Tributação de rendimentos ou actos ilícitos jorge manuel araújo breia matos

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO

TRIBUTAÇÃO DE RENDIMENTOS OU ACTOS ILÍCITOS

Jorge Manuel Araújo Breia de Matos

III Curso de Pós-Graduação em Direito Fiscal


Tributação de Rendimentos ou Actos Ilícitos

ÍNDICE Índice............................................................................................................. 2 1. Introdução.................................................................................................. 3 2. Conceito .................................................................................................... 4 3. Categorias de actos ilícitos........................................................................ 5 3.1. O ilícito penal ......................................................................................... 5 3.2. O ilícito civil........................................................................................... 5 3.3. O ilícito administrativo........................................................................... 5 4. Tributação de rendimentos e actos ilícitos ................................................ 6 4.1. Posição positiva...................................................................................... 6 4.2. Posição negativa..................................................................................... 6 4.3. Posição intermédia ................................................................................. 7 5. Exemplos de outros países ........................................................................ 9 5.1. Alemanha ............................................................................................... 9 5.2. Itália........................................................................................................ 9 5.3. Estados Unidos da América ................................................................... 9 6. Jurisprudência comunitária ....................................................................... 11 7. Caso português .......................................................................................... 13 8. Formas de ultrapassar as limitações existentes ......................................... 15 9. Conclusões ................................................................................................ 17 10. Bibliografia.............................................................................................. 18 11. Jurisprudência.......................................................................................... 19

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1. INTRODUÇÃO O título deste trabalho coincide com a epígrafe do artigo 10.º da Lei Geral Tributária. Não se trata, obviamente, de uma coincidência, o objectivo é tratar este fascinante tema que envolve questões jurídicas, morais e éticas, à luz da realidade portuguesa. Desafio ainda maior tendo em consideração a escassez de trabalhos sobre este tema. A problemática da tributação dos actos ou factos ilícitos não tem na nossa doutrina uma abordagem muito profunda nem abundante, ao contrário do que acontece noutros países, como, por exemplo, em Itália ou em Espanha. A intenção deste trabalho é contribuir, modestamente, para alguma clarificação da questão à luz da realidade actual.

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2. CONCEITO Não é uma tarefa fácil definir acto ou facto ilícito, como afirma Manuel Joaquim Freitas da Rocha1, a discussão não tem sido completamente esclarecedora. Mas este autor, apesar das dificuldades, consegue estabelecer algumas premissas que considera como adquiridas. Para começar, e de acordo com o que diz Manuel Joaquim Freitas da Rocha, o acto ou facto ilícito “é, em primeiro lugar e acima de tudo, um facto jurídico.” Depois, e, ainda segundo este autor, o acto ou facto ilícito tem natureza voluntária, na “medida que reflecte uma manifestação de vontade.” Por fim, explica Freitas da Rocha, que um acto ou facto ilícito “é um facto em desacordo ou em contrariedade com a ordem jurídica." Significa isto que existe uma reprovação relativamente ao acto. Há uma valoração negativa por violação de valores “tidos por aceites na consciência jurídica das pessoas”. Alerta ainda o autor acima citado: “Contudo, não se pense que a ilicitude e a contrariedade à ordem jurídica são conceitos sinónimos, pois não basta que o facto seja reprovado pela ordem jurídica para que, juridicamente, seja considerado facto ilícito.” Acrescenta, citando Albanese (“Illecito”, in Enciclopédia del Diritto) que é necessário “que através da conduta antijurídica se provoque um dano (prejuízo)” e que “esse dano possa ser juridicamente imputável a uma pessoa e em que relação a esta se não verifique uma causa de exclusão de ilicitude.” Resumindo Freitas da Rocha propõe a seguinte noção de facto ilícito: “ facto jurídico voluntário, contrário à ordem jurídica, e susceptível de um duplo juízo de censura e imputabilidade.”

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ROCHA, Manuel Joaquim Freitas da - As modernas exigências do princípio da capacidade contributiva – sujeição a imposto de rendimentos provenientes de actos ilícitos, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 390, 1998, págs. 112 e 113.

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3. CATEGORIAS DE ACTOS ILÍCITOS Vamos classificar os ilícitos considerando a natureza ou espécie do interesse lesado. Assim podemos distinguir o ilícito penal, o ilícito civil e o ilícito administrativo.

3.1. O ilícito penal O ilícito penal implica a violação de bens jurídicos básicos na defesa da comunidade e da paz social (por ex., o furto ou tráfico de droga), ou seja, violação de bens fundamentais na vida em sociedade. A reacção típica é criminalizar a conduta e aplicar uma pena.

3.2.

O ilícito civil

O ilícito civil (p. ex., negócio ou contrato ferido de nulidade absoluta) implica uma violação de interesses (patrimoniais ou não) particulares de um determinado sujeito. Este tipo de ilícito pode implicar o nascimento de uma obrigação de indemnização e/ou invalidade do acto.

3.3 O ilícito administrativo O ilícito administrativo (p. ex., actividades não licenciadas) significa a violação do interesse público do bom funcionamento da Administração Pública. A reacção pode ser a declaração de invalidade do acto e também uma eventual responsabilidade indemnizatória.

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4.

TRIBUTAÇÃO

DE

RENDIMENTOS

E

ACTOS

ILÍCITOS 4.1. Posição Positiva Muitos defendem a tributação dos rendimentos ou actos ilícitos, sendo completamente indiferentes quanto à origem ou grau de ilicitude. Nuno Sá Gomes2, cita vários autores italianos que “têm defendido a legitimidade da tributação das actividades ilícitas e imorais quer como coisa óbvia face ao princípio geral de direito fiscal de que este se dirige à tributação de factos económicos desinteressando-se da respectiva coloração jurídica.” Declara ainda, este autor, que as jurisprudências italiana e francesa, têm defendido a tributação destas actividades. Diogo Leite de Campos3 escreve que os defensores desta posição acreditam que “a própria ordem jurídica, e a ordem tributária, não podem promover ou beneficiar um comportamento ilícito ou contra os bons costumes, o que sucede se o isentassem de imposto. Seria precisamente a lógica da ordem jurídica que resultaria afectada por uma errada perspectiva tributária.”

4.2. Posição Negativa Existem os que defendem a não tributação dos rendimentos ou actos ilícitos. Argumentam como explica Diogo Leite Campos4 que “os comportamentos contrários aos bons costumes ou ilícitos não podem ser tributados em atenção à unidade da ordem jurídica. Haveria uma clara contradição entre as finalidades do Estado reter sob a forma de imposto, o produto de actos ou factos ilícitos. Ou seja: dar relevância jurídica a comportamentos que ele próprio penaliza ou desaprova.”

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GOMES, Nuno Sá - Notas sobre o problema da legitimidade e tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios, in XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Vol.II., 1983, págs. 715-716.

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CAMPOS, Diogo Leite de Campos - Tributação dos rendimentos de factos ilícitos in Problemas Fundamentais do Direito Tributário. Lisboa: Vislis Editores, 1999, pág. 11. 4 CAMPOS, Diogo Leite de Campos - Tributação dos rendimentos de factos ilícitos in Problemas Fundamentais do Direito Tributário. Lisboa: Vislis Editores, 1999, pág. 11.

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Nuno Sá Gomes5 diz que os defensores da posição negativa argumentam ainda que “se a lei proibiu certas actividades, o Estado, ao tributá-las, como que as protege e torna lícitas”. E acrescenta “a tributação das actividades ilícitas transformaria o Estado em cúmplice interessado nas actividades ilícitas ou até criminosas, das quais obteria o proveito patrimonial correspondente ao imposto pago.”

4.3 Posição Intermédia Naturalmente, e tal como acontece em quase todas as situações, as posições intermédias são aquelas que são mais populares e consensuais. Nuno Sá Gomes6 escreve: “não sendo as normas de incidência normas de conduta, mas normas que produzem efeitos jurídicos automáticos, e não sendo o facto tributário valorado fiscalmente como acto mas apenas como puro facto, a sanção do acto ilícito tributado situa-se no domínio pré-tributário do direito comum (civil, penal ou administrativo), sendo a tributação o resultado de uma valoração político-económica que não equivale a tornar lícita a conduta tributada, pois move-se a outro nível”. Os defensores desta posição acreditam que a tributação dos actos ilícitos terá que estar relacionada com a capacidade contributiva, devem ser tributados os acréscimos de rendimento líquido. Isto implica que se estivermos face a actos ilícitos que pela sua própria natureza envolvam uma penalização por parte de autoridades judiciais e/ou administrativas que eliminem o benefício da infracção não fará qualquer sentido a tributação, dado que de facto não há nada para tributar. Manuel Joaquim Freitas da Rocha7 escreve: “apenas defendemos a sujeição a imposto naquelas situações em que de facto exista um aumento patrimonial, uma efectiva capacidade contributiva, o que manifestamente não se passará naqueles casos em que os ordenamentos penal, civil, administrativo ou outros prevejam mecanismos do género da 5

GOMES, Nuno Sá - Notas sobre o problema da legitimidade e tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios, in XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Vol.II., 1983, págs. 718-719.

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GOMES, Nuno Sá - Notas sobre o problema da legitimidade e tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios, in XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Vol.II., 1983, págs. 734.

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ROCHA, Manuel Joaquim Freitas da - As modernas exigências do princípio da capacidade contributiva – sujeição a imposto de rendimentos provenientes de actos ilícitos, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 390, 1998, págs. 147 e 148.

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apreensão ou restituição do produto. Isto porque nestes casos, bem vistas as coisas, não há uma riqueza para tributar, pois o produto do ilícito, já terá sido apreendido ou restituído ao seu legítimo proprietário. Enfim, não poderemos levantar a questão de saber se sujeitamos ou não a imposto determinado rendimento se esse rendimento existe!” Nuno Sá Gomes8 afirma: “o que se pretende com a tributação das actividades ilícitas é, nos impostos fiscais, colectar a capacidade contributiva detectada, em obediência, de resto, ao princípio geral do direito fiscal da igualdade tributária (horizontal e vertical)”.

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GOMES, Nuno Sá - Notas sobre o problema da legitimidade e tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios, in XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Vol.II., 1983, págs. 735.

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5. EXEMPLOS DE OUTROS PAÍSES

5.1. Alemanha Na Alemanha a tributação dos actos ilícitos é permitida pelos §§ 40.º e 41.º da Abgabeordnung, que explicitam que para efeitos da tributação é irrelevante se o comportamento que dá lugar ao facto tributável é contrário a um comando ou proibição, ou se atenta contra os bons costumes (§40.º), e se o negócio jurídico fica sem efeito ou se se trata de um negócio aparente, sempre e quando as partes mantenham o resultado económico do negócio jurídico (§ 41.º). Como escreve Nuno Sá Gomes9 para a lei alemã “è irrelevante que, uma conduta correspondendo, total ou parcialmente, ao pressuposto de uma lei tributária infrinja um comando ou proibição legais ou atente contra os bons costumes, consagrando, assim, expressamente, a doutrina da legitimidade da tributação das actividades ilícitas e imorais.”

5.2. Itália No âmbito legislativo a Lei n.º 537 de 24 de Dezembro de 1993, introduziu no direito italiano a sujeição a tributação do rendimento proveniente de uma actividade ilícita, considerando como rendimento tributável os rendimentos provenientes de actividades ilícitas sempre que cumpram alguns requisitos, tais como: a) estejam classificados dentro das categorias de incidência de impostos e b) não estejam submetidas ao confisco penal.

5.3. Estados Unidos da América Em 1916 foi introduzida uma alteração ao Income Tax Act de 1913, que referia como rendimento entre outros conceitos os “negócios legais”, a modificação de 1916 foi suprimir o termo “legal”, o que se deveu à necessidade do governo norte-americano de 9

GOMES, Nuno Sá - Notas sobre o problema da legitimidade e tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios, in XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Vol.II., 1983, págs. 715.

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submeter a tributação o elevado montante de operações de contrabando de álcool, existente naquela época. José Luís Saldanha Sanches10 refere um acórdão do Supremo Tribunal dos EUA, de 1927, em que um traficante de bebidas alcoólicas, já condenado por essa actividade alega como razão para a sua não declaração fiscal a origem criminosa dos seus proventos, uma vez que a declaração poderia ser uma auto-criminação penal. O Tribunal decidiu que não havia nenhuma razão para que uma actividade ilícita fique isenta de pagar imposto face às actividades legais que têm que pagar. E por isso a possibilidade de incriminação não justifica a não declaração. A jurisprudência do Supremo Tribunal dos EUA vai no sentido de tributar tanto os rendimentos legais como os ilegais para eliminar a incongruência de tributar os rendimentos lícitos perante a imunidade fiscal dos rendimentos ilícitos. O Internal Revenue Code, na sua secção 61 refere claramente: all income of whatever source derived (todo o rendimento proveniente de qualquer origem). Desde a modificação de 1916 que se consolidou um amplo reconhecimento administrativo e jurisdicional da tributação de rendimentos ilícitos no ordenamento jurídico norteamericano.

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SANCHES, José Luís Saldanha - Manual de Direito Fiscal. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pag. 214.

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6. JURISPRUDÊNCIA COMUNITÁRIA O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem-se pronunciado várias vezes relativamente à tributação de actos ilícitos, em casos concretos que lhe são submetidos. Em várias situações entendeu que a tributação, em sede de IVA, é procedente, mesmo tendo em conta a ilicitude do acto tributável, quando as mercadorias fraudulentamente comercializadas competem com as operações do circuito legal, podendo pôr em causa o princípio básico da neutralidade fiscal que rege a aplicação do IVA. Escreve César J. Galarza11: “A neutralidade do IVA representa a sua virtude máxima e a sua característica principal”. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em várias ocasiões já se pronunciou sobre a sujeição a IVA das operações ilícitas. O juízo do citado Tribunal espelha-se no caso de perfumes falsificados (Acórdão de 28 de Maio de 1998, processo C-3/97, Processo contra John Charles Goodwin e Edward Thomas Unstead); a exploração de jogos de azar (Acórdão de 11 de Junho de 1998, processo C-283/95, Karlheinz Fischer contra Finanzamt Donaueschingen); exploração em condições ilegais de sistemas informáticos (Acórdão de 2 de Agosto de 1993, processo

C-111/92,

Wilfried

Lange

contra

Finnanzamt

Fuerstenfeldbruck);

arrendamento de instalações que se utilizam na venda de estupefacientes (Acórdão de 29 de Junho de 1999, processo C-158/98, Coffeshop “Siberie” contra Staassecretaris van Financien); álcool etílico de contrabando (Acórdão de 29 de Junho de 2000, processo C-455/98, Kaupo Salumets e outros contra Tullihalitus). Nos casos em não considerou procedente a sujeição a IVA das transacções ilícitas, fê-lo com base no facto de que as mesmas se realizaram sobre mercadorias que estavam totalmente excluídas do circuito legal e, portanto, não significavam concorrência com operações comerciais lícitas similares. Este é o caso de importação ilegal de drogas submetido a estrito controle pelas autoridades médico-sanitárias: morfina (Acórdão de 28 de Fevereiro de 1984, processo 294/82, Senta Einberger contra Hauptzzollamt Freiburg); a compra ilegal de anfetaminas (Acórdão de 5 de Julho de 1988, processo 269/86, W. J. R. Mol contra Inspecteur der Invoerrechten en Accijnzen); a entrega de estupefacientes derivados de cânhamo (Acórdão de 5 de Julho de 1988, processo 11

GALARZA, César J. – La Tributación de los Actos Ilícitos. Cizur Menor, Navarra (Espanha): Editorial Aranzadi, 2005, pág. 343.

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289/86,

Verenigins

Happy

Family

Rutenbrugerstraat

contra

Inspecteur

der

Omzetbelasting); e a importação de moeda falsa (Acórdão de 6 de Dezembro de 1990, processo C-343/89, Max Witzemann contra Hauptzollamt Muenchen-Mitte). O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Acórdão de 11 de Janeiro de 1998, no processo C-283/95, Karheinz Fischer contra Finanzamt Donaueschingen), consideraria que, embora a exploração ilegal de um jogo de azar, neste caso a roleta, entre no âmbito da 6.º Directiva sobre o sistema comum IVA, o artigo 13.º, parte B, alínea f) da referida Sexta Directiva, deve ser interpretado no sentido de que um Estado membro não pode sujeitar a exploração ilegal de jogos de azar a IVA, quando a correspondente actividade efectuada por um casino público autorizado beneficia de isenção. Nos casos acima citados o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias fez referência expressa à Sexta Directiva Comunitária que pretende uma harmonização ampla em matéria de IVA com base no princípio da neutralidade fiscal. Nesse sentido quando se trata de transacções sobre bens não excluídos totalmente do circuito comercial, segundo o Tribunal a observância de tal princípio se opõe a uma diferenciação generalizada entre mercadorias lícitas e ilícitas. Quando se trata de operações que tenham por objecto bens de comércio ilícito é óbvio que fica excluída a concorrência entre um sector lícito e um sector ilícito, dado que se trata de mercadorias que pela sua própria natureza e características particulares não podem ser comercializadas licitamente nem integrar o circuito económico, o que significa que o princípio da neutralidade não seria violado. Em resumo, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em certos casos particulares considerou que é procedente a tributação dado ser conforme aos princípios que sustentam este tipo de imposição. Quando recusou a tributação, fê-lo exclusivamente com relação a mercadorias ou operações que, pelo seu carácter criminal comum nos Estados membros se encontram completamente excluídas do circuito comercial legal comunitário. O Tribunal considera que este comércio deve ser rigorosamente censurado e por outro lado, a sua não tributação não atenta contra o princípio da neutralidade fiscal por não constituir uma “concorrência” com as operações lícitas.

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7. CASO PORTUGUÊS O artigo 10.º da Lei Geral Tributária explicita que o carácter ilícito da obtenção do rendimento não obsta à sua tributação quando os actos ou factos que estiveram na sua origem preencham os pressupostos de incidência aplicáveis. Ou seja, tal como afirmam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa

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“em

princípio, e salva disposição em contrário, o carácter lícito ou ilícito da obtenção ou disposição dos bens é indiferente à tributação.” Significa isto, de acordo com aqueles autores, que a tributação “é valorativamente neutra, reportando-se unicamente às circunstâncias reveladoras de capacidade contributiva do facto ou do acto.” Estes autores defendem, que os actos ou factos ilícitos deverão ser tributados dentro das normas jurídicas tributárias. Já Nuno Sá Gomes13, muito antes da elaboração da Lei Geral Tributária, mas com o mesmo espírito, escrevia: “Daí que as normas de incidência não imponham nem vedem condutas, limitando-se a prever factos que, uma vez verificados, dão origem à obrigação tributária.” Este autor declara que os seus efeitos jurídicos são automáticos, pelo que, verificada a conduta prevista e a correspondente manifestação de riqueza, tem lugar a obrigação de imposto. Quando a previsão integra uma actividade ilícita, esta não é avaliada em termos de ilicitude, mas como mero facto jurídico. É aceite que para haver tributação terá que existir uma variação positiva do património do contribuinte e que o facto gerador se enquadre na previsão de um tipo legal de imposto. Lima Guerreiro14 conclui que o artigo 10.º da LGT “não visa, pois, a criação de qualquer categoria autónoma de rendimentos, os rendimentos ilícitos, ampliando a actual incidência do IRS. Limita-se a clarificar o alcance da incidência das categorias existentes, não sendo tributável um rendimento ilícito que não seja susceptível de ser integrado numa qualquer delas.”

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CAMPOS, Diogo Leite de; RODRIGUES, Benjamim Silva; SOUSA, Jorge Lopes de -Lei Geral Tributária, comentada e anotada. Lisboa: Vislis Editores, 2003, pág. 73. 13

GOMES, Nuno Sá - Notas sobre o problema da legitimidade e tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios, in XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Vol. II, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1983, pág. 730.

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GUERREIRO, António Lima - Lei Geral Tributária, anotada. Lisboa: Editora Rei dos Livros, 2001, pág. 82.

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Diogo Leite de Campos15 advoga que na determinação da matéria colectável devemos considerar não só os rendimentos mas também os custos necessários para os obter, mesmo tratando-se de rendimentos de proveniência ilícita, com excepção do regime especial para as coimas e sanções criminais que não poderão ser deduzidos à matéria colectável. Face à dificuldade em determinar a matéria colectável nos casos de factos e actos ilícitos, deverá esta ser objecto de fixação indirecta nos termos dos artigos 80.º e seguintes da Lei Geral Tributária, como defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa 16.

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CAMPOS, Diogo Leite de Campos - Tributação dos rendimentos de factos ilícitos in Problemas Fundamentais do Direito Tributário. Lisboa: Vislis Editores, 1999, pág. 16.

16

CAMPOS, Diogo Leite de/RODRIGUES, Benjamim Silva/SOUSA, Jorge Lopes de - Lei Geral Tributária, comentada e anotada. Lisboa: Vislis Editores, 2003, pág. 74.

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8. FORMAS

DE ULTRAPASSAR AS LIMITAÇÕES

EXISTENTES José Luís Saldanha Sanches17 coloca a questão de forma muito simples e objectiva: “Ainda que a apreensão do rendimento ilícito seja a solução mais correcta para o bom funcionamento de uma sociedade juridicamente organizada, a experiência demonstra que a solução possível é a tributação dos ganhos. Em especial se for acompanhada pelas sanções legais ligadas ao incumprimento dos deveres declarativos”. Muitas vezes existem suspeitas quanto à origem de determinados rendimentos mas não é possível provar de forma inequívoca a sua proveniência. Uma das formas de ultrapassar as limitações que existem relativamente aos meios de prova, nos casos de suspeita de rendimentos de proveniência ilícita, reside na instituição de uma figura que existe em muitos ordenamentos jurídicos, como por exemplo, em Espanha ou E.U.A., trata-se dos acréscimos patrimoniais não justificados. Em Portugal, também já existe esta figura, enquadrando-se na alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), fazendo parte dos rendimentos da categoria G, ou seja, acréscimos patrimoniais não justificados, determinados nos termos dos artigos 87.º, 88.º ou 89.º-A da Lei Geral Tributária. Considera-se que existem acréscimos patrimoniais não justificados quando os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente, para menos, e sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir determinadas manifestações de fortuna. As manifestações de fortuna consideradas para este efeito e o respectivo rendimento padrão presumido estão explicitadas na tabela do n.º 4 do artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária. Deste modo, foi aberto caminho à avaliação indirecta da matéria colectável por parte da Administração Tributária Portuguesa. César GALARZA18 escreve: “Cremos, assim como um sector importante da doutrina, que os ganhos patrimoniais não justificados convertem-se na via indicada para a 17

SANCHES, José Luís Saldanha - Manual de Direito Fiscal. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pág. 215.

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tributação do benefício económico proveniente dos actos ilícitos. No entanto, tal possibilidade está circunscrita aqueles casos em que, ainda que existam suspeitas de ilicitude (tomada em sentido amplo), devido à inexistência de uma certeza legal sobre a mesma, os actos geradores do ganho são desconhecidos pela administração, e portanto ela deve presumi-los lícitos”. É importante realçar que, se de algum modo, for possível provar-se a efectiva procedência dos bens, tais acréscimos já não podem incluir-se entre os acréscimos não justificados do património e deverão ser examinados no enquadramento da sua tributação na categoria correspondente.

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GALARZA, César J. – La Tributación de los Actos Ilícitos. Cizur Menor, Navarra (Espanha): Editorial Aranzadi, 2005, págs. 274 e 275.

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9. CONCLUSÕES Da análise dos diversos aspectos abordados neste trabalho e, apesar da muitas dificuldades que o tratamento deste tema implica, é possível extrair algumas conclusões: 1- Em sede de Direito Fiscal não há qualquer obstáculo à tributação dos rendimentos ou actos ilícitos; 2- As considerações morais e éticas não são relevantes, sendo a tributação de rendimentos ou actos ilícitos um problema essencialmente jurídico; 3- Os princípios que nos devem orientar nesta problemática são a igualdade tributária, a justiça fiscal e a capacidade contributiva; 4- O princípio da capacidade contributiva implica tributar os acréscimos efectivos de património sob a forma de rendimento; 5- Nesta perspectiva é possível tributar os rendimentos provenientes de factos e actos ilícitos, na medida em que estes impliquem acréscimos de património e efectiva capacidade contributiva; 6- Porém, só os podemos tributar se preencherem os pressupostos de incidência aplicáveis; 7- Nos casos em que os ordenamentos penal, civil, administrativo ou outros prevejam mecanismos do género da apreensão ou restituição do produto do ilícito, não há tributação, visto que neste caso não há uma riqueza para tributar, pois o produto do ilícito, já terá sido apreendido ou restituído ao seu legítimo proprietário; 8- Quando estamos perante suspeitas de ilicitude mas não é possível provar inequivocamente qual a verdadeira proveniência dos rendimentos é possível, para a Administração Tributária, utilizar a figura dos acréscimos patrimoniais não justificados, como forma de ultrapassar as dificuldades ao nível dos meios de prova, porém sempre com a presunção de que estes rendimento são lícitos.

Porto, 16 de Agosto de 2007

Jorge Manuel Araújo Breia de Matos

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10. BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Diogo Leite de/CAMPOS, Mónica Horta Neves Leite de - Direito Tributário. Coimbra: Almedina, 2000. CAMPOS, Diogo Leite de; RODRIGUES, Benjamim Silva; SOUSA, Jorge Lopes de Lei Geral Tributária, comentada e anotada. Lisboa: Vislis Editores, 2003. CAMPOS, Diogo Leite de Campos - Tributação dos rendimentos de factos ilícitos in Problemas Fundamentais do Direito Tributário. Lisboa: Vislis Editores, 1999. GALARZA, César J. – La Tributación de los Actos Ilícitos. Cizur Menor, Navarra (Espanha): Editorial Aranzadi, 2005. GOMES, Nuno Sá - Notas sobre o problema da legitimidade e tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios, in XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Vol.II., 1983, págs. 711-757. GUERREIRO, António Lima - Lei Geral Tributária, anotada. Lisboa: Editora Rei dos Livros, 2001. MORAIS, Rui Duarte - Sobre o IRS. Coimbra: Almedina, 2006. ROCHA, Manuel Joaquim Freitas da - As modernas exigências do princípio da capacidade contributiva – sujeição a imposto de rendimentos provenientes de actos ilícitos, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 390, 1998, págs. 111-201. SANCHES, José Luís Saldanha - Manual de Direito Fiscal. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

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11. JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPEIAS Acórdão de 29 de Junho de 2000, Processo C-455/98.

Acórdão de 29 de Junho de 1999, Processo C-158/98

Acórdão de 5 de Julho de 1998, Processo 269/86

Acórdão de 11 de Junho de 1998, Processo C-283/95

Acórdão de 28 de Maio de 1998, Processo C-3/97

Acórdão de 2 de Agosto de 1993, Processo C-111/92

Acórdão de 6 de Dezembro de 1990, Processo C-343/89

Acórdão de 5 de Julho de 1988, Processo 289/86

Acórdão de 5 de Julho de 1988, processo 269/86

Acórdão de 28 de Fevereiro de 1984, Processo 294/82

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