EM CAMPO

EM CAMPO BRENO LIMA

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EM CAMPO BRENO LIMA

Projeto prático realizado sob orientação do Professor Mestre Dante Gastaldoni e submetido à Banca de Graduação como requisito para obtenção do diploma de Comunicação Social/Jornalismo.

Este trabalho é resultado de minha estadia por Caruaru, município do agreste pernambucano, durante o mês de agosto de 2016 e uma semana de março de 2017. Neste período pude acompanhar a primeira Residência multiprofissional de saúde da família com ênfase na população do campo, formada por profissionais de todo o Brasil em busca de uma especialização com viés humanizado na Saúde. Seu caráter inovador não decorre apenas de seu pioneirismo. Uma parceria do SUS, da Universidade de Pernambuco (UPE), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras (no caso de Caruaru) e do Movimento Quilombola (em Garanhuns – PE), a residência é um esforço para unir políticas públicas em saúde, movimentos sociais, universidade e população do campo em um sentido do cuidado particular demandado pela situação rural.

Cheguei em Caruaru de paraquedas. Meu próprio desnorteio e meu mantra quase ingênuo de “Troca e Afeto” foram minha bússola e compasso. Através do trabalho dos residentes, fiz amizade, laços que trarei comigo para sempre.

De Nalva, do Assentamento Normandia, que não quis ser fotografada à Ozana e Nicoly, da comunidade de Lages, às quais prometi retornar todo ano para fazermos mais fotos. A câmera era minha ferramenta e minha desculpa.

Tive sorte. Meus dedos, mais do que clicar o disparador, puderam apertar mãos, fechar abraços e secar lágrimas.

Este livro é meu relato do campo.

EM CAMPO O que é Saúde?

A pergunta que me perseguiu durante toda a minha estadia em Caruaru ainda precisa ser respondida. A cada vez que surgia, fosse espontaneamente ou como parte das conversas, por vezes sistemáticas, que tive, a resposta divergia. O que é Saúde? E uso o maiúsculo para denominar o conceito por coisa de vontade e respeito. Vejo que venho a vida me fazendo esta mesma pergunta, talvez de alguma forma inconscientemente consciente… Estar em Caruaru, acompanhando o trabalho dos residentes de Saúde no Campo, me levou de volta para casa. Veio de herança o olhar sobre o cuidado. De meu pai, médico urologista, comunista, a vocação do ouvir e do cuidado, do humanizar para tratar. Desde muito criança, ele me ensinou a negar os

remédios – o que causava certa angústia a meu avô, pai de minha mãe: “casa de ferreiro, espeto de pau”, dizia ele. Me recordo de coisa que não faz tanto tempo assim para que fosse necessário recordar: meu pai comentando de como conduz o tratamento para disfunção erétil. Ele chama o paciente e o parceiro ou parceira e senta, ouve, conversa. Para ele, disfunção é questão do casal e pode ser conversada. Para a surpresa de seus colegas, o tratamento dá certo. Para a angústia dos mesmos, ao perguntar quanto tempo meu pai fica com cada paciente, a resposta é a mesma “quanto for preciso”. Ele me ensinou que a produtividade e a lucratividade são inimigas do cuidado. Me ensinou que a vida deve ser prioridade no trabalho de um profissional da Saúde. E que isso significa sentar, ter paciência e escutar, conhecer o paciente a sua frente, seus medos, anseios, desejos.

Minha mãe, fisioterapeuta, mistura toda a sorte de influências no tratamento de seus pacientes. Para além do conhecimento do corpo humano, mamãe mistura purificação de aura, acupuntura, uns negócios

com uns cristais que eu não entendo bem e muito, muito ouvido. Escutar a vida dos pacientes se torna parte fundamental do processo de trabalho de minha mãe. Sempre muito profissional e respeitosa com seu trabalho, minha mãe dá tudo de si. Foi dela que ouvi coisa bonita sobre o trabalho na Saúde, algo como “quando o nosso paciente adoece, nós adoecemos juntos e quando ele tem alta, nós temos também”. Achei um tanto inacreditável o quanto estas palavras ressoaram em mim durante o trabalho que fizemos em Caruaru. Desde sempre minha confidente, ela, como meu pai, contribuíram para formar em mim, sem que eu soubesse, uma noção de Saúde, assim como manter minha própria saúde mental, às vezes tão fragilizada.

Mas foi em 2012 que certa coisa deu um giro. Por mais que venha de casa, nunca tinha tomado contato real com o trabalho na Saúde, até que, no dia 18 de maio daquele ano, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, minha irmã Fernanda, psicóloga, me convidou para conhecer o movimento no ato que fariam – e fizeram – na Praça XV, Centro do Rio. Na época, eu cursava Ciên-

cias Sociais na UFRJ e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – o querido IFCS – ficava – e ainda fica – bem próximo de onde seria o ato. Para além das facilidades, ainda morava em Niterói e a barca não tinha esse preço exorbitante que tem hoje, nos meados pra fins de 2017.

Meu encontro com a Luta Antimanicomial foi o do mais puro encantamento.

Lembro muito bem do momento do choque. Quando projetaram um vídeo do fazer e realizar uma música com os pacientes – mais tarde aprenderia a chamá-los de usuários do sistema público de saúde, identidade que dá a agência devida. A música, composta e arranjada pelos trabalhadores e os usuários, foi cantada e dançada ali. Em um momento de desilusão política com os movimentos e organizações da esquerda, vi ali um gesto de pura integração e unidade. Usuários, familiares e trabalhadores felizes… o riso me tocou naquele momento como me toca agora. Lembro de chorar, como choro agora. Como tanto chorei em Caruaru. Lembro de poder ter alguma clareza e pensar no que significa um manicômio, no que significa ser ne-

gado enquanto ser humano e no tanto de potência que é poder cantar, dançar e rir em praça pública. A possibilidade de ser possibilidade. A possibilidade de existir, de criar, de viver. A partir de então, procurei me manter próximo à Luta Antimanicomial, comparecendo a todos os 18 de maio subsequentes e ao congresso nacional que houve na Universidade Federal Fluminense, em 2014.

Contribuí como pude, não sendo trabalhador da Saúde, mas possuindo uma câmera e o desejo de ajudar. Fiz o registro dos atos. Na época, não sonhava em trabalhar com fotografia, mas foi com minha então companheira, e ainda grande amiga, Julia, que entrei no curso básico de fotografia do Ateliê da Imagem. Lembro do professor Leonardo Ramadinha perguntar quem desejava trabalhar profissionalmente com imagem e eu me destacar por ser o único a não levantar a mão.

Foi também através da Luta Antimanicomial que me aproximei da Nathália Gontijo, terapeuta ocupacional da residência e irmã de minha grande amiga, Jéssica.

Foi ela quem viu um trabalho que realizei

com meu parceiro Matheus Meyohas para a disciplina de Fotojornalismo, ministrada pelo professor e mestre Dante Gastaldoni, e me convidou para conhecer e registrar o trabalho da Saúde no Campo em Caruaru. Foi ela também quem me recebeu no período em que estive no agreste pernambucano.

Sinto, às vezes, que meu lugar, tanto na fotografia, quanto nos movimentos da Saúde, é ocupado pela força do acaso na minha vida. Mas, ao mesmo tempo, vejo que deve haver um sentido próprio nas coisas. Dos encontros que nos marcam e nos encantam; da escolha dos lados e verdades, do que se tem a dizer; da seleção do meio e forma com a qual nos comunicaremos.

O acaso só se faz acontecer a quem está aberto a ele.

E o que é Saúde?

Cheguei em Caruaru com uma compreensão prévia sobre o tema que não sabia que tinha, mesmo nunca tendo me feito tal pergunta. Acompanhando o trabalho da residência, entendi um pouco melhor sua essência. Está em propôr discussão e reflexão. A Saúde é indefinível porque é muito viva.

Saúde é toque Saúde é riso Saúde é entender a história do outro e a sua própria Saúde é estrutura Saúde é afeto Saúde é troca Saúde é debate Saúde é lazer Saúde é um bem estar individual e comunitário Saúde é possibilidade Saúde é ter água Saúde é se alimentar Saúde é poder estudar Saúde é poder ser quem se quer ser Saúde é transformação, física, emocional, psíquica, social Saúde abarca todos os campos da vida Saúde é política, das mais concretas que há Saúde é, e é importante que se diga isso, direito Digo de novo SAÚDE É DIREITO E não deve jamais ser negada a ninguém que seja.

Por que cantamos - Mário Benedetti Se cada hora vem com sua morte se o tempo é um covil de ladrões os ares já não são tão bons ares e a vida é nada mais que um alvo móvel

cantamos porque o rio esta soando e quando soa o rio, soa o rio cantamos porque o cruel não tem nome embora tenha nome seu destino

você perguntará por que cantamos

cantamos pela infância e porque tudo e porque algum futuro e porque o povo cantamos porque os sobreviventes e nossos mortos querem que cantemos

se nossos bravos ficam sem abraço a pátria está morrendo de tristeza e o coração do homem se fez cacos antes mesmo de explodir a vergonha você perguntará por que cantamos se estamos longe como um horizonte se lá ficaram as árvores e céu se cada noite é sempre alguma ausência e cada despertar um desencontro

cantamos porque o grito só não basta e já não basta o pranto nem a raiva cantamos porque cremos nessa gente e porque venceremos a derrota cantamos porque o sol nos reconhece e porque o campo cheira a primavera e porque nesse talo e lá no fruto cada pergunta tem a sua resposta

você perguntará por que cantamos cantamos porque chove sobre o sulco e somos militantes desta vida e porque não podemos nem queremos deixar que a canção se torne cinzas.

Sumário

EM CAMPO

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JOAQUIM .........................................

NICOLY .........................................

CINECLUBE GRUPO DE MULHERES DE QUEIMADOS DE URUÇU . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .........................................

ROSEMEIRE .........................................

KÁTIA A FOTOGRAFIA COMO FERRAMENTA DE CUIDADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ÁGUA, TERRA E TRABALHO

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água, terra e trabalho

EDITAR

A apresentação deste capítulo introdutório tem como objetivo contextualizar o campo. Aqui, o campo se apresenta de forma ambígua. É tanto o ambiente em que foi realizado o trabalho quanto um universo rural específico, que merece ser compreendido com suas próprias limitações, desafios, jogos de poder e conquistas. Aqui, apresentarei aquilo que não foi fotografado, mas que atravessa as imagens, de alguma forma.

O município de Caruaru localiza-se no agreste pernambucano com destaque. Conhecido por sua grande festa de São João e a antológica feira de Caruaru, tema de canções de Luiz Gonzaga e outros compositores, Caruaru abriga, de acordo com último censo feito pelo IBGE, em 2010, 314.912 habitantes, embora estima-se que este número tenha subido para 356.128. Do número levantado no censo, 35.323 moram na zona rural, com números praticamente iguais de homens e mulheres: 17.836 homens e 17.487 mulheres. Ainda de acordo com o IBGE, da população total da cidade, 32% recebem até meio salário mínimo, 14

enquanto apenas 3% recebem mais de 5 salários mínimos. Ao todo, cerca de 88% da população de Caruaru ou não tem rendimento ou recebe até 2 salários mínimos.

Do ponto de vista do trabalho, o setor mais proeminente na cidade é o de serviços, concentrado na parte urbana da cidade. Este é responsável por cerca de 54% do produto interno bruto da cidade, além de empregar 34% da população economicamente ativa, segundo levantamento sobre emprego e desemprego na região de Caruaru feito pelo DIEESE. Logo após, vem o setor das indústrias, empregando 30% dos trabalhadores. Estão neste

segmento os trabalhadores da confecção, setor que se destaca no área rural da cidade. A agropecuária, por sua vez, se apresenta como quase irrelevante, não chegando a contabilizar 1% do PIB da cidade e empregando, até 2013, cerca de 300 pessoas.

Ao caminhar pelas comunidades rurais de Caruaru, nota-se que toda ou quase toda casa tem um espaço reservado para a máquina de costura. A confecção de roupas, sobretudo de calças jeans, é, provavelmente, sua principal atividade remunerada. Estas organizam-se de duas formas: a facção e o fabrico, que se identificam no espaço delimitado para o trabalho.

Enquanto a facção consiste em um sistema de galpões que abrigam diversos trabalhadores produzindo simultaneamente, o fabrico é a produção individualizada das roupas, geralmente na própria casa dos trabalhadores.

Estas roupas não são produzidas de forma autônoma. Empresas contratam de forma informal os moradores e pagam a produção por peça. A remuneração varia de acordo com o cargo e tipo de trabalho, podendo ir de alguns centavos, caso seja um reparo de roupa defeituosa, a cerca de R$ 4,00 por peça quase completa. Esta produção intensa de roupas transformou Caruaru e a cidade vizinha, Toritama, em um pólo de confecção, venda e 15

distribuição de roupas para todo o país, através de marcas conhecidas. Uma roupa produzida a R$ 4,00 por um trabalhador de Caruaru chega a ser vendida por mais de R$ 100,00 em outro estado. Em Toritama, onde a confecção é ainda mais relevante, há uma estátua de calça jeans na entrada da cidade. Em sua rua principal, a vista é tomada por grandes lojas de roupas, além de uma enorme feira de roupas que acontece durante toda a semana.

Talvez o motivo para a absorção da mão-de-obra por parte da indústria de roupas tenha a ver com a dificuldade em produzir a partir da terra. De fato, um dos maiores problemas que pude constatar em minha breve estadia lá foi a questão da água. Em meu primeiro dia na cidade, caminhando pela feira de Caruaru, um senhor me conta que não chovia o suficiente para plantar – ou “molhar a terra” – há 5 anos. Tal afirmação me foi confirmada diversas vezes por pessoas diferentes durante minha estadia. Consequência disso, a maior parte da produção que vi era de palma, um tipo de cacto que serve de ração para animais. Vi pouco gado também. A pequena pecuária do agreste é majoritariamente de criação de bode e, mesmo estas, não aparecem com tanta frequência.

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Sem água da chuva, os rios secaram, como pude constatar, e a água consumida é, em sua maior parte, privatizada. Não era raro faltar água na casa de Nathália e seu companheiro Rafael, onde morei em minha estadia, mesmo se localizando na zona urbana da cidade, com maior infraestrutura e serviços. É claro, para as pequenas comunidades da zona rural, a situação era bem mais grave. Durante o debate do Cineclube sobre o tema da água, ouvi reclamações de moradores dizendo que tonéis de água que compraram vieram infestados de bactérias ou girinos. Denúncias de fazendeiros bloqueando ou desviando a água dos rios que ainda estavam correndo também não eram raras.

Toritama e Caruaru são separadas pelo Rio Capibaribe, que corta a BR-104, rodovia que liga as duas cidades. O rio, talvez o mais importante de Pernambuco e um dos poucos rios vivos da região, é alvo dos dejetos derivados da produção de roupas. Na zona rural de Toritama, cerca de quatro grandes lavanderias fazem a lavagem e a tintura das calças jeans. Todos os rejeitos deste processo são lançados ao rio, poluindo suas águas e impedindo seu uso. Quando estive pela primeira vez na comunidade de Malhadas, alcançada através de Toritama, Geni, a agente comuni-

tária de saúde, levava baldes vazios ao Capibaribe para buscar água contaminada para o uso no banheiro do posto de saúde.

Em outra ocasião na comunidade, pegando um caminho alternativo, me deparei com uma cena que simulava uma tragicomédia apocalíptica. Uma grande estrutura de represa contendo um rio completamente seco, que se tornou atalho para chegar da comunidade ao centro de Toritama. Em Malhadas também, devido à maior concentração de trabalhadores da confecção, é possível ver grandes pedaços do chão de terra batida completamente tomados por fiapos e pedaços de tecido. Estes tecidos caem quando é feito o transporte, geralmente de motocicleta, do material usado na confecção de roupas, assim como das roupas já prontas. Apesar da beleza da paisagem colorida, tal vista é sintomática e demonstra o quão profundamente está entranhada a confecção, nos termos descritos, como fonte de renda para a comunidade.

O trabalho na confecção é um ofício pesaroso, despido de direitos trabalhistas e com consequências diretas na saúde física e mental da população do campo. No entanto, é o trabalho oferecido quando não há possibilidades para o plantio e sobrevivência pela terra. E, embora existam políticas de imple17

mentação de uso renovável da água (o uso de cisternas é um bom exemplo), elas não dão conta da seca, da intangibilidade do acesso à água, sempre privatizada, e das disputas de poder da região.

Tudo isto está intimamente ligado à luta pela terra. Mesmo quando uma propriedade ociosa é desapropriada, homologada e seu usufruto é dado aos assentados, tornar esta uma terra produtiva passa pelas questões da água e de técnicas e equipamentos de produção, recursos que, muitas vezes, o assentado não tem como conseguir. Muitos deles, então, recorrem para a confecção como fonte de renda. Antes de tudo isso, no entanto, a disputa pela terra, sob coordenação do MST, passa pela mobilização, ocupação do terreno ocioso, montagem do acampamento, e pressão na justiça para reconhecimento daquela terra e de seu uso social não respeitado. A luta não é fácil. Ela passa por adversidades de várias esferas. De um lado, há ataques de jagunços enviados pelo detentor da terra, resultando em incêndios dos acampamentos, assassinatos de lideranças do movimento, além da intimidação constante e temor pela própria vida por parte dos acampados. Do ponto de vista da justiça e das forças policiais, normal18

mente ligadas com os mais poderosos, especialmente na realidade rural, os acampados são frequentemente ameaçados com ordens de despejo e liminares judiciais. A apreensão que vem com a iminência de ser desalojado é, muitas vezes, constante.

Do outro, as condições precárias dos acampamentos muitas vezes significam uma vida sem eletricidade, água limpa e estrutura mínima para sobreviver. Somando-se a isso, a mobilização política permanente e o clamor por atenção da parte do governo e da justiça dividem o esforço dos acampados com sua própria sobrevivência, trabalho e família. Por fim, pude constatar que os sem-terra sofriam preconceito por parte da sociedade e instituições, estigmatizados por sua condição e tendo o acesso aos serviços públicos muitas vezes dificultados. Acho importante ressaltar que, apesar das dificuldades, políticas públicas como o bolsa-família se mostravam extremamente relevantes para a vida das famílias que conheci. Eles garantiam alguma renda para a família e a certeza de que as crianças frequentariam a escola.

De toda forma, estes fatores geram costumeiramente uma debandada das famílias acampadas. Os que ficam são ou os que acre-

ditam na luta ou que não têm para onde ir.

Uso agora dados coletados para o trabalho de conclusão de residência de Nathália, focado no Acampamento Novo Amanhecer do MST, no qual duas das famílias representadas neste livro residem.

O acampamento foi instalado em julho de 2015, com a ocupação da Fazenda Guilherme por 106 famílias. Em um período de dois anos de debandadas, permaneceram de 20 a 70 famílias, embora, no início de 2017, apenas 31 delas estivessem cadastradas no sistema de saúde. À Nathália foi dito pelos acampados que o acompanhamento constante da residência e a crescente presença, por mediação dos residentes, dos trabalhadores do posto de saúde de Cachoeira Seca os incentivavam a permanecerem acampados e organizados na luta.

Em novembro de 2017, recebi a notícia de que uma ordem de despejo havia sido aprovada e que os acampados seriam logo removidos da propriedade. O proprietário se comprometeu a fornecer lotes de terra para os acampados e, embora a terra doada fosse mais afastada, para não correrem o risco de ficarem desabrigados, a tendência era aceitar a proposta.

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JOAQUIM Joaquim foi a primeira pessoa que fotografei.

O conheci em meu quarto dia em Caruaru, quando Nathália o trouxe de carro, acompanhado de sua mãe, para o Centro de Formação do Assentamento Normandia, do MST. Joaquim tinha por volta de 11 anos e, por todo este tempo, paralisia cerebral. Não falava da forma como estamos habituados, apenas por sons que não eram exatamente palavras. Tinha os pés virados para dentro e era forte. Se comunicava com o corpo. Quando não gostava de alguma coisa ou ficava agitado, beliscava com força a pessoa mais próxima ou puxava-lhe o cabelo. Não sei se roía as unhas, mas lembro que seus dedos estavam machucados. A pessoa mais próxima e, portanto, também principal alvo dos beliscões e puxões de cabelo, era sua mãe. Talvez por isso, e por um medo de que o menino pudesse se causar mal, Joaquim quase não podia sair do quarto. Era missão de Nath, como terapeuta ocupacional, convencer a mãe de que estava tudo bem o menino sair, interagir com o mundo e se desenvolver.

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Maria era mãe solteira. Não ficou tão claro o que aconteceu com o pai de Joaquim mas era ausente, o que aumentava os desafios de Maria para criar seu filho. E, embora não se tenha clareza dos motivos da ausência do pai de Joaquim, o machismo está enraizado no campo, onde o abandono paterno é recorrente, e tende a aumentar quando a criança tem alguma deficiência.

Normandia tem destaque para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sendo seu principal assentamento no Nordeste. Para conhecê-lo, o visitante deverá subir uma trilha de terra que sai da BR-104, que liga Caruaru à cidade vizinha Toritama. O enorme casarão colonial no Centro de Formação é a primeira visão do assentamento, quase miragem depois de caminhar a terra batida sob o sol quente do agreste. É de uma arquitetura que marca o inusitado e o simbólico da luta pela reforma agrária. O Assentamento Normandia costumava ser a Fazenda Normandia. Só depois de muitos anos de ocupação e luta do movimento é que 21

a terra foi destinada à reforma agrária. Mas não em sua integridade. Margeando a área do assentamento, grandes pedaços de terra que faziam parte da fazenda ainda estão, me disseram, sob a posse dos antigos donos. O casarão demarca essa disputa histórica em sua própria existência. Um edifício suntuoso no coração da luta campesina.

O Centro de Formação é a área mais elevada do assentamento e conta com refeitório, auditório e um prédio onde ficam alojados os residentes, durante o processo de formação, além de convidados, militantes, etc… Ao seu lado, há uma mandala, uma espécie de horta circular onde os residentes trabalham aos sábados, cultivando a terra para se colocarem no lugar de quem pretendem cuidar.

Há também a agroindústria, local onde são processados alimentos (transformados em bolos, geléias, etc.). Para trás do centro de formação, descendo pelo terreno, ficam as casas dos assentados.

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Joaquim e sua família moram em uma área afastada do assentamento. Para chegar em sua casa, deve-se passar por um enorme buraco que já foi um açude, profundo o bastante para uma pessoa se afogar. As pessoas que me contaram isso o fizeram com um sorriso meio de graça, meio de melancolia. Olhar para a cratera de terra seca e pensar em alguém se afogando nela parecia ridículo naquele momento.

Quando fui apresentado ao menino, na varanda do casarão, ele não me deu muita bola.

Fiquei ansioso, pensando em interagir. Repensei meu papel ali, o tempo que tinha e escolhi observar. Nathália conversava com ele, que respondia com um olhar vago, mas confortável. Sua mãe, permanecia de pé, atrás dos dois. Olhava para o filho com o que me pareceu preocupação e, então, para mim, com um misto de desconfiança e curiosidade.

Nathália já havia dito que eu

era fotógrafo, mas eu ainda não havia feito nada. Resolvi que deveria, antes de tudo, perguntar à mãe se havia problema em fotografar. Ela parecia surpresa com cada palavra que saía da minha boca, como se eu fosse um extraterrestre, talvez sem entender o que diabos eu queria fotografando seu filho, mas concordou com os cliques. Tirei as câmeras da mochila e as mostrei para Joaquim. Ele as encarou com curiosidade. Com o consentimento de Nath, tentei mostrar como elas funcionavam. Ele não estava tão interessado no funcionamento da câmera, mas queria senti-la com a mão. Deixei, tomando cuidado com a lente. Quando já estava familiarizado com minha presença, Nath voltou a interagir com ele e eu comecei a fotografar. Comecei fotografando silenciosamente algo que ficou muito evidente para mim no resto de minha estadia com Nathália e a residência: o toque.

Nathália pegava as mãos e pés de Joaquim, acariciava, fazia massagem neles, enquanto brincava e conversava com ele. Quando o menino a beliscava ou puxava seu cabelo, ela pegava mão dele com calma e fazia carinho até ele soltar, reprovando com suavidade a atitude dele. Levantou, colheu algumas flores e as levou até Joaquim, deslizando-as por sua pele.

O menino pegou as flores e, com muita delicadeza, começou a observá-las. De vez em quando eu perguntava à mãe se ela não gostaria de aparecer nas fotos. Maria negava, rindo envergonhada, por mais que eu perguntasse.

Saímos da varanda do casarão e fomos para o gramado, onde havia um balanço. Quando Nath começou a empurrar Joaquim, ele assumiu uma expressão que parecia de transe. Olhava para cima, absolutamente concentrado e quase absorto. Sua mãe, igualmente admirada com o menino, começou a balançá-lo. Ficamos ali, silenciosamente, por al23

gum tempo. Acompanhei Nath quando ela os levou de volta, uma casa de portas e janelas verdes atrás de um portão com a placa “Fazenda Esperança”. No caminho de volta ao Centro de Formação, Nathália estava com um sorriso no rosto: “Ele é bonito, não é, Breno?”.

Em meu último dia em Caruaru, tomado por uma exaustão no corpo e mente, só pensava em chegar a Recife. Perdi minha carona.

Nathália pediu para elaborarmos juntos um resumo da experiência do último mês para ela entregar ao movimento e à universidade. Assim fizemos. Depois, insistiu para devolvermos as fotos que ainda não havíamos devolvido (eu havia editado e impresso parte das fotos numa pequena gráfica da cidade com esse intuito). Estava cansado, muito cansado e, embora minha primeira intenção fosse negar, concordei. Uma dessas famílias era a do Joaquim. Foi quando o reencontrei, as fotos de nosso primeiro encontro em mãos.

Cumprimentamos sua mãe e sua avó e as entregamos as fotos. Elas as colocaram em cima da mesa da cozinha e ficaram olhando, um sorriso no rosto. Joaquim estava no quarto.

A mãe ou a avó foi chamar a tia de Joaquim, que morava na casa ao lado, no mesmo terreno. Nathália pediu para deixar o menino sair 24

do quarto e a porta foi aberta. Cumprimentei ele com um “lembra de mim?”, acreditando que fosse improvável que lembrasse. Não sei se ele se lembrou. Mas pegou minha mão e, enquanto sua mãe mostrava as fotografias para a tia recém-chegada, me levou para dentro de outro quarto, onde haviam duas camas. Me posicionou do lado de uma delas e me empurrou. Sentei na cama. Ele sentou na outra e começou a me dar beliscões. Fiz o que aprendi com Nathália e peguei sua mão com gentileza e fazendo massagem até ele soltar o beliscão. As mulheres no outro cômodo começaram a nos chamar. Levantei da cama e fui com Joaquim ao seu encontro.

Elas puxaram o menino e pediram para fazer mais fotos com ele. Desta vez, sua mãe não se importou em aparecer. Insistiram também que Nathália estivesse junto. O cansaço ainda estava presente em mim, mas pareceu ficar em segundo plano. Naquele momento, eu ficaria o tempo que precisasse. Fizemos as fotos, nos abraçamos e nos despedimos. Depois de acompanhar Nathália por um mês, resolvi imitá-la. Toda vez que se retirava da casa de alguém, ela perguntava “posso voltar pra te ver?”. Se a resposta fosse positiva – e sempre era – ela afirmava, ao sair pela porta “eu volto, viu?”. “Eu volto”, garanti, “até a próxima”.

A volta foi em março de 2017, quando foi concluída a residência da primeira turma de Saúde no Campo, a turma da Nathália e de outros profissionais com quem eu criei laços de companheirismo e amizade. Resolvi que seria uma data apropriada para voltar a Caruaru, mas, por razões pessoais, apenas poderia ficar por uma semana. Foi corrido, queria devolver as fotos que não havia ainda devolvido e rever as pessoas que me marcaram tanto.

Quando fomos na casa do Joaquim, vi que a família havia pego uma das fotos que fizemos naquele primeiro encontro e transformado em um banner, que penduraram na entrada da casa. A maior parte das coisas que me passaram pela cabeça são especulações…

O poder da fotografia é, ainda, nebuloso para mim. O que significa colocar alguém diante da lente? Aquelas fotos mudaram alguma coisa sobre quem era Joaquim no contexto da família? Não sei, não posso saber. Mas a certeza que me deu foi de que algo certo eu fiz em minha primeira estadia em Caruaru e aquele banner e os abraços que demos com meu retorno eram provas disso. “Até a próxima”, repeti.

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nicoly

Ouvi falar de Maria Nicoly na casa dos residentes em Normandia. Havíamos nos reunido lá em um fim de semana para planejar o Cineclube e fazer um bate-papo sobre fotografia. Foi Regina, nutricionista da segunda turma da residência, quem trouxe Nicoly para a conversa: “Você devia ir lá fotografar ela, Breno. A mãe dela vai ficar tão feliz”. Eu aceitei de pronto, como fazia com todas as sugestões dos residentes. Para Regina, o caso de Nicoly era especialmente delicado. A menina, que devia ter por volta da mesma idade de Joaquim, também tinha paralisia cerebral.

Precisava fazer uma cirurgia de alto risco na coluna e, caso contrário, poderia vir a falecer. Mas, para fazer a cirurgia, Nicoly preci28

sava ganhar peso. Estava desnutrida. Regina e outros residentes estavam combinando um mutirão multiprofissional para ajudar Nicoly e sua família. E eu iria junto deste grupo para que pudesse conhecê-la.

Nicoly mora com a mãe na comunidade de Lages. Em Caruaru, há um centro urbano, onde fica a maior parte da estrutura da cidade: hospitais, shoppings, restaurantes, centros de turismo, etc. Saindo da cidade, há a BR-104, que liga Caruaru a Toritama. As comunidades rurais ficam ao largo da BR. Há a comunidade do Rafael, Cachoeira Seca, Lages e, finalmente, Malhadas, que fica depois de Toritama, mas ainda dentro do município de

Caruaru. Lages é uma das comunidades mais afastadas e a forma mais comum de se chegar a ela é através das Toyotas, um transporte alternativo de carga e pessoas que corre todo dia do centro de Caruaru a Toritama, mas apenas até as 18:00h. Segundo um planejamento estratégio feito pela residência com as comunidades, essa questão da deficiência do transporte é uma das principais reclamações dos moradores em relação ao acesso à Saúde e uma das possíveis causas para tantas crianças com problemas congênitos. Já sendo difícil chegar no posto de saúde, dependendo do local da comunidade em que a pessoa mora, é ainda mais complicado chegar no hospital.

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A demora para dar a luz gera, como conequência, sofrimento para o bebê, baixa oxigenação em seu cérebro e sequelas que derivam disso. Este é um quadro que, de acordo com Nathália, tem melhorado nos últimos anos.

De toda forma, pegamos a Toyota eu, Regina e Nathália, assim como Thiago, um assistente social carioca fazendo o estágio de sua residência em saúde mental em Caruaru, e Fiama, fisioterapeuta da turma de Regina. Do posto de saúde de Lages, fomos para a casa de Nicoly.

Ao contrário do que Regina previa, Maria Ozana, mãe de Nicoly, se mostrou de pronto desconfiada de minha presença. Ozana é forte, uma das mulheres mais fortes que já conheci. Mãe solteira, fez de Nicoly o centro de seu mundo, devoção evidenciada por uma tatuagem que carrega nas costas: Maria Nicoly, presente de Deus. Trabalha para manter a casa e cuidar da filha. A leva para shows na cidade, a deixa sempre bem arrumada e repleta de carinho.

O afeto e o cuidado que Ozana tem com Nicoly e que Nicoly tem com Ozana se mostra nas trocas de gestos e olhares doces. Talvez daí, deste cuidado, venham as suspeitas sobre o meu trabalho. “Por quê você quer fotografar minha filha?”, ela questionou.

Respondi que estava fazendo uma documentação do trabalho da residência e que ainda não sabia o que sairia disso, mas que as fotografias poderiam se 30

tornar uma publicação voltada para a saúde ou um fotolivro. Percebendo que as suspeitas não diminuíram, garanti a Ozana que foto nenhuma sairia de sua casa sem que ela a visse e desse seu aval.

Ozana me contou que uma fisioterapeuta já havia usado fotografias de Nicoly, sem autorização, para divulgar seu trabalho e que não gostaria de ver isso acontecendo de novo.

Afirmei que jamais faria isso e que tudo o que se passasse ali seria absolutamente transparente.

Ela olhou para os residentes e de volta para mim e disse algo na linha de “Se você está com eles, eu confio”. Foi quando percebi com maior clareza a importância de estar acompanhando e sendo mediado pelos residentes.

Foram eles, com seu trabalho, que deram credibilidade ao meu próprio, através de um vínculo de confiança que já havia se estabelecido com Ozana, Nicoly e os demais usuários do sistema público de saúde. Retirei as câmeras da mochila e comecei a fotografar.

Thiago conversava com Ozana sobre as demandas da família, enquanto Regina, Nathália e Fiama tratavam de Nicoly, que estava deitada em um colchão na sala da casa, rodeada por brinquedos e almofadas. Ela é uma 32

menina alegre e bonita. Como Joaquim, não se comunica pela fala, mas dá pequenos gritos de felicidade quando aprova algo. Gosta de pessoas, gosta da casa cheia. E, em outra visita, Ozana me contou que a filha gostava muito de escutar Wesley Safadão. Foi fácil fotografá-la. Nicoly vive sorrindo e tem um olhar muito expressivo de admiração pelo que há à sua volta. Ela exala beleza. O desafio era fazer fotos à sua altura.

Quando perguntei a Ozana se não desejava aparecer nas fotografias, ela recuou. Disse que estava toda desarrumada e que queria fazer isso direito. Marcamos para outra semana: “Vou fazer chapinha”.

Era minha última quarta-feira em Caruaru. Fomos eu, Regina e Thiago, pela manhã, para o território de Malhadas, o mais afastado do centro da cidade e o único onde a Toyota não chega. Para alcançar o posto de saúde é preciso saltar em Toritama e caminhar por uma estrada de barro por alguns quilômetros. Neste dia, para a nossa surpresa, o tempo estava fechado. Chuviscava uma chuva que, a princípio, não nos incomodava. Ao longo da manhã, a chuva apertou, enquanto nós caminhávamos molhados até a borda do território. Para voltar a Toritama e pegar a

Toyota, esperamos – e quase perdemos – um ônibus escolar que traz e leva as crianças da comunidade rural para a escola na cidade. Foi quando chegamos no centro de Toritama que a tempestade desabou. Molhados, cansados e com fome, lembrei a meus companheiros de minha visita a Ozana e Nicoly. Thiago chegou a perguntar se eu não poderia remarcar com elas. Inspirei, desejando fazer exatamente isso. Mas sabia que seria minha última semana e que, além de tudo, tinha um compromisso com elas. Thiago concordou que seria melhor eu ir e decidiu, mesmo exausto, me acompanhar.

Quando chegamos, Nicoly estava linda, de banho tomado, roupas novas e brincos.

Ozana sorriu ao nos ver. Nos abraçamos e ela pôs-se a falar de Nicoly. Quando perguntei se ela toparia ser fotografada naquele dia, ela recusou, sem justificar, mas ganhou um semblante melancólico.

Entreguei-lhe as fotos da visita anterior, impressar em tamanho 15x21cm. Ozana observava as fotos com um misto de tristeza e felicidade, entre um sorriso e um ocasional “Que linda você está nessa, Nicoly”.

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Me pus a fotografar Nicoly e, após um tempo, ouço a voz de sua mãe: “Breno, você quer fotografar nós duas juntas, não é?”. Respondi que gostaria, sim, mas só se ela também quisesse. Que não faria sentido se não fizesse para ela. Ozana foi para o colchão, pegou Nicoly no colo e fizemos as fotos que mais me emocionaram em toda minha estadia em Caruaru. O olhar que uma lançava a outra, o carinho que demonstravam apenas com isso, com esse olhar, me fizeram sentir a felicidade, a honra e a responsabilidade que era estar ali, naquele lugar e naquele momento, podendo fazer parte de alguma coisa que ia além, muito além de mim.

Quando nos despedimos, Ozana perguntou se eu levaria de volta as fotos. Expliquei que iria de volta para o Rio na sexta-feira ou no sábado, mas que pediria para alguém da residência para levá-las. Ela perguntou se eu não voltaria lá. Disse que é claro que voltaria.

Ela sorriu: “É que somos amigos né”. Sorri de volta, “Claro que somos”.

Na minha volta a Caruaru, eu tinha uma missão prioritária. A essa altura, já tinha me decidido por incluir três famílias neste projeto: a de Rose, a de Kátia e a de Nicoly. Eu havia impresso e emoldurado uma fotografia 34

de cada uma dessas famílias para devolver de presente. Foi assim que voltei à casa de Ozana e Nicoly, em março de 2017. À esta altura, Nicoly já havia conseguido ganhar peso.

Regina me contou feliz que havia conseguido suplementos alimentares de graça com um colega médico. Com isso, Nicoly pôde fazer a cirurgia, que foi um sucesso. Ozana também estava diferente: tinha mais uma tatuagem em homenagem a Nicoly, que simulava os batimentos cardíacos da filha.

Entrei, abracei Ozana, cumprimentei Nicoly, dei o presente, conversamos, comentei do projeto, a esta altura com mais corpo.

“Quer dizer que Nicoly vai estar num livro?”, perguntou ela, para a minha surpresa, admirada. Respondi que sim, mas que não sabia qual seria o alcance disso. Podia ser que só meia dúzia de pessoas o vissem e que, de todo jeito, se tomasse proporções maiores, ela seria a primeira a saber. Ozana se perguntou o que as pessoas achariam de Nicoly quando a vissem. Eu disse que ela não precisava se preocupar, que Nicoly era uma menina linda.

“Eu sei”, ela respondeu na mesma hora, como se eu houvesse atestado que o céu era azul.

Fiquei envergonhado. Claro que ela sabia.

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CINECLUBE

O Cineclube Saúde e Cultura no Campo foi a primeira atividade da residência com a qual eu tive contato. Em meu segundo dia em Caruaru, antes de conhecer as famílias, o movimento ou os residentes, fomos, eu e Nathália, ao Assentamento Normandia, para uma reunião de planejamento do cineclube.

Definitivamente, não era o que eu esperava encontrar quando chegasse.

O que me pareceu inusitado, a princípio, tomou forma e sentido à medida que tive contato com o conceito de saúde proposto pela residência, uma saúde entendida de forma ampla e que compreendia projetos como o cineclube como parte de um cuidado. Nesta concepção , cultura, lazer, debate e socialização eram pedaços de um todo integrado.

A iniciativa era uma parceria entre a residência, o coletivo Grão de Saúde no Campo, o MST e com apoio do edital Funcultura, do governo de Pernambuco.

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Do coletivo, tive maior contato com Luiza Maretto e Renata Domingues. O MST estava presente através do setorial de cultura do movimento, identificado especialmente na pessoa de Greisson Izidorio, o Gueu.

As sessões aconteciam dentro do assentamento de Normandia e eram orientadas por temas específicos, sempre ligadas à vida no campo. A partir do tema, a equipe se organizava e realizava uma curadoria para decidir os filmes a serem exibidos. Participei da quarta sessão do cineclube, pela primeira vez sendo realizada na casa da associação de moradores do assentamento. O tema da sessão era água e foram selecionados três curta-metragens, sendo dois nacionais e um boliviano.

Improvisamos um telão com um lençol branco, enchemos um carrinho de mão com sacos de pipoca e, após a sessão, conversamos sobre os filmes e sobre como a questão da água afetava a vida das pessoas presentes. Além dos

assentados, pessoas de outras comunidades também compareceram.

A sessão foi finalizada com uma brincadeira que Luiza propôs. Ela avisou que faríamos chover se seguíssemos os passos dela: primeiro todos deveriam bater com um dedo na palma da mão, depois com dois dedos e assim sucessivamente. Quando percebemos, estávamos todos aplaudindo um temporal de palmas e risadas.

Participar do cineclube colocou algumas coisas em perspectiva para mim. Como a cultura e o lazer podem trazer à tona as questões mais viscerais da realidade para o debate coletivo. Como a saúde está intimamente ligada ao conhecimento e autoconhecimento dessas questões. E como, novamente, rir, se divertir, entrar em contato com o outro são elementos fundamentais de uma produção de cuidado coletivo e individual.

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O grupo de mulheres da comunidade de Queimados de Uruçu começou com um desejo de algumas vizinhas de emagrecer. Elas se reuniram e decidiram pedir ajuda de um nutricionista no posto de saúde de Rafael, que atende a comunidade. Pedro e Tati, o educador físico e a nutricionista da primeira turma da residência, começaram a se reunir com as mulheres e pensar numa rotina de exercícios e uma dieta balanceada. Em pouco tempo, mais mulheres – e um homem – se juntaram ao grupo e este se tornou, para além de um grupo de emagrecimento, um verdadeiro coletivo comunitário. Adotaram um nome oficial: Estar Bem – “para não confundirem com o programa da Globo”, justificou Dona Vera, uma das fundadoras.

Acompanhei Karla, residente veterinária, ao grupo. Ela falaria sobre métodos de conservação e higienização de alimentos. Eu, sem saber o que encontrar, apenas fotografaria.

Enquanto esperávamos as pessoas chegarem, as mulheres conversavam sobre as então recentes declarações do Ministro da Saúde, Ricardo Barros. O ministro havia afirmado que “homem cuida menos da saúde porque trabalha mais”. Irritadas com a afirmação, as mulheres discutiam política e feminismo, ainda que não chamassem assim, em questões como 44

GRUPO DE MULHERES DE QUEIMADOS DE URUÇU a dupla jornada de uma mulher – no trabalho e na casa – e a falta de assistência em casa por parte dos maridos e filhos homens.

Mais tarde, descobri que aquelas vizinhas que conversavam tão animadamente, mal se conheciam antes do grupo. Entendi a relevância daquele agrupamento de pessoas com o objetivo de viver uma vida saudável na criação de um sentimento comunitário comum. Agora, elas se procuravam, se ajudavam e se incentivavam. Foi criada organicamente uma rede de apoio e acolhimento para o viver bem e o aprendizado. Naquele dia, cada uma delas levou um prato de doce ou salgado e, ao final da reunião, cantaram parabéns pelo aniversário de uma das membras.

Meu retorno ao grupo foi com Nathália e Pedro. Eles foram especialmente para tratar de Dona Lourdes, mãe de Dona Vera, dona da casa onde aconteciam as reuniões.

De acordo com sua filha, Dona Lourdes começara a entrar em um estado degenerativo após a morte do marido. Sempre sentada em

sua cadeira de rodas, vi poucas reações dela.

Quando Nathália e Pedro começaram a interagir, experimentar com músicas e sensações, ela esboçou responder. Começou a cantarolar o hino do Brasil e sorrir. Nathália, então, fez uma proposta: “A senhora quer andar, Dona Lourdes?”. Lourdes fez que sim, apesar do rosto preocupado de sua filha. Pedro a ajudou a se levantar da cadeira de rodas, a segurando por trás, pela cintura. Nathália arrastava seus pés para frente, olhando em seus olhos e a incentivando. Dona Lourdes deu três ou quatro passos, talvez seus únicos passos em muitos anos. Sua filha, apreensiva, chorava enquanto tentava auxiliar os residentes. Nathália perguntou se ela gostaria de andar mais um pouco e a senhora, novamente e mais animada, fez que sim. Deram, então mais alguns passos. Quando Dona Lourdes já estava de volta na cadeira de rodas, Vera foi até Pedro e Nathália e os agradeceu, os olhos ainda úmidos.

Ao se despedirem, Dona Lourdes ergueu o braço frágil e mandou-lhes beijos sucessivos.

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ROSEMEIRE

Era a primeira vez que acompanhava Nathália a um território de atuação da residência.

Rosemeire mora no Acampamento Novo Amanhecer, do MST, localizado à margem da BR-104 e sob a área de atuação do posto de saúde de Cachoeira Seca. Lembro de estar nervoso e inseguro. Procurava minhas câmeras na mochila, com ansiedade para começar a fazer fotos. Desisti rapidamente.

Percebi que eu tinha tempo. Percebi que não era assim que eu desejava ou precisava trabalhar. Tempo. Talvez o elemento mais valioso para este trabalho. Segui Nathália, me mantendo tímido e quieto enquanto ela conversava com as famílias.

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O acampamento era recente, havia sido instalado em junho de 2015, pouco mais de um ano da época em que estive lá pela primeira vez. Em sua entrada, uma bandeira do MST no céu e pedras brancas formando as letras do movimento no chão de terra. Uma casa branca, a única casa de tijolos e paredes fixas, foi a primeira coisa que vi quando entramos. Todas as outras residências eram barracas feitas de lona, papelão, plástico e vigas de madeira. Neste dia, a demanda geral dos acampados era por remédios que pudessem ajudá-los com uma disenteria que acometia grande parte do acampamento. Nathália perguntou se as pessoas beberam a água do barreiro, um poço aberto de água turva e

amarelada, por onde passavam animais, localizado nas extremidades do acampamento.

A maioria negou, mas Valquíria, liderança do local, confirmou as suspeitas. Devido à seca que já durava 5 anos, a maior parte da água era privatizada. As famílias que não pudessem pagar, portanto, deveriam se virar com o que tinham. A água do barreiro era usada para o banho, para lavar a roupa, para molhar a terra, só era evitada para o consumo. Até o fim de minha estadia por lá, Nathália e Alessandra, assistente social da residência, tentavam, com a secretaria de saúde do município, conseguir filtros de barro para os acampados, para somar às pastilhas de cloro que eles já recebiam. Não conseguiram.

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A família de Rose morava numa pequena barraca nos fundos do acampamento. Rose ficava numa cadeira de rodas na porta da casa.

Alguns anos atrás, ela sofrera um acidente que, até agora, permanece com algumas questões não respondidas. Mas o que nos foi passado é que uma então amiga dela a empurrou na BR, fazendo com que ela fosse atropelada.

Seja como for, Rose perdeu a capacidade de andar, sofreu atrofia na mão direita e nos pés e teve de fazer uma traqueostomia, o que, junto com as lesões, talvez a tenha tirado a fala.

Junto dela, moravam sua mãe, Dona Josefa, seu pai, Seu Raimundo, sua filha, Gabriela, que devia ter seus sete anos, e seu sobrinho, Marquinhos, mais novo que Gabriela. Sempre presentes também estavam sua cunhada e a filha. Foi a cunhada quem assumiu o papel de cuidadora de Rose.

Quando Nathália entrou sorrindo, Rose sorriu também. Tímido, me apresentei para a família pelo nome e de onde eu vinha, sem revelar minha função. Disse que era amigo de Nath e estava acompanhando seu trabalho e se tinha problema eu estar ali. Como concordaram com minha estadia, fiquei.

Eu nunca tinha visto nada assim. O trabalho que Nathália exercia na Saúde era de uma 52

intimidade e de uma força que me impressionaram. Além dos exercícios nos membros atrofiados, Nathália fazia Rose sorrir, conversar, gargalhar. Dona Josefa, normalmente de cara mais fechada, sorria leve quando Rose gargalhava. Gabi, por sua vez, acompanhava atentamente o trabalho de Nathália com a mãe e, vez ou outra ajudava. Era claro o cuidado que Gabi, tão jovem, tinha com a mãe.

Tão claro quanto o carinho que sua mãe tinha com ela, a beijando e acariciando constantemente. Quando Nathália me introduziu como fotógrafo, eu, ainda sentindo o ambiente, decidi continuar sem fotografar. Estava absorto com aquilo tudo, com toda a confiança, beleza, simplicidade e cuidado daquela relação, a princípio, de trabalho. Dei as câmeras para Nathália e ela fez algumas fotos. Quando nos despedimos, toquei no braço de Rose, agradecendo por deixar que eu ficasse ali e a conhecesse. Ela puxou minha mão e a beijou.

Eu, surpreso e sem jeito, tropecei e beije-lhe a mão desajeitadamente de volta. Não fiz nenhuma fotografia neste dia.

almofada para Rose apoiar os pés na cadeira de rodas. Ela havia percebido que a cadeira estava alta demais para Rose e que, assim, seus pés ficavam suspensos, forçando suas pernas. Rafa e eu fomos até uma loja de estofados e pedimos para fazer espumas no tamanho específico que Nathália pediu. O dono perguntou para o que era e, ao respondermos, decidiu com um sorriso que não cobraria, feliz por estar ajudando de alguma forma. Levamos duas ou três para casa e Nathália arrumou um pano verde para bordar uma capinha para a almofada. Este era um dos improvisos de Nath, na falta de material de trabalho. Ela também produzia munhequeiras a partir de carretéis de plástico usados em costura e uma espuma para aumentar o conforto.

Quando levamos a almofada para Rose, ela fez que não gostou. Nath, entendendo do que se tratava, ofereceu outras opções de cor pra ela e ela sorriu e concordou efusivamente quando o rosa apareceu.

Antes de irmos ao acampamento, Nathália havia nos contado, a mim e a Rafa, seu então companheiro e com quem dividia o apartamento na cidade, que gostaria de fazer uma 53

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Em nossa volta, na semana seguinte, levamos a almofada com capinha cor-de-rosa e já fui com a disposição para fotografar. Foi nesta visita que pude documentar o processo de cuidado com mais confiança. O primeiro aspecto que procurei ressaltar foi o toque. O trabalho de Nathália envolvia profundamente o contato no corpo de Rose, fosse para fazer os exercícios, fosse para massageá-la, fosse para apenas passar intimidade e confiança. A seguir, percebi como fundamental o riso. A sessão era repleta de brincadeiras e piadas, que faziam Rose rir com vontade.

Rose, não podendo falar, evitava ainda assim emitir sons. Em nosso tempo de convivência, praticamente o único som que ouvia de sua boca era sua risada rouca. Gesticulando muito sempre, Rose indicava com o polegar para cima quando aprovava alguma coisa e balançando o indicador quando reprovava. À parte disso, seu rosto era extremamente expressivo.

O terceiro ponto que percebi com clareza no processo da produção de saúde da residência, e que talvez fosse o mais importante para o desenvolvimento do meu trabalho, foi a escuta. Escutar o usuário do sistema público de saúde e suas demandas, mas também sua história, sua personalidade, sua subjetividade.

Entendê-lo para cuidar dele. Escutar Rose era 56

fácil. Seus olhos pareciam dar todas as palavras de uma vez, mesmo que não ditas. Neste dia, quando nos despedimos, pude abraçá-la e beijar-lhe a mão, sem o constrangimento que senti da primeira vez.

Voltamos a nos ver algumas vezes antes de eu voltar para o Rio de Janeiro. Em uma delas, um clima pesado rodeava todo o acampamento. Na madrugada anterior, homens armados haviam invadido o território buscando alguém. Ninguém foi ferido, mas a vulnerabilidade e a insegurança dos acampados ficaram evidentes com esse episódio.

Gabi, normalmente agitada, carinhosa e brincalhona, estava quieta e melancólica com sua chupeta. Observava o trabalho de Nath, não da proximidade costumeira e interessada, mas deitada em sua cama, como se olhando para o nada. Em outro momento, já no fim da minha estadia, houve uma grande chuva que durou um ou dois dias, não o suficiente para molhar o solo para o plantio, mas o bastante para destruir algumas das barracas do acampamento. A de Rose foi uma delas. Na correria, a família se mudou para uma casa um pouco mais estruturada.

A última vez que vi Rose nesta viagem foi quando a residência, junto aos funcionários do posto de saúde de Cachoeira Seca fizeram um mutirão de saúde no Acampamento Novo Amanhecer. O mutirão foi uma grande atividade de integração entre os trabalhadores do posto, os acampados e os residentes. Muitos dos trabalhadores nunca haviam estado no acampamento e muitos acampados ou não estiveram no posto ou não conseguiram ser atendidos. Para chegar do acampamento ao posto era preciso atravessar a BR e andar mais um tanto, coisa nem sempre viável quando havia crianças pequenas, por exemplo. Foi realizada uma grande roda de conversa com todos, que se separou em duas, divididas por gênero, para conversar sobre saúde da mulher e do homem. Depois, uma checagem geral de pressão, glicose e peso, e, por fim, a aplicação de vacina para as crianças. Dentre as atividades planejadas, imprimimos as fotos, algumas feitas por mim, outras por Nathália, para devolvê-las aos acampados. Encontramos um lugar, embaixo de uma árvore, e as penduramos nos galhos. Os acampados chegavam, viam as fotos e, ao final do mutirão, puderam recolhê-las e ficar com elas. Quando devolvi as fotos para Rose, ela se prendeu à que fiz de Gabi. Ficou demorando o olhar ali, sorrindo, 57

admirando sua filha. Perguntei se ela tinha gostado e ela fez que sim, apontando feliz pro retrato. Abraçou a foto e ficou com ela até o fim da atividade.

No mutirão, pude perceber o contraste de minha própria estadia ali. Da primeira vez que fui ao acampamento, de toda a timidez e o receio de estar invadindo um espaço ao qual eu não pertencia, até aquele momento, minha última semana em Caruaru, quando já reconhecia rostos e era reconhecido por eles.

Algumas pessoas me chamavam para fazer fotos delas, outras apenas me cumprimentavam. Não cheguei a conhecer profundamente todas elas, mas foi criada uma familiaridade com o espaço e com os corpos que o populavam. Não à toa, o acampamento era o principal território de atuação de Nathália, quem eu mais acompanhei da residência. Foi também, por consequência, o território onde mais estive presente, exceto, talvez, por Normandia.

Quando nos preparávamos para partir, quis dar um último adeus à Rose. Fomos eu e Thiago, que também a havia conhecido, em sua nova casa. Quando nos abraçamos e nos despedimos, ela deu tchau e sorriu. Falei para ela que estávamos indo de volta para o Rio de Janeiro. Rose mudou de expressão, sua boca começou a tremer e ela fez que não com a ca58

beça. Falamos que tínhamos que ir, mas que o pessoal da residência ia continuar visitando e dando força a eles. Ela assentiu. Nos abraçamos mais uma vez, beijamos as mãos um do outro e nos despedimos.

Quando retornei, em 2017, levei emoldurada a foto que fiz de Rose, Dona Josefa e Gabriela. Era também o contexto da formatura da primeira turma dos residentes e Nath aproveitou meu pedido para irmos ao acampamento para se despedir dos acampados e convidá-los para a cerimônia de formatura.

Chegamos lá no entardecer. As despedidas entre Nathália e os acampados mais próximos foram quase sempre marcadas por muito choro, agradecimentos de ambas as partes e abraços. Quando chegamos na porta da casa de Rose, Gabi estava brincando. Perguntei a ela se lembrava de mim e ela respondeu em um aceno afirmativo com a cabeça. Dei pra ela a fotografia emoldurada e pedi para entregar a sua mãe. “Ela vai gostar”, disse, sorrindo, e correu para dentro de casa. Entramos, eu e Nathália, e Rose e sua família nos receberam. Ela sorria e guardava a fotografia em seu colo. Nos abraçamos, conversamos um pouco e Nath avisou de sua partida. A reação foi imediata: Rose chorou muito, fez repeti-

damente que não com a cabeça.

Tentando consolá-la, Nath falou dos novos residentes que estavam entrando, que eles eram ótimas pessoas. Rose respondia apontando para Nath e, então, apontando enfaticamente para o chão. Demorou um pouco para acalmá-la e, só então, Nathália pôde convidá-la para estar presente na cerimônia de formatura. Rose negou, ainda contrariada, mas acabou concordando. Sorrimos um para o outro e fizemos mais uma fotografia, dessa vez com Nathália.

Antes da formatura começar, Rose chegava no Assentamenteo Normandia. Nos cumprimentamos e nos direcionamos para o salão de cerimônias do centro de formação.

Ela ficou durante toda a cerimônia e, quando os residentes se reuniram para fazer a foto da formatura, Rose estava lá, com sua cadeira de rodas, sorrindo mais uma vez para a lente.

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Kátia No dia anterior ao que conheci Kátia, acompanhei Nathália a um dos assentamentos do MST. Nossa última visita lá foi a um senhor que ela não conhecia, mas que tinha demandas de saúde relacionadas a problemas de varize. Atrás de sua casa havia um grande quintal onde ele plantava. Como falta água na região, o senhor comprava pipa, mas um problema na coluna, somado aos problemas de varize o estavam incapacitando no trabalho. Depois de uma conversa, Nathália voltou ao carro para buscar seu bloco de anotações enquanto permaneci com o senhor na sala da casa. No momento em que Nath saiu pela porta, ele me diz: “Sabe, eu só não me mato porque Deus não permite”. Foi um choque.

Não tenho treinamento na Saúde e não sabia o que fazer com essa informação. Só consegui soltar um tímido “não precisa ser assim”.

“Precisa sim”, ele respondeu, sem pestanejar, “eu não tenho amigos. Todos que se aproximam de mim é por interesse”. Contou então da sua vida. Morava em São Paulo com a ex-mulher, com quem teve dois ou três filhos e, deles, alguns netos. Disse que quando se divorciou quis voltar para sua terra. Comentou 62

que pediu o contato dos filhos, que lhes deram números falsos. Neste momento, deu de ombros: “Tudo bem, melhor assim. Eles lá e eu aqui”. Mas, olhando em volta por sua sala, eu via paredes cobertas de fotografias de sua antiga família. Continuou, dizendo que casou novamente em Caruaru, mas que sua nova esposa morrera atropelada na BR. Fiquei sem palavras. Me senti impotente. Nathália voltou com o bloco. Conversamos, fizemos algumas fotografias, mas, mais para frente, optei por não expô-las no trabalho. Fomos embora, eu ainda abalado com a situação.

Por isso, quando conhecemos Kátia, minha primeira reação foi de choque. Além de eu e Nathália, Thiago, o assistente social carioca, estava conosco. O que nos chamou atenção em seu pequeno barraco no Acampamento Novo Amanhecer foi o enorme fuxico colorido pendurado na parte externa. Quando começamos a conversa com ela, buscando saber suas demandas em relação à saúde, Kátia afirmou, sem hesitar, sua depressão. Comentou de suas crises, seus ímpetos suicidas de se deixar ser atropelada na BR. Estagnei, lembrando do senhor do dia anterior. Junto dela estava Valentina, sua neta, que devia ter pouco menos de dois anos. De pé em seu berço, Valentina chorava bastante. Depois que Nath

e Thiago conferiram a caderneta de saúde da criança de Valentina, houve uma divisão de trabalho automática.

Nathália pegou uma de suas luvas descartáveis e a inflou como a um balão e a fez de brinquedo para distrair Valentina, que, do choro, passou a rir. Thiago se pôs a conversar com Kátia sobre suas questões. Eu, sob autorização de Kátia, fotografava.

Não sei bem como, por quê ou quando foi o estalo mas, em algum momento, decidi que, apesar de tudo, poderia contribuir. Me aproximei. Kátia falava de sua depressão, de como não era escutada por membros da família e pessoas próximas, que relevavam a questão, de como desejava se matar. Thiago perguntou o que a impedia, o que a mantinha vivendo.

Ela olhou para Valentina com um sorriso: “Minha neta”. Perguntei o que mais ela gostava de fazer, além de cuidar da neta. Kátia disse que costurava. Comentamos que vimos o fuxico na entrada de sua casa e o elogiamos.

Ela enrubesceu. Continuamos conversando, perguntando, ouvindo. Foi quando veio o estalo que se transformaria neste trabalho.

Eu não tinha formação na Saúde, não tinha as ferramentas teóricas e práticas que meus companheiros tinham. Mas minha ferramenta, meu instrumento, era minha câmera. E se 63

era disso que eu dispunha e o que eu tinha a oferecer, era isso o que eu utilizaria.

“Kátia, o que você acha de tirar uma foto com sua neta?”. Ela pareceu surpresa com o convite, mas abriu um sorriso largo “Ah, eu quero sim”. Pedi para ela escolher o lugar que mais gostava na casa, onde se sentia melhor.

Para meu pavor, ela foi para o local mais escuro, onde a luz externa mal chegava, uma pequena sala de TV cheia de fotos de família “Aqui, com meus outros netos”. Com Valentina no colo, Kátia pegou as fotografias dos netos na mão. Aumentei o ISO da câmera e começamos a fazer as imagens.

Perguntei se ela não gostaria de uma foto junto ao fuxico na parte externa da casa. Ela quis. Fomos para fora e fizemos mais fotografias. Quando nos despedimos, pedi um abraço, que ela aceitou ainda sorrindo. Saímos da casa de Kátia felizes. Diferente da impotência que senti ao sair da casa do senhor no dia anterior, senti que, junto de meus companheiros, pude fazer algo com Kátia. Em suas fotografias, ela aparece sorrindo. É claro que não sou ingênuo de pensar que mudamos profundamente a vida dela com esse dia, com essas imagens. Sei que não tiramos Kátia de sua depressão. Mas minha esperança é de que, ao receber as fotos e olhar para elas, Kátia possa 64

se lembrar de que é possível sorrir, de que é possível ter momentos felizes e, com isso, ter sua dor amenizada. Apesar de sua depressão, tendo a acreditar na sinceridade daqueles instantes e do conforto e felicidade deles. Essa é a verdade de suas imagens. Não mascaram uma realidade de sua depressão, mas produzem outra onde a dor se tornou secundária.

Quando a residência fez o mutirão de saúde no acampamento, levei as fotos impressas para devolvê-las a ela. Queria muito revê-la e saber como as receberia. Infelizmente, era minha última semana em Caruaru e Kátia não estava em casa. No entanto, sua irmã, Valquíria, uma das lideranças do acampamento, estava. Pedi a ela se poderia deixar as fotos com com Kátia, ao que ela confirmou.

Perguntei também se Kátia sabia ler, pois queria deixar um recado para ela. Valquíria disse que não, mas que eu podia escrever que ela leria para a irmã. Agradeci e escrevi nas costas de uma das fotos: “Que essas fotos te lembrem da força que você já tem e da alegria de viver”.

Meu último encontro com Kátia foi corrido e curto. Em meu retorno a Caruaru, quando estivemos, eu e Nathália, no acampamento, pedi para passarmos na casa dela. Havia im-

presso e emoldurado sua fotografia de frente ao fuxico. Nos recebeu com uma porção de crianças à sua volta. Entre elas, reconheci Valentina, já bem mais crescida do que quando a conheci. Perguntei a Kátia se ela lembrava de mim. Ela fez que sim e me agradeceu pelas fotos. Agradeci de volta e entreguei-lhe a foto emoldurada. Ela a observou com um sorriso.

Agradeceu de novo. Foi rápido. Muito mais rápido do que eu gostaria. Queria perguntar-lhe de sua vida, de Valentina, talvez fazer mais fotografias com ela. Mas não senti este espaço naquele momento. Se eu pudesse ter ficado mais tempo neste retorno, certamente voltaria a sua casa e tentaria novamente. É difícil dizer o impacto das fotografias na vida de uma pessoa. Talvez, fosse mais certo falar sobre os encontros. No fim, as fotografias são apenas a cristalização desses encontros. Não posso afirmar que nosso encontro marcou Kátia tanto quanto me marcou. Nem que as fotos que fizemos juntos são vistas com o mesmo carinho. Muito menos que o objetivo que tinha na minha mente se concretizou: das fotografias servirem para um alívio da dor da depressão. Mas posso afirmar, quase sem relutância, que independente do que foi feito dele, nosso encontro foi um que, no dia, nos deixou felizes por ter acontecido.

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a fotografia como ferramenta de cuidado Desde a formalização de sua invenção, a fotografia tem seu sentido disputado. Inicialmente era vista como uma “janela para o real”, isto é, a reprodução exata da realidade ou, em outras palavras, como se a imagem produzida pela fotografia fosse imparcial e objetiva, uma prova irrefutável de determinado acontecimento. Embora esta concepção tenha caído por terra, ela ainda está muito presente em um senso comum. É importante atestar, portanto, que há intencionalidade no ato de fotografar. E esta intenção, entre outras coisas, orientará como a imagem será produzida. O clique fotográfico é uma ação mediada. As reações físico-químicas ou eletrônicas do dispositivo fotográfico (a reação da sensibilização do filme fotográfico ou do sensor eletrônico pela luz) são sua consequeência. Antes disso, o clique é orientado pelo olhar do fotógrafo, o recorte óptico que ele dá à cena a sua frente, o sentido que sua subjetividade lhe impõe, etc. Não 68

dependendo apenas do fotógrafo, no entanto, a imagem conta com incontáveis variáveis para sua produção. O contexto fotografado, as pessoas diante da câmera, sua relação com o operador do aparelho e com o meio onde se encontram, suas próprias subjetividades… O ato de fotografar jamais foi e jamais será uma produção imagética individualizada. Embora possa haver apenas um fotógrafo na cena e, ainda que não existam pessoas diante da câmera, os elementos que compõem a imagem têm contexto, história e existência que transcendem o fotógrafo. A documentação é uma relação de mão-dupla entre os sentidos experimentados e vividos do que há atrás e diante da câmera.

Pensando nisso, concluo que há diferentes formas de produção de imagens fotográficas.

Consequentemente, há também diferentes formas estéticas de cristalização dessa produção; isto é, há diferentes formas de fotografia.

Do ponto de vista da fotografia de pessoas,

faço uma divisão que me ajudará a seguir o raciocínio, embora a reconheça arbitrária e não respeitando as muitas variáveis antes comentadas.

Penso que há um tipo de fotografia que, em seu modo de produção, se apropria da imagem do outro. Esta é uma fotografia de uma tendência autoritária e que tem uma certa violência em sua própria gênese produtiva.

Seja o ato de invadir a privacidade de alguém ou de impor um sentido próprio à imagem de outro, há aí uma apropriação, típica de uma “foto roubada”, a falta do consentimento em relação àquilo que nos é mais pessoal e íntimo, nossa própria imagem. A este tipo de fotografia, chamo de fotografia de violência.

O outro tipo me chega através de trabalhos como os de João Roberto Ripper, Nana Moraes, Ratão Diniz, entre outros. Colocando nas palavras de Ripper, ele pensa a fotografia como um “elo de bem querer” entre o fotografado e quem receberá a foto. Para Ripper, 69

fotógrafo humanista com uma história de documentação das lutas de povos tradicionais, trabalhadores e movimentos sociais, tão importante quanto a denúncia é a evidenciação da beleza. É ela o que todos temos em comum. A beleza de um sorriso, de um amor, do riso. Nas palavras da fotógrafa e educadora, Tatiana Altberg, se trata de “mostrar a potência ao invés da falta”. Ao meu ver, a fotografia que ela, Ripper e outros produzem é uma fotografia de cuidado. Esta consiste na construção de uma imagem em conjunto com o fotografado, que participa ativamente da produção fotográfica. Uma imagem que o represente, de alguma forma.

Embora ressalte, novamente, que estas duas categorias colocadas, de fotografia de violência e de cuidado, não são estanques, as vejo mais como orientações de um fazer fotográfico e que variarão em sua produção de acordo com a situação específica encontrada pelo fotógrafo. Considero relevante esta distinção, sobretudo quando se trata de uma documentação de pessoas em situação de opressão ou grande restrição. A violência encontrada no cotidiano é mais do que evidente. As pessoas, no entanto, são mais do que a violência que elas sofrem. Não evidenciar 70

estes outros aspectos da natureza humana e da vivência de cada um, não entender a história de vida daquela pessoa diante da câmera e sua capacidade de ter e enxergar beleza na vida é correr o risco de reduzi-la a uma situação, de estigmatizá-la. Talvez mais que isso, pode significar violentar as pessoas em seu momento mais frágil. Dizer que há beleza é também afirmar a humanidade de cada um, é potencializar a empatia, é tentar ser um elo de bem querer. É importante ressaltar a necessidade do tempo de permanência para a produção de uma fotografia de cuidado. Esta é resultado direto da relação de confiança e afeto entre fotógrafo e fotografado e laços são criados apenas na construção de uma convivência. E isso contrasta com o modelo em geral praticado pelo fotojornalismo, que preza por uma dinamicidade maior e um imediatismo na produção de imagens. A fotografia de cuidado se forma a partir da escuta, enquanto a de violência impõe, muitas vezes em busca de algo previamente definido ao chegar a campo. Fotografar com cuidado não se trata de buscar a verdade, mas de entender que há verdades possíveis, mesmo para a documentação.

A fotografia de cuidado possibilita uma criação coletiva da imagem, dando voz para

o fotografado decidir não apenas como deseja ser visto pelos outros mas, talvez mais importante, como deseja ser visto por si. Está claro para mim que as fotografias e os processos de produzí-las por si só não transformam profundamente uma realidade. Mas sei que, quando há troca e a criação de laços de afeto, há a chance destes serem cristalizados nas imagens.

Para o retratado, revê-las, portanto, é retornar a esses sentimentos. Revê-las é autorreferenciar-se, não da forma que se é, como se fosse estático, mas da forma que se pode e consegue ser, com a beleza e humanidade de cada rosto retratado. É lembrar de que é possível ser quem e como se quer.

Durante meu período em Caruaru, embora houvesse a influência de trabalhos como o de Ripper, foram as circunstâncias que me obrigaram a buscar uma produção fotográfica baseada no cuidado. Acompanhar o trabalho da Saúde, conviver e escutar as pessoas, me impuseram isto. Não acredito que teria sido possível fazer este trabalho sem essa orientação e, por mais que não seja possível para mim mensurar o quanto fui bem sucedido nesta empreitada, deixo compartilhadas aqui as reflexões de minha jornada.

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Agradeço a todas e todos que trouxeram o acaso para meu caminho.

A todas e todos que me receberam com o coração e portas abertos.

A todas e todos que construíram e construirão este e muitos outros projetos.

Em especial Aos meus pais, Leilá e Valter, pelo apoio e amor incondicional. Às minhas irmãs de sangue, Fernanda, Renata e Ana Paula e meus lindos sobrinhos. Às minhas irmãs de alma, Mariana e Jéssica, e a tudo o que vocês me doaram - até o uai mineiro. Às companheiras e companheiros de Caruaru, todos vocês tornaram toda essa experiência absolutamente acolhedora e deliciosa.

A Nath e Rafa, pelos anos de acolhimento e carinho.

A Luiza, por tanta coisa ensinada.

Ao mestre Dante Gastaldoni, por todas as portas abertas e todo o conhecimento passado.

A João Roberto Ripper, Marizilda Cruppe, Ratão Diniz, Nana Moraes e todos os fotógrafos e profissionais da imagem que trabalham pela sensibilidade, luta e humanidade. Obrigado pela inspiração.

A Rose, pelo sorriso.

A Ozana e Nicoly, pela confiança e força.

A Kátia, pelo abraço.

A Joaquim, pela flor.

Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, pela Justiça Histórica, que está e sempre esteve de seu lado. E por toda a luta que vamos precisar enfrentar nesses anos que já chegaram.

A todos os trabalhadores do campo e da Saúde que acreditam que uma forma de cuidado humanizada é possível e necessária.

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