No Tempo Dos Coronéis

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NO TEMPO DOS CORONéIS A GENEALOGIA DAS FAMÍLIAS CORRÊA DE FARIA, CÂNDIDO DE OLIVEIRA E PENNA Heleny de O. Pena Machado



Sumário

Introdução............................................................................................................................................................ 1 Prefácio................................................................................................................................................................. 4 I

As terras da família, quando eram mata virgem................................................................................ 7

II

A vida e a fuga de Muriaé no Século XIX.........................................................................................15

III

Antônio, Estevão e Francisco partem para o Brasil.........................................................................23

IV

A compra das terras da Laranjeira em 1893......................................................................................31

V

Os últimos vestígios da escravidão e do baronato............................................................................37

VI

Os “coronéis” filhos e genros do barão..............................................................................................41

VII

União de famílias: um negócio e um amor.......................................................................................55

VIII José, Antônio, Augusto e Augustinho partem para o Brasil...........................................................61 IX

Netos e netas do barão (I)....................................................................................................................65

X

Netas do barão (II): Os casais Penna & Cândido de Faria..............................................................89

XI

A mudança de Chico Penna para Caratinga em 1933...................................................................113

XII

Uma escola rural em Laranjeira nos anos 1940..............................................................................123

XIII Um dia de festa na fazenda do Limoeiro em 1948.........................................................................129 XIV Anos nostálgicos: décadas de 1950/1960/1970...............................................................................131 XV

Os que ficaram em Portugal, Santo Antônio do Manhuaçu e Ipanema até 2010......................135

Agradecimentos...............................................................................................................................................141 Bibliografia consultada...................................................................................................................................142 Genealogia da família do Barão de Itaperuna.............................................................................................145


Histórias do tempo São contas Que são feitas de tempo Colares com o bem e o mal São Histórias de sacrifício Mas Também de carnaval Onde há Uma aranha na teia Que a memória incendeia No vício de persistir Aonde os avós E os que hão-de-vir São a frente e o avesso de nós São histórias Onde há medo do tempo São histórias do além e daqui E que se espalmam nas casas Quais relógios de Dali Onde há Uma aranha na teia Que a memória incendeia No vício de persistir Aonde os avós E os que hão-de-vir São a frente e o avesso de nós Numa história qualquer Que alguém contou De quem viveu num tempo E que ao tempo roubou Um eu. (Amélia Muge/Ricardo J. Dias)


Introdução Por que registrar a memória de nossa família? Um historiador inglês chamado Paul Thompson diz que escrever a história da família dá a quem escreve o sentimento de que a sua vida pessoal possa ir além de sua morte. Na África, costumes primitivos obrigavam crianças bem pequenas a decorar sua ascendência recuando a até dez gerações anteriores. Isso porque, se elas mais tarde viajassem de uma aldeia a outra, saberiam recitar os nomes dos ancestrais e assim seriam recebidas como parentes à medida que se fossem encontrando raízes comuns. Eu quis decorar quatro gerações antes da minha, descobrir raízes desconhecidas e encontrar lugares em que poderia ser bem recebida. Tenho descoberto centenas deles. E poucos não se abriram com amizade e consideração quando eu declinava: sou Heleny Pena, filha de Helena Penna, sobrinha de Mario Penna de Faria, neta de Chico Penna, bisneta de Manuel Corrêa de Faria e tetraneta de Anacleto Corrêa de Faria, o Barão de Itaperuna ou Itapiruma. Penna nasci sendo. Corrêa de Faria fui aprendendo. Cândido de Oliveira descobri pesquisando. Quando eu era menina, minha mãe, algumas vezes, nos levou – a mim e a meus irmãos – para conhecer os tios-avós. Íamos, sem interesse, por

obediência, constrangidos ao pedir “bença” àqueles velhinhos que não conhecíamos. Ficávamos na sala ouvindo a conversa dos adultos. Obedientes, sem poder dar palpite, doidos para sair para a rua e brincar de pique, faroeste, roda, maré, ou subir nas mangueiras e goiabeiras dos quintais. Eram as duas tias-avós ainda vivas entre aquelas nascidas Corrêa de Faria & Cândido de Oliveira, todas com nome “Cândida”, casadas depois com os tios-avós Penna: Anacleta Cândida de Faria e Deolinda Cândida de Faria. Claro que havia exceções. Na casa da tia Maria Corrêa (nascida Genelhu) e do tio Joaquim Corrêa de Faria sempre havia um interesse: os pastéis. Daqueles grandes, bem fritinhos. Inigualáveis. Até hoje fico com água na boca de lembrar. Ficávamos quietos à espera da oferta, que sempre vinha: “Querem um pastilim?” Que mãos para quitutes tinha a tia Maria Corrêa! Na fazenda do vovô Chico Penna, no Limoeiro, era diferente. Desde pequena eu frequentava as enormes salas, os inúmeros quartos, o vasto corredor de assoalho da casa, a sala de cimento e a imensa cozinha de chão de tijolo. Minha casa – que agora é da minha prima de terceiro grau, a Maria do Carmo, casada com o professor Amédis – ficava ao lado da fazenda, na atual Rua João Caetano do Nascimento, onde hoje funciona uma creche.

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Aos domingos tinha bolo, biscoito de polvilho, broa de arroz e brevidade. Quitandas... . À tarde, a fazenda ficava cheia de tias, tios, primas e primos. No tempo da vovó Ana, a “Sadonana”, todo dia tinha frango frito na banha de porco. Havia o costume de ter laranja descascada em gomo, talho ou tampinha. Não existia o hábito de fazer suco de laranja. No pomar, maracujá que só o vovô cortava. Assim era. Ali eu era Penna. Naturalmente. Hoje, depois que aprendi que sou – e como sou – Corrêa de Faria e Cândido de Oliveira também, busco na memória vestígios de frágeis momentos, sejam os momentos que presenciei ou aqueles adivinhados por meio de conversas as quais raramente as crianças podiam escutar. “Os Corrêa têm mania de limpeza”, “Os Corrêa especulam muito”. Sobre os Cândido, nunca tinha ouvido falar. Sabíamos das irmãs, todas “Cândidas”. Quando eu tinha quinze anos, “descobrimos” que houvera um barão na família. Aquilo parecia brincadeira, tão remota era a ideia. Um Corrêa de Faria. Era uma curiosidade em que mal acreditávamos. Mas não se falava muito sobre isso na nossa família. Morávamos em Caratinga e pesava mais na balança do parentesco a imensa família que meu avô, Francisco Penna, constituiu com Ana Cândida de Faria (registrada equivocadamente, já que o sobrenome correto seria Cândido de Faria). Isso deve ter sido bem diferente entre aqueles que ficaram morando perto das terras chamadas de “Laranjeira”, zona rural de Ipanema, e em Santo Antônio do Manhuaçu, distrito de Caratinga. Lá deviam viver fortes lembranças do tempo que passou, das terras e das antigas fazendas. Sem contar a expressiva presença da “parentada” que ficou morando por lá. Nas histórias dos “antigos” ficou o mito do passado dos Corrêa de Faria, cheio de figuras poderosas, donos de terras e de gentes. Existiu, e para alguns ainda existe, o sonho de uma herança milionária a que teriam direito por serem descendentes do Barão de Itaperuna ou Ita-

piruma, como está registrado em sua nomeação. Esse sonho andou movimentando alguns parentes, sejam eles Penna de Faria, Corrêa de Faria, Cândido de Oliveira ou outros sobrenomes advindos de casamentos na família, como Dornellas, Brum, Mendes Magalhães etc. Contrataram advogados, procuraram documentos que provassem a descendência da família Corrêa de Faria. Esse assunto não me interessou em nenhum momento. Um terceiro ramo da família, cuja existência me causou grata surpresa descobrir, foi o dos Cândido de Oliveira. As “Cândidas” todas foram mesmo erro de cartório. Todas as cinco irmãs deveriam ser: Mariana Cândido, Ana Cândido, Maria Cândido, Anacleta Cândido e Deolinda Cândido. O que conhecemos como “Cândida” desde a infância eram vestígios dos “Cândido de Oliveira”. Ao pesquisar, descobri uma figura ímpar, um “tio Lino Cândido de Oliveira”, irmão de minha bisavó, a Sinhazinha, Maria Cândido de Oliveira. Depois que descobri os Cândido de Oliveira, percebi que muitos dos entrevistados haviam guardado sua memória. Ela chega, às vezes, muito fresca, percorrendo a névoa do tempo. Nosso tio Lino Penna de Faria, que há muitos anos mudou-se para Juiz de Fora, deve ter recebido esse nome por causa desse tio-avô mais velho. Este, por sua vez, deve ter se chamado Lino por causa de um tio Lino Corrêa de Faria. Lino Cândido de Oliveira viveu por muitos anos, por isso a existência de tal memória. Por sorte, pude entrevistar dezenas de primas de minha mãe, tios e tias, e outros parentes que não tinham relação tão próxima conosco, os “Penna”. Entrevistei conhecidos da família que guardavam a memória do cotidiano dos Corrêa de Faria e dos Cândido de Faria e Cândido de Oliveira às margens do ribeirão Laranjeira, na então freguesia de Santo Antônio do Manhuaçu, ou no Povoado de José Pedro, atual Ipanema, e também na então Vila de Nossa Senhora da Penha do Pocrane. Não posso esquecer a emoção que senti quan-

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do vi materializada na minha frente a certidão de óbito de minha bisavó, a Sinhazinha, casada com seu tio, Manoel Corrêa de Faria, meu bisavô. Um Corrêa de Faria, filho do Barão de Itaperuna. Até então, ela era uma foto na parede da fazenda do Limoeiro, esmaecida na memória. Cabelos lisos, olhos repuxados, malares salientes. Morta à época da gripe espanhola, em 1918. Assim, devagar fui ganhando uma família muito maior do que eu sempre supus ter. E meu coração foi se abrindo para ela a ponto de me apaixonar por alguns personagens, admirá-los, e me espantar ou me apiedar de outros. Hoje não consigo me pensar sem essa quantidade de gente que me precedeu. A eles dedico estas memórias. Os “que hão de vir” e os jovens descendentes dos vários ramos dessa família, hoje espalhados pelo Brasil e pelo mundo, poderão conhecer a nesga de memória que eu quis recuperar. Ou seja, as histórias de alguns filhos e netos do Barão de Itaperuna. Contar essa história ajuda a descobrir raízes de nossa ligação com a terra e o interesse em preservar relações dentro da grande família que somos. Muitas vezes imaginei o interior das casas – cenários das lembranças – à medida que as histórias me iam sendo desvendadas.

Não posso mais voltar àquele tempo e àquelas salas e pedir benção com respeito e carinho. Mas posso reconstituir parte do que eles foram e sentir nas tantas coisas que sou e que faço a força da memória desses lavradores e cafeicultores e suas mulheres, sejam eles Corrêa de Faria, Cândido de Oliveira, Cândido de Faria ou Penna. Além de ajudar a preservar essa memória preciosa, este livro tem um valor inestimável para mim. Por meio das entrevistas pude receber toda a carga de emoção positiva de amor a uma família, amor esse que, de modo geral, os informantes mais velhos me transmitiram. Como minha família cresceu então dentro de mim! Estão todos longe, ou no tempo ou no espaço, mas em minha cabeça relembro onde vivem ou viveram e as conversas que tivemos. Agora são ramos de família que estão presos em mim como raízes entranhadas na terra. Como me disse o Lalai (neto de Lino Cândido de Oliveira): “Agora sei por que sou parente de vocês.” Neste momento, ao terminar de escrever, sinto a verdade do que diz Paul Thompson: “a expressão dos sentimentos sempre foi mais poderosa quando falada do que quando escrita.” Sei disso e agradeço a todas as conjunturas que me permitiram viver e ouvir esses relatos.

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Prefácio Não se pode falar de homens e mulheres do campo e de suas vidas sem falar das terras que habitaram. Por isso, no primeiro capítulo deste livro, passeio pelos rios que limitavam suas propriedades nas terras chamadas de “Laranjeira” e imediações, bem como as matas que as cobriam. Terras encontradas intactas, descansadas e atrativas para os migrantes, incluindo nossos parentes que vieram de perto e também de longe viver na Laranjeira daqueles tempos. No segundo capítulo, descrevo o tronco dos Corrêa de Faria e a conjuntura política e econômica que lhes permitiu serem grandes proprietários de terra em São Paulo do Muriahé, atual município mineiro de Muriaé. Descrevo os possíveis motivos de sua “fuga” para as terras de confluência da então Freguesia de Santo Antônio do Manhuaçu e do Povoado do Rio José Pedro, hoje Ipanema, já com o segundo agregado Cândido de Oliveira, Tertuliano, lembrado como tio Terto pela minha mãe. No terceiro e oitavo capítulos, apresento os Penna, nascidos Gonçalves & Carvalho em Portugal, que, ao migrarem para o Brasil, adotaram o nome Penna como homenagem a sua terra de origem, Ribeira de Pena. Mostro a conjuntura social da época, que os levou a emigrar tão jovens para o reino do Brasil e depois para a república brasileira. No quarto capítulo, baseada na escritura das terras em cartório, passo a imaginar os aconteci-

mentos que se deram na data em que meu bisavô, representando o velho Barão de Itaperuna, seu pai, registrou as terras adquiridas por ele. Essas terras viriam a ser a herança dos três filhos homens, da filha mais velha e da neta e filha de criação. Descrevo essa grande quantidade de terras passadas por herança a uma geração de Corrêa de Faria. De acordo com o documento e os ditos dos antigos, as terras iam “da barra à cabeceira” do então ribeirão Laranjeira, hoje apenas um córrego. Uso o imaginário que povoa ainda a lembrança dos informantes para me ajudar nessa construção. Há uma “Laranjeira” quase lendária, mas recheada de vozes que lhe dão substância e materialidade. No sexto capítulo, falo de como a “política dos coronéis” se expressou na vida dos Corrêa de Faria e agregados. Descrevo traços da personalidade dos “coronéis” mais destacados da segunda geração da família. A geração dos filhos e agregados da família do Barão de Itaperuna, vivendo quase todos a orbitar em torno da fazenda Laranjeira. O modo de viver da extensa família, as relações de compadrio entre ex-escravos e patrões, a morte do barão, os últimos dias da baronesa estão no capítulo cinco. O capítulo sete é particularmente atrativo para mim, uma vez que envolve o encontro de meu bisavô, Manuel Corrêa de Faria, a quem aprendi a admirar pelas suas histórias, com o português Chi-

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co Penna, um simples arrieiro de tropa chegado de Portugal. Esse português se casaria com a filha Ana de Manuel e viria a ser o meu avô, figura que tive a sorte de conhecer muito bem. Eu o respeitava, amava e admirava, vendo-o, já velho fazendeiro, na varanda da fazenda do Limoeiro. Ele tinha poder sobre as pessoas. Um poder que ele exercia de forma mansa, firme, silenciosa e bem humorada. Nos capítulos nove e dez, conto algumas histórias de casais formados por netos ou netas do Barão de Itaperuna, a terceira geração. Não foi uma escolha. Descrevo os casais que mais apareceram nas entrevistas, ou aqueles sobre os quais encontrei informantes dispostos a falar. Atenho-me, nesses dois capítulos, ao cotidiano da vida daqueles “tropeiros”, “comerciantes”, “sitiantes”, “fazendeiros”, “coronéis”, “capitães” e suas mulheres valorosas, “sinhás-dona”, “amantes”, “comadres”, “parteiras”, “benzedeiras”, que habitaram as margens do ribeirão Laranjeira, do ribeirão Santa Maria e do rio Manhuaçu, no período de suas gerações. Afastados das estradas de ferro e de cidades mais desenvolvidas, viviam principalmente em função da produção e venda do café para os escoadouros naturais. Diferentemente da primeira geração, de grandes proprietários de terras, essa segunda geração era de fazendeiros menores. Por sua vez, esses fazendeiros, ao dividirem suas terras, deixavam como herança aos filhos apenas pequenas propriedades. Descrevo como viveram esses “Corrêa de Faria”, “Cândido de Faria”, “Cândido de Oliveira” e os “Penna”, que a eles se agregaram, labutando para formar ou manter sua herança, levantar suas fazendas e criar seus filhos no trabalho duro da lavoura. Em cada família vou apontando como os descendentes da quarta geração foram se desligando das terras e migrando para cidades maiores em busca de progresso ou mesmo de sobrevivência. Nos capítulos 11 e 13, falo exclusivamente de

Francisco Penna e sua extensa família, quando já morava no município de Caratinga. Aí estou num terreno que pisei, conheci, e do qual guardo fortes lembranças. No capítulo 12, uso uma foto tirada em maio de 1948 para descrever a escola municipal de Laranjeira e reproduzir um pouco da vida escolar e outros acontecimentos dos anos 1930 e 1940 naquelas paragens. O momento de maior nostalgia fica para o capítulo 14, quando desaparecem pessoas e lugares da minha infância. Para escrever o último capítulo, busquei me aproximar da realidade atual dos parentes que vivem ainda na Zona Rural, em Laranjeira, em Santo Antônio do Manhuaçu e em Ipanema. Visitei as terras e alguns descendentes. Percorri alguns dos caminhos dessa gente. Achei poucos vestígios arquitetônicos desse passado. Os casarões estão quase todos demolidos. As poucas sedes de fazenda ainda existentes passaram para outras mãos ou estão descaracterizadas. Baseei-me também nas informações obtidas por mim e por minha mãe em visita a Ribeira de Pena, Portugal. Nesse capítulo final, faço uma viagem nostálgica. Registro impressões, lembranças, de apego e desapego àquelas terras. Terras que um dia tiveram grandes extensões, mas que, pouco a pouco, por sucessivas divisões de herança, tornaram-se menores. Ou mesmo terras que foram vendidas ou que se tornaram difíceis de administrar, já que os descendentes procuravam um centro maior, longe das dificuldades do campo. Quanto à genealogia, resolvi construí-la fazendo quatro escolhas consecutivas relacionadas aos personagens que descrevo no livro. Primeiro, decidi registrar os casais formados pelos filhos e genros do Barão de Itaperuna que aparecem na escritura de compra das terras da Laranjeira em 1893. São os casais I, II, III e IV, como aparecem nas últimas páginas do livro.

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Segundo, escolhi registrar apenas os filhos e netos dos casais I, II e IV, por serem os casais que constituíram os ramos da família cujos personagens aparecem mais no livro. Portanto, registro apenas três ramos da família do barão. Terceiro, como eu descendo do casal IV – meus bisavós –, detenho-me mais pormenorizadamente nas histórias deste ramo. E, por último, descrevo mais detalhadamente a história de meu avô português, que se casou com uma filha do casal IV. Na pesquisa iconográfica, consegui fotos inteiras, detalhes de janelas, de portas, de vigas. Encontrei fotos, anotações de família, certidões de óbito, nascimento e casamento, cópias de documentos, documentos originais, móveis, peças de vestuário, utilitários. As fotos encontradas nem sempre conseguem expressar a vida cotidiana dessa imensa família. Apresento, sem pretensões de ilustrar cada capí-

tulo, principalmente as fotos que encontrei nos velhos baús. Não são fotos especiais, são as fotos possíveis, pois muitas das que tive notícia estavam desaparecidas ou tão estragadas que não foi possível utilizar aqui. Recuperei a parte que interessava da memória oral de muitos familiares, aqueles que gostam de contar histórias. Essa é a nesga de memória que recolhi para nós, da família, e para quem mais possa interessar por ser parte da história de Caratinga, Ipanema e Pocrane. Por intermédio, principalmente, da memória oral de cerca de cinquenta entrevistados, pude passar para a escrita essas lembranças que agora transmito. Espero contribuir para preservar esse passado inimaginável quando olhamos o que o presente nos mostra das terras, das casas e das pessoas. Um patrimônio do passado que, com certeza, devemos incorporar ao nosso futuro.

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Ponte de cipó. Gravura de Rugendas, século XIX

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As terras da família, quando ainda eram mata virgem embro-me, de criança, na década de 1950, da aventura que era ir até Santo Antônio do Manhuaçu, na fazenda do tio Mario Penna de Faria, durante as férias. Atoleiros na serra do Jacutinga eram certeiros – e nós nos divertindo na carroceria do caminhão. Até pouco tempo atrás não havia asfalto no caminho até o distrito de Santo Antônio do Manhuaçu ou mesmo Ipanema e Pocrane. Então, que caminhos aventurosos os desbravado-

res não percorreram para lá chegar há mais de um século? Que interesses os moviam na direção daqueles rios e daquelas terras então quase inacessíveis? Sabemos que os rios eram muito importantes nas entradas de expedições e na definição dos arruamentos no começo das povoações. Três rios e dois córregos da bacia hidrográfica do rio Doce também ajudam a definir os limites geográficos e afetivos das terras ou dos caminhos percorridos pelos Corrêa de Faria, Cândido de Oliveira e os Penna no período de cem anos, período da história que me interessa contar.

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Rio Manhuaçu nas imediações de Santo Antônio do Manhuaçu

A minha história se inicia com a chegada do primeiro Penna, em 1880, a Ipanema e termina com a morte de Francisco Corrêa de Faria Primo, último neto do barão, cem anos depois, em 1982, também em Ipanema. Mas antes, muito antes de sua chegada, lá estavam três rios e dois ribeirões: • O rio Doce, entrada de exploradores desde os anos 1600, escoamento de ouro e pedras preciosas depois da chegada de D. João VI ao Brasil e entrada para o desbravamento de novas terras do leste de Minas. • O rio Manhuaçu, que nasce no Alto Caparaó, na serra São João no atual município de Divino-Manhuaçu, e deságua no rio Doce pela sua margem direita, próximo da cidade de Aimorés. Com suas águas verdes e macias banhava as terras que viriam a ser parte da Freguesia de Santo Antônio do Manhuaçu, do Povoado de Veadinho, da Vila de Nossa Senhora da Penha do Pocrane e do Povoado do Rio José Pedro, hoje Ipanema.

• O rio José Pedro, antes conhecido pelos índios como rio Ipanema, que é afluente do Manhuaçu pela margem direita. Por ele entrou José Pedro de Alcântara, que lhe mudou o nome. Vencendo a mata virgem, deixou sua marca para a fundação do futuro povoado que se chamaria Rio José Pedro. • O ribeirão Laranjeira, que deságua no rio Manhuaçu e dá nome às terras que viriam a ser de propriedade do Barão de Itaperuna e descendentes e onde acontece parte importante da nossa história. • O ribeirão Santa Maria, também afluente do rio Manhuaçu pela margem direita, que forma a divisa dessas mesmas terras. Acompanhando essas águas, matas frondosas encobriam insetos variados, bichos do mato e índios pouco amigáveis. Dos rios citados, os três últimos tiveram suas margens ocupadas, em 1848, pelo tenente Francisco Ferreira da Silva, o primeiro ocupante branco da região.

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nadadores e corredores, mas não possuíam canoas, por isso ficavam às margens do rio Doce. Com suas flechas podiam cercar manadas de pacas ou porcos do mato com muita habilidade. Já se podia observar o uso de um tipo de facão modificado, sinal do contato com o homem civilizado. Viviam como inimigos tradicionais de várias tribos, o que resultava em frequentes guerras. Porém, toda a sua estratégia de luta consistia em “esconderem-se atrás das árvores e lançarem flechas sobre o inimigo”, enquanto emitiam uivos e gritos de guerra assustadores. Mas não se enganem, o objetivo era massacrar o inimigo em questão. Caso a batalha fosse com algum grupo explorador, o costume era “trucidar sem dó nem piedade”. A destruição desse modo de viver dos Botocudos teve início em 1808, quando D. João VI, querendo facilitar a navegação no rio Doce, moveu uma “guerra justa” contra eles. Foram criadas aldeias para “domesticá-los”. Domesticados, pararam de

Os Botocudos. Gravura de Rugendas, século XIX

Família de Botocudos. Gravura de Rugendas, século XIX

Os Botocudos Antes disso, ali viviam os temíveis guerreiros chamados, pelos tupis, de Aimorés e, pelos portugueses, de Botocudos. Eram seminômades. Viviam “em paz”, guerreando com os tupis, dominando as margens do rio Doce contra investidas de raros exploradores. Rugendas, que desenhou e escreveu sobre os usos e costumes dos índios brasileiros, observou a vida dos Botocudos nos anos 20 do século XIX. Insiro aqui algumas pranchas dos seus desenhos para dar uma noção do que havia na região. Diz Rugendas que os Botocudos pareciam menos oprimidos que os índios de outras etnias que já se encontravam em contato com os portugueses e que foram explorados como escravos, a exemplo do acontecido na Vila de São Paulo do Piratininga. Ele relatou e desenhou os pedaços de madeira que eles usavam no lábio inferior e nas orelhas, o que os distinguia de quaisquer outras tribos. Eram

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resistir e foram dizimados por matança, doenças, expulsões. Por fim, ocorreu a perda da identidade e das características culturais desse povo. Em 1820, o pacifista francês Guido Marlière, a serviço do rei, consumou seu trabalho de anos naquela região ao catequizar um chefe botocudo conhecido por Pokcrany. Esse chefe, ou capitão, como os portugueses o chamavam, passou a cooperar com os pioneiros ditos civilizados, o que marcou o fim da resistência dos Botocudos na região, abrindo caminho para a entrada franca de desbravadores. Na mesma época, a navegação pelo rio Doce foi organizada e, bem mais tarde, a estrada de ferro chegou a Aimorés, tornando interessante a comunicação dessa região com a província do Espírito Santo, onde havia porto.

Relatos do naturalista Auguste Saint-Hilaire, dessa mesma época, falavam de mineiros mulatos levando carne de porco, frutas e café até o rio Doce e trocando por sal, produto então muito caro na província de Minas Gerais. Assim, a ocupação primitiva pré-colonial dava lugar a outro tipo de ocupação. Os ferozes Botocudos, a malária e as matas aparentemente intransponíveis há 200 anos foram barreiras aos poucos superadas pela necessidade de abertura de novas fronteiras. Em 1843, Manoel Antônio de Souza subiu o rio Manhuaçu, fazendo picadas na mata, ao longo do rio. Entrou pelo já percorrido caminho de José Pedro e tomou posse das terras situadas às margens do ribeirão de Pocrane, que até então pertenciam aos índios da tribo do chefe Pokcrany. Mineiros. Gravura de Rugendas, século XIX

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Em 1848, chegou João Caetano do Nascimento no local onde fundou Caratinga. No mesmo período, como já dito, chegou José Pedro na localização onde viria a ser Ipanema. A partir daí, a migração regional se tornou uma realidade nessa área. Deve-se lembrar que as terras tinham pouquíssimo valor. Às vezes dava-se um porco ou um cavalo em troca de um terreno muito grande. Por isso mesmo as migrações internas eram muito grandes nessa época. Todos os trajetos entre as diferentes zonas da província eram percorridos a pé ou no lombo de burros, margeando os rios. A migração regional As terras até hoje conhecidas como Laranjeira, zona rural de Ipanema, tiveram seu primeiro registro em cartório em 1848. O registro foi realizado pelo tenente Francisco Ferreira da Silva, primeiro ocupante dessas glebas situadas no povoado de José Pedro, à direita do rio Manhuaçu e às margens do ribeirão Laranjeira e ribeirão Santa Maria. O dito tenente possuía terras até a divisa com a província do Espírito Santo. Essas terras, antes pertencentes aos índios, foram doadas pelo Império aos militares que participaram de abertura de caminhos ou combate às mesmas populações indígenas. Quase cinquenta anos depois, em 1893, elas foram vendidas para Anacleto Corrêa de Faria, Barão de Itaperuna ou Itapiruma, meu tetravô. Antes de o barão se mudar, já em 1873, chegaram muitas famílias nessa região, vindas de outras bandas da província de Minas Gerais, escolhendo para desbravar terras do povoado do Rio do José Pedro (Ipanema) e Nossa Senhora da Penha do Pocrane. O arruamento em Pocrane deve ter se iniciado por volta de 1870. Em 1873, foi celebrada a primeira missa em Ipanema. Em seguida construíram uma igrejinha de madeira dedicada a Santo Antônio.

Em 1880, Pocrane já era um distrito e pertencia ao município de São João do Caratinga. No ano de 1881, foi inaugurada a estação da estrada de ferro Minas–Bahia em Aimorés. O povoado chamava-se então Natividade. Essa estrada veio ligar a região leste de Minas com Caravelas, no litoral da Bahia. O início dos anos de 1880 marcou o começo da nossa história na região. Mudou-se para o povoado do Rio do José Pedro o português Antônio José Gonçalves, que adotou o sobrenome Penna. Ele fazia transportes de mercadorias. Na mesma década, mudou-se para Pocrane, onde foi ser comerciante. Em 1887, foi criada a paróquia de Santo Antônio do José Pedro, o que significava a existência de um pequeno povoamento. Nessa ocupação, famílias inteiras se deslocavam no lombo de burros e mulas, com animais de criação, abrindo picadas na mata, andando a pé, com bebês de colo, canastras, móveis e todo tipo de utilitários indispensáveis. Há relatos de levas de famílias que levaram seis meses para realizar o percurso entre o local de saída e o de chegada. Em 1890, Caratinga já era município autônomo. Em 1893, um entendimento entre os presidentes das províncias de Minas Gerais e Espírito Santo estudava a construção de uma estrada de Natividade, atual Aimorés, até o povoado de Passagem, atual Assaraí. A ideia era substituir as picadas de chão por estradas e melhorar a comunicação dos mineiros com o vale do rio Doce e o porto. Esse assunto certamente interessava aos Corrêa de Faria. Olhando para trás, acho recente esse tempo. Fim do século XIX. Que diferença do modo de se locomover naquela época para os dias atuais, com grandes caminhões de mudanças, rodovias asfaltadas e automóveis com ar condicionado! Posso dizer que a região para onde migrou a “parentada” desenvolveu-se tardiamente, muito devido ao relevo montanhoso, matas fechadas, águas insalubres, aos Botocudos e à malária, fatores que impunham resistência à passagem do desbravador.

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Embora esse relevo e flora fossem características comuns em grande parte da província, à ocasião da Proclamação da República, em 1822, já existiam dezenas de vilas e cidades desenvolvidas a partir dos antigos arraiais bandeirantes do período da febre do ouro e dos diamantes. E mesmo os municípios da Zona da Mata Mineira, onde estava Muriahé, tiveram desenvolvimento anterior, pela maior proximidade com o Rio de Janeiro No distante e isolado planalto paulista e no norte do Paraná, terras planas também vinham a

ser ocupadas mais tardiamente, nos últimos anos do século XIX, e o motivo do desbravamento foi a chegada dos plantadores de café. Assim, se atribui à domesticação tardia dos Botocudos e à necessidade de terras descansadas para o plantio do café, a ocupação, também tardia, da região do leste de Minas, onde se situa Santo Antônio do Manhuaçu/Pocrane/Ipanema. O mapa n.º 1, do IBGE, que aparece nesse capítulo, mostra a localização de Laranjeira, zona rural de Ipanema, e o distrito de Santo Antônio do Manhuaçu, bem como a confluência dos córregos e do rio Manhuaçu.

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Barão e Baronesa de Itaperuna, em 1889

A vida e a fuga de Muriaé no século XIX primeiro tronco constitutivo da família que eu descrevo são os Corrêa de Faria. Segundo o Dicionário das Famílias Brasileiras, essa é uma antiga família de comerciantes portugueses que veio para o Brasil ainda no século XVI e vivia estabelecida no Rio de Janeiro. Os Corrêa de Faria, avós do Barão de Itaperuna, vieram de Sorocaba, São Paulo, para a Freguesia de Mercês do Pomba. Lá, seu filho Luciano Corrêa de Faria se casou com Maria Faustina Jovita. Esse casal prosperou na região. Tinha fazenda

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próxima ao povoado de Feijão Cru, localizado no atual município de Leopoldina. Na região do Feijão Cru, tiveram doze filhos; entre eles, Anacleto Corrêa de Faria, nascido em 13 de julho de 1819. Anos mais tarde, ele viria a ser o Barão de Itaperuna. Região muito próxima do Rio de Janeiro, propiciava relações estreitas com a corte. Ainda novo, aos 21 anos, Anacleto casou-se em primeiras núpcias com Maria Francisca de Faria no dia 16 de setembro de 1840. Tiveram sete filhos, viveram e prosperaram por muitos anos, até programarem uma mudança

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para São Paulo do Muriahé, em 1861. Durante a mudança, Maria Francisca veio a falecer por febre tifóide. O casamento havia durado 21 anos até a ocasião da viuvez de Anacleto. O filho mais novo do casal, Luciano, tinha apenas um ano de idade, coisa muito comum naquelas épocas de alta mortalidade materna. Em ordem de idade, assim se chamavam os filhos de Anacleto e Maria Francisca: Dephina Francisca de Faria, nascida em 1842; Francisco Corrêa de Faria, nascido em 1850; Anacleto Corrêa de Faria, nascido em 1851; Joaquim Corrêa de Faria, nascido em 1853; Maria Francisca de Faria, nascida em 1854; Manuel Corrêa de Faria, meu bisavô, nascido em 1856, e Luciano Corrêa de Faria, nascido em 1860, como já foi comentado. Em Muriaé, Anacleto já havia adquirido novas terras, nas quais fundou a fazenda Fortaleza, onde viveria os próximos 30 anos. Aí escreveria outra página da sua história. Casou-se pela segunda vez com Branca Angélica de Faria, com quem não teve filhos. Adotaram a neta, única filha de Maria Francisca de Faria, após a morte desta. Foi na fazenda Fortaleza que viveram e se casaram os filhos. Ali foram nascendo e se criando dezenas de netos. Minha avó, que nasceu em 1890, foi nascida na sede da fazenda. Essa mesma fazenda, em 1865, chegou a ter uma relação de 90 escravos, relação esta que mostra bem o movimento que existia antes das leis contra a escravidão: a Lei do Ventre-livre e a Lei dos Sexagenários. Diz-se, também, que Anacleto frequentava a corte, tendo sido amigo do Visconde de Ouro Preto, Ministro da Fazenda de D. Pedro II. Diz-se que foram convidados e compareceram à festa de casamento da Princesa Isabel, o famoso “Baile da Ilha Fiscal”. A foto que aparece neste capítulo pode ter sido tirada com as roupas usadas nesse evento. A vida de Anacleto acompanhava o crescimen-

to de São Paulo do Muriahé, região que crescia em importância a olhos vistos, chegando à categoria de cidade em 1865, à época um dos maiores produtores de café de Minas Gerais. Vivendo nessas terras, convivendo na corte imperial, participando da guerra do Paraguai, Anacleto construiu as condições de importância política para conquistar, em 1889, um título nobiliárquico do Império Brasileiro, o título de Barão de Itaperuna, ou, como consta no documento oficial assinado por D. Pedro II, Barão de Itapiruma, com a letra ‘m’. Acredito mais ter sido um problema de grafia, já que Anacleto havia adquirido as terras e construído nova sede de fazenda no Arraial de Limeira, terras próximas ao município de Itaperuna. Itaperuna, em 1889, acabava de se transformar em cidade e de ser contemplada com uma estação de trem, chamada Itaperuna, na linha da Estrada de Ferro Carangola, sendo um local bastante promissor naqueles dias. O nome do Barão de Itapiruma ou Itaperuna consta da relação de nobres do Império brasileiro. Pelo certo ou pelo errado, vou chamá-lo sempre de Barão de Itaperuna. Na ocasião em que o barão comprou as terras, elas ficavam próximas da então Freguesia de Limeira, uma povoação pequena desenvolvida em torno de uma capela chamada Nossa Senhora do Rosário. Hoje, essas terras pertencem ao município de Rosário de Limeira, emancipado de Muriaé há poucos anos. Mas os tempos de progresso, riqueza, influência política e estabilidade, que passavam vagarosos, pareciam estar com os dias contados ao final do século XIX. Surgiram obstáculos à continuidade da vida da grande família naquela região e aí partiram todos mais uma vez. Primeiro, haviam saído de Sorocaba para Mercês do Pomba. Depois, de Mercês de Pomba para São Paulo do

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Muriahé, e agora vinha nova caminhada. De um dia para outro, provavelmente em 1892, partiu de Muriaé toda a família para o novo destino a ser desbravado. Nessa nova mudança, diz-se que saíram: o Barão de Itaperuna, Anacleto Corrêa de Faria; sua segunda mulher, a baronesa Branca Angélica de Faria; dois irmãos, com suas famílias; três filhos casados, todos com filhos, alguns já jovens, mas a maioria criança e alguns bebês de colo. Dentre os agregados por casamento, vieram: o genro Tertuliano Cândido de Oliveira, casado com uma das filhas, e José Dornelles da Costa, casado com aquela neta que era ao mesmo tempo filha de criação do barão e da baronesa. Certamente, era uma leva de quase cem pessoas, de todas as idades, abrindo picadas à beira dos rios, parando para dormir sob o risco de serem atacados por animais ferozes, ficando à mercê de doenças e muitas atribulações em cada dia de jornada. Deixaram para trás suas propriedades rurais. Deixaram a imensa sede da fazenda Fortaleza, com casa assobradada ornada com represas e palmeiras imperiais à frente. Ela distava uma légua de Muriaé. Deixaram também a outra fazenda, com sede para os lados de Itaperuna, no arraial de Limeira, e um palacete na Rua Direita, a principal da cidade de Muriaé, hoje Rua Barão de Monte Alto.

“fuga” para descrever a mudança para as terras de confluência entre Santo Antonio do Manhuaçu/ Ipanema/Pocrane, numa região da então província de Minas Gerais bem próxima da divisa com a província do Espírito Santo. Para melhor visualização, apresento a localização da região no mapa n.º 2. Ela está localizada na confluência dos 20 graus de latitude sul e 42 graus de longitude oeste. Citam que Joaquim Corrêa de Faria, filho do barão, saiu da fazenda Fortaleza dentro de um caixote, e que o barão teria saído debaixo da saia da baronesa. A recuperação desse episódio não é fácil. Antônio Carlos Corrêa de Faria, em seu livro “O Sangue do Barão”, conta em minúcias fatos recuperados por relatos orais de informantes familiares. Para nós, descendentes dos filhos de Anacleto Corrêa de Faria, vale a pena ler, especialmente, o trecho entre as páginas 30 e 44, no qual o nosso “parente” conta a saga da família em retirada do então município de São Paulo do Muriahé. Ali, ele relata que saíram com grande tropa de animais, mobília, alimentos, porcos, aves. Vieram

Que motivos teriam os Corrêa de Faria, já produtores de café, participantes da política local, com título nobiliárquico fornecido no final do Império, para migrarem para uma região remota entre os anos de 1892 e 1893? Todos os relatos dos informantes mais antigos usam a expressão

Localização da região das terras da família no mapa de Minas Gerais

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Colheita do café. Gravura de Rugendas, século XIX

atravessando pela serra do Caparaó. Passaram pelo entreposto de escoamento da safra que existia onde hoje é Manhumirim. Depois seguiram pelo rio Manhuaçu. Há quem diga que passaram pela então vila de Caratinga, que naquela época possuía pouco mais de 25.000 habitantes. Há vários relatos que dizem terem gasto quarenta dias de jornada do ponto de partida até Santo Antônio do Manhuaçu e Laranjeira – Ipanema. Na chegada do barão e sua família, houve festança de três dias, já que lá morava um sobrinho de nome Antônio, também proprietário de terras. Possíveis motivos para fuga de Muriaé O enriquecimento e a crise do café na vida de Anacleto Corrêa de Faria As primeiras sementes de café chegaram ao Brasil cem anos antes da independência. Chegaram primeiro ao Pará, desceram lentamente para o Rio de Janeiro, mas no final de século XVIII a produção ainda era insignificante, com plantações restritas quase que exclusivamente ao Rio de janeiro.

Os caminhos eram precários e só com a melhoria das estradas foi possível o crescimento da lavoura cafeeira para o interior de Minas, São Paulo e Paraná. Ao longo de século XIX, a produção cresceu bastante. Aumentaram muito os preços do produto no exterior, o que fez crescer de norte a sul a procura por terras virgens e disponíveis para essa lavoura. A produção do café, naquela época, foi tão importante que serve para dividir a história econômica brasileira. Durou mais de cem anos (1800-1930) o chamado ciclo econômico do café entre nós. Ter uma caneca de café na cozinha ou na sala de visitas foi uma realidade que se iniciou com a lenta propagação dos grãos de café pelo Brasil. Em 1820, o café respondia por 18% do total das exportações do reino, índice que subiu para 42% em 1840, tornando-o o principal produto de exportação. Bem no ano do casamento de Anacleto e Maria Francisca. A partir de 1850, houve um forte investimento em estradas de ferro, navegação a vapor, incremento das atividades portuárias, o que ampliou as

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fronteiras agrícolas e a possibilidade de escoamento do produto. Os anos de 1870 foram anos de investimento na infraestrutura da corte e das áreas de interesse econômico. Assim, com as terras abundantes e mão de obra subempregada, os lucros eram grandes e incentivavam o aumento progressivo da produção. Isso transformou pequenos sitiantes em ricos fazendeiros em um período pequeno de tempo. O mercado internacional foi absorvendo essa produção de café por décadas, até entrar na crise de superprodução. A economia cafeeira se tornou o grande acumulador de capital no Brasil na segunda metade do século XIX e disso se beneficiou Anacleto – e sua família –, como cafeicultor que era. Se considerarmos as terras e os casarões que possuía; o direito de ser votado; o título nobiliárquico; a compra de terras em região valorizada no município, dá para afirmar, sem erro, que Anacleto Corrêa de Faria também participou desse processo de acumulação de capital proporcionado pelo ciclo do café. É certo que o café era a mais importante produção agrícola em terras do Barão de Itaperuna. Porém, como era de se esperar, ao longo do tempo as terras foram se exaurindo com esse plantio realizado de maneira extensiva. O desenho de Rugendas mostra a colheita do café como era feita no século XIX. Em 1889, houve uma grande crise do café no Brasil, com muitas histórias de miséria e desespero para grandes e pequenos proprietários. Houve, como consequência, uma busca por terras mais férteis, menos esgotadas e mais baratas do que as terras dos municípios próximos dos grandes cerealistas e da infraestrutura de estradas e ferrovias. A região escolhida pelos nossos parentes tinha vantagens: terras incultas, férteis e baratas, clima bom, e um parente, Antônio Corrêa de Faria Sobrinho, que já estava morando por lá. Além do mais,

estava a apenas 14 dias de tropa até Aimorés, onde se encontravam os exportadores de café devido à estação da estrada de ferro inaugurada em 1882. Os prejuízos com a abolição da escravatura A abolição da escravatura afetou a economia agrária em todo o País, e certamente influenciou o modo de produção nas fazendas do barão e o modo de viver de sua extensa família. Entre 1850 e 1888, o volume da mão de obra escrava já vinha diminuindo no País, o que atingia diretamente o trabalho das lavouras. Em 1850, Euzébio Queirós propôs a lei que proibia o tráfico negreiro. Em 1854, outra lei, a Nabuco Araújo, impunha sansões às autoridades que encobriam o contrabando de escravos. Mais de 20 anos passados e, em 1871, surgiu a Lei do Ventre Livre; em 1885, a Lei dos Sexagenários. Finalmente, em 1888, foi declarada a abolição da escravatura. Esse decreto acabou lançando toda a mão de obra escrava no mercado livre do trabalho, deixando um vazio na economia agrária, já tão afetada pela crise do café. As fazendas ficaram sem braços para a lavoura. Essa perda de mão de obra atingiu o fazendeiro acostumado ao acúmulo de capital obtido, entre outras coisas, com o baixo gasto com a mão de obra. Foi necessário um período de 30 anos para que os latifundiários se adaptassem a novos modos de produção e novas tecnologias. Foi o que aconteceu no planalto paulista e na região de Campinas, em São Paulo. Essas mudanças parecem não ter ocorrido na fazenda Fortaleza, de propriedade do Barão de Itaperuna, meu tetravô. Uma relação de escravos do barão, do ano de 1886 –, portanto, depois da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários –, mostra já um número pequeno de escravos: são 20 ao todo, três em atividades domésticas, e boa parte constituída de famílias, pai, mãe e filhos. Escravos com três e quatro filhos, a maioria, adultos jovens.

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Família escrava. Gravura de Rugendas, século XIX

Essa configuração faz suspeitar de uma relação mais familiar com alguns escravos. No Livro de Registro da Igreja da Paróquia de São Paulo, em Muriaé, encontrei o Barão de Itaperuna (assim escrito) como padrinho de casamento de dois escravos, Camilo e Romana. Alguns informantes falam de filhos de escravos tomados como “filhos de criação” e de ex-escravos que vieram junto com a família para Santo Antônio do Manhuaçu/Ipanema, alguns vivendo com a família até idade avançada e morte. Assim, talvez tenha ocorrido uma absorção dessa mesma mão de obra ex-escrava no período pós-abolição nas fazendas de propriedade do barão, seja na fazenda Fortaleza ou a fazenda localizada no Arraial de Limeira. O fato é que a perda de mão de obra deve ter influído no sentido de diminuir a produção das fazendas e os ganhos de capital do barão, ao mesmo tempo em

que se estreitaram os laços com alguns ex-escravos. Também aqui, recorri aos desenhos de Rugendas para mostrar a possível ambientação da vida escrava nas fazendas do barão. A Proclamação da República pode ter mudado os planos do Barão de Itaperuna Ao mesmo tempo em que ocorriam essas mudanças na economia do café, na política, a Proclamação da República provocou uma mudança geral no poder. Isso afetou a vida dos agricultores e dos eleitores de modo geral, especialmente de quem detinha poder político nos municípios sob a bandeira do partido monárquico. Sabe-se que a Proclamação da República não foi um ato com participação popular. Foi desejo de intelectuais e militares que propunham uma mudança em nome do povo. No entanto, o povo

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não participou desse processo. Não participou porque não tinha o hábito de exercer a cidadania. Naquela época, poucos eram votados e pouquíssimos podiam se candidatar, como foi o caso do barão. Pasmem! Em 1876, apenas a porcentagem de 0,25% da população brasileira possuía o direito ao voto! Para ser votante, era preciso ter renda líquida anual de 100 mil réis e, para ser votado, o valor era de 200 mil réis anuais. Assim, poucos tinham a condição necessária para participar ou ajudar a decidir questões tais como forma de governo. As discussões ficavam por conta dos partidos políticos: os liberais e os conservadores, ambos defendendo interesses dos grandes proprietários de terras. Com a Proclamação da República, muitas mudanças políticas ocorreram, como seria de se esperar. A família real foi banida para a Europa, foram extintos os partidos políticos então existentes e ascenderam os partidos republicanos. Cada Estado da Federação passou a formar o seu partido republicano, de modo que não havia partidos de expressão nacional. Entre os republicanos havia duas correntes que se opunham. Na hora de votar a primeira Constituição Republicana, a corrente liberal, a serviço dos grandes cafeicultores, prevaleceu, mantendo os interesses dos grandes proprietários de terras. Aos grandes cafeicultores interessava um poder no qual os governos estaduais tivessem amplos poderes políticos e econômicos, de modo a poderem influir sobre o novo governo federal. Como era de se esperar, foi um período de muitas revoltas e crises. Assim, os primeiros anos da República no Brasil foram instáveis, com rebeliões civis e militares nos estados e no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. A mais famosa foi a guerra de Canudos, na Bahia, cujo líder foi Antônio Conselheiro. De toda forma, os antigos defensores do governo imperial, de um modo geral, se adaptaram

à nova ordem e buscaram formas de se acercar do novo poder constituído. Entre o Espírito Santo e Minas Gerais havia as terras do Contestado, com disputa de divisa entre as duas províncias, terras estas da região onde hoje está Aimorés, muito próximo da região que eu chamarei de Santo Antônio do Manhuaçu/Ipanema/Pocrane. Nessa conjuntura política de uma república nova e em crise, vamos encontrar a família Corrêa de Faria vivendo, até fevereiro de 1892, com certeza, em Muriaé. E, em 1893, já devidamente instalada, de acordo com registros de nascimentos, em Santo Antônio do Manhuaçu e Ipanema. Teria sido uma fuga? Se houve fuga, certamente havia perseguidores. E os ameaçados, segundo a tradição oral, eram exatamente os dois Corrêa de Faria, que haviam se candidatado a cargo de vereador no período do Império, no então município de São Paulo do Muriaé. Portanto, eram pessoas que tiveram ou tinham participação na política local. Anacleto Corrêa de Faria, em 1870, aos 49 anos, foi eleito vereador geral entre os sete mais votados, com 912 votos. Em 1882, já com 61 anos, foi novamente candidato a vereador e teve 512 votos, ficando como suplente de vereador geral, mas se manteve como Conselheiro Distrital. Em agosto de 1889, recebeu o título de barão do Império, aos 70 anos. Em 1890, portanto, já no tempo da República, ele não apareceu mais nas disputas eleitorais, mostrando afastamento das atividades políticas eleitorais em Muriaé após o advento da República. Joaquim Corrêa de Faria, filho do barão, ainda no tempo do Império, se candidatou a vereador, mas não recebeu votos e, no período posterior, já na República, também sequer se candidatou, mostrando certo afastamento do poder. Na vizinha cidade de Manhuaçu, após a Proclamação da República, monarquistas aderiram ao

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novo Partido Republicano e mantiveram o poder em suas mãos. No entanto, uma nova classe de migrantes começou a se erigir como nova liderança, em oposição ao continuísmo político. A situação de insurgência contra o governo federal chegou a tal ponto que criaram a chamada República de Manhuaçu no ano de 1896. Durou breve período e se desmantelou após forte repressão do governo federal sobre os insurgentes Nossos parentes teriam tido alguma relação com os líderes da República de Manhuaçu? É certo que um dos genros do barão, muito tempo depois, já em Ipanema, casou três filhas com três filhos de João do Calhau, um dos líderes desse movimento. Nossos parentes não eram aventureiros, ou desbravadores, e sim toda uma prole a se deslocar numa direção pré-determinada. Isso implicou a saída de cinco dos sete filhos, sobrinhos, dezenas de netos, bisnetos, genros, noras, compadres, ex-escravos e outros agregados, todos deixando para trás suas casas, terras, labutas diárias da vida de agricultores e donas de casa, suas histórias, um relativo conforto, uma convivência com o Rio de Janeiro (pelo menos como capital do Império) e, principalmente, deixando os parentes que ficavam. O patriarca tinha quase 74 anos, sofrendo de pressão alta e tendo pernas notavelmente inchadas. Quarenta dias entre matas, índios, insetos, desconforto, picadas e caminhos recém-abertos, rios e cachoeiras. Era uma verdadeira diáspora. Não pensem que só nossa família fazia essa migração. Do Rio de janeiro, do Espírito Santo e de Minas Gerais, partiam famílias inteiras, com numerosos

filhos, agregados variados, abrindo as picadas na mata, descendo em canoas pelos rios, Doce e Manhuaçu, em direção a terras mais baratas. Às vezes, grandes extensões de terras eram recebidas em troca de três animais de carga, porque os primeiros posseiros eram militares que não tinham afinidades com o trabalho no campo e por isso não estavam dispostos a suportar as condições adversas das terras remotas. Um fato regional que pode ajudar a compreender a mudança de região é que, na década de 1890, ocorreu uma longa epidemia de Febre Amarela, iniciada em Cataguases, que chegou a Muriaé. Ao chegar a Muriaé, essa epidemia fez com que muitos se deslocassem da Zona Rural para a sede do município, o que deve ter desorganizado muito economicamente a vida do produtor rural. Crise econômica, crise política, briga entre famílias, epidemia, tudo pode ser motivo. Ou podem ter sido todos ao mesmo tempo. Fuga ou mudança organizada, o fato é que a migração aconteceu. Não sabemos ao certo a data, mas com certeza ela se deu entre fevereiro de 1892 e dezembro de 1893, de uma só vez, todos os Corrêa de Faria e os agregados Cândido de Oliveira e Dornelles. Encontrei certidão de nascimento de Quitéria Corrêa de Faria, neta do barão, que nasceu em Muriaé no dia 15 de fevereiro de 1892; portanto, nessa data a família ainda se encontrava morando lá. Encontrei também cópia de escritura de terreno que foi lavrada em 27 de dezembro de 1893, já em Ipanema, em nome do barão e dos filhos já descritos como moradores da localidade. Portanto, a mudança se deu entre essas duas datas.

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Ribeira de Pena, Portugal. Ao centro, a Igreja Matriz de Salvador, inaugurada em 1793

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Antônio, Estevão e Francisco partem para o Brasil Século XIX sse assunto nos leva ao então reino de Portugal. Além da migração regional, acontecia no Brasil uma grande corrente migratória vinda da Europa, notadamente de Portugal. Dessa vez essa nacionalidade contribuiu para a formação do segundo forte braço das origens de nossa família, o tronco dos Penna, que vieram se agregar aos Corrêa de Faria vivendo às margens do rio Manhuaçu, ribeirão Laranjeira e ribeirão Santa Maria. Uma visita ajudou a compor a geografia da terra de onde vieram os “Penna”.

Quem ainda não conhece e tiver a oportunidade de ir, deve visitar Ribeira de Pena. Chegamos ao centro da cidade com uma foto na mão, procurando quem conhecesse os parentes. Não foi difícil. Fomos recebidas pela vizinha dos parentes com um sonoro grito: “Mariiia... familiares do Brasiiiil”. A prima Maria, prima em primeiro grau, ou, como querem os portugueses, prima direita de minha mãe, estava num velório quando lá chegamos. Recebeu-nos com alegria espontânea e simples. Abraços apertados. Os filhos vivem na França e vêm sempre no mês

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de agosto para comemorar com a família reunida cebeu, ao batismo, o nome de Antônio José Gono aniversário da mãe. çalves; depois, no Brasil, mudou seu nome para O Concelho de Ribeira de Pena, como assim é Antônio José Gonçalves Penna. Nasceu em 1861, chamado o município em Portugal, tem como sede quando aqui no Brasil já haviam nascido todos os uma cidadezinha linda, com casario histórico, ca- filhos de Anacleto Corrêa de Faria. Era neto, por sas senhoriais e igrejas com trabalho de cantaria parte de mãe, de José Luiz Gonçalves e de Luciana e brasões sobre portas e escadas. Como a ocupa- de Oliveira. Emigrou aos 13 anos, no segundo seção daquela região é milenar, ainda se encontram mestre de 1875. estradas construídas pelos romanos. Uma foto de O que possibilitou a decisão de um rapaz tão Ribeira de Pena ilustra este capítulo. jovem assim de sair de sua pequena cidade e avenÉ possível visitar o sítio arqueológico de Lame- turar-se em uma terra distante e desconhecida? las, que indica a ocupação pré-histórica no conceA literatura nos ajuda a compor o cenário em lho. que vivia o tio-bisavô, o Penna “véio”, quando joA região fica ao norte de Portugal, é monta- vem, em Portugal. nhosa e pertence à província de Trás-os-Montes. Portugal, na segunda metade do século XIX, A cidade fica situada no vale, à margem esquerda passava por mudanças na vida do campo. do rio Tâmega. Faz parte de uma região de tradição de vinícolas, que hoje está “em alta” em Portugal. O bairro dos parentes, Reboriça, é perto do centro da cidade, como tudo lá. As casas são simples e, embora haja poucos vestígios arquitetônicos da casa da família de meu avô e tios-avós, um viajante interessado pode visitar uma ponte ainda do tempo medieval. Da casa em que a família vivia no século XIX e início do século XX, encontrei escadas de pedras D. Clara Ferreira, ao centro, é a mulher do primeiro Penna que veio para o Brasil, em 1875. À direita, e esquerda, estão as filhas Zenita e Jupira, os genros e a neta Terezinha ao colo como lembranças. A casa da prima Maria da Glória foi construída em cima dos alicerces da Surgiam as companhias agrícolas, introduzinantiga casa do meu avô. Quando identifiquei esses do máquinas e substituindo o trabalho do homem. traços do passado, me emocionei até as lágrimas. Ao mesmo tempo, as terras, pastagens e águas de A foto da casa em pedra aparece neste capítulo. uso comum para os pequenos agricultores e jorO primeiro Penna a migrar, como já falei, re- naleiros (que viviam com pagamento por dia tra– 24 –


balhado, como ocorria com os pais dos nossos parentes) não podiam mais ser utilizadas para esse fim. A vida no campo estava difícil e nas cidades o mercado de trabalho era constituído de pequenas empresas artesanais, oferecendo parca mão de obra. Crises agrícolas se alternavam, o aumento do custo de vida empobrecia mais a população. No norte de Portugal, a produção de vinhos entrou em colapso. A descrição do jornal “O século” expõe a cara da cozinha do português pobre dessa época: “... ao fundo do corredor fica o lar. É igual a todos os outros – uma pedra retangular sobre a qual se coloca a trempe que há de sustentar a panela de ferro de três pés, onde se cozinha o magro caldo com que a família habitualmente se alimenta.” Em cada igreja, ao final das missas, os que sabiam ler liam em voz alta as cartas recebidas contando a vida dos portugueses que emigraram para o Brasil. As cartas contavam que aqueles que não vieram para a lavoura ou fábrica se empregavam como vendedores, condutores, sapateiros, caixeiros, negociantes. Contavam também que a corte (Rio de Janeiro) era lugar seguro de emprego (ou melhor, subemprego) ali mesmo, perto do porto. Contavam que em volta do porto se podia conseguir moradia nos cortiços habitados e explorados por portugueses. Diziam que os portugueses se ajudavam arranjando trabalho para os patrícios. Quem sabe se as reuniões de que Antônio participou não foram nessa mesma igrejinha de Santo Antônio que aparece na foto deste capítulo? Ela fica muito perto da casa em que ele morava. Representantes de empresas de emigração liam folhetos prometendo trabalho em fábricas, no comércio varejista das grandes cidades ou nas lavouras de café; possibilidade de poupar para a compra de terras; além de pagamento das passagens pelo governo brasileiro. Como eram muito baixos os salários em Por-

Jupira, em 1936, quando era professora em Santo Antônio do Manhuaçu

tugal, calculava-se que era possível, após receber e pagar as despesas, poupar ao mês o equivalente a um salário português. Os jornais portugueses comentavam assiduamente sobre a grande retirada de patrícios. Temia-se o despovoamento do país. Dizia-se do norte de Portugal que era a “terra de homens que partem e mulheres que ficam”. O destino estava selado. A coragem de enfrentar o mar e o desconhecido era criada pela falta de perspectiva na terra natal.

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Havia uma coisa animadora: no Brasil se falava a mesma língua, praticava-se a religião católica e cá havia muitos patrícios. Muito jovem, filho ilegítimo, analfabeto, não sabia sequer assinar o nome para completar a solicitação do passaporte, o tio Antônio, depois chamado de Penna “véio”, não se utilizou dessas facilidades. O jovem português, pobre e descalço, como era costume entre a população sem recursos, saiu do porto de Lisboa e viajou num vapor, provavelmente, pela Companhia da Mala Real Britânica, que era a principal companhia de transporte entre Portugal e Brasil. Quem sabe? Não consegui registros que comprovassem. Nessa época, os navios já eram a vapor e levavam 24 dias até chegar ao Rio de Janeiro, destino seguro do pequeno português. Tive provas de sua solicitação de passaporte. Solicitou-o no dia 16 de junho de 1875. No registro estava escrito: Antônio José Gonçalves, idade 13 anos. Passaporte de número 557. Ele veio na categoria emigrante, amontoado nos porões, sujeito a doenças e à morte. Alimentando-se precariamente, chegou assim mesmo ao seu destino. No porto do Rio de Janeiro, ou, como se dizia, na corte, passou pelo serviço de inspeção sanitária da imigração brasileira e foi liberado para seu destino: a empresa Nolasco de Abreu, comércio varejista, de outro português, na cidade de Abre Campo, na então província de Minas Gerais. Veio a cavalo até o ponto final da viagem, junto com tropeiros que faziam esse trajeto. Nessa empresa deve ter aprendido a ler, pois o relato de sua filha Jupira informa que ele fazia contas bem, conhecia todas as datas históricas, escrevia e era leitor de jornais. Quanto tempo terá ficado nessa empresa? O suficiente para poupar e travar conhecimento mais seguro com tropeiros que iam de Ipanema até Abre Campo comprar querosene e outros produtos e também conhecer a moça com quem veio a se casar.

Atraído pelas histórias contadas sobre o início da povoação e a chance de estabelecer comércio às margens do rio Manhuaçu, o já Antônio Gonçalves Penna foi se estabelecer em Ipanema, ao que parece, no início dos anos de 1880. Ali comprou duas canastras e uma mula. Vendia bacalhau em várias povoações, caminhando pelo sol inclemente com a pele branca de ruivo que era. A partir daí, o mascate começou a acumular seu capital e montou um comércio ainda pequeno, do qual, entretanto, era o proprietário. Esperou o momento de casar-se com Clara Ferreira, a moça de Abre Campo, o que deve ter acontecido após dez anos da chegada ao Brasil. Podemos imaginar, portanto, sua vida sem família, trabalhando e, com certeza, poupando. Escreveu para a família da moça uma carta numa folha de papel almaço, pedindo-a em casamento. Para sua felicidade, foi aceito. Que distância no tempo, no espaço e nas vivências havia percorrido o pequeno português. Com certeza, progrediu com o trabalho diário, com perseverança, determinação e gastos mínimos. Mas demorou muito tempo para se sentir de novo em família, já que o primeiro filho nasceu em 1889, 14 anos depois da saída de Portugal, quando já estava próximo dos 30 anos. Com o início da prosperidade, escreveu carta para a família e chamou seu irmão Estevão para sua companhia, com o intuito de ajudá-lo no trabalho do balcão. Mas as dificuldades teimavam em se apresentar. Numa noite, a família foi convidada para ir a uma festa. Quando voltaram para casa, a venda havia sido saqueada, tudo foi roubado e o irmão foi assassinado. De Estevão eu não soube nada além desse episódio. Desgostoso, Antônio recomeçou a vida em outra localidade já conhecida das andanças de mascate: Pocrane, povoação à qual chegou já com o

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primeiro filho, Segismundo Gonçalves Penna. Recomeçou como ambulante, em busca de outras perspectivas. Mas o tino para o comércio foi mais forte. Em alguns anos, voltou a montar novo comércio e prosperou rapidamente. Gostava de bacalhau e vinho à mesa. Em 1894, mandou carta para Portugal, solicitando a vinda do sobrinho Francisco, meu avô, então com 15 anos de idade, para ajudar no balcão da venda. Em 1897, nasceu a filha Alzira Hermelinda Ferreira Penna (Zilota), depois nasceu Zenita Ferreira Penna. Em 1914, nasceu Jupira Ferreira Penna, depois Hugo Ferreira Penna. Ainda não podia se dar ao luxo, mas sua filha Jupira conta dos belos vestidos de sua mãe, da viagem feita ao Rio de Janeiro levando canastras com roupas, das leituras de jornais, da conversa e também da “brabeza” do velho português quando mais tarde as filhas ficaram moças. Jupira conta o episódio da tal ida da mãe ao Rio

de Janeiro, das malas cheias de roupas elegantes quando D. Clara voltou. Ela se lembra especialmente de um tipo diferente de ferro que se usava para passar os babadinhos dos vestidos. Lembra também que a mãe tinha vestidos com miçangas de enfeite. Com visão no futuro e no progresso das filhas, valorizou sua educação e as mandou estudar internas no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora em Ponte Nova. Jupira saiu formada quando ia fazer 17 anos. Depois de formadas, nada de trabalhar fora de casa. Moça tinha que arranjar casamento e ser dona de casa. Não foi o que elas fizeram. Dona Zenita casou-se logo e se mudou. Foi professora do Grupo Escolar Menino Jesus de Praga em Caratinga. Jupira, uma feminista já naqueles tempos, não se aquietou. Solteira, escondida do pai, andou dois dias inteiros a cavalo até Caratinga em busca de uma indicação política para assumir o cargo de profes-

Igreja Santo Antônio no bairro de Reboriça em Ribeira de Pena, localizada próximo à casa de Antônio, Estevão e Francisco

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sora em Santo Antônio do Manhuaçu. Ela diz que, já nomeada, foi uma luta para convencer os pais a deixarem as meninas irem para a escola. Eles diziam: – “Menina aprende a escrever e depois vai escrever carta pra namorado.” Teve que ir de casa em casa matriculando as meninas. Isso já na década de 1930. Por lá ficou nove anos como professora. Depois se casou com Fábio Folly. Seu irmão mais velho, Segismundo, que teve apelido de Zito, foi juiz de paz em Pocrane na década de 1940 e no ano de 1948 foi candidato a prefeito, tendo sido derrotado por Leonir de Assis Magalhães. Jupira morreu recentemente em Brasília. Estava lúcida de dar gosto. O segundo Penna Além do episódio de seu assassinato, não consegui nenhuma informação a seu respeito. Só sei que veio chamado pelo irmão, seu nome era Estevão e foi assassinado antes do ano de 1894, como já dito. O terceiro Penna Francisco, meu avô, nasceu Gonçalves, também em Ribeira de Pena, Portugal, no dia 18/05/1880. Chegou ao Brasil, em 1895, aos 15 anos, e adotou o nome de Francisco Penna. Deixou em Portugal os pais, a irmã Margarida e os irmãos José, Antônio e Augusto. Este último com apenas quatro anos de idade. Analfabeto, veio trabalhar com o tio em Pocrane. Não chegou mais na corte. O Brasil era então uma jovem república. O Rio de Janeiro já possuía em torno de 522 mil habitantes, dos quais 100 mil eram desempregados ou pessoas de ocupação indefinida. Enchiam as ruas da cidade, onde permaneciam perambulando. No porto, carregadores,

trabalhadores de pés descalços, a maioria negra, raça desconhecida pelo português. Quiosques lamacentos e feiras livres faziam parte do cenário. Ele certamente não andou pela estreita rua do Ouvidor, rua burguesa, com lojas caras e mulheres bem vestidas, como faria no futuro, muitos anos depois. Se, quando o tio veio, a emigração de portugueses para o Brasil ainda era pequena, nos anos 1880 e 1890 ela havia crescido grandemente. Não consegui documentos que comprovassem se a vinda foi legal ou clandestina. Havia dois tipos de classes nos navios: a primeira e a segunda. Essa última era conhecida como classe emigrante. Dentro dessa classe havia uma subdivisão entre o emigrante legal e o clandestino, que vinha nas mãos dos comandantes de navios para depois pagar as passagens, na chegada, quando um patrão assumia sua dívida, a ser paga em trabalho. Houve período em que os emigrantes ilegais chegaram a 1/3 da emigração legal. Vinham amontoados, em porões abafados e mal iluminados, superlotados e com más condições de higiene. Há indícios de que Francisco Penna tenha vindo assim. Descalço, carregando uma réstia de alho no pescoço, como a maioria dos jovens camponeses que saíam do norte de Portugal. Porém, ele tinha um destino seguro. Vinha trabalhar na venda do tio Antônio Penna, no distrito de Nossa Senhora da Penha do Pocrane, um lugar remoto, na então província de Minas Gerais. Entretanto, o que parece seguro pode ter seus percalços. Imagine seu medo do desconhecido ao chegar à corte. A Inspetoria de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura havia criado a hospedaria Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, de modo a acolher os que chegavam. Francisco recebeu assistência médica, banho, refeições e pernoites nessa hospedaria. Depois devia ir rumo ao trabalho.

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Casa da prima Maria da Glória em Ribeira de Pena. Os alicerces são os mesmos da casa onde nasceram os Pena que vieram de Portugal para o Brasil

Nessa época, muitas vezes, menores eram recrutados ilegalmente para as fileiras do exército e da marinha. Ou, se fosse encontrado perambulando pela rua, era interpelado pelas milícias e retido na detenção. Não há descrição de nenhuma intercorrência desse tipo na passagem de Francisco pelo Rio de Janeiro. No ano em que ele chegou já existia a estrada de ferro, que chegava a Natividade do Carangola. Ele devia tomar o trem, com seus carros de passageiros e dezenas de carros de carga, no Rio de Janeiro, e descer em Carangola. Depois seguiria a cavalo, acompanhando mascates que faziam o trajeto até Pocrane. Em Minas Gerais, governava então Dr. Afonso Penna, que foi o primeiro presidente de província a ser eleito pelo voto direto. Ele era filho do Major Domingos José Teixeira Pena, natural de Ribeira de Pena. Durante seu governo, decidiu-se pela

mudança da capital, de Ouro Preto para a freguesia do Curral del Rei, atual Belo Horizonte. Quando meu avô emigrou, já havia uma política clara de Afonso Penna de estimular a emigração. Ele dizia: – “Governar é povoar.” Uma vez aqui, meu avô trabalhou com o tio Antônio ou tio Penna “véio”. Não se sabe quanto tempo Francisco Penna ficou com o tio, mas o fim do acordo se deu com um caso muito difundido na família. Meu avô, depois de trabalhar por um tempo e ver que não recebia seu salário, fez a seguinte pergunta, carregada de sotaque português: – “Ó meu tio, quanto estou a ganhaire?” Ao que o tio lhe respondeu: – “Estais a ganhaire o angu.” Sabe-se que depois dessa certeza meu avô saiu da companhia do tio e começou nova vida.

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Que tipo de iniciativa podia ter um imigrante português jovem sem capital e sem renda? Desocupados tinham oito dias para arranjar ocupação ou seriam encaminhados pela polícia a um serviço compulsório. Ficariam retidos pelo período de um ano, de acordo com o Artigo 29 do Código de Postura do ano de 1891 do município de Caratinga. Tinha que arranjar novo trabalho em seguida. O caminho natural foi começar como tropeiro numa tropa que não era dele, com a função de colocar e retirar os arreios dos animais, carregar e descarregar as cargas que a tropa levava. E assim iniciou a vida independente no Brasil. Com o tempo, passou a ser “arrieiro”, responsável pela conservação dos arreios, de cuidar da costura do peitoral, da retranca, da sobrecarga, do arrocho e da sopradeira. Quanto tempo passou nessa função não pude descobrir. É provável que muitos anos. Só perguntando para ele. Isso, eu nunca pensei em perguntar quando era adolescente e convivia com ele. Perdi bons relatos. Não havia o costume de indagar coi-

sas. Lembro-me de umas poucas brincadeiras divertidas. Lembro-me dele chamando meu irmão Jefferson. – “ Vem cá ‘fersão’. ” Lembro-me dele afável, bem humorado e tranquilo. Até a virada do século XX, muitas coisas iriam mudar na vida de Francisco Penna. Chegou um momento em que ele, de passagem pela fazenda Laranjeira, ainda como “arrieiro”, se encontrou com Manuel Corrêa de Faria, o Tiné. Francisco sabia, porque era esperto, que devia se vincular a alguma família. Não podia ficar sozinho. O Brasil não funcionava assim. Estudiosos já diziam: “... um forasteiro, um indivíduo que não se encontrasse integrado como parente ou agregado a um sistema familial (...) esse não era nada no vilarejo, vivia à parte, desajustado e sem direito a coisa alguma.” E ainda: “O ‘homem bom’ era o homem da família.” Como Francisco Penna conseguiu essa oportunidade, só vamos saber mais tarde.

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Desmatamento. Gravura de Rugendas, século XIX

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A compra das terras da Laranjeira em 1893/1895 Século XIX ra o dia dois do mês de março de 1895. Quem sabe chovia. Tiné tinha documentos à mão. Ele ia ao cartório para retificar e ratificar uma compra feita dois anos antes. Com certeza, o cavalo veio amassando o barro pelo caminho da fazenda Laranjeira, duas léguas, até Santo Antônio do Manhuaçu, já que a temporada de chuvas ainda estava em vigor. Perto da fazenda Estrela, apeou e atravessou o rio Manhuaçu de canoa. O resto do caminho era a pé. Era natural a escolha de Tiné para resolver os assuntos com o escrivão. Ele sempre teve facilida-

de para entender e explicar as coisas. Desde novo, com muita opinião. Diferente do irmão Joaquim, que era briguento. Os compadres ficaram cada um nas suas terras, cuidando da derrubada das matas para fazer os novos cafezais a formar, as outras plantações, as criações, colocando os moinhos de milho para funcionar e as engenhocas de cana para trabalhar. Esse desenho de Rugendas também ajuda a imaginar as atividades de derrubada das árvores que fizeram parte do dia a dia dos parentes, naquela época. O barão já estava envelhecido. Havia feito 74 anos em 13 de julho. Esse assunto já estava mais

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33 – Mapa afetivo de–Laranjeira e imediações no fim do século XIX e início do século XX


do que passado. Já era hora de refazer a escritura lavrada dois anos atrás. Ia relembrando aquele 27 de dezembro, dois anos antes. Todo mundo na fazenda Itaperuna, conhecida também como fazenda Laranjeira, para passar a primeira escritura. Os homens na sala. Todos os nove: o pai, o barão; os compadres: o cunhado Terto (Tertuliano de Oliveira), os dois irmãos Joaquim Corrêa e Chico Corrêa; e Zeca Dornella (José Dornellas da Costa), casado com a neta e filha de criação do barão e da baronesa; Delfina Jovita de Faria; ele próprio (Manuel Corrêa de Faria, apelidado Tiné desde novo); o escrivão e as duas testemunhas. Ficou tudo marcado nos livros do registro. As terras adquiridas pelo barão para os filhos tinham um mil (1.000) alqueires de terra. Iam “da barra à cabeceira” do ribeirão Laranjeira. Acompanhavam as margens direita e esquerda do Manhuaçu. Estendiam-se até o ribeirão Santa Maria, atingindo o Lacrimal Queixada. Essas fronteiras aparecem no mapa n.º 3. O primeiro desafio era derrubar as grandes árvores para a construção das casas e abrir espaço para as lavouras. Deve ter sido muito parecido com a gravura de Rugendas, embora ele tenha desenhado essa prancha anos antes em visita ao Brasil. A divisão entre os parentes ficou acertada “de boca”. A casa da fazenda, com 220 alqueires de terras em Laranjeira, ficava com o barão e a baronesa. Essa fazenda era herança certa da neta e filha de criação Delfina Jovita de Faria. Sua mãe morreu aos 19 anos, deixando a filha nova, que, ainda jovem, casou-se com o referido Zeca Dornellas, este, na ocasião, com 27 anos. Os outros 780 alqueires foram divididos entre a filha mais velha e os três filhos: Francisco, Manuel e Joaquim. Os outros filhos do barão – Lino, Anacleto e Luciano – não aparecem como herdeiros na escritura das terras que analisei. Há possibilidades de que Luciano tenha morrido cedo. Anacle-

to, com certeza, ficou homem adulto, já que vi sua certidão de casamento em Muriaé. O único desses três de quem recolhi informação sobre sua presença em Laranjeira foi Lino Corrêa de Faria, como menciono no capítulo quinto. Na cabeça, Tiné ia, certamente, repassando os detalhes: as terras que lhe couberam nas margens do ribeirão Laranjeira, a nova casa construída, assobradada, imponente, com 16 janelas, com comércio montado no pavimento de baixo, bem defronte da estrada: a fazenda Laranjeira. O sobrado avarandado já existente na ocasião da compra ficou com o barão, que lhe rebatizou com o nome de fazenda Itaperuna, como lembrança do povoado e da estação de ferro deixados para trás em terras vizinhas do São Paulo de Muriaé. Era um sobrado grande, de frente para a estrada do Pocrane. A construção era encostada no morro. Pela frente sobrado, por trás térreo. Por trás do morro pastava a criação. Essa casa ainda existe até hoje. O compadre Terto ficou com as terras onde formou a fazenda Cachoeira. Sempre fiel e amigo do barão. Lá vivia com os enteados mais novos e um único filho, que teve com Delphina Francisca de Faria. O irmão e compadre Joaquim, já com 39 anos, ficou para o lado esquerdo do rio Manhuaçu, nas imediações do ribeirão São Vicente. O único que morou no arraial de Santo Antônio do Manhuaçu. Os outros todos, apesar de viverem e se reportarem a essa povoação, moravam oficialmente em terras de Ipanema. Joaquim também construiu casa grande, sede da fazenda São Vicente de Baixo, do lado direito da estrada que ia dar no arraial de Santo Antônio do Manhuaçu. Foi o único que não herdou terra da Laranjeira que pertencia a Ipanema, e sim herdou terras próximas de Santo Antônio do Manhuaçu, que pertencia a São João do Caratinga. Como todos os irmãos e irmãs, o próprio Tiné, Manoel Corrêa de Faria, veio casado e com filhos

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desde Muriaé. Na ocasião dessa escritura, ele tinha 37 anos e contava quatro filhos. Havia casado com sua sobrinha, filha mais velha da irmã viúva. Esperou até os 26 anos a sobrinha Maria Cândido de Oliveira, conhecida como Sinhazinha, ter idade de 16 anos para se casar. Naquele tempo, casamento era arranjado ou ficava entre primos mais distantes. Parece que esse não. E foi celebrado com a desaprovação da família. A fazenda Laranjeira ficaria famosa e todos os mais velhos recordam impressionados a sua imponência. Pena não existir foto que a relembre. Com certeza foi a maior construção que existiu para aqueles lados. Além dos três filhos: Mariana Cândido de Faria, Joaquim Corrêa de Faria Sobrinho, Ana Cândido de Faria, nascidos em Muriaé, ainda teria mais cin-

co filhos nascidos em Laranjeira: Maria Cândida de Faria, em 1895, Anacleta Cândido de Faria, em 1898, Anacleto Corrêa de Faria, em 1901, Francisco Corrêa de Faria, em 1903 e Deolinda Cândido de Faria, esta última nascida em 1907. No dia da primeira escritura, em 1983, enquanto os homens tratavam de negócios na sala, as mulheres ficaram na cozinha. Certamente cuidavam de ferver o leite no tacho da fornalha; de passar o café e de assar as broas de milho no forno da cozinha. Tudo pronto, ia direto para a sala de visitas da fazenda Itaperuna. A baronesa, ainda esperta, cuidava de dar ordens para as mulheres em sua volta. Com certeza, na véspera haviam sido assadas fornadas de brevidade. Naquele tempo, tudo se fazia de monte. A baronesa pode ter mandado fazer a seguinte receita, que era comum na família:

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Receita de brevidade da baronesa * Primeiro batem-se 24 ovos, clara e gema, até ficar bem claros. * Em seguida, colocam-se três litros de polvilho na gamela própria. * A seguir, colocam-se dois litros e meio de rapadura clara devidamente raspada. * Passa-se a socar. Tem que socar muito, até começarem a estourar pequenas bolhas.

* Acrescentam-se três colheres de chá de sal. * Mexe-se tudo com colher de pau. * Depois, está pronto para colocar nas formas. * Lavar as forminhas e untar com banha de porco sem sal. * Levar para o forno e assar. * Depois de frio, está pronto para servir na sala para as visitas. * Como sempre é feito em quantidade, colocar o que sobrou em latas de querosene tampadas com pano de saco.

* Plof, plof, plof.

Assim pode ter sido, naquele remoto 1893, o Corrêa de Faria, naquela lendária e hoje esquecida dia em que começou oficialmente a história dos Laranjeira.

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O café no ponto para a colheita

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Os últimos vestígios da escravidão e do baronato (Final do século XIX e início do século XX) o fazer a árvore genealógica das quatro gerações da família, resolvi contar apenas os três filhos e duas filhas do barão que vieram para Santo Antônio de Manhuaçu e Ipanema, portanto, cinco filhos. Deles, resultaram 44 netos e 157 bisnetos, que sobreviveram à idade adulta. Com certeza, há um erro grande por causa das pessoas que não consegui descobrir. Se eu for contar os que a estes se agregaram por casamento, esse número chegaria perto do universo de 400 pessoas, ou mais. Agora, imagine essas 400 pessoas: • Por um período de tempo, convivendo numa

região delimitada, com pequena movimentação para outras cidades (exceção feita aos tropeiros). • Proximidade e convivência entre irmãos casados, tios e cunhados. • Convivência dos primos, muitos em idade de se casar, moços de 25 e moças de 16 anos. • Costume de homenagear os parentes repetindo nomes dos mais velhos. • Patriarcado e machismo, no qual o homem tinha o espaço da rua e a mulher a privacidade da casa. Imaginou?... Essas são as características da vida em família naqueles idos tempos e também da família Corrêa de Faria naquela época. Como consequência, ocorreram frequentes casamentos entre primos de

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Antiga Igreja Matriz de Santo Antônio do Manhuaçu. Foi contemporânea do barão e da baronesa e desmanchada em 1975

primeiro ou segundo grau e compadrio extenso entre irmãos e primos, relações de dependência, animosidades e querelas. Os informantes falavam muito: “padrinho Joaquim”, “madrinha baronesa”, “madrinha Virgínia”, “comadre Maria” e “compadre Paulino”, “comadre Catatau”, ao se referirem a parentes próximos. Temos que pensar o tipo de família comum naquele final de século: família patriarcal numerosa. O homem era o cabeça do casal, e a mulher tinha o que se chamava no Direito de “incapacidade relativa”, isto é, precisava da autorização do marido para a compra e venda de bens. O divórcio não existia. Só no começo do século XX foi válido o casamento civil. Antes só valia o casamento religioso. Neste final de século, o marido podia matar a mulher

adúltera e o filho podia ser deserdado por casar sem consentimento, Logo, a família era a garantia da ordem imposta. Então, assim deviam proceder os chefes de família Corrêa de Faria com suas mulheres e filhos. E com seus agregados, alguns deles ex-escravos? Lendo sobre relações de compadrio entre livres e cativos, é possível ver que ser padrinho e compadre de escravos não é um fato isolado na família do barão. Foi divulgado o seu uso comum na época da escravidão, como em Paraíba do Sul, São João del-Rei,Vila Rica etc. O compadrio entre patrões e escravos podia mudar o rumo da vida do escravo e da sua família. Com um batizado, ou mesmo, quem sabe, com um apadrinhamento de casamento, criavam-se relações de solidariedade, repetindo com os cativos um costume muito utilizado no meio rural entre a população livre. O que um senhor de escravos determinasse para seus cativos podia resultar numa vida passável, dentro dos limites da escravidão, ou num inferno. Um compadrio tinha suas vantagens. Na família do barão é possível levantar indícios dessa relação de compadrio. Essa relação liga os desiguais, senhor e cativo, em laços que perduram toda a vida e muda os destinos das pessoas envolvidas. Um concede e o outro fica devedor de favores e beneplácitos. Achei, em 1881, o casamento de Romana e Camilo, dois escravos, apadrinhados por Anacleto Corrêa de Faria e seu genro, Chico Maurício. Lembradas por Mariquinha Pinheiro, a neta mais velha de Manuel Corrêa de Faria, as informações ganham frescor de dias atuais. Assim chamadas, as “negras da madrinha baronesa” eram escravas forras ou filhas de escravos libertos. São lembradas quatro delas. Mariquinha diz que a baronesa era sua madrinha, portanto, estava viva em 1903, quando ela nasceu. Havia a Prisca. Não encontrei nenhum detalhe dela. Deve ser a Prisca Maria de Jesus, que ainda estava viva em 1932, e que comparece neste ano

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para registrar tardiamente sua filha Alverinda, família na localidade de Santa Constância, próximo nascida em 1916, sem registro do nome do pai. dali umas duas léguas. Ela disse a minha mãe, muiTinha a Madalena, que era muito chegada à ba- tos anos atrás, que se casou na capela da fazenda do ronesa e à família, tendo recebido casa e uma he- barão. Então sabemos que foi erguida uma igrejinha rança pela morte da ex-senhora. próximo à sede da fazenda Itaperuna, já que não Outro registro é da Carlota. Essa teria vivido existia tal construção na época da compra da pro110 anos. Era muito velhinha e andava com uma priedade. Então, as pessoas que moravam em volta, bengala enorme. Sempre que chegava o mês de ju- na região, iam lá pra celebrar o casamento religioso, lho e os pés de laranja carregavam, ela dizia: o que implica a presença eventual de padres e mo– “Tempo de laranja é tempo de lembrança. vimento de pessoas na sede da fazenda Itaperuna. Todo mundo vem me visitar.” Nessa época, o padre que atendia na Igrejinha Deixa estar que ela esde Santo Antônio do Matava se referindo a quem nhuaçu e que devia pervinha com o intuito de correr as capelas das fachupar laranjas sem pagar. zendas chamava-se padre Andava devagar pelos Gustavo Batti. Ficou por lá caminhos e as pessoas entre 1896 e 1910. Portanbrincavam: to, foi contemporâneo da – “Para onde você vai?” baronesa e deve ter visita– “Pergunta para sua do muito a sua capela. Pabesta que ela sabe.” dre Gustavo foi substituído E seguia seu rumo certo. pelo padre Alberto Elgas. Mais interessante é a A foto da igreja deste calembrança da Donana, fipítulo é a Matriz de Santo lha de criação da baroneAntônio do Manhuaçu sa. Donana era tida como naqueles tempos em que dorminhoca. Dormia com esses dois padres lá pregaos animais. Era só procuvam, batizavam e casavam rar a Donana que ela estava seus paroquianos. dormindo ao pé do forno Assim vivia a baronesa de assar bolos. A própria na primeira década dos gata borralheira. 1900, cercada de vida Oratório que pertenceu à Baronesa de Itaperuna, em Um bisneto de Joasimples, dos afazeres Santo Antônio do Manhuaçu, no final do século XIX e início do século XX quim Corrêa de Faria do cotidiano e dos veslembra de um negro tígios do passado. Entre forro que ficou muito velho e era famoso em sua lembranças e cafezais. Entre quitandas, criações, infância em Santo Antônio do Manhuaçu por ter polvilho, fubá e fotos em molduras de bakelite na tido “uma terceira dentição já próximo dos 100 parede. Guardava louças dos tempos de fausto e a anos”. Era chamado de Germano, e a história ainda espada que o barão usou na guerra do Paraguai. parece verossímil na voz de quem conta esse conto. O barão, sempre a mesma informação certeira, Minha avó por parte de pai, família Oliveira, morreu no ano de 1903. Não sabem informar de natural de Muriaé, também morava com parte da que moléstia. É quase certo que sofria de “pressão – 39 –


alta” e “dos rins”. Uma análise mais detalhada da foto com as roupas de cerimônia, essa que se tornou pública pela revista Voga, quando publicada em Caratinga, mostra que o barão, estranhamente, está de fraque e com um tipo de chinelo aberto atrás, como quem não consegue calçar um sapato. Olhando mais detalhadamente para os pés, nota-se que os dois pés estão inchados. Anos passados depois daquela foto, ele já tinha idade avançada: 84 anos. Pode-se pensar em uma provável doença hipertensiva como causa da morte, ou pelo menos como doença existente. Nesse mesmo ano morre sua segunda filha, Delfina Francisca de Faria, deixando o viúvo Tertuliano, que ainda viveria por mais 27 anos. Embora possa haver controvérsias, apurei que a baronesa sobreviveu alguns anos a Anacleto Corrêa de Faria. Mariquinha, que nasceu em 1903, lembra-se dela. Diz: “não conheci o barão”, e acrescenta: “a madrinha baronesa era muito trabalhadeira”. Tomava conta da produção do polvilho e do fubá no moinho da fazenda. Toda manhã se dirigia ao moinho. Um dia, fazendo o caminho de sempre, chegou ao moinho, abaixou-se para pegar fubá e sentiu uma dor no peito. E caiu. Caiu morta. Não encontrei registro de seu óbito. O primeiro livro de registros do cartório de Santo Antônio do Manhuaçu não se encontra disponível. Desapareceu. Só encontrei registros a partir do segundo livro. Curiosamente, na igreja também não se encontra o primeiro livro de batismos e casamentos do período anterior à República. Nos tempos de desmandos, alguns coronéis mandavam colocar fogo nos documentos do cartório. Tia Virgínia, casada com o primo José Penna – irmão de minha mãe – e nascida em 1914, disse que lembra da baronesa viva e viúva. Teria mesmo ela vivido tanto tempo? Não creio.

Hoje ainda existe, como eu disse, o casarão da fazenda Itaperuna, porém modificado. Mesmo assim, é uma emoção ver materializadas em taipa e telhas as lembranças sutis que tenho recolhido devagar e esparsamente, como quem recolhe nuvens. No meio das anotações do pai de Anacleto Pena de Faria, que mora em Brazlândia, este encontrou as seguintes informações: “Morava na fazenda com o barão um filho de nome Lino Corrêa de Faria, que morreu solteiro.” Tinha também um tio Queleto, uma Antonina, uma Eliza e um Gregório, que tinha apelido de “papa”. Não há referência aos parentescos dessas pessoas com o barão. No cemitério, pude ver o túmulo do barão, mas nenhuma referência aos restos mortais de Branca Angélica de Faria. Sabe-se que existia foto dos dois sobre o túmulo, que foi extraviada de alguma maneira. Passei por Laranjeira, vi os córregos e os capinzais. Nenhum vestígio de movimento. Silêncio e quietude. Minifúndios improdutivos. Descampado, morros cobertos de mato baixo. Aqui e ali uma voçoroca ameaçando se abrir mais e mais. Não se parece com as memórias daquele tempo: lembranças dos casarões, cafezais fazendo um rendilhado sinuoso pelas encostas, capoeiras reaparecendo onde a terra descansou. Filas para o fubá de toda manhã ainda quente da pedra do moinho. Sacas e sacas de café se amontoando no armazém. Terreiro cheio de fileiras grossas de café feitas pelas pás. Quando o trabalhador passa a pá, vai organizando o desenho dos grãos: as filas alternadas de montes e de sulcos, montes e sulcos, até o fim dos grãos na ponta do terreiro. Assim deve ter sido o cenário dos últimos dias do barão, da baronesa, dos escravos libertos juntos com a neta casada que os acompanhou. Era o fim do século XIX e início do século XX.

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Manuel Corrêa de Faria e Sinhazinha, sua mulher e sobrinha

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Os “coronéis” filhos e genros do Barão de Itaperuna (1892 a 1933) ma pequena pausa, com café com leite, para falarmos de uma política comum no início do século passado. A política dos coronéis, também chamada de coronelismo. Essa explicação nos ajudará a entender por que alguns dos nossos parentes eram chamados de coronéis e capitães nos primeiros 30 anos do século XX. O coronelismo foi um sistema de poder político originado em 1831, com a criação da Guarda Nacional. Essa guarda era uma milícia civil armada que representava os proprietários da cidade ou do campo. Embora fosse uma criação da realeza, foi

largamente utilizada na época da República Velha (1889-1930). Dava enorme poder a poderosos locais, em geral grandes proprietários, mas não exclusivamente, pois o famoso padre Cícero do Ceará também pertencia às suas fileiras. Dois filhos, um neto e um genro do Barão de Itaperuna também foram “escolhidos” com patentes de diferentes graus. No governo de Hermes da Fonseca (1913-1914), tendo como presidente da província de Minas Gerais o Sr. Bueno Brandão, Anacleto Corrêa de Faria (neto do Barão de Itaperuna), então com 35 anos, foi nomeado Capitão da comarca de Caratinga no 325.º batalhão de infantaria em 06/11/1911. No

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mesmo governo, em 8/10/13, por decreto, Manuel Corrêa de Faria, então com 57 anos, foi nomeado para o posto de Tenente Coronel Comandante do 44.º Regimento de Cavalaria da Guarda Nacional da Comarca de Caratinga, Minas Gerais. José Dornellas da Costa, como já dito, casado com a neta e filha de criação do barão, foi nomeado Capitão Cirúrgico do 940.º batalhão de infantaria da Comarca do Rio José Pedro em 24/11/1915, no governo de Wenceslau Braz, sendo presidente da província de Minas Gerais o Sr. Delfim Moreira. Esse parente viria no futuro a casar três filhas com três filhos de um famoso político de Ipanema e mesmo de Minas Gerais, o Coronel João do Calhau, de quem era grande amigo. Também chamados de capitão em documentos oficiais: Joaquim Corrêa de Faria e Paulino Ribeiro, irmão e genro de Manuel Corrêa de Faria, respectivamente. Destes não consegui documentos que comprovassem a patente, mas certamente as possuíam, já que tinham veleidades políticas. Para se candidatar a um cargo, que estava à venda, o postulante devia ter renda anual de 200.000 réis, se fosse morador de cidade, e 100.000 réis, se morasse no campo. Estavam disponíveis os títulos de tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel. De posse do título, definia-se o tratamento e o poder de domínio para quem o possuísse. E, com o poder, vinha a cavalo o dever de obediência para aqueles que eram “as crias dos coronéis”. E os coronéis que viviam longe das grandes cidades tinham um imenso poder local e também regional. Um bom exemplo foi o mencionado João do Calhau, morador de Ipanema, que possuía grupos de jagunços que aterrorizavam desafetos em vários municípios no início da República, “peitando” governadores e a imprensa no estado. É dessa época, de uso indiscriminado de armas, a herança de um nome dado a Santo Antônio do Manhuaçu como Santo Antônio do H.O. Com esse sistema foi construída uma rede de

fidelidade entre presidentes da república, presidentes de províncias, os partidos republicanos das províncias no poder, coronéis, apadrinhados, afilhados e protegidos. Essa rede de fidelidade garantia que a determinação política de um fosse acatada por todos. Assim, o poder local aprovava o governo central e o governo central acatava o poder local. Votos, todos de cabresto, em troca de favores de todo tipo. Se esse acordo falhasse, havia as disputas e brigas entre os coronéis de família ou de interesse político diferente. Esse modo de governar só veio a cair com a chegada de Getúlio Vargas, que extinguiu a Guarda Nacional. Assim também eram os coronéis da família Corrêa de Faria: tinham terras extensas, famílias extensas e grande rede de agregados girando em seu redor. Mandavam como se estivessem em um pequeno e periférico país onde o Estado ficava ausente. Viveram esse tipo de vida nas confluências de Santo Antônio do Manhuaçu, Ipanema e Pocrane no período áureo e depois de decadência da produção e exportação cafeeira do Brasil entre os anos de 1893/1930. Suas fazendas estão distribuídas no mapa n.º 3 que apareceu no capítulo IV. Mas eles dependiam da política de desenvolvimento do País. E essa política refletia também em suas vidas. O café, certamente, ajudava a contar a vida que acontecia dentro das casas. Vimos antes que o café permitiu a acumulação de riquezas para o barão e seus filhos na segunda metade do século XIX. O século XX não foi diferente, mas culminou com grave crise no final da década de 1920 e em 1930. No ano de 1906, a produção brasileira superava 20 milhões de sacas de café. A maior parte da produção era de São Paulo, já que no Rio de Janeiro a grande crise de 1889 determinou a decadência da produção de café naquela província. Assim,

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Minas Gerais passou a ser o segundo produtor do País, principalmente devido a condições climáticas propícias. No início do século XX, o porto de Santos ficava abarrotado com cargas da café a ser exportado, como se vê na foto deste capítulo. No período da primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, o País começou a ter dificuldades para exportar sua produção. Em 1918, ano em que morre Sinhazinha, já se constatava uma superprodução. O Brasil, sozinho, produzia 21 milhões de sacas, sendo que o consumo mundial era de 22 milhões. Os governos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais assinaram o Convênio de Taubaté para garantir lucros dos cafeicultores apesar da crise de superprodução e escoamento. O governo brasileiro adquiria o excedente da produção através de financiamento externo e desestimulava o aumento da produção. Os armazéns do governo estocavam. Na década de 1920, a crise já era muito sensível. A exportação foi caindo ano a ano. No ano de 1929, a crise da bolsa de valores dos Estados Unidos (EUA) acelerou a crise brasileira, já que os EUA eram os nossos principais importadores dos grãos. Para se ter noção do baque sofrido, a saca que valia 200.000 réis em agosto de 1929 passou a valer 20.000 réis em janeiro de 1930. Houve falências e concordatas e tragédias familiares. O café foi queimado no interior; os cafeicultores de São Paulo, acostumados ao luxo e consumo, empobreceram. Iniciou-se o êxodo do campo para as cidades. Os Corrêa de Faria, os Cândido de Oliveira e os Penna ainda sobreviveram em suas terras, já mais divididas. Em um momento de crise entre o Partido Republicano Mineiro e o Partido Republicano Paulista, abriu-se espaço para os acordos que levaram Getúlio Vargas ao poder e levaram ao fim do chamado Ciclo Econômico do Café. Chegara ao final

a chamada política do café-com-leite. São Paulo cresceu e se industrializou, enquanto o campo perdia força política. Minas Gerais, na década de 1930, perdeu força política junto ao governo federal. Nesse período de transição, governava o estado de Minas Olegário Maciel, o único presidente de estado no Brasil que permaneceu no poder com a ascensão de Getúlio Vargas. Teria a região das fazendas dos Corrêa de Faria sofrido essa fase do mesmo modo que no interior de São Paulo? Com certeza, essa situação aconteceu quando o último dos filhos do barão ainda vivo já estava idoso e adoentado. As informações falam de crise para Lino Cândido de Oliveira e para Joaquim Corrêa de Faria Sobrinho. É também na década de 1930 que Antônio Penna Sobrinho abandonou a fazenda Laranjeira e foi para a sede do município de Ipanema. As lembranças dos informantes nem sempre se dão por datas, de modo que não se pode caracterizar exatamente. Entretanto, lembram, com nostalgia, a intensidade com que viveram os anos de 1920, anos que antecederam a crise: o movimento criado com o café a ser plantado, colhido, secado, beneficiado, ensacado e transportado. Os morros cobertos de cafezais, que foram ocupando o lugar das matas virgens. Na época da floração do café, tudo se cobria de branco. Em algumas fazendas, as máquinas trabalhavam noite e dia na época da safra. As máquinas de café precisavam de dois maquinistas para dar conta do recado. Os 30 primeiros anos do século XX foram época de muito trabalho e pouco luxo. Analisei uma foto dos filhos do referido Coronel Calhau, homem importante, considerado perigoso e violento, com trânsito político em vários municípios e povoados da região, delegado de polícia e fazendeiro. Pude ver que, dos nove filhos que aparecem na foto, apenas o mais velho, Antônio Calhau, que é rapaz, usa botinas. Todos os demais, moça, meninas e meninos, todos descalços. Na época, 1911,

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eram moradores de Pocrane. Essa foto deve servir Tenente-Coronel Manuel Corrêa de Faria, o Tiné para caracterizar costumes daquele tempo para (1856-1933) esse padrão de vida. Calçado era um luxo naqueles ermos. Manuel Corrêa de Faria, meu bisavô, era um Festas, só as da igreja: os batizados e casamentos. autodidata, educador nato, fazendeiro, líder local Havia também as outras safras. Podia-se colher e também um coronel da guarda nacional. É sobre dez alqueires de milho em uma safra em algumas ele que recai minha maior curiosidade e certa adfazendas. Havia o feijão miração pelo seu lado e o arroz. educador, e nesse tom No fundo do quintal, apresentarei sua história. sempre havia alguma Ele só pode ser enroseira plantada no catendido em sua compleminho da bica. Ou rosas xidade se pensarmos na na frente da varanda. Às época em que ele viveu, vezes um pé de lustrosa isto é, era o chefe de ou bonina na frente do uma família patriarcal, alpendre. um proprietário de terFilhos nasciam todo ras dedicadas princiano. Falhas aconteciam palmente à produção e nos anos em que aconbeneficiamento do café teciam óbitos infantis e durante o auge e o deabortos. clínio do chamado ciclo Há quem diga que econômico do café. Era ouviu da vovó Ana que um homem político, em ela engravidou 21 vezes. área rural afastada dos Teve 15 filhos vivos e, centros urbanos, nos destes, nove atingiram tempos da política do idade adulta. café-com-leite dos 30 Casamentos daqueprimeiros anos do sécula geração que migrou lo XX. Era, portanto, recriança de Muriaé aconpresentante de uma elite Manuel Corrêa de Faria em 1932 aos 76 anos teceram nas décadas de rural periférica e local, 1910 e 1920. mas com vinculação ao Na correr da década de 1930, começaram a se poder central da então província de Minas Gerais. casar os descendentes mais velhos da quarta geraOlhando sob esse prisma, posso dizer que Mação. Mas destes pouco vou falar. nuel Corrêa de Faria era um homem do seu tempo. Assim foram os dias e anos passados para as O relato minucioso e consistente de vários nefamílias que viviam nas fazendas Itaperuna, La- tos aponta um grande interesse pelo conhecer, pelo ranjeira, São Vicente, Cachoeira, Estrela, Tobém, ensinar e dividir o conhecimento da vida diária. Vista Alegre e outras. Figura ímpar no cenário local, a inspiração passaAgora passo a falar de cada um dos filhos do da aos filhos e netos deve ter deitado sementes em barão e dos genros Tertuliano e Zeca Dornelles. nós, seus bisnetos – que não o conhecemos –, seja – 44 –


pelos aspectos positivos, seja pelos negativos. Era casado com a sobrinha, Sinhazinha. Essa era mulher de opinião. Não colocou Corrêa no nome depois de casada. Era Corrêa de Faria & Cândido de Oliveira de nascimento. Deve ter tido personalidade forte desde nova. Órfã de pai, enfrentou a família para se casar com o também jovem tio. Esse não foi casamento arrumado. Foi desejado. Às vezes, fico pensando nas características de personalidade que sempre atribuímos às nossas tias “Penna”: mulheres de fibra, de personalidade forte, corajosas, firmes com os filhos e sábias na obediência silenciosa aos maridos. A obediência era obrigatória naquela época, mas elas não perdiam a consciência dos poderes femininos. Acho, entretanto, que essa herança nós devemos buscar mais longe, com as Corrêa de Faria. Olhando para trás, acho que os “Penna” eram brandos. As “Corrêa de Faria” eram acostumadas a fazer, limpar, mandar, organizar. Herdamos isso de quem teve tempo e lugar na vida quando as coisas aconteciam assim. Por isso, pensei muito nessa minha bisavó Sinhazinha, de apelido suave e poderoso. Ao mesmo tempo senhora e menina por toda a vida. Estão os dois na foto deste capítulo. Foi tendo filhos e tocando a vida de fazendeira junto com seu coronel. Teve sua primeira filha no ano de 1885, de nome Mariana, e a última filha mulher em 1907, 22 anos mais nova que a irmã mais velha. Funcionava assim, a irmã mais velha já casada, com filhos, e a mãe ainda em idade produtiva. Em 1901, tiveram um filho de nome Anacleto Cândido de Faria. Deste, quase ninguém se lembra. Morreu jovem. Tinha problemas mentais. Exibia-se para as visitas expondo as partes íntimas. Virou segredo de família. Foi enterrado também pela memória. Os sobrinhos não se lembram dele. A família sepulta as más lembranças. A única a lembrar foi Mariquinha Pinheiro, que chegou a completar cem anos de vida e passou a infância

junto com esse tio. Talvez por isso Tiné tenha se preocupado em não casar filhas com parentes. Para evitar doenças. Mas isso não funcionou com o filho mais novo, Francisco Corrêa de Faria Primo, que se casou com a prima em segundo grau: Helena Corrêa de Faria. Além dos filhos, criaram até a idade de nove anos o filho mais velho de Ana Cândida e Chico Penna, o José, apelidado de Doca. Ele era gêmeo com Joaquim, que morreu aos nove anos. Joaquim Ribeirão, que conheceu Tiné, diz que ele foi “o maior administrador que Santo Antônio teve”. As pessoas vinham até ele para fazer os cálculos da quantia de sementes a comprar para semearem na quantidade certa de terreno. Orientava parentes, primos e sobrinhos e outros fazendeiros. Viveu plantando, beneficiando e negociando café, além de outras lavouras. Como legítimo representante de seu tempo, exerceu o poder político, social e familiar advindo de sua condição de proprietário rural, compadre, pai e avô de vasta prole e coronel e mandante local. Vivia num tempo em que uma fazenda tinha que ser autossuficiente, comprando poucos bens de consumo. Não existia luxo. Fartura sim, luxo não, conforto pouco. Para comer, ali tinham: roça de arroz, feijão, milho, banana, cará, batata-doce, mandioca, amendoim e cana. Criavam: porco, galinha, pato e gado leiteiro. Produziam na fazenda: gordura de porco, requeijão, queijo, farinhas, rapadura, manteiga, fubá. Algumas famílias produziam polvilho. Plantavam também: couve, serralha, pimenta, abóbora-d’água, jiló, quiabo e ora-pro-nobis. De frutas, tinham sempre no pomar: cidra, figo, fruta-do-conde, mexerica, goiaba, mamão, laranja, limão, ananás, melancia, goiaba e manga. O araçá tinha no pasto. Nunca faltava no caminho da horta ou no meio do mato: puejo, camomila, hortelã, arnica, assa-peixe, erva cidreira, funcho, erva de Santa Maria.

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Para higiene pessoal, tinha sabão feito em casa com restos de sebo de porco. Em casa, as mulheres bordavam e costuravam lenços, vestidos, calças, camisas e toalhas. As toalhas de enxugar, quando não se usava apenas lençol, eram bordadas com “brolha”, utilizando dois sacos de açúcar emendados depois de bem alvejados com folha do mamoeiro ou “bosta” de boi. Era lavado e batido até clarear, depois era colocado para quarar ao sol. Tia Maria Corrêa, nora de Manuel Corrêa, mais tarde, fazia toalhas de banho também bordadas com ponto cruz. Um ramo de flores vermelhas, folhas verdes, e as iniciais do dono. Tenho comigo um exemplar, mais simples, feito por ela com costura à máquina, já quando mais velha, em Caratinga. Faziam doces, quitandas, linguiças e chouriços. O biscoito de polvilho era feito em quantidade e guardados em sacos. Nas redondezas, tinham costureiras para as roupas de festas, bordadeiras, alfaiate, barbeiro, carpinteiro, marceneiro e pedreiro. Ali mesmo na Laranjeira, ou à distância de poucas léguas, havia mulheres prendadas que faziam roupas de festas, bordados em ponto Richelieu em lençóis e toalhas de linho para enxovais. Costureira famosa era Branca Calhau, filha de José Dornellas da Costa e mulher de Antônio Calhau, nora do famoso João do Calhau. Tiné tinha, na venda que ficava na parte de baixo da fazenda Laranjeira: peça de tecido (sarja, mescla, brim, morim, chita), sal, açúcar, homeopatia, chinelo, bota, enxadas, pás, facas, garfos e colheres, canela, fósforo, lampião, querosene. Botinas, só para os adultos. As mulheres também usavam botinas, isso quando usavam algum calçado. Tinha ainda: máquina de beneficiar café, arroz, engenho de cana, moinho de fubá, serraria e monjolo. Nas suas terras, era firme na decisão: aqui não trabalha família de amasiado. O dia começava cedo, com a distribuição do

fubá para todas as famílias. Controlava pessoalmente a distribuição do fubá no moinho e acompanhava os trabalhadores no plantio e nas colheitas. Controlava também a venda e as tropas. Certa vez, começou a notar que o sal estava diminuindo muito rápido na venda e decidiu junto com a companheira. – “Sinhazinha, temos que pegar o velhaco.” Colocou banha de porco no sal e descobriu o ladrão, que ficou com a roupa toda engordurada. A foto que ilustra este capítulo é bem divulgada na família. Existia um exemplar dela na parede da sala de visitas da fazenda do Limoeiro. Estão os dois em trajes de festa. Não sei precisar sua data. Tiné estava com cabelos e barba brancos, mas com feições não muito velhas, e Sinhazinha parecia estar na faixa dos 40 anos ou menos. Em final de 1918, Sinhazinha adoeceu. Tinha febre, mal-estar, dores pelo corpo e coriza. Depois dos sintomas de gripe, apresentou vômitos e diarreia, porque usou vomitório. Foi complicação da gripe espanhola, que assolou o mundo na primavera e verão de 1918 e em setembro e novembro de 1919. Nessa época, o pároco de Ipanema era um padre de nome Antônio Ribeiro Pinto. Ele veio a ficar muito famoso em Minas Gerais, porque era dado como um homem santo. Viveu mais tarde em Urucânia, para onde acorriam infindáveis romarias de enfermos e devotos. Ele também ficou muito doente entre novembro e dezembro de 1918, mas sobreviveu. A doença havia melhorado nas vilas, mas havia piorado na zona rural. Quando Sinhazinha estava muito doente, já para morrer, mandavam tia Virgínia, com quatro anos, abanar uma folha de palmeira redonda em volta da avó. A folha era lavada e enxugada e usada para espantar moscas, comuns naquele verão. Ela morreu aos cinquenta anos, no dia 09/12/1918, às dez horas da manhã, deixando quatro filhos menores de dezoito anos: o Anacleto, com 17 anos; o Francisco, com 15 anos; a De-

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Padre Antônio, pároco em Ipanema na altura do ano de 1918

A senhora que está sentada é Rosalina Soares de Melo que foi companheira de Manuel Corrêa após a viuvez. Com ele teve uma filha de nome Manuela Corrêa de Faria

olinda, com 11; e o neto de criação, José Penna, o Doca, então com nove anos. Tiné, depois de viúvo, contrariando sua própria orientação anterior, amasiou-se com Rosalina Soares de Melo, para quem comprou terras e com quem teve uma filha de nome Manoela Corrêa de Faria, nascida a 8 de dezembro de 1920, dois anos depois da morte de Sinhazinha. A foto de Rosalina, já mais idosa, com outra de suas filhas ilustra este capítulo. Os filhos não gostavam da situação. Com o tempo, Tiné mandou Rosalina para o Rio de Janei-

ro, com a filha já mocinha. Essa sua filha voltaria a Santo Antônio do Manhuaçu e Ipanema no ano de 1949, na companhia do seu segundo marido, já encontrando seu pai morto. Os descendentes de Manoela moram em Rio das Ostras, no Rio de Janeiro. Já mais velho, Tiné começou a ensinar tia Virgínia a ler. Costumava dizer para os alunos que ele arranjava que faltava letra nos escritos: – “Você comeu uma letra. Vá procurar.” Segundo tio Lino Penna de Faria – que, nessa época, já estudava em Caratinga, no Internato

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Nossa Senhora Auxiliadora da professora D. Isabel –, ele passava problemas parecidos com os do livro “Aritmética Progressiva”, de Antônio Trajano. Quando o neto perguntava, ele dizia que nunca tinha ouvido falar desse livro. Tiné viveu, em sua velhice, na fazenda Laranjeira, com a filha Anacleta e o genro Antônio Penna. Bem mais velho, Tiné andava com uma gibota (uma bengala grande feita de ipê amarelo retirada de árvore nova) para orientar nos caminhos que andava. Nessa época, estava quase cego, como seu irmão Joaquim. Tinha o costume de levar sempre consigo um embornal de amendoim. Ia comendo e oferecendo às pessoas. Essa foto dele sozinho, de cabelo branco e ralo, parece ser de 1932, talvez tirada no dia do casamento da Josefa. Há uma linda foto tirada nesse casamento, em 1932, que não foi possível utilizar neste livro. Toda a família presente – centenas de pessoas – e parte da fazenda atrás. Deve ter sido um grande dia de festa. Viveu até os 77 anos. Ele estava magro, tinha cabelos brancos e barba branca, e estava quase cego. No fim da vida, tinha dores de estômago. Morreu sentindo fortes dores. Previu sua morte com antecedência. Seis meses antes saiu de casa em visita aos netos. Visitou a afilhada e neta Delfina, casada jovem com o viúvo Joaquim Ribeirão. Levou para ela panelas de ferro que tinham sido dele. Era hábito dar para os netos e afilhados uma novilha na época do batizado. Delfina se lembra da vaca Fortuna, presente do avô. Esta lhe deu muitos novilhos. Visitou o genro e amigo Chico Penna. Passou uns dias em sua casa, na fazenda Barreira de Baixo, depois rebatizada como fazenda do Cristal, nome que tem até hoje. Minha mãe se lembra dessa visita. Levou as lousas com as quais sempre andava. E passava problemas de matemática. “Eram 12 pombos...” E seguiam-se os problemas que os netos deviam resolver escrevendo nas lousas. Também

passava contas de multiplicar e de dividir. Usava uma quantidade enorme de algarismos para o neto trabalhar bastante. De manhã bem cedinho, chamava os netos menores para catar pulgas no cobertor. Ele sabia que o genro programava mudar-se para Caratinga com toda a família, muito brevemente. De lá visitou o outro genro, Augusto Penna, e a filha mais nova, Deolinda, na fazenda Barreira de Cima. Na véspera de morrer, quando sentiu que estava nas últimas, pediu para chamarem Chico Penna, que já se mudara para Caratinga. A viagem de Chico Penna a cavalo durou todo o dia e o genro chegou às 11 horas da noite. Chegou a tempo. Tiné dizia que havia pedido um prazo a Deus para viver. E assim foi cumprido. Morreu na mesma noite. Era o mês de outubro de 1933. Sobreviveu à sua companheira Sinhazinha por 15 anos. Era o fim do homem e de sua época. Esse homem foi a medida de seu tempo. O Brasil não era mais dos coronéis. O café já não sustentava a economia. Getúlio Vargas governava com nova força e novos meios. A estrada de ferro já chegara à Caratinga. Os projetos para a construção da estrada de rodagem Rio-Bahia estavam iniciados. Pelo projeto, ela passaria em frente da fazenda do genro, a fazenda do Limoeiro. Todas as filhas e filhos, netos e netas puseram luto. Vestidos de estampadinho de preto para o dia a dia e uma roupa melhor, totalmente preta, para os dias de domingo e missa. As netas de Caratinga, nessa época, frequentavam a escola que funcionava na casa da Dona Dulce, no local onde hoje é o muro do UNEC, Centro Universitário de Caratinga, na esquina da antiga Rua São José com a Rua Dona Julica. Nessa época, o uniforme tinha uma saia vermelha. Pois bem, as meninas tiveram que vestir saia de tecido escuro, substituindo as vermelhas, impensáveis para quem estava de luto. Perdiam por isso os santinhos que

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a professora dava para quem sempre fosse de uniforme completo, lembra tia Hilda, que na ocasião ficava muito triste com a perda dos santinhos. Na sala de visitas da fazenda do Limoeiro, que eu conheci bem, as fotos dos dois ficavam na parede principal da sala de visitas, Tiné e sua Sinhazinha. Ele com cabelo branco, barba branca, ela com cabelos lisos presos atrás das orelhas, brincos estranhamente grandes, malares salientes, como de índios. Os dois retratos em close, branco e preto, moldura oval, um ao lado do outro, olhando pelas janelas as flores que vovó Ana havia plantado no jardim. Víamos aquelas fotos, porém não sabíamos bem quem eram os representados. Sabíamos que tinham morrido e que deviam ser respeitadas. Hoje eu entendo o porquê. Francisco Corrêa de Faria (Chico Corrêa “véio”) (1850-1918)

única que disse assim: – “Vovô Francisco morreu quando eu tinha um ano”, logo, morreu em 1918. Teria sido a gripe espanhola? Fica, em parte, explicado por que sua lembrança é tão apagada na família. Mas, se analisamos as certidões de casamento que eu encontrei nos cartórios, ele nunca aparece como testemunha, ao contrário de seus irmãos Joaquim e Manuel, que encontramos com frequência no período anterior a sua morte. Na certidão de Quitéria, sua quinta filha, aparece como avó materna um nome que não é Maria Francisca de Jesus, a primeira mulher do barão. Aparece nitidamente, como mãe de Francisco Corrêa de Faria, Maria Teixeira de Siqueira. Não parece erro de cartório, já que aparece em duas cópias distintas da mesma certidão. Ou é um erro de cartório ou Chico Corrêa “véio” foi filho do barão, mas fora do casamento. Isso pode explicar a aparente menor importância dele em relação aos dois outros irmãos... Foi Argemiro Mendes de Magalhães, que mora atualmente em Ipatinga, o único que disse ter conhecido a vovó Fernandes. Conheceu-a já velhinha, magrinha, franzina, calada. Usava apenas roupa escura. Tinha pituca, como era comum naqueles tempos. Sobreviveu ao marido por quase 20 anos. Deve ter morrido no ano de 1937. Diz-se que os netos e a filha Quitéria iam visitá-la aos domingos e que ela preparava, sozinha, o almoço dominical. A fazenda em que ela morava era perto da fazenda do seu filho João Corrêa e da nora Catatau. Dava para ir a pé facilmente entre uma e outra.

Desse Corrêa de Faria poucas notícias ficaram. Nenhum dos entrevistados sabe contar sua história. Só se lembram de sua mulher como “vovó Fernandes”, vagamente, assim chamada por Catatau. Entrevistei apenas três netos e alguns bisnetos. Ninguém sabe contar sua história. Casou-se com Maria Fernandes de Faria, filha de João Nunes de Moraes e Maria Quitéria de Jesus. Casaram-se ainda em Muriaé. Tiveram, segundo apurei dos informantes, oito filhos: João Corrêa de Faria, Anacleta Corrêa de Faria, Maria Corrêa de Faria, Miguel Corrêa de Faria, Quitéria Corrêa de Faria, Francisco Corrêa de Faria, Sebastiana Corrêa de Faria e Vitória Corrêa de Faria. Cinco filhos nasceram em Muriaé. Os demais nasceram em Laranjeira. Os filhos já crescidos moravam também em LaranjeiTertuliano Cândido de Oliveira (Terto) ra, para os lados de Ipanema, ou na rua de Santo (? - 1930) Antônio do Manhuaçu. Devia frequentar mais a sede da Vila José Pedro, assim chamada a partir de Ainda em Muriaé, Tertuliano cumpriu a von1912, quando foi criado o município. tade e o pedido do barão para que se casasse com Ana Corrêa de Faria, filha de Catatau e João sua filha Delfina Francisca de Faria, viúva de José Corrêa e, portanto, neta de Francisco “véio”, foi a Cândido de Oliveira. – 49 –


Embarque de sacas de café no Porto de Santos no início do século XX

Uma fatalidade fez com que um formão de carpinteiro caísse no pé do Zé Cândido e tudo se complicasse com a toxina do tétano, coisa perigosa naqueles tempos. Foram alguns dias de cama e morte certa. Deixou sete filhos pequenos. O barão, vendo a filha ainda moça com os netos para criar, ajeitou o casamento, sem pompa nem circunstância. Casou de vestido usado, escuro mesmo, e trabalhou como dia normal. Não pode usar vestido colorido, imposição do pai. O novo marido era empregado e parente do morto. Ficava tudo em família. E ele honrou o prometido. Ajudou a criar os sete filhos da mulher. Com ela ainda teve um filho, de nome Luciano, de quem alguém sempre lembrava: “tinha um tio Luciano, mas nós não tínhamos muita ligação”. Fiquei muito feliz quando conheci D. Maria José Oliveira Vidal, filha do Luciano e neta do Tertuliano. Morava em Ipanema. Ao escrever essas linhas, fico sabendo de sua morte, dias atrás, por causa do

diabetes. Confesso que sinto como se fosse uma parenta mais próxima e conhecida há muitos anos. Segundo ela, o avô Tertuliano tinha a fazenda da Cachoeira. Após 1903, ano da morte de Delphina Francisca, ele veio a se casar com Maria Jovelina de Jesus, que ficou conhecida por Maria do Terto. Não tiveram filhos. Já velho, andava uns trinta minutos a pé e levava manga ubá para a casa da Catatau, de João Corrêa. Tinha como neta preferida a menina Maria José, porque tinha olhos azuis iguais aos seus. Dizia que ia fazer as despesas do seu casamento. Não viveu para cumprir o prometido. Ele ficou uns 15 dias de cama. Dizia para um dos netos: – “Vovô está entregue para as baratas.” Morreu em 1930, quando a neta tinha apenas sete anos. Também este não sobreviveu aos anos de crise. Maria do Terto, após ficar viúva, vivia recolhida sozinha no Alto das Duas Cruzes. Segundo Mar-

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ciano, tia Anacleta disse que ela ”ficou diferente conosco”. Dizia-se que negociava venda de porcos. Quando o comprador era homem, ela negociava francamente, mas sempre permanecia de costas para o interlocutor. José Corrêa de Faria, outro filho de Catatau que eu entrevistei, conhecido por “Correião”, que ainda mora em Laranjeira, disse que conheceu Maria do Terto, que ela costurava para fora, que fez camisa para ele. Acha que ela morreu há uns 40 anos, portanto, nos anos 1970. Disse que a propriedade dela tinha uns cinco alqueires, “nas Laranjeiras”. A casa era de assoalho alto, toda de esteio, alpendre na frente, com escada pela frente da casa. Capitão José Dornellas da Costa (Zeca Dornella) Capitão Zeca Dornellas casou-se com Delphina Jovita de Faria, a neta e filha de criação do barão e da baronesa. Nascidos em Muriaé, já vieram de lá casados e com o primeiro filho, Anacleto Dornelles de Faria. Tiveram ainda Branca Dornelles, Almedorina Dornelles (Doninha), Elmira Dornelles, Gregório Dornelles, Julieta Dornelles e Marieta Dornelles. Branca, Doninha e Elmira se casaram com três filhos do coronel Calhau, respectivamente: Antônio, Joaquim e José. Foi nomeado Capitão cirúrgico do 940.º batalhão de infantaria da Comarca do Rio José Pedro, como já foi dito. Não me dediquei a apresentar esse ramo da família, já que não fazia parte do ramo que originou os nossos parentes mais diretos e que, de uma forma ou de outra, foram menos próximos na terceira e quarta gerações e por isso mesmo tive dificuldades de encontrar-me com seus descendentes. Capitão Joaquim Corrêa de Faria (Joaquim Corrêa “véio”) (1853-?) Joaquim Corrêa de Faria, filho do barão, “o que fugiu de Muriaé dentro de um caixote”, foi uma

figura lendária em nossa família para nossos parentes mais velhos. Ainda mais uma vez fugiria de Santo Antônio do Manhuaçu para a região de Aimorés. Como já disse, ele tinha veleidades políticas desde Muriaé. Informantes são categóricos na lembrança: “mandou com mão de ferro na política em Santo Antônio do Manhuaçu por mais de 20 anos”. Foi partidário dos “Bacuraus” entre os anos 1901 até 1919. Os Bacuraus eram oposição aos “Caranguejos” na política Caratinguense. Sua fazenda, a São Vicente de Baixo, ficava na mesma altura da ainda chamada fazenda São Vicente, dos filhos do tio Mário Penna de Faria. Só que a casa grande da sede ficava na estrada, do lado direito de quem vai para Santo Antônio do Manhuaçu, ao contrário da casa do Sérgio Penna de Faria, o Serginho. Casa grande assobradada. Ali morava com a família já formada com D. Virgínia Máxima e os filhos. Destes, o mais velho, nascido em Muriaé, em 1876, havia recebido o nome do avô, Anacleto, como tantos outros que se repetiram na família. À época da mudança tinha 19 anos. Esse rapaz sempre gostou de política e era um líder nato. Desde novo, ele tinha a mesma inclinação do pai pelo poder. O segundo filho de Joaquim chamava-se Joaquim Corrêa de Faria Junior e teve o apelido de Quicé. Passou para a história como um homem violento como o pai. A estes se seguiram João, Sebastião, Luciano, Mariana, Francisca, Maria, José e Antônio. Joaquim cuidava de lavoura de café, milho, feijão, porco e gado. Mas sua principal paixão era mesmo a política. Não levava desaforo para casa. Tinha amantes e andava armado. Dizia assim: “Lá em casa até mulher sabe atirar.” Em 1904, muito pouco tempo depois de se mudar para Santo Antônio do Manhuaçu, foi eleito vereador por Caratinga. O mandato como representante do Distrito de Santo Antônio do Manhuaçu durou de 1905 a 1912, durante a administração do Cel. Joaquim Monteiro de Abreu. Nessa época, para ser candi-

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Virgínia Corrêa Gonçalves, neta do Capitão Joaquim Corrêa de Faria, que com a fuga da família foi deixada com a mãe e os avós

dato a cargo político, o homem tinha que ser alfabetizado. Essa foi uma mudança da constituição. Assim, continuou mostrando sua aptidão para os assuntos políticos, e nesse período os Bacuraus estavam na situação no município. O número de vezes que o nome dele aparece em certidões de casamento como padrinho comprova as relações de compadrio estabelecidas e as relações de poder que isso pressupõe. Inúmeras vezes seu nome aparece. Devia se dar bem com seu irmão Manuel Corrêa de Faria, porque este batizou seu filho mais velho, o referido Anacleto, de apelido Cleto. Em 6 de novembro de 1911, este mesmo filho, Anacleto Corrêa de Faria, é nomeado Capitão da

Comarca de Caratinga, na Terceira Companhia e 325.º batalhão de Infantaria, como já comentei. Em 1912, registros de casamento apontam Joaquim Corrêa como testemunha e começa a utilizar-se da patente de capitão. Tinha então 60 anos. Ainda em 1912, seu filho Anacleto, aos 26 anos, é eleito vereador pelo Distrito de Santo Antônio do Manhuaçu, substituindo o pai, também pelos Bacuraus. Em 1914, o mesmo Anacleto Corrêa de Faria, então com apenas 28 anos, aparece sempre com a referida patente de capitão aplicada ao seu nome e é também juiz de Paz em Santo Antônio do Manhuaçu, bem como faz parte da banda de música então criada. Toda essa documentação aponta para a extensão das redes de poder que se estendiam em torno do nome de seu filho e herdeiro político e do seu próprio nome. Em 1917, Joaquim Corrêa de Faria aparece como testemunha no casamento do sobrinho Lino Cândido de Oliveira. Em 1918, seu filho Capitão Anacleto aparece como declarante do óbito do primo José Cândido de Oliveira. Portanto, ainda viviam em Santo Antônio do Manhuaçu. Aqui vou mencionar ainda outro de seus filhos, João Corrêa de Faria. João Corrêa veio a ser o pai de Virgínia, menina criada pelo avô materno após a fuga de seu pai. Sua foto, ainda jovem, aparece neste capítulo. Pelas minhas contas, Joaquim e seus filhos ficaram em Santo Antônio do Manhuaçu até 1918/1919 e fugiram devido a mudanças na política partidária em Caratinga. Essas mudanças provavelmente estão relacionadas à ascensão de Arthur Bernardes como governador de Minas e depois presidente da república em 1922. Uma foto de casamento, com dedicatória do ano de 1922, endereçada a ele não foi entregue, o que deve significar que não estava mais na região, porém não tão distante no tempo que fosse esquecido pelo casal. Exatamente em 1919 ocorreu a mudança que ameaçou o partido dos Bacuraus até sua completa

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destruição em Caratinga, ocasião em que muitos políticos se afastaram da cidade. A crise em Caratinga estava relacionada com a chegada de Arthur Bernardes ao poder em Minas Gerais. É dessa época um “causo” contado pela tia Virgínia: Ao perder as eleições, Joaquim recebe um recado de um desafeto Caranguejo, da família dos Fonseca: “Capitão, agora o senhor não está mais por cima.” Joaquim não mandou resposta. Ficou estranhamente quieto. Na primeira ocasião em que se encontrou perto do dito cujo, armado como sempre andava, se jogou de facão em cima do inimigo. Uma vez em cima e tendo o outro imobilizado, disse: – “E agora, quem está por cima?” E o facão no pescoço do inimigo imobilizado. – “Diga quem está por cima, cabra safado!” – “O senhor, capitão!” Esse é o tom dos causos que ficaram desse nosso antepassado. Por isso, acho que é dessa época a nova fuga de parte da família. Com cargueiros de armas cheios, saíram aos galopes e em fuga desabalada pelos capinzais. Ainda existe em pé a casa em que morou seu filho João Corrêa de Faria antes de fugirem mais uma vez, quase toda a família, de Santo Antônio Manhuaçu para Barra do Capim, em Aimorés. O que se sabe é que, com a vitória de políticos adversários e mais “uns problemas de terras”, a situação ficou fora de controle e novamente a família do capitão Joaquim Corrêa de Faria saiu em fuga. Essa segunda fuga foi também às pressas. Joaquim e os filhos passaram pela fazenda Laranjeira do irmão, o Coronel Manuel Corrêa de Faria, onde nessa época moravam também Antônio Penna e Anacleta Cândida de Faria, já casados. Ia com dois cargueiros carregados de armas em direção a Barra do Capim. Ao que lhe diz o português Antônio Penna: “O senhor vai fazer uma guerra?”

É esse o tom das lembranças. Por tudo isso, acho que tia Virgínia tem razão ao relacionar as posições do Capitão Joaquim contra os chamados Bernardistas, ou correligionários de Artur Bernardes, presidente (hoje falamos governador) do estado de Minas Gerais de 1918 a 1922. Em seguida, se tornou presidente da república entre 1922 e 1926. Capitão Joaquim era certamente contrário a Arthur Bernardes. Se esse raciocínio tiver algum sentido, Joaquim e seus filhos viveram mesmo até 1918/1919 em Santo Antônio do Manhuaçu e saíram com a crise que elevou Arthur Bernardes ao governo de Minas. Descendentes de João Corrêa de Faria que não fugiram com a família contam que eles saíram escorregando pelo meio do brejo, se escondendo no meio do capinzal. Delfina, filha de José Penna (o português), nascida em 1917, disse que era afilhada de Joaquim e D. Virgínia Máxima, mas que nunca os conheceu. Faz sentido, já que as famílias eram vizinhas, morando ambas na fazenda São Vicente. Delfina disse que, na ocasião de seu casamento, em 1932, eles já moravam no Capa Bode (Barra do Capim). Tia Virgínia tem outra história que confirma que Joaquim defendia uma política contrária a Arthur Bernardes. Conta que ele mandou fazer tocaia para Otávio Bernardes, sobrinho de Arthur, morador em Ipanema. A tocaia se deu na estrada que vai para Santo Antônio. A lenda é a seguinte: Otavio Bernardes ia a Santo Antônio do Manhuaçu. No caminho, Capitão Joaquim avisou que havia três capangas de tocaia para matá-lo na curva da estrada. Ofereceu dois capangas para acompanhá-lo. Deixa estar que os dois capangas que o acompanharam foram os seus próprios matadores. Assim, é provável que tenham se mudado durante o governo de Artur Bernardes. A definição da data exata dessa nova fuga foi, portanto, difícil, além de não ter comprovação documental.

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mencionado Capitão Joaquim, morou até o fim da vida. Esse ramo da família foi bem descrito no livro “O Sangue do Barão”. Ali, Antônio Carlos Corrêa de Faria fala dos últimos dias da figura lendária, descrevendo um fim de vida prosaico, no qual o diabetes comprometeu sua saúde, deixando-o triste e cego antes de morrer. Porém, não perdeu sua verve política. Deixou determinação certa de Dedicatória feita ao Capitão Joaquim Corrêa de Faria, em 1922 que não queria ser enterrado dentro do cemiSr. Fernando Corrêa Gonçalves, que mora em tério, porque lá tinha muitos desafetos políticos. Juiz de Fora, conta que o avô João Corrêa de Faria E assim foi cumprido. O citado livro descreve a extensa família geradesapareceu para os lados de Aimorés, deixando a mulher e a única filha, a já mencionada Virgí- da por ele e as gerações posteriores. Seu filho João nia Corrêa de Faria, nascida em 1905, sem nunca Corrêa morreu em 1946. Seu outro filho, capitão mais aparecer. Essa neta do capitão, cuja foto ainda Anacleto (Cleto), acumulou bens e terras, tendo nova aparece neste capítulo, morreu em março de criado também uma família extensa em Barra do 1990. Entre os oito filhos de Virgínia, o terceiro foi Capim. O livro “O Sangue do Barão” dá o destaque merecido a este filho do Capitão Joaquim Corrêa. o Sr. Fernando. Ele conta que, bem mais tarde, o avô João Cor- Assim passou a memória dessa figura que os sobrirêa buscou estabelecer contato, mas o neto consi- nhos de longe chamavam de tio Joaquim Corrêa derou que era tarde demais para isso. Havia deixa- “véio”, para não se misturar aos inúmeros Joaquins do na memória da família uma ideia de violência que a ele se seguiram nas gerações posteriores. e “bandidagem” política que nunca pode ser desDa sua existência achei provas na Câmara Mufeita. nicipal de Caratinga, os registros em cartório e esta Lá em Conceição do Capim, seu bisavô, o nosso dedicatória em uma foto que ele nunca recebeu.

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Detalhe do lenço dos namorados, bordado por Ana Cândida, aos 14 anos, para o namorado Chico Pena, em 1904

União de famílias: um negócio e um amor (1904-1908) esde que comecei a pensar no romance, acho que posso chamar assim, entre meu avô Francisco Penna e minha avó Ana Cândida de Faria, vem à minha cabeça o estribilho de uma canção cantada pela dupla Pena Branca e Xavantinho: “Ali, passava boi, Passava boiada, Tinha uma palmeira Na beira da estrada Onde foi cravado O meu coração.”

Estarei romantizando uma situação arranjada? Acho que não. Alguns relatos ajudam a compor a cena. Assim parece que se deu. Francisco Penna, ou melhor, “Chico” Penna, como foi chamado até a morte, morava em Pocrane, passava na tropa em frente da fazenda Laranjeira e ficava arranchado a uma légua dali, na fazenda que veio a ser de Antônio Calhau. Era ainda “arrieiro” em tropa alheia e passava na sua lida cuidadosa, mas não deixou de notar a moça morena de olhos amendoados que ficava na janela daquela casa. Casa assobradada, imponente, bem construída, cheia de janelas, bem na beira da estrada. Quem sabe parou na venda olhando para

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cima, com fito de comprar o rapé que ele usou a vida toda. Ela teria quando muito 14 anos. A cada passagem, o olhar se esticava procurando a morena. As viagens duravam 16 dias. Eram duas viagens por mês. Duas passagens por mês. Vinte e duas por ano. Ano após ano. Tiné gostou do pequeno português. Tinha filha para casar nesse ermo do sertão. Já havia casado, e muito bem, Mariana, a filha mais velha, no ano de 1902, com o fazendeiro Paulino Ribeiro. Perguntou ao português se ele estava querendo se casar.

Resposta positiva e estava firmado o namoro. Nessa época, Ana andava pouco pelos quintais. Tivera uma infecção no joelho ou quem sabe doença reumática. Mancou de uma perna, levemente, por toda a vida adulta e “sofreu do coração”. Sempre se considerou que ela era frágil e “doente”, e por toda a vida de casada foi sempre enérgica, brava, ativa e trabalhadora, dando ordens aos empregados e agregados. Veio a ser conhecida mais tarde como a “Sadonana” dos meus tempos de infância ou, num português mais castiço: Senhora Dona Ana.

Lenço dos namorados, bordado por Ana Cândida, aos 14 anos, para o namorado Chico Pena em 1904

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Manuel emprestou capital para Chico Penna. Simpatizara mesmo com o português. Vamos fazer as contas do empréstimo: Primeiro ajudou a comprar o lote de burros. Cada tropa era formada por dez burros. Cada lote de burro podia custar de três a seis contos de réis, dependendo da qualidade dos burros. O investimento total era de mil contos de réis, de acordo com as contas de Joaquim Ribeirão, que foi casado com a Defina Faria Penna. Esse investimento devia ser pago em carreto de café da fazenda Laranjeira para perto do porto do Espírito Santo, Aimorés. Quando começaram as viagens, a tropa de Chico Penna levava, por viagem, oito arrobas de café para Aimorés, arranchando em oito lugares diferentes entre Ipanema e Aimorés. O caminho está no mapa n.º 4: Os pontos de parada para pernoite eram 1. Fazenda de Antônio Calhau, 2. Pocrane, 3. Figueira, 4. Passagem, 5. Gorgulho, 6. Travessão, 7. São Benedito, 8. Capa Bode e 9. Aimorés. Andava em média seis a sete léguas (45 km) por dia. Fazia, como já foi dito, duas viagens ao mês, ida e volta. Apurava quatro contos de réis por arroba, o que garantia retorno bruto de até 64 contos de réis por mês. A vida de tropeiro era toda programada. Era duro viver essa vida. Pode-se dizer que, como qualquer dono de tropa, assim era o dia a dia de Chico Penna: “Usava chapelão de feltro cinza ou marrom, de abas viradas, camisa de cor similar ao chapéu de pano forte, manta ou beata com uma abertura no centro, jogada sobre o ombro, botas de couro flexível que chegavam até o meio da coxa para proteger-se nos terrenos alagados e matas. Ao final

de cada dia acendia o fogo, para depois construir uma tenda com os couros que serviam para cobrir a carga dos animais, reservando alguns para colocar no chão, onde dormia envolto em seu manto.” Parava nos “... ‘encostos’, pouso em pasto aberto ou nos ‘ranchos’ quando já havia um abrigo construído (...)”. Alimentava-se com “... toucinho, feijão preto, farinha, pimenta-do-reino, café, fubá e coité (um molho de vinagre com fruto cáustico espremido). Nos pousos comia feijão quase sem molho com pedaços de carne de sol e toucinho (feijão tropeiro) que era servido com farofa e couve picada. Bebidas alcoólicas só eram permitidas em ocasiões especiais: quando nos dias muito frios tomava um pouco de cachaça para evitar constipação e como remédio para picada de insetos”. “... montava um cavalo que possuía sacola para guardar a capa. (...)” “Enfeitava a crina do cavalo com fitas. Era a ‘madrinha’, a mula já envelhecida e bastante conhecida dos outros animais para poder atraí-los. Era a cabeça da tropa e abria o percurso, com a fila de cargueiros à sua retaguarda...” Trazia consigo “... a ‘matalotagem’ (...) apetrechos e arreios necessários de cada animal (...) e ‘a bruaca’, bolsões de couro que eram colocados sobre a cangalha e serviam para guardar a mercadoria”. O trabalho não parava. “Não tinha sábado nem domingo” para o futuro genro endividado. Um dia, Chico Penna perguntou: – “Ô meu sogro aqui é só trabalhar?” Ao que Tiné respondeu: – “Você está com saúde? Se você está doente, a gente arranja uns chás para você.” Em quatro anos Chico Penna pagou todo o dinheiro devido ao futuro sogro. Quatro anos levou fazendo sua tropa trabalhar para pagar a dívida contraída. Quatro anos levou para poupar e poder casar. Enquanto isso, esperava Ana Cândida sarar de sua mazela. De passagem pela fazenda, de vez em quan-

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do, eles iam ao moinho, ou à horta pegar verdura. Sempre muito devagar. Enquanto se recuperava, Ana Cândida fazia enxoval. Bordava e bordava pontos Richelieu e “embainhava”, à mão, lençóis e fronhas em peças de linho branco puro. Dormia no mesmo quarto que a irmã Maria, mais nova três anos. Queria bordar um presente para o português, mas a mãe, Sinhazinha, muito rigorosa, não podia saber. À noite, colocava panos em baixo da porta do quarto para impedir a luz de passar e ficava bordando à luz de lamparina. Bordou por muito tempo. Muitos e muitos serões. Só à noite, às escondidas. Um dia Chico Penna recebeu, pelo ajudante da tropa, um pequeno embrulho dentro de um pano branco. Dentro do embrulho, um lenço masculino de fino tecido branco bordado à mão com linha fina também branca. Em cada canto flores de crivo, ponto-cheio e ponto-atrás. Cada lateral com um verso das duas quadrinhas de amor abaixo. A primeira: “Se vires a tarde triste E o ceo querer chover Creia que são meus olhos Que choram por não te ver.” E a segunda: “Por ti suspiro, Por outro não. Amar-te sim, Deixar-te não.” Tive o prazer de conhecer esse lenço, já muito velho, que tia Hilda guardou para nosso deleite. Impecável, como os bordados da ilha da Madeira. Já puído pelo tempo e uso. Recuperamos esses desenhos em formato digital a partir de fotos do original. Ele é exatamente assim como aparece nesta foto. Nesse tempo, Chico Penna já tinha aprendido a ler, por insistência do sogro e amigo. Fico pensando na sua emoção ao guardar peça tão delicada nas andanças pelos matos e arranchados. Na vida difícil das dormidas ao relento. En-

fim, o pequeno português pode sentir que teria seu porto seguro, seu lar. Pensaria ele assim? Seria indiferente? Não creio. Nunca saberemos de fato se o casamento foi definido por Manuel Corrêa ao conhecer melhor Chico Penna ou se de fato valeu os olhares pela janela –e que não eram recomendados pelas famílias naqueles idos tempos. No entanto, o lencinho amoroso escondido fala de afeição compartilhada. Dar o lenço ao namorado não foi moda inventada pela mocinha da janela. Havia um costume português antigo que depois eu descobri. No norte de Portugal, existe uma tradição antiga, a dos “lencinhos dos namorados” ou escritos de amor. Dizia-se que: “A moça, quando estava próxima da idade de se casar, confeccionava seu lenço bordado a partir de um pano de linho fino (...) ou de um lenço de algodão (...) dos chamados lenços de tropa. (...) Depois de bordado o lenço ia ter às mãos do ‘namorado’ e era em conformidade com a atitude deste de usar publicamente o lenço, ou não, que se decidia o início de uma ligação amorosa.” Esse tipo de lenço hoje é usado em Portugal como lembrança de outros tempos; porém, usam-se os versinhos de antigamente, com o português falado pelas mulheres do campo. Assim como se fala. Os seguintes versinhos, tirei-os de um lencinho desses que hoje se vendem como lembranças para turistas. “Curação por curação Amor não troques o meu Olha que meu curação Sempre foi lial ó teu” Ou mesmo: “Meu Manel bai pró Brasil Eu tamen bou no bapor Guardada no coração Daquele quê meu amor” O casamento do casal amoroso realizou-se de manhã bem cedinho, às oito horas do dia 2 de maio

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de 1908, no cartório de Santo Antônio. Presentes como testemunhas, Lino Cândido de Oliveira, aos 38 anos, primo de Ana Cândida; Anacleto Corrêa de Faria, aos 32 anos, primo de Ana Cândida, e José Dornellas da Costa, com 44 anos, casado com prima de Ana Cândida. Nesse dia, as testemunhas eram de três ramos diferentes da grande família Corrêa de Faria. Teriam se reunido suas mulheres

e filhos? Era provavelmente dia de festa. Nesse mesmo ano, foi inaugurada a estação Natividade, da Estrada de Ferro Vitória–Minas, na barra do rio Manhuaçu, onde hoje se situa a cidade de Aimorés, facilitando o escoamento da produção a ser levada até os exportadores e fortalecendo os caminhos há muito percorridos por Chico Penna.

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Anúncio da empresa Mala Real Portuguesa

José, Antônio, Augusto e Augustinho partem para o Brasil (Século XX) e, no século XIX, chegava ao Brasil uma média de 10 mil portugueses ao ano, no século XX, a cifra subiu para 25 mil portugueses no mesmo período. Os jornais portugueses tratavam da questão da emigração como uma calamidade. Seguem algumas citações retiradas do livro Olhares Lusos e Brasileiros, para dar noção de como circulavam as discussões sobre emigrar para o Brasil nos anos em que vieram outros quatro familiares da família Gonçalves, depois Penna: os irmãos José, Antônio, Augusto e um sobrinho destes, o Augustinho.

“De 1899 pra cá a emigração cresce pavorosamente. Dir-se-ia que a terra portuguesa expele os seus habitantes, ou que estes, perdida a confiança em melhores condições na pátria, a deixam aos magotes e por todas as outras a trocam.” (Jornal A LUTA, 1910)

Os agentes de emigração “... andam de povoado em povoado, de casa em casa, aproveitando-se da ignorância dos habitantes dos nossos campos.” (Jornal A CAPITAL, 1912) “E o homem do Norte, que é simples, exageradamente simples, confia nas palavras embusteiras

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Navio de passageiros a vapor que circulava no final do século XIX e início do século XX

e tentadoras com que lhes afagam o ouvido sentimental e lá segue oceano a fora com os olhos fitos numa miragem doirada.” (Jornal A REPÚBLICA, 1912) A miragem dourada tinha bases sólidas para os irmãos Gonçalves no ano de 1908. José, com 23 anos; Antônio, com 21 anos, e Augusto, com apenas oito. Um tio emigrado há 33 anos e estabelecido com comércio. O irmão mais velho no Brasil havia 14 anos. Pesava negativamente a história do tio assassinado em terras brasileiras. Mas José possuía uma preciosa carta de Francisco datada do mesmo ano. Dizia que o irmão já tinha sua própria tropa no Brasil e que havia se casado com uma brasileira e chamava-o para emigrar. Em Ribeira de Pena, as casas do centro do Concelho eram bonitas, sólidas e ricas. A Igreja Matriz erguia-se imponente, com suas duas torres, do mesmo modo como se vê atualmente. Havia sido construída com dinheiro enviado por um português enriquecido no Brasil. Mas a maioria do povo era muito pobre. As condições não mudavam e, como vimos, imigrar era cada vez mais comum em Portugal.

Diz-se que entre os anos de 1910 e 1920 foram os anos de ouro da imigração portuguesa para o Brasil. Nessa época, as hospedarias dos emigrantes e imigrantes já estavam em pleno vapor na saída dos países de origem e na entrada no destino final, respectivamente. Fazia-se a expedição de documentos, aferição de documentos, controle médico sanitário, registro e encaminhamento para local de destino. Tudo sob rígido controle. O quarto Penna Pouco se sabe sobre a chegada de José Gonçalves ou José Penna ao Brasil. A única filha viva, Delfina, estava muito jovem, com oito anos, quando o pai morreu e não pode indagar ou guardar as memórias dessa mudança. Certamente ele fez o mesmo caminho dos anteriores. Veio, no ano de 1909, a vapor, na condição de emigrante clandestino, com destino ao Rio de Janeiro, capital da república, em pleno governo do Marechal Hermes da Fonseca. Certamente já havia sido instruído pela carta sobre onde deveria tomar o trem até Carangola, como havia feito antes Francisco. É provável

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que tenha ficado na hospedaria da Ilha das Flores. José era analfabeto e assim permaneceu enquanto viveu sua vida curta no Brasil. Sabia fazer contas. Era o mais moreno dos quatro, de feições bonitas. Delfina tem uma linda foto dele, seu pai, e de sua mãe, Maria Cândido de Faria, com quem José se casou dois anos depois de sua chegada, no dia 4 de maio de 1911, segundo certidão de casamento por mim analisada. O quinto Penna Nova carta para Ribeira de Pena, levada pelo português radicado em Caratinga, amigo de Chico Penna, Albino Ribeiro. Essa carta chamava dessa vez Antônio, agora com 24 anos, pelas minhas contas. A carta contava que José se casara com a irmã de Ana, esposa de Francisco. Os dois eram agora irmãos e concunhados, como acontecia com frequência nos sertões do Brasil. Ele talvez já soubesse da existência de outra irmã, a Anacleta, com 14 anos, que logo, logo teria idade de se casar. Esse Penna, que de fato se casou com essa terceira irmã, deixou prole numerosa, de contadores de causos. Destaque para Marciano, seu filho, que conta detalhes da viagem de vinda e muitas outras histórias, e coleciona fotos e documentos. Antônio veio pouco antes da deflagração da Primeira Grande Guerra, também viajando a vapor. Contou que viajou em 1914, “durante” a primeira guerra, como clandestino. Viajava no porão do navio, cortando batatas para pagar a passagem. Não tinha documentos. Quando veio, era analfabeto. Aprendeu tabuada depois, no lombo do burro, enquanto viajava, a mando do sogro. Casou-se logo que chegou ao Brasil, no dia 2 de maio de 1914. Nesse mesmo dia, o sogro (e patrão) não teve dúvidas, mandou o genro com a tropa para Aimorés. Devia seguir a vida. Deixou a jovem mulher à espera. Acredite, pois que é fato.

Igreja Matriz de Ribeira de Pena dedicada ao Divino Salvador. Localizada no centro da cidade

O sexto Penna O caminho para Augusto estava mais que selado. Sua carta chegou cedo. Ele deixaria em Portugal apenas a mãe e a irmã Margarida. A casa ficou vazia de filhos homens. Todos se foram. Vieram ser brasileiros. Augusto partiu de Lisboa a vapor e contou ao filho Joaquim que “quase morreu de medo” na travessia, com os movimentos do navio, e medo do desconhecido na chegada. Não tinha documentos e não prestou serviço militar em Portugal. Veio também no porão do navio, como clandestino. Era essa a sina dos jovens pobres e imigrantes de Portugal. Também analfabeto, era o filho caçula, sobre o qual certamente sua mãe depositava esperanças de que não imigrasse. Também fez o percurso já conhecido até a estação de Carangola. Veio em melhores condições que os demais. Havia um cavalo a sua espera e lá

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na estação o estava esperando um amigo dos irmãos, o camarada de nome Juvenal. Firmou-se na vida com o apoio inicial do irmão Francisco Penna e depois com trabalho próprio, já dono de tropa. Fazia o trecho até Manhuaçu passando pelo Suíço, São Simão (hoje Simonésia) e Alegria. Veio a se casar aos 26 anos, também no mês de maio, com a filha mais nova de Manuel Corrêa: a Deolinda. Assim se encerra a saga da saída e da chegada dos quatro Gonçalves que viraram Penna e que no Brasil se casaram com quatro irmãs Cândido de Faria, netas do Barão de Itaperuna. Todos eles encontraram pela frente um Manuel Corrêa de Faria. Ainda falta a história das suas vidas no Brasil. O sétimo Penna Agora chega a vez da terceira geração de migrantes da família Gonçalves. Aquela única irmã que ficou em Ribeira de Pena tinha filhos que também podiam imigrar. Augusto, José e Armando. Tinha também a filha mais nova, Maria da Glória. Os pais preocupados incentivaram o filho Augusto a imigrar para fugir dos rigores do serviço militar em Portugal. Veio antes de ser convocado. Aos 18 anos, decidiu partir em busca de vida melhor. Era o ano de 1926, três anos depois do casamento do tio Augusto Penna. Levou 15 dias para vir da cidade do Porto, em Portugal, ao Rio de Janeiro. Tinha a companhia dos Ribeiro, portugueses que conheciam Chico Penna e estavam voltando para Caratinga. Depois do navio, tomou o trem até Carangola, onde esperavam viajantes de cargueiro que o tio Chico Penna havia enviado. A situação da família no Brasil na ocasião era essa: um tio-avô em Pocrane e estabelecido no co-

mércio; três tios com tropa de burro e donos de fazendas, todos no povoado de Santo Antônio do Manhuaçu e Ipanema; e o tio José, morto há um ano. O segundo dos emigrantes a morrer em tão curto espaço de tempo. No início, antes de se adaptar, se arrependeu da decisão e chorava de saudades da família e da terra natal. Mas, com o tempo, se adaptou. Foi morar na fazenda Barreira de Baixo com o tio Chico Penna, depois na Barreira de Cima do seu tio Augusto, e começou a pensar em casamento. Tinha o costume de ir até à fazenda Cachoeira, de Joaquim Corrêa Sobrinho, cunhado dos tios, por causa de sua amizade com um tal de João Venâncio. Visita vai, visita vem, no caminho para o pé de mexerica abordou a jovem Maria Corrêa, filha de Joaquim, então com aliança de noivado no dedo. O noivo vivia longe dali. – “Maria, a gente podia se casar.” Ao que ela respondeu: – “Ô Augustinho, isso não está certo, não.” Mas ficou com aquilo na cabeça. Noivo distante e... Augustinho presente todo domingo para visitar o amigo e ver a moça de aliança no dedo. Até que um dia os tios da Maria devolveram a aliança para o dito noivo. E os pombinhos marcaram casamento. Aos 24 anos se casou, depois de muitas viagens de tropa para Aimorés e Caratinga. Com ele encerrou-se a imigração da família Gonçalves que virou Penna para o Brasil. Em Ribeira de Pena ficou Maria da Glória, José e Armando, sobrinhos dos quatro Penna. Hoje resta Maria da Glória. Ela já tem perto de 80 anos e é casada com José Alves, que nos recebeu muito bem na ocasião em que lá estivemos. Mamãe tem foto com ela e sua família. Todo mês de agosto, no seu aniversário, eles reúnem toda a família. Neste ano de 2011, nós fomos convidados para a festa.

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Bisnetas solteiras do barão no dia do casamento de Josefa, de cor clara, e de mãos dadas com Leopoldina. Em pé Maria Penna (depois Ferreira), Maria Penna (depois Bonfim). Atrás, Maria Corrêa, duas não parentes, e Delfina Penna (depois Ribeirão)

Netos e netas do barão (I) – Os casais da terceira geração: (Século XX) Lino Cândido de Oliveira & suas três mulheres; Joaquim Corrêa de Faria Sobrinho & Maria Augusta Corrêa; Mariana Cândido de Faria & Paulino Ribeiro; João Corrêa & Catatau (Elmira Mendes Magalhães); Quitéria Corrêa de Faria & José Mendes Magalhães; Francisco Corrêa de Faria (Filho) & Cecília Cândido de Faria; Francisco Corrêa de Faria Primo & Helena Corrêa de Faria

ão inúmeros os casais dessa geração. Gostaria de poder destacar, por exemplo, Luciano José de Oliveira, casado com a prima Anacleta Corrêa de Faria, entre outros que eu não pude descrever e que tiveram importância na história da família. Mas o tempo e as dificuldades de encontrar os informantes me impediram. Olhando a genealogia, na qual estão apontados 35 casais formados com os netos do barão, pode-se perceber quantas histórias dessa terceira geração não consegui registrar. Assim, seleciono 11 dos que mais

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apareceram na memória dos informantes com os político; Manuel Corrêa de Faria, seu tio e também quais me encontrei. Sete casais são apresentados seu cunhado; os primos, Joaquim Corrêa de Faria neste capítulo, em que há muitos primos casados Junior (Quicé) e João Corrêa de Faria. entre si. Quatro casais estão no capítulo dez. Teve dez filhos desse segundo casamento! Eram eles: Álvaro, Deoclides, Marcelino, Maria, FloriLino Cândido de Oliveira e suas três mulheres pes, José Cândido, Abílio, Belmira e Joana, esta Ver casais I-2; I-2*; I-2** última criada como se fosse sua filha. Segundo relatos dos netos, Lino era afável, caComo já mencionei, existiu um Lino, filho do rinhoso, inteligente, e lia muito. Tinha uma bíblia barão, provavelmente com algum problema de ilustrada e mostrava muito as passagens do apocasaúde, que viveu solteiro e teria morrido na casa lipse. Falava muito do futuro. Tinha um caderno da fazenda Itaperuna, em Laranjeira. grosso em que anotava o nascimento de todos os Mas este Lino Cândido era neto do barão, co- filhos e netos com os nomes que ele mesmo esnhecido por minha mãe como tio Lino. colhia. Usava botina e chapéu de palha e sempre “Tio Lino” é figura conhecida e contraditória. camisa de manga comprida. Não fumava e não beNão foi um fazendeiro típico. Mesmo os que não bia. Cuidava da fazenda, de 75 alqueires. lembram nada sobre ele são unânimes em lembrar A sede era perto da fazenda Duas Barras. A casa que existiu um tio Lino. “Ele era muito comentado da fazenda era pintada de branco, janelas rústicas na família.” “Havia uma fazenda do tio Lino.” “Tio sem pintura. Tinha oito janelas na frente. Feita Lino perdeu tudo.” Quem se lembra bem, diz que com estacas de braúna, assoalhada. Ripada com ficou velho e “usava sempre umas polainas com barra alta, sem alpendre. Em baixo guardavam-se as calças por dentro”. “Quando estava bem velho, animais e o carro de boi. aparecia na loja do Antônio Penna.” No início, não Liduína era mulata, elegante. Gostava de manconsegui entrevistar descendentes diretos. Em uma dar e era muito exigente dentro de casa. Quando tentativa frustrada, pareceu-me que não tinham saía a cavalo, tinha um arreio só dela. Era orgulhoboas lembranças para contar. Parece que esse tio se sa. Quando alguém buscava água da mina, tinha separou da primeira mulher, com quem teve três fi- que trazer a vasilha na palma da mão, para não corlhos, deixando descendentes sem proteção. Quando rer risco de enfiar um dedo sujo na vasilha. Usanasceu a primeira filha, o casal morava na fazenda va joias, pulseira escrava de ouro e cordão de sete Cachoeira. Ela nasceu no último dia do século XIX. voltas no pescoço. Depois, deu uma volta para cada Após a separação, viveu muito tempo com Li- neta. Tinha anáguas brancas que eram engomadas duína Maria da Conceição, uma descendente de e colocadas para secar com a roda aberta em cima escravos nascida em 1882, após a Lei do Ventre dos pés de café. Curioso é que ela tinha uma tatuLivre. Mais nova 13 anos, ela teve com ele vários agem de uma âncora tipo almirantado tatuada no filhos. Depois que a ex-mulher morreu, oficializou corpo. Onde terá sido feita naquele tempo? o casamento no dia 12/05/1917, ocasião em que Depois que fez 70 anos, Lino Cândido deixou ele já era mais velho, com 47 anos, e ela, com 38 a segunda mulher, Liduína, morando sozinha na anos. O dia do casamento parece ter sido um dia casa da fazenda para viver com Sá Rita, uma emmuito comemorado, já que compareceram cinco pregada da fazenda, na cabeceira das Duas Cruzes, testemunhas de vários ramos da família: Chico num ranchinho coberto de sapé. Penna e José Penna, os dois casados com sobriToda madrugadinha, ao nascer do sol, saía do nhas do nubente; Joaquim Corrêa de Faria, o tio ranchinho e caminhava até o morro do Cruzeiro, – 66 –


lá perto da fazenda, e gritava para os filhos: “É dia. Está na hora de levantar!” Fez isso sempre até ficar mais velho. Certa vez, levou Sá Rita para passear em Conceição do Capim com a mula de nome “Garça”. Liduína, que ficava sozinha, não teve dúvidas: jogou praga. Não é que uma cobra mordeu a mula, que nunca mais pode viajar? Naquele tempo todos diziam: “Ciúme é duro como a sepultura e pior que a morte.” De sua, tinha a mula de nome “Diliça”, ou seja, Delícia, com a qual ia muitas vezes a Santo Antônio do Manhuaçu. Era muito querido por vovô Chico Penna e vovó Ana. Afinal, foi também o padrinho de casamento deles, era primo e tio ao mesmo tempo da minha avó. Explicando: ele era irmão da mãe da minha avó e sobrinho do pai da minha avó. Toda essa confusão porque o meu bisavô casou-se com a sobrinha. Logo, tio Lino não era Corrêa de Faria por parte de pai, e sim de mãe. Era Cândido de Oliveira por parte de pai, sendo filho daquele Cândido de Oliveira que morreu de tétano ainda em Muriaé. Algo que me interessa bastante nele é que era o “médico da família”, tinha um livro de medicina caseira. Quem sabe tinha o “Formulário de Luiz Napoleão Chernoviz“, que era comum naquela época. Ali ele estudava seu receituário. Usava vomitório e homeopatias, noz vômica rasurada, dedaleira, flores de urtiga e beladona. Tinha o purgativo do Dr. Frank, muito usado. Na gripe Espanhola, em 1918 e 1919, morreu muita gente da família: ele usava, certamente, bromo-quinino, limonada purgativa e sulphato de quinino. Acontecia muito isso na época da gripe espanhola. Era recomendado usar purgativo, o que resultava em, além da dor, tosse e mal-estar próprios da gripe, um quadro de diarreia, que desidratava o doente. Mas essa era a orientação oficial! Foram, no Brasil, 35 mil os mortos pela gripe espanhola!

Quem sabe curou muito quebranto, mau-olhado, ventre-virado. Teria tratado também impaludismo e “tiriça”. Não conseguiu tratar a opilação da Alzira, irmã de minha mãe, que morreu criança. Na família, em caso de doença, todos falavam: “Toma opinião com tio Lino”; “Manda chamar tio Lino”. Certa vez, vovô Chico Penna teve um tumor muito feio na barriga, motivo pelo qual fez uma promessa de ir, em romaria, todo ano, até Congonhas do Campo. Quando sarou, construiu a capela de São Sebastião lá na fazenda Barreira de Baixo. Quem cuidou e sarou essa ferida foi tio Lino. Tratava com poaia. Sabia como ninguém preparar essa receita. A bisneta Elizabete lembra como ele preparava a poaia porque sua avó, a Floripes, aprendeu e ensinou: “Tomar três pedaços pequenos da raiz de poaia. Colocar dentro de um tecido de brim grosso. Socar com uma mão de pilão, em cima de uma tábua, até formar um pó. Depois colocar num vasilhame e acrescentar ½ copo de água filtrada e uma colher de açúcar (Não adoçar muito para não provocar vômitos). Deixar ferver. Depois, deixar esfriar tampado.” Nesse processo o vapor era devolvido ao vasilhame. Usar só depois de frio, com a seguinte receita: “Tomar uma colher de sopa duas vezes ao dia.” Observação: “Durante o tempo em que o paciente fizer uso dessa medicação, ele não pode tomar friagem de jeito nenhum.” Como resultado, a pessoa suava muito e ia sarando. Certa ocasião, vendeu parte do terreno da fazenda e ficou com 42 alqueires. Seria na crise de 1929/1930? Guardou por muitos anos, no sótão da casa da fazenda, umas toras de madeira para fazer o seu cai-

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xão. Mostrava e dizia a todos para que iriam servir. Morreu em agosto de 1962, aos 92 anos, de derrame cerebral. Seu velório foi no ranchinho em que morava com Sá Rita, com todos os filhos chorando em volta do caixão. Muitos já moravam em Pocrane e vieram de lá para o enterro. Tia Virgínia, que era sobrinha dele, acha que houve um problema de herança. Acha que ele queria ficar com um pedaço da Panelinha, a que tinha direito, e não ficou. Problemas que sempre ocorrem nas heranças de grandes famílias. O filho Álvaro, que ainda vai aparecer neste livro, é figura que todos destacam. Diz-se que era estranho e mulherengo e que teve vários filhos fora do casamento. Andava com três anéis de pedra grande nos dedos. Explicava a preferência por tantos adornos dizendo assim; – “Quem não se enfeita por si se enjeita.” Andava sempre com uma carroça e vendia leite e queijo por Laranjeira. Também era tocador de sanfona. Todos os filhos venderam seus terrenos após a morte do pai, menos Maria Cândida, cujo filho Waldir ainda tem terras por lá. A Liduína morreu na casa da filha Floripes. Esta filha foi a única a herdar a tradição de tratador de seu pai. Os dois estão enterrados no cemitério de Santo Antônio do Manhuaçu. Talvez sua figura e o trabalho deste Lino Cândido de Oliveira tenham influenciado o meu tio Lino a ir estudar medicina no Rio de Janeiro. Mas isso é uma história para mais tarde.

Maria Augusta Corrêa, nascida Genelhu, junto com o século XX, a tia Maria Corrêa de minha mãe, ajudou a sustentar a família desde menina. Menina mesmo, pois se casou aos doze anos, mesmo contra o desejo da família. Tinha vida animada, já que os Genelhu (Ribeirão) eram festeiros, participavam da banda de música e faziam bailes animados no povoado. Joaquim Corrêa de Faria Sobrinho, filho de Manuel Corrêa, era bravo, prepotente e valentão como o tio, mas não era homem de trabalho. Ele não fazia, mandava. Viveram se mudando pela vida, e ela na corajosa busca do sustento. Viveu com ela em Santo Antônio do Manhuaçu e depois em Caratinga até a morte. Ela trabalhou duramente até a velhice. Sempre calma e amena. Prendada, tudo que fazia era bom e bonito, dentro da simplicidade dos seus recursos. Se vocês pensam que ela era triste e “secarrona”, não. Não era. Era doce e delicada. Na ocasião do casamento, Joaquim dizia a todos que o aconselhavam a não se casar com moça tão jovem: – “Pode deixar que eu acabo de criar ela com laranja e com maçã.” Antes fosse assim. Casaram-se no ano de 1912 e foram morar num rancho de chão lá na Panelinha. As terras eram do Tiné e o lugar ficava perto das suas lavouras. A bica d’água, longe, ficava debaixo do pé de café. Só desconforto. Em 1913, nasceu Maria; em 1914, nasceu VirgíUma mulher de fibra e um homem valentão nia, ainda nesse “ranchinho beira ao chão”. Casal: Joaquim Corrêa de Faria Sobrinho Lá, depois, ele passou a ter vaca leiteira. e Maria Augusta Corrêa Com o tempo, a vida no sítio não “deu certo” Ver casal IV- 5 e se mudaram para Santo Antônio do Manhuaçu. Alugaram a casa paroquial e Joaquim montou Essa é uma história de como algumas mulheres venda, onde vendia fumo e cachaça. Maria Augussuperavam as condições impostas naqueles inícios ta fazia broa para vender e costurava roupas para de século. Ela deixou marca porque era uma mu- as pessoas de fora. lher de fibra. Os meses foram se passando e com eles a venda – 68 –


e o primo José Penna, netos de Manuel Corrêa de Faria – 69 Virgínia –


se arrastando. No fim, o negócio foi em derrocada. “Foi o tempo que nós ficamos pobres.” Conta assim tia Virgínia, narrando aquele tempo. Com a herança da Sinhazinha, em 1919, tio Joaquim comprou as terras da fazenda Barreira de Cima. Construiu casa boa, assoalho de madeira. Cada prego da taramela ele pregou junto um níquel furado ao meio. Muita gente se lembra de contar esse detalhe. Maria, Virgínia, Olívia já estavam grandinhas em 1922, quando o casal teve seu quarto filho, o Antônio (Nego). Na ocasião, Maria Augusta Corrêa tinha apenas 22 anos de idade. Não sei quanto durou essa vida de fazendeiro. A filha Maria namorou Augustinho morando lá. Ele ainda venderia essas terras para tio Augusto, que se casou em 1923 e que, na ocasião, já era agricultor. Em janeiro de 1925, quando da morte do nosso tio-avô José Penna (o português), a família estava morando numa casa em frente da fazenda São Vicente e tia Maria Corrêa trabalhava costurando para fora. Em 1926, Maria se casou com o português Augustinho. Em 1932, Virgínia se casou com seu primo e meu tio José Penna Sobrinho. Na ocasião, Tiné, já bem velho e preocupado com o filho indolente, disse para o neto José: – “ Você sabia que se você se casar com a Virgínia vai ter que carregar o seu sogro o resto da vida?” José Penna, no entusiasmo juvenil, respondeu: – “Não sabia não, mas se precisar então eu vou carregar.” E cumpriu o prometido. Esse momento merece um intervalo para um doce de cidra. Era isso mesmo que havia no casamento da Virgínia e seu primo Zé Penna. As coisas foram muito bem preparadas. Tia Maria, com todo o seu capricho, preparou o enxoval junto com a filha. Foi usada uma partida de li-

nho branco. Tudo “embainhado” à mão. Toalha de Richelieu, como se usava. A almofada de cetim do casamento, no dia foi colocada em cima da esteira. No quintal, Maria Corrêa preparou uma mesa própria para o dia, toda forrada com toalha de brocado. Em cima da mesa foram colocadas fruteiras de três andares feitas de papelão. Foram encapadas de papel e depois cobertas de doces coloridos: mamão, laranja, cidra, abóbora e coco. Neste capítulo aparece a foto dos noivos. Tia Virgínia linda e ainda parecendo uma menina, como se pode ver. À noite teve muita dança. A banda dos tios Genelhu tocou a noite toda. De madrugada, o noivo foi dormir e deixou a noiva dançando com os parentes. Também de madrugada, foram dormir os pais do noivo, vovô Chico Penna e vovó Ana Cândida. Para eles foi feito um colchão de palha de milho, colocado no chão. No outro dia, quando os recém-casados resolveram sair em viagem de núpcias, a sogra da noiva, a vovó Ana, resolveu ir junto. Os jovens nubentes pediram intercessão. – “Pelo amor de Deus, madrinha Sinh’Ana! A senhora faça alguma coisa!” Ao que ela respondeu: – “Quem pode com ela?” No outro dia, ao chegar à casa dos parentes, em Ipanema, destino dos nubentes, ela falou desenxabida. – “Eu aproveitei a carona.” De modo que antigamente tudo podia acontecer quando o assunto era ingerência da família sobre os filhos. Quando tia Maria Corrêa teve sua última filha, Dulce, nasceu, também, sua primeira neta, Natalina, filha da Virgínia. Essa neta é minha madrinha. Tio Joaquim ainda tomaria conta da fazenda Tiririca, do genro. Muito lembrado é o tempo em que alugaram novamente uma casa em Santo Antônio do Manhua-

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çu, na Cocada. Nesse tempo, a Cocada era mato só. Quando se mudaram para Caratinga, na década de 1950, José Penna trouxe com ele o sogro, a sogra e os cunhados. Muito bem de vida, construiu sua bela casa e outra, menor e mais simples, para os sogros, ambas no Limoeiro. Essa casa linda eu conheci muito bem. O que me encantava nessa casa é que tinha lareira. A primeira casa com lareira que eu tinha visto. Hoje ela está perto da rodoviária de Caratinga, sem o antigo encanto. Minha tia Maria Corrêa é aquela que eu menciono no começo do livro. A tia Maria dos pastéis. “Querem um pastilim?” Quando eu os conheci, eles já moravam aí. Eu devia ser adolescente. Nova, ainda. Ela fazia salgados “para fora”. Tinha os filhos em casa. Os homens: Antônio (Nego), Manuel (Fifita) e Welerson. Tinha as duas filhas solteironas: Sebastiana (Neguinha) e Dulce, que se casou depois. Além, claro, das mencionadas Virgínia, Maria e Olívia, as três casadas desde novas e já morando em Caratinga. Tio Joaquim, depois de velho, ficou sempre caladão. Tia Maria, Neguinha e Dulce, juntas, formavam um trio. Sempre amáveis. Recebiam a gente na sala e depois na cozinha. Na sala, as fotos de Manuel Corrêa e Sinhazinha acompanhavam silenciosas a vida do simpático trio. Na cozinha, o fogão à lenha. Era diferente por-

Fazenda Estrela de Paulino Ribeiro e Mariana Cândida de Faria

que, nessa época, todos os filhos de Chico Penna tinham fogão elétrico. Quando a gente contava um caso, as três repetiam admiradas e juntas, arrastando o final das palavras: – “Não ééé? Pois ééé.” De novo, e de novo, repetiam: – “Não ééé? Pois ééé.” Isso era sempre motivo de comentário nosso. Confesso que gostava de ir lá. Mas não só por causa dos pastéis. Era um povo gentil. Tio Joaquim era bravo, muito bravo. Chegava a ser cruel às vezes. Quando ficou velho, ficou mais manso. No tempo em que foi delegado em Santo Antônio do Manhuaçu, todo mundo tinha medo dele. Andava armado. Até as filhas tinham medo. Não foi um bom marido. Brigavam muito. Ela aguentava firme os desmandos. Guardou mágoa dessa vida. Quando ele adoeceu para morrer, ela deixou de ir vê-lo na beira da cama. Dulce tinha mania de limpeza. Se ela fechava uma taramela da janela, lavava a mão. Depois da

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Paulino Ribeiro e Mariana Cândida de Faria e filhos em 1922

mão lavada, só abria uma janela com a proteção de um pedaço de papel. Mais tarde, Dulce se casou, quando ninguém pensava que isso fosse acontecer. Tia Maria ainda ia passar por sofrimentos, pois sobreviveu às filhas Dulce e Neguinha e aos filhos Fifita e Nego. José Pinheiro e Mariquinha Pinheiro no dia do casamento Coitada, seu fim também foi de sofrimento. em 1922 Teve câncer de ovário. Quando descobriram, já tinha “tomado tudo”. Sabe-se lá por quanto tempo gar os pontos. Ficou dois meses de cama. ela aguentou, sofrendo em silêncio, antes de entreAssim foi sua vida. Uma mulher que foi arrimo de família numa época de patriarcado franco, época em que o sustento da família cabia ao chamado pater familiae. Ela foi uma mulher delicada e forte. Mulher adiante do seu tempo. Essa eu admirava e admiro ainda. Os antigos donos da fazenda Estrela Casal: Mariana Cândido de Faria e Paulino Ribeiro Ver Casal IV -1

Paulino Ribeiro e Mariana Cândida de Faria em 1922

Tia Mariana Cândido de Faria é a mãe da Mariquinha Pinheiro, neta mais velha de Manuel Corrêa de Faria e mulher do Capitão Paulino, donos da fazenda Estrela que aparece em foto neste capítulo. A casa ainda existe e fica distante 3 km de Santo Antônio do Manhuaçu. Era como as demais, – 72 –


Leopoldina e Mariquinha Pinheiro em 1932

Iéca em finais dos anos 1930

uma fazenda de café, e tinha um coronel para administrá-la. O cafezal chegava à beira da casa. Tinha gado e muito capim “colonião”. Os cachorros existiam em grande quantidade e latiam à passagem dos tropeiros. A frente da fazenda dava direto para o rio Manhuaçu e os fundos para o caminho que seguia em direção a Pocrane. Tiveram dez filhos: Maria, a Mariquinha, José, o Iéca, Anna, Agripina, Alcebíades, Leopoldina, Manoel, Anacleta, Luciano e Francisco. Os dois últimos morreram novinhos. Tia Mariana, assim como o pai, Tiné, e o tio Lino, gostava de medicinas. Ela fazia partos. Andava de um canto a outro para atender aos partos das mulheres pela fazenda e proximidades. Era obesa,

pesava em torno de 90 Kg, e por isso precisava de dois animais quando saia para suas andanças. Era tida como muito caridosa. Sofria de hipertensão arterial. Dizem que tinha uma frigideira de ágata com cinco divisões. Fritava cinco ovos e comia de uma vez! Mas sem sal. Teve os dez filhos apesar na pressão alta. Quem aguentaria isso hoje em dia? As fotos do casal e da família toda foram tiradas em 1922. Também de 1922 é a foto de Mariquinha e José Pinheiro, no dia do casamento destes. Certa feita, Mariana sonhou que colocou o filho Alcebíades no forno. Chorou desesperadamente. Será que, desde pequeno, ele já era “couro-grosso”? Ela morreu jovem, com 39 anos, no dia 20 de novembro de 1924, deixando nove filhos vivos,

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“Jacaré comprou cadeira Não tem bunda para sentar Quem tem mulher bonita Não precisa trabalhar.”

Mariquinha Pinheiro aos 100 anos

tendo o mais novinho lhe sobrevivido 30 dias. Seu enterro foi uma das maiores comoções naquelas bandas. Uma pessoa contou o número de pessoas que passavam pela ponte. Passaram mais de mil pessoas! Isso, naqueles tempos, era uma multidão. Passado um tempo, capitão Paulino voltou a se casar. Os filhos menores cresceram sem a mãe. O filho José, apelidado Iéca, era tido como violento. Fez votos de deixar crescer a barba. Casou-se com uma filha do tio Lino Cândido. O marido da filha Mariquinha era comerciante em Santo Antônio do Manhuaçu. Ela era bonita e elegante. Nessa foto mencionada, o casal aparece no dia do casamento. Quando os viajantes que vinham do Rio de Janeiro para vender tecido chegavam à venda, costumavam recitar uma modinha daqueles tempos:

Que simplicidade e displicência ao mesmo tempo! Mariquinha foi uma dádiva. Viveu mais de 100 anos. Alegrou sua família e nos presenteou com muitas das histórias que aqui estou contando. Lúcida e com boa memória. Os fatos iam surgindo naturalmente numa sequência admirável. A ela precisamos render homenagens. Nessa foto em que está com os cabelos brancos, ela tinha 100 anos. Anna se casou com Antero Garcia e foi morar em Santa Constança, onde moravam os Oliveira e os Garcia da família do meu pai. Ficava a mais ou menos seis léguas da rua de Santo Antônio do Manhuaçu. Era discreta e trabalhadeira. Não saía muito de casa. Mamãe lembra que Leopoldina era muito elegante, sempre de sapatos de salto. Mas essa família teve seus percalços. Dois dos filhos, Iéca e Alcebíades, descaíram no desvão da marginalidade e, para a posteridade, ficou uma visão romantizada dos desencontros da vida destes dois personagens. São de Anna as lembranças sobre seu irmão Alcebíades, contadas para seu filho Oto. Alcebíades, que ficou órfão de mãe aos 13 anos, matou umas pessoas por desavença e vivia “corrido”, desaparecido, escondido pelas matas. Andava sempre a cavalo com uma capa de lã grande que cobria todo o corpo, conhecida como capa gaúcha. Usava bota de cano alto até aos joelhos. Andava sempre com um facão largo amarelado e um revólver 38. Tinha sempre uma matula de carne seca dentro de uma sacola de couro para comer nos matos. Dormia no meio da mata. De vez em quando aparecia à surdina da noite. Quando a polícia aparecia, ele saltava para o meio do rio e ia

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atravessando a vau. Nadava bem. Afundava como se estivesse morto. Quando a polícia ia embora, ele gritava do outro lado: “Estou vivo!” E desaparecia por entre as árvores. Ficava muito tempo desaparecido e reaparecia como quem não queria nada. A última vez em que ele apareceu para os parentes foi na casa da irmã Anna em 1944. Ao fim da visita ele disse: – “Eu vou embora.” – “Vai pela estrada”, disse Anna, preocupada. – “Pela estrada eu não posso.” – “Não vá pelo meio do mato.” – “É o jeito, minha irmã, meu destino é esse.” Nunca mais foi visto depois disso. E o outro irmão, José, o já comentado Iéca, tem também uma história triste. Pode-se ver o tamanho da sua barba numa das fotos que ilustra este capítulo. Ele foi muito lembrado também pelas pessoas que entrevistei. Desde novo, era vaidoso. Com o tempo, deixou crescer uma barba imensa, que chegava ao meio do peito, mas sempre penteada e perfumada com água de cheiro. Penteava a barba com cuidado e colocava para dentro do suéter. Em 1948, foi visitar a irmã. Não tirava seu suéter e os óculos escuros. O que todo mundo falava é que ele havia matado diversas pessoas em Laranjeira. E gostava de contar o fato. Uma vez, mostrou para o sobrinho: – “Aquela cruz ali foi eu que matei. Estou te contando, mas não é para falar com ninguém não.” Ficou preso na cadeia em Caratinga, quando a cadeia era onde é hoje a câmara municipal. Mamãe diz que a vovó Ana Cândida, que era tia dele, mandava levar roupa lavada para ele. É desse período uma modinha que ficou famosa. Muita gente, dos mais velhos, sabe cantar ainda hoje. Ele compôs letra e música. Da letra, eu recuperei um pedaço. Cantada pelo Amaury Garcia da Silva, seu sobrinho, a gente pode ver que era uma toada triste, que retrata o momento da sua prisão e o seu anseio por se libertar.

“A benção papai e mamãe Adeus meus amigos e parentes Na cachoeira da Laje Onde eu passei diferente (detido) Só quero a liberdade Desta prisão constrangida Qual será o desgraçado que queira Ser preso por toda vida.” A irmã Anna, enquanto lavava roupa, cantava a modinha e foi com ela que Amaury aprendeu. A referência que ele faz à cachoeira da Laje é porque por lá passou já dentro do carro da polícia. Anacleta morou em Ipanema depois de casada. Depois, mudou-se para Caratinga e tinha um bar na estação ferroviária. Agripina casou-se com Pedro de Alcântara e tinha uma pensão na Rua Olegário Maciel, em Caratinga. Leopoldina casou-se com Amantino Ferreira. Ela aparece numa foto junto com a Mariquinha, as duas muito elegantes, com sapatos de salto de duas cores. Essa foto é do dia do casamento da prima Josefa Penna de Faria, em 1932. Manuel mudou-se para um lugar chamado Caipora, na beira da antiga estrada para Manhuaçu. “Minino, você não me conhece? Eu sou a Catatau do João Corrêa” Casal: João Corrêa de Faria e a prima Elmira Mendes Magalhães Ver casal II-1 e casal I-5 Quando conheci as histórias de Elmira Mendes Magalhães, a Catatau, fui lentamente gostando dela. Que pena não tê-la conhecido! No final deste livro, descobri sem querer, estudando a árvore genealógica, que ela era “Cândido de Oliveira” pelo lado materno e Mendes Magalhães pelo lado paterno; portanto, era prima do marido. Então, não era uma agregada à família, era neta de Delphina Francisca de Faria, filha do barão. Catatau é uma figura ímpar. Deixou lembran-

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um dia de festa em família. Dois ramos da família do barão se unindo duplamente mais uma vez. Várias vezes se misturaram ao longo dos anos, desde Muriaé. O casal teve duas fazendas e uma delas era a fazenda Tobém, cuja sede tinha casa de assoalho alto, alpendre na frente e duas janelas de madeira pintadas de azul de cada lado da porta. Tiveram dez filhos João Corrêa e Catatau com os filhos na Fazenda Tobém, em Laranjeira nos primeiros anos de casados e depois ça forte no imaginário dos netos. Com sua sim- ainda tiveram um décimo primeiro, este, vivo até plicidade, deixou marca no futuro. Viveu a vida hoje. Um dos poucos Corrêa de Faria remanessimples de casa e do trabalho, mas tinha espírito e centes nas terras da Laranjeira. Catatau criou dois vivacidade. Era comadre de minha avó e afilhada filhos que o marido teve antes do casamento. Ainde casamento do meu bisavô. da criou os netos, filhos do filho caçula. Quanta Antes de começar as pesquisas deste livro, nun- energia! ca havia ouvido falar dela. Hoje, com certeza, é miNessa foto aparecem ela, João Corrêa e oito dos nha parenta e por ela tenho muita admiração. Eu onze filhos. Pelo vestido, ela devia estar grávida do sei que você é a Catatau do João Corrêa. Mulher nono filho. admirável! Apesar de discreta, tinha interesse por se relaA mãe, Ana Cândida de Oliveira, filha do José cionar com as pessoas e parentes. Cândido de Oliveira, neta do Barão de Itaperuna, Se alguém não a reconhecia, batia-lhe no ommorreu de parto do décimo sexto filho. Catatau, bro e dizia: mesmo nova, criou os irmãos. Era baixinha, clara, – “O que é isso, minino? Você não me conhece? de olhos azuis. Casou-se em 29/02/1908, com o pri- Eu sou a Catatau do João Corrêa!” mo João Corrêa de Faria, aos 18 anos, no mesmo Foi uma mulher do trabalho. Quem garante dia em que seu irmão José Mendes Magalhães se ca- isso é sua filha Ana. sou com a também prima Quitéria Corrêa de Faria. – “Minha mãe trabalhava muito, meu pai não se João Corrêa já havia vivido bons 31 anos na importava. Às vezes, ele bebia e se deitava no mato.” ocasião do casamento. Devia ser um bon vivant. Ele repetia sempre a expressão: Manuel Corrêa de Faria e José Dornellas da Costa – “Meu nego, meu nego. Quedê isso? Quedê foram os padrinhos de casamento. Deve ter sido aquilo?” – 76 –


Repetir palavras no meio da conversa é coisa de Corrêa de Faria. Há uma história curiosa que mostra o seu modo de agir, compatível com um patriarca daquela época. Edgar Nunes de Morais agradou-se de sua filha Helena Corrêa de Faria. Foi até a fazenda do Tobém e pediu a moça em casamento. João Corrêa não vacilou. Sem pestanejar, ofereceu Zilda, já que Helena era prometida desde o nascimento. Oferta feita, oferta aceita. Estava feito o acordo. Mais racional impossível. Deu-se então o casamento. Há quem lembre que, numa das inúmeras vezes em que bebeu, chegou em casa e Catatau estava matando um capado, os pedaços de carne em cima da mesa da cozinha. Ele chegou e, com muita braveza, foi jogando pedaços do porco pela janela. Era assim quando bebia. Brigava com ela. Voltando a Catatau, as lembranças são de que ela trabalhava “de noite a noite”. Levantava ainda escuro para torrar farinha de pilão (farinha de milho). Sempre fazia comidas no fogão à lenha, em imensas panelas de ferro. Durante a semana, tinha a filharada e os agregados. Todo domingo, a fazenda enchia com a parentada na hora do almoço. Toda noite, lua já alta, antes de dormir preparava duas ou três broas para o dia seguinte. Fazia broa na panela e deixava a brasa em cima. No outro dia, a broa estava assada. A bica ficava longe da cozinha. A água escorria dia e noite sem parar. Naquele tempo era assim. Ela areava as panelas para tirar o carvão. Costumava dizer, quando alguém se preocupava com ela e dizia para ela não sair de casa: – ”Quando é para trabalhar, ninguém liga. Para passear, todo mundo se preocupa.” E repetia sempre nesse caso: – ”Cangalha que pisa, cangalha que cura.” Nas horas vagas, desmanchava saco de farinha de trigo, para depois usar em casa em outras utilidades.

Fazia tudo sozinha. Madrinha Carlota era a ajudante. Só ia trabalhar naqueles dias em que iam fazer quitanda. Havia os dias de fazer sabão. Era feito na fornalha. Tinha que mexer muito e por muito tempo. O movimento das fazendas era grande. Plantavam também café, milho, arroz e feijão. Tinha alambique, que produzia rapadura e açúcar mascavo. O monjolo funcionava na beira do córrego para socar o arroz, que ficava todo cheio de raias vermelhas quando saía a palha. Tinha engenho de serra para serrar madeira. O terreiro de café era grande e ficava sempre cheio na safra. Também tinham tropa de burros, que ia até o Rio de Janeiro. A tropa transportava fardos de sarja Petrópolis (para fazer roupa para empregados). Transportava, também, fardos de tecidos, caixote de bacalhau, caixote de soda cáustica, fardo de farinha de trigo. Trazia sal Mossoró, um sal muito grosso, que depois era socado no pilão para ser usado. Toda essa carga era guardada na tulha. Mas nem tudo era trabalho! Catatau era alegre e adorava flores. Tinha muita samambaia debaixo da varanda. Tinha muitas roseiras. Saindo da cozinha e andando um pedaço, lá ela tinha, ao lado da bica, uma varandinha cheia de flores e vasos. Ela tinha, pois, acreditem, um lado romântico no meio de tanta azáfama. Entre as alegrias, havia a brincadeira do macuco. Ana, a filha mais nova, quando mocinha, vestia-se de noiva para se casar com o macuco. Uma ocasião, lá pelos meados de 1940, alguns parentes foram com Catatau a Juiz de Fora para fazer compras. Não conseguindo o que queriam, foram até o Rio de Janeiro. Catatau resolveu voltar sozinha. Não tendo mala, não se apertou. Colocou as roupas uma em cima da outra sobre o corpo e voltou triunfante para casa. Fez uma parada em Caratinga. Quando foi chegando perto da fazenda do Limoeiro, foi vista de longe por Madrinha Sinh’Ana na janela, que diz para minha avó:

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– “O que é aquilo, Sadonana?” Vovó Ana foi até a janela e disse: – “É a comadre Catatau, criatura!” – “Não é não!” – “É sim!” De magra que era, estava gorda. Gorda de tanta roupa. Avançou decidida e subiu as escadas do alpendre sem se apertar. Segura e orgulhosa em sua sabedoria e simplicidade. Filhos casados, netos crescendo, quando, na década de 1960, um neto de Catatau, filho da Maria Corrêa, foi para Brasília, atraído pelas possibilidades de fazer vida nova e ganhar dinheiro. Tendo se dado bem, voltou a Santo Antônio do Manhuaçu e insistiu para que os parentes se mudassem. Que “ia ser bom para os filhos estudarem, trabalharem”. Brasília, então, era um canteiro de obras a céu aberto. Eram muitas as possibilidades. Edgar Nunes de Morais (casado com a Zilda) foi o primeiro a se mudar com toda a sua família. Foram para Taguatinga. De lá vieram notícias de que estava tudo bem e a família progredia. Assim, ocorreu uma nova mudança dos descendentes de Corrêa de Faria, quase em massa. Mudaram-se para Brasília mais quatro filhos de Catatau e João Corrêa. Maria, Hilda, Francisco e Antônio foram com todos os filhos. Um sexto filho se mudou para Caratinga. Sobraram ainda seis entre Ipanema e Laranjeira. A eles seguiram-se primos que também eram netos do Francisco Corrêa “véio”, este já esquecido na memória. Com tantos parentes em Brasília, era natural que os familiares que ficaram quisessem lhes fazer uma visita na capital. Em 1967, um dos filhos que ficou em Ipanema, Jofre Corrêa de Faria, alugou um automóvel Rural Willys e foi com a mãe, o pai e três filhos para Brasília. A irmã Maria estava com câncer na face. Todos queriam visitá-la. Quando estavam em Paracatu, numa parada de estrada, se alguém olhasse para o lado deles, Catatau, esperta, logo dizia:

– “Deve ser algum conhecido ou parente.” Para ela, sempre havia uma expectativa de encontrar parentes. Com isso, mostrava a prioridade que a família tinha para ela. Pertencia completamente à tradição daquele tempo. É dessa mesma ocasião um dos casos mais comentados entre os netos, intitulado como: “A anágua de morim”. Assim foi o acontecido: Hospedada na casa de um dos filhos, em Taguatinga, ocorre esse fato hilário. Quem conheceu bem Taguatinga sabe que lá dava umas ventanias que levavam tudo que aparecesse. Pois bem. Catatau lavou sua anágua e colocou pra secar no varal, sem pregador. Quando se deu conta, a anágua branca havia secado e voava ao sabor do vento, cada vez para mais longe. Desconsolada e aflita, Catatau gritava: – “Ora, pois, nunca mais vou te ver, criatura!” Atraída pelo barulho, vem de dentro a Delfina e ouve a seguinte explicação: – “Ora, pois, comadre Delfina, essa anágua eu comprei na loja do compadre Wenceslau (Pena de Faria) e quem costurou foi a comadre Maria Soares”. E continuou se despedindo: – “Ora, pois, nunca mais vou te ver, criatura!” Assim era a figura folclórica de grande simplicidade e sem afetação. Catatau sobreviveu a muitos contemporâneos. Estava recostada e levantou-se para pegar o travesseiro. Caiu, fraturou o fêmur. Não sobreviveu muito tempo depois. Morreu em 01/05/1980, aos 90 anos, lúcida com era de se esperar. João Corrêa, que morreu muito antes, teve forte dor de estômago. Tratou-se em Vitória, no Espírito Santo, sem resultado. Morreu em 18/05/1951, tendo sido sepultado no cemitério de Santo Antônio do Manhuaçu. Há uma poesia de Cora Coralina que eu acho

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que Catatau poderia recitar. Em homenagem a ela, fotos dos dois ainda novos. copio aqui para que possamos conferir. A fazenda era perto das terras do tio-avô de minha mãe, Luciano José de Oliveira. A casa era “Vive dentro de mim grande, de assoalho alto, esteio de braúna e parede A mulher roceira. barreada. A casa tinha alpendre na frente. O piso Enxerto da terra, da cozinha era de terra, mas o chão parecia nuvem Meio casmurra. de tão branco. Era toda rebocada de barro branco Trabalhadeira. misturado com bosta de boi. Madrugadeira. Embaixo do assoalho da casa se guardava lenha Analfabeta. seca. Havia também um caixotão de guardar arroz. De pé no chão. Para os lados da cozinha havia uma engenhoca de Bem parideira. moer cana. Bem criadeira. No quintal, uma quantidade de mangueiras Seus doze filhos, enfileiradas fazia a festa da criançada. A água do Seus vinte netos.” córrego descia do morro e dava direto no cano que ia para dentro da pia da cozinha, por onde corria Acho que Cora Coralina conheceu Catatau. noite e dia sem parar. Quitéria era trabalhadora, como convinha às Zé “véio”– Um tratador de homens, mulheres daquele tempo: cozinhava, lavava roupa, mulheres e crianças. passava, fazia quitandas. Casal: Quitéria Corrêa de Faria e o primo Do alpendre dava para ver as pessoas que pasJosé Mendes Magalhães savam. Ver casal II-5 e casal I-5 Zé “véio” sempre tomou café amargo, sem açúcar e sem rapadura. Quando mais velho, aproveitaQuitéria era filha de Francisco Corrêa “véio” va disso para fazer brincadeira de homem-macho com Maria Fernandes de Faria, lembrada como a e gozador. vovó Fernandes, mencionada no capítulo VI. CaQuando passava um parente, ele logo convidasou-se com o primo José Mendes Magalhães, filho va para o golinho de café. E perguntava todo traimais velho de Ana Cândida de Oliveira e Antônio çoeiro: Mendes Magalhães. – “Você quer café de homem ou de menino?” Casaram-se no dia 29 de fevereiro de 1908, o – “De homem, compadre.” Era a resposta que mesmo dia em que a irmã e cunhada Catatau tam- ele sempre recebia. bém se casou, como já disse. Os dois irmãos se Todo mundo engolia o café sem reclamar nem casaram com dois irmãos e eram primos entre si. fazer cara feia, nem cuspir. Ficava tudo em família. Os dois moravam em PoDe uma feita, o primo Deoclides (filho do tio crane à época do casamento. Lino Cândido), que estava construindo uma casa Eles moraram depois na Laranjeira, onde ti- numa virada da estrada, passou na frente da casa e nham fazenda de café e gado, a Vista Alegre. Ti- o primo mais velho fez a oferta de sempre: veram nove filhos: Idevaldo, Narcizo, Arnides, SeCafé de homem ou de menino? A situação só bastiana, Maria, Nágil, Salatiel, Argemiro e Irene. pedia uma resposta. E lá foi o Deoclides engoO filho Argemiro diz que nunca os viu brigar. lindo devagar aquela amargura toda em forma “Combinavam muito.” Consegui uma foto feita das de café. A caneca cheiinha. Terminado o castigo, – 79 –


saiu de fininho e enfezado. Seu genro então perguntou: – “E aí meu sogro? Que tal o café?” – “Ô diacho de café. Meu estômago está embrulhando. Hoje eu não consigo nem trabalhar. Acho que vou até adoecer.” O filho Argemiro até hoje ri dessa história, passada com o primo do pai. José Mendes, desde novo, era tratador, como seu tio Lino. Boa pessoa, como era, tratava todos de graça. Tinha um livro de receitas que ensinava os remédios e como tratar as raízes para virarem remédios. Era um livro encadernado, capa preta, que se chamava “Medicina Alternativa”, cujo autor era Franco Valdomiro Lorenz. Ensinava como tratar de diabetes à disenteria. Isso se pode ver nas fotos das páginas do livro original até hoje guardado pelo filho Argemiro. O homem que tratava todo mundo tinha uma saúde de ferro. Diz-se que nunca adoeceu e que falava, com uma pachorra danada: – “Queria ter uma dorzinha de cabeça, só para ver como é que é.” Quando novo, fazia de tudo na roça: capinava, roçava, derrubava mata, plantava, colhia. Depois de velho, ia levar comida na roça para os empregados. A seriema lá no brejo cantava chamando chuva e Quitéria ouvia, e como vinha sentindo uns incômodos, dizia: – “Desse jeito, vou morrer logo.” Zé “véio”, avesso a doenças, dizia: – “Mulher doente é para sempre.” Mal sabia ele que ela iria sobreviver a ele mais sete anos. Era compadre do cunhado João Corrêa e da irmã Catatau. João Corrêa visitava muito o compadre. Chegava e dizia: – “Ô compadre, eu estava sem beber, mas tive uns aborrecimentos e comecei a beber de novo.” De outra vez, contava: – “Ô compadre, eu fiquei tão feliz que tive que beber.” Quando ele saía, Quitéria dizia do irmão:

Quitéria Corrêa de Faria e José Mendes Magalhães (Zé “véio”)

– “O compadre João Corrêa não tem jeito, não. Se está alegre, ele bebe. Se está triste, também.” Aos 38 anos, Quitéria teve seu penúltimo filho. Pouco tempo depois, o último, e pode descansar dos perigos dos partos perto dos quarenta anos. Zé “véio” acordava sempre de madrugada, foi sempre assim durante toda a vida de casado. Sempre o primeiro a acordar. Não importava se fazia frio, se havia chuva, geada ou cerração. Ia acordando e escancarando as janelas. Mas era no escuro mesmo que ele acordava. Um dia, Quitéria acordou de madrugada e Zé “véio” estava ainda na cama. As janelas estavam todas fechadas. Era a primeira vez que ela via isso em quase cinquenta anos! Já foi gritando, chorando e sacudindo o corpo. Não havia mais nada a fazer. Ele estava morto, sem adoecer, aos 78 anos. Era dia 26 de dezembro de 1963. Um dia depois da passagem do Natal. Morreu como viveu. Calmo e em paz. Ela, por sua vez, continuou a vida de mulher trabalhadeira. Cuidando da casa até que, seis anos depois, caiu de cama. Nunca teve diagnóstico da doença que a estava consumindo. Nunca foi ao médico. Os filhos iam ao farmacêutico em Santo Antônio do Manhuaçu, traziam remédios e nada

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Tratamento de Diabetes, Diarréia e Disenteria do Livro de Medicina usado por Zé “véio”

Tratamento com Dormideira ou Papoula do Livro de Medicina usado por Zé “véio”

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adiantava. Com 11 meses de cama, morreu suave e sem dar trabalho, às 08h30min do dia 9 de setembro de 1971, com 79 anos. Combinaram até na idade próxima para morrer. Após a morte de Quitéria, na mesma década de 1970, começou a retirada dos filhos em busca de progresso. Saíram da Laranjeira e foram para Ipanema, Caratinga, Manhuaçu e Ipatinga. Uma mulher de opinião Casal: Francisco Corrêa de Faria (o filho) e Cecília Cândido de Faria (Dindinha). Ver casal II-6

Morava também em Laranjeira, com esse marido, de cama separada. Depois de viúva, foi morar na rua de Santo Antônio do Manhuaçu, na casa da filha Osmira. Atrás do sobrado do Antônio Penna passava um reguinho d’água. Lá perto do reguinho, tinha uma casa pequenininha, onde ela morava. Morava sozinha, mas vinha almoçar na casa da filha Osmira. Nessa época, os netos pequenos chamavam-na de Dindinha. Os netos preferidos eram o Anacleto Penna e o José Corrêa. Ela falava sempre, quando contava histórias: “Quando eu vim ‘lá de fora’, viemos fazendo picada na mata.” Usava sempre a expressão “lá de fora” para falar de onde ela veio. O Neto acha que ela também veio de Muriaé. Com esse nome “Cândido de Faria”, ela devia ser parente do marido, como muitos Cândido naquela época. Não consegui achar sua ascendência. Quando os filhos se mudaram para Brasília, na década de 1960, foi embora para o Planalto Central. “Não se deu bem com o clima de lá”, como falavam os antigos, e voltou para Santo Antônio do Manhuaçu. Durante o tempo em que viveu em Brasília, tinha um tipo de diarreia sempre que comia carne de boi. Quando resolveu voltar para Minas, olhou para a tábua de carne e disse: – “Agora essa tábua vai ter serventia”, aludindo a que todos poderiam comer carne na ausência dela. Viveu até o início dos anos 1970. Morreu em Santo Antônio, morando na casa do filho Antônio, depois de passar um tempo adoentada.

Uma famosa historiadora brasileira diz que, antigamente, existiam duas condutas sexuais para o homem. Uma conjugal, para procriação dos filhos, e a outra extraconjugal, onde havia paixão amorosa. Casamento, só motivado pela razão: boa moça, trabalhadora, boa família e, de preferência, que tivesse bens. E a mulher tinha que suportar calada ver o marido sair da trilha. Assim era. Mas não foi assim com a D. Cecília Cândido, chamada pelos netos de Dindinha. Conta o neto Anacleto Penna que os avós tiveram três filhos. Aí eu perguntei: – Ela morreu cedo? Teve tão poucos filhos? – “Não. Ela separou cama do marido.” – Como? – “É. Ela separou cama do meu avô, porque ele arranjou filho com uma tal de Maria Lucas. Nunca mais dormiu com ele.” Tiveram três filhos antes do acontecido: Osmira, Antônio e Oswaldo. A menina que nasceu prometida a Chico Corrêa Dona Cecília era quieta. Fechada. À moda Casal: Francisco Corrêa de Faria Primo e antiga. Não podia se divorciar, mas manteve opiHelena Corrêa de Faria nião firme. Ela viveu separada, anos, dentro de Ver casal IV-7 e casal II-1 casa. Ele que aprendesse a lição. Essa foi a arma usada para manter sua opinião de mulher que já O casal morou na fazenda Vista Alegre, Larantinha espírito de feminista. jeira. Fez fortuna e viveu uma vida muito boa e em – 82 –


harmonia. Quando Helena nasceu, em 1913, Manuel Corrêa, o Tiné, que era muito amigo do sobrinho João Corrêa, disse: – “A gente podia casar essa menina com o meu Francisco. A diferença de idade é boa. Ele é, exatamente, dez anos mais velho.” João, que respeitava muito a opinião do tio, concordou e o acordo foi selado. Sinhazinha, mãe do menino, já estava acostumada com os planos do marido. Não viveria para ver o casamento. Francisco prestou serviço militar, mas não terminou. Está de uniforme em uma das várias fotos dele neste capítulo. Ainda era novo. Tinha apenas 18 anos. Quando a menina fez quinze anos, em 1929, em plena crise do café, foi marcado o casamento. João Corrêa e Catatau prepararam festa na fazenda Tobém. Era um domingo. Teve almoço e depois baile, que durou a noite inteira. Todo mundo dançando no terreiro e, lá pelas tantas, a noiva, com a animação dos 16 anos, seguia dançando pela noite adentro. O noivo, cansado de esperar e sem lugar, deitou-se debaixo do alpendre e dormiu até ao amanhecer. Pela manhã, chamou a noiva: – “Vamos para casa, Helena.” Envergonhada e teimosa, ela disse: – “Minha casa é aqui!” O noivo, paciente, foi embora cuidar dos afazeres na fazenda Laranjeira. Nenhum beijinho, nenhum aperto de mão. No próximo domingo, foi visitar a mulher. Catatau, com muito jeito, disse para a filha: – “Seu marido está aqui. Vai levar café para ele lá na sala.” – “Só se a senhora for junto.” Respondeu Helena, entre brava e envergonhada. Chegou à sala com a bandeja na mão. – “Eu vim te buscar”, falou o jovem marido, tranquilo e compreensivo. Afinal, eles eram parte

de um acordo antigo de família. Não ia ele atrapalhar agora. Helena correu para o quarto, encabulada. A segui-la foi a mãe, tentando botar panos quentes na confusão. – “Minha filha, você está casada! Você tem que acompanhar seu marido.” – “Eu só vou se a senhora for junto!” Diante do impasse, Catatau, com paciência, acompanhou a filha aflita. Ela pousou na fazenda Laranjeira por 15 dias e depois voltou escondida, deixando a filha com a nova família. Assim, o casamento se consumou e amadureceu. Quem diria que, com esse começo, o casamento seria feliz e que nunca se viu este casal discutir. Mas são esses os depoimentos. As primeiras terras, ele comprou já em 1930. Devia ter herança da mãe, Sinhazinha. Aproveitava a crise e comprava terras dos próprios parentes. Com o passar dos anos, Francisco foi trabalhando em suas terras em Laranjeira, para os lados de Ipanema. Era conhecido por todos como Chico Corrêa. Trabalho contínuo de plantação de cafezal, milho, cana, arroz e feijão. No começo da vida de casados, Helena andava pelos cafezais ajudando na observação das mudas em crescimento. Consegui reprodução de fotos deles, jovens ainda, mas já casados. A propriedade da fazenda Vista Alegre foi crescendo até acumular 155 alqueires de terra, onde existiam 60 casas de colonos. Umas terras que ele andou comprando, aos poucos, foram as de Germano Dornellas da Costa, que era casado com sua prima Anacleta Cândido de Oliveira, irmã do Lino Cândido. O café era plantado, secado e beneficiado. Para beneficiar o café, Chico Corrêa usava já um descaroçador de café, um modernismo naqueles tempos. Tinha duas tropas, que puxavam café, milho e cana para Aimorés e traziam banha e sal. Só para voltar, levavam mais de uma semana. Havia também um tipo de carro puxado por

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Igrejinha Santa Ifigênia mandada construir por Chico Corrêa

bois, chamado carretão, usado para carregar toras pesadas para a serraria. Sempre existiu um engenho de cana para produzir rapadura, açúcar e cachaça. Na década de 1970, já com a administração do seu filho Mauro, o alambique produzia uma cachaça de nome “Correinha”. Havia movimento de gado e a produção de leite era grande, o que obrigava a implementar a produção de queijo. Os queijos ficavam na tábua para curar. Houve um tempo em que o creme era levado para Ipanema para a produção de manteiga. Chico Corrêa tinha também um caminhão para transportar café para Caratinga e Manhumirim. Helena teve vida de patroa. Naturalmente, sabia ordenar as tarefas das empregadas. Tinha uma governanta que organizava a casa da fazenda e a casa que tinham em Ipanema. Recebiam muitas visitas.

As casas estavam sempre cheias de parentes. Era obesa, pesava em torno de 110 kg, mas gostava de se vestir bem. Cintura bem marcada. Mandava fazer roupa em Caratinga com a modista mais famosa daquela época, Irene Azzi Genelhu, mais conhecida como Lulu. As costuras de uso doméstico eram encomendadas com costureiras que vinham em casa. Usava óculos e trazia os cabelos abaixo das orelhas. Gostava de trocar de carro todo ano. Também gostava de repetir palavras. Criatura! Criatura! Era sua exclamação preferida. Mas usava outra expressão quando queria chamar a atenção de alguém para alguma coisa. Dizia assim: _“Ô Diaba!” Como boa Corrêa, também tinha mania de limpeza. A casa tinha que estar limpa e bonita. No jardim, havia muitas roseiras. Gostava de

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flores. O jardim da fazenda ficava na frente da casa, dentro de um cercado de madeira. Teve uma boa vida. Teve três filhos e duas filhas. O primeiro nasceu em 1934. O segundo, Mauro, só nasceria dez anos após. Depois veio Maria Helena, Maria Lúcia e Francisco Corrêa de Faria, o Chicão. Seu filho mais velho, Manuel Corrêa de Faria, foi matriculado no Colégio Imaculada Conceição, em Ipanema, mas não queria saber de estudar. Aos 11 anos, levava leite para SAM. Uma vez, foi sozinho para Manhuaçu. Como não sabia os caminhos de volta, veio perguntando até chegar a Caratinga. Em Caratinga, não conhecia ninguém e saiu perguntado pela Maria Maia, casada com um filho do tio Lino Cândido. Perguntou e perguntou até chegar à casa deles, lá na rua da cadeia. Aí eles o devolveram para a fazenda Vista Alegre. Engraçado nessa história é a gente ver que minha avó Ana, que era irmã de seu pai, não era conhecida do sobrinho. De fato, a gente ouvia falar muito do tio Francisco e da tia Helena, mas nunca os conhecemos. Em 1945, construíram a Igrejinha Santa Ifigênia lá no alto do morro, como aparece na foto. Antes, ela ficava no Alto das Duas Cruzes, mas era muito longe. Construíram mais tarde uma casa grande e bonita em Ipanema, e mandaram os filhos para o colégio em Caratinga e Viçosa. Com o tempo, cresceram as veleidades políticas e Chico Corrêa foi eleito vereador por três mandatos na década de 1950/1960. Chegou a ser o vereador mais votado. Também era vaidoso. Usava ternos de linho acetinado, que mandava fazer com J. Oliveira, em Caratinga. Mas a vida na fazenda tinha suas dificuldades com as estradas em tempo de chuva. Quando chovia muito, os fazendeiros faziam mutirão para melhorar as condições dos caminhos. Se havia algum doente, faziam padiola e iam levando o doente pelo barro afora até chegar onde houvesse uma condução.

Francisco Corrêa de Faria Primo, em 1921, quando prestou o serviço militar

Todo ano, a tradição mandava fazer a Folia de Reis. Há essa foto muito bonita, que mostra o casal com os foliões e ao fundo a casa da fazenda. São João também não passava em branco. Era promessa. Para a festa, tudo era feito às sacadas: saco de biscoito, saco de broa, sacos de batata doce para assar na fogueira e no forno. É o Chicão que se lembra da Marfisa, empregada da fazenda, que torrava café, torrava farinha e fazia sabão para a dona da casa. E ainda agradava as meninas fazendo boneca de sabugo de milho e de pano. Com o passar dos anos, a situação de saúde de Chico Corrêa foi se complicando. Foi submetido a 11 cirurgias. No início da década de 1970, chegou a ficar semanas na UTI. Foi desenvolvendo insuficiência renal e veio a morrer de embolia pulmonar. Nos seus últimos anos, estava nostálgico e gos-

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Francisco Corrêa de Faria Primo, o Chico Corrêa

Helena Corrêa de Faria

tava de contar histórias do passado. Morreram na década de 1980. Ele era o último dos grandes fazendeiros da família em Laranjeira, último filho de Manuel Corrêa de Faria, o Tiné, e o último neto do barão a morrer. Não foi um coronel. Foi um fazendeiro que se beneficiou da vida dedicada à agricultura. Aos filhos, sobrariam os minifúndios, mais difíceis de serem mantidos. Sua irmã mais nova, Deolinda, a única ainda viva nessa época, morreu antes dele. Com sua morte, em 1982, fecha-se o ciclo de sua geração. Era o último neto do barão que resistia ao tempo da Laranjeira de outrora. O último dos fazendeiros da família a manter o estilo de viver nas terras que tanto orgulho lhes dava. Ele e Helena estiveram juntos por 53 anos. A sua prometida, e companheira de tantos anos,

faleceu em cinco de fevereiro de 1985, com câncer de tireóide. O filho mais velho do casal, o já comentado Manuel, gostava de contar histórias dos antepassados para manter viva a memória dos tempos antigos. Infelizmente, morreu antes que eu pudesse entrevistá-lo. Tinha o nome de seu avô. Meu bisavô. Ele morreu em 2005. Visitei o sítio onde ele viveu, dentro das terras que foram do pai. Manuelina, sua viúva, nos recebeu com carinho. Casa à moda antiga, galinhas no quintal. Curral ao lado. Cercas de bambu. Fotos de Sinhazinha e Manuel Corrêa na parede. Que emoção! Tudo ali respirava histórias do passado. Na mesa do café da tarde, quitandas em quantidade, que pareciam ser para um batalhão. Nós estávamos chegando de surpresa. E Maria do Carmo, sua filha, herdou o gosto

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Festa de Reis na fazenda de Chico Corrêa

pelas histórias da família. Ajudou-me muito com nomes e endereços. Também a Norma, mulher do Mauro, o segundo filho, se apaixonou pelas histórias da sogra e do sogro e conservou-as para as novas gerações com o frescor de dias atuais. Com nostalgia, despeço-me desse casal, meus tios-avós que não conheci, pelo significado de fechamento de ciclo de uma geração nesse verso e reverso de nossa história. Hoje, a sede da fazenda também foi destruída, mas sobrou essa bela foto tirada em uma festa de folia de reis. Nessa foto estão presentes, além de Francisco Corrêa de Faria e sua prometida Helena, os filhos Mariinha e Francisco, o caçula. Ainda existe para nossa apreciação a igrejinha

dedicada a Santa Ifigênia, hoje reformada no alto do morro, mesmo lugar de sempre. É Manuelina quem me diz: “Seu Francisco tinha medo que construíssem perto da igrejinha, principalmente construções de outras religiões.” Doou os terrenos em volta para a Igreja. A foto deste capítulo mostra a igrejinha no alto do morro, com a mata por detrás. Muita gente se referiu às missas da igrejinha. “Antigamente, todo mundo ia à missa.” “Dia de missa não era dia de trabalhar, não.” De novo me lembro de Cora Coralina, quando ela fez uma poesia para outra igreja. A Igreja de Santa Bárbara. Mas acho que ela não se importa se eu tomar suas palavras emprestadas para homenagear a igrejinha de Santa Ifigênia, seus patronos e aqueles idos tempos.

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No tempo dos antigos “No tempo em que a fé Era o adorno singelo E natural Dos pecadores. No tempo Em que tudo Era difícil Não havia Nada mais fácil Do que se levantar Uma igreja Em cima de um morro _ Vejam a Santa Bárbara.” E por que não: Vejam a Santa Ifigênia.

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Almofada de casamento usada por bisnetas do barão no início do século XX

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Netas do barão (II) – Os casais Penna & Cândido de Faria (Século XX) Ana Cândida de Faria & Francisco Penna Maria Cândida de Faria & José Penna Anacleta Cândida de Faria & Antônio Penna Sobrinho Deolinda Cândida de Faria & Augusto Penna Corrigindo uma história mal contada á uma crença entre os descendentes dos quatro Penna de que as quatro irmãs Cândido de Faria se casaram com os quatro irmãos assim, um atrás do outro.

Quando analisei as certidões de casamento, vi um intervalo de 15 anos entre o casamento do primeiro e o do último casal. De modo que, quando Ana Cândida se casou, sua irmã Maria era jovem, Anacleta tinha dez anos e sua irmã Deolinda assistia a comemoração no colo da mãe, com um ano de idade. As duas últimas não participaram desse processo nem como ouvintes. Pode-se pensar que o casamento de José e Maria fora pensado de antemão. Quem sabe Manuel Corrêa já pensava num segundo genro português. E assim os fatos foram se somando. Deolinda, a filha mais nova, órfã de mãe aos dez anos, dizia, quando chegou de Portu-

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gal o quarto português. “Ele que não pense que eu vou me casar com ele.” “Já vem aquele cambota.” Mas o destino já estava traçado por Manuel Corrêa de Faria. E assim se deu o quarto casamento, seis anos após, contrariando a promessa da menina Deolinda. Quem a conheceu dizia que ela era amena e carinhosa. Parece que esse assunto já estava decidido. E Manuel Corrêa de Faria já estava com 65 anos à ocasião do casamento. Não foi o único casamento que ele marcou com as alminhas ainda crianças. O destino foi firmemente traçado e colocado em prática, lentamente, enquanto as filhas cresciam e os portugueses apareciam e eram aprovados. Dos quatro casais Penna & Cândido de Faria, três viveram em Santo Antônio do Manhuaçu após o casamento. Apenas Anacleta e Antônio Penna viveram muitos anos nas terras da Laranjeira. Meus avós foram os primeiros a se casar, mas, de propósito, deixarei esse primeiro casal para o fim deste capítulo. Cada qual a seu tempo, todos os quatro casais viveram em Santo Antônio do Manhuaçu. O vilarejo cresceu junto com suas proles. Muitas famílias viviam em torno do arruamento. Uma foto, no capítulo XII, registra a ida do bispo Dom Lara em visita pastoral em 1936. Ao lado dele, sentadas estão as normalistas Zenita e Jupira, filhas do Penna “véio”. Na ocasião, Jupira era professora em Santo Antônio do Manhuaçu, contratada pelo governo estadual. No fundo da foto, uma casa bem ao estilo da época lá em Santo Antônio. Minha mãe também aparece nessa foto, então com 13 anos. No mesmo capítulo XII há ainda uma foto da rua principal do distrito de Santo Antônio do Manhuaçu na década de 1950. Nela não aparece nenhuma casa pertencente à família. Mas, no final da rua, onde aparece um automóvel, um ajuntamento de pessoas e uns cavalos apeados, é bem ali a frente da antiga venda do tio Antônio Penna Sobrinho.

Uma história triste Casal Maria Cândida de Faria e José Penna Este foi o segundo casamento entre uma Cândido de Faria e um Penna. Esse casal é aquele que mais despertou minha emoção. Os dois eram os pais de Onília, uma prima de minha mãe que nós visitávamos sempre quando mais novos. Ela era bonita e educada. Sua casa era a coisa mais limpa e organizada que se pode pensar e tinha um pomar maravilhoso. Quando ela nasceu, o pai já estava morto, e viveu muito pouco tempo com a mãe em vida. Maria, essa tia-avó de quem eu só ouvi falar depois que comecei estudar a família, casou-se aos 16 anos, enviuvou aos 35, casou-se novamente aos 36 e morreu aos 38 anos. Deixou seis filhos menores. A filha mais nova, Elmira, era ainda bebê de colo quando ela faleceu. No dia do seu casamento, em 2 de maio de 1911, outra Maria, a tia Maria Corrêa, ainda noiva, arrumou o cabelo dela repartido ao meio. Há duas fotos nas quais o casal aparece ainda jovem. Ela engravidou logo em seguida ao primeiro casamento, mas os dois primeiros filhos morreram pequeninos. Depois veio Sebastião. Três anos após, veio Delfina, a única viva até hoje. Em seguida, veio Francisco (Tisquim). Onília só viria em 1925, depois da morte do pai. Maria ficou com a fama de “atrapalhada da cabeça” para toda a família. Ela era “fraca das ideias”. Não sabia ler. O que era estranho, já que tia Mariana e minha avó – que são mais velhas – sabiam ler e escrever bem. No resguardo, ela ficava “ruim”. Ficava sem conversar. Muda de tudo. Quando ela teve o Sebastião, o terceiro filho, em uma crise, queria jogá-lo pela janela. Foi preciso trancar as janelas com trava e prego, senão ela pulava lá em baixo. No sétimo resguardo, tia Virgínia, então com 11 anos, ajudava a balançar o balaio em que Onília, recém-nascida, dormia. Tinha que balançar com muito cuidado, segurando a corda do ber-

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José Penna, o português

Maria Cândida de Faria

ço, que ficava pendurada no telhado. Assim a tia ficava calma. Tinha sempre uma vara de marmelo no canto da cama. Hoje já se faz diagnóstico de depressão pós-parto, ou mesmo é possível prevenir um quadro mais grave de psicose puerperal sem ficar um grande estigma na família. Naquele tempo, deve ter sido um problema para os pais, esposo e, principalmente, para os filhos. Ainda teria a já mencionada Elmira, das segundas núpcias. Mesmo assim, era trabalhadora, cuidava da casa e da horta, que ficava no lado direito da casa da fazenda. Tinha muitas varizes nas pernas e, de vez em quando, tinha erisipela. José era trabalhador, o mais moreno, mais alto e mais bonito dos quatro irmãos. No começo, trabalhou com Chico Penna. Ia acompanhando a tropa. Certa feita, ao atravessar a vau o rio Manhuaçu,

viu que não dava pé. A tropa seguia sem vacilar. E, como não sabia nadar, pensou rápido e atravessou firmemente agarrado ao rabo da égua. Isso foi motivo de troça, mas foi mesmo aperto e esperteza do português. Depois de muito trabalho em tropas, ficou mais fácil tocar a vida com a herança deixada por Sinhazinha. Eles ficaram com a parte de cima da fazenda São Vicente, que era do Capitão Joaquim Corrêa “véio”, antes da sua segunda fuga. Lá construiu uma casa grande e bonita para morar e uma casa menor para venda e tulhas para depósito. A casa da fazenda tinha cinco janelas na frente e um alpendre pequenino, como é possível ver na antiga foto da casa. Assoalho alto. Alpendre de madeira. Puxou madeira da mata. Era carreiro e isso ajudava muito. Com as madeiras fez também as divisões internas da casa, que eram feitas de tábua corrida. Os esteios, todos de ma-

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Elmira–e92 Onília, – filhas de José Penna e Maria Cândida de Faria, em 1944


Fazenda São Vicente de Cima no tempo do tio-avô português, José Penna e Maria Cândida de Faria

deira também. A divisão interna da casa era: duas salas grandes, uma cozinha e quatro quartos. A privada ficava atrás da casa, também de madeira. No meio do piso do banheiro tinha um buraco, que ficava suspenso em cima do rego que passava no fundo do quintal. A água levava os dejetos para o rio. Montou um cruzeiro grande, também de braúna, bem no terreiro da frente, para todo mundo ver. Com o tempo, José colocou também venda de cereais na fazenda e continuou a sociedade com Chico Penna na venda da cidade. Como não sabia ler, toda tarde o tio Joaquim Corrêa Sobrinho, seu cunhado, vinha ajudar na conferência do dia. Uma tarde, no fim do ano de 1924, meu tio-avô José Penna não conseguiu fazer a conferência. Estava com muita dor de cabeça.

Tia Maria disse: _“Convém fazer um chá e ir para casa.” Foi deitar. À noite, sem fome, comeu requeijão. A barriga começou a crescer e doer. Começou a ter febre alta e delirar. Tio Joaquim passou a noite com ele. Tia Maria Cândida disse: – “Manda chamar o papai” (o Tiné). No outro dia, pela manhã, Tiné apareceu, mas o genro só piorava. Veio a falecer dessa doença no dia 2 de janeiro de 1925. O diagnóstico foi febre tifóide. Maria ficou só, com os filhos. Mulher considerada frágil, reservada, como “nos costumes antigos”. O compadre e cunhado, capitão Paulino Ribeiro, que havia ficado viúvo 32 dias atrás, esperou passar o luto e fez uma proposta: – “Comadre, já que nós estamos viúvos e com

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muitos filhos para criar, a gente podia se casar.” Ela respondeu decidida e esconjurando: – “De jeito nenhum! Não posso, porque nós somos compadres.” E encerrou o assunto. Poucos meses depois, apareceu em Santo Antônio do Manhuaçu um forasteiro das bandas do Rio Pomba, da localidade que hoje corresponde ao município de Astolfo Dutra. Chamava-se Delvaux Duque. Era espírita, gostava de bons cavalos e era um bon vivant. Propôs casamento para Maria, que aceitou. Casou-se em pouco tempo e continuou morando na fazenda São Vicente. Contra a opinião dos irmãos e cunhados. Delvaux Duque dormia com arma debaixo do travesseiro, com medo das ameaças do candidato não aceito. As pernas pioraram e Maria foi para o Rio de Janeiro fazer operação. Lá, uma complicação impediu a cirurgia. Numa segunda viagem, adoeceu de febre amarela e morreu. Era o ano de 1928. Foi enterrada no estado do Rio de Janeiro, em Astolfo Dutra. Delfina, que na ocasião da morte da mãe era uma menina de 11 anos, lembra que falavam: – “Está uma correção de formigas. Quando tem correção de formigas, morre uma mulher.” Dito e feito. Seus filhos foram viver na fazenda da Barreira, dos tios Chico Penna e Ana Cândida. Onília, que era muito pequena, ficou com tia Maria Corrêa e, depois de maior, mudou-se para Caratinga, para a fazenda do Limoeiro. Lá ficou até seu casamento. Delvaux Duque fez dívidas com a fazenda São Vicente e ela foi a leilão. Vovô Chico Penna arrematou. Isso aconteceu bem na época da crise do café. O filho mais velho do casal permaneceu na fazenda da Barreira, depois, fazenda do Cristal. Delfina, depois de estudar no internato da D. Isabel, em Caratinga, casou-se aos 15 anos com Joaquim Ribeirão, um viúvo que trabalhava com meu avô. Diz que ganhou de enxoval lençol e fronhas e, de presente, um capado. Ela conta um engraçado episódio do dia do casamento na fazenda da Barreira.

Casal Anacleta Cândida de Faria e Antônio Penna Sobrinho na fazenda Laranjeira

Quinze anos, vestida de noiva, a moça entrou na roda das danças. Tadico, amigo da família e moço lá da rua, tirou a noiva para dançar. Lá foi ela, sem problemas, já que conhecia o moço desde menina. Depois da dança, a mocinha espevitada, e ao mesmo tempo envergonhada, recitou um versinho de amor, embalada pela festa: ”Eu tenho um lencinho branco Pintadinho de amarelo Qual foi o mentiroso Que falou que eu não te quero.” O noivo, homem escolado pela vida, se adiantou com a promessa do versinho e tirou a noiva para dançar. Emocionada e envergonhada com a perspectiva da proximidade do moço, a noiva saiu correndo e se enfiou dentro do quarto. Queria sumir desse mundo. Deixou o noivo frustrado e a plateia admirada e divertida. Soluçando e chupando o dedo, caiu na cama e

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Antônio Penna Sobrinho, o quinto português da família a chegar ao Brasil, já mais velho

Anacleta Cândida de Faria, já mais velha

ficou lá até conciliar o sono. Nesse dia sentiu saudades da mãe. O marido ficou na festa sozinho. Todos acharam graça. Naqueles tempos, moça casadoira tinha vergonha do companheiro. Ficou ainda oito dias na fazenda da Barreira/ do Cristal sem ir para sua casa. Se não fosse a madrinha Sinh’Ana, que pegou a menina pelo braço e mandou-a para a companhia do marido, ela não iria nunca mais. Devagar foi gostando dele. Foi mãe de seis filhos e teve dois abortos. Um desses abortos aconteceu num dia em que ela matou um capado, pegando gamela grande durante o dia. No meio da noite, assustada, ela acordou com uma grande roda de sangue em cima do lençol branco. Continuou morando em Santo Antônio do Manhuaçu por muitos anos. Hoje mora em Caratinga, lúcida, viúva, e me deu muitas informações. Até hoje guarda a joia que a mãe usava na foto que aparece neste livro.

Onília morreu relativamente nova, mas depois de deixar todos os filhos criados. Teve câncer. Ela aparece em foto neste capítulo, ao lado da irmã Elmira. Os novos donos da fazenda Laranjeira Casal Anacleta Cândida de Faria e Antônio Penna Sobrinho Diz-se que tio Antônio, na velhice, ficou sistemático, calado, bravo. Durante toda a vida, dava-se bem com os filhos. Ao chegar ao Brasil, teve seu casamento acertado com o sogro, o Tiné. Casou-se com Anacleta Cândida de Faria, a segunda filha de Tiné a nascer em Santo Antônio do Manhuaçu. Baixinha, falante, voz rouca, a mais comunicativa das três irmãs que eu conheci. O casamento foi às sete horas da manhã do dia 2 de maio de 1914. Como já foi dito, no mesmo dia, o sogro, com toda autoridade, e autoritarismo,

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Lateral do sobrado construído em 1945 pelo casal Anacleta Cândida de Faria e Antônio Penna Sobrinho. Ainda existente, em 2011, em Santo Antônio do Manhuaçu

encarregou o genro de levar a tropa para Aimorés, ao que o genro obedeceu. Decisão inimaginável nos dias de hoje. Durante as viagens, levava uma tabuada de multiplicar feita pelo sogro. – “Você leva no bolso, porque não pesa. Você vai lendo a cavalo.” Ou então: – “Enquanto você está à toa, vou ensinar você a escrever o seu nome. Tem que ser cada um mais bonito que o outro.” Devagar, Antônio foi trabalhando e fazendo um pé de meia. Começou a comerciar vendendo cachaça. Teve tropa junto com Chico Penna e, de-

pois, em separado. Viveu na fazenda Laranjeira junto com o sogro e a sogra. Depois da viuvez de Manuel Corrêa, o casal continuou morando na fazenda. Estavam lá quando da morte de Tiné e lá ficaram até 1936, três anos após. Para os mais novos, a fazenda é lembrada como fazenda do Antônio Penna. Dela, hoje restam apenas pedaços das pedras do alicerce, tomados pelo mataréu. Nada que faça lembrar o antigo apogeu. Não era eleitor, porque era estrangeiro, mas com o fim dos Bacuraus, mais tarde, a partir de 1945, torcia pela União Democrática Nacional – UDN. Quando era senhor da Laranjeira, havia muita necessidade de uma ponte sobre o rio Manhuaçu para facilitar a ida a Santo Antônio do Manhuaçu. Naqueles tempos, tinham que tomar uma balsa no rio. Procurou então a prefeitura de Caratinga, que não se interessou pelo projeto. Procurou os parentes Lino Cândido e Luciano Cândido, e eles não quiseram ajudar. Estava decidido a mudar essa realidade, nem que ele mesmo a construísse. Dito e feito: mandou construir a ponte e passou a cobrar pedágio na altura do portão. O portão ficava no meio da ponte. Até pessoas que passavam a pé tinham que pagar. Ficou assim, como senhor feudal, por muitos anos. Em 1947, ela foi reformada, ocasião em que foi retirado o portão. Naqueles tempos áureos, tio Antônio Penna e tia Anacleta faziam festejos religiosos. Na época da quaresma, no sábado da aleluia era feito o arraial do Judas. Havia um jornal feito à mão na folha de papel almaço. Esse jornal era chamado por todos de “pisquim” (pasquim). Faziam brincadeiras com todos. Um versinho daqueles tempos foi lembrado por Anacleto, filho de Zé Peninha, que era o filho mais velho de tia Anacleta:

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“Desci pra aqui abaixo Encontrei com meu parente Vestido com três camisas E uma capa com sol quente.”


Maria Penna Ferreira ( filha de Antônio e Anacleta) e Joaquim Ferreira no dia do casamento na fazenda Laranjeira

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Era uma brincadeira com Álvaro Cândido de Oliveira, filho do tio-avô Lino Cândido, uma figura estranha que andava sempre a cavalo, com duas ou três camisas ao mesmo tempo. O “pisquim” não deixou por menos. Ele não gostou da brincadeira. O ano de 1932 marcou um grande acontecimento na família de Antônio Penna e Anacleta, que foi registrado pelas lentes do fotógrafo da época. Toda a família presente. Homens, mulheres e crianças na frente do casarão. As moças, elegantes. Era o dia do casamento de Josefa com Chico Freitas. Essa foto é um belo documento de época. Uma grande festa. Não pareciam tempos de crise. Naquela festa parece que se reuniu toda a família. Homens, mulheres, crianças e bebês. Não consegui utilizá-la porque estava muito estragada e rasgada. Apareciam, enfim, pedaços da fazenda Laranjeira. Prova inconteste de que ela existiu e era muito grande. Tiné estava vivo. A sua foto na capa deste livro foi tirada nesse dia, sua última foto, um ano antes de morrer. Nesse mesmo dia foi tirado um retrato que eu chamo de “as primas”. São oito jovens, das quais seis são primas entre si, todas solteiras. Elas são filhas de cinco casais diferentes, todas netas de Manuel Corrêa. Josefa, a noiva, de roupa clara, está sentada de mão dada com Leopoldina, de roupa escura (filha de Mariana); do lado esquerdo, estão à frente a Maria (irmã de Josefa) e atrás, de cabelo comprido, a tia Maria Penna (filha da vovó Ana); atrás da Josefa está a Maria Corrêa (filha do tio Joaquim Corrêa Sobrinho); do lado direito, de tranças, está a Delfina (filha de Maria Cândida). As outras duas moças não são parentes. De 1936 a 1939, o casal mudou-se para Ipanema. A partir daí, acabou-se o esplendor da fazenda Laranjeira, de que tantas vezes falamos aqui. Ainda ficaram lá, para tomar conta do movimento da ordenha do leite, o Sr. Chico Lucas e Dona Albana. Dessa data até sua demolição passaram-se alguns

anos, mas sua decadência como fazenda e terras de cultivo estava selada. Em Ipanema, o casal teve comércio e fundou também a Companhia Força e Luz do município, mas, quando vendeu para a prefeitura, teve prejuízo, segundo seu filho Marciano. Teria vendido por três promissórias, cada uma de sessenta contos de réis. Em 1939, montou comércio em Santo Antônio do Manhuaçu, onde ficou até 1954, ano de sua morte. O comércio era bom. Durante algum tempo, foi a única casa do povoado que possuía calçada. A casa tinha móveis bonitos. Vendia arma de fogo, enxada, enxadão, prego, tecido de muitos tipos, botão, linha, renda, bacalhau, homeopatia. Comprava cereais dos produtores e vendia. Fiado, era muito. Mas depois pagavam. Se estava vendendo um tecido e o freguês pedia outro e ainda outro ele logo se impacientava. – “Quero um brim triunfador.” – “Você quer levar? Se não quer, deixa para outro comprar.” Vinha viajante do Rio de Janeiro vender as mercadorias. Era muito movimento. No fim de cada dia era preciso fazer o caixa. Reclamava da letra dos filhos nos relatórios de venda, dos livros-caixa e dos borradores. Essa venda era exatamente onde hoje é a Escola Antônio Penna Sobrinho. Também na década de 1940, construíram o sobrado, que ainda hoje existe em Santo Antônio do Manhuaçu. Uma parte dele aparece na foto deste capítulo. De acordo com Marciano, tia Anacleta dizia: “Quero janela alta para ver a capelinha (que mandou construir) do outro lado do rio Manhuaçu.” Hoje não existe mais a capelinha. Era bem onde hoje é a chácara da Santinha, filha da Delfina. Por isso precisaram construir um sobrado. Curioso em Santo Antônio do Manhuaçu é que

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a povoação cresceu ao longo do lado esquerdo do rio, território que pertence ao município de Caratinga. O lado direito do rio pertence a Ipanema e só agora tem um arruado de casas. Antônio Penna era empreendedor. Criou a Companhia de Força e Luz de Santo Antônio, que foi vendida para a CEMIG bem mais tarde, no ano de 1967. Bebia com frequência e brigava com Anacleta. Anacleta era falante, comunicativa, mas por ser muito asseada não gostava de pegar na mão das pessoas. Tinha muito cuidado com limpeza e com tudo que pudesse contaminar uma pessoa. Por isso mesmo não tirava a toalha do ombro. Não usava toalha na casa dos outros. A cada coisa que pegava, lavava as mãos. Roliça, pesava mais de 100 Kg. Cuidadosa, vivia à moda antiga. Não ia à casa de ninguém sem um acompanhante. Era caridosa e mandava comida para as pessoas pobres. Muito enérgica. Também ela tinha o costume de repetir no meio das frases uma exclamação: – “Criatura! Criatura!” Natalina se lembra da casa dela. Casa enorme, dentro da cidade. Tinha vidros nas janelas. Móveis bonitos. Cristaleira cheia de louças bonitas. Há uma história que mostra o espírito livre de tia Anacleta. Houve um ano em que ela foi ao Jubileu de Bom Jesus. Nessas ocasiões, os padres aproveitavam para fazer as confissões. Tia Anacleta ajoelhou-se no confessionário, rezou o “Eu pecador me confesso a Deus”. Terminada a oração, o padre perguntou: – “Há quanto tempo você não se confessa?” – “Há cinquenta anos”, respondeu. – “Então a senhora já está no inferno!” Exclamou o padre. Ela se levantou enfurecida, não se deixando intimidar, e disse ao padre: – “Então até logo para o senhor. Passar bem!” De todas as minhas tias-avós, ela é de quem me lembro melhor. Não sei de quando. Ela ia

algumas vezes à Caratinga e eu devo tê-la visto na casa da sua filha Maria Ferreira (nascida Maria Penna). A gente ia lá de vez em quando fazer visitas. Brincávamos com a Gracinha e a Penha. Da Maria Ferreira tem uma foto de casamento em Santo Antônio do Manhuaçu. Tem também um detalhe da almofada em seda bordada que se usava para a moça se ajoelhar na hora da cerimônia. Lembro-me muito bem da Josefa, a filha mais velha da tia Anacleta. Ela era parecida com a mãe. Era uma prima da mamãe que eu conhecia desde pequena. Ela e a Maria Ferreira. Não me lembro de tio Antônio, mas acho que o conheci. Já mais velha, encontrei com a prima Josefa em Caratinga e depois em Belo Horizonte. Na última vez que a vi, fiz com ela uma entrevista e ela me deu informações para este livro. Tem também o Marciano, que contou muitas histórias que aqui estão. Sem contar o João Penna, que é também muito próximo. Ele chama a mamãe de parente. “Ô parente!” O Wenceslau, eu também conheci, marido da Maria Soares, que também entrevistei. Mas não conheci o Simeão. Era um poeta, estudioso e também político. Foi morto por assassinos de aluguel na cidade de Conselheiro Pena. Foi um momento trágico na vida de tia Anacleta. Ela recebeu a notícia na casa da Maria Ferreira, sua filha. Depois, diante do corpo e andando em volta do caixão, fez um discurso alto e de arrepiar:

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“Eu cansei de te avisar, meu filho! Isso não dava certo, criatura! Seus filhos vão ficar sem pai! Estou sentindo uma dor muito forte! Você era um bom filho! Ó meu filho, você pode ter certeza, nada fica encoberto. Eu tenho certeza que vão descobrir! Eu não merecia isso!”


Deolinda Cândida de Oliveira ainda solteira

Augusto Penna, o último dos quatro irmãos a vir para o Brasil

Eu não conheci esse primo. Dizem que era inteligente e bonito. A morte dele foi muito comentada. Tio Antônio, quando mais velho, ficava circulando pela casa dos vizinhos. Viveram em Santo Antônio, quando predominavam as casas de assoalho alto, com esteio de braúna. Janelas simples, portas viradas para a frente da rua. Não havia calçamento, calçadas. O chão era de terra e os postes ficavam no meio da rua. Chegaram a ver os primeiros carros circularem na rua a partir da década de 1940. A loja do tio Antônio era ponto de encontro de pessoas. Quando ele adoeceu, parou de beber, foi emagrecendo. Ficou pele e osso. Teve câncer de garganta e morreu no ano de 1954. Assim morria o

quarto português da nossa família no Brasil. Muitos anos depois, foi a vez de tia Anacleta. Uma noite, chamou os amigos em casa. Coisa diferente do costume. Animada, conversou com eles até tarde. Depois de muita conversa, disse que estava cansada. Despediu-se, alegre. Pediu farinha com doce antes de deitar. Morreu nessa noite. Parece que, como o pai, também tinha premonição. Ambos estão enterrados em Santo Antônio do Manhuaçu. Foi este casal, dos quatro irmãos Penna, que mais deixou marcas na localidade. Hoje existe o Grupo Escolar Antônio Penna Sobrinho, como já mencionado, e a rua Anacleta Cândida de Faria. Lúcio, filho do Lorim, e neto deles, é escrivão do cartório e me ajudou muito na procura das certidões que usei.

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Um casal em harmonia Deolinda Cândida de Faria e Augusto Penna Deolinda nasceu em 1907, na fazenda Laranjeira, e foi registrada em Santo Antônio do Manhuaçu. Conheceu Augusto ainda menina. Perdeu a mãe com 11 anos e acabou de ser criada pela irmã Anacleta. Usava as mesmas botinas que seu sobrinho Doca até os oito anos. Era simples, quieta e calada. Existe uma foto dela ainda jovem. Assim viveu. Augusto labutou muito na tropa junto com seu irmão Chico Penna. Casaram-se no dia 19/05/1923. Mês das noivas. Data escolhida com vagar. Primeiro moraram na beira do ribeirão Jacutinga.Moraram também na fazenda São Domingos, que até hoje está como naquele tempo. Em 1939, foram para a Barreira de Cima. Ali viveram quarenta anos em boa harmonia. Não se podia imaginar que foi casamento arranjado. Todos dois eram de índole mansa. Essa foto do tio Augusto foi tirada de uma outra foto, de tamanho três por quatro. Essa fazenda possuía 70 alqueires, tendo sido antes do seu cunhado Joaquim Corrêa de Faria Sobrinho, aquele Joaquim bravo, que é o pai da tia Virgínia. Casa toda alta, assoalho alto de madeira. Não há na família nenhuma foto dessa casa. Acho que a conheci aos 11 anos, mas não me lembro de nada. Tinha tulha e curral. Havia na fazenda 14 famílias de empregados, morando dentro das terras, como acontecia naquela época. A família tem muitas histórias de tio Augusto, sempre relacionadas com dificuldades com a língua ou com a adaptação no Brasil. No início, ele trabalhava puxando madeira de arrasto. Certa vez, pegou quatro juntas de boi carregadas de toras de madeira e veio tocando pelo caminho. Passou por um alto de morro e tudo corria bem. Chegou a um declive, e tio Augusto continu-

ava puxando a junta. Aí começaram os problemas. As toras caíram do carro de boi e foram rolando morro abaixo atrás dele e ele correndo desabalado à frente das toras. Quanto mais ele corria, mais velocidade as toras ganhavam. Custou a se livrar delas. E depois, dos comentários na família. Tem também a história mais contada, a “dos mamões”. Isso deu uma confusão danada. Quando ele chegou ao Brasil, foi morar na fazenda do vovô Chico Penna. Vovó Ana, que era boa de dar ordens, disse: – “Pega uns mamões e traz para mim.” No mesmo momento, entregou-lhe um balaio. Demorou um tempo e eis que chegou o português suado, cansado, e disse: – “Eles não queriam entrar aqui, não.” Todos olharam espantados e só depois entenderam a situação. Em Portugal, dá-se o nome de mamões a garrotes pequenos. Nosso tio, a todo custo, tentou colocar os garrotes dentro do balaio. Acredite se quiser. Outra história conta que ele foi para o mato trabalhar com uma junta de bois. Pelo meio do caminho, a canga dos bois se quebrou. Tio Augusto foi ao chão. Um dos bois enfiou o chifre pelo cinto e ergueu-o do chão e ele foi sendo conduzido pelo cinturão das calças. Ele esperneou até conseguir se livrar são e salvo. Há quem diga que foi verdade. Falando em histórias de Augusto, existe outra história, mas essa é de Augustinho, o sobrinho. Este, quando chegou ao Brasil e viu um negro, disse, para horror das futuras gerações: – “Meu tio, lá em casa não tem desse bicho, não.” – “Não é bicho, sobrinho. É gente. Só a cor que é diferente.” Tio Augusto também era durão com os filhos, cobrava trabalho diário na lavoura. Mas, com as filhas, dizem que era tranquilo e calmo. Sotaque português mais carregado. Era mais conversado que tia Deolinda. Ficava alegre quando chegava visita. Gostava de despensa cheia. Tudo dentro dos sacos de farinha de trigo.

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Quando mais velho, ficava sentado e dizia para as pessoas que chegavam suadas da estrada ou do trabalho: “Minino, deixa refrescar o corpo primeiro pra depois você tomar água.” Todos os filhos foram mandados para estudar em Santo Antônio do Manhuaçu. O único que estudou em Caratinga foi o Antônio. Tia Deolinda era muito meiga, muito carinhosa, humilde mesmo. Sabia ler. Usava pituca presa na nuca. Tratava os filhos e o marido muito bem. Trabalhadora, estava sempre cuidando da casa, fazendo quitanda no forno. Toda dia pela manhã tinha broa de milho e biscoito de polvilho frito na gordura de porco. Tinha conforto de água na cozinha. Naqueles tempos de fartura, a água saía pelo ralo dia e noite sem parar. Como era calada, não existem muitos “causos” que lembrem sua história. Mas fique muito bem entendido: era calada, mas gostava de tudo bem feito. Uma própria Corrêa de Faria. Gostava de rosas. Tinha muitas plantadas. Costurava roupas, mas principalmente consertava roupas de trabalho da grande prole. Ela nunca saía de casa, nem para ir a Santo Antônio do Manhuaçu. Grande acontecimento foi uma ida a Caratinga em 1934. Havia um ano que sua irmã tinha se mudado para lá. Andou a cavalo o dia todo para chegar. Andou longe, passando pela Serra do Jacutinga e por Piedade. Naquele tempo, o Chico Freitas ainda não levava o povo de caminhão de Piedade para Caratinga. Mais uma vez vou me valer de Cora Coralina para retratar costumes de gente antiga e isolada em suas terras. Parece estar falando de tia Deolinda: “Sou mulher como outra qualquer. Venho do século passado E trago comigo todas as idades. Nasci numa rebaixa de serra Entre serras e morros. Longe de todos os lugares.”

Mais uma vez saiu de seu canto, das suas terras e morros, quando vovô Chico Penna morreu, em 1962. Eles dormiram em nossa casa, em Caratinga, porque era ao lado da casa da fazenda Limoeiro, no mesmo lugar em que está nossa antiga casa, hoje reformada. Antes dessa época, em 1959, eles passaram muito aperto com o filho Antônio, que nós chamávamos carinhosamente de “portuga”. Ele teve tétano e quase morreu. Era um perigo. Nós íamos visitá-lo na casa de saúde em Caratinga. Mesmo assim, ela não soube o que era sair lá da Barreira. Uma informação dada meio à boca pequena pelo neto Augusto Loures Penna: “A vovó pitava cigarro de palha escondido.” Naquele tempo, isso era comum. Esse mesmo neto conta que o avô cheirava rapé. Abria uma caixinha de rapé e chegava de manso no nariz. Dava para o neto. O pai do menino reclamava. – “Ó pai, não dá isso para o menino não!! E ele respondia: – “Deixa de ser bobo, rapaz. Isso é bom para limpar os peitos e botar a gripa para fora.” Tinha também outro costume pela manhã. Levantava e ia acordando os filhos para pegarem no batente. O Marinho devia ter uns dezessete anos e tinha preguiça de se levantar às cinco da manhã. Ficava remanchando na cama. Era sempre o último a se espreguiçar. Tio Augusto chamou uma vez, duas e três. E foi andando naquela direção. Naquela época, desobedecer ao pai, nem pensar. O sobrinho, já acordado e vendo a situação do tio, grita: “Tio Marinho, levanta que o vô envem.” O Marinho saiu desabalado catando a roupa e pulou da janela. Caiu três metros lá para baixo e correu para os lados do curral. Autoridade sim, era naqueles tempos. Quando mais velho, ficava sentado – e o neto reparando o avô. O neto observava a botina que ele usava. Era toda cravejada na sola. Gostava de reparar também nas conversas do avô. A todo mundo que passava, o velho Augusto Penna dizia: – “Ô fulano, vamos chegar. Vamos tomar café?”

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Certa vez, um vizinho estava querendo comprar umas terras e veio pedir opinião de preço. Ele diz no bom sotaque português: – “Ora, pois, se você pode pagaire não é caro. Só é caro o que você não pode pagaire.” E acrescentava: – “A dívida é o inferno dos vivos.” Nunca deixava de mandar o leite para os netos que moravam em Santo Antônio do Manhuaçu. Quem levava era o filho Paulino, num cavalinho branco. Tinha um alforje, feito por Deolinda, dependurado para os dois lados da cangalha. Ele era de pano, costurado de modo que os litros de leite não batiam um no outro. Seguia estrada adiante até chegar a Santo Antônio do Manhuaçu. Todas as manhãs. Tio Augusto faleceu em 28/09/1963, aos 66 anos, “de repente”. Ela sobreviveu ainda 11 anos. Mudou-se para Santo Antônio do Manhuaçu, onde morou com Olga Maria. Estes últimos anos foram vividos como os anteriores, sempre em grande harmonia. Ela também morreu “de repente”. Ficou aflita, muito aflita, e morreu no dia 24/10/1974. Ambos estão enterrados em Santo Antônio do Manhuaçu. O filho Joaquim, já mais velho, e a mulher Orlanda ainda moram na Barreira, num sítio agradável, de bem com a natureza. Também mora em Santo Antônio o filho Chico Pena. Antônio e Sebastião moram em Brasília. Há filhas em Ipatinga e na Piedade e muitos netos e bisnetos em Santo Antônio do Manhuaçu. A história de meus avós Casal Ana Cândida de Faria e Francisco Penna “Com minha mãe estarei, Na Santa Glória um dia. Junto com a Virgem Maria No céu triunfarei. No céeeeeeu. No céeeeeeu. Com minha mãe estareeeeei.”

No alto do altar, todas as meninas, já grandinhas, fingindo uma coroação, entoando a oração já velha conhecida: Gilda, Marilda, Analice, Zezé, Nena e Evelyn. Provavelmente Valéria e Tânia. Eu também. Vânia, nem pensar. Tias e primas maiores, olhando em baixo. Saiu um morcego de trás da imagem de Nossa Senhora e voou entre a meninada. A correria foi desabalada escada a baixo. Sem a mínima compostura. Todas esquecidas da Virgem Maria. Eu devia ter uns 11 anos. Era ano de 1958. Estávamos visitando a fazenda do Cristal, antiga Barra do Jacutinga. Toda a família saiu de uma festa na fazenda do tio Mário para ir visitar as terras que foram do meu avô. Havíamos entrado impressionadas na capela. Porta fechada, tudo empoeirado. Sinais de um tempo passado. Flores de papel crepom coloridas em volta das imagens. Imagem em cima do altar. Era a primeira vez que eu via uma capela em uma fazenda. Conhecíamos a catedral de Caratinga, uma igreja muito maior, que ficava no meio de uma praça. Um misto de admiração e arrogância. Havia o orgulho de saber que aquela capelinha “pertenceu” ao meu avô, e que ali rezara minha mãe quando criança. Havia a arrogância da criança que sabia que era uma igreja num lugar remoto, que servia só de brincadeira momentânea. Se eu pudesse recuperar essa imagem, que poderia eu escrever aqui? Ninguém deve ter pensado em retratos naquele dia. Essa é a lembrança que eu tenho de uma visita à fazenda do Cristal, local onde Chico Penna e Ana Cândida viveram entre 1920 e 1933. Nesse tempo, ele ainda não era o coronel Chico Penna, que viria a ser mais tarde, no município de Caratinga. Na ocasião dessa visita, a fazenda já havia sido vendida há muitos anos. A fazenda existe até hoje, como se pode ver nas três fotos. Hoje, não há mais vestígios da igrejinha. Essa capelinha que usamos na coroação foi construída pelo vovô por causa de uma promessa feita a São Sebastião, devido a uma ferida na barriga que não

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sarava nunca. Foi muito remédio do tio Lino Cândido de Oliveira que, com muito custo, resolveu. Sarou com o tempo. Agora, a represa Areia Branca está inundando tudo por ali. Confunde-me pensar se a lembrança que eu tenho da casa da fazenda é minha ou de uma foto que meu irmão tirou anos depois em uma nova visita da minha mãe. Minha mãe gosta de guardar coisas antigas, de se comunicar com parentes e de “cavoucar” o passado. Certamente puxei isso dela. Era uma fazenda como só poderia ser possível naqueles tempos. Com 87 alqueires e 40 famílias de colonos vivendo nela. Seria um movimento tão grande assim, ou isso é distorção provocada pelo tempo? “Quem conta um conto aumenta um tanto.” Não sei. Naquela época, existiam os meeiros, que moravam nas terras das fazendas. A sede foi construída por Chico Penna em 1919 ou começo de 1920. As tulhas e as divisões internas da casa foram todas de madeira tirada e lavrada por ele. As fotos apresentadas neste capítulo são bem mais recentes, mas são fiéis à fazenda daqueles tempos. Tinha tulha, curral, máquina de café, gerador de energia elétrica, casa da escola, paiol, campo de futebol e claro, a igrejinha. A casa tinha 12 cômodos. Esse genro de Tiné também dava muito valor à educação dos filhos. Mantinha a professora Maria Eleutéria, que ensinava todos juntos numa mesma sala. Ela tinha dois filhos: Filhinho e Walfrido. Morava na casa da escola, bem ao lado da fazenda. Vovô ajudava a bater nos filhos dela, para corrigir alguma coisa. Ela era brava. Usava palmatória, mas não era só ela que aplicava o castigo. Ela chamava dois alunos. Perguntava: Oito vezes oito. O que acertasse tinha que bater na palma da mão de quem errasse. Ai de quem batesse devagar! Tinha que bater de novo! Será que os alunos eram mais obedientes e estudiosos naqueles tempos? Obedientes, pode ser que fossem, mas estudiosos, tenho minhas dúvidas. Quanta arapuca ficava armada antes da aula? Que

aflição! Quanto tempo à espera daquele canarinho afoito. As árvores todas por ali. O pomar! O rego, o córrego, o rio, e os peixes! Tudo na natureza conspirava contra a leitura atenta do manuscrito e das letras encadeadas em palavras tão (des)importantes. De que valiam tantas letras para um menino levado e para uma menina distraída? Os estudiosos, como minha mãe, começavam com cinco anos e sabiam ler com seis. Ela lia na capela toda noite. Ela ganhou um pequeno livrinho de orações em 1932. Era um devocionário para meninas, normalmente lido na ocasião da primeira comunhão. Foi dado pelo Sr. Pedro dos Anjos. Existe até hoje esse livrinho. Mais ou menos 8 cm comprimento por 5 cm de largura. Capa dura, brilhante, colorida, com uma figura de Cristo ofertando a hóstia consagrada a uma criança que está sendo amparada pelo anjo da guarda. Verdadeira peça de museu! É herança da neta Mariana. Uma das orações do devocionário vem apresentada assim: “Exercício do Cristão pela manhã. Ao acordar faze o sinal da cruz e dize: Em nome de meu salvador crucificado me levanto. Elle me livre de todo mal, Me conceda todo bem E me guie à vida eterna. Amém.” No mês de maio, havia coroação toda noite. Mamãe lia uma oração antes. Padre, só de vez em quando. Na fazenda tinha um quarto só para o padre. Alguns se lembraram do Padre Valeck, que era alemão e ia de Caratinga. O bispo daquela época era Dom Carloto Fernandes da Silva Távora, chamado simplesmente de Dom Carloto. Na sexta-feira da quaresma, não se podia comer carne. Na semana santa, não se podia ligar rádio.

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Fazenda Barra do Jacutinga ou Cristal

Na sexta-feira da Paixão, não se podia varrer a casa. No sábado de aleluia, fazia-se a chácara do Judas. Todos participavam. Era uma alegria. Plantavam, de brincadeira, bananeiras e bambus. Faziam uma cerca com capricho. Na véspera, à noite, roubavam animais dos vizinhos e parentes e deixavam dentro do cercado na chácara. Na hora de malhar o Judas, liam também o “pisquim”, aquele jornalzinho de que já falei, feito de papel almaço e escrito à mão. Eram os costumeiros versinhos mexendo com os parentes e agregados que por alguma razão davam motivo de troça. Parece que quem fazia esse “pisquim” era o Sr. José Corrêa, que morava em Santo Antônio do Manhuaçu. O corpo do Judas era feito de roupa velha cheia de palha de milho. A cabeça era de mamão. Ele

ganhava também um cachimbo no canto da boca. De modo geral, as brincadeiras coletivas não eram muito frequentes. Só casamento e batizado. Uma vez, apareceram uns mágicos por lá. Todo mundo ficou feliz. Todos assentados em cima dos sacos de café, de bocas abertas com aquela novidade. Até hoje minha mãe se lembra da alegria. Toda tarde, antes de anoitecer, alguém gritava lá da casa: – “Acende a luuuuz, Zé Amaro!” Lá da casa de força, ele ligava. A força vinha do moinho d’água. Ele tinha um filho de nome Telêmaco. O nome mais diferente por aquelas bandas. Quando o nome era diferente assim, com certeza era o padre que sugeria.

Fazenda Barra do Jacutinga ou Cristal

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Francisco Penna quando já morava em Caratinga

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Ana Cândida quando já morava em Caratinga

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Havia também um telefone de gancho, que dava lá na fazenda do tio Augusto. Tinha que tocar à manivela. “Falava alto que só vendo!” Além disso, havia uma radiola. Os discos eram de 45 rotações, dentro de capas pardas. Tinha o rádio, e à noite o pessoal sentava no alpendre para escutar notícia da revolução de 30. Todo mundo queria ouvir porque tinha muita gente escondida na mata com medo de ir para a guerra em São Paulo. Era uma verdadeira cidade na roça. Falando assim, parece que havia luxo e conforto. Não se enganem. Era trabalho e trabalho. Roça e tropa. Um e outro. Para ilustrar a falta de luxo, tem uma história do tio José Penna Sobrinho, o filho mais velho do casal. Ele não tinha a sorte de ter sapato dele. Tio José Penna já apareceu em foto do dia do seu casamento lá no capítulo IX. Ele era gêmeo com o tio Joaquim. Como vovó era considerada doente, ficou só com o Joaquim e deu o José para sua mãe Sinhazinha criar. Quando os gêmeos tinham nove anos, morreu o Joaquim e no mesmo ano morreu Sinhazinha. José, de apelido Doca, veio então para a casa dos pais. Enquanto morava com os avós, dividia o mesmo sapato borzeguim com sua tia Deolinda, mais ou menos da mesma idade. Quando ficou rapaz e vaidoso, quis comprar um sapato fino de passeio, mas não teve permissão do pai. Comprou os sapatos “à meia” com o Pedro Português e os deixava escondidos. Usava-os, a cada quinze dias, para ir à missa de domingo. Numa semana ele usava e na outra semana era o outro dono quem ia elegante para a porta da igreja impressionar as donzelas casadoiras. Privada, só lá nos fundos, depois da horta, em cima do rego. Dentro de casa cada um tinha seu “pinico” para as necessidades noturnas. As roupas de vestir eram todas feitas em casa. Ana Cândida, aquela que tinha pecha de doente, trabalhava muito. Mas ela sempre tinha ajudante. Costurava roupa para os filhos e camisa de colarinho e punho duplo para o marido. Falei antes da quantidade de filhos que a vovó

teve. Dos nove que atingiram idade adulta, todos viveram bem. Mas três morreram de sarampo. A certidão registra um intervalo de uma semana entre os óbitos, mas quem conta a história diz que, quando enterravam um, o outro já ia para a mesa da sala estendido. Erros de registro? Estes eu percebi. Muitos. Não sei. O fato é que o sarampo matava muito naquelas épocas e só melhorou com as vacinas. Mesmo assim, somente 70 anos depois, quando começaram a ser usadas em grandes campanhas. Outra morte muito comentada foi a da Alzira, irmã um ano mais nova que minha mãe. Morreu aos seis anos, lentamente. Tinha “opilação”, uma anemia profunda, crônica. Teria sido uma leucemia? Quando morreu, foi uma tristeza. Tinha sempre um gavião que piava lá do alto do pasto e parecia dizer: “Pode chorar”, “Pode chorar”, com certeza imitando o sofrimento das pessoas. Minha mãe não se esquece disso. Ainda hoje ouve o canto do gavião e relembra do acontecido. Na ocasião em que Alzira estava doente, tia Virgínia foi chamada pela vovó, sua tia, para ajudá-la nas costuras e para tomar conta da menina. Vovó cortava e tia Virgínia “alinhavava” e costurava. Alzira ficava num quarto e tia Virgínia ficava com ela. Tio José Penna, interessado na prima, parava na janela. Vovó, muito enérgica, não queria confusão. Alzira sabia disso e gritava: – “O mãe! O Doca está na janeeeela.” E o Doca, o nosso tio José Penna, tinha que sair correndo. Mas havia a madrinha Sinh’Ana, companheira das lides da vovó. Fazia de um tudo na fazenda. Boazinha, à noite, na cozinha, deixava os dois conversarem. E assim começou o namoro. No inverno se aqueceram na beirada do mesmo fogão a lenha que aparece nessa foto, que é mais recente. Mas nesse namoro já não foi mais o moço escolhido pelo pai da moça. Foram ambos escolhidos nos limites de seus horizontes. Desde o casamento, Ana Cândida sempre teve

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a companhia dela, a Comadre Sinh’Ana ou Madrinha Sinh‘Ana, como todos nós a chamávamos. Magra, morena, cuidadosa, discreta. Fazia partos, bordava, ajudava em tudo. Já mais velha, andava pela casa como sombra. Quando eu a conheci, em Caratinga, ela devia ser bem velha. Existe um episódio do tempo em que tio Lino Penna estava com apenas três anos, portanto, antes de se mudarem para a fazenda. Não o Lino Cândido. Provavelmente no ano de 1918, quando vovô passou a ser chefe do partido dos Bacuraus contra os Caranguejos em Santo Antônio do Manhuaçu. Os Bacuraus estavam no poder há muito tempo, mas sempre havia desavenças com os opositores. Eram comuns artigos virulentos contra os situacionistas publicados nos jornais em Caratinga. “Escaramuças, tiros e contendas” ocorriam nos distritos, incluindo Santo Antônio do Manhuaçu. Nessa época, Dr. Agenor Ludgero Alves, também do lado dos Bacuraus, foi nomeado promotor da comarca de Caratinga. Este senhor viria a ser muito amigo de meu avô. Assim, nessa ocasião estava a família morando dentro da rua de Santo Antônio do Manhuaçu. Vovô já tinha uma venda boa de comércio. Vivia-se uma situação complicada na política mineira e principalmente em Caratinga, com a eleição de Arthur Bernardes, que tomou posse como presidente da província de Minas Gerais em setembro de 1918. Exatamente nessa época, veio uma tropa de jagunços “da política contrária” e deu uma sova muito grande no vovô. Coitado, ficou muito machucado. Chegaram quebrando, fazendo e acontecendo. Madrinha Sinh’Ana, vendo aquilo, pegou tio Lino no colo e sumiu com ele para a casa dos vizinhos. Nunca ninguém esqueceu a data desse desmando por causa idade do tio Lino. Depois desse episódio, não demorou muito e compraram as terras da fazenda Barra do Jacutinga, que, parece, não tinha nada de melhoramentos. Foi tudo sendo feito devagar ao longo dos próximos 13 anos.

Ali nasceram Mário, Helena, Alzira, Francisco (Chichico), Hilda, Alice e Hélio, este já no último ano em que lá moraram. Ali morreram também cinco filhos, três de sarampo, um atrás do outro, como já comentado. Tinha um pequeno cercado com plantação de roseiras brancas. Lá eram enterrados os anjinhos. Na Barra do Jacutinga havia uma radiola e um gramofone. Lembro-me de uma música que nós ouvíamos e cantávamos 30 anos depois lá na casa da fazenda do Limoeiro. A gente batia o pé no assoalho, fazendo um barulho infernal, acompanhando o ritmo. Essa música era de um disco de 48 rotações. Devia ser resto dos discos do tio Chichico que ficaram lá na fazenda do Limoeiro. Esse disco era diferente dos nossos porque os nossos já eram Long Play. Mesmo os do tio Chichico eram mais modernos, de cantores como Nelson Gonçalves. Seria um remanescente da fazenda do Cristal? Será que lá ouviam, como nós, essa valsinha também? “Oh’ que saudades que eu tenho daquelas valsas do tempo do onça. Valsas que tinham alegria, Tocadas ao som de uma geringonça. Oh’ que saudade que eu tenho Daquelas valsas do seu Tomás. Ele tocava pulado, E a gente cantando: Achava gozado. E a banda fazia: Parará tum tum tum E a banda fazia: Parará. Tum. Tum. Tum. Tum.” Nem o tempo, nem ninguém, dirá. Decerto tinha um disco de 48 rotações do selo ODEON com a música que fez sucesso no carnaval de 1917, intitulada “Pelo Telefone”. A letra era de Almirante e dizia assim:

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“O chefe da polícia pelo telefone mandou me avisar Que, na carioca Tem uma roleta Para se jogar Ai, ai, ai! Deixa as mágoas pra trás, O’ rapaz Ai, ai, ai! Fica triste se és capaz, E verás! (...) Olha a rolinha Sinhô! Sinhô! Se embaraçou Sinhô! Sinhô! É que a vizinha Sinhô! Sinhô! Nunca sambou Sinhô! Sinhô! É de arrepiar Sinhô! Sinhô! Põe perna bamba Sinhô! Sinhô! Mas faz gozar.”

Fazenda Barra do Jacutinga ou Cristal, fundos

Assim se ouviam músicas pelo gramofone, sem ser dia de festa. Mas festa, com certeza, houve no dia do casamento do tio Augusto com tia Deolinda. Foi lá na fazenda da Barreira. Nesse dia, Chico Penna fez a festa. Houve baile a noite toda. Mas, mesmo em dia de festa, ele gostava de dormir cedo. Tinha que acordar de madrugada para trabalhar. Para meu avô, a vida era trabalhar, trabalhar e poupar. Sadonana também reinava dentro de casa. Quitandas, costuras para os filhos e marido, comida para muitos companheiros, criação no quintal, sabão, capado para matar.

Na medida em que poupavam e trabalhavam, crescia como valoroso cabo eleitoral. Dizia-se que garantia no cabresto mais de duzentos votos nos dias de eleições. Com o tempo foram percebendo que tinham que ir para um lugar mais desenvolvido para os filhos estudarem. Chico Penna passou a ir a Caratinga com frequência e, em 1927, comprou com Zizinho Coutinho a Companhia Força e Luz de Caratinga, mudando seu nome para Companhia Força e Luz Coutinho & Penna. Em 1928, comprou a Fazenda São Roque, de Galdino Pires, também em Caratinga. No fim do inventário do irmão, arrematou os bens de Delvaux Duque que foram a leilão e adquiriu a fazenda São Vicente em Santo Antônio do Manhuaçu. Mandou os filhos interessados em estudar para Caratinga. Maria, Lino e Mário. Também enviou para a escola a sobrinha Delfina, órfã do irmão José Penna e da cunhada Maria Cândida de Faria. O filho mais velho, José, estava interessado nas

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coisas da fazenda Barreira. Anos depois, Mário também desistiria da escola e voltaria para Santo Antônio do Manhuaçu, passando a ter uma venda na fazenda São Vicente. Depois, compraria a fazenda, pagando por ela a seus irmãos durante muitos anos. Cinco anos depois, Chico Penna comprou a fazenda Limoeiro de José Mafra. A casa da fazenda tinha uma data inscrita bem na parede principal, que diziam ter sido a data de sua reforma: 1910. Lá na Barreira de Cima, Chico Penna comprou um carro Fordinho 1929. Quem dirigia era o filho mais velho, José Penna. Em 1931, José se casou com a prima Virgínia. Chico Penna deu de presente para os recém-casados apenas um capado bem gordo. O filho comprou o terno e ficou pagando em várias vezes. Também casou a sobrinha Delfina, que não quis mais estudar e resolveu aceitar casamento com Joaquim Ribeirão, como já foi citado. Nesse dia do casamento da Delfina também teve festa com baile. O casamento foi na igrejinha de São Sebastião, a mesma igrejinha que nós visitamos. O padre não chegou cedo, como estava marcado, e aí o casamento foi à noite. Depois do casamento, houve baile a noite inteira, tendo acontecido aquele caso da noiva amuada e envergonhada na noite de núpcias, como contei antes. Era o ano de 1932. Sadonana estava barriguda de mais um filho. Viria a ser seu último parto. Estava muito preocupada com a idade já avançada para ter filhos naquela época. Não vá ela ter o mesmo destino da irmã Mariana Cândida, que morreu depois do parto oito anos atrás. Andava pensando sempre na vizinha que morava no caminho para Santo Antônio do Manhuaçu, a dona Mercedes, casada com seu Olívio, que morreu de parto por aqueles dias. Dia após dia, olhando a barriga crescer, o pensamento em coisas ruins. Mas tudo correu bem. O filho nasceu saudável e Sadonana passou bem. Não seria agora que seu coração ia fraquejar.

Chegou o mês de junho de 1933 e, nessa altura, o casal preparava sua mudança para Caratinga. Dos 14 filhos que nasceram, restavam nove. O mais novo, ainda bebê de colo. A família ia partir deixando José, já casado, tocando a fazenda Barra do Jacutinga. Seus dois irmãos, Antônio e Augusto, continuavam em Santo Antônio do Manhuaçu com as famílias crescendo. O sogro já idoso e quase cego. O tio Penna “véio” ainda em Pocrane. Chico Penna, solitário na varanda, à noite, cismava sobre a vida. Fazia um balanço de sua trajetória. Da chegada ao Brasil até casar, foram quase 14 anos como tropeiro. Depois, 12 anos como comerciante antes de adquirir suas terras. Seguiram-se 13 anos de labuta dura como agricultor e dono de tropas. Trabalhou de domingo a domingo, como lhe ensinou o sogro. Aproveitou o período áureo do café, mas aproveitou também as oportunidades da sua crise. Nesses 39 anos de Brasil, enriqueceu. Mudou-se rico para Caratinga. O português tinha percorrido um longo caminho. Chico Penna e sua companheira, como aparecem nas fotos deste capítulo, entenderam que deviam se beneficiar junto com sua família do desenvolvimento que vinha ocorrendo na sede do município de Caratinga. As fotos mostram a parte central da cidade de Caratinga nos anos 1920. A cidade já tinha sua escola. O grupo escolar São João do Caratinga, atual Escola Estadual Princesa Isabel, criado em 1909. Já tinha seu hospital, o Nossa Senhora Auxiliadora, inaugurado em 1924. Isso já facilitava a educação e o atendimento médico das crianças. Não iam mais precisar ficar como internos no Internato da Dona Izabel. Também tinha um comércio mais desenvolvido. Além do mais, as novas terras precisavam de cuidado mais assíduo. As posições políticas de correligionários e amigos da cidade também influenciaram sua decisão. Em Caratinga por quase dez anos, Dr. Agenor

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Ludgero Alves vinha sendo presidente da Câmara Municipal. Caiu em 1930 e retornou à prefeitura em 1934. Era amigo e correligionário político de meu avô. Amizade que durou a vida toda. Naquela época, o município de Caratinga era grande produtor de café, fumo, gado suíno e, bem como dono de uma grande extensão territorial. Aos poucos, por pressão política, foi sendo desmembrado e diminuído em seu tamanho e população. Um grande entrave ao progresso era a falta de comunicação por estradas com os centros mais desenvolvidos. Na falta delas, as tropas continuavam

sendo o meio de escoar a produção rural. Um marco importante foi a chegada, em 1930, do primeiro trem da Estrada de Ferro Leopoldina a Caratinga. A localização da estação ajudou o desenvolvimento do comércio do Barro Branco, atual Avenida Olegário Maciel, e o surgimento da Rua Nova. Em agosto de 1930, foi lançada a pedra fundamental da atual Catedral de São João Batista. De modo que a cidade crescia a olhos vistos, e isso atraiu Chico Penna, com sua visão de progresso para si e para os filhos.

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Fazenda do Limoeiro, em Caratinga

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A mudança da família de Chico Penna para Caratinga em 1933 hichico, Helena e Hilda, esquecendo o cansaço, corriam como loucos pelos amplos cômodos de assoalho. Alice ia atrás, com quatro anos, tentando acompanhar. Entravam pela porta da frente e atravessavam as duas salas. Olhavam as paredes diferentes. Eram rebocadas, pintadas e com barrados de cimento coloridos. Vidros também coloridos de verde e vermelho nos janelões e portas duplas. Entravam pelo corredor, pela sala de cimento, e chegavam à imensa cozinha. Aqui o tropel diminuía já no chão de tijolos. Ficavam rindo, gritando e balançando os braços. Corriam de novo até o alpendre da sala. Entravam pelos sete

quartos, sempre correndo e gritando. Aí eu perguntei para Helena, minha mãe: – “Por que corriam e gritavam?” – “Não sei. Com certeza achando a casa grande e bonita.” Nunca tinham visto uma casa com tantas vidraças. Sequer tinham visto uma vidraça em toda a vida. Essa era a casa nova onde morariam. Era uma casa de fazenda feita para uma cidade. Tinha adornos no reboco. Nada daquela antiga simplicidade. Caratinga, embora pequena, era muito maior que a roça a que estavam acostumados. A casa parecia altaneira, como se vê na foto, num platô que hoje foi rebaixado, de frente para a estrada sobre a qual passou a estrada Rio–Bahia.

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No local exato da casa, hoje funciona o depósito Real Gás, no atual bairro Limoeiro. Mesmo cansados de um dia de viagem, insistiam em brincar enquanto os “trens” eram colocados em seus lugares. Haviam saído muito cedo da Barra do Jacutinga em Santo Antônio do Manhuaçu. Deixaram lá Virgínia e José Penna. A fazenda Barra do Jacutinga ia ser conhecida daí para frente como fazenda do Cristal por causa de um cristal grande que foi achado no alto do pasto. Entre mulas e cavalos, eram seis em fileira pelo caminho só para a família: Chico Penna, Ana Cândida, Helena e Chichico, cada qual na sua montaria. Helena tinha um silhãozinho com encosto. Tia Alice, com quatro anos, vinha na cabeça do arreio de um cavalo conduzido por Joaquim Ribeirão; tia Hilda, a ciganinha do pai, também vinha na cabeça do arreio de um cavalo levado por José Januário. Tio Hélio, bebezinho, foi no colo do Gervásio, que a pé andava a passos largos, acompanhando a caravana. Seguindo o séquito, carros de boi, empregados em montarias próprias, levando canastras de roupas, utilitários, móveis, baús de mantimento e o cofre do vovô. As crianças iam nas mulas, olhando curiosas as poucas casas à beira do caminho. O que mais havia eram matas fechadas, capoeiras e cafezais. No “Alto da Biquinha”, Chico Penna determinou parada para o almoço. A matula feita de frango frito na gordura de porco descansava na lata de querosene cheia de farinha. As latas, por sua vez, estavam acomodadas dentro de canastras de couro. Na serra do Jacutinga, um imprevisto para atrasar o seguimento da caravana. O carro de boi que carregava o cofre começou a escorregar no lamaçal. O boi negaceou, forçando para frente e para cima. Um correu de lá. Outro correu de cá, mas sem resultado: o carro tombou. O cofre caiu do carro de boi e foi rolando pela ribanceira. Os empregados correram pela ribanceira abaixo. Deu

um trabalhão colocá-lo no lugar, mas tudo saiu a contento. Ao entardecer, chegaram enfim em Caratinga e logo ao Limoeiro. Avistaram o sobrado imponente no pé do morro: duas fachadas se mostravam à claridade do fim de tarde. Quatorze janelas com vidraças coloridas, todas à vista. Nove de frente para o pomar dos limoeiros do lado assobradado da casa. Outras cinco janelas mais um alpendre dando para a frente de uma estrada precária, que viria a ser a Rio–Bahia. Cercando a fachada da estrada, nada de cercas, mas sim um muro alto de pedras, com nove pilastras de cimento que se alternavam com grades de ferro. O muro circundava um grande jardim retangular. Fazendo quina de noventa graus, o muro terminava na parede da frente, deixando-a exposta à vista de quem chegasse. Embaixo das nove vidraças que davam para o pomar dos limoeiros, no andar de baixo, nove portas alinhadas, todas de frente, voltadas para a entrada dos animais. Essa entrada de serviço era um caminho calçado de pedras por onde entravam o gado e as tropas. Por isso, tinha uma porteira na entrada. Na parte de baixo do caminho, um muro baixo e grosso de pedra rejuntada o ia contornando até encontrar o paiol, já lá nos fundos. Entrando pela casa, Sadonana, desacostumada de viagens, dava ordens, organizando a função. Também ela olhava a casa grande. Tão diferente da simplicidade da fazenda da Barreira de Baixo. Ela ainda não sabia, mas ali passaria os próximos 30 anos. Ali ela seria feliz e preocupada, criando sua prole até o dia de sua morte. Nessa casa, a vida foi mais confortável. O casal se dava bem. Não discutia. Ela tinha o hábito de dar uns beliscões na barriga dele, e ele dizia: – “Ó Ana! Para com isso!” E ficava o dito por não dito. Essa mania de beliscões era costume antigo trazido de além-mar. É conhecido como “mimos de Portugal”. Segundo esse costume, os namorados utilizavam os beliscões para declarar intenções.

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Caratinga nos anos 1920 tendo a vista da praça Cesário Alvim já com as palmeiras, plantadas em 1906

Minha mãe lembra também que gostavam de ver o vovô abrir o cofre. Para eles, era uma festa. Não é que o cofre tinha um segredo? Isso era o máximo para eles. Ficavam olhando e reparavam que, na parte de baixo do cofre, podiam se ver os retratos 3X4 dos títulos de eleitores dos meeiros e empregados. De modo que ainda prevaleciam os votos de cabresto amealhados pelo agora Coronel Chico Penna. Alguns coronéis daquela época eram: Cel. Galdino Pires Cel. Antônio da Silva Cel. Rafael Silva Araújo Cel. Antônio Rezende Cel. José Maria Fernandes Quando ia, por sua vez, se deitar, Ana sempre rezava o terço, já na cama. Tirando esses pequenos momentos de calma do cotidiano, desde o início ela se acostumou com

um sofá de vime que ficava na cozinha, perto da janela que dava para a entrada lateral. Ali ela se mantinha sentada durante o dia, dando as ordens, sempre atenta com o serviço: ”ajeita o fogo”, “mexe o sabão”, “coloca a decoada”. Assim me lembro da minha avó: determinando. Sentada, mas nunca descansando. Sempre ativa. Olhar atento, corpo em sentinela. Reinava na cozinha e na casa. No seu reino havia dois fogões e uma fornalha. Um fogão tinha fogo o dia inteiro. Era de cimento queimado vermelho. Queimava palha de café. A palha de café ia caindo, lentamente, por uma “moega”. Essa “moega” era um recipiente feito de folha de flandres em formato cônico, largo em cima e estreito em baixo, que ficava do lado de fora da parede e por um buraco externo se comunicava com a chaminé do fogão dentro da cozinha.

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Caratinga nos anos 1920. Em primeiro plano a vista da rua João Pinheiro e ao fundo a vista geral do Barro Branco

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Filhos de Chico Penna. Da esquerda para direita: Chichico, Maria, Helena, Alice, Mário, Lino e Hilda. Faltam José, o mais velho, e Hélio o mais novo

Esse era o combustível do fogão da casa de minha avó. Sempre que acabava a palha na “moega”, o Zé Roberto, que era casado com Maria Lopes, rapaz novo naquela época, enchia de novo com o balaio. Desse modo, havia fogo o dia inteiro. Ele ainda é vivo. Está com 77 anos e se lembra disso como se fosse hoje. O outro era um fogão à lenha do lado direito da porta da sala de cimento. Ele era barreado de barro branco. Quase nunca era usado. A foto em que aparecemos, meu irmão, uma menina e eu, montados a cavalo, mostra os fundos da fazenda com as chaminés do fogão de barro branco e da fornalha. Havia também essa fornalha grande encostada na parede, onde se colocavam tachos enormes

de fazer sabão ou fritar carne de porco. Os tachos tinham muito uso e cada um tinha uma função: fazer sabão, fritar toucinho, fritar carnes de porco, fazer doces, ferver roupa. Não existia vida cotidiana sem os famosos tachos de cobre. Brilhantes, brilhantes de tão esfregados que eram com limão rosa e areia. Na cozinha, sua ajudante era a Degomira, gorda, gorda. A arrumação da casa era por conta da Margarida, que brincava conosco, se distraindo do trabalho. Aqui ela aparece numa foto no jardim da fazenda. Ainda como parte do reino de minha avó, existia do lado de fora, pelos fundos, uma varanda grande de piso de pedra, onde ficava o forno de assar quitanda e uma outra fornalha menor. O for-

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no já sabia de cor o que deveria assar: biscoito de polvilho, broa de milho, broa de arroz e brevidade. Na fornalha menor eram colocados os tachos de fazer doce. Vovó se transferia de cadeira e tudo para perto da fornalha e determinava: a quantia do açúcar, o tamanho do fogo e o ponto de corte do doce. Era comum doce de leite ou goiabada. Goiabada se fazia sempre no dia de São José. Doce de leite, toda semana. Numa área ainda coberta, rebaixada uns dois degraus, havia também um tanque de lavar roupa e a fornalha de ferver roupa. Naquele tempo, a roupa era fervida. Minha avó, como boa Corrêa de Faria, era muito asseada. Maria Raul comandava a lavação de roupa. Ai de quem passasse um pano de prato com o mesmo ferro com que se passava uma ceroula! Ordens assim, ninguém pensasse o contrário. O mundo acatava e não discutia. Não havia fogo, gente ou fumaça que não respeitasse minha avó. Perto da fornalha de doce, dependendo da direção do vento, a fumaça vinha para um lado ou para outro. Quando havia criança perto, ela ensinava e nós repetíamos, sempre com muita disciplina: “Fumaça pra lá. Anjinho pra cá.” “Fumaça pra lá. Anjinho pra cá.” “Fumaça pra lá. Anjinho pra cá.” E assim, depois de muitas voltas da pá no fundo do tacho e muita fumaça no ar, o doce ficava pronto e nós podíamos raspar o tacho. Como era bom! Tio Chichico era quem queria ser desobediente: só pensava em arapuca de passarinho, pescaria, armas de caça e passeio na rua. Tudo isso balançava o equilíbrio da vida de Sadonana. Ele subia numa árvore de Tajuba que ficava no caminho da horta e ficava vendo se os pombos caiam na armadilha. Mas ela não se apertava. Tinha uma tala de três pernas e a vara de marmelo no canto da porta. A sova já ficava encomendada. Chico Penna a postos. Ela, sentada, dizia: – “Você precisa dar uma coça nele, Chico Penna.” Ou: – “Pergunta para ele, Chico Penna, se é bom an-

Margarida no jardim da fazenda do Limoeiro na década de 1950

dar pela rua?” A vara caindo sem dó nas costas e nas pernas. – “Cuidado com o ‘zói’ dele, Chico Penna!” Assim era a educação naqueles tempos. Ana Cândida continuava, na costura, os hábitos da fazenda da Barreira: além das roupas da casa, fazia os ternos do marido. Ele andava de terno cáqui de brim. Sempre assim. As roupas de sair eram feitas na cidade. Melhor costureira que D. Ivone Bandeira, não havia. Ela era responsável pelo aluguel cobrado às tropas que passavam pela fazenda. Fazia o controle pessoalmente. O dinheiro era dela, para fazer as despesas pequenas. Essa nova casa tinha conforto, mas ainda deixava a desejar. Tinha torneira na pia da cozinha e

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na pia do corredor, mas a privada ficava longe do corpo da casa. De novo, os urinóis faziam a serventia da noite. Com o casamento da tia Hilda, só em 1948 é que se construiu um banheiro no corpo da casa. Tinha privada de louça e banheira branca de pezinho. Piso de ladrilho hidráulico. E uma escada com corrimão de alvenaria dos dois lados. Por ela se descia, porque o banheiro ficava um nível abaixo e a porta dava para o corredor, que era de assoalho alto. Era um banheiro escuro que fazia medo na nossa infância. Havia chiqueiro lá no fundo, adiante do curral. Também só se comia frango e capado. Não havia o hábito de comer carne de boi. O curral era movimentado. Tinha muito leite todo dia. Nos pastos, as vacas eram separadas de acordo com as crias. Acima da Rio–Bahia, o Limoeiro todo era um pasto só. Hoje é cheio de casas. Havia também o paiol. O paiol era nosso domínio. Ficava perto de uma escadaria que descia da cozinha. Ele tinha uma divisão ao meio e uma porta de cada lado. Para a direita, feijão. Para a esquerda, milho debulhado. Era proibido pular no feijão. O paiol ficava para os fundos, onde hoje ainda é o quintal da casa da tia Geralda. Debaixo da casa da fazenda havia os cômodos de guardar arreios. Ali era o mundo dos empregados. Quando a gente era maior e vovó já havia morrido, entrávamos por um buraco que ficava debaixo do assoalho, no fundo dos cômodos dos arreios, e íamos tateando na terra e no escuro procurar assombração. As tulhas de café, imensas e mais afastadas da casa, ficavam cheias de sacas de café. A estrada Rio–Bahia passou no meio do quintal, deixando o terreiro de café e as tulhas para o lado de baixo. A casa, os pastos e o campinho de futebol ficavam na parte de cima da Rio–Bahia. Só havia as casas de colonos e as casas dos filhos casados que não moravam na cidade. Ah!... as tulhas... Que movimento davam na vida da fazenda! Tinham um cheiro de café, poeira e felicidade. Era cheiro de

criança solta no pasto e no terreiro. No tempo dos netos não tinha braveza. Só alguns braços quebrados. As mães tentavam controlar, mas os meninos se perdiam pelos pastos e voltavam pretos de tanto carrapato. Quem pensava em Febre Maculosa? Com o tempo, os filhos foram crescendo e Caratinga também. Em 1935, foi criado o serviço de águas; foi inaugurada a Catedral de São João Batista e construído o jardim da Praça Cesário Alvim, onde antes só existiam as palmeiras e um campo de futebol com gramado descuidado. Entre o final da década de 1930 e início da década de 1940, foi construído o novo fórum. Ainda no ano de 1935, foi criada a Escola Normal de Caratinga, de orientação Presbiteriana, à Rua Princesa Isabel. Em 1938, foi inaugurado o Colégio Nossa Senhora do Carmo, das Irmãs Carmelitas da Divina Providência. Neste último estudou tia Alice e formou-se tia Hilda. Um marco para Caratinga se deu em 1942, quando chegou o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER e foi construído o trecho da estrada Rio–Bahia. Todos os que moravam na fazenda do Limoeiro foram muito afetados. As terras do meu avô foram cortadas de comprido num longo percurso pela rodovia. Passou bem em frente à sede da fazenda. E a vida das pessoas nunca mais foi a mesma. Nossa casa foi construída uns anos depois, bem em frente à rodovia, onde está ainda hoje. Nasci e cresci olhando os caminhões passando pela estrada Rio–Bahia. Rio–Bahia para mim era sinônimo de estrada. Qual não foi minha surpresa quando, já moça, atinei com todas as letras que Rio–Bahia não era substantivo comum e sim um nome próprio. Nome da BR 116. Isso acontece quando algo é tão marcante na primeira infância que nem o mais óbvio do conhecimento e da gramática conseguem apagar. Eu “paguei esse mico” até ficar adulta. Na cidade, os melhoramentos continuavam. As primeiras calçadas foram construídas nessa época

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e, com certeza, as mulheres elegantes de salto alto moça de Juiz de Fora. Depois de muitos anos, desagradeceram. Em 1944, foi inaugurado o Palácio cobri que tia Lili se chama Heleny, como eu. Tio Episcopal, dando mais brilho à nova praça. Lino, até hoje, aos 93 anos, ainda trabalha, sendo Os filhos de Chico Penna e Ana Cândida saíam exemplo de atividade para nós, mais jovens do que da fazenda e iam estudar na cidade. Alguns foram ele. O casal ainda vive em Juiz de Fora. mandados estudar fora. Outros não fizeram questão. Mário se casou com Elza Genelhu Matos, a tia Dos casamentos realizados em Caratinga, pri- Elzita, filha de Joaquim Ribeirão, de família numeiro casou a filha Maria Penna, em 1935, com merosa de Santo Antônio do Manhuaçu, no ano José Bonfim, rapaz de fino trato e de família dis- de 1945. Uma foto do casamento deles aparece no tinta da cidade. O noivo adoeceu na data marcada, capítulo XII. Após casados, lá viveram e foram dode modo que se casaram uma semana depois. Ele nos da fazenda São Vicente, lugar delicioso, que era sério e caladão. Foi um comerciante em Ca- fez a glória da nossa infância, pelo lugar que era ratinga, lá no Barro e pela personalidade Branco. Foram os pais da tia Elzita, uma fide minha madrinha gura inesquecível em Magdá. nossas vidas. Quando A foto dos irmãos as filhas mais velhas que aparece neste cachegaram à idade de pítulo foi tirada nessa frequentar escola, ele ocasião, segundo miconstruiu uma casa ao nha mãe. Tio Hélio lado da fazenda do Linão aparece porque timoeiro. Gilda, Marilrou foto separado dos da e eu brincávamos demais. muito juntas pelos Lino queria estuquintais da fazenda. dar medicina no Rio Minha mãe, Helede Janeiro. Apoianna, foi estudar no Codo o desejo do filho, Eu, em 1948, tempos em que as vacas viviam soltas no Limoeiro légio Maria Auxiliameu avô concordou. dora, da congregação No caminho para o Rio, o dito estudante parou dos Salesianos, em Ponte Nova. Formou-se profesem Juiz de Fora e por lá ficou. Jovem, Lino se des- sora no ano de 1942 e casou-se em outubro do ano viou e entrou na boa vida, enquanto o pai confiava seguinte com meu pai, José Joaquim de Oliveira que ele estivesse dando duro nos estudos. Tendo Filho, o Zé Quiquita, ou J. Oliveira. Papai era filho aprendido a esperteza do mineiro de dar um boi de migrantes que também haviam se mudado de para não entrar numa briga, meu avô foi dando Muriaé para as imediações das terras do Barão de tempo ao filho para se tornar bacharel. Itaperuna, um lugar chamado de Santa Constança, O tempo ia passando e Chico Penna, com a pul- pertencente a Ipanema. ga atrás da orelha, visitou o estudante, sem uma A filha mais nova, Alice, casou-se nova, em palavra de desaprovação. Conferiu a situação, que maio de 1947, com Sílvio Pereira de Abreu. Esse após a visita tomou rumo certo. Tio Lino concluiu casal está vivo e saudável. Fizeram há pouco tempo a faculdade de farmácia, abandonando de vez uma linda festa de Bodas de Diamante. Mudarama ideia de estudar medicina. Casou-se com Lili, -se, na década de 1970, para Brasília e na casa deles – 121 –


me hospedei por alguns anos no início da faculdade. A eles e a seus filhos, meus amigos, devo muita gratidão. Está aí uma família que sabe o valor da solidariedade entre parentes. Ainda na fazenda Limoeiro, casou a sobrinha Onília, órfã de José Penna e Maria Cândida de Faria, aqueles tios-avós que morreram ambos jovens, deixando vários filhos na orfandade. Onília casou-se com José Pereira. Moraram sempre num belo sítio perto de Santa Rita, que hoje é município emancipado de Caratinga. Era bom visitá-los. Um belo pomar. Uma casa tão limpa e arrumada que era impressionante. Digna de uma Corrêa de Faria. Fotos na parede, louças que lembravam a mãe e os filhos muito educados. Minha mãe gostava muito dessa prima e nos ensinou a gostar também. Era sua comadre. A casa está ainda como era. Cuidada pelas filhas. Que lembrança boa! Ainda estavam sem casar Hilda, Chichico e Hélio. À noite, quando tia Hilda ia namorar com tio Aldo, Sadonana sempre dizia para os filhos não fazerem barulho e alertava alto para o genro saber: – “Chico Penna já deitou para dormir.” Para bom entendedor, meia palavra bastava. Dentro de casa, as ordens corriam sempre por conta de Sadonana. Nas lavouras, o trabalho do Cel. Chico Penna não tinha fim. Ele acompanhava de perto o trabalho dos meeiros. Acompanhava a plantação de café e de outras lavouras: milho, arroz, feijão. Acompanhava a ordenha do gado leiteiro. Vendia gado de corte. Comprava a produção agrícola dos meeiros e de outros produtores. Cada dia a tropa recolhia em uma lavoura diferente.

Tinha duas tulhas grandes, onde ficavam as máquinas de beneficiar café e milho. A do Limoeiro beneficiava café e a outra, no Corta-Goelha, era para beneficiar milho. O maquinista era o Chico Ilhéu. Ele ligava a máquina e ficava regulando para melhorar a limpeza do café. Quando enchia um saco de 61 kg, ele substituía por outro. Depois de retirado, era conferido seu peso e depois era empilhado pelos trabalhadores. Ah! Em quantas pilhas de café a gente subia, mesmo escondido, burlando a vigilância ferrenha que as mães faziam sobre nós, as meninas. Os meninos tinham total liberdade. Essa era toda a tecnologia e os cuidados daquela época. Na lavoura, vovô acompanhava a colheita e o movimento das tropas, recolhendo o café e levando para as tulhas. De manhã, vestindo um terno de brim cáqui e uma botina cáqui, pegava uma mula baia, colocava o arreio e saía para as roças. O trabalho de secagem do café, nem se fala. Só ele determinava o ponto certo do café. Disso eu me lembro. O café secando no terreiro bem do outro lado da estrada Rio-Bahia, bem em frente de onde hoje ainda é a casa da tia Geralda. E o movimento do gado no curral? Tinha ordenha todo dia e os latões que se enchiam iam dependurados nos burros para vender na cidade. Havia um burro chamado Queluz. O Sr. José Roberto, que eu entrevistei, tem boas lembranças dele. Diz que vovô era bom com os colonos, era honesto, “gostava de trem certo”. Na hora de fazer cerca de arame farpado, lá estava ele, firme no trabalho. Fazendo e acompanhado de perto.

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Uma escola rural em Laranjeira, em 1948. Entre os alunos predominam os descendentes dos Corrêa de Faria, Cândido de Oliveira e Penna.

Uma escola rural em Laranjeira nos anos 1940 s anos de 1930 foram se passando entre crises políticas e crises da produção do café – e os tropeiros ainda se movimentavam de uma cidade para outra trazendo utilidades e levando a

produção agrícola. Em 1936, houve um acontecimento para a sociedade de Santo Antônio do Manhuaçu: a visita pastoral do novo bispo de Caratinga, Dom José Maria Parreira Lara, que aparece documentada em foto neste capítulo. Com o tempo, foi construído, “à picareta, pá, enxada e carroça”, um trecho da rodovia Caratinga–Ipanema, o que melhorou em muito as idas e

vindas da família de Santo Antônio do Manhuaçu, Ipanema, Pocrane para Caratinga e vice-versa. Mas, no casamento de Mário Penna e Elzita, em 1945, como já mencionado, Hilda e Alice vão a cavalo pelo novo caminho. Ainda é a forma certa de se viajar. Honório Sabino e Joaquim Ribeirão fizeram a escolta das moças até Santo Antônio. Neste capítulo apresento a foto dos quatro no dia do casamento. As terras da Laranjeira já não eram somente dos Corrêa de Faria e agregados. As fazendas, que antes possuíam mais de 200 alqueires, foram virando sítios dos herdeiros. Alguns ainda mantinham forte produção rural e aumentavam o patrimônio. Muitos mantinham. Alguns perdiam. A crise de

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Visita pastoral de Dom Lara a Santo Antônio do Manhuaçu. Sentadas ao lado do bispo nossas primas Zenita e Jupira. Minha mãe é a terceira de pé, da esquerda para a direita

1929 ajudou as terras a mudarem de donos. Devagar foram surgindo novos proprietários. A era Vargas tinha varrido vários costumes. Os títulos de coronéis não tinham mais respaldo legal. Os velhos coronéis Corrêa de Faria da antiga Laranjeira descansavam na paz dos cemitérios. Nas cidades grandes, os intelectuais da educação falavam da necessidade de modernizar o País, de criar cidadãos, e para isso era necessário alfabetizar os analfabetos. O voto, como vimos pela Constituição de 1834, só era permitido aos alfabetizados. No início da era Vargas, 2/3 da população em idade escolar estava excluída das escolas, portanto, excluída do processo eleitoral. A população ainda estava predominantemente na zona rural e era essa a que se encontrava mais alijada. Só existiam os professores contratados pelos fazendeiros. Os governos precisavam controlar a

educação das crianças na zona rural. Nessa ocasião, foi promovida uma reforma educacional no País. O governo do Estado de Minas Gerais começou a contratar professores para as escolas rurais, sempre aquelas apadrinhadas pelos políticos influentes, é claro. No entanto, se desejava que as escolas fossem laicas e públicas. Assim, foi promulgada uma lei que ordenava um Plano Nacional de Educação, que os governos estaduais deviam fazer cumprir. Os municípios deveriam então se responsabilizar, com o apoio do governo estadual, pela criação das escolas rurais. E, de acordo com a localização, a população estudantil e a influência política, eram escolhidas as escolas rurais. Na sede do distrito de Santo Antônio, Jupira, professora já formada, é nomeada com a influência do primo Chico Penna. Ele mesmo mandou construir a sede da escola onde Jupira trabalhou. Essa casa existe até hoje.

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Mário Penna de Faria com Elzita Genelhu, no dia do casamento, ao lado das irmãs Hilda e Alice

Em Laranjeira, em suas terras, o fazendeiro Antônio Ribeiro Rosa construiu uma casa de assoalho alto, esteio de braúna, pintada de branco, para ser sede da escola rural. A escola recebeu o nome de Escola Municipal Laranjeira, pertencente ao município de Ipanema. De seu casamento com Dona Vitalina Rosa Novais, o fazendeiro tinha uma filha solteira, uma mocinha estudiosa de nome Geni Rosa Novais. Geni estudou até a terceira série em Ipanema, no grupo escolar. Depois, teve que fazer a quarta e a quinta séries com uma professora particular que havia se mudado de Manhuaçu para Ipanema com o marido advogado. De modo que estava habilitada para reger uma classe. Assim, aos dezoito anos, em 1941, ela estava em condições de assumir a cátedra na escolinha rural. Ainda solteira, podia se dedicar aos alunos. Na sala de aula se juntavam até 70 alunos. Ela tinha que ensinar conteúdos do primeiro, segundo e terceiro anos na mesma classe. Ensinava língua pátria, aritmética, ciências, geografia e história do Brasil.

Nunca usou palmatória, mas tinha que ser brava. Os alunos aprendiam e tinham que obedecer. As terras de Antônio Rosa não eram muito longe das terras do tio Lino Cândido. Os alunos eram quase todos Corrêa de Faria ou filhos dos empregados dos Corrêa de Faria. Geni acabou se casando com um Corrêa de Faria. O escolhido foi Abílio Mendes Magalhães, filho de Sócrates Mendes Magalhães (Belego) e Sebastiana Corrêa de Faria. Não foi um casamento feliz. Diz ela: “Meu marido me deu muito trabalho, mais que meus alunos.” Ficaram casados apenas dez anos. Hoje, aquela jovem professora está com 87 anos, lúcida, com boas lembranças daquele passado na Laranjeira. Naquele tempo, os alunos andavam distâncias enormes para ir à escola. Tinham uniforme de calça e saia pregueada, ambas azul-marinho. Blusas e camisas, brancas. Dona Geni se lembra também das capelinhas que ajudavam na formação religiosa das crianças.

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Santo Antônio do Manhuaçu nos anos 1950

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Além da capela Santa Ifigênia, que já apareceu em foto neste livro, na fazenda de Chico Corrêa, existia a capela Santo Expedito em terras de Chico Queiroga. Todo mês era celebrada uma missa. A capela se enchia de gente. Parecia mais uma cidade. E no mês de maio acontecia a coroação de Nossa Senhora. As meninas participavam ativamente dos cânticos e das celebrações. Os fazendeiros mais conhecidos naqueles anos eram de alguma forma ainda Corrêa de Faria: José Penna (filho do Antônio Penna, o português, e Anacleta Cândida de Faria), casado com Osmira; Chico Corrêa, casado com a prima Helena Corrêa de Faria; João Corrêa de Faria, casado com a prima Catatau; José Mendes Magalhães, casado também com a prima Quitéria Corrêa de Faria; Antônio Lourenço, casado com Aspásia Mendes Magalhães, sobrinha do tio Lino Cândido. Mas já havia outros fazendeiros pertencentes a outras famílias, como Chico Queiroga e José Camilo. De modo que as crianças que, no ano de 1948, estavam na foto diante da escola, uniformizadas, sérias e compenetradas diante do retratista, são um pedaço da história dos Corrêa de Faria em La-

ranjeira. Olhando atentamente, vemos que o número de alunos do sexo masculino é só um pouco maior do que o número de alunas do sexo feminino, 23 e 20, respectivamente. Isso significa que as mulheres já estavam estudando, situação diferente da enfrentadas pela Jupira dez anos antes. Se olharmos para os pés dos meninos, vamos achá-los sem sapatos, pelo menos todos os que estão sentados no chão. Isso mostra que o consumo dos produtos manufaturados ainda era escasso. Sapatos, certamente só para dias de festa. E olhe lá! Esses meninos e meninas das fotos hoje estão na faixa dos 70 anos. Entre eles estão: João Dornellas, filho de Germano Dornellas e Anacleta Cândida de Oliveira; Anacleto Corrêa de Faria, o “cretinho”; Sulico, filho do José Pena; José, neto da Catatau; Anacleto, filho do Argemiro Corrêa; Alcídio Dornellas, neto do José Cândido de Oliveira (aquele que morreu de tétano); José, filho do Elpídio, neto do Tertuliano de Oliveira; Mariinha, também neta do Tertuliano; e Maria Helena Corrêa, filha do Chico Corrêa, entre outros. Alguns deles foram meus entrevistados. Todos eles foram unânimes em lembrar com saudades daqueles idos tempos.

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Filhos (as) de Chico Penna no dia do casamento da tia Hilda e do tio Aldo em 1948

Um dia de festa na fazenda do Limoeiro em 1948 rinta e quatro pessoas se reuniram num momento único para a foto de família: Chico Penna, sentado ao lado de Ana Cândida, e em torno deles os nove filhos. Sete casados, com seus respectivos cônjuges: José, Maria, Lino, Mário, Helena, Alice e Hilda, três noras e quatro genros. E dezesseis netos. Família toda reunida. Nos outros casamentos não havia acontecido assim. Nunca antes nem depois houve uma foto em que toda a família, então viva, estivesse presente. Nessa data eram certos 40 anos de vida em comum. Estava muito distante aquela manhã fria do dia 2 de maio de 1908, quando eram jovens e tinham

todas as incertezas pela frente. Agora, fazendo as contas, cinco filhos mortos e nove filhos, sãos e salvos, criando sua própria família. Foram anos e anos de trabalho. Ainda agora, para ele é trabalho de domingo a domingo. Olhando a foto, dá para pensar assim: Hoje é dia de festa. O português está feliz. Um leve sorriso se advinha em sua face. Deve ter orgulho da prole reunida. Hoje ele casa a última filha solteira, Hilda, a ciganinha trigueira que lhe faz rememorar imagens de Portugal. Tia Hilda diz que ele falava com ela, ainda pequena: – “Vamos, ciganinha.” Uma aliança desejada. O rapaz pertence a uma família da cidade, é filho do Coronel José Maria

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Filhos(as), noras, genros netos (as) de Chico Penna no dia do casamento da tia Hilda e do tio Aldo, em 1948

Fernandes. Naquele exato momento, ele teve que mediar uma briga dos netinhos Gilberto e Jefferson, que não sossegavam para o retratista trabalhar. – “Gilberto, toma o meu canivete.” – “Fersão, fica aqui do meu lado.” Negociação feita. Cada qual no seu lugar. Ainda dá para ver meu irmão cabisbaixo, mas todo “achado” em posição de destaque aos pés do avô. Retratista a postos e alguns sorrisos de leve. Na foto dos nove irmãos com o pai e a mãe, todos sérios e em vestes de festas. As mulheres com seus relógios de pulso, artigo de luxo naqueles tempos. – “Olha o passarinho!” Naquele momento, não se sabia que era uma foto para a posteridade. Sadonana com as pernas visivelmente inchadas. Séria, como era de seu feitio. Em seguida, tirou-se a foto dos nove filhos com os pais assentados.

Naquele dia, houve festa na fazenda. Salgados, doces, bolos e biscoitos. Muitos convidados da cidade. A despensa cheia de salgados para o caso de faltar lá na sala de visitas. Tia Hilda se lembra da confusão na igreja porque a cerimônia não havia sido marcada com o padre. Tia Alice se lembra da casa cheia de gente. Ela, toda bonita, de penteado e batom. A família ainda cresceria. Ainda haveria outros dois casamentos, dos dois filhos solteiros, Hélio e Chichico, mas não haveria mais a presença de Ana Cândida. Chico Penna ainda assistiria ao casamento do Hélio com a normalista Maria Geralda Rocha. Ainda iria brincar com seu neto, nosso saudoso Francisquinho. Mas não assistiria ao casamento de seu filho Chichico com Noêmia Pereira. Estes dois casamentos também foram dias de festa para a família.

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Uma visita, meu irmão Jone e eu a cavalo no quintal da fazenda do Limoeiro, em 1951

Os anos nostálgicos: décadas de 1950/1960/1970 s anos corriam lentos, como tudo naqueles tempos. A quantidade de netos crescia todo ano. Havia um costume entre os filhos de Chico Penna de dar o filho mais velho para ser afilhado dos avós. E cada afilhado ganhava sempre uma novilha de presente, de modo que podia ainda novinho começar uma criação. Foi assim com meu irmão mais velho, Jone. Agora, os filhos casados já estavam com filhos grandes. Todos moravam em Caratinga. Nessa época, apenas três filhos moravam na cidade. Os demais construíram casa no Limoeiro. Eram vizinhos e nós, os primos, convivíamos dia a dia em torno da fazenda, dos pastos, dos

animais, dos filhos dos colonos e da parentela toda. Em 1952, eu tinha cinco anos, ocorreu um evento muito especial, mas foi quase um segredo. Chico Penna havia comentado um dia, em rara confidência, que tinha vontade de rever um navio, de entrar em algum deles, ver de novo um que fosse igual ao que há tantos anos o trouxera ao Brasil. A nora Virgínia prometeu que um dia iria com o marido e o sogro ao Rio de Janeiro. Promessa feita e cumprida. No cais do porto do Rio de Janeiro, meu avô avistou um navio atracado. Olhou de longe os desenhos do costado. Virgínia, mulher adiante do seu tempo, procurou esgueirar-se pelas rampas de acesso e chegou ao tombadilho, onde conversou com marinheiros a postos. Estes, por sua vez, procuraram

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um oficial, que autorianos. zou a visita. Andaram Quando ele ficou pelo convés, visitaram viúvo, tia Alice foi moa área das cabines. rar com ele na casa da Meu avô fez todo o fazenda e percebeu percurso em rigoroso um chamego entre ele silêncio. Momento de e a lavadeira da vovó, a reencontro com um Maria Raul. passado talvez doloChamego vai, charoso. Terminada a vimego vem, ele seguiu sita, emitiu uma única o exemplo do sogro. frase: “É nisso mesmo Saiu da casa da fazenque eu viajei.” da e construiu uma Foi a única volta casinha lá para longe, que meu avô fez ao morando lá até o fim passado. Nunca volta- Família reunida e amigos do tio Mário na Fazenda São Vicente, da vida com ela. em Santo Antônio do Manhuaçu, no final da década de 1950 ria a Portugal para viTodo sábado, era sitar a mãe. Naqueles sagrado, ele ia até Catempos difíceis, as coiratinga para fazer a sas eram assim. Simbarba. Acordava cinco ples e dolorosamente horas da manhã, peassim. Acho que eles gava a égua de nome não se queixavam. Era Normalista e lá se ia. natural. Numa de suas andanEm 1953, Ana Cânças, foi atropelado. dida passou mal, ficou Lembro-me de todos aflita, pediu a imagem nós visitando o vovô de Nossa Senhora das na Casa de Saúde. Mas Graças. depois disso ele meMandaram buscar lhorou. doutor Grimaldo. Ele É dessa época que não chegou a tempo. me lembro dos pasEncontrou sua cliente seios que fazíamos na Família reunida em festa na Fazenda São Vicente, em morta, mas deu um fazenda São Vicente, Santo Antônio do Manhuaçu, no final da década de palpite de amigo e dis1950. Aparecem meu pai, tio Sílvio, tia Chichico, tio Aldo, do tio Mario Penna, se: tia Geralda, tia Noêmia, tia Maria Penna e outros em Santo Antônio do – “Ponha nela Manhuaçu. Tia Elziaquele vestido de linho azul que ela gostava.” ta era mulher resolvida. Tolerava a sobrinhada faEu me lembro do dia do enterro da vovó. Todo zendo coisas que até Deus duvidava. Mas ninguém mundo chorando. É só uma névoa na minha lem- ousasse desobedecer. Enérgica, engraçada, falava brança de seis anos de idade. bobagens que faziam muita mulher ficar vermelha. Vovô Chico Pena lhe sobreviveu ainda nove Mas que mulher! Que tia! Dava ordens. Trabalhava. – 132 –


Todos os filhos de Chico Penna e Ana Cândida na década de 1970, em Caratinga. Por ordem de idade e da esquerda para direita: José, Lino. Maria, Mário, Helena, Hilda, Alice e Hélio

Marcelo e Serginho no curral da Fazenda São Vicente, em Santo Antônio do Manhuaçu, nos anos 1970

Fazia festas na fazenda. As fotos, com muita gente sentada em volta de uma mesa grande, foram tiradas lá na fazenda. Aparece o tio Mário lá no fundo e meus tios sentados, comendo e bebendo. Que

festança! A mesa no quintal. Foi nessa ocasião que fizemos um passeio lá na fazenda do Cristal. Nesse mesmo tempo a família resolveu lotear as terras da fazenda Limoeiro, que ficava muito perto do centro da cidade de Caratinga. Para isso, foi feito um projeto de urbanismo, discutido entre os filhos e genros. Quando os trabalhos de terraplanagem começaram, foi um “Deus nos acuda”. Nós crianças, olhávamos as obras, estupefatos. Os quintais, os morros, os pastos virando ruas pela força das máquinas. O passado virou pelo avesso em poucos dias. Ah, meu Deus! Até o gigante pé de cajá, os limoeiros, as mangueiras, jabuticabeiras e goiabeiras, todas foram para o chão. Muitas com frutos sacudidos pela força e pela queda. Nos seus lugares estavam sendo plantadas as ruas de um bairro novo de Caratinga. Ai que dor e que alegria de criança! Máquinas, terra revolvida, mangas e cajás derrubados aos milhares, se misturando na poeira e na lama que crescia mais e mais. Não sei como o vovô sentiu a pressão do pro-

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gresso. Lembro-me dele calmo e sossegado. Houve um tempo em que ele ficou uns dias conosco em nossa casa para mamãe e papai irem ao Rio de Janeiro visitar meu irmão Jone, que era hemofílico e precisava sempre de cuidados médicos. Contava causos e fazia brincadeiras. Sempre manso. Nunca o vi levantar a voz. Até a morte, continuou ativo em sua casinha lá da roça. Fazia pequenas coisas. Tomava atitudes em relação à herança. Dividiu todas as terras com os filhos. Cada qual recebeu um sítio de herança, além de terrenos do loteamento e ações da Força e Luz Coutinho & Penna. Dias antes de morrer, sentiu dor no braço e não deu importância. No sábado, como sempre, acordou cedinho para ir ao mesmo destino: o barbeiro na cidade. Nesse dia o barbeiro esperou em vão seu fiel cliente. Vovô morreu sem sofrimento aos 82 anos de vida, em janeiro de 1962. Teve diagnóstico de angina. Lembro-me bem que acordamos com um grito da Maria Raul do lado de fora da casa: – “Helena Penna, seu pai morreu!!!” Foi uma notícia muito triste para todos nós que o amávamos. Desse enterro, lembro-me melhor. Muita gente. Entra e sai no casarão aberto. A sala cheia. Pessoas chegando o dia todo. Todos chorando. Eu tinha 15 anos. Era mocinha. Chorava e limpava as lágrimas com as costas da mão, com desconsolo e deselegância. Minha prima Analice, mais nova que eu, filha da tia Alice, saiu com essa tirada: “Eu não posso chorar. Não trouxe lenço.” Será que ela ainda se lembra disso? Naquele tempo já era chique. Quanto tempo já se passou depois disso! Meu avô sempre ficou na minha memória como a pessoa mais importante que eu conheci na minha infância. Ainda nos anos 1950 para 1960, foram concluídas as obras de urbanização das terras em torno da

fazenda e a criação do bairro Jardim Francisco Penna, o Limoeiro. Perdemos aqueles espaços sem fim. Nossos horizontes, que sempre foram os morros desabitados, começaram a se encolher, e as fronteiras da imaginação começaram a conviver com as cercas e muros dos terrenos que pouco a pouco foram sendo ocupados. A casa da fazenda, infelizmente, foi derrubada nos anos 1970, sem deixar vestígios para a posteridade. Quando isso aconteceu, eu morava em Brasília para estudar. A família continuou crescendo, chegando a 47 netos. Alguns deles já eram casados desde os anos 1960. De vez em quando nos reunimos, os “Filhos de Francisco” ou os “Penna”. É muita gente que se reúne e faz festa na alegria de se encontrar. Mesmo nós, que nos mudamos há muito tempo, sempre retornamos com emoção. A última festa foi lá na casa do Flavinho da tia Hilda. Quanta gente reunida! Quanta gente nova! Quanta gente já se foi entre aqueles que amávamos! Vovô está junto a sua Ana, enterrado em Caratinga, terra que o acolheu e de certo modo o criou. Dos nove filhos que chegaram a Caratinga, todos envelheceram ao lado da família. Uma foto da década de 1970 mostra os nove irmãos juntos e vivos. Parte da família ainda vive em Caratinga, querida cidade onde eu nasci e que deu, e ainda dá, berço amigo aos filhos, netos, bisnetos e tetranetos desses nossos antepassados. No capítulo 11 há uma foto minha quando pequena, em que aparecem ao fundo as vacas que pastavam no pasto ao lado da minha casa. Os descendentes e agregados que não conheceram aquela paisagem não podem imaginar a diferença que os últimos cinquenta anos desde a morte de meu avô provocaram ali. Para quem acompanhou essas mudanças, restam as saudades dos tempos passados.

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Relevo ondulado da zona rural em Santo Antônio do Manhuaçu

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Os que ficaram em Ribeira de Pena, Santo Antônio do Manhuaçu e Laranjeira até 2010 m Ribeira de Pena ainda guardamos os laços com Maria da Glória, que lá vive aposentada e esperando a visita dos filhos que moram fora de Portugal, em busca de vida melhor. Continuam assim na saga de imigrantes. Neste capítulo mostro uma foto dela com minha mãe em Ribeira de Pena. Em Santo Antônio do Manhuaçu e Ipanema estão os maiores laços. Para sentir o aroma da vida dos parentes e antepassados, além de conversar com os mais velhos e novos, e também, entrevistar, ler, procurar

documentos, certidões em cartórios, igrejas, conversar com professores que dominam o assunto, visitei as terras, andei pelas estradas, contei as léguas de distância, conheci o córrego Laranjeira, sentei-me às margens macias do rio Manhuaçu, medi com os olhos as poucas grandes árvores que restaram. O doce ondulado dos morros sem cafezais e sem a mata nativa ainda tem uma bela cobertura vegetal, como se pode ver em foto neste capítulo Nalgum lugar, alimentada pelos relatos, pude imaginar o burburinho dos terreiros e máquinas de beneficiamento de café, o movimento do moinho de fubá, as galinhas no quintal, as hortas,

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Helena Penna (minha mãe) e a prima Maria da Glória em Ribeira de Pena, Portugal, em 1991

Escola Estadual Antônio Penna Sobrinho em Santo Antônio do Manhuaçu

os pomares, a passagem e o arranchamento dos tropeiros a caminho de Aimorés, Manhuaçu ou Caratinga. Vislumbrei os porcos engordando no chiqueiro, o gado preguiçoso no pasto de colonião, a latomia dos cachorros na passagem dos forasteiros. Aqui e ali um casarão de assoalho alto e esteios de braúna com janelas rústicas, casinhas de meeiros e alguns ranchinhos perdidos naqueles altos de serra. Agora encontrei silêncio, quase nenhum movimento, mas o rio Manhuaçu continua levando suas águas para o rio Doce. O ribeirão Laranjeira é só um córrego. Pensei em todas essas pessoas que por aqui passaram, cujos espíritos deram luz e vida aos fatos que por aqui aconteceram e criaram energia e calor neste lugar. Agora não estão mais aqui, se foram como por encanto, como diz Guimarães Rosa: “as pessoas não morrem, ficam encantadas.” Poucos parentes restaram naquelas terras onde um dia reinaram absolutos. Não há grande movimentação aparente nas propriedades. Com as sucessivas divisões por herança, restaram pequenos sítios. Alguns poucos sitiantes ficaram, outros mantêm as terras e moram na zona urbana. Ficaram muitos Penna, principalmente os descendentes de Antônio Penna e Augusto Penna,

em Santo Antônio do Manhuaçu. Até hoje residem em Pocrane descendentes do primeiro Penna, o Penna “véio”. Existem muitos Corrêa de Faria descendentes de João Corrêa e Catatau e descendentes de Francisco Corrêa Faria Primo e Helena Corrêa de Faria, e muitos Cândido de Oliveira morando em Ipanema. As terras onde antes estava a sede da fazenda do meu tio-avô Francisco Corrêa de Faria Primo hoje são do Chicão, seu filho mais novo, mas ele mora em Ipanema. Trabalha na prefeitura. Está reconstruindo a Igreja Santa Ifigênia no mesmo lugar da antiga. O relato da viúva do Manuel Corrêa de Faria, irmão mais velho do Chicão, a Manuelina, é tocante. Ela explica por que, com tristeza e relutância, resolveu vender as terras de Laranjeira:

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“Hoje, na roça, As pessoas já não plantam mais. Nem horta nem pomar. Vêm comprar tudo na cidade. Ninguém cria galinha. Não fiam algodão. Não se remenda roupa. Ninguém torra café. Para lavar roupa, tem tanquinho. Só os mais velhos buscam lenha no mato.


Sítio de Chico Penna Sobrinho, filho de Augusto Pena, nos dias atuais

Hoje é o gás. Os móveis são comprados na cidade. As casas antigas de fazendas foram desmanchadas. Sinto saudade... Não queria sair... Mas quando chovia, caíam pontes... Os filhos dizem: – Mãe... Chega. – O papai não vai voltar... Depois eu vi... Não podia sair de casa. Tinha que ficar vigiando tudo. Tenho recordação... Mas... Caí na realidade. Vou passear para ver meus filhos.”

Alguns sítios ainda estão vivos e com movimento. Resistindo às dificuldades que Manuelina contou, José Corrêa de Faria, o “Correião”, filho de João Corrêa e de Catatau, mantém as atividades no seu sítio, que é perto da estrada Caratinga–Ipanema, mas tem casa na sede do município, em Ipanema. Já é idoso e a passagem do tempo deve pesar. Um neto de Quitéria e Zé “véio” ainda mora perto do córrego das Bananeiras. É Ataíde, filho do Arnides. Vive sozinho. Mexe ainda com movimento de gado leiteiro e anda com a carroça cheia de latões de leite, distribuindo pelas roças de Laranjeira. Também um neto do Luciano Cândido de Oliveira ainda mora nas Duas Barras, Laranjeira. Um neto do Lino Cândido, aquele tio das três – 137 –


Atual curral do sítio do Serginho Pena em Santo Antônio do Manhuaçu. Lembra muito o antigo curral da fazenda

mulheres, ainda tem terras herdadas em Laranjeira. É Militão, filho da Maria. Todo mundo fala dele, mas não consegui conhecer. Ele mora na Alegria. Em Aimorés, descendentes de Joaquim Corrêa de Faria espalhados pelo Brasil afora vêm se encontrando numa festa anual, motivados pelo reencontro promovido pelo livro “O Sangue do Barão”. Em Pocrane, ainda existem descendentes do Penna “véio”. Muitos. Moram na cidade. O Penna “véio” nunca foi fazendeiro. Dos descendentes de José Penna, o português, e Maria Cândida, a neta deles, Santinha, tem um sítio do lado direito do rio Manhuaçu. Exatamente onde antes tia Anacleta mandou construir a igreja, que não existe mais. De Antônio Penna e Anacleta restou o casarão onde o neto Lúcio tem o cartório. Tio Antônio dá

nome à escola municipal que aparece na foto no mesmo lugar onde foi a antiga venda e residência. E tia Anacleta virou nome de rua. Lúcio tem sítio e trabalha com movimento de gado. Tem também o Gilson, que mora na rua de Santo Antônio. Dos descendentes de Deolinda e Augusto Penna, existem filhos e netos que moram em Santo Antônio do Manhuaçu. Divino, filho de José Penna, mora em terras herdadas. Três filhos ainda vivem em seus sítios. Um de seus filhos é o Chico Pena, com um “n” só. Recebeu o mesmo nome do tio português, meu avô. Seu sítio também aparece em foto, com a casa rodeada de árvores. As fotos de Santo Antônio do Manhuaçu que aparecem neste capítulo são de uma filha do Chico Pena, a Rovênia. Um neto que me ajudou andando pelos cami-

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Filhas, noras, netas e bisnetas de Chico Penna em Caratinga numa festa da família em 2006

nhos antigos foi o José Antônio Penna, irmão da Rovênia. Com paciência, foi mostrando-me os sítios e o lugar exato das antigas fazendas. Gostaria de falar do irmão mais velho do Chico, Joaquim Penna, e sua mulher, que continuam em suas terras. Já cansados da lida, têm a ajuda dos filhos para tocar as atividades diárias. Sítio à moda antiga, com fotos e histórias daqueles tempos. Ajudaram-me muito contando histórias do passado. Dos descendentes do ramo de Chico Penna, meu avô, só os filhos do tio Mário Penna ainda têm propriedades por lá. Sérgio Penna de Faria, o Serginho, mantém as terras herdadas. Ficou com o trecho onde estava construída a antiga sede da fazenda do tio Mário, que encantou a nossa infância. Hoje a casa é outra, mas a entrada tem palmeiras imperiais plan-

tadas pela tia Elzita. Tirei uma foto do curral, que me lembra o curral antigo do tempo do tio Mário. Tem também a foto na qual aparecem o Marcelo e o Serginho no curral. No fundo aparece a lateral da fazenda. Essa foto está no capítulo XIV. Serginho foi vereador por Santo Antônio do Manhuaçu entre 1997 e 2000. Hoje são outros tempos e outros movimentos. O asfalto passa na porta, melhorou o acesso, mas os donos estão em Caratinga. Marcelo, Gilda e Vânia Penna construíram casa nas terras que herdaram do seu pai. Na casa da Vânia e do Maurício, colocaram fogão à lenha, usando uma trempe imensa que se diz ter pertencido ao fogão da baronesa. Lá também está o oratório que, segundo se diz, também pertenceu à baronesa. São muitos os parentes que guardam as lembranças do passado. Há os que até hoje acreditam

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numa herança milionária do barão. Percebi em alguns uma esperança que, segundo pudemos apurar, não tem fundamento algum. No cemitério de Santo Antônio do Manhuaçu é onde se guardam fortes vestígios de muitos daqueles que descrevi. Cemitério pequeno, descuidado, muros caídos. Um descaso à memória de outros tempos e ao passado de tanta gente que amou, lutou, brigou, trabalhou, construiu, destruiu, cuidou, descuidou, mas ali viveu. Quase que só a memória imaterial nos leva ao passado. São poucos os vestígios materiais do tempo em que viveram aqueles coronéis e suas famílias, que criaram uma efervescência inimaginável por aqueles caminhos, que encheram as terras de sementes em farta produção, que circulavam com porcos, mulas, vacas e cachorros nas margens do córrego Laranjeira e do rio Manhuaçu. Este rio segue manso, verde e caudaloso. Agora existem represas nas imediações de Santo Antônio do Manhuaçu. Cada vez que as águas passam, é um novo rio, que não lembra mais daqueles tempos de outrora. Das matas dos Botocudos, quase nada resta. Diga-se de passagem, dá orgulho e vale a pena ir conhecer a Reserva Particular do Patrimônio Natural Feliciano Miguel Abdala, a Reserva Bioló-

gica de Caratinga, onde se preserva o macaco Muriqui, a caminho de Ipanema. Longe de lá, e depois dessa experiência, penso sempre em voltar para sentir o cheiro da terra, o vento, o rio, e encontrar os parentes afastados, mas agora conhecidos. Foi e ainda é uma grande família. Nós, as mulheres e homens dessa família que nunca vivemos nessas terras, desaguamos pelo Brasil afora com outras vidas, outras verdades, novos estilos de viver. Sabendo ou não, temos nossa memória familiar. Conhecer essas origens, às vezes abastadas, às vezes simples, às vezes ternas, às vezes violentas, às vezes alegres, às vezes tristes, aproxima nosso cotidiano da “voz do passado”. Um passado que parece apagado, mas que tem eco dentro de nós sempre que olhamos um objeto herdado, ouvimos um causo engraçado dos antigos e vislumbramos em alguém um sorriso e um trejeito que permanece até hoje e que provavelmente se insinuará aqui ou ali em nosso futuro. É como se nós recuperássemos pessoas e casas. E gritássemos do terreiro aquele antigo e costumeiro grito de quem chegava de fora: “Ô de casa!” E escutássemos lá de dentro essa resposta antiga: “Ô de fora! Pode entrar.”

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Agradecimentos 1. Agmar Cândido de Oliveira e D. Nair 2. Aldo Fernandes (Aldo Maria) 3. Amaury Garcia da Silva 4. Anacleto Pena de Faria 5. Ana Corrêa de Faria 6. Antônio Carlos Corrêa de Faria (Faria) 7. Argemiro Mendes de Magalhães 8. Athaise Imaculada de Castro Paula 9. Augusto Loures Pena 10. Carmenlúcia Corrêa Fernandes 11. Cilda Francisca da Silva Faria 12. Célia Corrêa Bonfim 13. Delfina Penna de Faria 14. Delfina Magalhães (Calhau) 15. Edgard Luis Viera de Faria 16. Edgar Nunes Corrêa (Bizuca) 17. Elizabeth Cândido Oliveira 18. Evelyn de Oliveira Pena Cavalcanti Alencar 19. Fábio Orsini 20. Fernando Corrêa Gonçalves e D. Taninha 21. Francisco Corrêa de Faria Filho (Chicão) 22. Francisco Penna de Faria Filho (Chichico) 23. Geni Rosa Novais 24. Harley Cândido Nogueira 25. Helena Penna de Oliveira 26. Hélio Penna de Faria 27. Hilda Penna Fernandes 28. Honório Sabino e D. Iraci 29. Jacy Maria Melado Souza 30. Jacques de Oliveira Pena 31. Joaquim Genelhu (Ribeirão) 32. Joaquim Pena Primo 33. José Corrêa de Faria (Correião) 34. José Dornellas de Campos 35. José Roberto (meeiro de Chico Pena) 36. Josefa Penna de Faria 37. Jupira Penna Folly

38. Lino Penna de Faria 39. Lúcio Ribeiro Pena 40. Luzia Cândido Viana 41. Marcelo Pena Genelhu 42. Marciano de Faria Pena 43. Maria Cristina Penna de Faria 44. Maria das Graças Ferreira Coelho (Gracinha) 45. Maria das Graças Pereira Pena Santos 46. Maria da Glória Oliveira Silva 47. Maria do Carmo Corrêa de Faria Castro (Carminha) 48. Maria Geralda da Rocha Penna 49. Maria Helena Corrêa de Faria (Mariinha) 50. Maria José de Oliveira Vidal 51. Maria Ribeiro de Faria (Mariquinha Pinheiro) 52. Maria Soares Pena 53. Maria Terezinha Pena Folly 54. Manuelina Soares de Faria 55. Mário Pena Junior 56. Mauro Corrêa de Faria e Neuza 57. Natalina Pena Vieira 58. Narciza Teotônio de Jesus 59. Oto Garcia da Silva 60. Professor Amédis Germano dos Santos 61. Professora Célia Soares 62. Professor Flávio Mateus 63. Professora Helena Soares 64. Professor José Torres 65. Rovênia Rodrigues Pena Fonseca 66. Sabrina Mendes Andrade 67. Sebastiana Pena Peixoto 68. Sérgio Pena Genelhu (Serginho) 69. Vanderley Cândido de Oliveira (Lalai) 70. Vânia Pena Genelhu Bonfim 71. Virgínia Corrêa de Faria 72. Walter Faria Leite

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Genealogia da família do Barão de Itaperuna

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Segundas núpcias * Branca Angélica de Faria N: ---+: 19-(sem descendentes)

Casal V

Casal IV**

Casal IV

Casal III

Casal II

Casal I José Cândido D’Oliveira (1.ª núpcias) N: ---- +: 1880 Tertuliano José de Oliveira (2.ª Núpcias) Casal I * (Terto) N: ---- +: 1930

Casou com (c/c)

Primeiras núpcias Maria Francisca de Jesus Faria N: ---+: 1861

Segunda geração F2) Francisco Corrêa de Faria (“véio”) N: 1850 +: 1818 Maria Fernandes Faria (vovó Fernandes) N: 18-- +: 1937 Segunda geração F3) Cap. Joaquim Corrêa de Faria (“véio”) Virgínia Máxima de Faria N: 1853 +: 19-N: 18-- +: 19 -Segunda geração F4) TenCel: Manuel Corrêa de Faria Maria Cândido de Oliveira (Tiné) (Sinhazinha) N: 1856 +: 1933 N: 1868 +: 1918 cc** Rosalina Soares de Melo N: 18-- +: 19-Segunda geração F5) Maria Francisca de Faria N: 1854 +: 1897 Francisco Assis Magalhães N: 18--+: ----

Segunda geração F1) Delphina Francisca de Faria N: 1842 +: 1903

Filhos

Primeira geração Anacleto Corrêa de Faria (Barão de Itaperuna) N: 1819 +: 1903


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Casal I - 2**

Casal I - 2*

Casal I - 2

Casal I -1 Terceira geração

Terceira geração

cc Sá Rita

c/c (2.ª núpcias)* Liduína Maria da Conceição N: 1882 +: 19--

Maria Cândido de Oliveira N: 1968 +: 1918 c/c Manuel Corrêa de Faria (Tiné) N: 1856 +: 1933 Lino Cândido de Oliveira N: 1869 +: 1962 c/c (1.ª núpcias) Maria Corrêa de Faria N: 18-- +: 19—

(Não houve descendentes)

I-2*-3 Álvaro Cândido de Oliveira c/c Rita Furtado I-2*-4 Deoclides Cândido de Oliveira c/c Iracema Mateus (1.ª núpcias) I-2*-5 Marcelino Cândido de Oliveira c/c Iracema Mateus (2.ª núpcias) I-2*-6 Maria Cândido de Oliveira c/c ? I-2*-7 Floripes Oliveira Bitencourt c/c ? I-2*-8 José Cândido de Oliveira c/c Antônia I-2*-9 Marcionília Cândido de Oliveira c/c José Rodrigues I-2*-10 Abílio Cândido de Oliveira c/c Dotiza I-2*-11 Belmira Cândido de Oliveira c/c Pedro Praxedes I-2*-12 Joana Cândido de Oliveira c/c Raimundo Oliveira Lima

Quarta I-2-1 Ana Cândido de Oliveira c/c Oscar Alcino Gonçalves geração I-2-2 Joaquim Cândido de Oliveira c/c Maria Carlota Maia I-2-3 Delphina Cândido de Oliveira c/c ?

Quarta Ver filhos do casal IV geração

Filhos (as) genros e noras do casal I - Delphina Francisca de Faria (1.ª núpcias) e José Cândido D’Oliveira


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Casal I - 6

Terceira geração

Casal I - 5

Terceira geração

Casal I - 4

Terceira geração

José Cândido de Oliveira N: 1880 +: 1919 c/c Ana Ribeiro da Rocha (Donana) N: 18-- +: 19--

Virgínia Cândido de Oliveira N: 18-- +: 1919 c/c Jacob Dornelles da Costa N: 18-- +: 19-Ana Cândido de Oliveira N: 18-- +: 1919 c/c Antônio Mendes de Magalhães N: 18-- +: 1919

Terceira geração Anacleta Cândido de Oliveira N: 1872 +: 1918 c/c Casal I - 3 Germano Dornelles da Costa N: 18-- +: 19--

Quarta I-6-1 João Cândido de Oliveira c/c Olides Maria do Carmo geração I-6-2 Alia Cândida de Oliveira c/c Júlio Ferreira I-6-3 Maria Cândida de Oliveira (Tita) c/c Anísio Lacerda I-6-4 Manuel Cândido de Oliveira c/c Aracy Gomes de Aguiar I-6-5 Elvira Cândida de Oliveira c/c Jadir Silva

Quarta I-5-1 José Mendes de Magalhães c/c Quitéria Corrêa de Faria geração I-5-2 Sócrates Mendes de Magalhães (Belego) c/c Sebastiana I-5-3 Alverino Mendes de Magalhães c/c Mariinha I-5-4 Sófocles Mendes de Magalhães (Piriri) c/c Maria I-5-5 Elmira Mendes de Magalhães c/c João Corrêa de Faria I-5-6 Aspásia Mendes de Magalhães c/c Antônio Lourenço I-5-7 Zulmira Mendes de Magalhães c/c Antônio Furtado

Quarta I-3-1 Branca Dornelles da Costa c/c Alípio geração I-3-2 José Dornelles da Costa c/c Orminda Oliveira Dornelles I-3-3 Alcídio Dornelles da Costa c/c Sebastiana Esméria de Campos I-3-4 Maria Dornelles da Costa c/c Paulo Portugal I-3-5 Antônio Dornelles da Costa c/c Mariquinhas Praxedes I-3-6 Genésio Dornelles da Costa c/c Lourdes I-3-7 Waldemar Dornelles da Costa c/c Olinda I-3-8 Etelvina Dornelles da Costa c/c Joaquim Mastro I-3-9 Alzira Dornelles da Costa (+ jovem) I-3-10 Alcebíades Dornelles da Costa c/c Regina I-3-11 Altino Dornelles da Costa (+ jovem) Quarta I-4-1 Jacob Dornelles da Costa geração


– 149 –

Luciano José de Oliveira N: 1880 +: 1942 c/c Anacleta Corrêa de Faria N: 1886 +: 1980

Quarta I*-7-1 Leonídio José de Oliveira c/c Nédna Nunes geração I*-7-2 Argemiro José de Oliveira c/c Joaquina Albuquerque I*-7-3 Lemiro José de Oliveira c/c Maria Madalena de Oliveira I*-7-4 Alverino José de Oliveira c/c Floripes C. de Albuquerque I*-7-5 Elpídio José de Oliveira c/c Ivani Dornelles I*-7-6 Maria José de Oliveira Vidal c/c José Francisco Vidal I*-7-7 Gelita José de Oliveira Lima c/c Antônio Toledo de Lima I*-7-8 João José de Oliveira (+ jovem)

Casal II - 1

Terceira geração

c/c 1908 Elmira Mendes Magalhães N: 1890 +: 1980

João Corrêa de Faria N: 1977 +: 1951 cc Maria Justina

II-2-3 Onília Corrêa de Faria c/c Sebastião Cabral II-2-4 Maria Corrêa de Faria c/c Antônio Pinto Cabral II-2-5 Helena Corrêa de Faria c/c Francisco Corrêa de Faria II-2-6 Zilda Corrêa de Faria c/c Edgar Nunes de Morais II-2-7 Jofre Corrêa de Faria c/c Dephina Calhau II-2-8 Hilda Corrêa de Faria c/c Joaquim Penna III-2-9 Francisco Corrêa de Faria c/c Anita Brum II-2-10 Antônio Corrêa de Faria c/c Maria Emília de Souza II-2-11 João Corrêa de Faria Filho c/c Elza II-2-12 José Corrêa de Faria (Correião) c/c Narciza Teotônio de Jesus II-2-13 Ana Corrêa de Faria Corrêa de Faria c/c Luciano C.de Faria e c/c * Ricarte Roldão

Quarta II-1-1 Aristóteles Corrêa de Faria geração II-1-2 Degomira Corrêa de Faria c/c João Domingos

Filhos (as), noras e genros do casal II: Francisco Corrêa de Faria e Maria Fernandes Faria (vovó Fernandes)

Casal I* - 7

Terceira geração

Filho e nora do casal I*: Delphina Francisca de Faria (2.ª núpcias)* e Tertuliano José de Oliveira


– 150 –

Anacleta Corrêa de Faria c/c Luciano José de Oliveira

(ver casal I* - 7) Terceira geração Miguel Corrêa de Faria N: 1884 +: 19-c/c Carlota Emerenciana de Souza Casal II - 3 (Calutinha) N: 18-- +: 19-Terceira geração Maria Corrêa de Faria N: 18-- +: 19-Casal II - 4 c/c Lino Cândido de Oliveira N: 1869 +: 1962 (ver Casal I - 2) Terceira geração Quitéria Corrêa de Faria N: 1892 +: 1971 c/c 1908 José Mendes de Magalhães Casal II - 5 (Zé “véio”) N: 1885 +: 1963

Casal II - 2

Terceira geração (ver filhos do casal I* - 7)

Quarta I-5-1 Idevaldo Mendes Magalhães c/c Leopoldina Teixeira geração I-5-2 Narciso Mendes Magalhães c/c Maria Gundes I-5-3 Arnides Mendes Magalhães c/c Manoelina dos Reis I-5-4 Sebastiana M. Magalhães (Tatana) c/c Alípio Figueira de Morais I-5-5 Maria Mendes Magalhães c/c Geraldo Oliveira Lima I-5-6 Nágil Mendes Magalhães c/c Perciliana de Andrade (Tita) I-5-7 Salatiel Mendes Magalhães c/c Judite Rodrigues I-5-8 Argemiro Mendes Magalhães c/c Leonina Gonçalves S. Magalhães I-5-9 Irene Mendes Magalhães c/c Joaquim Reginaldo

Quarta (Ver filhos do Casal I - 2) geração

Quarta I-3-1 Luciano Corrêa de Faria c/c Ana Corrêa de Faria geração I-3-2 José Corrêa de Faria c/c?

Quarta geração


– 151 –

Casal II - 8

Terceira geração

Casal II - 7

Terceira geração

Casal II - 6

Terceira geração

cc Maria Lucas N: ---- +: 1--Sebastiana Corrêa de Faria N: 189- +: 1941 c/c Sócrates Mendes Magalhães (Belego) N: 189- +: 19-Vitória Corrêa de Faria N: 189- +: 19-c/c Pedro Nunes de Morais N: 18-- +: 19--

Francisco Corrêa de Faria N: 189- +: 19-c/c Cecília Cândida de Faria (Dindinha) N: 189- +: 1970

II-8-1 Maria Nunes das Neves c/c José Pinto das Neves II-8-2 Marieta Nunes de Morais c/c Oswaldo Xavier da Silva II-8-3 Pedro Nunes de Morais c/c Maria Regina de Faria II-8-4 Francisco Nunes de Morais (+ jovem)

II-7-1 Abílio Mendes Magalhães c/c Geni Rosa Novais II-7-2 Antônio Mendes Magalhães (+ jovem)

I-6**-4 Francisco Lucas

Quarta I-6-1 Osmira Corrêa de Faria c/c José Penna de Faria (Zé Pengeração inha) I-6-2 Antônio Corrêa de Faria c/c Áurea Vasconcelos (Aurita) I-6-3 Osvaldo Corrêa de Faria (+ jovem)


– 152 –

Casal IV - 2

Terceira geração

Casal IV - 1

Terceira geração

Ana Cândida de Faria N: 1890 +: 1924 c/c (1908) Cel. Francisco Penna N: 1880 +: 1962

Mariana Cândida de Faria N: 1886 +: 1924 c/c (1903) Cap. Paulino Ribeiro da Rocha N: 18-- +: 19--

Quarta IV-1-1 Maria Ribeiro de Faria c/c José Pinheiro geração IV-1-2 Leopoldina Ribeiro de Faria c/c Amantino Ferreira IV-1-3 José Ribeiro de Faria (Iéca) c/c? IV-1-4 Ana Ribeiro de Faria c/c Antero Garcia IV-1-5 Agripina Ribeiro de Faria c/c Pedro Alcântara Pereira IV-1-6 Alcebíades Ribeiro de Faria c/c Regina Cimini IV-1-7 Manuel Ribeiro de Faria c/c? IV-1-8 Anacleta Ribeiro de Faria c/c Amantino Ferreira (2.ª núpcias) IV-1-9 Luciano Ribeiro de Faria (+ jovem) IV-1-10 Francisco Ribeiro de Faria (+ jovem) Quarta IV-2-1 José Penna Sobrinho c/c Virgínia Corrêa Genelhu geração IV-2-2 Joaquim Penna de Faria (+ jovem) IV-2-3 Aristides Penna de Faria (+ jovem) IV-2-4 Sebastiana Penna de Faria (+ Jovem) IV-2-5 Lino Penna de Faria c/c Heleny Teixeira Penna IV-2-6 Maria Penna de Faria c/c José Bomfim IV-2-7 Mário Penna de Faria c/c Elza Genelhu Matos IV-2-8 Helena Penna de Faria c/c José Joaquim de Oliveira Filho IV-2-9 Alzira Penna de Faria (+ jovem) IV-2-10 Francisco Penna de Faria c/c Noêmia Pereira IV-2-11 Hilda Penna de Faria c/c Aldo Fernandes IV-2-12 Alice Penna de Faria c/c Sílvio Pereira de Abreu IV-2-13 Hélio Penna de Faria c/c Maria Geralda Rocha Penna

Filhos (as) genros e noras do casal IV: Manuel Corrêa de Faria e Maria Cândido de Oliveira


– 153 –

Casal IV - 5

Terceira geração

Casal IV - 4

Terceira geração

Casal IV - 3*

Casal IV - 3

Terceira geração

Joaquim Corrêa de Faria Sobrinho N: 1899 +: 1973 c/c (1912) Maria Augusta Genelhu Corrêa N: 1890 +: 1962

c/c * (1926) Delvaux Duque N: 18-- +: 19-Anacleta Cândida de Faria N: 1898 +: 1966 c/c (1914) Antônio Penna Sobrinho N: 1888 +: 1954

Maria Cândida de Faria N: 1895 +: 1928 c/c (19011) José Penna N: 1886 +: 1925

IV-3*-8 Elmira Faria Duque c/c ? IV-4-1 José Pena de Faria c/c Osmira Corrêa de Faria Quarta IV-4-2 Josefa Pena de Faria c/c Francisco Borges de Freitas geração IV-4-3 Joaquim Pena de Faria c/c Hilda Corrêa de Faria IV-4-4 Maria Pena de Faria c/c Joaquim Ferreira IV-4-5 Simeão Pena de Faria c/c Regina Roque Gravina IV-4-6 Wenceslau Pena de Faria c/c Maria Soares IV-4-7 Marciano Pena de Faria c/c Maria da Paz e c/c* Maria das Graças IV-4-8 Luciano Pena de Faria c/c Eni Ribeiro Pena IV-4-9 Olívia Pena de Faria c/c Sebastião Teixeira IV-4-10 João Pena de Faria c/c* Milza Mafra Lopes de Faria IV-4-11 Sebastião Pena de Faria (+ jovem) IV-4-12 Sebastiana Pena de Faria (+ jovem) IV-4-13 Manuel Pena de Faria (+ jovem) Quarta IV-5-1 Virgínia Corrêa Genelhu c/c José Penna Sobrinho geração IV-5-2 Maria Corrêa Genelhu c/c Augusto Penna Sobrinho IV-5-3 Antônio Corrêa de Faria (Nego) IV-5-4 Manuel Corrêa de Faria (Fifita) c/c Sebastiana Vieira IV-5-5 Welerson Corrêa de Faria c/c Almerinda Moutinho IV-5-6 Sebastiana Corrêa de Faria (Niguinha) IV-5-7 Dulce Corrêa de Faria c/c Raimundo Fonseca

Quarta IV-3-1 Manuel Penna de Faria (+ jovem) geração IV-3-2 Maria Penna de Faria (+ jovem) IV-3-3 Sebastião Penna de Faria (+ jovem) IV-3-4 Delfina Penna de Faria c/c Joaquim Genelhu/Ribeirão IV-3-5 Argemiro Penna de Faria c/c Sebastiana Toledo IV-3-6 Francisco Penna de Faria (Tiskim) c/c? IV-3-7 Onília Penna de Faria c/c José Pereira


– 154 –

Casal IV - 8

Terceira geração

Casal IV - 7

Filho - 6 Terceira geração

Terceira geração

Deolinda Cândida de Faria N: 1907 +: 1974 c/c (1923) Augusto Penna N: 1890 +: 1963

IV-7-1 Manuel Corrêa de Faria c/c Manuelina Soares Corrêa IV-7-2 Mauro Corrêa de Faria c/c Norma Suely Rodrigues de Faria IV-7-3 Maria Helena Corrêa de Faria c/c Benício Soares da Cunha IV-7-4 Maria Lucia Corrêa de Faria c/c Hélio Aguiar IV-7-5 Francisco Corrêa de Faria (Chicão) c/c Marlene Oliveira e c/c* Eliane Dias de Castro Quarta IV-8-1 Maria Pena de Faria c/c Pedro Vieira geração IV-8-2 Joaquim Pena de Faria c/c Orlanda Loures IV-8-3 Francisco Pena Sobrinho c/c Zenita costa Pena IV-8-4 José Pena Sobrinho c/c Elvira Alves Pena IV-8-5 Alice Pena de Faria c/c José Costa IV-8-6 Manuel Pena de Faria c/c Dirce Pena IV-8-7 Sebastião Pena de Faria c/c Helena Pena IV-8-8 Sebastiana Pena de Faria c/c Maurício da Silva Peixoto IV-8-9 Anacleto Pena de Faria c/c Maria das Graças Pena IV-8-10 Antônio Pena Sobrinho c/c Cleuza Peixoto Pena IV-8-11 Onília Pena de Faria c/c Pedro de Oliveira IV-8-12 Paulino Pena de Faria

Quarta geração

Francisco Corrêa de Faria Primo Quarta N: 1903 +: 1982 geração c/c (1928) Helena Corrêa de Faria N: 1913 +: 1985

Anacleto Corrêa de Faria N: 1901- +: jovem


– 155 –

* ** c/c cc N +

Legenda: Primeiras núpcias Segundas núpcias Casado com Concubinato Nascido Morto

c/c João Medeiros Lima N: 18-- +: 19--

Casal IV** - 1*

Casal IV** - 1

Manuela Corrêa de Faria N: 1920 +: 1979 c/c Carlindo da Silva Leite N: 18-- +: 19--

Terceira geração

IV**9*-6 Marília Medeiros Lima c/c Elói IV**9*-7 Marino Medeiros Lima c/c Maria IV**9*-8 Manuel das Graças Medeiros Lima c/c Wilma Lima IV**9*-9 Jorge Damião Medeiros Lima c/c Marina IV**9*-10 Marilda Medeiros Lima c/c Dezinho IV**9*-11 Cosme Medeiros Lima c/c? IV**9*-12 Maurício Medeiros Lima c/c?

IV**-9-1 Cecília Leite Conceição c/c Nelson IV**-9-2 Walter Faria Leite c/c Marly Teixeira M. Leite IV**-9-3 Waldir Faria Leite (+ jovem) IV**-9-4 Ivo Faria Leite (+ jovem) IV**-9-5 Ivone Faria Leite (+ jovem)

Filha e genros do Casal IV**: Manuel Corrêa de Faria e Rosalina Soares de Melo cc


Organização editorial Heleny O P Machado Reportagem e redação Heleny O P Machado Edição de textos e imagens Evelyn Pena Revisão de textos Cely Curado Projeto gráfico e editoração gráfica Bernd Kühl Impressão Nossa Gráfica e Editora Ltda 2011

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