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De 15 a 21 de abril de 2004

NACIONAL DÍVIDA EXTERNA

OAB move ação por auditoria U

ma decisão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) promete recolocar o obscuro tema do endividamento externo na pauta do povo brasileiro. A instituição vai mover uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigar o Congresso Nacional a realizar uma auditoria da dívida externa, como determina a Constituição Federal de 1988. No mínimo, o processo pode retirar do ostracismo uma antiga bandeira do Partido dos Trabalhadores (PT). Em discussão, estariam os contratos de uma dívida superior a R$ 1 trilhão que, apesar de ser paga rigorosamente em dia, cresce ano após ano e impede que o Estado faça investimentos em geração de emprego e na área social. Indícios de irregularidades não faltam. Desde 1988, o Congresso tem o dever de realizar uma análise pericial da origem e do destino da dívida brasileira. “Isso foi colocado na Constituição porque os constituintes sabiam que essa dívida externa tem muito de ilicitude. Dizem que houve dinheiro do exterior que foi tomado como empréstimo pelo país, mas nem entrou no Brasil. Não sabemos até que ponto esse dinheiro foi utilizado em benefício do povo brasileiro”, avalia o conselheiro federal da OAB Arx Tourinho, relator da proposta. Para ele, a auditoria da dívida deveria responder à uma pergunta crucial: por que, quanto mais o Brasil paga a dívida, mais ela cresce? “Vivemos para pagar os juros e os serviços dessa dívida, sem conseguir reduzi-la. O país não tem condições de se desenvolver com essa dívida impagável. Todos os brasileiros estão trabalhando para fazer caixa para o governo encaminhar recursos para o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ou resolvemos essa questão, ou jamais vamos ter desenvolvimento social nesse país”, argumenta Tourinho.

O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO Constituição Federal de 1988 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias Art. 26. No prazo de um ano, a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro. § 1.º A comissão terá a força legal de comissão parlamentar de inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União. § 2.º Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível.

“Agora, vamos utilizar um instrumento jurídico-processual para obrigar o Congresso a fazer a auditoria”, destaca Tourinho. O conselheiro é otimista sobre o resultado da ação: “Se o STF fizer um julgamento jurídico da matéria, não tenho nenhuma dúvida de que a ação será julgada favoravelmente. Trata-se de uma norma constitucional”.

INCÔMODO

Em 2000, seis milhões de brasileiros disseram sim à auditoria da dívida

auditoria da dívida externa. A instituição vai procurar, ainda, o apoio de outras organizações, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Não é a primeira vez que a sociedade brasileira inicia um movimento sobre o tema da dívida. Em

2000, seis milhões de brasileiros votaram em um plebiscito popular pela realização de uma auditoria, e pela suspensão do pagamento da dívida externa. Os deputados não se dispuseram a analisar os contratos, mas uma auditoria cidadã foi iniciada por organizações sociais (veja matéria abaixo).

Entre os parlamentares governistas, a notícia causou surpresa. Nenhuma das lideranças comentou o assunto. O único a responder às ligações do Brasil de Fato foi o deputado federal Sigmaringa Seixas (PT-DF), vice-líder do governo, que, por meio de sua assessoria, disse que não se pronunciaria a respeito. Depois de consultar o presidente da Câmara, João Paulo Cunha, e outras lideranças do governo, Seixas verificou que todos ficaram surpresos com a notícia, e decidiu não comentar a necessidade ou não de uma auditoria da dívida externa. Tourinho não se surpreende com isso. “O Congresso está totalmente omisso em relação a essa questão. Acho difícil que apóie a iniciativa

Marcio Baraldi

Jorge Pereira Filho da Redação

Douglas Mansur

Lideranças governistas não comentam decisão junto ao STF para obrigar Congresso a analisar endividamento

LIGAÇÕES PERIGOSAS Segundo o conselheiro da OAB, a auditoria da dívida externa nunca foi feita porque tem um conteúdo explosivo e pode mexer com a classe dominante brasileira. “Politicamente, não é uma medida conveniente para nossa elite política e econômica. Não tenho dúvidas disso. Esse endividamento externo envolve uma série de ilicitudes e muitas autoridades públicas poderão ser responsabilizadas, assim como ficará transparente a participação criminosa de empresas transnacionais com sede no Brasil”, analisa Tourinho. A ação, aprovada por unanimidade no conselho federal da OAB, deve ser encaminhada ao STF nos próximos dias. Se julgada procedente, o presidente do Congresso, atualmente o senador José Sarney (PMDB-AP), será intimado pelo STF a convocar uma comissão mista para realizar a

porque os parlamentares não têm interesse nem em investigar fatos menores, o que dirá de casos maiores. Eles sabem da repercussão política que isso teria”, avalia o conselheiro da OAB. Alguns parlamentares ouvidos pelo jornal, no entanto, manifestaram apoio à iniciativa. “Sou francamente favorável a uma auditoria da dívida externa. Temos suspeitas que cerca de 40% dos contratos da nossa dívida têm procedimentos irregulares.”, afirma a deputada Dra. Clair Flora (PT-PR), coordenadora da Frente Parlamentar de Acompanhamento da Dívida Pública. Desde outubro, a Frente tem organizado debates na Câmara sobre a questão. “Vamos sugerir aos deputados da Frente propor ao presidente da Câmara criação de uma comissão especial para analisar os contratos da dívida”, promete ela.

ASSUNTO PROIBIDO O líder do PC do B, deputado Renildo Calheiros (PE), também apóia a realização da auditoria da dívida. “A dívida externa é um dos principais problemas do Brasil, hoje. Há uma controvérsia muito grande sobre a origem e o montante da dívida. É uma medida importante da OAB”, avalia o parlamentar. E por que o Congresso não faz a auditoria? “Sinceramente, não sei lhe dizer por quê. Há certos mecanismos que, para utilizá-lo, é preciso uma medida mais dura do Congresso”, explicou. O deputado Sergio Miranda (PCdoB-MG) também defende a auditoria e acusa o governo de acobertar o assunto. “Agora, na aprovação do Plano Plurianual (PPA), o governo trata de todas as despesas de capital. A dívida é claramente uma despesa de capital, mas as únicas despesas que não são tratadas no PPA são a dívida e a sua amortização. Foram retirados do debate para impedir o posicionamento do Congresso”, opina Miranda. Para ele, o governo não avança na discussão da dívida externa para não mostrar a insensatez das contas públicas. “Temos uma situação insólita: o setor público gasta R$ 150 bilhões com juros e apenas R$ 14 bilhões no Sistema Único de Saúde (SUS) Isso é inaceitável e um dia terá de ser contestado”, afirma ele.

Auditoria cidadã constata irregularidades Você tomaria um empréstimo dando ao seu credor o direito de definir e alterar os juros da sua dívida sempre que quisesse? Pois é, saiba que o governo militar fez isso em nome do povo brasileiro. Essa foi uma das conclusões a que chegou a auditoria cidadã da dívida externa, encampada pela Campanha Jubileu Sul. Durante o regime militar, o Brasil contraiu uma série de empréstimos com cláusulas inconstitucionais, que renunciavam, textualmente, por exemplo, ao direito de soberania nacional. No final da década de 70, os Estados Unidos aumentaram os juros e, como resultado, o Brasil enfrentou uma crise sem precedentes.

“Falta respeito ao povo brasileiro, que paga essa conta com sacrifício. Por isso, não é realizada a auditoria. Não há investimento em área social e na criação de emprego”, critica Maria Lúcia Fatorelli, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores da Receita Federal (Unafisco), e coordenadora da auditoria cidadã.

AGRESSÃO À SOBERANIA Segundo ela, muitos dos contratos recentes do endividamento brasileiro contêm cláusulas de juros flutuantes, que agridem a soberania popular. “Há muitas questões que devem ser respondidas à sociedade. Várias emissões foram

feitas quando tínhamos dinheiro em reserva. Por que foi feita essa emissão tão onerosa? Além disso, nossas taxas de juros são altas por que nos são impostas pelas agências de avaliação de risco-país. Mas se nós estamos pagando nossa dívida rigorosamente, porque nossas taxas continuam tão altas?”, exemplifica Maria Lúcia. A Unafisco elaborou um estudo, que será divulgado na próxima edição do Brasil de Fato, avaliando contratos do endividamento público desde 1964. A própria disposição constitucional, que obriga o Congresso a realizar a auditoria da dívida, é a comprovação de muitas fraudes no processo. Curioso é que, em 1988,

essa necessidade estava longe de ser uma bandeira de políticos “radicais”. O artigo foi incluído pelo então senador Fernando Henrique Cardoso, relator de uma comissão que havia constatado uma série de irregularidades no endividamento brasileiro.

PRESSÕES POLÍTICAS “O FHC denunciou que 25% da nossa dívida era de juros sobre juros, o que caracterizava usura sem contrapartida pelo país”, explica Maria Lucia. Como presidente, Fernando Henrique não hesitou em usar do mesmo expediente para aumentar o endividamento do país. Em 1989, uma comissão foi

instaurada pela iniciar a análise da dívida externa. Constatou processos ilegais, como contratos que renunciavam explicitamente às determinações constitucionais. Porém, o trabalho da comissão foi encoberto por pressões políticas. Em 1931, a história teve outro desfecho. O então presidente Getúlio Vargas, impulsionado por uma articulação de 14 países na América Latina, realizou uma auditoria da dívida externa. Constatou que apenas 60% dos contratos de dívida eram legais. “É por isso que o Fundo Monetário Internacional (FMI) exige que os países negociem sua dívida isoladamente. Temem que a história se repita”, avalia Maria Lúcia. (JPF)


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