo. As investigações foram arquivadas sem conclusão.

No dia 20 de março, DJ Rennan da Penha foi condenado por associação ao tráfico de drogas. Ele foi solto dia 23 de novembro, após o Supremo Tribunal Federal (STF) votar contra a prisão em segunda instância.

No mesmo ano, uma ação policial deixou 9 jovens mortos na madrugada do dia 1° de dezembro, durante o baile funk na segunda maior favela de São Paulo. O caso ficou conhecido como Massacre de Paraisópolis.

2020

Os MCs Cabelinho e Maneirinho receberam uma intimação no dia 29 de outubro por apologia ao crime na música Migué. Eles foram denunciados pelo deputado Rodrigo Amorim, que rasgou a placa em homenagem à Marielle Franco.

2021

2020

No dia 27 de março, MC Salvador da Rima foi detido com um mata-leão dentro de uma residência. O celular da namorada do MC foi apreendido, e transmitiu ao vivo o acontecimento e registrou os policiais planejando forjar agressões.

Ainda em março, Salvador da Rima, MC Brinquedo, MC Ryan SP, MC Pedrinho, Léo da Baixada e MC Hariel foram alvo uma operação de busca e apreensão em suas casas, investigados sob acusação de associação ao tráfico e lavagem de dinheiro.

41

MAS E AGORA, NOS FALTA ARGUMENTO?

Cada vez mais existem estudiosos na academia, ativistas do movimento e pessoas da própria cultura se movimentando para mudar esse cenário. Um exemplo disso é o caso do Trabalho de Conclusão de Curso de Tamiris Coutinho, Cai de boca no meu bucetão: uma análise do funk como potência do empoderamento feminino, publicado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que propõe falar das mulheres no movimento enquanto agentes de mudança e resistência.

A jovem sofreu represálias de conservadores como deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) e Olavo de Carvalho, além ameaças e ofensas nas suas redes. Vale a pena mencionar uma galera que luta junto como a Tamiris, como a pedagoga, dançarina e ativista Renata Prado, a doutora e escritora Juliana Bragança, o jornalista e ativista Bruno Ramos, o coletivo Periferia no Toque, entre outros.

ONDE ESTÁ O PROBLEMA?

Seja Cyclone, um Mizuno, um pontinho, uma roda de medley e um MC fazendo sucesso, o problema está nos corpos que protagonizam esses elementos. O racismo é o maior inimigo da cultura funk, ele é responsável por criminalizar e colocar todas essas narrativas em foco. O problema me parece resolvido: funk é preto.

O resumo das ideias é essa: de artistas até o público que consome e movimenta o funk, fica nítido que há um projeto político de extermínio de uma população. Para além de pedir paz, pedimos o direito de viver, fazer arte e sermos reconhecidos enquanto cultura.

42
43
Arte em homenagem às vítimas do Massacre de Paraisópolis. | Lucas Rodrigues / Perifa no Toque

ZINE SPFUNK: CULTURA, IDENTIDADE E JUNVENTUDE 2022

Concepção, direção criativa, produção, redação e edição de texto: Bruna Caetano

Design: Gabriel Yuta

44
45

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.