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ISSN 1982-5994

UFPA • ANo XXXII • N. 144 • AGoSTo e SeTeMBro de 2018

Pesquisadores analisam nova espécie de pupunha Conhecida como branca ou albina, ela é rica em fibras e tem sabor suave. Página 5 Nesta edição • Previdência no Brasil • O mapa de Nimuendajú • Fertilização in vitro


UNiVeRsidade FedeRaL do PaRÁ JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Armando Ribeiro, Nicole França e Renan Monteiro (Bolsistas); Walter Pinto (561-DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes e Nayana Batista (bolsista) Fotografia da capa: Nayana Batista (bolsista) Ilustrações: Walter Pinto Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: Elielson Nuayed, José dos Anjos Oliveira e Júlia Lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Agosto e Setembro de 2018

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Rômulo Simões Angélica Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitora de Relações Internacionais: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Raimundo da Costa Almeida Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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esmo sendo crimes previstos em lei, as denúncias por racismo e injúria racial não param de crescer. Esta edição traz três textos que abordam o assunto com diferentes perspectivas: o artigo da professora Jane Felipe Beltrão explica o que é o racismo e quais as suas consequências; em entrevista, Israel Hounsou nos conta sobre as dificuldades de ser um estrangeiro no Brasil; a reportagem Identidade e Preconceito apresenta os resultados da dissertação do psicólogo Robenilson Barreto sobre o impacto que o preconceito tem na vida das pessoas negras. Do laboratório de Ciências dos Alimentos da Faculdade de Nutrição chegam boas notícias. A pesquisadora Orquídea Vasconcelos dos Santos está investigando as propriedades da pupunha albina e garante que a novidade tem potencial para ganhar o mercado com seu sabor suave e marcante. Leia também: os resultados das políticas de desenvolvimento nas praias do nordeste paraense; as causas mais comuns para as falhas nos procedimentos de fertilização in vitro; com a produção de remédios artesanais, o Grupo Erva Vida coloca Marapanim no roteiro do turismo aliado à saúde; o Mapa Étnico-Histórico de Nimuendajú ganha nova versão impressa e on-line em trabalho coordenado pela UFPA e pelo IPHAN. Rosyane Rodrigues Editora

Nesta Edição Racismo & Enfrentamento ...............................................4 Pronta para ganhar o mercado ..........................................5 Grandes destinos no Pará ................................................6 Previdência: a quem interessa a crise? ................................8 O desconforto de ser estrangeiro ..................................... 10 Identidade e preconceito . ............................................. 12 Turismo aliado à saúde . ................................................ 14 Fertilização in vitro ..................................................... 15 De volta ao mundo da ciência ......................................... 16 Novas leituras do lazer ................................................. 18

Foto Alexandre de Moraes


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Racismo & Enfrentamento

racismo é massacrante. Ouvir que ofensas e humilhações correspondem a brincadeiras ou piadas causa aos/às ofendidos/as profunda indignação, revolta a cidadã ou o cidadão que respeita a diversidade social e se pauta por atitudes plurais. É preciso se interrogar quem responde pela humilhação que os/as discriminados/as sofrem? Quem se dá conta da ofensa sofrida, da discriminação étnico-racial que afasta e tenta condenar as pessoas diversas que conquistaram, galhardamente, espaços que, antes, lhes eram vedados, como a UFPA? Pessoa alguma, por motivo nenhum, merece ser aviltada em sua identidade, em sua pertença étnica e, sobretudo, em seus direitos – como humanos e cidadãs/cidadãos que são de fato e de direito – sem deixar de ser quem são, como diz Marcos Terena, quando se refere a indígenas. O que é racismo? Há muitas definições, mas, para compreender as atitudes classificadas como racistas, é necessário pensar em relações de poder que oprimem, fundamentadas em diferenças, as quais, tomadas como desigualdades, alimentam o preconceito e a discriminação, como se existissem humanos superiores e inferiores. Diferenças relativas à cor da pele, à aparência física não nos tornam inferiores ou superiores. Revire pelo avesso seu pensamento, assim como um exercício. Estamos trabalhando, alguém adentra a sala e, sem motivo, começa a detratar a pessoa que nos recepciona, dizendo: “Que anta!” Momento seguinte, as pessoas ficam paralisadas, confusas. Umas reagem, outras não, algumas saem de fininho. O conflito está instaurado!

A atitude é não apenas desrespeitosa, mas também é racista, especialmente se a pessoa ofendida é negra ou indígena. É evidente que os/as trabalhadores/ as merecem respeito, como qualquer cidadão/cidadã. Embora a anta seja considerada um dos animais “mais inteligentes” da floresta, por sua habilidade, em bom português, chamar alguém de anta é sinônimo de estupidez, falta de inteligência. Portanto a atitude levando em conta a ofensa seria racista, pois inferioriza o/a ofendido/a e é politicamente inaceitável. No Brasil, chamar alguém de anta, marmota, macaco, rato, vaca, entre tantos outros, ou compará-lo/a a um animal – macho ou fêmea, possui alto poder ofensivo. Na verdade, são gírias, ou seja, linguagem informal que contém expressões metafóricas, supostamente jocosas, usadas para se referir às pessoas. Entretanto, ao comparar pessoas com animais, se retira a condição de humano que existe em nós. E, ao se atribuir características de não humanos a pessoas humanas, comete-se grave ofensa e, dependendo do animal, a situação ganha maior proporção. É preciso lembrar que o racismo devastou povos inteiros, disseminou o genocídio contra povos indígenas no chamado Novo Mundo; promoveu a diáspora de africanos/as, deslocando-os para outros continentes como escravos, e o holocausto dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Muitas outras situações podem ser computadas ao racismo, e as atitudes racistas não significam apenas retirar os sujeitos/as de direitos de seus lugares originais e espancá-los/as, retirando-lhes a vida. Há outras formas de opressão, e uma delas é a linguagem opressora, que remete ao passado e contém ódio que envenena e mata socialmente cada cidadão/ã ofendido/a. A presença de africanos/as, indígenas e quilombolas entre outros grupos diferenciados étnica e racialmente, na Universidade Federal do Pará, é uma conquista que esparrama raízes na justiça social, como tentativa de reparar a exclusão secular que o colonialismo nos deixou como herança, a qual podemos classificar de maldita. Ser, viver ou estar da/na Amazônia que sofre com o colonialismo interno e ser racista é desafiar a possibilidade de crescer, socialmente, dentro de padrões justos, democráticos e plurais. Não precisamos imitar norte-americanos ou europeus que rejeitam os/as refugiados/as, prendendo-os/as ou evitando que aportem em suas terras. Praticar a justiça e a pluralidade é a ordem do dia para respeitar a diversidade e alcançar a democracia. Diga não ao racismo. Jane Felipe Beltrão é antropóloga, docente dos programas PPGA/IFCH e PPGD/ ICJ. janebeltrao@gmail.com NAYANA BATISTA


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Nutrição

Pronta para ganhar o mercado ALEXANDRE DE MORAES

Armando Ribeiro

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uando se pensa em pupunha, existe um conjunto de características que vem à cabeça do paraense, como o cheiro, a aparência e a cor. Esse alimento tem um espaço privilegiado na cultura local, sendo consumido a qualquer hora do dia, com os mais diversos acompanhamentos, ainda que a combinação preferida seja pupunha com o cafezinho da tarde. Além de muito popular, o fruto possui vários compostos que beneficiam a saúde, tornando-o valioso para o campo nutricional. Ao se deparar com a pupunha albina, a professora Orquídea Vasconcelos dos Santos se questionou: como surgiu essa mutação? Ela possuiria as mesmas propriedades e os atribu-

tos das pupunhas tradicionais? Assim surgiu o Projeto Análise comparativa da constituição nutricional e funcional da polpa e casca da pupunha vermelha e da pupunha albina (Bactris gasipaes kunt), que verifica os produtos e os subprodutos dessa oleaginosa amazônica, como óleos, casca e farinha, de maneira a valorizá-los nos sentidos social, comercial e ambiental. A pesquisa é desenvolvida no Laboratório de Ciências dos Alimentos da Faculdade de Nutrição (ICS/UFPA). A bioquímica relata que a importância de pesquisas com essa vertente está na visibilidade dada aos produtos amazônicos, “nós queremos entrar no dia a dia do paraense e procurar formas de fazer a diferença com produtos que essas pessoas utilizam no seu cotidiano.” Já

Estudo aponta benefícios da pupunha albina

para a graduanda de Nutrição e bolsista da pesquisa Pamela Sodré, o estudo vai contribuir para a relação dos profissionais da área com os seus pacientes. “Por ser muito consumido na nossa região, é essencial conhecermos as potencialidades do fruto e, assim, orientarmos sobre os benefícios de seu consumo”, afirma a bolsista. Como o nome sugere, a pupunha albina possui a coloração branca, bem diferente das cores com as quais estamos acostumados. A descoberta é recente, tendo sido pouco estudada até o momento. De acordo com a coordenadora do projeto, pela aparência, já é possível perceber que o fruto perdeu vitamina A, pois esse composto é responsável pela característica cor avermelhada. Além disso, o óleo da pupunha

branca também sai perdendo em comparação com as outras, pois possui entre 10 e 15% a menos de teor lipídico. Esse aspecto faria a albina pouco competitiva. Em compensação, o seu valor de fibras é maior do que o das outras espécies. Quanto ao sabor, a pupunha branca é mais suave. Palome Sobré chama atenção para o potencial do fruto para fazer farinha, já que é rico em amido. “Quando misturamos com outras comidas, o sabor não se perde, pelo contrário, se acentua. Nada vai tirar o hábito de comermos as pupunhas vermelhas, mas se a branca fosse para o mercado como farinha, acho que teria uma boa aceitação. É um fruto gostoso, fora do que estamos acostumados. Tem um sabor só seu”, observa a estudante.

Resultados foram compartilhados com a comunidade A metodologia utilizada na pesquisa foi a do padrão internacional, para que os artigos desenvolvidos possam ser divulgados em âmbito nacional e internacional. Na análise das pupunhas, foi realizado um delicado trabalho de lavagem, secagem e cozimento, para se igualar à forma como são ingeridas pelo consumidor. “Precisamos tomar o máximo de cuidado, porque qualquer erro pode fazer com que elas percam os componentes sensíveis. Evitamos trabalhar com

altas temperaturas e metais que podem oxidá-las, então até as bandejas em que as pupunhas ficam devem ser de vidro ou cobertas com tecido de algodão”, explica a professora Orquídea Vasconcelos dos Santos. A coordenadora do projeto informa que utilizar frutos como a pupunha é uma forma de preservar o meio ambiente, já que, para se obter o fruto, não é preciso derrubar a árvore. “Quando uma árvore se mantém de pé, é uma comunidade que vai poder se fixar no terreno

e manter sua fonte de vida”, afirma Orquídea. A pupunha branca é obtida em parceria com a Comunidade Quilombola do Abacatal. Nesse contato, a professora pôde constatar que, para os vendedores, a mutação era algo sem valor, considerada um defeito. As pupunhas brancas eram vendidas a um preço mais baixo. Nesse momento, Orquídea Vasconcelos percebeu a necessidade de voltar à comunidade e mostrar como a pupunha branca pode ser usada, apontando os diversos

usos que esse fruto pode ter e, com esse uso, pode valorizar os produtos regionais. Para a estudante Pamela Sodré, a necessidade de devolver à comunidade o conhecimento técnico tem mostrado resultados. “Agora, com esse conhecimento, os vendedores poderão explicar os benefícios e as vantagens da pupunha albina para os clientes. O fruto passa por uma valorização, acabando com o estigma de indesejado e melhorando a renda daquelas pessoas”, avalia.


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Turismo

Grandes destinos no Pará Políticas de desenvolvimento em Atalaia, Ajuruteua e Crispim Nicole França

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Em Ajuruteua, a ocupação desordenada é consequência do modelo de desenvolvimento adotado.

a década de 1960, a Amazônia é inserida no modelo de desenvolvimento do governo de Juscelino Kubitscheck (1955-1960), tendo continuidade durante o regime militar (1964-1985) para que houvesse um crescimento da produção industrial e da infraestrutura do País. Na zona costeira do nordeste do Estado do Pará, ocorreu uma expansão que envolveu os aspectos rodoviários, a urbanização e a circulação de capital, além de promover novos mercados como o do turismo. Neste contexto, o pesquisador Adrielson Furtado Almeida elaborou a tese Os efeitos das políticas públicas

de desenvolvimento socioeconômico na zona costeira do nordeste paraense: expansão rodoviária, urbanização e atividade turística. A pesquisa foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA/IG) e contou com o professor Mário Augusto G. Jardim como orientador. A tese buscou analisar como as políticas desenvolvimentistas modificaram os aspectos ambientais, econômicos e sociais das praias Atalaia, em Salinópolis; Ajuruteua, em Bragança; e Crispim, em Marapanim. “O objetivo da tese foi analisar todos os problemas socioambientais e econômicos nas praias selecionadas. Dessa forma, a pesquisa procura ve-

rificar se houve ou não esse desenvolvimento fundamentado nas políticas públicas inseridas nesses três ambientes, em períodos diferentes”, afirma o pesquisador. Na tese, a discussão inicia-se com a formação socioespacial da zona costeira, tendo como marco temporal a década de 1960. “Examinei os fatos históricos desde a chegada dos grupos humanos, há 5.000 anos, a inserção destes no processo capitalista no século XVII (Período Colonial), passando pelas primeiras modificações socioespaciais, na segunda metade do século XX (políticas desenvolvimentistas), até os dias atuais”, explica Adrielson Furtado. ALEXANDRE DE MORAES


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Em 1950, o acesso era por via marítima e fluvial Segundo o pesquisador, até a década de 1950, o principal meio de acesso aos municípios costeiros paraenses era por via marítima e fluvial, já que as vias terrestres eram precárias. Após a conclusão da rodovia Bernardo Sayão (BR-010), também conhecida como Belém-Brasília, esses territórios praieiros de domínio das populações nativas e dos pescadores artesanais passaram a receber interligações por via terrestre como reflexo da expansão rodoviária, que se intensificou no País visando à interligação regional, à colonização, à circulação de mercadorias e de pessoas e,

consequentemente, ao interesse pelo desenvolvimento dessas áreas. Além da criação da rodovia, vale destacar a fundação da Empresa Brasileira de Turismo (Embratur) como um importante fator para o desenvolvimento do turismo no País. “Após a criação da Embratur, em 1966, como estratégia para camuflar a imagem negativa do País provocada pela ditadura militar, em virtude da censura e da violência, o turismo passa a se desenvolver como política pública”, declarou Adrielson Furtado. “Em 1966, após a promulgação do Decreto Lei 3.786/66, a cidade de Sali-

nópolis tornou-se Estância Hidromineral, passando a receber investimento do Estado para infraestrutura e turismo. Nesse período, a ilha do Atalaia começou a receber os primeiros investimentos públicos, baseados na expansão rodoviária, na urbanização e na atividade turística. Assim, as praias de Salinópolis tornaram-se o modelo de desenvolvimento socioeconômico a ser copiado na região litorânea”, explica o pesquisador. Para a pesquisa, Adrielson Furtado entrevistou donos de barracas comerciais e de residências localizadas próximo às praias, durante o

mês de julho, período de alta temporada. Uma das entrevistadas mora na região desde antes da implementação das rodovias e das políticas de turismo em Salinas. “Ela contou que seu pai era pescador. Eles moravam em uma barraca de palha, em cima de um barranco. Certo dia, apareceu um senhor dizendo que era o dono da terra e que eles deveriam sair do local. O pai dela sempre lutou para não sair de lá, onde ela continua morando com a sua família. Essa senhora relatou todas as mudanças ocorridas durante o processo de desenvolvimento”, conta Adrielson.

Urbanização desrespeita legislação e causa prejuízos A pesquisa desenvolveu-se com base na proposição de que os investimentos em políticas públicas (infraestrutura rodoviária, urbanização e turismo) causaram mudanças nas relações sistêmicas dos aspectos ambientais, sociais e econômicos, não apresentando, na atualidade, o desenvolvimento esperado e causando sérios prejuízos aos padrões de qualidade ambiental. Segundo Adrielson Furtado, quando os políticos resolveram investir na expansão e na urbanização, eles não respeitaram a legislação ambiental existente, como o Código Florestal, que proibia a retirada de dunas, a ocupação em áreas de mangue e de restinga (vegetações que ficam próximas à área da praia). O pesquisador afirma, ainda, que, nas décadas de 1970 e 1980, foram criadas outras leis que reforçam as necessidades ambientais, mas elas não impediram que ocorressem problemas como a erosão. Dessa forma, o modelo desenvolvimentista trouxe mudanças ambientais envolvendo, principalmente, a perda da ve-

getação de restinga e de dunas para a instalação de comércios e residências. Desenvolvimento Humano – Na pesquisa, também foram avaliados os indicadores socioeconômicos considerando o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M/PNUMA). Nela, as três áreas em estudo apresentaram IDH-M médio (Salinópolis (0,647), Bragança (0,600) e Marapanim (0,609)). Além disso, também foi avaliado o impacto da urbanização sobre os recursos naturais com base na metodologia GEO Cidades - Matriz PEIR (Pressão-Estado-Impacto-Resposta) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). As principais ameaças e os impactos identificados foram: uso excessivo e contaminação do lençol freático, ausência de serviços públicos, poluição do solo, ocupação das áreas de preservação permanente (APP) e erosão costeira. Para mensurar o desenvolvimento turístico, utilizaram-se os princípios do Índice de Competitividade do Turismo Nacional (ICTN), do Ministério do

Turismo (MTUR/2008). Os resultados apontaram que a ausência de serviços e de equipamento turístico, a não observância dos aspectos ambientais, a qualidade e os meios de acesso comprometem a competitividade das três áreas como destino turístico. “Os investimentos públicos pretéritos não promoveram resultados satisfatórios e causaram sérios prejuízos ambientais, comprometendo as atividades socioeconômicas, o potencial e a competitividade turística. Atualmente, são necessárias as medidas mitigadoras, por parte do poder público, para atenuar as pressões e os impactos gerados por este modelo de desenvolvimento”, afirmou Adrielson Furtado. Para o pesquisador, os resultados da pesquisa buscam referenciar a discussão do poder público, o setor privado e a comunidade local durante a fase de planejamento e a execução de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento local, a fim de evitar maiores prejuízos socioeconômicos e o esgotamento dos recursos naturais existentes no litoral paraense.


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Economia

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Previdência: a quem interessa a crise? Ao longo de sua história, o sistema sempre teve seus detratores Renan Monteiro

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á nos anos 1920, Período Pós-Primeira Guerra Mundial, surgia no Brasil a Lei Elói Chaves. Destinada aos ferroviários, a lei é considerada o marco histórico da previdência social. Governos e décadas depois, foram surgindo diferentes leis e decretos, e outras categorias de trabalhadores foram enquadradas no sistema previdenciário, até a Constituição de 1988, que universalizou o sistema. O desenvolvimento dos direitos previdenciários, em síntese, ocorreu lentamente. Na dissertação Trajetória da Previdência Social no Brasil: Construção e bloqueio da seguridade social a partir de 1988, Mariana Nascimento Oliveira faz uma análise histórica da trajetória da previdência e dos projetos de obstrução desse benefício, pois, apesar dos avanços gerados pelas políticas de cunho social, sobretudo a Previdência, a tese

de inviabilidade econômica sempre acompanhou o desenvolvimento dessas políticas. A pesquisa de mestrado foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia (PPGE/ ICSA), orientada pelo professor José Raimundo Barreto Trindade. “Meu principal objetivo com a pesquisa foi colocar em debate um lado que não é muito discutido: o lado heterodoxo do contexto da previdência social, pois vou contra essa ideia de que a crise previdenciária é urgente. Não nego a necessidade da reforma, mas esse alarde é falso e polêmico. Há uma tentativa de se aproveitar do Estado de exceção que estamos vivendo, para elaborar reformas antissociais com pouco debate e esclarecimento”, defende Mariana Oliveira. A partir de 1950, na Europa e nos Estados Unidos, ocorreu o que alguns autores chamam de “Estado de Bem-Estar Social” (Welfare State) ou “anos dourados do capitalismo”.

Após a Segunda Guerra Mundial, ocorreu um grande descontentamento popular com as condições sociais e de trabalho, estimulando a organização de sindicatos e manifestações e aumentando a pressão sobre os governos. “Essa pressão social, associada às mudanças na ideologia econômica (Keynesiana), nos processos de produção (fordismo) e nas relações de trabalho (assalariada), caracteriza o período Pós-Guerra como um período de grande intervenção estatal, em que o Estado passa a se responsabilizar pela oferta de saúde, educação, previdência e assistência, ao mesmo tempo em que o novo modelo de produção acelerava os ganhos de capital e ampliava o nível de emprego e renda na economia”, destaca Mariana Oliveira. De acordo com a pesquisa, nos Estados periféricos, inclusive o Brasil, o Bem-Estar Social chegou de forma atrasada. Em 1930, no Gover-


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no Vargas, algumas políticas foram desenvolvidas, porém com muitas limitações. Apenas com a promulgação de uma nova Constituição em 1988, conhecida como Constituição

Cidadã, o país passa a experimentar um relativo Estado de Bem-Estar Social, por meio da criação do Sistema de Seguridade Social, abarcando a saúde pública, a previdência social

e a assistência social como propostas de acesso universal e integral, que, em última instância, expressou a tentativa de corrigir a desigualdade social herdada da ditadura militar.

Garantia de redução da pobreza e inclusão social A Seguridade Social (aposentadorias, pensões, seguros desemprego e acidente, e outros benefícios) foi tomando corpo nas últimas décadas não somente pela benevolência do Estado mas também pela forte resistência e insistência da classe trabalhadora, assim como de organizações sindicais e acadêmicas. Um efeito muito importante da previdência social foi o seu funcionamento como um mecanismo de redução significativa da pobreza, de inclusão social e até de financiamento na produção de pequenas propriedades rurais. Conforme o Ministério do Desenvolvimento Agrícola (MDA), a agricultura familiar é responsável por mais de 70% dos alimentos consumidos no País, e a previdência, segundo a pesquisa, atua significativamente como um seguro agrícola, isto é, a agricultura

familiar tem como fundo de financiamento a Previdência Social. “A redistribuição de renda via Previdência Social não somente atende ao direito de um trabalhador incapacitado, seja por velhice, seja por problemas de saúde, de garantir sua reprodução social, mas também opera como um multiplicador de renda na economia, pois as aposentadorias e as pensões são gastas com consumo, fomentando a atividade econômica local”, acrescenta a pesquisadora. De modo geral, desde a construção do Sistema de Seguridade Social, em 1988, existem manifestações de fragmentação e bloqueio da Seguridade Social. Para Mariana Oliveira, um exemplo atual é o recente projeto de reforma previdenciária (PEC 287/2016), que, em última instância, pressupõe o aumento da desigualdade social e da pobreza e

um modelo de trabalho precário, caracterizado pelo aumento da exploração da força de trabalho. Para Mariana de Oliveira, reduzir as políticas sociais no Brasil significa, de certo modo, ampliar o papel da iniciativa privada nas áreas da educação, saúde e previdência, criando novos mercados e ampliando o território de expansão do capital. Nesse sentido, a pesquisadora parte da concepção da previdência pública como um sistema baseado na solidariedade. “Se a existência de um sistema de previdência social é negada, o que resta é a previdência privada, desconsiderando todas as fragilidades e as desigualdades sociais de uma economia periférica. Quem não tem condições de contribuir está sujeito à miséria e ao abandono. Abre-se mão do Estado Solidário em prol de uma economia individualista”, avalia.

Pesquisadora aponta o “falso discurso” do deficit O saldo previdenciário é contabilizado pela diferença do que é arrecadado com as contribuições e o que é gasto com benefícios e, de modo geral, esse resultado tem gerado saldos negativos, indicando um “rombo” nas contas da Previdência Social. Na verdade, segundo a pesquisadora, o deficit se baseia em cálculos parciais, que não cumprem os ditames da Constituição Federal de 1988. Conforme apresenta o art.195 da Constituição Federal de 1988, além das contribuições previdenciárias, existem outros recursos na formação do orçamento da Seguridade, como a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Provisória sobre Movimentação (CPMF), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), além das receitas de concursos e prognósticos. Na pesquisa, foi destacado

que, por meio de cálculos que seguem essas recomendações da Constituição, constatou-se que o Sistema de Previdência e de Seguridade foram superavitários até o ano de 2015, contrariando o insistente discurso de deficit. Os cálculos indicando o superavit são da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), divulgados em 2015. Outro elemento que funciona como fragmentador do sistema de seguridade brasileiro é a Desvinculação de Recursos da União (DRU). Iniciada no governo de Fernando Henrique Cardoso, essa norma permitiu a retirada de 20% na época (30% no governo atual) do orçamento da Seguridade Social. No ano de 2014, por exemplo, foram desvinculados R$ 63,2 bilhões da seguridade por meio da DRU. Além disso, a isenção fiscal e a sonegação também são elementos

que contribuem para a redução do orçamento social. Um ponto conclusivo na pesquisa foi observar que o fato de a Seguridade Social ter um grande orçamento desperta o interesse dos setores financeiros privados, justificando as inúmeras tentativas de reformas na Seguridade Social para reduzir a importância das políticas públicas no plano econômico brasileiro. Para a autora da pesquisa, em contramão a esse processo, há espaço para trabalhar com medidas que “aumentem a produtividade e valorizem a formalização do trabalho, visto que o crescimento do emprego formal implica o consequente aumento do número de contribuintes para o financiamento da Previdência Social, e os custos previdenciários se reduzem conforme a economia cresce e se desenvolve”.

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Entrevista

Israel Hounsou

O desconforto de ser estrangeiro Israel Hounsoun fala sobre preconceito no Brasil laico e miscigenado Walter Pinto

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srael Hounsou nasceu no Benin, África, e chegou ao Pará em 2014, para estudar Ciência da Computação na Universidade Federal do Pará (UFPA), por intermédio de convênio internacional para estudantes de graduação, mantido pelo MEC. Ele é um dos 300 estrangeiros matriculados na UFPA, dos quais os africanos formam uma comunidade de 80 graduandos. Entre Brasil, Rússia, Japão e França, ele optou vir para o Brasil, porque se identifica com o país. Nem todos os países que enviam estudantes concedem bolsas de estudo. O Benin, de Israel Housoun, por exemplo, é um desses. Por isso ele divide seu tempo de estudante com o de professor de Francês. Estudantes estrangeiros com dificuldades financeiras podem concorrer ao Auxílio Moradia e à Bolsa Permanência, gerenciados pela Superintendência de Assistência Estudantil da UFPA (Saest). Housoun é presidente da Associação dos Estudantes Estrangeiros da UFPA e, nesta entrevista, ele fala das dificuldades de ser estrangeiro numa universidade brasileira e do trabalho de apoio da entidade para que os alunos não se sintam tão distantes de suas realidades.

Ser estrangeiro no Brasil Uma coisa que percebi ao chegar ao Brasil é a questão do racismo. A gente sente um choque, porque, no Benin, não tem esse problema com etnia, apesar de ser um país também de grande diversidade, que recebe pessoas de todo o mundo. Mas a nossa convivência com estrangeiros é boa, de modo geral. No Brasil, a gente

percebe esse impacto. Há um olhar diferente, a gente sente isso em volta. É um choque. Racismo como expressão linguística é algo que quase não se fala no Benin, porque não faz parte do dia a dia do povo. Mas, quando a gente chega aqui, quase todo dia, para não falar toda hora, ouvimos ou percebemos o racismo. É uma realidade triste, e a gente precisa saber lidar e lutar contra ela. Não são somente os africanos que sofrem preconceito. Os sul-americanos e os asiáticos também. O problema está no fato de ser estrangeiro. Isso já cria um desconforto. Como não estamos no nosso país, não podemos adotar um posicionamento mais agressivo. Então, a gente tem que se adequar com o que está sendo oferecido. Mas também reagimos. De que forma? Promovemos eventos, organizamos debates, participamos de mesas-redondas, convidamos especialistas, trocamos experiências, enfim, tudo que possa nos ajudar a lidar com esse tipo de problema.

Língua Portuguesa Quando cheguei ao Pará, não falava nenhuma palavra da língua portuguesa. Todo estudante estrangeiro de graduação que vem pelo convênio tem que aprender o português durante seis meses. Depois, faz uma prova de proficiência. Se aprovado, está habilitado a continuar o curso. Os reprovados voltam imediatamente aos seus países. De nada adianta você chegar à sala sem entender o que o professor está falando. Na pós-graduação, é diferente. Muitos chegam sem falar o português, mas, como são estudantes de outro nível, possuem um conhecimento

mais amplo e, geralmente, estão numa faixa etária mais avançada, então se viram como podem. O português é uma língua muito difícil. O maior problema é o sotaque, que muda de pessoa para pessoa. O uso de gírias é outra dificuldade e também há as expressões de duplo sentido. Um dia, um amigo perguntou: Israel, você sabe plantar bananeira? Eu disse claro! É só pegar a semente da banana e colocar embaixo da terra e... Antes de descrever como fazer, todo mundo riu. Foi então que aprendi o que é “plantar bananeira” no Pará.

Similaridade gastronômica Não há como negar que a cultura africana é muito diferente da cultura brasileira. Mas há algumas semelhanças, como na culinária. Há comidas que se parecem muito com as nossas. A maniçoba tem alguma coisa a ver com uma comida de Benin, também feita com maniva. Temos dois tipos de folha da mandioca, uma verde e outra vermelha. A folha vermelha é venenosa e exige um cozimento de vários dias. Mas a verde é cozida em 45 minutos. No Congo, há o Foufou, uma comida feita com farinha de milho, que parece a polenta brasileira. A nossa farinha é muito parecida com a paraense. O Benin é um dos grandes exportadores de farinha. Quando vim para cá, trouxe uma sacola com dois quilos da farinha, mas, em Guarulhos, a polícia abriu a mala e jogou tudo no lixo. Eu tentei argumentar que não era droga. Evidentemente, tenho muita saudade das nossas comidas, por isso a gente sempre organiza eventos culinários.

Mas, às vezes, a falta de algum tempero africano faz enorme diferença.

A religião Vodu Outro traço cultural em que percebo uma grande diferença é em relação à religião. Apesar de o Brasil ser um país laico, percebe-se certo preconceito com a religião do outro. No Benin, também existem várias religiões, mas, por incrível que pareça, há mais tolerância. Quando há festa de católicos ou de mulçumanos, a gente participa. Não é porque a outra pessoa é de religião diferente que você vai dizer que ela é do demônio. Somos seres humanos, só a religião é diferente. A religião Vodu é a mais tradicional do Benin, mas a ideia que se tem dela fora do país é completamente distorcida da realidade. O Vodu hollywoodiano, aquele que mostra um boneco espetado por agulhas, é falso. É uma construção que discrimina o Vodu, que é uma religião estudada por uma ciência, o Fa, como o cristianismo é estudado pela Teologia. Eu penso que se trata da religião mais verdadeira do mundo, mas não há templo de Vodu no Brasil. O que há de mais parecido são as religiões de matrizes africanas, a Umbanda e o Candomblé, por exemplo, mas não é a mesma coisa.

Adaptação Quando comecei o curso na UFPA, ninguém falava comigo, ninguém se aproximava. Aos poucos, eu consegui me fazer respeitar e, hoje, me sinto muito bem acolhido entre colegas e professores. Pode ser por causa do meu jeito expansivo, mas foi principalmente pelas minhas boas avaliações. Mas esta é a


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minha experiência. Sei de colegas que já sofreram rejeição, discriminação e preconceito. São fatos e nem sempre essa discriminação está relacionada à questão étnica. A língua contribui para que sejamos isolados dentro de um grupo de estudo. Na hora da apresentação de trabalhos, isso fica mais evidente. Por acreditarem que não dominamos a língua, devido ao sotaque, somos excluídos da apresentação. Mas verifique minhas notas, veja meu aproveitamento. Não é porque um estrangeiro não domina inteiramente a língua que se torna burro. Não! Todos nós recebemos a mesma aula. Quando chego em casa, estudo como qualquer estudante brasi-

leiro. Assim consigo o respeito, o carinho e a lealdade dos colegas. Tem gente que pensa que estrangeiros vêm estudar no Brasil porque em seus países não há condições para tal. Não é nada disso. Meu curso de Informática de Gestão, no Benin, por exemplo, teve semestre muito mais puxado que o do curso de Ciência da Computação daqui. Mas, então, por que escolhi vir pra cá? Talvez sentisse falta da parte prática no meu país. A disponibilidade de computadores é bem maior aqui. No Benin, a computação é um pouco mais recente, os computadores são mais caros, nem todos podem comprar um de primeira mão. Mesmo as universidades tendo esses equipamentos, o aluno

só pode acessar quando autorizado pelo professor, então isso dificulta a prática. Na UFPA, há vários computadores no laboratório, você pode usá-los, sem problema.

A Associação Sou presidente de uma entidade que trabalha com estudantes de diferentes países na UFPA. Um dos nossos objetivos é garantir uma boa condição de vida aos estrangeiros, não só condição financeira, mas de bem-estar. Sabemos que estamos em outro país, fora de nossas casas e longe da família. Quando chegamos, sentimos a realidade diferente e, com ela, toda a carga de

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preconceito, racismo e discriminação. Evidentemente, há coisas boas que nos acontecem também e contribuem para que não nos sintamos isolados. Mas as dificuldades são reais. Há estudantes que passaram por vários problemas, principalmente psicológicos, e não souberam lidar com tudo isso. Tiveram problemas de adaptação e até mudaram de Estado. É justamente por isso que a associação existe. Ela acompanha esses casos, dá apoio psicológico quando necessário, discute os problemas em eventos e encaminha reivindicações pertinentes. Trabalhamos para que nossos colegas estrangeiros não se sintam tão distantes de suas realidades. ALEXANDRE DE MORAES


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Psicologia

Identidade e preconceito Dissertação analisa o processo de construção da autoestima negra Armando Ribeiro

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Da esquerda para a direita: Maria Carolina de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Dandara e Chiquinha Gonzaga estão em cartazes fixados no Campus Guamá em campanha pela valorização da pessoa negra.

u nunca aceitava o meu cabelo. Até os vinte anos, eu não aceitei o meu cabelo. Na escola, durante a infância, era pior. Sofri vários tipos de preconceito e me tornei uma pessoa introspectiva, mas eu não enxergava isso como preconceito. Por quê? Porque eu não fui criada para ser vista como uma menina negra, uma mulher negra. Eu fui criada pra ser vista como uma menina morena”. Esse relato pertence à Carolina Maria de Jesus Hickmann (nome fictício escolhido pela entrevistada) e está na dissertação do psicólogo Robenilson Barreto, Contribuições psicanalíticas para a compreensão do preconceito social: um estudo de caso. A pesquisa teve por objetivo entender como acontece o processo de construção do preconceito racial e qual o seu impacto na vida de pessoas negras. Robenilson Barreto conta que o trabalho, orientado pelos professores Paulo Roberto Ceccarelli e Zélia Amador de Deus, traz como proposta investigar em que medida o racismo influencia o cotidiano do aluno negro

da UFPA. Segundo ele, as escolas e as universidades pouco abordam temas relacionados à história da África e de seus povos, restando aos estudantes aprenderem a versão contatada pelo colonizador. “Hoje, compreendemos por que diversas áreas de ensino não tocam nesse assunto. Falar de temas como raça, racismo ou África ainda é espinhoso, tendo em vista que a sociedade brasileira reconhece o racismo, mas não admite que é racista”, afirma Robenilson Barreto. Para ser realizado, o estudo, apresentado ao Programa de Pós-Graduação de Psicologia (PPGP/ IFCH), contou com o relato de dois estudantes da Universidade Federal do Pará, uma brasileira, a do relato acima, e um intercambista de Guiné Bissau, Clennon King Junior (nome fictício escolhido pelo aluno). “Esses estudos são essenciais, porque apontam a estrutura central do racismo, como ele é apreendido pelas pessoas e qual a consequência disso, além de explicar o motivo de, até hoje, existirem pessoas que se acham superiores a outras por conta da cor”, informa o pesquisador. Considerando as realidades dos dois alunos, a pesquisa verifica

que a forma como a brasileira sofre racismo é a mesma do guineense, mas em caminhos diferentes, e isso está ligado ao reconhecimento histórico de cada um. “Enquanto em Guiné Bissau as pessoas são estimuladas a conhecerem seu passado e se orgulharem dele; no Brasil, encontramos a negação da história do povo negro. Quase não ouvimos falar deles além da época da escravidão”, afirma o psicólogo. O pesquisador lembra, ainda, das diversas políticas que estimularam o embranquecimento da raça. A própria ideia de “Ordem e Progresso” está ligada a essa evolução por meio da exclusão do negro. “Isso vai interferir diretamente no modo como o racismo é absorvido. A aluna brasileira apresentou um sofrimento mais profundo e um percurso mais longo até se admitir como negra, enquanto o aluno guineense enfrentou a situação de acordo com o orgulho que lhe foi ensinado. Então, conhecer e entender nossa história de luta e resistência é importante para termos orgulho da nossa origem, e isso é fundamental para a construção da subjetividade, para entendermos o que somos hoje”, afirma o psicólogo.


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Metodologia usou ferramentas da psicanálise nas entrevistas A pesquisa utilizou entrevistas semiestruturadas com perguntas-chave para guiar os entrevistados. Robenilson Barreto conta que as questões foram apoiadas na associação livre, associação flutuante e análise de transferência, termos da psicanálise que permitem aos sujeitos falarem livremente enquanto quem

ouve toma notas baseado na escuta analítica. Essa metodologia serviu para demonstrar os impactos do preconceito racial na subjetividade dos entrevistados. O psicólogo revela que a pesquisa remonta um processo de identificação, mostrando que as pessoas se identificam com os elementos que lhes são mais próximos.

Com isso, Robenilson destaca outro resultado, que é o ideal de ego branco intensificado pela negação e inferiorização da história do sujeito negro. “As pessoas negras vão ter como referência a cultura branca europeia. Ideias como: as pessoas brancas são boas, estão nos melhores lugares e são bem-sucedidas. Assim,

entendemos que expressões como ‘não sou tuas negas’, ‘a coisa tá preta’ ou ‘lista negra’ surgem nesse processo em que o negro é sempre uma expressão inferior. Ao nascer com essa perspectiva, é difícil se reconhecer com essa cor, porque ninguém quer se identificar com algo que remete a tudo de ruim”, explica.

Travessia da identidade: guineense, estrangeiro e negro Em Guiné Bissau, o preconceito que prevalece é o étnico, sendo poucas as regiões em que ocorre a discriminação pela cor. O estudante Clennon King Junior pertence a um povo guerreiro, que expulsou os portugueses de suas terras. Ele foi criado com uma base de resistência, acreditando na história de luta contada pelo seu povo e sofrendo menos com o racismo do que a brasileira Carolina Maria de Jesus. “A travessia de identidade que ele faz resulta na descoberta do que é a inferiorização pela sua cor. Quando ele decide vir estudar no Brasil, ele é guineense.

Quando entra no avião, ele é estrangeiro. Ao chegar aqui, ele se torna negro”, explica Robenilson Barreto. Quando chegou ao Brasil, Clennon King Junior conta que ficou surpreso com a forma como o continente africano era retratado. Para ele, a história dos afrodescendentes e dos africanos é contada como se começasse na escravidão, negando todos os povos que existiram antes disso. As pessoas olham para o negro como um produto dos escravos, de uma raça inferior. “Infelizmente, os negros brasileiros, nossos irmãos, acabam, de certa

forma, sendo vítimas dessa história. Porque você sendo negro e na sala de aula, a única coisa que falam sobre você é escravidão, humilhação e miséria. Isso não é bacana. Isso, de certa forma, não cria nenhuma autoestima”, afirma o estudante. O pesquisador conta que Carolina Maria de Jesus Hickmann, por ser negra, mulher e lésbica, passou por um intenso sofrimento psíquico. Para ele, esse processo vai se atrelar com o histórico de negação do negro no Brasil, com o mito da democracia racial, que diz não existir brancos e negros no País, mas mestiços.

A aceitação de sua negritude, diz Carolina, começa aos 20 anos, quando entrou na Universidade. “Quando eu me vi em um contexto diferente, com novas ideias, foi que passei a reconhecer, dentro das minhas lembranças, o racismo. Isso, somado ao contato com os movimentos sociais, me fez parar de alisar o cabelo e me reconhecer como mulher negra. Hoje, luto, porque, durante toda a minha vida, fui jogada para escanteio e porque não sabia quem eu era. Hoje eu posso afirmar que tudo isso que me aconteceu me trouxe até aqui”, relata a estudante. FOTOS REPRODUÇÃO NAYANA BATISTA


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Saber local

Turismo aliado à saúde Fitoterápicos geram renda e desenvolvimento em Marapanim (PA) Nicole França

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região amazônica é rica em recursos naturais, principalmente quando se fala em plantas que possuem funções terapêuticas, e, em Marapanim, não é diferente. No município, o Grupo de Mulheres Erva Vida produz e comercializa remédios artesanais com plantas medicinais da região. Com base nas atividades do grupo, a turismóloga Marcia Sueli Castelo Branco Bastos elaborou a dissertação Turismo de Saúde: saberes e remédios caseiros para o desenvolvimento local na comunidade do Sossego/ Marapanim-PA, apresentada no Programa de Pós-Graduação

em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local da Amazônia (PPGEDAM), com orientação do professor Wagner Luiz Ramos Barbosa. A dissertação analisou de que forma o desenvolvimento local do turismo, associado à produção de remédios artesanais, pode trazer benefícios para a comunidade do Sossego, no distrito de Marudá, município de Marapanim (PA). “O objetivo da pesquisa foi estimular a qualificação da cadeia produtiva dos remédios produzidos pelo Grupo Erva Vida”, afirmou Marcia Bastos. A pesquisa foi estruturada com a ideia de Turismo de

Base Comunitária (TBC). “O TBC é uma estratégia de gestão integrada, que oportuniza a inclusão da população local na atividade turística e, entre outros aspectos, visa ao fortalecimento da cadeia produtiva do turismo com base na produção associada. Neste caso, uma produção associada ao TBC que venha promover o desenvolvimento local, valorizar os saberes e os usos terapêuticos de plantas medicinais, gerar renda e valorizar a produção local”, esclareceu a pesquisadora. No processo de pesquisa, foram realizadas entrevistas e aplicados questionários, tanto com os turistas quanto com

as integrantes do Grupo Erva Vida. As entrevistas permitiram conhecer o perfil socioeconômico e profissional das mulheres do grupo, identificar fatores que contribuem ou limitam a produção e a comercialização de remédios caseiros, além de discutir a cadeia produtiva local de fitoterápicos. Os questionários aplicados aos turistas procuraram verificar o perfil do visitante de Marapanim (PA), sua avaliação sobre os aspectos turístico-culturais do município, se eles conheciam e se interessavam pela produção local de remédios caseiros e, caso fossem clientes, qual seria o período da visita.

Grupo Erva Vida tem 20 anos de atuação na região

Xaropes, garrafadas, tônicos, essências e sabonetes estão entre os produtos produzidos pelo Erva Vida.

O Grupo Erva Vida é composto por pescadoras aposentadas da região, com faixa etária entre 40 e 65 anos e baixo nível de escolaridade. O grupo possui 20 anos e, atualmente, conta com 12 integrantes. O Erva Vida produz xaropes, tinturas, garrafadas, tônicos energéticos, compostos, essências, sabonetes e pomadas. Segundo Marcia Bastos, a comercialização dos produtos ocorre o ano inteiro, mas é durante o período de férias escolares, com o fluxo turístico maior, que as vendas têm aumento significativo. “Fora do período de férias, a comercialização não é suficiente para a subsistência delas. Com a pesquisa, conseguimos identificar a necessidade de ações estratégicas para a divulgação dos produtos e a sua comercialização. Assim, propus um plano de negócios para o grupo”, conta a pesquisadora. ALEXANDRE DE MORAES

A elaboração do plano de negócios utilizou dados de pesquisas anteriormente realizadas pelo grupo do Laboratório de Etnofarmácia (LAEF/NUMA/UFPA), destacando-se o Planejamento Estratégico que identificou forças, fraquezas, oportunidades e ameaças enfrentadas pelo grupo. Entre as forças apontadas, estão a ampla experiência na produção de remédios caseiros e a existência de um patrimônio próprio com laboratório, loja e área livre. Como oportunidades, podemos citar o reconhecimento do trabalho do grupo na região e a existência de um meio de divulgação disponível. Já as fraquezas identificadas foram a falta de capacitação técnica e tecnológica para o controle de custos e a sazonalidade na comercialização dos produtos. Algumas ameaças seriam os altos custos dos insumos e a concorrência com grandes laboratórios e produtos de outros Estados. O plano de negócios focou na comercialização, sem deixar de promover um diálogo com a valorização dos saberes locais, a qualificação do produto e a gestão dos recursos naturais. O planejamento financeiro constatou que é necessário um aumento de 50% a 60% da produção para que o Grupo Erva Vida se mantenha apenas com a produção dos remédios caseiros. “Hoje, essas mulheres possuem uma renda, mas não é suficiente para sustentá-las. Elas precisam buscar alternativas: algumas vendem alimentos, outras fazem trabalhos domésticos. A ideia é desenvolver o negócio para que esses trabalhos complementares não sejam necessários”, explicou a pesquisadora.


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Saúde

Fertilização in vitro Pesquisa investiga causas de falhas no procedimento ALEXANDRE DE MORAES

Armando Ribeiro

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ara quem deseja a parentalidade, a gravidez é um dos momentos mais esperados. Para viver esse momento, pessoas inférteis, LGBTIs e solteiras viram, no desenvolvimento tecnológico e na fertilização artificial, uma alternativa para realizar esse sonho. Analisando apenas pares heterossexuais, o médico João Paolo Bilibio, coordenador do Projeto Investigação das causas de aborto de repetição em pacientes submetidos à fertilização in vitro (FIV) e após gravidez natural no Laboratório de Ciências da Saúde, da Faculdade de Medicina (ICS/UFPA), informa

que a cada 10 casais que você conhece pelo menos um apresenta dificuldade reprodutiva. Ele explica que as causas são encontradas tanto nas mulheres quanto nos homens e que, em 40% dos casos, o casal apresenta fatores de dificuldade. O principal fator masculino é a alteração espermática, que ocorre quando o espermatozoide é considerado “fraco”. Entre as mulheres, o mais comum são os fatores tubários, ou seja, o fechamento das trompas, impedindo a passagem do espermatozoide e a consequente fecundação do óvulo. O médico também destaca a endometriose e as doenças inflamatórias pélvicas (DIPs).

O professor da Faculdade de Medicina afirma que o cenário crescente de casais que necessitam fazer a fertilização vai se repetir no Pará. “No Brasil, especialmente nas Regiões Norte e Nordeste, os fatores de risco serão maiores. Por exemplo, as DSTs vão se mostrar recorrentes em áreas periféricas, nas quais as campanhas de combate a essas infecções e o incentivo ao uso do preservativo não são suficientes. Isso é menos recorrente em países com renda mais elevada”, revela João Bilibio. O professor explica os três principais tratamentos para casais com dificuldades reprodutivas: o primeiro é o coito

programado, que consiste em ajustar o dia e o horário da ovulação, de forma a adequar o momento mais fértil para o casal manter relação. O segundo é a inseminação, realizada quando o sêmen tem uma capacidade média de qualidade, é coletado em laboratório e, depois, introduzido no fundo do útero. O terceiro tratamento é o foco da pesquisa de João Bilibio, a fertilização in vitro (FIV). Os ovários são estimulados e, em seguida, é feita a coleta dos óvulos. Para cada óvulo, será destinado um espermatozoide. Esse processo vai gerar um embrião, que vai passar cinco dias “em cultivo” no laboratório, até ser transferido para o útero.

Fichas de pacientes passam por análise transversal O projeto de pesquisa tem por objetivo mudar o relatório de avaliação sobre as falhas implantacionais, por meio de técnicas que identifiquem as suas principais causas, minimizando os impactos nos pacientes. “Hoje, não podemos simplesmente dizer aos casais ‘não tenho certeza do que aconteceu, mas tente engravidar novamente. Na próxima, pode dar certo’. Eles investem muito numa gravidez. Há os aspectos emocionais, financeiros e físicos. Essas pessoas precisam, no mínimo, de uma explicação

sobre o que está ocorrendo, do porquê da perda”, avalia João Bilibio. De acordo com o pesquisador, a taxa de sucesso da FIV aumentou nos últimos anos. Antes, apenas dois, em cada dez casais, conseguiam engravidar. Atualmente, esses números se modificaram, oito casais obtêm êxito. “Apesar disso, ainda existem esses dois casais que não conseguiram, então precisamos evoluir e melhorar as chances de sucesso”, afirma o médico, que trabalha com reprodução humana há doze anos.

João Bilibio conta que avaliou o protocolo investigativo padrão nos casos de insucesso e constatou que ele apresenta a causa em 60% das vezes. Com isso, o médico vai propor um modelo que melhore as técnicas diagnósticas de avaliação endócrina, imunológica, trombofílica e genética. Para isso, realizou um estudo transversal com as fichas dos casais que tiveram dois ou mais abortos, para analisar o histórico dos pacientes e realizar novos exames. Os resultados apontam três causas: genética (30%),

quando o bloqueio do embrião ocorre de maneira natural; aborto imunológico (25%), quando o metabolismo da mulher reage ao embrião como um corpo estranho; trombofilia (25%), a propensão de a mulher desenvolver trombose impede o processo de formação do feto. Outros 20% dos pacientes apresentaram tanto abortos imunológicos quanto trombofílicos. O pesquisador destaca que, entre todos os casais examinados, apenas 7% ficaram sem uma causa definitiva, o que é um avanço ao longo dos seus 12 anos de experiência.


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Pesquisa

De volta ao mundo da ciência Mapa Étnico-Histórico de Nimuendajú ganha edição on-line Walter Pinto

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m 1903, Kurt Unckel, um jovem alemão de 20 anos, nascido na cidade de Jena, na região da Turíngia, era técnico em relojoaria quando decidiu navegar em direção ao Brasil, país que escolheu para viver pelas quatro décadas seguintes. Surpreendentemente, por se tratar de um autodidata, ele desenvolveu em terras brasileiras uma brilhante carreira de pesquisador. Sua preocupação em documentar, cientificamente, a vida dos grupos indígenas, tendo convivido com um grande número de etnias de diferentes regiões e áreas de fronteira, inseriu seu nome entre os maiores da etnologia nacional. A partir de 1906, ele ficou mais conhecido pelo nome Nimuendajú, que significa “fazer moradia”, que lhe foi dado pelos índios Apapocúva-Guarani, com

quem manteve estreita convivência. Três anos depois, ele trocou o sul pela Amazônia, fixando residência em Belém, quando não estava nas aldeias a serviço do Serviço de Proteção ao Índio e, posteriormente, do Museu Paraense Emílio Goeldi. Em 1921, naturalizou-se brasileiro, adotando, oficialmente, o nome Curt Nimuendajú. Em seus 62 anos de vida, Nimuendajú produziu importantes estudos científicos sobre os índios Guarani, Apinayé, Timbira, Gorotire e Tükuna, entre outros. No entanto seu trabalho de maior repercussão é o Mapa Étnico-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes, produzido na década de 1940, em que relaciona, localiza, historiciza e fornece diversas outras informações sobre as etnias nacionais e de países vizinhos, incluindo as extintas. Produziu três mapas de grandes dimensões, que se encontram

nos Estados Unidos, em Belém (no Museu Goeldi) e no Rio de Janeiro (no Museu Nacional). Problemas de conservação do mapa original, assim como distorções surgidas em cópias impressas posteriormente levaram o Instituto de Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional (IPHAN) a estabelecer uma parceria com a UFPA, com o objetivo de produzir uma plataforma interativa digital on-line do Mapa de Nimuendajú. A digitalização do mapa é parte do Projeto Plataforma Interativa de Dados Geo-históricos, Bibliográficos e Linguístico-Culturais da Diversidade Linguística no Brasil, realizado pelas duas instituições. Esta nova edição se preocupou em restituir, por exemplo, as cores originais e o sistema de coordenadas criado pelo cientista, além de agregar novas ferramentas disponibilizadas pela Tecnologia da Informação.

Nova edição corrige distorções das anteriores Além da versão atualizada on-line, as instituições organizaram uma nova edição impressa, corrigindo as distorções verificadas nas edições impressas de 1981, 1987 e 2002. Em setembro passado, em Brasília, foi lançada a nova versão impressa, e disponibilizada, no site do IPHAN, a versão on-line do mapa. Coube a Jorge Domingues Lopes, doutor em línguas indígenas e professor adjunto da UFPA no Campus Universitário do Tocantins-Cametá, e ao antropólogo Marcos Vinícius Garcia, do IPHAN, a coordenação dos trabalhos iniciados em 2015. “A ideia é fazer o mapa circular no meio acadêmico, estimulando pesquisas sobre as etnias e a história dos povos que ocuparam e ocupam o Brasil”, revela Jorge Domingues. Outro objetivo foi “promover a maior difusão das informações por meio de uma plataforma interativa e digital, que permita ao pesquisador acesso rápido aos dados

do mapa”, complementa Jorge. Os três mapas originais de Curt Nimuendajú são de grande dimensão, medindo, aproximadamente, quatro metros quadrados (2x2), o que torna difícil sua manipulação. A versão impressa em 1981, medindo 1x1 m, apesar de mais acessível, acabou por distorcer algumas informações que precisaram ser corrigidas na versão atual, que procurou recuperar, o mais próximo possível, o sistema original de convenções. “Nimuendajú reuniu, num mesmo espaço, informações diferentes, tendo o cuidado de distinguir, por meio tipográfico, quais eram os grupos extintos (letras sem serifa) e os existentes (letras com serifa). Sistema análogo foi também empregado para distinguir tribos que abandonaram suas sedes (caixa vazia) das que se mantiveram (caixa cheia)”, explica Jorge Domingues. Outras convenções para diferenciar grupos indígenas

fazem uso de cores e formas variadas de linhas. Os coordenadores da nova edição, diante da disponibilidade dos modernos recursos computacionais, decidiram facilitar o acesso dos pesquisadores, transformando o mapa numa grande base de dados digital, de modo que eles possam filtrar as informações, fazer busca avançada e ter acesso, mais rápido, aos conteúdos. Os avanços não param por aí. Com base em um documento escrito por Nimuendajú, em 1944, no qual diz que “o importante é que os pesquisadores tenham acesso ao mapa, corrijam as imperfeições, ampliem e atualizem constantemente os dados”, a equipe pensa abrir a plataforma para que os pesquisadores e os próprios indígenas possam interagir, inserindo dados e indicando a localização exata dos grupos, entre outras informações, o que vai ao encontro do desejo expresso pelo etnólogo.


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Plataforma reúne todas as referências utilizadas Outro trabalho que está sendo realizado é o levantamento da bibliografia que serviu de base para Curt Nimuendajú reconstruir, principalmente, as referências históricas utilizadas no seu mapa, todas devidamente numeradas. “Ele teve o cuidado de datilografar e encartar, no mapa, um caderno com a lista completa das referências. No primeiro mapa, foram inseridas 800 referências; no segundo, 870, e no último, 973 referências. Deste total, já dispomos de 70% do material digitalizado em PDF. Em breve, este material estará disponibilizado na plataforma digital interativa”, informa Jorge Domingues. A equipe encarregada de produzir a atual versão do mapa

buscou ajustar a distorção entre o sistema próprio de coordenadas criado por Nimuendajú e o utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apôs sobre o mapa original o sistema de coordenadas geográficas utilizado nos mapas da década de 1970. Segundo Domingues, “isto criou certa distorção entre o que tinha sido indicado pelo pesquisador, originalmente, e o que foi publicado pelo IBGE na década de 1980”. De acordo com o coordenador, Nimuendajú dividiu o mapa numa malha que não é exatamente o de coordenadas geográficas. “Ele dividiu o mapa em quadrantes contendo um sistema próprio de numeração (linhas x colunas), o mesmo

do caderno de referências. Se quero localizar no mapa, por exemplo, onde estão os Tembé, só preciso consultar o caderno de referência, identificar a linha e a coluna e cruzar as informações no mapa. Assim, é possível dizer que os Tembé estão neste e naquele espaço”, explica o coordenador. “Faz-se necessário esclarecer que Curt Nimuendajú não dispunha de fotografias aéreas. Ele teve que buscar informações in loco. Viajou praticamente por todo o Brasil, conheceu muitos grupos indígenas e teve acesso a mapas elaborados por outros pesquisadores, além de obter muitas informações em livros. Seu sistema deriva desta longa pesquisa”, finaliza Jorge Domingues Lopes.

serVIÇo: Pode-se acessar o mapa neste endereço: http://portal. iphan.gov.br/uploads/publicacao/ mapaetnohistorico2ed2017.pdf


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Resenha Novas leituras do lazer Walter Pinto

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eralmente relacionado ao descanso, às férias, ao espetáculo e à diversão, o lazer é, como define a pesquisadora Christianne Gomes no artigo “Estudo do lazer e geopolítica do conhecimento”, publicado na Revista Alicerce, uma necessidade humana e uma dimensão da cultura caracterizada pela vivência lúdica de manifestações culturais no tempo e no espaço sociais. Com base nesse entendimento, Manuel Cuenca Cabeza, catedrático emérito da Universidade de Bilbao, Espanha, conclui que o lazer não é uma prática secundária ou de segunda categoria, mas algo muito mais importante para o desenvolvimento humano. Manuel Cabeza é um dos autores dos oito artigos que compõem o livro Novas leituras do lazer contemporâneo, publicado pela editora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), que tem por objetivo sistematizar as contribuições de pesquisadores nacionais e internacionais participantes do II Congresso Brasileiro de Estudos do Lazer, realizado em Belém,

em 2016. No artigo Ocio humanista, un compromiso con el desarrollo personal y comunitario, Cabeza debate as concepções de ócio e suas relações com o desenvolvimento humano, destacando a necessidade de democratizá-lo por toda a sociedade. Organizado por Mirleide Chaar Bahia, professora adjunta do NAEA e líder do Grupo de Pesquisas em Lazer, Ambiente e Sociedade, o livro foi lançado na Feira Pan-Amazônica do Livro, realizada em junho passado. No artigo de abertura, os pesquisadores Christianne Gomes e Hélder Isayama, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais, reconstroem a criação do Seminário O lazer em debate e a transformação dele em Congresso Brasileiro de Estudos do Lazer. Trata-se de um estudo de caráter historiográfico, que remonta às etapas daquele processo, com ênfase nas publicações dele resultante. Outro artigo de caráter historiográfico, assinado por Victor Andrade de Melo, da UFMG, e por Ricardo Ricci Uvinha, da Universidade de São Paulo (USP), aborda a trajetória da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Estudos do Lazer, criada em 2013. Em Práticas socais de lazer nas cidades amazônicas: pesquisas como requisito para políticas públicas, Rosa Acevedo Marin, pesquisadora do NAEA e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPA, discute as mudanças espaciais e as interferências e alterações das práticas de lazer na realidade social urbana da Amazônia, relacionadas aos processos de expansão das cidades. A autora observa que fundamental é rever, de forma crítica, a máquina da indústria do lazer e os mecanismos de mudança que desencadeia. A compreensão dos problemas que afligem os agentes sociais e a coletividade, sem direito a usufruir do lazer, passa, afirma, pelo desenvolvimento de estudos sobre o setor. REPRODUÇÃO

Para Sílvia Cristina Franco Amaral, livre-docente pela Faculdade de Educação Física da Unicamp, o tema “políticas públicas, lazer e sustentabilidade” é desafiante e deflagrador de mudança. Seu artigo divide-se em três partes. Trata de conceitos, explora aspectos do Estatuto da Cidade e toma a cidade de Campinas para discutir avanços e limites da relação existente entre políticas públicas e sustentabilidade. Uma das constatações de Sílvia Amaral é a de que um dos grandes problemas das cidades brasileiras é, justamente, a enorme desigualdade existente entre a “cidade visível e a cidade periférica, invisível e ilegal”. O tema políticas públicas na área do lazer é também abordado pelos pesquisadores Simone Rechia, Felipe Gonçalves e Rodrigo França no artigo Cidade, lazer, políticas públicas e sustentabilidade: desafios e perspectivas. Os autores são da área de Educação Física e professores da Universidade Federal do Paraná. Para a análise do tempo livre e do lazer na sociedade contemporânea, a socióloga Édna Castro, pesquisadora do NAEA, fez um estudo sobre o lugar do trabalho na sociedade, destacando a natureza das relações de trabalho, bem como as instituições criadas como espaços de regulação dos direitos trabalhistas e as soluções dos conflitos produzidos no âmbito das relações capitalistas. Segundo Édna Castro, a luta pela redução da jornada de trabalho mobilizou a classe operária em todo o mundo. Desde a primeira metade do século XX, existem pautas de discussões dos movimentos sociais, como reivindicações dos sindicatos, especialmente o dos operários. Por fim, Sílvio Figueiredo, pesquisador do NAEA, no artigo O campo do lazer, festa e política nos espaços públicos urbanos, diz que “o estudo das festas e dos lazeres não poderia prescindir de temas da política, da pólis, da relação humana, dos assuntos políticos, da coletividade e da relação entre seres humanos”. Por isso a política, entendida como ciência que dá conta de uma série de práticas sociais e organizativas, é a “porta de entrada e de saída” da sua análise. Serviço: Novas leituras do lazer contemporâneo. Organizadora: Mirleide Chaar Bahia. Editora NAEA. 162 páginas.


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A Histรณria na Charge

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