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ISSN 1982-5994

UFPA • ANo XXXIII • N. 145 • OUTUBro e NoVeMBro de 2018

Tucupi: processo de fabricação garante sabor e segurança Página 5

Nesta edição • Um jogo de memória especial • Tráfico e milícia na periferia • NAEA celebra 45 anos


UNiVeRsidade FedeRaL do PaRÁ JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Armando Ribeiro, Nicole França e Renan Monteiro (Bolsistas); Walter Pinto (561-DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes Fotografia da capa: Alexandre de Moraes Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: Elielson Nuayed, José dos Anjos Oliveira e Júlia Lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Outubro e Novembro de 2018

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Rômulo Simões Angélica Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitora de Relações Internacionais: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Raimundo da Costa Almeida Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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tucupi pode ser considerado um dos “carros-chefes” da culinária paraense. Ele está presente nas receitas que nos fazem sentir água na boca só de lembrar. O sumo amarelo é extraído da raiz da mandioca brava, mas sem um processo de cozimento adequado pode causar sérios problemas de saúde. A engenheira de alimentos Ana Paula Rocha Campos elaborou um planejamento experimental de fabricação, analisando os tempos adequados de cocção e fermentação que garantam sabor e segurança aos consumidores. A dissertação foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Alimentos (PPGCTA/ITEC). A violência sentida no cotidiano do cidadão brasileiro também é tema de pesquisa na UFPA. Esta edição traz três reportagens sobre estudos realizados em diferentes programas de pós-graduação com o tema. Elas falam sobre violência conjugal, relações entre tráfico e milícias na periferia de Belém e o índice de letalidade das operações policiais. Leia também: professor Durbens Nascimento escreve artigo celebrando os 45 anos do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA); Projetos de Extensão do Campus de Soure levam educação de boa qualidade para as comunidades do Marajó; Alunos e professores do ICEN criam jogo de memória para atender a crianças com deficiência.

Rosyane Rodrigues Editora

Nesta Edição NAEA: 45 anos (re)pensando o desenvolvimento da Pan-Amazônia . 4 Tecnologia para fabricação do tucupi . ..................................... 5 Eles são solteiros, pardos e católicos . .................................6 Na periferia, a pena de morte já existe ...............................8 Um artista em movimento . ........................................... 10 Missão dada é missão cumprida ....................................... 12 Educação de qualidade para todos ................................... 13 Um jogo de memória especial ......................................... 14 Um salto histórico qualitativo ........................................ 16 Livros de leitura e civilidade europeia ............................... 18

Ver-o-Peso.Foto Alexandre de Moraes


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oPINIÃo NAEA: 45 anos (re)pensando o desenvolvimento da Pan-Amazônia Durbens M. Nascimento

PLANO DE FUNDO ALEXANDRE DE MORAES

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ste ano de 2018, o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) comemora o transcurso de seus 45 anos. Uma caminhada longa e árdua que se iniciou em 1973, com a implantação do primeiro Curso Internacional de Formação de Especialistas em Áreas Amazônicas (Fipam). Nesse período histórico, abrigou, além de estudantes brasileiros, belgas, venezuelanos, guianenses, peruanos e colombianos. Passadas quatro décadas, o NAEA, como Unidade Acadêmica destinada exclusivamente à pós-graduação, tornou-se uma referência internacional nos estudos sobre o desenvolvimento na Pan-Amazônia, descortinou novos modelos interpretativos sobre os problemas socioambientais existentes na região e questionou radicalmente a literatura convencional sobre o desenvolvimento nos Trópicos. O NAEA nucleou a criação de diversos cursos de mestrado e doutorado na Amazônia. Credenciou em suas pesquisas professores e pesquisadores da Europa, dos EUA, da América Latina. Esses pesquisadores, por motivos diversos, migraram de outras unidades acadêmicas, foram admitidos por concurso público ou convidados como pesquisadores visitantes de instituições de ensino e pesquisa do exterior. Essa plêiade contribuiu para consolidar uma referência obrigatória, sem, no entanto, possuir, por longo tempo, um corpo docente próprio de pesquisadores. O desenho organizacional da instituição permitia que pesquisadores interessados em pensar o desenvolvimento da Pan-Amazônia viessem de diferentes Unidades da UFPA para integrar o Núcleo. Esse esforço coletivo,

dos pioneiros e de seus sucessores ao quadro atual de pesquisadores, estudantes e técnicos, resultou na formação de uma comunidade acadêmica reconhecida e respeitada internacionalmente, comprometida com a construção de uma sociedade democrática, soberana, inclusiva, que sempre defendeu a Amazônia. As raízes históricas que influenciaram a criação do NAEA remontam ao começo dos anos 1970 e baseiam-se na necessidade de ampliação de uma demanda intelectual e acadêmica direcionada à reflexão fora dos padrões das ciências sociais clássicas, dos conteúdos teóricos e metodológicos vindos dos centros científicos e tecnológicos mais avançados do mundo, porém sem consistência aplicativa na realidade amazônica. Uma resposta crítica a essa literatura convencional sobre o desenvolvimento e a Amazônia levou à constituição de um ambiente alternativo, cujo protagonismo coube ao professor Armando Dias Mendes, que tomou como seu o sonho de um conjunto de pesquisadores do antigo Centro Socioeconômico da UFPA, atualmente Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), que reivindicava a construção de um espaço para estudos e pesquisas de alto nível sobre e na Amazônia. Sobre esse grupo de professores e pesquisadores pioneiros, pesava o contexto caracterizado pela crença no planejamento estatal, que exigia, dos governos e das sociedades, alternativas aos impasses inerentes ao modelo de desenvolvimento baseado na exploração impiedosa dos recursos naturais e medido pelo indicador PIB, típico de uma Europa mergulhada na estagnação.

Na América Latina e na Ásia, a realidade era diferente. Alguns países desses continentes mostravam-se dispostos a caminhar na contracorrente dessa tendência, como o Japão, chegando a 10% do PIB ao ano, na década de 1970. Na América Latina, o Brasil despontava com altos índices de crescimento do PIB. Reinserindo o papel do Estado para superar as desvantagens econômicas e as falhas do mercado nos países periféricos, definidos como exportadores de matérias-primas e consumidores de bens manufaturados, restava a industrialização com fortes investimentos públicos. Na Amazônia, sem um tratamento prioritário por parte de sucessivos governos nacionais e estaduais desde o século XVIII, o governo, em contexto de vigência de regras limitantes, tecnocráticas e autoritárias, lança um conjunto de políticas econômicas, com o objetivo de enquadrar a região no circuito de poder do grande capital financeiro internacional associado a grandes empresas nacionais. A solução desses problemas requer das universidades, em particular as da Região Amazônica, uma tomada de posição quanto ao processo em curso de intervenção governamental. Esse ambiente se reflete nas decisões institucionais das universidades, entre elas a UFPA. Nesse contexto, o NAEA evolui estrategicamente tomando como referência a interdisciplinaridade, objetivo a ser perseguido, a fim de superar os limites da ciência normal. Na esfera acadêmica, a interdisciplinaridade dava seus primeiros passos. Professores como Marcelino Monteiro, Jean Hébette, Rosa Acevedo, Edna

Castro, Samuel Sá, Eduardo Aragón Vacca, Heraldo Maués e Francisco de Assis formaram a primeira escola interdisciplinar na Amazônia, cuja produção intelectual coletiva está na base da formação de centenas de alunos. Em 1977, o NAEA implantou o Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento (Plades), o primeiro interdisciplinar do Brasil, e, em 1994, o primeiro curso de Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU). Nesses 45 anos, o balanço da consolidação da perspectiva interdisciplinar do Núcleo é demonstrado por números. No âmbito do Plades, foram concluídas 410 dissertações; no doutorado, 145 discentes obtiveram o título de doutor; e no Programa de Pós-Graduação Lato Sensu (PPLS), centenas de monografias foram defendidas. O desafio contemporâneo do NAEA é avançar no fortalecimento do movimento interdisciplinar. O estágio atual aconselha prudência nas avaliações sobre o termo, tanto no sentido de estratégia quanto no de método, atitude ou paradigma. O NAEA está de parabéns! Atravessou, incólume, as mudanças significativas na sociedade, no Estado e nas universidades. Duas épocas históricas, dois regimes políticos: a ditadura militar e a democracia liberal. Mas precisa se fortalecer ainda mais para os desafios deste milênio. Durbens M. Nascimento – cientista político, pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade e Natureza da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), professor e pesquisador do PPGDTU/ NAEA/UFPA. Diretor Geral do NAEA. durbens.naea@gmail.com


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Alimentação

Tecnologia para fabricação do tucupi Processo garante segurança ao “carro-chefe” da culinária paraense Nicole França

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uando o mês de outubro vai chegando, os preparativos para o Círio de Nazaré começam e trazem consigo as comidas tradicionais da época, como a maniçoba e o pato no tucupi. O tucupi, com sua característica cor amarela, é um dos ingredientes mais populares e tradicionais da culinária paraense. O sumo amarelo é extraído da raiz da mandioca brava e passa por vários processos, até chegar ao estado adequado para consumo. Tendo em vista essa tradição, a engenheira de alimentos Ana Paula Rocha Campos elaborou a dissertação Estudo do processo de conservação do tucupi, apresentada no Programa de

Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Alimentos (PPGCTA/ITEC), com orientação da professora Ana Vânia Carvalho. A dissertação apresentou um processo tecnológico adequado para a obtenção do tucupi, uma vez que a raiz da mandioca utilizada para a sua fabricação pode causar intoxicação em razão dos altos teores de ácido cianídrico. Entre os problemas de saúde que podem ser causados, estão a neuropatia atáxica tropical, caracterizada por uma desordem neurológica; o konzo, paralisia permanente; e o hipertireoidismo, quando a glândula tireoide produz hormônios em excesso. Para a pesquisa, Ana Paula Campos realizou a coleta de várias amostras de tucupi,

tanto de feiras quanto de supermercados de Belém. “Visitei vários fabricantes e analisei o tipo de mandioca, o tempo de fermentação e o tempo de cocção que eles utilizavam. Também observei as condições sanitárias do ambiente, para determinar o que realmente poderia influenciar na qualidade do produto. Foram feitas as análises físico-químicas e microbiológicas, para verificar se os produtos estavam de acordo com o padrão de identidade e qualidade do tucupi estipulado pela Agência de Defesa Agropecuária do Pará (ADEPARÁ). A maioria, infelizmente, estava em desacordo, por isso o estudo buscou padronizar o processo de produção do tucupi”, afirmou.

De acordo com a engenheira, o ácido cianídrico deve ser eliminado durante o processo de fabricação. “Quando começa a ralação da raiz de mandioca, ocorre a dilaceração do tecido vegetal e o início do processo de cianogênese, resultando no aumento da concentração de ácidos cianídricos. O processo de destoxificação do produto ocorre, principalmente, nas etapas de fermentação e cocção pelo fato de o ácido cianídrico ser volátil. Dessa forma ele será eliminado no ar, durante o aquecimento. Assim, o tempo de cocção é considerado o principal parâmetro para que se possa eliminar o teor de ácido cianídrico do tucupi”, explica Ana Paula Campos.

Amostras coletadas em feiras apresentam contaminação De acordo com a pesquisa, as amostras de tucupi contaminadas foram, principalmente, as coletadas nas feiras. “Não há um padrão de qualidade higiênica e sanitária. Muitas vezes, o tucupi é feito no próprio local. As amostras apresentaram elevadas quantidades de micro-organismos (bactérias), além de alta concentração de ácido cianídrico em razão da cocção e do processo de fabricação inadequados”, afirmou Ana Paula Campos. Com base nos problemas constatados, a engenheira elaborou um planejamento experimental, utilizando-o no processo de fabricação do tucupi em laboratório. Ana Paula também analisou vários tempos de cocção e fermentação. O processo de cocção consiste na aplicação de calor, dando cor, sabor e odor aos alimentos. Este processo é um fator determinante para garantir níveis seguros de ácido cianídrico no tucupi. “Além

da cocção, a fermentação também vai influenciar na qualidade e nas características sensoriais do produto. Busquei garantir um produto seguro e sensorialmente aceitável. A fermentação influencia a acidez do tucupi, enquanto a cocção garante a segurança microbiológica e os baixos níveis de ácido cianídrico”, esclarece a autora da pesquisa. Com os experimentos, constatou-se que o tempo ideal de fermentação é de 24 horas e o de cocção é de 40 minutos. Esse processo garante produtos de boa qualidade em relação ao teor de ácido cianídrico e à segurança microbiológica e agradável ao paladar. Com o tucupi produzido em laboratório, também foi possível avaliar o tempo de prateleira mais adequado. Os produtos comercializados indicam validade de 30 dias em ambiente refrigerado. Já o tucupi produzido na pesquisa pode durar até 49 dias, mantendo todas as suas características.

ALEXANDRE DE MORAES


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Violência conjugal

Eles são solteiros, pardos e católicos O perfil dos agressores e da violência praticada em Belém Nicole França

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m julho deste ano, mais um caso de violência contra a mulher chocou o País. Em imagens divulgadas pelo programa Fantástico, da TV Globo, foi possível assistir a um professor de Biologia praticando uma série de agressões contra sua esposa, uma jovem advogada que acabou morta. Tendo em vista que esse tipo de episódio ocorre com várias mulheres em todo o Brasil, Maria do Socorro Barros Moraes elaborou a dissertação Homens autores de violência conjugal: caracterização biopsicossocial, tipos de agressão praticada e suas consequências processuais. A pesquisa foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTPC) e orientada pela professora Lília Iêda Chaves Cavalcante. “Eu trabalho no Tribunal de Justiça como mediadora de conflitos familiares, e nos atendimentos havia muitos relatos

de violência. Foi assim que esta temática aguçou a minha curiosidade. Pesquisando um pouco sobre violência doméstica, verifiquei que a maioria dos artigos trabalhava a violência na perspectiva da vítima. Em razão disso, me interessei em pesquisar o aspecto do autor da violência”, afirmou a pesquisadora. A dissertação é um estudo documental e buscou identificar o perfil biopsicossocial dos autores de agressão na relação conjugal, partindo das características sociodemográficas e biopsicológicas, além de indicar o tipo de agressão praticada e o percurso processual que o autor veio a passar. Para isso, foram analisados 150 processos que haviam sido sentenciados em uma Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em Belém. Maria do Socorro Moraes buscou analisar os casos de acordo com os seguintes critérios: ter sido sentenciado no ano de 2015; ser processo de ação penal; envolver violência por parceiro

íntimo em relações heterossexuais; ser homem o denunciado pela violência. Nos segmentos sociodemográficos, foram verificados aspectos como faixa etária, estado civil, cor/etnia, religião, grau de escolaridade, situação de trabalho, profissão/ocupação, renda, condição e bairro de moradia. Nos aspectos biopsicológicos, foram analisados: ocorrência do uso de álcool ou drogas ilícitas, condição de saúde, nível de agressividade, dificuldade em lidar com a frustração, humor irritável, ciúme e dependência afetiva. Foram avaliadas também as características da relação afetiva do casal, como número de filhos, tempo de relação, situação da relação no ato da agressão e após, tempo de separação, vínculo afetivo do autor com a vítima, residência de ambos antes e depois da violência, ocorrência de agressões anteriores e seus registros. Por fim, foi estudado o tipo de agressão, o local de sua ocorrência e o dia da semana.

68% dos acusados têm comportamento agressivo Com base na análise dos dados levantados na pesquisa, foi possível constatar que, nos aspectos sociodemográficos, os homens com idade entre 24 e 34 anos possuem as maiores taxas com relação à violência. A maioria deles é solteiro, pardo, católico e tem escolaridade até o ensino fundamental. Além disso, a pesquisa verificou que pouco mais da metade dos autores de violência desempenhava uma atividade remunerada. Com relação às características biopsicológicas, foi inferido que a maioria dos agressores faz uso de bebida alcoólica e de drogas ilícitas. Verificou-se, também, que 68% dos acusados apresentaram comportamento agressivo, além de 26,7% terem dificuldade de

lidar com a frustração. 13,3% dos homens analisados apresentavam humor irritável e 18% apresentavam ciúme exacerbado em relação à vítima e dependência afetiva de suas parceiras. Quanto às características da relação afetiva, os resultados apontaram que a maioria das relações durou entre quatro e sete anos, sendo que 59,3% dessas relações estavam rompidas no momento da denúncia da agressão. Apesar de a maioria dos autores da agressão ser indicada como ex-parceiro, o percentual de atuais parceiros como agressores ainda é grande, representando 42%. Em 65,3% dos casos analisados, já existia a ocorrência de atos de violência anteriores, sendo 32% deles não denunciados aos órgãos

de proteção, dos quais 51% fazem referência à violência física. Analisando os tipos de violência física, Maria do Socorro Moraes pôde constatar uma igualdade entre as taxas de agressão física e agressão psicológica. A pesquisadora ressalta que algumas mulheres sofreram mais de um tipo de violência e grande parte dos casos ocorreu na residência do casal, aos finais de semana e no período da noite. A pesquisadora analisou, ainda, o percurso processual passado pelo autor da agressão. 62,7% dos inquiridos negaram a agressão e 36,7% não compareceram às audiências. No entanto 42,7% dos denunciados foram considerados culpados e receberam uma sentença condenatória de 1 a 2 meses de prisão.


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A violência está presente em todas as classes Os resultados da pesquisa indicaram que a maioria dos autores de violência pertence a uma classe social mais baixa. Porém a pesquisadora ressalta que a violência conjugal não ocorre somente nessa classe social. “Com a pesquisa, demos um pontapé inicial para o mapeamento desse tipo de violência na nossa cidade, pois não encontrei nenhum outro estudo que trouxesse dados sobre os agressores de Belém, e aí cabe uma pergunta: é só a classe baixa que agride? Tenho certeza de que não! É provável que as pessoas com maior poder aquisitivo busquem outras formas de resolver conflitos conjugais. A terapia de casal é uma delas. Além de omitir a violência, uma vez que existe um aparato social para responder, esse tipo de violência demora mais para chegar às instituições públicas”, avalia. A presença da violência conjugal entre pessoas de alto poder aquisitivo pode ser constatada no caso relatado no início da reportagem. “Este e inúmeros outros casos semelhantes acontecem, e nós, muitas vezes, acabamos contribuindo com isso, obedecendo ao dito popular ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’, o que me faz questionar: Até quando as pessoas ficarão de braços cruzados para a violência conjugal e para a violência contra a mulher?”, reflete Maria do Socorro Barros Moraes. Para a autora do estudo, a importância da pesquisa está relacionada, principalmente, à análise do homem agressor. “É importante refletir sobre quem é esse agressor e como fazer algo em prol desse homem, para que ele saia dessa condição, entenda o seu papel social e a dinâmica relacional, transformando os seus próximos relacionamentos em relações de prazer e não de dor”, concluiu.

tiPos de aGRessão PRatiCada • Agressão física com uso de força 60,7% • Agressão física com uso de arma 7,3%

• Agressão psicológica sem ameaça de morte 30% • Agressão sexual 2%

22,7% • Agressão patrimonial 7,3% • Agressão moral FONTE: MORAES, 2018

DARWIN GUEVARRA / FREE IMAGES

• Agressão psicológica com ameaça de morte 38%

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ACERVO DO PESQUISADOR

Na periferia, a pena de morte já existe Pesquisa revela ações do tráfico e da milícia em Belém Renan Monteiro

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o passar pela periferia da capital paraense, é comum ver, em muros ou paredes, a frase: “proibido roubar nessa área”. Quem entende, minimamente, o contexto periférico sabe que a ordem deve ser cumprida, pois, provavelmente, foi dada por traficantes que dominam o local. Esses mesmos locais também lidam com outro tipo de relação de poder: a que envolve ex-policiais ou policiais ativos atuantes nas chamadas milícias, grupos de extermínio que dominam algumas áreas na cidade, aumentando o índice de violência e morte.

Para compreender a fundo essa questão, o pesquisador Aiala Colares Couto fez um extenso trabalho de campo nas periferias de Belém ao elaborar a sua tese Do poder das Redes às Redes do Poder: Necropolítica e configurações territoriais sobrepostos do narcotráfico na metrópole de Belém-PA. A pesquisa foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU/NAEA) e orientada por Durbens Martins Nascimento. O autor procurou entender os conflitos urbanos em Belém a partir da sobreposição de territórios, isto é, os grupos (narcotraficantes, milícias e polícia) territorializam-se e ora estão em convergência, ora entram em

conflito nos bairros periféricos. “O principal resultado dessa sobreposição é a alta taxa de homicídios com característica de execução, dando sentido para o termo ‘necropolítica’, isto é, quando a morte se transforma numa categoria política das relações de poder”, exprime. Além da pesquisa bibliográfica e da análise de documentos, o autor passou quatro anos pesquisando o tema de forma detalhada, com observações participantes em campo. Ao se aproximar de uma rede “subterrânea”, entrevistou comerciantes, policiais militares, moradores e pessoas vinculadas ao tráfico, como “aviãozinhos”, jovens que fazem a movimentação do comércio de


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Cidade entorpecentes nos bairros. No total, foram 71 entrevistados. Alguns deles foram assassinados após a passagem do pesquisador. Os bairros escolhidos foram Barreiro, Bengui, Cabanagem, Cre-

mação, Guamá, Jurunas, Sacramenta, Terra Firme, Tapanã e Buraco Fundo (no distrito de Icoaraci). Estes bairros apresentam características semelhantes em termos de composição socioespacial e de ausência de

políticas públicas urbanas, criando condições favoráveis à atividade do tráfico. O autor utiliza o termo “aglomerados de exclusão” socioespacial ao se referir aos bairros citados.

No Pará, milicianos estão envolvidos em vários crimes Uma questão crucial na pesquisa de Aiala Colares é o surgimento do que ele define como “narcomilícias”, ou seja, agentes (ou ex-agentes) de segurança pública que se apropriam do narcotráfico para obter benefícios financeiros. O Relatório da Comissão Parlamentar de Investigação (CPI) das Milícias no Pará aponta para o envolvimento de milicianos em vários crimes, como sequestro, extorsão, roubo de cargas, explosão de caixas eletrônicos, homicídios e associação ao tráfico de drogas. “Quando falamos em ‘sobreposição de territórios’, queremos dizer que, quando a milícia surge (se configurando como um grupo armado), também procura ter o seu espaço territorializado e demarcado. São espaços em que, por exemplo, ela pode prestar segurança privada, cobrando do comerciante para que ele não seja assaltado, eliminando

pessoas que cometem assaltos na área, extorquindo na boca de fumo e dos traficantes. Então, o termo ‘sobreposição’ se refere à presença das milícias que vão construindo territórios em áreas onde o narcotráfico já estava territorializado, resultando, então, em conflitos pelo uso do território”, explica o pesquisador. Durante muito tempo, as milícias foram entendidas como um grupo que surgiu no Sul do País para combater o tráfico de drogas. Em Belém, a partir do bairro Guamá, esses grupos passaram a adquirir outras características. Em vez de expulsar os traficantes da área, eles passam a mantê-los para que sejam extorquidos. Para Aiala Colares, na capital paraense, em muitos territórios (bairros) delimitados pelo narcotráfico, quem manda é a milícia. “Atualmente, a resposta do tráfico para essa tentativa de a milícia se sobrepor aos seus terri-

tórios é expulsar policiais militares da periferia, pois os traficantes os acusam de serem os ‘olheiros’ da milícia. Em Belém, temos vários bairros territorializados pelo tráfico, e cerca de quatro tipos de milícias atuando nesses bairros: a milícia do narcotráfico, de segurança privada, do contrabando e do transporte alternativo”, revela Aiala Colares. Em unanimidade, as entrevistas com moradores que não têm relação direta com o tráfico de drogas destacam o grande temor da milícia ou dos narcotraficantes e um total descrédito na polícia como representação do Estado. “Existe um desgaste das políticas de segurança pública e isso permitiu que a criminalidade ganhasse força e espaço até o momento em que o tráfico de drogas passou a territorializar os bairros. Os moradores sofrem pressão de todas as partes em que o tráfico impõe a chamada ‘lei do silêncio’”, adverte Colares.

Capital é a “cidade-nó” para a distribuição de drogas O mercado do narcotráfico na Amazônia brasileira já é uma organização socioespacial conectada aos países da comunidade andina produtores de cocaína (Bolívia, Colômbia e Peru), dando um caráter abrangente para a economia do crime. Belém está inserida nas redes regionais e globais do narcotráfico tanto como mercado quanto como “cidade-nó” de distribuição dos fluxos de cocaína para as regiões Sul e Sudeste do Brasil e para a Europa. De acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, de 2011 a 2016, em Belém, houve um total de 517 execuções relacionadas ao tráfico de drogas. Isso ocorre porque, nos territórios dominados pelos traficantes ou pelas “narcomilícias”, há o que o pesquisador define como “narcodisciplinamento” da popu-

lação periférica, isto é, uma regulação-controle do território e dos seus sujeitos por meio de normas, e quem entra em desacordo é punido. Ocorre punição, por exemplo, para o morador que faz algum tipo de denúncia ou participa das relações do tráfico e, quando preso, entrega todo o esquema de funcionamento. “Quando presenciei ou ouvi sobre as execuções do carro prata ou de motoqueiros encapuzados com as mesmas características (tiros de pistola na nuca), percebi que esse tipo de execução tinha efeito sobre todo o corpo da população periférica. Na sua forma cruel, uma espécie de suplício, a morte se transforma em teatro para quem está observando e tem um efeito disciplinador. Toda vez que alguém quer fugir às regras, o tráfico ou a milícia pune. Assim, a

morte é um alerta necessário para a manutenção do poder, seja do traficante, seja do miliciano”, descreve Aiala Colares. A lógica de que o extermínio na periferia atinge, principalmente, jovens negros em situação de vulnerabilidade socioeconômica foi reafirmada na pesquisa de Aiala Colares. O retrato mais marcante do trabalho, segundo o autor, é entender que existe um direcionamento para as mortes desses jovens. “Eles são considerados criminosos ou delinquentes em potencial, são culpados e/ou suspeitos de um crime que ainda nem ocorreu, e esse apartheid social coloca-os em uma condição de sujeitos ‘matáveis’. A morte desses jovens é justificável. São corpos vazios, sem significado para a sociedade mais abastada e para o Estado”, conclui.

A área de ocupação Tucunduba II, no bairro Guamá, foi um dos dez espaços em que Aiala Colares realizou a sua pesquisa de campo.


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Entrevista

Roger Mello

Um artista em movimento Das andanças pelo mundo às cores de Belém, tudo inspira Roger Mello Walter Pinto

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convite da EDUFPA, o designer Roger Mello esteve em Belém para o lançamento de seu mais recente livro, Clarice. Nascido em Brasília, em 1965, o artista reside no Rio de Janeiro, mas passa grande parte do ano em diversos países, cumprindo uma extensa agenda de ilustrador, expositor e membro de júris internacionais. Formado pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ele começou sua carreira trabalhando com o veterano cartunista Ziraldo. A carreira de Roger

Mello é pontuada por diversos prêmios, entre os quais dez Jabutis e o Grande Prêmio Internacional da Fondation Espace Enfants, na Suíça. Nesta entrevista, ele conta um pouco da sua trajetória e fala da sua paixão por Belém, cidade que lhe revela cores mágicas.

Formação de ilustrador Foi uma construção que começou muito cedo, como leitor. Eu não lia só livros. Quando criança, gostava de desenhos animados e de histórias em quadrinhos. Há pessoas que questionam se as histórias em quadrinhos são livros. Eu as

considero um tipo de livro. Os quadrinhos foram, para mim, tão importantes quanto o próprio Carybé, que ilustrava os livros do Jorge Amado. Também curti muito os desenhos do Ziraldo. Nasci em Brasília, então a arquitetura do Niemayer e os desenhos sinuosos dos jardins de Burle Marx foram, para mim, uma subversão visual. É tudo muito orgânico ou muito contestador. Athos Bulcão e Maria Martins também me influenciaram muito.

O trabalho com Ziraldo Trabalhar com o Ziraldo foi maravilhoso! Ele é um sábio.

Aparentemente, eu não tenho nada a ver com o trabalho dele. Somos de escolas muito diferentes. Mas eu vejo tanta coisa dele no meu trabalho, no modo de pensar, apesar de não parecer à primeira vista. A geração dele tinha um jeito de pensar, cada um com a sua individualidade. É a geração do Pasquim, do Niemeyer, do Anísio Teixeira, do Darcy Ribeiro. Todos falavam muito, às vezes falavam coisas e, no outro dia, mudavam de ideia. Eu acho isso perfeito. É uma geração de generalistas, que abordam qualquer tema. Ziraldo, por exemplo, sabe que a fruta-pão foi espalhada pelo mundo, inclusive no Brasil, para ALEXANDRE DE MORAES


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acabar com a fome. Ele sabe opinar sobre teatro, política, literatura infantil, sobre qualquer tema. Se não souber, ele inventa e tá ótimo! É tudo um exercício ficcional que destaca o fato de ele ter sempre uma opinião. Ter trabalhado com ele foi um grande aprendizado em várias frentes.

Prêmios nacionais e internacionais Eu fui premiado com dez Prêmios Jabuti no Brasil, tanto como autor de texto, como autor de ilustrações. Antigamente, o prêmio tinha muitas categorias. Hoje, eu sou hors-concours. Meus temas vêm da música, do carnaval. Trabalho também com o teatro. Eu dou conta de fazer essa coisa toda não sei nem como, porque, na verdade, sou uma pessoa muito ‘esculhambada’. Não sou organizado, não tenho estúdio, não tenho hora marcada para trabalhar e viajo muito. No ano passado, estive em 17 países. Gosto de trabalhar em movimento, assim, no nomadismo.

Exposições Pa r t i c i p e i d e uma exposição no Centro de Artes de Seul, na Coreia, a qual registrou a marca de 1.300 visitantes por dia. Seul tem muitos centros culturais, cada vez que você vai lá, vê um museu de arte contemporânea novo. Eles dão muito valor à arte, porque é uma coisa que tá no sangue: o avô já admirava a arte, então o neto vai e faz questão de levar o avô. É algo que eu nunca observei na Europa, mas vejo na China, no Japão e na Coreia. A Ilha de Nami, na Coreia, é um lugar paradisíaco, ligado à natureza, quase na fronteira com a Coreia do Norte. Eles investem em arte, em literatura infantil e se tornaram os patrocinadores do Prêmio Hans Christian Andersen [importante prêmio da literatura infantojuvenil]. Um dia,

eles convidaram 33 países para participar de um livro sobre a paz. Do Brasil, participamos eu e a Luciana Sandroni. Ela fez o texto; eu, as ilustrações. Três anos depois, fui o primeiro latino-americano a ganhar o Hans Christian Andersen de ilustração. Isso levou os organizadores a promoverem uma grande exposição na Ilha de Nami e em Seul para saudar o que chamaram “estilo Brasil-Coreia”. A partir daí, não parei mais de ir à Coreia. Até virei júri do prêmio. Em 2018, serei o presidente.

O estilo, segundo o autor Eu me referenciei muito e sempre me referenciarei na dita arte popular, embora não goste desse nome. No Brasil, temos artistas com o seu universo próprio e são referência não só para mim. Vitalino, por exemplo, foi uma referência para os artistas da Semana de 22 e continua sendo para mim. De vez em quando, há uma volta a essa arte, que não tem nada de Naif, porque não é ingênua, é muito complexa. Não tem nada de primitiva, é extremamente sofisticada. Trabalho com papel e outros suportes. Uso tinta de parede no papel. Um dia, um amigo me falou: - Tu usas umas cores que a gente aprendeu que não podia usar. E eu falei: - Poxa, esse é o melhor elogio que eu já recebi!

Formação acadêmica Minha formação foi em Desenho Industrial e acho que foi a melhor coisa que aconteceu comigo. O Desenho Industrial é o Design atual. Ele abarca o desenho de produto, do copo ao carro, até a própria programação visual. O desenho de produto está tão próximo da programação visual quanto a arquitetura está próxima das artes plásticas. Acho que tudo é a mesma coisa. Muitos colegas que cursaram Desenho Industrial comigo se sentiram motivados a buscar outras expressões de Arte, como a música e o teatro. Eu fui para a ilustração gráfica.

Ilustração de livros Ilustrei livros de autores consagrados. O primeiro foi de Guimarães Rosa e acho que não ficou à altura dele. Ilustrei Zélia Gatai, Graciliano Ramos, Ana Maria Machado, Ligia Bojunga. Fiz parceria com a Regina Iolanda, minha ídola. Ilustrei muitos autores, vou ser injusto aqui se eu

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esquecer alguém. Ao todo, ilustrei mais de cem livros.

Belém do Pará Vim para a Feira Pan Amazônica e aproveitei para ficar mais um tempo. Sou apaixonado por tudo aqui de cima. Pará e Amazonas são Estados que amo. A cidade de Belém é única. Tem charme, tem diversidade, tem muitas fontes formadoras, tem tudo do que eu gosto. As frutas, que, além do sabor, são muito coloridas! As pessoas dizem que são as cores do Brasil. Nem todos os ilustradores trabalham a paleta saturada, mas eu não consigo trabalhar com cor pastel. Acho que, no Brasil, nós sabemos trabalhar com as cores, mas isso não quer dizer sair botando qualquer cor. Isso é algo que eu aprendi observando a própria natureza. Você vê uma planta, uma orquídea, um tucumã, uma palmeira, as cores são escandalosas, saturadas pela incidência de luz, então, é preciso captar essa luz. Por isso Belém é uma grande referência para mim. O Ver-o-Peso é essa mina de cores, tudo isso me inspira muito.

Clarice, o último livro Lancei na Feira Pan-Amazônica este livro, ilustrado por meu sobrinho. Achei que fosse importante uma pessoa de outra geração ilustrá-lo, porque é um livro sobre a minha família. Clarice é uma menina. A história se passa em Brasília, no olho do furacão. Claro que tem relação com a Clarice Lispector. Há um momento em que ela fala sobre a cidade de um jeito Clarice de ser. Na verdade, ela gostou da cidade, da estranheza da cidade. Ela diz: “Se eu digo que a cidade parece com a minha insônia, as pessoas não entendem isso como um elogio. Mas é na insônia que eu sou eu”. O livro é uma ode a Brasília, num tempo de ditadura. Na literatura infantil, a palavra desaparecimento é, muitas vezes, trabalhada como elemento mágico. No nosso livro, ganha um sentido fantástico na realidade. São os adultos que desaparecem, não é uma época de as pessoas chegarem, é uma época de as pessoas irem. Normalmente, esse desaparecimento está ligado à tortura e à morte. Enfim, trabalhei essa dimensão na infância, a partir de coisas que vi, como minha tia jogando livros no lago, amarrados com pedra, para que não boiassem de volta. Ela não era de esquerda, mas, por gostar de livros, tinha um lado subversivo.


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Segurança

Missão dada é missão cumprida ELIELSON MODESTO / ASCOM SEGUP

Armando Ribeiro

A

sensação de insegurança está cada vez mais presente entre a população brasileira. Andar acompanhado, não portar objetos de valor e estar sempre atento são algumas das precauções adotadas para se proteger de assaltos e homicídios. Esse contexto é entendido quando olhamos as estatísticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que, em 2016, registrou aumento de 25,8% de mortes em ações de policiais militares e civis em

relação ao ano anterior. Questionando o que leva um policial a usar da força letal e agravar o quadro de violência do País, Miguel Ângelo Sousa Corrêa desenvolveu a pesquisa de mestrado intitulada Institucionalização de Saberes: o processo de sujeição do ato de matar no trabalho policial militar. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública (PPGSP/ IFCH), sob orientação da professora Fernanda Valli Nummer. O pesquisador conta que a ideia do estudo surgiu

A justificativa da letalidade nas ações policiais

de dois momentos: o primeiro foi o contato com um policial militar recém-formado que falava em mudar a lógica da polícia. O segundo foi no reencontro com esse ex-aluno. “Ele falava sobre o uso da força, passando a ideia de combate à violência a qualquer custo, não existia mais o discurso explícito de proteção ao cidadão. Refleti sobre o que aconteceu ao longo do caminho desse PM. O que fez aquele jovem idealista mudar sua visão tão radicalmente?”, conta Miguel.

Para responder a essa questão, Miguel Ângelo Corrêa realizou entrevistas semiestruturadas com seis PMs da Região Metropolitana de Belém, considerados bons policiais por seus superiores. Quatro desses eram os chamados “operacionais”, aqueles que vão verificar os casos, e já estiveram envolvidos em incidentes com morte. Os outros dois eram os “administrativos”: trabalhavam em bairros com alto índice de letalidade policial, mas nunca se envolveram em nenhuma ocorrência com letalidade.

Na rua, a sensação permanente é de “matar ou morrer” Durante as entrevistas, era difícil para os policiais explicarem o motivo da letalidade. O sentimento de cumprimento do dever, de realização da missão a todo custo é algo extremamente forte entre eles. “Em um instante, o PM deve avaliar a situação e o nível de perigo do sujeito, qual armamento ele usa e quantas pessoas podem se machucar. É uma fração de segundos para decidir, e ele opta, geralmente, pela ação que causará menos vítimas, por isso o discurso de fazer sua obrigação e proteger o maior número de civis”, explica Miguel Ângelo. No entanto, em razão do aumento do poder de fogo da criminalidade e do crescente nível de violência dos casos, o policial já vai preparado para usar a letalidade se preciso, pois

a sensação é de “matar ou morrer”. Até mesmo a forma como chega a ocorrência influencia. Algumas vezes, os relatos indicam grande gravidade, preparando o PM para agir de uma forma mais agressiva. Em entrevista, os policiais envolvidos em casos letais alegam legítima defesa. “Esse argumento jurídico muda um pouco do modo como o conhecemos. Teoricamente, para ser usado, seria necessária uma reação do agressor, mas, para os policiais entrevistados, a ação dos criminosos já coloca em risco várias vidas, justificando o uso da defesa ao mínimo sinal de resposta. Eles acreditam que esse aparato está relacionado ao seu posto de representantes do Estado e defensores da sociedade”, avalia o pesquisador.

Miguel ainda verificou o olhar sobre o infrator, tomando por base a Teoria do Homo Sacer, de Giorgio Agamben, que aponta para as pessoas consideradas descartáveis socialmente. O olhar, tanto de policiais quanto de civis, é de que essas seriam mortes sem consequências para a sociedade. A própria escala de defesa ensinada na corporação passa uma noção de valor social: o principal é o PM garantir a sua integridade, depois, a dos sujeitos ao redor e, por último, a do agressor. “Atualmente, para muita gente, essas mortes são benéficas. Daí surge o discurso ‘bandido bom é bandido morto’, legitimando a violência policial como forma de combate ao crime e colocando esses indivíduos como pessoas à par-

te, que podem ser retiradas do convívio social”, observa Miguel Ângelo Corrêa. O sentimento de dever, relatado pelos entrevistados, levantou a questão sobre como a polícia forma seus profissionais. Miguel Ângelo conta que a educação do PM possui um viés humanizado, de respeito ao cidadão, mas algumas disciplinas reforçam a ideia de combate, mesmo de forma velada. Para ele, esse ideal faz parte da cultura da corporação. “O dever de cumprir a missão a qualquer custo, mesmo que seja usando a letalidade, é algo da corporação, não do indivíduo. Então, ocorre uma institucionalização dos saberes dos policiais que estão começando, cimentando essa ideologia”, esclarece o pesquisador.


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Soure

Educação de qualidade para todos Projetos de extensão atendem a comunidades no Marajó ACERVO DO PESQUISADOR

Renan Monteiro

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Estado do Pará conta com mais de 550 mil analfabetos a partir dos 15 anos de idade, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O dado não é espantoso se percebermos que, na maioria das escolas públicas paraenses, a evasão escolar, a desvalorização dos professores e a estrutura precária são comuns. No município de Soure, na Ilha do Marajó, a Universidade Federal do Pará criou dois projetos de extensão, com o objetivo de suprir parte da demanda por educação de boa qualidade. Alfabetizar para Libertar e Cursinho Popular da UFPA: a educação como agente social e formativo são coordenados, respectivamente, pela bibliotecária Camila Brito e pelo professor Adriano Biancalana. O primeiro foi iniciado em setembro de 2017 e finalizado em julho deste ano, cumprindo o papel de alfabetizar adultos e crianças da região. O segundo

projeto, iniciado em 2016, atende tanto aos jovens que estão cursando o último ano do ensino médio quanto aos que já concluíram. O Alfabetizar para Libertar, expressão de Paulo Freire em seu livro Pedagogia do Oprimido, atendeu, inicialmente, a alunos de baixa renda, na faixa etária entre 25 e 56 anos. Alguns haviam estudado apenas o nível fundamental e outros não sabiam ler ou escrever. Passados alguns meses, tiveram início as ações de reforço escolar com crianças de Soure e da zona rural. O projeto contou com bolsistas e voluntários que ministravam as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, no horário noturno para os adultos e no horário vespertino para as crianças. ‘’É um trabalho intenso e gratificante ver que a

educação ainda é a melhor saída para quem não possui o mínimo para sobreviver’’, afirma a coordenadora Camila Brito. O Cursinho Popular da UFPA está na sua terceira edição. Inicialmente, eram ministradas aulas de Física e Biologia. Ao longo dos meses, vieram novos voluntários, e, hoje, o cursinho oferece todas as disciplinas. Quem ministra as aulas são universitários do Campus de Soure/ UFPA e do Campus UEPA/Salvaterra.

“Desde que ingressei na UFPA, tive vontade de montar um projeto como esse. Sempre estudei na escola pública e fiz um cursinho semelhante na minha época de pré-vestibular. Tivemos cerca de 100 inscritos nos últimos dois anos, por isso foi preciso aplicar uma prova de seleção e fazer uma análise socioeconômica. Os mais carentes são nossa prioridade’’, explica o professor Adriano Biancalana.

“Estudar pra quê? Já estou velho pra isso!” Durante a execução dos projetos, seus coordenadores identificaram problemas que dificultavam os seus trabalhos. Camila Brito explica que encontrou resistência na alfabetização, principalmente dos mais velhos. “Estudar pra quê? Já estou velho pra isso!” era uma exclamação comum. “Foi difícil contornar essa situação e fazê-los enxergar a importância dos estudos em qualquer idade. Para instigar as pessoas, fizemos um mutirão explicando o que era o projeto”, lembra a professora.

Mas a principal dificuldade é a falta de recurso financeiro. “A maioria dos editais não prevê gastos com equipamentos e materiais de consumo. Muitas vezes, retiramos do nosso almoxarifado ou até mesmo do nosso próprio bolso”, desabafa. Na sua experiência com o Projeto Cursinho Popular da UFPA, o professor Adriano Biancalana percebeu que o nível educacional da região é baixo, e alguns apresentaram dificuldade em acompanhar as aulas. “Muitos tiveram um ensino médio precário. Enquanto uns

estão relembrando, outros estão tendo contato pela primeira vez com os conteúdos. Também há uma grande diferença de idade presente em sala de aula. Temos uma mãe e um filho que fazem o cursinho popular juntos, por exemplo”, relata. Francenilde Moraes concluiu o ensino médio em 2011, fez o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) duas vezes e não foi aprovada. Em 2017, se inscreveu e foi selecionada pelo projeto. A estudante foi aprovada em primeiro lugar no curso de Licenciatura Integrada em Ciências, Matemática e Lingua-

gens na UFPA Campus de Soure. “O Cursinho Popular mudou minha vida educacional. Tenho certeza de que, sem esse auxílio, eu não conseguiria entrar em uma universidade”, afirma. Questionado sobre o futuro do Cursinho Popular, o professor Adriano afirma que é “incerto”, pois a sua continuidade depende do apoio institucional. Já sobre o Projeto Alfabetizar para Libertar, finalizado recentemente, Camila Brito diz que é necessário que ele seja ofertado em outros locais, como nas comunidades quilombolas da região.


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Inclusão

Um jogo de memória especial Pesquisadores desenvolvem jogos para crianças com deficiência Renan Monteiro

P

ara quem não sabe, tecnologia assistiva é uma área de conhecimento e produção de técnicas voltadas para a autonomia, a qualidade de vida e a inclusão social de pessoas com deficiência. Na prática, essa tecnologia promove maior independência, permitindo que essas pessoas realizem tarefas consideradas difíceis. Na realidade amazônica, a tecnologia assistiva é, em alguns casos, incentivada por órgãos públicos e praticada nas universidades. Um exemplo disso é o Projeto de Pesquisa do Instituto de Ciências Exatas e Naturais da UFPA Primeiros passos da comunicação por meio de computador para crianças com deficiência. O público-alvo do projeto são crianças com dificuldades moto-

ras, de comunicação e inexperientes no uso dos recursos eletrônicos (computadores, tablets e smartphones). Desde 2017, a pesquisa está sendo elaborada no Abrigo Especial Calabriano e na Unidade de Referência Especializada em Reabilitação Infantil, em Belém, nas quais são atendidas crianças com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, paralisia cerebral, transtorno do espectro autista, entre outras especificidades ligadas à dificuldade na comunicação. Nesse projeto, foi criado um jogo de memória com configurações diferenciadas e adaptadas para as crianças com deficiência. O jogo utiliza a ferramenta VoxLaps, um vocalizador gratuito e em português, desenvolvido para tablets que utilizam o sistema operacional Android.

Essa ferramenta transporta para os aparelhos um mecanismo de fala com todas as letras do alfabeto, números e palavras que podem ser verbalizados. A professora do Instituto de Ciências da Natureza (ICEN) e coordenadora do projeto, Marcelle Mota, explica como se deu o desenvolvimento do jogo. “As crianças do abrigo sentiram dificuldade de lidar com o VoxLaps, porque tem muita funcionalidade. Normalmente, essas crianças são de baixa renda e não têm hábito de utilizar aparelhos eletrônicos. Então, passamos a trabalhar em algo que despertasse o interesse das crianças e fosse fácil de usar: um jogo de memória. A ideia inicial era fazer com que elas aprendessem a usar o jogo para, depois, usar o VoxLaps”, explica.

Configuração personalizada é diferencial Caio Carvalho e Gabriel Escudeiro estão concluindo a Graduação em Ciência da Computação e fazem parte do projeto. Eles explicam que as configurações do jogo foram elaboradas para facilitar o uso por crianças com diversas deficiências. Uma das características mais importantes é a capacidade de

personalizar essas configurações, seja adaptando o tempo em que as cartas ficam viradas para cima (antes de o jogo começar), seja modificando as cores do fundo da interface e das cartas. “A personalização do jogo é importante, porque, assim, os terapeutas saberão escolher qual a

melhor para cada criança. As cores podem influenciar um paciente com deficit de atenção e prejudicar o seu aprendizado. Por outro lado, essas mesmas cores podem ser necessárias para uma criança com baixa visão, fazendo-a manter o foco nos pares de cartas exibidos no jogo”, explica Gabriel Escudeiro.


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O jogo tem uma multiplicidade de maneiras de expressar os significados. A palavra camisa, por exemplo, pode ser exibida em linguagem textual, imagética ou sonora. Também é possível criar um jogo de memória com cartas específicas. “Podemos usar fotos da família (pai, mãe e irmãos) para criar um jogo que motive

a criança a brincar no tablet”, exemplifica a professora Marcelle Mota. O jogo deve ser completamente desenvolvido até o final do ano e será disponibilizado para download gratuito em computador, tablet ou celular. Para o computador, algumas funções serão adaptadas. “A versão do computador de

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mesa poderá ser usada por crianças sem movimento nos membros superiores, usando o rastreamento de cabeça: com uma webcam e com o movimento da minha cabeça, o ponteiro do mouse é acionado. Para clicar nas cartas, basta parar o ponteiro por dois segundos em cima da carta desejada”, explica a professora Marcelle.

Testado e aprovado por profissionais do abrigo Os profissionais do Abrigo Especial Calabriano avaliaram a funcionalidade do jogo testando os principais recursos do aplicativo, como os botões, os menus e as configurações. Os profissionais elogiaram a ideia de personalização das configurações. Uma crítica construtiva foi em relação à interface do aplicativo, para melhorar o menu e os botões do jogo. “Queremos adicionar um recurso para que os profissionais possam compartilhar entre si os temas e as configurações personalizadas. Outra ideia é colocar o sistema de perfil, tanto de profissionais quanto de crianças. O perfil do profissional armazenará os perfis das crianças com seus temas específicos. Já o perfil do paciente trata as estatísticas das suas partidas, ajudando o terapeuta a avaliar o que ajudou ou atrapalhou a criança”, planeja Gabriel Escudeiro. Intercâmbio – Kelly Pinheiro é terapeuta ocupacional no Abrigo

Especial Calabriano e colaboradora do projeto do ICEN. Passando um ano e meio na França, a terapeuta visitou instituições semelhantes ao abrigo em que trabalha em Belém. Nessas visitas, Kelly percebeu a utilização de aplicativos semelhantes no atendimnto a pessoas que apresentam deficiências. Ao voltar para o Pará, a terapeuta teve contato com a professora Marcelle Mota e, assim, surgiu o interesse em desenvolver os jogos. “A proposta é que, no futuro, nós possamos desenvolver uma quantidade de jogos pensando em uma plataforma disponibilizada pela UFPA, com temas voltados para a nossa realidade, com desenhos e imagens da nossa região”, ressalta Kelly Pinheiro. A memória é uma área cognitiva na qual as crianças do abrigo têm grande dificuldade. Estimular a memória promove uma série de melhorias no desempenho dessas crianças. “Nós temos observado melhorias no comportamento e

desempenho de quem utiliza o jogo, mas isso ainda precisa ser mensurado e medido. Por enquanto estamos em uma área observacional. Há crianças com as quais eu comecei usando dois pares de cartas, e elas apresentavam dificuldade. Hoje, elas já conseguem jogar com nove pares, sem nenhuma dificuldade e em um tempo mais curto”, relata Kelly Pinheiro. Para a equipe do projeto, o aplicativo e a tecnologia assistiva são ferramentas importantes para potencializar o desempenho da pessoa com deficiência, pois é uma forma de suprir a limitação que o próprio meio estabelece para essa pessoa, diminuindo obstáculos e dificuldades. Nesse sentido, o Laboratório de Visualização, Interação e Sistemas inteligentes (LABVIS-UFPA), em que a pesquisa está sendo elaborada, tem projetos voltados para o desenvolvimento de tecnologias assistivas, buscando promover a inclusão de modo mais amplo na sociedade. FOTOS REPRODUÇÃO

Terapeuta poderá personalizar a configuração do jogo, como as cores de fundo e o tempo em que as cartas ficam viradas para cima.


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Memória

Um salto histórico qualitativo Há 45 anos, experimentos alemães impulsionaram o curso de Física Walter Pinto

U

m artigo publicado no volume 40 da Revista Brasileira de Ensino de Física, assinado pelos professores Luís Carlos Bassalo Crispino e Victor Façanha Serra, reconstruiu um dos momentos mais importantes da história do ensino da Física na Região Norte. Trata-se do processo de instalação de experimentos, provenientes da Alemanha, no Laboratório de Física da UFPA, em 1973, que o equiparou, na época, aos laboratórios das mais importantes universidades brasileiras, conforme observação do então reitor Clóvis Malcher. Como ressalta Victor Serra, o Norte do Brasil era uma região ainda muito remota no contexto nacional, até então ligada longitudinalmente ao Sul por uma única rodovia, a Belém-Brasília. No ano anterior, para reduzir esse quase isolamento, o governo ditatorial do general Garrastazu Médici havia inaugurado uma outra rodovia, a Transamazônica, embora nem todos os trechos estivessem concluídos, ligando a Amazônia transversalmente ao Nordeste brasileiro.

“A própria Universidade Federal do Pará ainda era uma instituição bastante recente, contando não mais que 16 anos de vida. O primeiro vestibular para Licenciatura em Física fora realizado há apenas oito anos. Tudo era muito incipiente”, recorda Serra. É neste contexto que, por meio de um convênio entre Brasil e Alemanha Ocidental, intermediado pelo então Conselho Nacional de Pesquisas e pelo KernForschungs Anlage (KFA), a UFPA recebeu o conjunto de experimentos que iria impulsionar o ensino de graduação em Física, além de oportunizar a capacitação, por meio de treinamento, dos docentes da área. No ano anterior, a Alemanha enviou ao Brasil Heinz S. Räde, para uma série de visitas às Universidades Federais do Pará, do Ceará, da Bahia e de Santa Catarina, que também receberiam equipamentos alemães. As observações de Heinz sobre as condições do pioneiro laboratório de Física da UFPA constam do artigo assinado por Crispino e Serra. O acervo pioneiro era composto por equipamentos oriundos da antiga Escola de Engenharia. Ainda nesta fase imediatamente anterior à chegada dos equipa-

mentos, os professores Orlando José de Carvalho de Moura e Leopoldino dos Santos Ferreira, por indicação de José Maria Filardo Bassalo, foram enviados à Alemanha, no primeiro semestre de 1973, para realizar um estágio na KFA, quando receberam instruções sobre os equipamentos. Lá, eles participaram de atividades experimentais envolvendo Eletrônica, Física Moderna, técnicas de vácuo, holografia e baixas temperaturas. Eles estiveram no Centro de Pesquisa de Julich, localizado em Colônia, cidade da Renânia do Norte-Vestefália. Logo após o retorno de Moura e Leopoldino, os equipamentos alemães chegaram a Belém, transportados por via área. Em seguida, chegaram cinco técnicos de Julich para a montagem dos experimentos e para a realização de treinamento aos demais professores do Laboratório de Física da UFPA, conforme pesquisa realizada por Carlos Crispino em correspondência e na imprensa paraense. Quando em pleno funcionamento, os experimentos ficaram sob a supervisão dos dois professores da UFPA por um período de seis meses, cabendo a Moura a chefia do Laboratório de Radiações; e a Leopoldino, a do de Física Moderna.

Especialistas elaboram Roteiro de Experiências

À direita, alguns dos equipamentos alemães instalados na UFPA, na década de 1970, que ainda estão em funcionamento no Laboratório de Física, no Campus Guamá.

A chegada dos experimentos alemães na UFPA também trouxe a Belém os físicos Carlos Lima, Ademar Silveira Aragão e Francisco Rogério Fontenele Aragão, docentes da Universidade de Brasília, instituição já dotada de equipamentos semelhantes. Eles se uniram ao mineralogista alemão Thomas Scheller, então professor visitante do antigo Núcleo de Ciências Geofísicas e Geológicas da UFPA, para a produção de um Roteiro de Experiências, que foi utilizado durante o curso de Física Experimental, nome que designou o treinamento, dividido em Física Geral I, Física Geral II, Mecânica,

Eletricidade e Magnetismo e Vibrações e Ondas. Segundo relato de Crispino e Serra, “uma das principais dificuldades relacionadas à utilização dos equipamentos alemães consistia no fato de que os manuais originais estavam em língua inglesa. Coube a Scheller e à professora Carmelina Kobayashi iniciarem a tradução e a adaptação para o português”. O trabalho foi, no entanto, suspenso com o retorno do professor alemão ao seu país. Enquanto esteve em Belém, Scheller atuou em aulas práticas, realizou a manutenção dos equipamentos e orientou monitores.

Passados 45 anos de sua chegada, alguns dos equipamentos ainda estão em operação, como é o caso do experimento para verificação da relação carga-massa do elétron e os tubos com gases acoplados à Bobina de Ruhmkorff, utilizados na disciplina “Laboratório Especial”, no curso de Graduação em Física da UFPA. Crispino e Serra informam no artigo que, “com o passar dos anos, devido principalmente à dificuldade de obtenção de peças de reposição, grande parte dos equipamentos trazidos da Alemanha na década de 1970 deixou de ser utilizada nas aulas práticas de Física, da UFPA”.


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FOTOS ALEXANDRE DE MORAES

Recentemente, por ocasião das homenagens em torno dos 60 anos da UFPA, aqueles equipamentos fizeram parte de uma exposição. Segundo os autores do artigo, “a intenção futura é que, dada a sua importância histórica, os experimentos sejam colocados à mostra para o público em um mobiliário apropriado, acondicionado em uma sala destinada a esse fim, no Laboratório de Física-Ensino, no Campus do Guamá, ou em outro local, seguindo o exemplo de outras universidades do mundo afora, como no Dipartimento di Fisica, do Istituto Fisico Guglielmo Marconi, da Universidade La Sapienza, em Roma, Itália, ou da coleção de instrumentos científicos e didáticos de Física do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, em Portugal”.

Artigo resgata momento importante para alunos e professores da UFPA Quando os experimentos alemães chegaram, o professor Victor Serra era um jovem estudante, representante discente no Colegiado do Curso de Física. Ele acompanhou de perto o processo de qualificação docente para operar os equipamentos, tendo participado do curso ministrado pelo professor Carlos Lima. Para ele, aquele foi um momento histórico, além de inusitado. “Você está numa universidade setentrional, no extremo norte do País, em um curso instalado recentemente. Então, de repente, chega um laboratório com equipamentos de ponta, que não deviam a nenhum outro de universidades de maior expressão nacional. Isso é um fato inusitado, muito importante e digno de se destacar na história”, lembra o professor. Para ele, que marcaria as próximas décadas por uma extrema dedicação ao laboratório, do qual é o chefe, os experimentos alemães possibilitaram à área de Física dar um salto bastante expressivo em termos de excelência, porque o que era ensinado aos estudantes da Graduação em Física da UFPA era o mesmo que se ensinava nas universidades de ponta do País, como nas Universidades de Brasília, São Carlos e Santa Catarina, por exemplo. “O laboratório foi dotado com quase tudo que existia de importante em Eletrônica e Mecânica no âmbito de um curso superior. Sem esses equipamentos seria mais difícil aos alunos entenderem os cálculos de movimento de inércia, relacionados à Física Clássica, ou coisas da Física Moderna, como o cálculo da constante de Planck e a experiência de Franck-Hertz, por exemplo. Lembro que cheguei a ver aqui, no laboratório, como um holograma se forma”, relata o professor. O artigo Gênese do Laboratório de Física da Universidade Federal do Pará foi não só um momento de reconstrução do processo de chegada, instalação e uso dos experimentos, mas também um resgate histórico da memória dos professores e das pessoas que participaram daquele evento tão importante para o ensino de Física, no Pará.


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ReSeNHA Livros de leitura e civilidade europeia Walter Pinto

R

esultado de uma pesquisa desenvolvida como tese no Programa de Pós-Graduação em Educação, da UFPA, a obra Livros escolares de leitura da Amazônia: produção, edição, autoria e discursos sobre educação de meninos, civilidade e moral cristã, de Raimunda Dias Duarte, concentra boa parte de sua atenção à análise do “Compêndio de civilidade cristã”, escrito pelo bispo Dom Macedo Costa, que tinha por objetivo transformar a criança para o mundo civilizado. O Compêndio do bispo, que enfrentou a maçonaria e marcou época na história do Pará, foi publicado pela primeira vez em 1880. Trinta e cinco anos depois, houve uma segunda edição. A leitura que a pedagoga Ray Duarte faz dele reforça o entendimento de que a sociedade paraense da virada do século, até quando se preocu-

pava com a educação infantil, aspirava a um modelo civilizatório europeu, como ressalta Carlota Boto, professora de Filosofia da Educação da USP, na apresentação do livro. O Compêndio de civilidade Cristã é uma das obras analisadas pela autora enquadradas como livro didático de leitura sobre a Amazônia, ou seja, trata-se de livros, produzidos na região, entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, voltados para o ensino da leitura na educação primária. A autora procedeu a um levantamento dos livros de leitura no catálogo de obras raras da Biblioteca Pública Arthur Vianna, em sebos virtuais e nas obras de autores como Theodoro Braga e Eidorfe Moreira, encontrando 142 obras de diferentes gêneros discursivos. Autores como Alberto Pimentel (vinte

títulos), Marques de Carvalho (onze), Juvenal Tavares (nove), Raul de Azevedo (nove) e Eustachio de Azevedo (oito) estão entre os mais férteis autores do recorte definido pela autora. Ray Duarte observa que, dos 142 livros de leitura compilados, 126 pertencem ao gênero literário, número correspondente a 88% do total. “Muitas destas obras literárias paraenses não visavam, originalmente, ao contexto escolar, sendo utilizadas para o deleite, a fruição e a ampliação do contato do leitor com o mundo, não podendo ser caracterizadas como livros didáticos. No entanto os editores, ao destinarem esses textos literários à escola a fim de auxiliar o processo de ensino de disciplinas escolares, tornaram-nos livros didáticos”, explica. Dividido em cinco capítulos, o estudo de Ray Duarte, que é professora do Campus de Abaetetuba da UFPA, dedica o primeiro às questões de teoria e método. A base teórica apoia-se na Análise Dialógica do Discurso, postulada pelo Círculo de Bakhtin, e na História cultural, que tem, entre as principais referências, o historiador francês Roger Chartier. O capítulo é construído como um diálogo entre os dois autores, conduzido por meio da percepção da autora, que faz questão de explicitar que os discursos representados no objeto de estudo não a eximem de deixar as suas impressões no trabalho. No segundo capítulo, a obra reconstrói a história do livro didático no Brasil, dentro do recorte que vai do Império à República. Observa-se que o caráter nacionalista que impregnou a França no século ALEXANDRE DE MORAES

XVIII, por meio da ideologia Iluminista, se faz notar no Brasil no final do século XIX, quando os intelectuais brasileiros defenderam um “livro didático brasileiro pelo assunto, pelo espírito, pelos autores trasladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime”, como expressou o crítico José Veríssimo nas páginas de “A educação nacional”. A vida e a obra de Antonio Macedo Costa e sua contribuição intelectual à educação do Pará são estudadas no terceiro capítulo. O leitor se familiariza com o bispo ultramontano baiano que marcou época no Pará por suas posições polêmicas, que buscavam demarcar a autonomia da Igreja na esfera dos negócios eclesiásticos. Dom Macedo escreveu seis livros, entre eles: “Deveres da família”, “Amazônia: meio de desenvolver sua civilização” e o “Compêndio de civilidade cristã”, que a autora analisa no quarto e no quinto capítulos, sob a ótica dos discursos inscritos como objeto físico e como texto. A autora defende a tese de que os discursos construídos sobre a civilidade que ordenavam a educação de meninos paraenses, segundo o Compêndio do bispo, “são atravessados por uma ideologia que legitimava as ideias defendidas pela elite brasileira, tencionando imprimir nos meninos uma ideia de civilidade que valorizava a produção cultural importada da Europa”, numa tentativa de afastá-los dos usos e costumes da cultura paraense. Serviço: Livros escolares de leitura da Amazônia: produção, edição, autoria e discursos sobre educação de meninos, civilidade e moral cristã. Autora: Raimunda Dias Duarte. Ed. Pontes Editores. 365 páginas. Venda direta com a autora (rayduarte@ufpa.br).


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A Histรณria na Charge

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