terra rasgada

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OBRAS PRODUZIDAS COM RECURSOS DO PROAC EDITAIS 13/2021
APOIO
REALIZAÇÃO
PRODUÇÃO

DANI SHIROZONO JEFF BARBATO LUCAS SOUZA MARÍLIA SCARABELLO

curadoria

Allan Yzumizawa

São Paulo, 2023

A exposição terra rasgada reúne Dani Shirozono, Jeff Barbato, Lucas Souza e Marília Scarabello, quatro artistas residentes de Jundiaí e/ou Sorocaba que apresentam proposições artísticas que discutem o conflito e a violência contidos no processo de urbanização a partir do desenvolvimento econômico nas cidades do interior paulista.

Nas últimas décadas, o crescimento urbano do interior de São Paulo, trouxe consequências como o aumento da especulação imobiliária, danos ambientais e desigualdade social. Para o pensador Milton Santos, é impossível refletir sobre o espaço sem que se pense a técnica e as ações humanas exercidas durante a história. Dessa forma o pensador usa o termo tecnoesfera, como conceito que define toda a estrutura de objetos técnicos desenvolvidos pela humanidade em um dado espaço e tempo. O desenvolvimento da tecnoesfera ao longo dos anos foi realizado a partir de uma lógica colonial e desenvolvimentista, da qual enxerga a terra como espaço de apropriação. Ao utilizar

recursos minerais para a produção de produtos e bens, esse pensamento vertical cria feridas cada vez mais profundas no corpo da terra, rasgos na forma de bens tecnológicos disfarçados em estruturas que favorecem o desenvolvimento econômico de uma região.

Dessa forma, a exposição terra rasgada, elucida este território de conflito questionando sobre a forma como lidamos com o espaço e com a sociedade. Convida cada espectadore a pensar sobre as possíveis curas das feridas e rasgos contidos na terra, pensar em formas de criar redes de conexão para a troca e a produção de um espaço saudável, um território que não seja hostil mas que possa nos servir como abrigo que zele pelo nosso corpo, pela ética e pela nossa existência.

ALLAN YZUMIZAWA curador

ALLAN YZUMIZAWA

(Sorocaba, 1993) Reside em Sorocaba - SP. É Mestre em Artes Visuais pelo Programa de PósGraduação da PPGAV - UNICAMP. Possui interesse nas áreas de Curadoria, teoria crítica e estudos pós-coloniais.

Na maioria dos trabalhos apresentados nesta exposição, temos como elemento formal de destaque, a linha. No caso da artista Marília Scarabello, a artista insere este elemento para discutir a violência contida nos processos de urbanização. A linha de cerol que fere trazida em Litoral (2019), é a mesma linha que demarca e delimita o território nas formas geométricas apresentadas em Espaços segregados (2019-2020). O problema da demarcação territorial aparece de outra forma em Parcelamento de solo #1. Neste trabalho, a artista pinta com uma tinta marrom à base de terra sobre cada papel, uma forma geométrica que representa um fragmento de área de sua casa, seguida por um código de barra logo abaixo. Cada um desses códigos traz a informação da parcela do IPTU

(Imposto Predial e Territorial Urbano) de sua residência. Dessa forma, ao comprar o trabalho, a pessoa pagará uma parcela da despesa de moradia da artista. Para a ocasião da exposição, Scarabello já havia vendido 4 parcelas, neste caso, a montagem do trabalho foi apresentar os restantes, e trazer no lugar das que foram vendidas, uma etiqueta escrita “parcela vendida”. Parcelamento de solo #1 (2020) discute de maneira direta todas questões que envolvem o problema da moradia em grandes centros urbanos. Os altos preços resultantes de especulações imobiliárias, dos grandes faturamentos de empreiteiras, nas condenações e repressões de lutas por moradia, e do processo de gentrificação nos centros urbanos como elemento responsável em acelerar o aumento do surgimento de bairros periféricos. A linha também é recorrente nos trabalhos de Jeff Barbato. Contudo, ela se apresenta a partir de uma pesquisa sobre o lábio leporino – fissura na boca que surge a partir da formação durante o desenvolvimento do embrião de mamíferos. Barbato busca, portanto, investigar a forma da fissura como maneira de estabelecer uma conexão do corpo com a paisagem. Como exemplo, temos o trabalho uma inesgotável escavação (2022), composta por uma linha

feita de ferro que representa a estrada de trem sorocabana. Este elemento é chumbado numa fissura na placa de cimento de modo que encontramos 6 módulos ligados pelo desenho da estrada de ferro. Neste caso, a mesma linha que é responsável por conectar estas placas, configura-se como uma fissura que as corta. Há uma presença da ação do tempo no trabalho, de acordo com o elemento do ferro que aos poucos, vai enferrujando e modificando sua cor e textura, como nas monotipias céu da boca (2022) onde o ferro também é induzido a um processo de oxidação. Dessa forma, os trabalhos raio rio #3 (2022) e uma inesgotável escavação (2022) apresentam a linha como elemento ambíguo e paradoxal: uma fissura violenta que corta e separa dois elementos, ao mesmo tempo em que é responsável por unir dois espaços distintos. Além da linha, outro componente recorrente na exposição terra rasgada é o ferro, como podemos observar na instalação Paisagem forjada (2022), de Dani Shirozono. A artista elabora, a partir de pó de ferro, uma pequena montanha sobre uma superfície reta. Aqui, a paisagem é apresentada como uma construção humana, sobretudo a partir do aspecto do desenvolvimento e de seu olhar como

recurso econômico. A possibilidade de modelar, e de deslocar o pó de ferro, nos indica esse aspecto mole da paisagem, de forma que evidencia como o olhar ocidental lida com o território e suas respectivas consequências ambientais. Já no trabalho Em trânsito (2020), Shirozono traz a representação de uma paisagem por meio da técnica de nanquim e do uso da folha de ouro. A artista discute as questões que envolvem o espaço e o deslocamento, elementos que também aparecem em De passagem (2019-2022), uma série de pinturas em nanquim e parafina composta por 12 peças das quais se organizam em forma de colunas e fileiras na parede do espaço expositivo. Nesta organização, a artista inclui alguns espaços vazios dentro dessas colunas e fileiras das quais são responsáveis em gerar uma movimentação no olhar du espectadore. A folha de ouro é o elemento que também se apresenta em destaque na instalação Não há ouro aqui (2022) de Lucas Souza. O trabalho é composto por esculturas em argila com folhas de ouro enterradas em terra preta. A ironia do título indica, de certa forma, os aspectos da constituição histórica do nosso país por meio dos movimentos das bandeiras das quais almejam adentrar pelo Brasil em busca de ouro ou outros

minérios. Esse movimento teve muitas consequências sociais e culturais por conta da mineração, entre outras extrações em áreas de grande densidade florestas. Somado a esses problemas ambientais, temos também uma questão cultural dos povos que viviam na mata. Os povos indígenas e os caboclos, além de negros alforriados. Os conhecimentos da mata, aos poucos foram deixando de existir gerando um etnocídio destes povos, que aos poucos foram sendo fagocitados pela lógica dos centros urbanos a serem desenvolvidos. Portanto, as formas orgânicas de cerâmicas realizadas por Lucas Souza em Arcabouço (2022) e em Mensuração de Operações Intuitivas

(2022) adquirem um novo significado na instalação Não há ouro aqui (2022): são corpos que vêm da terra, e que ao mesmo tempo foram violentados. Dessa forma, a partir da reunião destes trabalhos, a exposição Terra Rasgada elucida o território de conflito questionando sobre a forma como lidamos com o espaço e com a sociedade. Denuncia a forma como o processo de dominação da paisagem foi responsável em trazer tanta desigualdade entre a sociedade e tantos problemas ambientais que estamos enfrentando e dos quais iremos enfrentar cada vez mais.

Portanto, a urgência da exposição se dá ao convite em cada espectadore a pensar sobre as possíveis curas das feridas e rasgos contidos na terra, pensar em formas de criar redes de conexão para a troca e a produção de um espaço saudável, um território que não seja hostil mas que possa nos servir como abrigo que zele pelo nosso corpo, pela ética e pela nossa existência.

DANI SHIROZONO

(Viçosa - MG, 1989) Reside em Jundiaí - SP. Mestranda em Poéticas Visuais pela ECA-USP. Graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (2014), participa de projetos na área e de exposições desde 2011.

A escassez de recursos, o clima, a ganância, o conflito motivaram os constantes deslocamentos da humanidade. O trânsito vivido por tantos também motivou meus ancestrais e sinalizou minha trajetória. Desde cedo acompanhei os relevos do trajeto São Paulo-Minas Gerais, mas também viajei por outro caminho invisível, o que foi trazido por meus antecessores que atravessaram o Oceano Pacífico e me deixaram marcas fenotípicas e culturais. A partir desses movimentos e das noções de paisagem, fronteira, fluxo e pertencimento surgem as inquietações que se desdobram em meus trabalhos.

Dessa forma, ao me debruçar sobre o projeto terra rasgada, olhei para os diversos caminhos que se encontram nesse emaranhado de histórias sobre os deslocamentos. Percebi que o surgimento das cidades do interior do estado de São

Paulo também carregava os vestígios de um trânsito marcado por questões caras, sobretudo, aos povos indígenas e ao meio ambiente. Questões que atravessam nossa individualidade mas, principalmente, nossa coletividade.

A partir dessas reflexões, Paisagem Forjada foi realizada como obra inédita para o projeto. Um relevo esculpido em gesso, pintado e finalizado com 20 kg de pó de ferro – material que é recolhido como resíduo dos processos de serralheria e que, aqui, retorna ao seu estado inicial. Paisagem Forjada retoma o início da exploração dos recursos naturais e do extermínio da população indígena na região da cidade de Sorocaba, quando, no século XVI, era um ponto de convergência de várias etnias indígenas. Por ser frequentada e conhecida, os bandeirantes logo alcançaram o território. Buscavam ouro, mas encontraram apenas o minério de ferro. Apesar da frustração inicial, isso não impediu que, posteriormente, se instalasse ali a primeira fundição de ferro do Brasil e que a malha ferroviária chegasse à cidade. Todas essas transformações, regidas por uma ótica ambiciosa sobre a natureza, transformaram significativamente a paisagem e a relação das pessoas com o seu entorno.

Já os trabalhos De Passagem e Em Trânsito

lançam um olhar sobre a paisagem criada e modificada pelo ser humano. De Passagem traz 12 módulos de relevos longínquos, cobertos pela fumaça fina da neblina –simulada pela parafina derretida que é despejada sobre a pintura de nanquim em papel –, de lugares não vistos ou vividos, mas reconhecíveis. Assim, a disposição dos trabalhos cria um jogo visual que incita quem observa a completar as lacunas deixadas propositalmente. Já Em Trânsito apresenta uma longa silhueta de montanha dividida e emoldurada em duas partes para uma sensação de continuidade. Sobre o relevo, foi aplicado um material que simula a folha de ouro criando novos recortes e pequenos pontos de luz sobre o fundo escuro do papel. Assim como os bandeirantes se frustraram ao encontrar ferro em vez de ouro na região de Sorocaba do século XVI, enganados pelo brilho da pirita, o trabalho provoca ilusão e frustração sobre o uso desse material tão caro para a história dos deslocamentos em nosso país.

JEFF BARBATO

(São Bernardo do Campo - SP, 1990) Reside em Sorocaba - SP. Graduado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho“ (2019), participa de projetos na área e de exposições desde 2016.

“Se o corpo é tanto alvo de poder como ator principal de todas as utopias, como nos diz Michel Foucault, para Barbato ele é alvo de questionamentos e percepções. As imperfeições e incompletudes o levam constantemente a lugares bastante iluminados, pois de cada fissura escapa a luz, de cada rasgo crescem possibilidades. O menino da boca rachada, “tão sem boca, tão sem lábios, tão sem fala compreensível” cresceu na procura de outras maneiras de perceber as transformações, de conviver com a diferença e fazer dela uma busca por respeito e acolhimento. As palavras de Conceição Evaristo tocaram fundo em sua necessidade de deixar vir à tona toda a dor interna. Sua poética nasce do corpo, mas caminha por veredas mais complexas. Como rios que separam terras e raios que abrem fendas, a obra de Barbato busca mapear estruturas rachadas. Permeando

seus múltiplos trabalhos encontramos a narrativa pessoal trazendo a simbologia do corpo com fissura, o estigma desses corpos marcados pela discriminação e preconceitos.” (Isabel Portella, 2022)¹. Ao pensar questões urgentes relativas à temática de terra rasgada, como o processo de gentrificação, desigualdade social, exploração desenfreada de recursos naturais, violência urbana e a crescente especulação imobiliária no interior do estado de São Paulo, resolvi buscar referência primeiramente estudando uma parcela do que se sabe sobre a história de Sorocaba e em seguida, identificar possíveis fissuras nessa história. A partir disso, chego à história contada sobre o rasgo deixado pela linha férrea Sorocabana, em um cenário de extrema violência, sangue derramado e trabalho escravo de povos originários (indígenas) e também de imigrantes. Como uma fissura que rasga o estado, a linha férrea é uma crescente de poder e abandono, por isso, uso seu trajeto como referência para as fissuras-linhas encontradas nas obras produzidas para este projeto: Abundantes em Veios de Ferro, Raio R_io e Uma Inesgotável Escavação. Em Abundantes em Veios de Ferro cavo no concreto fissuras que

conectam um fragmento ao outro, quando espalhados pelo chão e unidos pela fissura formam o desenho do trajeto da linha férrea Sorocabana, com referência no mapa ferroviário de 1898 da Companhia União Sorocabana e Ituana; São Paulo Railway Comp. Uma Inesgotável Escavação começo por processos digitais, utilizando o open street map para percorrer o trajeto da linha férrea Sorocabana nos limites do município de Sorocaba e a partir disso, desenho o trajeto em software 3D. Com o auxílio de uma máquina CNC a laser recorto-o em aço carbono de 5mm dividindo-o em 6 fragmentos. A posteriori cada fragmento de aço é chumbado em uma placa de concreto de 50x50cm e induzido a um processo de oxidação que não cessa. A peça de aço enferruja como a linha férrea até sumir e deixar apenas o rasgo no concreto. Nos trabalhos de monotipia Céu da Boca o processo de oxidação do pó de aço entrega formas orgânicas que lembram meu próprio céu da boca fissurado e pedaços de corpos dilacerados.

Em Raio R_io, a fissura-linha, cria a ilusão de separação e união, espelhados, os percursos em aço e o vazado no concreto apresentam a fissura como possibilidade imagética de um raio e rio. Aquele que corta o céu e aquele que une dois grandes

pedaços de terra. Ao olhar para os fragmentos de concreto alinhados no chão pela sua fissura, fica perceptível minha referência ao Cretto di Burri², no entanto minha conexão com fissuras vai além do tremor da terra, e do aparato estético, ela passa por minha carne e atravessa a minha existência nas marcas de vida cravadas em meu corpo.

¹Isabel Sanson Portella: Crítica e curadora da Residência Demonstra em maio de 2022. ²Cretto di Burri: Alberto Burri (1915-1995), foi um artista italiano precursor da chamada arte povera. Entre 19841989 criou sua famosa grande instalação na cidadela de Gibellina, na Sicília, denominada Cretto di Burri.

LUCAS SOUZA

(Guarulhos - SP, 1991) Reside em Jundiaí - SP. Graduado em Artes Visuais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2018), participa de projetos na área e de exposições desde 2016.

Corpo, peso e forma sempre foram questões estudadas no meu processo criativo. Atualmente venho trabalhando bastante com o tridimensional e seus desdobramentos ao se transformarem em outros trabalhos sejam em gravuras,

fotografias e até investigando a instalação como suporte criativo. O corpo tratado aqui é o que chamo de “Anatomia Inventada”, pois este corpo que eu crio ao finalizar uma obra não é aquele que estamos acostumados a entender como corpo, mas sim uma forma orgânica que nasce no meu inconsciente e se transforma em matéria quando crio pequenas esculturas em argila como as da série Arcabouço (20192022), pesquisa em constante produção. A argila é a matéria mais utilizada durante a construção dos meus trabalhos, matéria essa que me possibilita trabalhar com questionamentos acerca da forma, peso e mensuração de operações como amassar, torcer e rasgar a argila, vista nos trabalhos Mensuração de Operações Intuitivas (2022). A exposição terra rasgada surgiu da urgência em apresentar como o processo de gentrificação e exploração de recursos naturais, especulação imobiliária recorrente no interior do estado de São Paulo são rasgos violentos na vida urbana. A partir desses questionamentos, comecei a minha pesquisa acerca da construção da cidade de Sorocaba e logo em seguida, buscar entender os rasgos históricos que nos levou a tudo o que temos hoje.

A obra inédita nomeada como Não Há Ouro Aqui (2022) partiu da investigação sobre a

construção da cidade de Sorocaba através do tensionamento entre território + corpo, questões norteadoras da minha pesquisa como artista visual. No século XVI, Araçoiaba da Serra (agora município de Sorocaba) era uma região de centralização de várias etnias indígenas e com a chegada dos movimentos das bandeiras das quais almejam adentrar pelo Brasil em busca de ouro e outros minérios iniciou-se naquela época a exploração de recursos naturais e consequentemente o apagamento dos povos que ali habitavam. Os bandeirantes que buscavam ouro, não o encontra, mas vê que a região possui minério de ferro e desenvolve os primeiros fornos para queima deste material dando origem mais adiante à primeira fábrica de fundição de ferro no Brasil (Fundição Ipanema) onde iniciaram-se os primeiros meios de comercialização na região. A instalação Não Há Ouro Aqui (2022) busca resgatar o contexto acerca da memória apagada. É muito fácil encontrar relatos na internet sobre a modernização da economia durante a exploração de recursos nesse período histórico da região de Sorocaba, mas pouco é abordado sobre a memória de um território que já havia sido desbravado antes da chegada dos bandeirantes, que resulta neste apagamento na história. As

esculturas revestidas de um ouro falso e enterradas na terra escura, não retratam os valiosos objetos de troca que deram início à comercialização na época, mas representam o corpo-território que foi invadido, rasgado e apagado.

MARÍLIA SCARABELLO

(Jundiaí - SP, 1982) Reside em Jundiaí - SP. Mestra em Artes Visuais pela UNICAMP, especializada em Cenografia Teatral pelo Espaço Cenográfico e Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, participa de projetos na área e de exposições desde 2013.

Terra é pele | Esta fina camada que envolve nosso planeta é sobre onde efetivamente podemos estar. Dividir, rasgar, cindir, abrir, perfurar, parcelar, segregar, demarcar, organizar, invadir, roubar, ocupar são alguns dos verbos que nós conjugamos o tempo todo sobre ela. A forma de conjugar estes verbos determina o seu destino e o nosso. Minha pesquisa artística se debruça sobre este assunto com vigor desde 2017 e traz consigo um lastro razoável da minha formação e experiência enquanto arquiteta e urbanista, ofício que ainda exerço.

O projeto terra rasgada vem ao encontro deste meu fazer, visto que discute a forma de ocupação desta terra, com um olhar para o interior paulista, para a formação destas cidades que hoje persistem como objetos de disputas de poder, tensões que envolvem o mercado e que são potencializadas por todos os aspectos que caracterizam um país com forte e crescente desigualdade social. Parcelamento de Solo #1, trabalho realizado durante a pandemia, lida com os aspectos de mercado que atravessam a terra que ocupamos. Imprimi 11 códigos de barra do meu carnê de IPTU de 2020 em 11 folhas de papel para aquarela (códigos da parcela única + as 10 parcelas). Pintei 1/10 da área da minha casa na época em cada uma das 10 folhas. Na folha maior, referente à parcela única, pintei toda a área da minha casa. Parcelar é um termo que na arquitetura significa dividir a terra em frações menores e ao mesmo tempo pode significar pagar algo em muitas vezes. O trabalho dialoga com isso, transitando entre o valor relativo do direito do uso da terra e o valor de uma obra de arte, uma vez que os códigos de barras podem ser lidos com qualquer aparelho celular. Neste sentido, ao vender algumas das parcelas ao longo dos últimos meses, entendi que uma camada

nova do trabalho surgia, fazendo dele um novo conjunto a cada venda, tensionando ainda mais as questões por ele colocadas. Em Espaços Segregados eu lido com a linha chilena, a versão industrializada da linha de cerol, clandestina e ainda mais perigosa, para traçar fronteiras nem sempre demarcadas oficialmente, mas cortantes, que dividem e desenham territórios urbanos pelos quais meu corpo circula ou atravessa. Há algo da categoria do não dito permeando estas bordas, como se a cidade, de alguma maneira, tentasse ignorar estas tensões, invisibilizando-as. Com o uso de alfinetes e da linha, transfiro os desenhos encontrados através da experiência do meu corpo pelo espaço urbano para chapas de compensado onde simulo a representação gráfica de um mapa de céu. Crio, portanto, constelações de violências. A linha chilena traz a informação do que é violento ao mesmo tempo que, no ambiente urbano, é potencialmente invisível. Litoral se iniciou a partir da coleta de imagens na internet que registram cortes e ferimentos no pescoço causados pela linha de cerol ou linha chilena. As imagens foram editadas de modo a retirar rostos e cor, buscando tornar a marca/linha do corte seu sujeito. O que se vê na sucessão de imagens de cortes em pescoços de

desconhecidos é a construção de uma nova linha, sinuosa, que denuncia a violência em um território, onde percorrêlo, cruzando seus limites ou fronteiras estabelecidas é necessariamente assumir riscos. A linha torna-se metáfora desta tensão social e urbana, das crises em nome de poder que deixa marcas perenes nas sociedades. Litoral apresenta a pele rasgada.

DANI SHIROZONO

Viçosa - MG, 1989. Vive em Jundiaí - SP.

FOTO: João Cazzaniga

DE PASSAGEM

nanquim, papel, mdf e parafina

22 x 22 cm (cada)

2019-22

JEFF BARBATO São Bernardo do Campo - SP, 1990. Vive em Sorocaba - SP. FOTO: Ana Helena Lima

ABUNDANTES EM VEIOS DE FERRO políptico com 24 fragmentos: concreto, malha de aço e plastilina 23 x 23 x 2 cm (cada) 2022

LUCAS SOUZA

Guarulhos - SP, 1991. Vive em Jundiaí - SP.

FOTO: João Cazzaniga

MENSURAÇÃO DE OPERAÇÕES INTUITIVAS #2

impressão em papel 300g e anotação com máquina de escrever sobre papel milimetrado 30 x 30 x 0,6 cm (cada)

2022

LUCAS SOUZA

Guarulhos - SP, 1991. Vive em Jundiaí - SP.

FOTO: João Cazzaniga

ARCABOUÇO 25 A 33 (série) argila branca sem queima dimensões variadas 2019-22

MARÍLIA SCARABELLO

Jundiaí - SP, 1982. Vive em Jundiaí - SP.

FOTO: João Cazzaniga

ESPAÇOS SEGREGADOS

compensado cru, tinta acrílica, linha chilena e alfinetes

ø31cm x 1,5cm (cada)

2019-20

Projeto realizado em 2022 com recursos do ProAC Editais 13/2021 de Exposições Inéditas nas dependências do Espaço Marco do Valle que agora circula na Biblioteca Campus Sorocaba da UFSCar.

terra rasgada é um projeto fruto da parceria entre eu e minha amiga e também artista Dani Shirozono. A partir dessa parceria convidamos Lucas Souza, Marília Scarabello e Allan Yzumizawa para somar ao desenho que se configurava para este projeto. Em 2021 escrevemos e idealizamos essa exposição em conjunto cujo o objetivo era fomentar o debate sobre as relações de conflito, tensões territoriais e ecossociais existentes no interior do estado de São Paulo, também propor reflexões sobre a exploração histórica do território, às condições do aumento da expansão do mercado imobiliário e do consumo exacerbado nestas regiões. A proposta inicial era realizar a exposição e as obras inéditas no território do Município de Sorocaba, no entanto durante o período de execução encontramos resistência por parte da Secretaria da Cultura de Sorocaba em realizar o projeto nas dependências

da Pinacoteca do Município, que deixou de existir neste mesmo período. Por isso buscamos outro município para realizar o projeto encontrando em Campinas, nas dependências da sede do recém inaugurado Espaço Marco do Valle, braços abertos para receber terra rasgada. A equipe do espaço gerenciada por Julyana Tróya, assim como toda a equipe do Centro Educacional Integrado (CEI) gerenciada por Leonardo Duart Bastos foi extremamente receptiva e acolhedora ao projeto. Deste modo, realizamos todas as ações previstas da melhor forma, dentre elas: lançamento do catálogo, fala pública, recepção a grupos de escolas públicas, atividades educativas durante a exposição e por fim o desenvolvimento do documentário produzido brilhantemente pela Contorno Filmes aos cuidados de Luiza Naves com tradução em Libras pelo Maurício Gut. A partir deste momento, em 2023 um fragmento da exposição finalmente chega a Sorocaba, apresentamos cinco trabalhos desse processo como resultado do abraço acolhedor de André Pereira da Silva aqui representando toda a equipe da Biblioteca Campus Sorocaba da UFSCar.

JEFF BARBATO
PRODUTORE CULTURAL E ARTISTA
Da esquerda para a direita: Lucas Souza, Jeff Barbato, Marília Scarabello (na tela do celular), Allan Yzumizawa e Dani Shirozono. Leia o QRCode para acessar as redes de terra rasgada

este livro foi publicado em ocasião da exposição

edição

Jeff Barbato

texto crítico e curatorial

Allan Yzumizawa

projeto gráfico

Jeff Barbato

de agosto a setembro de 2023 Biblioteca Campus Sorocaba da UFSCar.

Projeto produzido em 2022 com recursos do ProAc Editais 13/2021

- Exposições inéditas, da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo

produção executiva Brecha Cultural

coordenação geral

Daniele K. Shirozono

fotografias

João Cazzaniga

Ana Helena Lima

audiodescrição

Cris Kenne

identidade visual Frente Criativa

audiovisual Contorno Filmes

intérprete de libras

Maurício Gut

tipografia

Halyard Display Font Family

agradecimentos

André Pereira da Silva

Rute Figueiredo e toda equipe da Biblioteca Campus Sorocaba da UFSCar;

Luisa Naves

Totenpix

Rodrigo Camargo Marques

Marina Klafke

Marina Dias

Jota Guerreiro Vilar

Ane Tavares

Felipe Soranz

Julyana Troya

Gilberto Alves

Leonardo Duart Bastos

Bruno Novaes

Marilene D. Barbato

Milton Barbato e demais pessoas que colaboraram direta ou indiretamente.

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