30ª Bienal de São Paulo (2012) - Livro/catálogo

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É essa experiência – esse combate vencido pelos modernos para reivindicar

A iminência das poéticas

e socialmente, à figura do artista, ser considerada como indivíduo de

esse espaço de liberdade absoluta – que permite, a partir daí, simbólica exceção: somente o artista seria livre absolutamente; mas somente em sua arte: sujeito emancipado de regulações sociais, provocateur incansável, maldito. E é sobre o privilégio dessa liberdade total – obtida paralelamente ao desmantelamento de todos os discursos objetivos em arte – que os artistas contemporâneos, ávidos de discursividade, explicitamente antimodernos, praticam, usam e abusam das artes do comentário, sem limitações ou condicionantes escolares, escolásticas, disciplinares, formais, dialógicas ou canônicas, e, o que é mais consequente, sem que existam, no âmbito em que estas se produzem, modalidades práticas para a contestação, para o diálogo. A contradição é óbvia e pensamos que merece alguma atenção do âmbito da curadoria ou da crítica, da filosofia ou do ensaio e, sobretudo, da história da arte. Não se trata de não dizer, nem se trata de impor restrições ilegítimas à liberdade de dizer o que nos dê vontade. Trata-se de entender qual é o espaço no qual praticamos e recebemos as contribuições da arte. Trata-se, talvez, de aprender a dizer de novo com seus infinitos arsenais. Trata-se de reconhecer que a objetividade discursiva, o comentário e a alegoria – mais que o símbolo – voltaram a ser parte central das práticas artísticas e que seu exercício não deveria estruturar-se sobre um privilégio herdado daqueles que uma vez os excluíram ou aniquilaram da inteligência estética; que seu exercício não pode estruturar-se sobre as expectativas de excepcionalidade formal e de incontestabilidade argumental que contribuíram para sua artística implosão moderna. Que devem reinventar-se, de mãos dadas com o que os constitui desde sempre, ou seja, de mãos dadas com a velha retórica e a antiga poética, em um espaço que nem os banalize nem os explore para servis benefícios mercadológicos. Caberia dizer desse artista fableur, especialmente quando aparece diante de nós vestido de falastrão engraçado em seu impulso para dizer tudo, que também faz parte do exército contemporâneo dos experts, cuja operação Michel de Certeau denunciava há muitos anos. Como se, assim como a inflação de expertises que nos rodeia a cada dia, a partir de cada meio de comunicação, em cada rede social, falando-nos com autoridade incontestável de tudo o que nos cabe, e até do que não nos cabe, em detrimento do pensamento geral, em detrimento de uma aproximação incerta e balbuciante do conhecimento, em detrimento do entendimento de nossas zonas obscuras – da constatação de que essas zonas de sombra impenetrável existem –, também a arte e o artista contemporâneo agissem no coro das expertises, fingindo uma segurança que não se pode ter, para pretender revelar tudo, a todos, em todo momento. experts • Michel de Certeau: “Desde que a cientificidade se atribuiu lugares próprios e apropriáveis por meio de projetos racionais capazes de instituir decisivamente seus procedimentos […] desde que deixou de ser de tipo teológico, ela constitui a totalidade como seu resto, e esse resto veio a ser o que chamamos cultura. […] Inclusive se a ambição da ciência busca conquistar esse resto a partir de espaços nos quais se exercem os poderes de nosso saber […] são os discursos cinzas das ciências chamadas ‘humanas’, relatos de expedição, os que tendem a tornar assimiláveis – se não pensáveis – e a identificar as noites da violência, da superstição e da alteridade: história, antropologia, patologia etc. […] É verdade que o expert prolifera nessa sociedade, a


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