José Saramago: "História e Ficção" e "O Autor como Narrador"

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Um grande escritor português, de'projecção internacional, trata um tema ;com o qual asua obra romanesca tem muito aver

Históda e'f;icção

,José Saramago ertos livros, que mesmo nas horas de mais benevolentes condescendência para com as debilidades próprias e as fraquezas. ",lheias . nunca ou­ incluir no gIémio das ohm­ primas. têm _artes~ não raro, -c· sem que saibamos explicar porquê; de resistir às'altera­ ções do gosto, às perspectivas da idade. e, incluso, o que não é dizer pouco;'às transferências das biblio­ tecas. De um modo ou outro. todos já .xperi­ mentámos. ao mudar de casa. essa espécie de fatali­ dade que nós obriga.a deixar' para trás volumes e .!!Iais volumes. a prete"to de que deixaram de inter­ essar-nos ou deque•.siinplesmente..ni!o iriam caber' nos novos espaços. E contudo. ao amImar os livros , sobreviventes, sempre um ou,outro nOS surpreendem ':_ pôr urpa incompreensível Persistência em continua­ rem ali. Tomamo-los rias mãos, pergunlamos: «Que devo faz"'; contigo?», porém, de antemão sabemos que não haverá resposta:, a não se'.colocá-Io no seu Ipgar,; quase supersticiosamente, como se a nossa ,;:, Vida; pOIa It!atlter-se em equilibrio. tivesse necessi­ ':,~ dade desse'pol\to de ápoio. Quanto ao livro, lido, ;;"íiumaremota idade por aquela difereote pessoa que •.,' :éntão éramós, é bem posslvel que não' volte a ,,"'aberto. " l,:.....: Ou sim, Chega um dia, 000 ode hóje, em que sé • ~, :'.torna preciso, por exemplo, explicar por que bulas .:me vêm acompanhando, desde bá longos anos, um ~utor de tilo pouca importãocia como Xavier de :~aistre e um livro'seu que punca teve maior aspira­ .ção que se, acolhido por aquilo que é, um amável e ·liumorístico:. objee!O: 'Voyage" anl/lur de ma ··chambre.'Sei que t't!i levado a eles por um outro , livro e por um oulrO aÍltor, estes da minba pátriaeda' ~ri)inlill língua; colTl ~ quais, aproveito para'dizê-Io, · , de algum modo se podê afirmarque nasceu ó pom­

,guês moderno, liberto da.- sanefas e dos reposteiros

lletecentístas, solto de 'respiração e ágil como um

· gato: Almeida Garrettsechamou o homem, Viagens

· na minha terra se intitula aobra. Num caso como no

· outro, éde viagens quese trata, mas distintas, porque

não será o mesmo viajar deritro dos estreitos limites . .:'99 quarto em quevivemos, ou ir buséaT'o mundo lá ' " :~, onde ele estiver, á'contar da porta da nosSacasa. 100 '..'distintos lambém quanto se acredita que possam. ter : ';;:sido um liberal português dó "éculo 'XIX um' , . lf.mcês reaccionário que tendo vindo a morrer no :'mesmo século, trouxe e conservo.u do anterior as .', ,.co.nvicções absolutistas que pôde fazer prosperar na R6ssia imperial deenlão. Xavier de Maistie viveu ;~':::m Turim, Almeida Gam:tt nunca viajou a Itália. .

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que seria viajar à roda de um quarto? Como podí. Turim. no Sul, ser quase tão frio como São P.t.!'z, burgo., ali pertinho do círculo árctico'! E esse Xav,er

Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para asua ficção, os caminhos da História: uma, discreta e respeit~ consistirá em reproduzir ponto por ponto . os factos conhecidos, sendo a ficção merà servidora duma' fidelidade que se quer. inatacável; a outra, ousada, leva-lo-á . entretecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá . .predominante. Porém, .

estes dois vastos mundos, o mundo

dasvenfades hislóricas'eo.mundo

.das íenIáíIesficcionaiS;' " . à primeira vista inconciliáveis,. . podem vir a ser harmonizados ·na instância narradora

de Maistre, quem era, para ser assim citade, ri€" passagem e sem outras informações. Como Si" o

leitor comum tivesse rigorosa obrigação de conhece­ lo? Falta. dizer. e talvez seja isso, de tudo. o maiS importante, que a estas inquietas interrogaçõ<lS "" juntava uma memória, um. lembrança. a qual aCiUa­ va no meu espírito como uma espécie de cãmaru de

eco. o ressoante nome dç Turim, tal como o r!n:la en~ontraâo. ainda criança, para com ele inventar uma cidade, no Cuore de Edmondo de Amícis.

Sabemos que o nossoJ!tundo mental está cheio~: quadros assim, paradosnadistilncia, mal resistin1" à erosãodo esquecimento. Éesse, pois. o quadro yU~ vos trago do fundo do tempo. p'ara convosco ti reviver, para nele tentar desenhar, a par das velbas imagens, daqueles, autores .passados, e do vulto, também ele irrecuperável"do adolescente que fui, o perfil de alguém, esleque aqui veio.hoje, que apren­ deu a ler. depois cOm outros olhos, que. perdeu a ' inocência das sua primeiras letras~ mas que. espere­ mo-Io, estará longe ,a.ind~. ~ ~uas últimas.

a

Tempo informe

­

O· rema que~ me proponho. tratar «História, Ficção»-aparece já,se nãome engano, em filigrana, nas palavras da introdução, E eu conto que, chega- . dos ao fim' do nosso percU!So, se tenha podido 'dissipar nos vossos,espíritos a por agora· muito

provável suspeita de ter eu trazido aqui não mais do

, .que um mero. exerclcio de .funambulismo verbal, É

..cetto'que nós... romapds~ e mais ainda os poetas,

, não resistimos, muitàs vezes, à tentação de jogar com

, . as palavras: para usar uma expressão que provavel­

mente não é só porrugu~.está,nos na massa.do sangue. Masójogo., o. jogo das palavras, é sério, vem confirmar a razão daqueles quedefenderil que o jogo' é, talvez, a mais séria das actividades humanas: um ritual, por exemplo, não é assim tão diferente de um jogo, mas q,s·rituais, quaisquer que sejam, sempre foram apresenta,!os como expressão de uma serie­ dade suprema, .

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Vejamos;•.~ ~m~íro lugar, a História co~o . , . ficção. Trataêse'de,uma:fórmul .. qu~ transporta nao" cc' pouOOs riscoi com a qualse proerlá mesmo, imagi­ namós, introduzir de um modosub-repfi'cio a afll'll1a­ ção, acaso temerária, acaso irresponsável, de ser" História, em última análise, urrla pura fieção, Acol­ her cegamente tal fÓlmula, levar-nos-ia a concluir­ desta maneira se gerando um novo caos -'que tud" nu mundo seria ficção, que nós próprios somos OS produtos sempre cambiantes de todas as ficções, ao tempo ~utOrese personagens delas: cada um lugar;'a história de tO<lOS na, História tona. Afll'll1á-lo, é facflímo, demonstrá:lo será, prova­ velmente, impoSsível. Mas, ainda ,que neste outn" jogo sejam.mais.do que evidente as seduções do espintode paradoxo; não resisto à tentação de pórno , meu ladO alguns argumentos, acaso dignos de cons;- . déração.

e

. Aó recordar, habilmenie, se me é permitido o. 10uvorembocaprópria,aestadadeDeMaistrenesta , cidade. a cuja Academia das Ciência apresentou, nu dizer da enciclopédia; «sapientes memórias sobre a .oxidação do ouro e a aplicação do óxido de ouro 11 pintura», dou enfim o passou que faltava pàm a . explicação da relação do meu autor com o conde de · .Chambéry, e também da minhá própria relação, a

primeira, com Turim. Diz Garretl no princípio das

, ·,.súas Viagens, de algum modo tão evocador como'O

,.começo do Quixote cervantino: Que viaje à roda

do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de

· Inverno, em Turim, que li quase tão frio como são

Petersburgo . , .;. COm este ar que Deus nos deu, 'cresce na horta, e o mato é de murta~ o Xavier de Maistre, que aqui escrevesse,3o menos ia até ao quintal. '

;~(j~l~~!~:~~segUndo este modo de emender, o .1i como sua primeira tarefa., seJeccio­ '--'C-" .-'''----'--

sobre aquilo que denominarei

" quer dizer, esse passado ti "lue chamar puro e simples. se não fosse isso uma contradição .em termÓS. De posse do> dados

, FeC!)lhidos, a

s~gunda tarefa "'organizá~los, de uma maneira

do historiador seria coerente e de acordo, .

.com wna intenção prévia, transmitindo--nos, assim ~. ;,. uma ideia de necessidade inelutável, como a expres­ . são de um destino. Por Outro lado, essa escolha de· " 1

Lidas no princípio da adolescência, estas pala­

· Y""! tiveram o efeito, que hoje mal posso compreen­ "'. der, de encher-me cabeça de devaneios e mistérios: , · '/" -'f'" . ,­

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