Representação brasileira / 57ª Bienal de Veneza (2017) - Chão de caça / Hunting Ground

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direito do vídeo. Há fumaça de bombas ou de algum incêndio. Alguns sons de destruição deixam claro haver uma ação expandida fora do quadro, como uma convulsão que extrapola o tempo e o espaço daquela rua. Quando os objetos deixam de ser arremessados, a imagem é espelhada, e a ação recomeça, mas, dessa vez, a direção é da esquerda para a direita. Essa disputa de forças políticas, que molda nossa experiência ao ordenar os modos de vida, está presente ainda na obra de Cinthia Marcelle como um procedimento, não apenas no gesto que constitui a obra, mas porque ele mesmo é o mote do trabalho. Sob o risco do real (2015), comissionamento apresentado na Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes, tem como um de seus principais elementos a ação de peneirar areia. Nessa cidade, tomada por novas edificações, os trabalhadores da construção civil movem grandes volumes de areia que, retirados de uma clareira onde surgirá um novo empreendimento, são reaproveitados na estrutura de outro. Assim, a artista instala um forro de peneiras numa antiga casa, um espaço a céu aberto, e os trabalhadores da construção executam sua atividade de limpar a areia, matéria do deserto que se dispersa no ar e se assenta dentro da casa, recompondo montes como pequenas dunas. O pó que se sobressai a trabalhadores e visitantes, de distintos modos, faz lembrar a fotografia O sábio (2009), em que um homem negro tem nos braços uma pilha de tijolos (mesma cor da areia do deserto) que encobre seu rosto. Atrás desse homem, uma ruma de tijolos está protegida por uma parede construída do mesmo material, evocando o Gigante detrás (2006), no qual um homem com o rosto coberto por um pano cinza é quase mimetizado por sua presença diminuta em uma grande pedreira de rochas da mesma cor do tecido que recobre seu rosto. Nesse jogo entre o que é visível e o que está oculto, iv. enigma é tema e procedimento ganha relevo um conjunto de fotografias de Marcelle em parceria com Jean Meeran produzidas ao longo de uma residência na África do Sul, em 2003. Nas imagens de Capa morada, que retratam cenas do cotidiano em lugares comuns da Cidade do Cabo, uma pessoa se camufla com tecidos, fundindo corpo e arquitetura, e oculta-se entre objetos, tornando-se parte de um todo, omitindo-se em meio a situações, disfarçada em outros corpos. Todas essas estratégias, no entanto, acabam destacando sua insistência no desaparecimento, ao gerar um encontro entre frente e fundo, criando sentido a partir de um desajuste lógico. Essa incongruência gera enigmas que atingem a obra de Marcelle por meio do ilusionismo e que são temas caros para a artista. É de 2016 uma pequena instalação da série Já Visto [Déjà-vu], que tem como fundamento um jogo óptico ou perceptivo, em que os mesmos elementos

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