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com a palavra
juca kfouri
DOm QUIXOTE Como o personagem de Cervantes, o jornalista luta contra monstros e moinhos do
kiko coelho
esporte brasileiro. E se diverte muito
por
cesar lopes
Ao contrário do lúdico personagem da literatura mundial, os gigantes que Juca encara em seu dia-a-dia como cronista da vida esportiva do país são bem reais. O jornalista já sofreu inúmeros processos e está se acostumando a visitar tribunais. “Até que neste momento tem menos [processos]. São ossos do ofício.” Ricardo Teixeira, Vanderley Luxemburgo, Eduardo Farah e até o internacional Joseph Blatter, presidente da Fifa, engrossam a lista dos que abriram ação contra as palavras do escriba. Nesta entrevista exclusiva, Kfouri fala sobre violência nos estádios, desafetos e ainda relembra seus tempos de redação falando do que mais nos interessa: mulheres. ELEELA A violência nos estádios tem solução (a entrevista foi
realizada dois dias depois que 40 torcedores do Corinthians ficaram feridos em confronto com a polícia)? JUCA KFOURI Eu tenho algumas palavras de ordem na minha vida referentes à profissão especificamente: “Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”; “Quem se curva diante dos opressores mostra a bunda para os oprimidos”. As duas são do Millôr [Fernandes, jornalista e escritor]. Tenho outra do Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”. A quarta é do Vitor Martins na música do Ivan [Lins]: “Desesperar jamais”. Então é aquela coisa, sou cada vez mais cético [em relação aos problemas enfrentados pelos torcedores], mas não permito que meu ceticismo se transforme em niilismo. Mas te confesso que com 40 anos de profissão e quase 60 de vida me bate certo desânimo. Certas coisas que a gente fala faz 20, 30 anos, eu supunha que hoje não estaria falando mais. Se há 20 anos você me perguntasse sobre isso, eu te diria que no século 21 iria estar resolvido, mas não está. Está igual ou pior.
No front: acima, em programa na Rede Record; na outra foto, apresentando o CBN Esporte Clube
EE Isso não é consequência da falta de rigor do poder público? JK Certamente. Veja bem, na Inglaterra a coisa era muito pior que
aqui nos anos 80 e foi resolvido. Não se fala mais de hooliganismo lá. Não tem alambrados nos campos ingleses. O mínimo que eu te diria ser necessário fazer seria copiar o que se fez na Inglaterra. E o que se fez por lá basicamente? Uma ação com três pés: prevenção
fotos acervo pessoal
em conjunto com o pessoal dos transportes públicos, segurança, polícia etc.; uma ação de repressão, quer dizer, fez merda vai ser preso e isso acaba se transformando na terceira perna: a punição. Nós não temos prevenção, a repressão cada vez aumenta mais, mas não decorre nenhuma prisão efetiva dela e não tem punição. Parece que ninguém está ligando. Não se dão conta do absurdo que é você morrer por estar indo a um jogo de futebol. E o risco permanente que as pessoas que vão a jogos correm de morrer deveria ser zero. Zero dentro do que é possível ser zero, evidente, pode cair uma escada na sua cabeça, um avião pode cair no Mineirão, no Maracanã. Mas aí estamos diante de uma catástrofe, não diante de uma crônica anunciada, de uma guerra anunciada, de uma morte anunciada. EE Você vê perspectivas de mudanças? JK Durante o último ano da segunda gestação de Fernando
Henrique Cardoso pariu-se o estatuto do torcedor e a lei da valorização do esporte. O presidente Lula, generosamente, fez questão que fossem as duas primeiras leis assinadas por ele em sua gestão. Ele tomou posse em janeiro e assinou essas duas leis com pompa e circunstância. Fui convidado e para meu constrangimento tinha um lugar pra mim na primeira fila. O Lula começou o discurso dele literalmente assim: “Nunca mais vamos ouvir o jornalista Juca Kfouri dizer que no Brasil o torcedor é tratado como gado”. Terminou o discurso – e aí não é literal – e disse mais ou menos o seguinte: “A presença do jornalista é para simbolizar todos aqueles que durante estes anos todos lutaram, foram perseguidos, tiveram credenciais cassadas”, se referindo ao episódio em que o Ricardo Teixeira [presidente da CBF – Confederação Brasileira de Futebol] tentou impedir meu credenciamento para a Copa de 1998. Com mais de 50 anos de idade, portanto sem o direito a ingenuidade, saí do Palácio esmurrando o ar dentro do táxi e pensando: ‘Foderam-se’. Agora pegaram um presidente torcedor, vão ver o que é bom pra tosse. Seis meses depois ele estava de braços dados com essa gente.